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JoseRicardoFernandes
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Fundao Casa de Rui Barbosa www.casaruibarbosa.gov.br
O direito memria: anlise dos princpios constitucionais da poltica de patrimnio cultural no Brasil (1988-2010)
Jos Ricardo Ori Fernandes
Resumo: No Brasil, temos assistido nos ltimos decnios uma preocupao maior com questes atinentes s polticas de memria e preservao do patrimnio cultural.
Pretendemos abordar os princpios constitucionais em que se fundamenta a preservao do
patrimnio cultural brasileiro, luz dos pressupostos tericos da nova histria cultural.
Consideramos que isso se deve, em grande parte, ao novo ordenamento constitucional,
inaugurado com a Constituio Federal de 1988, que ampliou o conceito de patrimnio
cultural. Alm dessa inovao conceitual, a carta constitucional trouxe importantes princpios
que devem nortear a ao preservacionista em nosso pas. Esses princpios propiciam a
construo de uma memria plural que enseje o exerccio da cidadania a todos os
brasileiros.
Palavras-chave: Poltica Cultural, Patrimnio Histrico, Cidadania, Direito Memria.
O historiador francs Pierre Nora, organizador da clssica obra Les Lieux de memoire,
ao fazer um balano da historiografia contempornea disse, de forma muito apropriada,
que:
Doutor em Histria da Educao pela Universidade de So Paulo (USP) e Consultor Legislativo da rea de
educao e cultura da Cmara dos Deputados. E-mail: [email protected].
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Em todo o mundo, estamos experimentando a emergncia da memria [...] Durante os
ltimos vinte a vinte e cinco anos, todos os pases, todos os grupos sociais e tnicos,
passaram por uma profunda mudana, mesmo uma revoluo, no relacionamento
tradicional que tem mantido com seu passado. Essa mudana tem adotado mltiplas e
diferentes formas, dependendo de cada caso individual: uma crtica das verses oficiais da
Histria; a recuperao dos traos de um passado que foi obliterado ou confiscado; o culto
s razes, ondas comemorativas de sentimento; conflitos envolvendo lugares ou
monumentos simblicos; uma proliferao de museus; aumento da sensibilidade relativa
restrio de acesso ou explorao de arquivos; uma renovao do apego aquilo que em
ingls chamado de heritage e em francs patrimoine; a regulamentao judicial do
passado. Qualquer que seja a combinao desses elementos, como uma onda de
recordao que se espalhou atravs do mundo e que, em toda a parte, liga firmemente a
lealdade ao passado- real ou imaginrio e a sensao de pertencimento, conscincia
coletiva e autoconscincia. Memria e identidade (NORA, 2009, p. 6).
Outros historiadores e cientistas sociais comungam dessa mesma ideia. O ingls Peter
Burke chega a afirmar que vivemos, desde os ltimos anos do sculo passado, um
verdadeiro boom da memria, caracterizado pelas excessivas ondas de comemorao
de efemrides histricas (BURKE, 2009). Por sua vez, o antroplogo Andreas Huyssen
diz que estamos todos seduzidos pela memria: um dos fenmenos culturais e
polticos mais surpreendentes dos anos recentes a emergncia da memria como
uma das preocupaes culturais e polticas das sociedades ocidentais. Para ele, ...a
memria se tornou uma obsesso cultural de propores monumentais em todos os
pontos do planeta (HUYSSEN, 2000, p. 9-16)
No Brasil, no menos diferente. A cada dia presenciamos criao de novos museus,
centros de pesquisa e documentao, desenvolvimento de projetos de histria oral em
associaes comunitrias e de histrias institucionais por parte de rgos do governo e
empresas. Por sua vez, desde meados dos anos 1980, os movimentos sociais
populares, encetados por novos atores sociais na cena poltica (mulheres, ndios,
negros, sem-terra, homossexuais, etc.) veem no resgate de sua memria um
instrumento poderoso de afirmao de sua identidade e de luta pelos direitos de
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cidadania. Assim, como ocorre em outras partes do mundo, assistimos nos ltimos
decnios uma preocupao maior com questes atinentes s polticas de memria e
preservao do patrimnio cultural. Consideramos que isso se deve, tambm, ao novo
ordenamento constitucional brasileiro. A Constituio Federal de 1988 ampliou
consideravelmente o conceito de patrimnio cultural, para alm da dimenso pedra e
cal, incorporando os bens de natureza material e imaterial, portadores de referncia
identidade, ao e memria dos diferentes grupos formadores da sociedade
brasileira (art. 216, caput). Alm dessa inovao conceitual, a carta constitucional
trouxe importantes princpios que devem nortear a ao preservacionista em nosso
pas.
Uma leitura analtica do texto constitucional permite-nos elencar os seguintes princpios:
a construo da memria plural, a diversidade de instrumentos de preservao, a municipalizao da poltica patrimonial e a multiplicidade de sujeitos/atores na defesa do patrimnio cultural. Esses princpios propiciam, na prtica, a construo de uma poltica cultural para o patrimnio que enseje o exerccio da cidadania a todos os
brasileiros.
A Cidadania Cultural e o Direto Memria Pioneiramente, o legislador constituinte, sensvel s mudanas epistemolgicas no
mbito das Cincias Humanas e motivado pelas reivindicaes de movimentos sociais
os mais diversos que emergiram na cena poltica nacional dos anos 1980, introduziu, no
texto constitucional, o Princpio da Cidadania Cultural.
Pela primeira vez na histria constitucional do Pas, passou-se a falar em direitos
culturais. Isso j se constituiu um grande impacto advindo com a Constituio de 1988,
que permitiu sociedade a reivindicao do acesso aos bens culturais como expresso
maior da Cidadania. Por sua vez, o poder pblico, em suas diversas instncias, sentiu a
necessidade de contemplar, em sua agenda poltica, aes que garantissem os direitos
culturais a todos os brasileiros. Ocorreu, pioneiramente, uma constitucionalizao da
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cultura. A seo II, do Captulo III, do Ttulo VII, da nossa Constituio, dedicada
questo cultural, afora artigos outros, pargrafos e incisos que tratam, direta ou
indiretamente, da cultura. Os princpios constitucionais da Cidadania e da Diversidade
Cultural norteiam o captulo da Cultura de nossa Carta Magna. Veremos, pois, cada um
de per si.
Na atual Constituio brasileira, pela primeira vez, o legislador constituinte teve a
sensibilidade poltica de enquadrar no rol dos direitos fundamentais os chamados
direitos culturais e de exigir que o Estado garanta a todos os brasileiros o exerccio
desses direitos. Isto evidente a partir da leitura ao dispositivo constitucional: O Estado
garantir a todos o pleno exerccio dos direitos culturais e acesso s fontes da cultura
nacional, e apoiar e incentivar a valorizao e a difuso das manifestaes culturais.
(art. 215, caput).
Mas o que vem a ser direitos culturais? Podemos dizer que so aqueles direitos que o
indivduo tem em relao cultura da sociedade da qual faz parte, que vo desde o
direito produo cultural, passando pelo direito de acesso cultura at o direito
memria histrica.
O direito de produo cultural parte do pressuposto de que todos os homens produzem cultura. Todos somos, direta ou indiretamente, produtores de cultura. o
direito que todo cidado tem de exprimir sua criatividade ao produzir cultura. O direito de acesso cultura pressupe a garantia de que, alm de produzir cultura, todo indivduo deve ter acesso aos bens culturais produzidos por essa mesma sociedade.
Trata-se da democratizao dos bens culturais ao conjunto da populao. E, finalmente,
o direito memria histrica1 como parte dessa concepo de Cidadania Cultural,
1 A discusso sobre o direito memria como parte integrante do princpio da Cidadania Cultural foi objeto de
nossa dissertao de mestrado, intitulada O Direito memria: a proteo jurdica ao patrimnio histrico-cultural brasileiro. Fortaleza: Faculdade de Direito da Universidade Federal do Cear, 1995.
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segundo o qual todos os homens tm o direito de ter acesso aos bens materiais e
imateriais que representem o seu passado, sua tradio e sua Histria.
Vale ressaltar que os trs grupos de direitos que compem os chamados direitos
culturais so partes interdependentes de uma mesma concepo de Cidadania Cultural.
Na verdade, os direitos culturais so direitos de cidadania e direitos fundamentais,
segundo a moderna terminologia jurdica. Essa uma tendncia generalizada nos
pases ocidentais, conforme afirmam Jorge Miranda e Vasco Pereira da Silva,
constitucionalistas portugueses, ao se referirem ao conjunto de normas que fazem
aluso s matrias e disposies consubstanciadoras dos direitos sociais relativos
cultura. Houve, no Brasil, a partir da Constituio de 1988, uma nova Ordem
Constitucional da Cultura ou uma Constituio Cultural, presente nos arts. 215 e 216.
Podemos tambm acrescentar aos direitos culturais, anteriormente explicitados, o
direito informao como condio bsica ao exerccio da cidadania e o direito participao nas decises pblicas sobre polticas culturais (CHAU, 2006, p. 136), por meio de conselhos e fruns deliberativos, onde o cidado possa, atravs de seus
representantes, interferir nos rumos da poltica cultural a ser adotada, distanciada dos
padres do clientelismo, da tutela assistencialista e da descontinuidade que,
geralmente, norteiam as polticas pblicas de cultura no Pas (RUBIM, 2007).
A Constituio Federal, no seu art. 227, no Captulo V - DA FAMLIA, DA
CRIANA, DO ADOLESCENTE E DO IDOSO, ao tratar do dever da famlia, da sociedade e
do Estado de assegurar criana e ao adolescente direitos bsicos ao seu desenvolvimento
integral como pessoa, elenca entre esses direitos o direito cultura. Este mesmo dispositivo
constitucional encontra-se consagrado no Estatuto da Criana e do Adolescente (Lei n.
8.060/90). O Estatuto do Idoso prev, em seus arts. 20 e 23, o exerccio dos direitos
culturais a esse segmento da populao (Lei n. 10.741, de 2003). Mais recentemente, a
Emenda Constitucional n. 65/2010, ao modificar o art. 227, ampliou os direitos culturais ao
segmento jovem do Pas.
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O atual Plano Nacional de Cultura (PNC), estabelecido pela Lei n. 12.343, de 2010,
consagrou como um dos seus objetivos: proteger e promover o patrimnio histrico e
artstico, material e imaterial e promover o direito memria por meio dos museus,
arquivos e colees (art. 2, II e IV). Como se v, as leis que surgiram posteriores
Constituio de 1988 j incorporam aos seus dispositivos a necessidade de garantia
dos direitos culturais como dimenso importante do exerccio da cidadania, seja para
crianas, adolescentes, jovens ou idosos.
A Diversidade Cultural: nosso maior patrimnio Segundo a historiadora Lia Calabre, o tema da diversidade cultural ganhou a agenda
poltica internacional nos ltimos decnios:
Ocorre, hoje, em nvel mundial um processo de valorizao cada vez maior da cultura nas
sociedades em um mundo globalizado. Os processos culturais vm sendo considerados
importantes, seja como fontes e gerao de renda e emprego, seja como elementos
fundamentais na configurao do campo da diversidade cultural e da identidade nacional.
(CALABRE, 2005, p. 18-19)
O reconhecimento de que somos um pas de marcante diversidade cultural est
tambm consagrado no texto constitucional. Vejamos, pois, alguns artigos que tratam
da diversidade cultural como princpio constitucional e que apontam para a construo
de uma memria plural a ser levada em considerao quando da elaborao da poltica
de preservao de nosso patrimnio cultural:
1. A proteo do poder pblico em relao as diferentes etnias: O Poder Pblico, em
suas diferentes instncias e esferas (federal, estadual e municipal) tem a obrigao
constitucional de proteger, promover e valorizar os bens e valores culturais dos
diferentes segmentos tnicos que compem a sociedade brasileira: O Estado
proteger as manifestaes das culturas populares, indgenas e afro-brasileiras, e
das de outros grupos participantes do processo civilizatrio nacional. (Art. 215 1).
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2. A incorporao de datas no calendrio cvico-nacional: A instituio de datas cvicas
e efemrides histricas das diferentes matrizes tnicas so elementos fundamentais
para a construo de uma identidade nacional que se pretende plural, democrtica e
cidad: A lei dispor sobre a fixao de datas comemorativas de alta significao
para os diferentes segmentos tnicos nacionais. (art. 215 2)
3. O ensino de Histria do Brasil: No h no mundo pas que no promova o ensino da
Histria Ptria como instrumento de afirmao de sua identidade nacional e de
pertencimento dos seus cidados. Assim, o art. 242, 1 da CF, determina que O
ensino de Histria do Brasil levar em conta as contribuies das diferentes culturas
e etnias para a formao do povo brasileiro. Por conta da reivindicao do
movimento negro organizado, foi sancionada, no incio da gesto do primeiro
governo Lula (2003-2006), a Lei n. 10.639, de 2003, que altera a Lei n. 9.394, de 20
de dezembro de 1996 (LDB), que estabelece as diretrizes e bases da educao
nacional, para incluir no currculo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da
temtica Histria e Cultura Afro-Brasileira.
4. O segmento afro-brasileiro: Em relao especificamente ao segmento afro-
brasileiro, podemos citar a deciso do Poder Pblico em tombar todos os
documentos e os stios detentores de reminiscncias histricas dos antigos
quilombos, conforme estabelece o art. 216, 5. Com esse dispositivo
constitucional, o legislador abriu uma exceo e criou uma nova modalidade de
tombamento pela via legislativa, pois o tombamento, pela legislao que lhe
especfica (Decreto-Lei n. 25/37), ato administrativo do Poder Executivo que
declara o valor histrico-cultural de um determinado bem material. No art. 68 do Ato
das Disposies Constitucionais Transitrias, o legislador constituinte teve a
sensibilidade histrica de reconhecer a importncia dos quilombos e quilombolas na
formao de nossa identidade cultural ao estabelecer que: Aos remanescentes das
comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras reconhecida a
propriedade definitiva, devendo o Estado emitir os ttulos respectivos. A Lei n.
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12.288, de 2010, mais conhecida como Estatuto da Igualdade Racial, reforou o
princpio constitucional da diversidade cultural, ao remeter ao Poder Pblico a
garantia do reconhecimento das sociedades negras, clubes e outras formas de
manifestao coletiva da populao negra, com trajetria histrica comprovada,
como patrimnio histrico e cultural, nos termos dos arts. 215 e 216 da Constituio
Federal (art. 17). Importante tambm destacar que essa Lei instituiu, no seu art. 20,
o registro da Capoeira como bem imaterial integrante do Patrimnio Cultural
brasileiro e reconheceu o samba como importante manifestao artstica, devendo o
Poder Pblico incentivar a celebrao das personalidades e das datas
comemorativas relacionadas trajetria do samba e de outras manifestaes
culturais de matriz africana, bem como sua comemorao nas instituies de ensino
pblicas e privadas (art. 19).
5. As comunidades indgenas: Os ndios tambm tm seu lugar na atual Constituio
brasileira, atravs de captulo especfico, e a demonstrao por parte do legislador
da necessidade de se preservar essa cultura milenar: So reconhecidos aos ndios
sua organizao social, costumes. lnguas, crenas e tradies e os direitos
originrios sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo Unio
demarc-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens (art. 231, caput). s
comunidades indgenas remanescentes so-lhes assegurada a utilizao de suas
lnguas maternas e processos prprios de aprendizagem, conforme estatui o art.
210 2 da Constituio, reforado pelo art. 78 da LDB que estabelece, entre
outros, que a educao indgena ficar a cargo da Unio, em colaborao com as
agncias federais de fomento cultura e de assistncia aos ndios, devendo
desenvolver programas integrados de ensino e pesquisa, para oferta de educao
escolar bilingue e intercultural aos povos indgenas. Na promoo dessa modalidade
de educao, deve-se ter em mente que um de seus objetivos proporcionar aos
ndios, suas comunidades e povos, a recuperao de suas memrias histricas: a
reafirmao de suas identidades tnicas; a valorizao de suas lnguas e cincias
(art. 78, I da LDB).
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Assim, a anlise do texto constitucional permite-nos concluir que h uma tentativa de
construo de uma memria plural, que venha subsidiar uma nova poltica cultural para o Pas. A atual Constituio tenta, pois, corrigir uma omisso, ao estabelecer em
vrios dispositivos a importncia de outros elementos formadores do processo
civilizatrio nacional e que devem ter suas manifestaes culturais preservadas para as
atuais e futuras geraes de brasileiros.
No tocante aos bens culturais, nunca antes um texto constitucional brasileiro lhes
dedicou tanto espao e relevncia. Pela primeira vez surge a denominao Patrimnio Cultural, sua definio e caracterizao. Outra novidade a distino entre patrimnio cultural e natural, este ltimo sob a denominao ambiental. Embora sendo parte
constitutiva do Patrimnio Cultural do Pas, o meio ambiente passou a constar de
captulo especfico no texto constitucional (Captulo VI do Ttulo VIII - DA ORDEM
SOCIAL).
Patrimnio cultural brasileiro: uma nova concepo Quando se fala em Patrimnio Histrico a primeira imagem que nos vem mente,
consagrada no senso comum, aquela identificada com as cidades coloniais, os
monumentos, os edifcios antigos, as obras de arte e os stios arqueolgicos. Nas
ltimas dcadas do sculo XX ocorreu uma ampliao da noo de patrimnio histrico
para a de patrimnio cultural.
A perspectiva reducionista inicial, que reconhecia o patrimnio apenas no mbito histrico,
circunscrito a recortes cronolgicos arbitrrios e permeados por episdios militares e
personagens emblemticos, acabou sendo, aos poucos, suplantada por uma viso muito
mais abrangente. A definio de patrimnio passou a ser pautada pelos referenciais
culturais dos povos, pela percepo dos bens culturais nas dimenses testemunhais do
cotidiano e das realizaes intangveis (FUNARI & PELEGRINI, 2006, p. 31-32).
A Constituio Federal de 1988 acompanhou essa nova conceituao. No mbito do
Captulo III - DA EDUCAO, DA CULTURA E DO DESPORTO - emerge, com
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bastante intensidade, a questo referente preservao do Patrimnio Cultural. Um s
artigo especfico trata da conceituao, caracterizao e formas de preservao do
acervo histrico do Pas. No texto constitucional, no seu art. 216, usa-se a expresso
Patrimnio Cultural em substituio a Patrimnio Histrico e Artstico, que vinha
sendo usada desde a Carta de 1937. Assim, seguindo a moderna orientao adotada
pelas Cincias Sociais, o legislador constituinte ampliou a interpretao do que seja
Patrimnio Cultural que, pelo texto vigente, engloba
[...] os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto,
portadores de referncia identidade, ao, memria dos diferentes grupos
formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: as formas de expresso; os
modos de criar, fazer e viver; as criaes cientficas, artsticas e tecnolgicas; as obras,
objetos, documentos, edificaes e demais espaos destinados s manifestaes artstico-
culturais; e os conjuntos urbanos e stios de valor histrico, paisagstico, artstico,
arqueolgico, paleontolgico, ecolgico e cientfico. (art. 216).
Como podemos constatar, o legislador constitucional aceitou integralmente a moderna
conceituao de Patrimnio Cultural, deixando de lado as expresses at ento
consagradas nos textos constitucionais anteriores, tais como: patrimnio histrico,
artstico, arquitetnico, arqueolgico e paisagstico. Adota-se, portanto, uma noo
mais abrangente de Patrimnio Cultural e se rompe com a viso elitista de considerar
apenas objeto de preservao cultural as manifestaes da classe historicamente
dominante ao incorporar os diferentes grupos tnicos que contriburam para a formao
da sociedade brasileira.
O novo conceito de Patrimnio Cultural vem ao encontro do anseio do escritor paulista
Mrio de Andrade, um dos intelectuais mais atuantes do Movimento Modernista de 1922
e que, no seu anteprojeto, j delineava essa concepo abrangente de Patrimnio
Histrico. Posteriormente, Alosio Magalhes, frente da extinta Fundao Nacional
Pr-Memria, tentou retomar essa concepo que agora j praticada pelo atual
Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (IPHAN).
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Um dos impactos advindos dessa ampliao do conceito de Patrimnio Cultural foi a
necessidade de se criar um novo instrumento de preservao aos bens culturais de
ordem imaterial ou intangvel. A Constituio de 1988 recepcionou, em sua
integralidade, o Decreto-Lei n. 25/37, que criou a figura jurdica do tombamento para a
preservao dos bens culturais materiais. No entanto, havia, pois, a urgncia de um
mecanismo vivel que tutelasse os bens imateriais, muito mais susceptveis ao
desaparecimento, frente onda avassaladora da homogeneizao cultural decorrente
do processo de globalizao.
Assim, aps doze anos, o governo federal, mediante anlises e estudos com tcnicos e
especialistas, editou o Decreto n. 3.551, de 2000, que "institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimnio cultural brasileiro, cria o
Programa do Patrimnio Imaterial e d outras providncias".
Outra caracterstica constitucional relativa questo do Patrimnio Histrico brasileiro
o reconhecimento por parte do Estado da necessidade de se preservar a documentao
pblica. o que estabelece o art. 216, 2: Cabem administrao pblica, na forma
da lei, a gesto da documentao governamental e as providncias para franquear sua
consulta a quantos dela necessitem.
Por esse artigo, constata-se que os documentos so tambm parte integrante do
Patrimnio Cultural brasileiro, necessitando, portanto, de proteo jurdica. No que
concerne gesto da documentao produzida pela Administrao Pblica, o legislador
constituinte remeteu legislao complementar a regulamentao deste dispositivo
constitucional, o que j foi feito atravs da Lei n. 8.159, de 8 de janeiro de 1991, que
dispe sobre a poltica nacional de arquivos pblicos e privados e d outras
providncias. Assim, ao lado das bibliotecas e museus, os arquivos so importantes
suportes da memria, sem os quais fica quase impossvel o acesso s fontes de nosso
passado, uma vez que sem documentos no h histria possvel.
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Anteriormente promulgao de nossa atual Constituio, a prtica da preservao do
Patrimnio Histrico em nosso Pas era algo restrito aos profissionais da rea
(arquitetos, historiadores, juristas, antroplogos e demais cientistas sociais), que
lidavam com a questo da memria no seu mtier e oficio ou, quando muito, dizia
respeito tutela oficial dos rgos de preservao. Com a atual Constituio e a prxis
poltica dos movimentos sociais, novos atores e sujeitos histricos passaram a se
interessar pela preservao do Patrimnio Histrico e pelo acesso aos bens culturais.
A prpria Constituio Federal reconheceu, em seu artigo 216, 1 a importncia desse
fato e da necessidade de novos atores na luta pela preservao do Patrimnio Cultural:
O Poder Pblico, com a colaborao da comunidade, promover e proteger o
patrimnio cultural brasileiro,... (grifos do autor). O Estado no se exime da tarefa de
preservao de nosso acervo cultural, mas d comunidade o papel de colaboradora e
co-responsvel nessa tarefa. Como dizia Alosio Magalhes, a comunidade a melhor
guardi de seu patrimnio cultural! Assim, no cessam de surgir novos atores, quer no
mbito do prprio Estado, quer no mbito da sociedade civil organizada e da iniciativa
privada, que dividem aes, metas e projetos de recuperao e revitalizao do
Patrimnio Histrico.
No mbito do Poder Pblico, alm do IPHAN e do IBRAM (Instituto Brasileiro de
Museus), ambos ligados ao Ministrio da Cultura, nota-se uma crescente participao
de outras instncias governamentais, seja na esfera do Poder Judicirio, produzindo,
atravs de suas decises, jurisprudncia sobre o assunto, seja na alada do Legislativo,
com a elaborao de normas jurdicas e a atuao em comisses temticas especficas
(Comisso de Educao e Cultura e Comisso de Direitos Humanos e Minorias) ou
Comisses Parlamentares de Inqurito (CPI). de se ressaltar, tambm, a atuao do
Ministrio Pblico da Unio, dos Estados e do Distrito Federal na defesa do Meio
Ambiente e do Patrimnio Cultural.
Alm dos aspectos e caractersticas constitucionais anteriormente explicitados, a
Constituio Federal trata de outra questo que vale ser mencionada. Estamos nos
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referindo ao dispositivo legal que trata da multiplicidade de instrumentos disponveis que
podem ser usados para a preservao dos bens culturais, expresso no art. 216 1: O
Poder Pblico, com a colaborao da comunidade, promover e proteger o patrimnio
cultural brasileiro, por meio de inventrios, registros, vigilncia tombamento e
desapropriao, e de outras formas de acautelamento e preservao (grifos do autor).
Dispomos, hoje, de dois outros instrumentos de ordem processual, tambm previstos
constitucionalmente, que podem ser acionados pelo cidado e por instncias do
governo e da sociedade civil na defesa do patrimnio cultural brasileiro. Trata-se da
ao popular e da ao civil pblica, previstos, respectivamente, nos arts. 5, inciso LXXIII e 129, inciso III da Constituio Federal.
Consideraes Finais Em que pese a atuao mpar do IPHAN, desde a sua criao na dcada de 1930,
impedindo a destruio de importantes stios, cidades e monumentos histricos
identificados com o barroco colonial, no podemos deixar de registrar que essa poltica
preservacionista trouxe algumas consequncias para a vida poltica cultural brasileira.
Na verdade, a poltica de patrimnio, ao privilegiar o instrumento jurdico do
tombamento em sua ao preservacionista, consagrou uma memria nacional vinculada
apenas a determinados segmentos da sociedade e a um estilo arquitetnico
predominante, no caso, o barroco. Por fora da legislao ainda vigente (Decreto-Lei n.
25/37), o conceito de Patrimnio Histrico esteve restrito ao "conjunto de bens mveis e
imveis existentes no pas e cuja conservao seja de interesse pblico, quer por sua
vinculao a fatos memorveis da Histria do Brasil, quer por seu excepcional valor
arqueolgico ou etnogrfico, bibliogrfico ou artstico" (grifos do autor). Os conceitos de
monumentalidade do bem e de excepcionalidade de seu valor nortearam, na prtica, a
poltica de preservao do Patrimnio Histrico no Pas e em diversos Estados e
Municpios da federao brasileira, por fora da estrutura de poder centralizador,
imposto pelo Estado Novo (1937-1945). Priorizou-se, assim, o patrimnio edificado e
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arquitetnico, a chamada "pedra e cal", em detrimento de outros bens culturais
significativos, mas que, por no serem representativos de uma determinada poca ou
ligados a algum fato histrico notvel ou pertencentes a um estilo arquitetnico
relevante, deixaram de ser preservados e foram relegados ao esquecimento e at
destrudos por no terem, no contexto dessa concepo histrica, valor que justificasse
a sua preservao.
O mais srio que essa poltica de Patrimnio Histrico levada a cabo pelo ento
SPHAN, desde a sua criao em 1937 at o final dos anos 60, deixou um saldo de bens
tombados, sobretudo imveis, referentes aos setores dominantes da sociedade
brasileira. Houve uma poltica de patrimnio que preservou a casa-grande, as igrejas
barrocas, os fortes militares, as casas de cmara e cadeia como as referncias para a
construo de nossa identidade histrica e cultural e que relegou ao esquecimento as
senzalas, as favelas e os bairros operrios (FERNANDES, 1993, p. 275).
Essa poltica de preservao que norteou a prtica do SPHAN objetivava passar a ideia
de uma memria mtica, de um passado homogneo e uma Histria sem conflitos e
contradies sociais. A concepo predominante era a de se construir um passado
unvoco, forjar uma memria nacional nica para o Pas, excluindo as diferenas e a
riqueza de nossa pluralidade cultural, evidenciada atravs de outras matrizes tnicas
que contriburam na formao do nacional.
Em sntese, podemos afirmar que, no Brasil, a preservao do Patrimnio Histrico
nasceu sob a gide estatal, ou seja, em ltima instncia, foi quase sempre o Poder
Pblico quem determinou o que deveria ou no ser preservado, o que deveria ser
lembrado ou esquecido. Construiu-se uma memria nacional oficial, excludente e
celebrativa dos feitos dos heris nacionais. Privilegiou-se o barroco como cone da
identidade nacional e excluram-se outros estilos estticos, como o neoclssico, o art-
nouveau, o neocolonial e o ecletismo. Elegeram-se determinados bens como
representativos da memria nacional em detrimento de outros, que pudessem mostrar
a cara multifacetada e pluritnica deste pas Brasil.
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Com a emergncia de um novo ordenamento constitucional, a partir da promulgao da
Carta Magna de 1988, houve mudanas substanciais na legislao referente
preservao do Patrimnio Cultural (art. 216 e respectivos incisos e pargrafos).
Ampliou-se o conceito de Patrimnio Cultural, incluiu-se a perspectiva de se construir
uma memria plural, a partir da contribuio das diferentes matrizes tnicas que
formaram a nao brasileira, criaram-se outros mecanismos de preservao do
patrimnio, alm do tombamento e conferiu-se sociedade o poder de colaborar na
gesto da poltica patrimonial dos diferentes entes federativos.
No podemos deixar de salientar o papel que tiveram os diferentes movimentos da
sociedade civil brasileira que, na luta pelos direitos de cidadania, reivindicam para si
direito memria e identidade, consubstanciado no acesso aos bens culturais de seu
passado histrico comum. Exemplo marcante tem sido o movimento afro-brasileiro que
luta pela construo e reconhecimento de uma histria do Pas que contemple a
participao do negro. Diversas instituies como sindicatos, organizaes no-
governamentais (ONGs), associaes de classe e empresas criam seus prprios
arquivos, museus, centros de documentao, ncleos de histria oral e memoriais, cujo
objetivo nada mais do que a preservao de bens culturais e o acesso da populao
sua histria.
Por outro lado, a preservao do Patrimnio Cultural, devido ao seu carter
multidisciplinar, deixou de ser encarado como algo restrito ao discurso competente de
tcnicos e especialistas do setor governamental. Hoje, o tema da preservao ganhou
espao tambm na mdia e na agenda poltica dos governos municipais e estaduais e
da sociedade como um todo. Ocorreu uma municipalizao da poltica patrimonial.
Muitos municpios passaram a criar seus rgos e conselhos municipais de
preservao, alm de incluir em suas leis orgnicas e respectivos planos diretores
dispositivos sobre a questo.
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Hoje, respaldados pelo novo ordenamento constitucional, preservar o Patrimnio
Cultural uma questo de cidadania: todos temos o direito memria, mas tambm o
dever de zelar pelos bens culturais para as atuais e futuras geraes de brasileiros.
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LEI n. 8.159, de 1991, que dispe sobre a poltica nacional de arquivos pblicos e privados
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LEI n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece diretrizes e bases da educao
nacional.
LEI n. 10.741, de 2003, que dispe sobre o Estatuto do Idoso e d outras providncias.
LEI n. 10.639, de 2003, que altera a Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que
estabelece diretrizes e bases da educao nacional, para incluir no currculo oficial da rede
de ensino a obrigatoriedade da temtica Histria e Cultura Afro-Brasileira, e d outras
providncias.
LEI n. 11.904, de 2009, que institui o Estatuto dos Museus e d outras providncias.
LEI n. 11.906, de 2009, que cria o Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM)....
LEI n. 12.288, de 2010, que institui o Estatuto da Igualdade Racial;.....
LEI n. 12.343, de 2010, que institui o Plano Nacional de Cultura - PNC, cria o Sistema
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O direito memria: anlise dos princpios constitucionais da poltica de patrimnio cultural no Brasil (1988-2010)A Cidadania Cultural e o Direto MemriaA Diversidade Cultural: nosso maior patrimnioPatrimnio cultural brasileiro: uma nova concepoConsideraes FinaisReferncias bibliogrficas