Fernando Florencio - Ao Encontro Dos Mambos Autoridades Tradicionais VaNdau e Estado Em Mocambique

Embed Size (px)

Citation preview

  • 1

    Fernando Florncio, Ao Encontro dos Mambos. Autoridades Tradicionais VaNdau e Estado em Moambique1

    Cumpre-me realizar aqui uma necessariamente breve apresentao da obra do Prof. Fernando Florncio, Ao Encontro dos Mambos. Autoridades Tradicionais VaNdau e Estado em Moambique, a cuja consiste numa verso da sua dissertao de doutoramento em Estudos Africanos, realizada no ISCTE, Lisboa, em 2003, ento intitulada As Autoridades Tradicionais VaNdau. Estado e Poltica Local em Moambique. Quero ainda registar que este trabalho de certa forma culmina uma reflexo encetada aquando da sua tese de mestrado Processos de Transformao Social no Universo Rural Moambicano Ps-Colonial. O Caso do Distrito do Buzi (1994), realizada na mesma instituio universitria. Estamos diante de um trabalho que reclama, explicitamente, a sua insero na vasta produo de estudos sobre o poder tradicional em frica, encetada nos incios da dcada de 90. A cuja, quero referir, contempornea das polticas generalizadas de recuperao destas modalidades de administrao estatal, algo inscrito nos processos de democratizao em frica, ocorridos desde esse perodo, por presses endgenas e exgenas. Sublinho, paralelamente, esta situao de produo cientfica pois muito me parece necessrio referir que muitas vezes em Moambique se esquece o carcter geral desta problemtica do chamado poder tradicional, e a sua insero em dimenses de relaes internacionais, em detrimento de aparncia de alguma especificidade moambicana desta questo, algo se me assemelha de contornos at culturalistas na abordagem desta questo.

    1 Apresentao do livro nos seminrios do Departamento de Arqueologia e Antropologia, Universidade Eduardo Mondlane, Outubro de 2006.

  • 2

    Neste mbito Florncio realizou uma pesquisa de terreno entre 2000 e 2001, nos distritos de Sussundenga, Mossurize, Machaze, Buzi, optando pois por uma abordagem multi-situada. At por isso estamos face a um objectivo que no se prende primordialmente a uma produo de conhecimentos etnogrficos extensos sobre estas estruturas de poder local/tradicional. Mas sim enquadrar essas estruturas com aquilo que designa como as realidades sociolgicas envolventes: as populaes locais e o Estado e outros actores polticos incidentes. Ou seja, perscrutar o lugar e papel das autoridades tradicionais (conceito problemtico cuja utilizao justifica por sua adequao emprica aos discursos locais e por filiao terica, sublinhando a dimenso processual e recriadora do tradicional, na senda hoje cannica da abordagem de Hobsbawn e Ranger (1983)), Perscrutar, dizia, o lugar o papel e o lugar das autoridades tradicionais no modelo de reproduo social local (dito, problematicamente?, Ndau) e o seu papel na articulao como outros actores polticos surgido nos contextos locais, muito em especial o Estado, considerado o maior constrangedor/transformador desse modelo social. Ou seja, o enfoque da obra recai sobre o perfil assumido pelas autoridades tradicionais enquanto intermedirios (charneira) entre o universo social campons e o Estado Nacional, nessa dimenso intermediria encontrando um dos vectores fundamentais da legitimidade poltica da instituio autoridade tradicional. Esta legitimidade decorre ento de se afirmar a instituio como um elo articulando modernidade e tradio - um aparente dualismo que esbate teoricamente recorrendo ao casal Comaroff, com a sua concepo de que a prpria modernidade nada mais do que uma construo imaginria do presente em termos de um passado mtico (uma modernidade como tradio reinventada, poderemos perguntar?). E tambm vendo-a como elo unindo contexto nacional (estatal) e particularismos identitrios (de natureza tnica, local ou outras). Em suma, a legitimidade das instituies polticas locais, ditas tradicionais, decorre dessa caracterstica ligadora, intermediria. Nesse sentido encontra esse perfil de poder poltico como hbrido, exactamente pela articulao antagonista entre modernidade poltica, social e econmica e a perpetuao (Camponesa) de valores sociais tradicionais. Esta primeira vertente da abordagem, a que explica a dimenso exgena da legitimao poltica das autoridades tradicionais, inclusas nos processos de formao do Estado. A outra vertente da abordagem exactamente a de tentar entender o porqu de serem estas autoridades tradicionais os actores mais relevantes, dentro do modelo social tradicional, para desempenharem esta tarefa de intermediao e articulao. O que levanta as questes da legitimidade interna e representatividade e das representaes das instituies. Ou seja, entender a sua legitimidade interna face s transformaes e manipulaes sofridas pelas instituies polticas locais durante o perodo colonial e o nacional (esse que muitos insistem em denominar ps-colonial, modalidade semntica da denegao histrica e de absolutizao histrica do termo nacional, uma deriva hegeliano-evolucionista muito em voga no pensamento de fachada relativista). Como constatao inicial assume-se a legitimidade institucional da instituio (passe a aparente redundncia), afirmada como palco de conflitos sobre a legitimidade dos indivduos que as assumem, os cujos so assumidos pela populao atravs de manipulaes endgenas e exgenas na atribuio de cargos, ou seja presumindo uma legitimidade primeva, palco sobre o qual decorrem conflitos sobre a assumpo de cargos.

  • 3

    A legitimidade primeva recai sobre um colectivo de indivduos, possuidores ou no de cargos (identificados como lderes, rgulos ou chefes de povoao) e sobre os quais decorre o suporte de uma legitimidade assente numa associao de relaes de consanguinidade, territorialidade, antiguidade geracional e alianas vrias. Um outro ponto que se salienta na legitimao das autoridades tradicionais, para alm da dimenso poltico-administrativa dupla (face ao Estado e face ao modelo de reproduo social tradicional) a sua dimenso simblica, determinante no seio das populaes para a legitimao das instituies e dos indivduos que as assumem. Assim se afirma a sacralizao das instituies tradicionais, fundamentalmente face s relaes com os espritos dos antepassados, em particular dos anteriores chefes, uma legitimao cosmolgica que confere s autoridades tradicionais uma papel de charneira entre passado e presente, assim a garantia de continuidade reprodutiva das populaes e do modelo de reproduo social. Eles so os guardies das tradies e donos da terra, representando os primevos antepassados ndau. Nesse sentido h a hiptese de que a legitimidade e o lugar social das autoridades tradicionais VaNdau derivam do seu papel de dupla intermediao entre sagrado e profano e entre um modelo de reproduo social local e um exgeno (este veiculado pelo Estado e demais parceiros). O trabalho em causa opta por uma abordagem histrica ancorando a anlise dos processos de reproduo social actuais e suas ligaes com os agentes considerados exgenos, nos processos de transformao e mudana social ndau ocorridos, desde o que denomina os tempos pr-nguni, que remete para os contextos de origem Shona-Caranga, at aos tempos correntes, nele reconhecendo uma hierarquizao pr-nguni, um reino segmentar (desenvolvendo o conceito de estado segmentar de Aidan Southal) e posteriores rearranjos coloniais e at pr-coloniais (ditos at colonialismo interno nguni) Aps a contabilizao das influncias Nguni e portuguesas na estrutura poltica tradicional em contexto lingustico ndau, surge a perspectiva sobre os fenmenos actuais. Nesse sentido aborda-se a poltica do estado nacional, no seu perodo inicial, centrado no abandono da incluso destas estruturas polticas no contexto administrativo central e na deslocao de populaes. E, num momento imediatamente subsequente, o impacto do conflito entre Renamo e Frelimo, assente naquela zona desde os finais de 70s. Interessante, at pela periodizao do trabalho realizado, a apreenso de que nos contextos locais (aquilo que Florncio afirma ser o Estado distrital enquanto arena poltica local), logo aps o Acordo Geral de Paz (1992) se instalou uma competio entre os dois grandes candidatos ao controlo do estado pela influncia junto das autoridades tradicionais. E que isso teve resultados ambivalentes, ou seja, impedindo que haja uma leitura homognea da constituio de relaes de fidelizao e incluso estado e autoridades tradicionais. Estas, mesmo nesse contexto temporal e lingustico, se mostravam disponveis para articulao com a Frelimo processo que se tem vindo a desenvolver, como sabemos, nos ltimos anos. Algo que matiza as leituras excessivamente marcadas pelo conflito/guerra civil, e tambm as abordagens culturalistas ao fenmeno. Para mais esta perspectiva sublinha aquilo que Florncio identifica: a fragmentao e a complexidade sociolgica da organizao das autoridades tradicionais, algo proveniente das mudanas e manipulaes ao longo do processo histrico e, em particular, no contexto colonial e nacional.

  • 4

    Finalmente procura identificar pontos de estrangulamento do exerccio do papel das Autoridades Tradicionais (hoje em dia consignadas e legisladas como autoridades comunitrias), em particular relativas ao exerccio da violncia, e da conflitualidade com as anteriores estruturas locais de ndole nacional (presidentes de aldeia, grupos dinamizadores). No fundo. Florncio reconhece que os processos histricos implicaram, apesar da sua heterogeneidade a nvel local, uma reduo da autonomia poltica das Autoridades Tradicionais, a sua maior dependncia face administrao a nvel local e, portanto, a quebra da sua legitimao face s populaes. Esta ltima ancora, e a minha leitura, como corolrio problemtico, na antiguidade das Autoridades Tradicionais e no seu papel mgico-religioso, uma aparente cristalizao culturalista aparente que apela a constantes releituras.