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GEAEL – Escola de Aprendizes do Evangelho - Aliança Espírita Evangélica 1 Grupo Espírita Aprendizes do Evangelho de Limeira Conhecendo a Doutrina Espírita – 14 Estudos doutrinários do GEAEL GEAEL O movimento espírita Não ouvis já se agitar a tempestade que deve dominar o velho mundo e tragar do nada a soma das ini- qüidades terrestres? Ah! Bendizei o Senhor, vós que haveis posto vossa fé em sua soberana justiça e como os novos apóstolos da crença revelada pelas vozes proféticas superiores, ide pregar o dogma novo da reencar- nação e da elevação dos espíritos, segundo tenham bem ou mal cum- prido suas missões, e suportado suas provas terrestres (...) Erasto, discípulo de São Paulo e anjo guardião do médium, Paris, 1863 – O Evangelho Segundo o Espiritismo. A diferença entre espiritismo e movi- mento espírita surgiu a partir do momen- to em que Allan Kardec e os espíritos superiores definiram e estabeleceram as suas respectivas funções de trabalho. Aos espíritos caberia a construção doutriná- ria e, ao codificador e seus seguidores, a sua formatação e comunicação, através da organização temática, da expressão literária e das suas diversas manifestações sociais. É claro que não haveria uma separação rígida de funções, pois tudo foi feito em conjunto; afinal, Kardec, que era também um membro ativo e opinante do corpo de ideólogos, comandado pelo Espírito de Verdade, provavelmente, já havia planifica- do, anteriormente à sua encarnação, muitos dos trabalhos que materializou mais tarde. Hoje sabemos que também os médiuns, os colaboradores e até mesmo os editores que lhe serviram de apoio foram previamente escolhidos para a tare- fa. A srta. Caroline Baudin, de apenas dezesseis anos, sua irmã Julie Baudin, de catorze, e também as mocinhas Ruth Celine Japhet e Ermance Dufaux, não possuíam nenhuma formação filosófica convencional; eram espíritos em tarefa missionária que trabalhavam, anonimamente, dóceis e inconscientes, ope- rando as cestinhas que “escreviam” sobre as folhas. Sabendo das implicações sociais do exercício da mediunidade numa sociedade ainda marcada pelos preconceitos e superstições, o professor Rivail, além de usar o pseudônimo Allan Kardec, também omitiu nas suas obras os nomes das médiuns que possibilitaram a publicação das mesmas. Com isso ele evitava as perseguições que estavam acontecendo no mundo inteiro, sobretudo na América, com as irmãs Fox. Antes de vir para a França, 1 a família Baudin, residindo nas ilhas Reunião, no Índico, teve sérios problemas com a comunidade onde viviam por causa do surgimento dos fenô- menos. O modismo das mesas-girantes já tinha chegado nas colônias. Na casa dos Baudin não poderia ser diferente. Em abril de 1853 Caroline foi correndo avisar o pai que na “mesa rotante” com a qual brincavam havia um espírito querendo enviar-lhe um recado urgente sobre o navio Bois-Rouge. Era o capitão Régnier, dando a notícia que a embarcação sob seu comando havia naufragado há dez dias nos recifes de Simon’s Bay. O capitão e a tripulação haviam morrido no acidente e este veio pedir preces para os marujos. Charles Baudin des- confiou da notícia, preferindo aguardar a confirmação, mas não recusou o pedido de ajuda do espírito. O capitão disse que a notícia oficial do desastre só viria quatro meses após aquela conversa. O fato e os boatos se espalharam por toda a ilha, através dos criados, tomando rumos imprevistos pela família, porém já conhecidos dos espíritos que os acompanhavam. A notícia foi confirmada exatamente como o espírito havia dito. Mas a repercussão na pequena comunidade não teve a mesma reação de entusiasmo que teve entre os Baudin. Charles chegou a ser acusado de tramar o naufrágio com o capitão para rece- ber um lucrativo seguro do navio. O pároco da ilha logo espa- 1 O Livro dos Espíritos e sua tradição histórica e lendária. Canuto Abreu. Edições LFU. São Paulo.

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GEAEL – Escola de Aprendizes do Evangelho - Aliança Espírita Evangélica 1

Grupo Espírita Aprendizes do Evangelho de LimeiraConhecendo a Doutrina Espírita – 14

Estudos doutrinários do GEAELGEAEL

• O movimento espíritaNão ouvis já se agitar a tempestade que deve dominar o velho mundo e tragar do nada a soma das ini-qüidades terrestres? Ah! Bendizei o Senhor, vós que haveis posto vossa fé em sua soberana justiça e como os novos apóstolos da crença revelada pelas vozes proféticas superiores, ide pregar o dogma novo da reencar-nação e da elevação dos espíritos, segundo tenham bem ou mal cum-prido suas missões, e suportado suas provas terrestres (...)Erasto, discípulo de São Paulo e anjo guardião do médium, Paris, 1863 – O Evangelho Segundo o Espiritismo.

A diferença entre espiritismo e movi-mento espírita surgiu a partir do momen-to em que Allan Kardec e os espíritos superiores definiram e estabeleceram as suas respectivas funções de trabalho. Aos espíritos caberia a construção doutriná-ria e, ao codificador e seus seguidores, a sua formatação e comunicação, através da organização temática, da expressão literária e das suas diversas manifestações sociais. É claro que não haveria uma separação rígida de funções, pois tudo foi feito em conjunto; afinal, Kardec, que era também um membro ativo e opinante do corpo de ideólogos, comandado pelo Espírito de Verdade, provavelmente, já havia planifica-do, anteriormente à sua encarnação, muitos dos trabalhos que materializou mais tarde. Hoje sabemos que também os médiuns, os colaboradores e até mesmo os editores que lhe serviram de apoio foram previamente escolhidos para a tare-fa. A srta. Caroline Baudin, de apenas dezesseis anos, sua irmã Julie Baudin, de catorze, e também as mocinhas Ruth Celine Japhet e Ermance Dufaux, não possuíam nenhuma formação filosófica convencional; eram espíritos em tarefa missionária que trabalhavam, anonimamente, dóceis e inconscientes, ope-rando as cestinhas que “escreviam” sobre as folhas. Sabendo das implicações sociais do exercício da mediunidade numa sociedade ainda marcada pelos preconceitos e superstições, o professor Rivail, além de usar o pseudônimo Allan Kardec, também omitiu nas suas obras os nomes das médiuns que possibilitaram a publicação das mesmas. Com isso ele evitava as perseguições que estavam acontecendo no mundo inteiro, sobretudo na América, com as irmãs Fox.

Antes de vir para a França,1 a família Baudin, residindo nas ilhas Reunião, no Índico, teve sérios problemas com a comunidade onde viviam por causa do surgimento dos fenô-menos. O modismo das mesas-girantes já tinha chegado nas colônias. Na casa dos Baudin não poderia ser diferente. Em abril de 1853 Caroline foi correndo avisar o pai que na “mesa rotante” com a qual brincavam havia um espírito querendo enviar-lhe um recado urgente sobre o navio Bois-Rouge. Era o capitão Régnier, dando a notícia que a embarcação sob seu comando havia naufragado há dez dias nos recifes de Simon’s Bay. O capitão e a tripulação haviam morrido no acidente e este veio pedir preces para os marujos. Charles Baudin des-confiou da notícia, preferindo aguardar a confirmação, mas não recusou o pedido de ajuda do espírito. O capitão disse que a notícia oficial do desastre só viria quatro meses após aquela conversa. O fato e os boatos se espalharam por toda a ilha, através dos criados, tomando rumos imprevistos pela família, porém já conhecidos dos espíritos que os acompanhavam. A notícia foi confirmada exatamente como o espírito havia dito. Mas a repercussão na pequena comunidade não teve a mesma reação de entusiasmo que teve entre os Baudin. Charles chegou a ser acusado de tramar o naufrágio com o capitão para rece-ber um lucrativo seguro do navio. O pároco da ilha logo espa-

1 O Livro dos Espíritos e sua tradição histórica e lendária. Canuto Abreu. Edições LFU. São Paulo.

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2 Conhecendo a Doutrina Espírita

lhou sua teoria sobre a influência do demô-nio. Os empregados da fazenda, ex-escravos a f r i canos, iniciaram a prática de rituais para afastar as almas dos marinheiros que que-riam vin-gança. A professora das meni-nas pediu d e m i s s ã o dizendo aos quatro ven-

tos que trabalhava com uma família de bruxos. A confusão armada pelos espíritos atingiu em cheio a tranquilidade dos Baudin. Mas a solução também partiu deles: tempos depois manifesta-se, então, um novo espírito-guia dizendo-lhes que, em breve, eles iriam para Paris, ajustando-se novos negó-cios, novos estudos, novas amizades, os noivados de Julie e Caroline e, principalmente, o reencontro de todos com um velho amigo e chefe, desde os tempos dos druídas. O guia era Zéphyr, cujo nome tinha sido dado pela senhora Clémentine Baudin e aludia ao vento que sopra continuamente naquelas terras longínquas, remanescentes do lendário continente da Lemúria. Profetizando os acontecimentos futuros, o espírito--guia já havia sentenciado: “Chamam-me pelo que sou: o Zéfiro da Verdade. Anuncio a próxima descida dos eflúvios celestes que a Verdade irradiará pelo mundo”.

O comandante do navio que levou a família Baudin, velho amigo de Charles, era parente de madame Plainemaison. Já em Paris, algum tempo depois, Caroline e Júlie, operando sua “mesa rotante”, distraíam-se cantarolando a Marselhesa, enquanto aguardavam a manifestação de Zéphyr. O espírito surgiu batendo sobre a mesa, no mesmo ritmo do famoso hino revolucionário, escrevendo logo depois: “Nosso dia de glória já chegou. Vamos ter, finalmente, o convívio de nosso velho chefe drúida. Sim, ele mesmo em pessoa! Caroline vai atraí-lo”. A pedido dos familiares “Zéphyr” soletrou, em síla-bas, um nome até então estranho e desconhecido: “AL-LAN-KAR-DEC”. Ninguém imaginava que, dias depois, ao con-vidarem o prof. Rivail para uma visita familiar, os Baudin estavam na verdade atraindo o velho chefe drúida.

Comparando a missão das meninas francesas com a tare-fa das meninas Fox, na América do Norte, percebemos que as

primeiras foram protegidas, naturalmente, pela sua formação e características morais, encerrando discretamente suas ati-vidades, juntamente com a missão de Kardec. As irmãs Fox, embora tivessem exercido um papel importante no advento histórico dos fenômenos, não eram missionárias. Elas foram escolhidas porque possuíam mediunidade de prova2 e foram protegidas até certo ponto, mas, sendo pressionadas social-mente, foram sendo seduzidas pelo aspecto exterior desses fenômenos. Kate e Margareth sofreram todos os tipos de humilhações para negarem suas experiências. Os inúme-ros fracassos na vida pessoal levaram-nas ao alcoolismo. Margareth chegou a declarar em 1888 ao jornal New York Herald3 que fraudava os fenômenos. Mais tarde reconheceu que não havia suportado as dificuldades financeiras e que, pela sua própria instabilidade emocional, deixou-se conven-cer por pessoas interessadas em “esmagar o espiritismo” de que estava sob a influência do demônio. A irmã mais velha, Leah Fox Fish, foi acusada de desviar as irmãs na tentativa de enriquecimento ilícito. No final da vida Kate e Margareth morreram na miséria e talvez tenham sido enterradas como indigentes. Leah teve mais sorte ao ter se casado com um homem de posses. Inúmeros espíritos portadores de mediu-nidade de prova estavam reencarnados naqueles primeiros tempos do espiritismo, porém poucos, como sempre, desem-penharam suas funções com dignidade e discrição. Como bem demonstrou André Luiz, em Os Mensageiros, as exi-gências dos sentidos e do mundo exterior desencadeiam no médium em prova uma terrível lista de tentações que lhe ser-virão de tormento e ao mesmo tempo motivo de resistência e remoção de obstáculos pessoais. A revolta contra as provas; o problema da renda financeira; a interferência familiar através de pressões e chantagens; a sedução pelo sexo, poder e vícios; o medo, a desconfiança e a dúvida; a vaidade e a presunção, são apenas algumas das causas mais comuns dos fracassos dos médiuns de prova. Com raríssimas exceções, a maioria desses pioneiros se rendeu aos lucros fáceis do show busi-ness. Muitos, ao constatarem os limites das suas faculdades em algumas situações, apenas se faziam passar por médiuns. São exemplos reais de como a mediunidade deve ser tratada tanto no plano pessoal como na vida social.

Mas, na condição de encarnados, Allan Kardec e seus colaboradores não poderiam realizar funções que somente seria possível aos desencarnados, como também estes não poderiam fazê-lo, caso tentassem quebrar os limites da maté-2 Edgard Armond explica assim essa diferença entre mediunidade natural e de prova: “No primeiro caso, o espírito, já convenientemente evoluído, é senhor de uma sensibilidade apurada, que lhe permite vibrar normalmente em planos superiores, sendo a faculdade puramente espiritual. No segundo caso, foi forne-cida ao médium uma condição especial, não hereditária, que lhe permite servir de instrumento aos espíritos desencarnados para suas manifestações, bem como demonstrar outras modalidades da vida espiritual. Conquanto os efeitos sejam, nos dois casos, mais ou menos semelhantes, diferentes são, todavia, as causas e os valores qualitativos das faculdades.” Mediunidade, capítulo 5, página 37. Editora Aliança. 28ª ed. 1992.3 Esses fatos são narrados em detalhes por sir Arthur Conan Doyle em História do Espíritismo, páginas 105 a 109. Editora Pensamento. Ver também os artigos de Jáder dos Reis Sampaio – “As Irmãs Fox, Conan Doyle e o Espiritismo”, em O Reformador, Federação Espírita Brasileira, ano 119, nº 2071, outubro de 2001; e de Nazareno Tourinho – “O que vê o Quevedo”, em Jornal Espírita, Federação Espírita do Estado de São Paulo, ano XXVI, nº 313, setembro de 2001.

As irmãs Fox.

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ria densa. Os limites foram respeitados por ambas as partes, e o trabalho fluiu normalmente, sob a proteção das leis naturais que regem os fenômenos em questão. Em 1859, o Espírito de Verdade define o verdadeiro caráter do espiritismo e estabe-lece, novamente, os parâmetros desse relacionamento entre os espíritos e a humanidade. Nas primeiras palavras da mensa-gem está contida a essência do movimento, ou seja, o espírito da heresia em oposição determinada contra a ortodoxia. Ele propõe uma reflexão sobre o destino da doutrina no coração dos homens, na sociedade humana e a responsabilidade que estávamos adquirindo com a aceitação ou rejeição dos novos conhecimentos:

Outrora vos teriam crucificado, queimado, torturado. A força foi derrubada; a fogueira, extinta; os instrumentos de tortura, quebrados. A arma terrível do ridículo, tão poderosa contra a mentira, mover-se-á contra a verdade. Seus inimigos mais terríveis se fecharam num círculo intransponível. Com efei-to, negar a realidade de nossas manifestações seria negar a revelação, que é a base de todas a religiões; atribuí-las ao demônio, pretender que o espírito do mal venha vos confortar, vos desenvolver o Evangelho, exortar-vos ao bem, à prática de todas as virtudes, é simplesmente e felizmente provar que ele não existe. Todo reino dividido contra si mesmo perecerá. Restam os maus espíritos. Jamais uma árvore boa produzirá maus frutos; jamais uma árvore má produzirá bons frutos. Nada de melhor tendes a fazer do que lhes responder o que respondia o Cristo aos seus perseguidores, quando formula-ram contra ele as mesmas acusações, e como ele rogar a Deus que os perdoe, pois não sabem o que fazem.

Na mesma ocasião o espírito falou sobre a responsa-bilidade coletiva da França com relação a sua missão de renovação do planeta, deixando claro que não se tratava de uma fatalidade, mas uma oportunidade, cuja importância seria cobrada proporcionalmente aos benefícios da revelação. Tudo indica que o líder dos espíritos moralmente superiores já vislumbrava o futuro do movimento espírita na Europa e a possibilidade de transferi-lo para outros lugares:

A França leva o estandarte do progresso e deve guiar as outras nações; provam-no os acontecimentos passados e contemporâneos. Fostes escolhidos para serdes o espelho que deve receber e refletir a luz divina, que deve iluminar a Terra, até então mergulhada nas trevas da ignorância e da mentira. Mas se não estiverdes animados pelo amor do próximo e por um desinteresse sem limites; se o desejo de conhecer e propagar a verdade, cujas vias deveis abrir à pos-teridade não for o único móvel a guiar os vossos trabalhos; se a mais leve reserva mental de orgulho, de egoísmo e de interesse material achar lugar em vossos corações, não nos serviremos de vós, senão como o artista que provisoriamente emprega uma ferramenta defeituosa; viremos a vós até que tenhamos encontrado ou provocado um centro mais rico do que vós em virtudes, mais simpático à falange dos espíritos que Deus enviou para revelar a verdade aos homens de boa vontade. Pensai nisto seriamente. Descei aos vossos cora-ções, sondai-lhes os mais íntimos refolhos e expulsai com energia as más paixões que nos afastam, senão retirai-vos, antes de comprometerdes os trabalhos de vossos irmãos pela vossa presença, ou a de espíritos que traríeis convosco.

O movimento espírita surge, então, na sua origem mais autêntica, pela ação dos espíritos, nos episódios de Hydesville, posteriormente, nas mesas-girantes e espalha-se rapidamente pelo mundo inteiro. É transferido definitiva-mente para o plano material nas primeiras edições das obras da codificação, de cuja propaganda editorial dependeria o sucesso na difusão das ideias. Como objeto de consumo cul-tural, o livro era a grande expressão da mídia no século XIX, e a cultura literária era, como ainda tem se mantido até hoje, a principal fonte de produção, de comunicação e veiculação do conhecimento. Não bastava escrever coisas interessantes; era preciso conhecer e saber explorar os percursos que essas ideias poderiam fazer, através do livro e do seu mercado consumidor. Como exemplo, lembramos a primeira edição de A Origem das Espécies, de Charles Darwin. Publicada em 1859, teve uma tiragem de 1.500 exemplares, a qual foi totalmente esgotada apenas numa tarde. Já a primeira obra de Sigmund Freud não teve a mínima repercussão, durante o lançamento. Não era, apenas, uma questão de conteúdo; era, principalmente, um problema de contexto histórico e mercadológico. No caso de O Livro dos Espíritos Kardec fez um teste editorial para sondar a reação da opinião pública sobre os assuntos ali contidos: publicou uma edição em 18 de abril de 1857, contendo 501 perguntas e aguardou o feed--back. Tendo confirmado o grande interesse dos leitores e uma reação positiva dos formadores de opinião, Kardec lança em 18 de março de 1860 uma segunda edição, “inteiramente refundida e consideravelmente aumentada”, contendo 1019 questões. Kardec já havia alertado o público sobre a parcia-lidade da primeira edição, alegando falta de espaço gráfico e o surgimento de novos estudos que complementariam a obra em sua totalidade.

Nova História do EspiritismoDalmo Duque dos SantosEditora do ConhECimEnto

A sociedade parisiense no século 19.

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4 Conhecendo a Doutrina Espírita

PERGUNTA — Há alguma relação científica com as leis do Cosmo, no conceito evangélico que diz: “A cada um será dado segundo as suas obras”?

RAMATÍS — Assim como o Espírito cósmico de Deus é o regente absoluto de todas as atividades do Universo, revelando-se através de leis inteligentes e imutáveis, o homem é o microcosmo divino que evolui no comando das ações e reações das atividades educativas do mundo físico. Além da conceituação moral dos ensinamentos do Mestre Jesus, há, também, o fundamento derivado das próprias leis do Universo. Jesus não foi apenas um instrutor espiritual, soció-logo ou expositor de um “Código Moral”, mas, acima de tudo, um avançado espírito, que já tinha sintetizado num único

conceito os demais conceitos de filosofia, ciência e religião, num processo incomum no cenário do vosso orbe. Sob a vestimenta das parábolas evangélicas, transparecem nos seus ensinos os princípios científi-cos de bem viver, como base da libertação do espírito encarnado.

PERGUNTA — Assim, o conceito de “cada um colhe o que semeia” é, então, uma lei científica, mal-grado a sua expressão de ensino moral ou advertên-cia espiritual?

RAMATÍS — Sem dúvida o conceito de Jesus de “cada um colhe o que semeia”, em equivalência com outras máximas, “a cada um segundo as suas obras”, “quem com ferro fere, com ferro será ferido” ou, ainda, “pagarás até o último ceitil”, evidencia a presença de um princípio, legislativo de “causa” e “efeito”, que decorre da própria Lei única de “ação” e “reação” do Cosmo.

O conceito de que devemos “colher conforme a semeadura” demonstra a existência de leis discipli-nadoras e coordenadoras, que devem proporcionar o resultado efetivo conforme a natureza e intensidade de causa fundamental. Evidentemente, quem semeia “cactos”, jamais há de colher “morangos”, assim como quem movimenta uma causa funesta também há de suceder-lhe um resultado funesto. O efeito destrutivo de um projétil depende exatamente do tipo da inten-sidade da força que o impeliu. Todas as causas ocor-ridas no mundo material agrupam, atritam e movi-mentam elétrons, átomos e moléculas de substância física. Da mesma forma, quando o homem mobiliza e gasta combustível espesso, lodoso e quase físico do mundo astralino para vitalizar as suas atividades mentais inferiores, ele se torna o centro da eclosão de tais acontecimentos negativos e censuráveis, porque deve sofrer em si mesmo o efeito nocivo e danoso da carga patológica acionada imprudentemente. Mas se eleva o seu campo mental e emotivo vibratório à fre-quência mais sutil, a fim de utilizar energia superior para nutrir bons pensamentos e sentimentos, esse combustível sublimado, então, se metaboliza no peris-

pírito sem deixar-lhe resíduos enfermiços. Após o desencarne, o espírito densificado pelo fluido espesso é atraído pela sua compacticidade astrofísica e cai nas regiões astralinas purifi-cadoras, vitimado pela própria atuação danosa aos outros e sobretudo a si mesmo.

O homem movimenta forças em todos os planos de vida, desde a mais sutil vibração de onda do reino espiritual até atingir a compacticidade do mundo físico. Assim, o mínimo pensamento e a mais sutil emoção do espírito encarnado pela sua conexão ao corpo físico exigem o gasto energético propor-cional à intensidade e natureza das emissões mentais e ações emotivas, que repercutem plano por plano até atingir o campo

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da vida material. De um modo geral, este conceito tem o seu equivalente nas conhecidas leis de reflexão da luz, do som, cujo nome transcendental é a lei do retorno e bastante conhecida no processo cármico e atuação no ciclo das encarnações.

PERGUNTA — Poderíeis dar-nos algum exemplo mais concreto dessa mobilização científica de elétrons e átomos, de que o espírito se utiliza para manifestar uma virtude ou cometer um pecado?

RAMATÍS — Quando o artista pensa em pintar um quadro de rosas na sua mais bela florescência, essa concep-ção é real na sua mente, porque a tela florida em projeto só se delineia mentalmente, graças à rapidíssima aglutinação de elétrons e átomos específicos, para compor os polipeptídios básicos da memória do cérebro físico, com transformações energéticas para o espírito modelar o pensamento. O certo é que na mente física há modificações, com perda e ganho de energia, para sustentar e evoluir a idéia fundamental da futu-ra pintura física, que então será visível aos sentidos humanos. Em verdade, a tela reproduz tão-somente a “materialização” à luz do dia, daquilo que já existia vivo no campo mental do pintor. No mundo das ideias, tudo é real e possível num plano superior, graças ao eletromagnetismo dos átomos e das moléculas, que apesar de sua elasticidade e instabilidade, aglutinam-se nas substâncias mais variadas sob o comando do espírito, assim como se fixam as tintas na tela física.

Em consequência, é a manifestação ideal do espírito, superior e mais real do que a do corpo carnal, que é transi-tório, porquanto tudo o que é pensado registra-se no campo etérico do Universo por toda a eternidade. Considerando-se que a vida espiritual é a original e definitiva, obviamente, são mais definidos, vitais e positivos os planos intermediá-rios, que vinculam a entidade sideral à matéria no chamado “descenso vibratório”. Assim, o plano espiritual é o mais real e importante e, em seguida, o plano mental, onde o espírito corporifica primeiramente o seu pensamento e, sucessiva-mente, os planos: astral, da emoção e sentimento; o etérico da vitalidade e usina da vida física; e o carnal, que é justamente o mais inferior e transitório.

Quando o homem pratica um ato pacífico ou produtivo, em favorecimento do próximo, ele apenas revela em público e através das diversas fases ou escalas descendentes, que sepa-ram o espírito da matéria, o que realmente se sucedeu de modo positivo no seu mundo mental e a consequente repercussão na esfera do sentimento. Não é o ato puramente físico que lhe retrata a boa obra ou bondade interior, mas, tal sentimento foi acionado primeiramente no campo definitivo da mente, isto é, da principal instrumentação do espírito imortal. Assim, a sequência é perfeitamente científica e disciplinada num pros-seguimento matemático, que opera gradativamente em cada plano da manifestação do espírito. A prática da mais singela virtude no mundo físico, movimenta cientificamente leis de controle criativo em todos os planos ou campos da vida etérea, astral, mental e mesmo espiritual. Lembra, rudimentarmente, a nuvem invisível de vapor de água que, pouco a pouco, se condensa sob condições adequadas de temperatura e pressão que regem os princípios da física. Isso acontece desde o plano

imponderável até formar a mesma nuvem, que em suspenso e pejada de líquido, daí por diante e pelo aumento de peso sofre mais intensamente os efeitos gravitacionais do mundo físico até se transformar na nuvem benfeitora.

Sob o sol mais rutilante e o céu mais límpido e mais azul, a tempestade gera-se, gradativamente, até eclodir impressio-nando os sentidos físicos do homem. Mas isso só acontece depois de obedecer às leis e aos princípios impercebíveis aos sentidos humanos.

PERGUNTA — Quereis dizer que o carma do homem funciona também sob sequências científicas e específicas a cada caso, que abrangem desde a sua natureza espiritual e moral até a sua atividade física? Não é assim?

RAMATÍS — Realmente, Deus não patrocina nem admi-nistra propositadamente nenhuma instituição punitiva ou departamento específico de correção espiritual. Em verdade, toda consequência ou efeito desagradável, trágico, doloroso e infeliz do homem é sempre fruto do seu descaso aos ensi-namentos e às advertências dos instrutores espirituais. A sua violência ou rebeldia aos princípios salutares e evolutivos decorrentes da Lei Maior, que regula o equilíbrio, a harmonia e a coesão do Cosmo, é que, então, produzem as consequên-cias indesejáveis futuras. Ninguém é castigado porque “peca”, assim, como ninguém é premiado porque é “virtuoso”, mas todo desvio do ritmo eletivo e da ascensão do ser espiritual resulta em atrito e reação retificadora da entidade imortal existente em cada ser. O estado de erro é vitalizado pelo consumo de energias de baixa vibração, porque são forças oriundas do reino animal primário e que sustentam o campo instintivo inferior. Após o gasto do combustível primário, então resta a fuligem aderida ao perispírito, que é resultante da movimentação dos desejos inferiores ou da violência men-tal e astral do homem.

Quando o homem enverga um terno de linho branco, convém-lhe distanciar-se da proximidade de ambientes gra-xentos, a fim de evitar uma possível poluição. No entanto, a mesma graxa, que pode ser um “pecado” ou nódoa no terno de linho branco do turista, é louvável “virtude” como um símbo-lo de labor no macacão do mecânico diligente. A virtude e o pecado refletem apenas cada coisa no seu lugar certo, e cada ação visando um efeito útil no seu devido tempo e necessidade circunstancial. O que já foi virtude, como glória e consagração para a tribo de antropófagos, que devorava a carne do guer-reiro vencido e valente, para herdar-lhe o heroísmo, hoje é um pecado ignominioso e crime à luz da civilização. A virtude de ontem pode ser reprovada hoje, assim como o fato de o homem do século XX ainda devorar um frango assado em virtude das famigeradas proteínas, há de ser um fato censurável, se ocorrer no seio das humanidades evoluídas de outros planetas, que se alimentam exclusivamente de frutas e legumes.

O Evangelho à Luz do CosmoRamatís / Hercílio Maes

Editora do ConhECimEnto

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6 Conhecendo a Doutrina Espírita

Demonstrada a prova das vidas sucessivas, o caminho da existência se acha desimpedido e traçado com firmeza e segu-rança. A alma vê claramente seu destino, que é a ascensão para a mais alta sabedoria, para a luz mais viva. A equidade governa o mundo; nossa felicidade está em nossas mãos; deixa de haver falhas no Universo, sendo seu alvo a beleza e seus meios a justiça e o amor. Dissipa-se, portanto, todo o temor quimérico, todo o terror do Além. Em vez de recear o futuro, o homem saboreia a alegria das certezas eternas. Confiado no dia seguinte, multipli-cam-se suas forças, e seu esforço para o bem será centuplicado.

Entretanto, levanta-se outra pergunta: quais são as molas secretas por cuja via se exerce a ação da justiça, no encadeamento de nossas existências?

Notemos, primeiramente, que o funcionamento da justiça humana nada nos oferece que se possa comparar com a lei divi-na dos destinos. Esta se executa por si mesma, sem intervenção alheia, tanto para os indivíduos como para as coletividades. O que chamamos mal, ofensa, traição, homicídio determina nos culpados um estado da alma que os entrega aos golpes da sorte, na medida proporcionada à gravidade de seus atos.

Essa lei imutável é, antes de tudo, de equilíbrio. Estabelece a ordem no mundo moral, da mesma forma que as leis de gravitação e gravidade asseguram a ordem e o equilíbrio no

mundo físico. Seu mecanismo é, ao mesmo tempo, simples e grande. Todo o mal se resgata pela dor. O que o homem faz de acordo com a lei do bem lhe proporciona tranquilidade e con-tribui para sua elevação; toda a violação provoca sofrimento. Este prossegue sua obra interior; cava as profundidades do ser; traz para a luz os tesouros de sabedoria e beleza que ele contém e, ao mesmo tempo, elimina os germens malsãos. Prolongará sua ação e voltará à carga por tanto tempo quan-to for necessário, até que ele se expanda no bem e vibre unís-sono com as forças divinas. Contudo, na persecução dessa ordem grandiosa, compensações estarão reservadas à alma. Alegrias, afeições, períodos de descanso e felicidade alterna-rão, no rosário das vidas, com as existências de luta, resgate e reparação. Assim, tudo é regulado, disposto com uma arte, uma ciência, uma bondade infinita na obra providencial.

No princípio de sua carreira, em sua ignorância e fra-queza, o homem desconhece e transgride muitas vezes a lei. Daí as provações, as enfermidades, as servidões materiais, mas, desde que se instrui, desde que aprende a pôr os atos de sua vida em harmonia com a regra universal, torna-se, com efeito, cada vez menos, a ser presa da adversidade.

Nossos atos e pensamentos se traduzem em movimentos vibratórios, e seu foco de emissão, pela repetição frequente dos mesmos atos e pensamentos, transforma-se, pouco a pouco, em poderoso gerador do bem ou do mal.

O ser se classifica, assim, pela natureza das energias de que se torna o centro irradiador, mas, ao passo que as forças do bem se multiplicam por si mesmas e aumentam inces-santemente, as forças do mal se destroem por seus próprios efeitos, porque estes voltam para sua causa, para seu centro de emissão e traduzem-se sempre em consequências dolorosas. Estando o mau, como todos os seres, sujeito à impulsão evo-lutiva, vê por isso aumentar-se forçosamente sua sensibilidade.

As vibrações de seus atos, de seus pensamentos maus, depois de haverem efetuado sua trajetória, volvem a ele, mais cedo ou mais tarde, oprimem-no e apertam-no na necessidade de reformar-se.

Esse fenômeno pode se explicar cientificamente pela correlação das forças, pela espécie de sincronismo vibratório que faz voltar sempre o efeito à sua causa. Temos demons-tração disso no fato bem conhecido de, em tempo de epide-mia, de contágio, serem atacadas principalmente as pessoas cujas forças vitais se harmonizam com as causas mórbidas em ação, ao passo que os indivíduos dotados de vontade firme e isentos de receio ficam geralmente indenes.

Sucede o mesmo na ordem moral. Os pensamentos de ódio e vingança, os desejos de prejudicar, provenientes do exte-rior, só podem agir sobre nós e influenciar-nos caso encontrem elementos que vibrem uníssonos com eles. Se nada existir em nós de similar, essas forças ruins resvalam sem nos penetra-rem, volvem para aquele que as projetou para, por sua vez, ferirem-no, seja no presente, seja no futuro, quando circunstân-cias particulares as fizerem entrar na corrente de seu destino.

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Há, pois, na lei de repercussão dos atos, alguma coisa mecânica, automática na aparência. Entretanto, quando implica acerbas expiações, reparações dolorosas, grandes espíritos intervêm para regular o exercício e acelerar a mar-cha das almas em via de evolução. Sua influência se faz sen-tir principalmente na hora da reencarnação, a fim de guiar essas almas em suas escolhas, determinando as condições e os meios favoráveis à cura de suas enfermidades morais e ao resgate das faltas anteriores.

Sabemos que não há educação completa sem dor. Ao analisarmos por esse ponto de vista, é necessário livrarmo--nos de ver, nas provações e dores da humanidade, a con-sequência exclusiva de faltas passadas. Todos aqueles que sofrem não são forçosamente culpados em via de expiação; muitos são simplesmente espíritos ávidos de progresso, que escolheram vidas penosas e de labor para colherem o bene-fício moral que anda ligado a toda a pena sofrida.

Contudo, em tese geral, é do choque, do conflito do ser inferior, que não se conhece ainda, com a lei da harmonia, que nascem o mal e o sofrimento. É pelo regresso gradual e volun-tário do mesmo ser a essa harmonia que se restabelece o bem, isto é, o equilíbrio moral. Em todo o pensamento, em toda a obra, há ação e reação, e esta é sempre proporcional em inten-sidade à ação realizada. Por isso podemos dizer: o ser colhe exatamente o que semeou. E colhe efetivamente, pois, por sua ação contínua, modifica sua própria natureza, depura ou mate-rializa seu invólucro fluídico, o veículo da alma, o instrumento que serve para todas as suas manifestações e no qual é calcado e modelado o corpo físico, em cada renascimento.

Nossa situação no Além resulta, como vimos prece-dentemente, das ações repetidas que nossos pensamentos e nossa vontade exercem constantemente sobre o perispírito. Segundo sua natureza e seu objetivo, vão transformando-o pouco a pouco em um organismo sutil e radiante, aberto às mais altas percepções, às sensações mais delicadas da vida do espaço, capaz de vibrar harmonicamente com espíritos elevados e de participar das alegrias e impressões do infi-nito. No sentido inverso, farão dele uma forma grosseira, opaca, acorrentada à Terra por sua própria materialidade e condenada a ficar encerrada nas baixas regiões.

Essa ação contínua do pensamento e da vontade, exercida no decorrer dos séculos e das existências sobre o perispírito, faz-nos compreender como se criam e desenvolvem nossas aptidões físi-cas, assim como as faculdades intelectuais e as qualidades morais.

Nossas aptidões para cada gênero de trabalho, a habilidade e a destreza em todas as coisas são o resultado de inumeráveis ações mecânicas acumuladas e registradas pelo corpo sutil, do mesmo modo que todas as recordações e aquisições mentais estão gravadas na consciência profunda. Ao renascer, essas apti-dões são transmitidas, por uma nova educação, da consciência externa aos órgãos materiais. Assim se explica a habilidade con-sumada e quase nativa de certos músicos e, em geral, de todos aqueles que mostram, em um domínio qualquer, uma superiori-dade de execução que surpreende à primeira vista.

Sucede o mesmo com as faculdades e virtudes, com todas as riquezas da alma adquiridas no decurso dos tem-

pos. O gênio é um longo e imenso esforço na ordem inte-lectual, e a santidade foi conquistada à custa de uma luta secular contra as paixões e as atrações inferiores.

Com alguma atenção, poderíamos estudar e seguir em nós o processo da evolução moral. A cada vez que praticamos uma boa ação, um ato generoso, uma obra de caridade, de dedicação, a cada sacrifício do “eu”, não sentimos uma espécie de dilatação interior? Alguma coisa parece expandir-se em nós; uma chama acende-se ou aviva-se nas profundezas do ser.

Essa sensação não é ilusória. O espírito se ilumina a cada pensamento altruísta, a cada impulso de solidariedade e de amor puro. Se esses pensamentos e atos se repetem, multiplicam-se, acumulam-se, e o homem se vê transforma-do ao sair de sua existência terrestre; a alma e seu invólucro fluídico terão adquirido um poder de radiação mais intenso.

No sentido contrário, todo o pensamento ruim, todo o ato criminoso e todo o hábito pernicioso provocam um estreita-mento, uma contração do ser psíquico, cujos elementos se con-densam, entenebrecem-se e carregam-se de fluidos grosseiros.

Os atos violentos, a crueldade, o homicídio e o suicídio produzem no culpado um abalo prolongado, que se repercute, de renascimento em renascimento, no corpo material e traduz-se em doenças nervosas, tiques, convulsões e até em deformidades, enfermidades ou casos de loucura, consoante a gravidade das causas e o poder das forças em ação. Toda a transgressão à lei implica diminuição, mal-estar e privação de liberdade.

As vidas impuras, a luxúria, a embriaguez e a devassidão nos conduzem a corpos débeis, sem vigor, sem saúde e sem beleza. O ser humano que abusa de suas forças vitais, por si mesmo, condena-se a um futuro miserável e a enfermidades mais ou menos cruéis.

Às vezes, a reparação se efetua em uma longa vida de sofrimentos, necessária para destruir em nós as causas do mal, ou, então, em uma existência curta e difícil, terminada por morte trágica. Uma atração misteriosa reúne, às vezes, os criminosos de lugares muito afastados em um dado ponto para feri-los em comum. Daí as catástrofes célebres, os naufrágios, os grandes sinistros, as mortes coletivas, tais como o desastre de Saint-Gervais, o incêndio do Bazar de Caridade, a explosão de Courrières, a do Iena, o naufrágio do Titanic, do Ireland etc.

Explicam-se, assim, as existências curtas, que são o com-pletar de vidas precedentes, terminadas muito cedo, abreviadas prematuramente por excessos, abusos ou por qualquer outra causa moral, mas que, normalmente, deveriam ter durado mais.

Não devem ser incluídas em tais casos as mortes de crianças em tenra idade. A vida curta de uma criança pode ser uma provação para os pais, assim como para o espírito que quer encarnar. Em geral, é simplesmente uma entrada falsa no teatro da vida, quer por causas físicas, quer por falta de adaptação dos fluidos. Em tal caso, a tentativa de encarnação renova-se, pouco depois, no mesmo meio; reproduz-se até completo êxito ou, então, se as dificuldades são insuperáveis, efetua-se em um meio mais favorável.

O Problema do Ser e do DestinoLeón Denis

Editora do ConhECimEnto(continua)

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8 Conhecendo a Doutrina Espírita

É preciso que se dê mais importância à leitura do Evangelho. E, no entanto, abandona-se esta divina obra;faz-se dela uma palavra vazia, uma mensagem cifrada. Relega-se este admirável código moral ao esquecimento.

7. Disse Jesus também àquele que O convidara: “Quando derdes um banquete, não convideis vos-sos amigos, nem vossos parentes, nem vossos vizinhos que forem ricos, para que não suceda que eles, por sua vez, vos convidem em seguida, e assim retribuam o que de vós receberam. Mas quan-do derdes um festim, convidai os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos. E ficareis felizes por não terem eles meios para vos retribuir; pois isso vos será retribuído na ressurreição dos justos”.Um dos que se achavam à mesa, tendo ouvido essas palavras, disse-Lhe: “Feliz daquele que comer do pão do reino de Deus!”. (Lucas, 14:12-15).

8. “Quando derdes um banquete”, disse Jesus, “não convideis vossos amigos, mas os po-bres e os aleijados”. Essas palavras, que parecem absurdas se interpretadas ao pé da letra, são sublimes se lhes buscarmos a intenção. Jesus não pode ter querido dizer que, em lugar dos amigos, deve-se reunir à mesa os mendigos da rua. Sua linguagem era quase sempre alegóri-ca, pois, para homens incapazes de compreender as delicadas sutilezas do pensamento, eram necessárias imagens fortes que produzissem um efeito semelhante ao das cores berrantes. A profundidade do pensamento de Jesus se revela nestas palavras: “Ficareis felizes por não terem eles meios para vos retribuir”. É o mesmo que dizer que não se deve fazer o bem visando a uma retribuição, mas pelo simples prazer de fazê-lo. Para fazer uma comparação que impressio-nasse, Ele diz: “Convidai para vossos festins os pobres, pois sabeis que estes não poderão vos retribuir”; e, por festins, deve-se entender não a refeição propriamente dita, mas a participação na abundância de que desfrutais.

Contudo, essas palavras também podem ser aplicadas num sentido mais literal. Quan-tas pessoas só convidam à sua mesa aqueles que podem lhes dar a honra de comparecer, ou que, por sua vez, podem retribuir-lhes o convite! Outras, ao contrário, sentem satisfação em receber seus parentes e amigos menos afortunados. E quem não os tem? Às vezes, essa é uma forma de prestar-lhes um grande favor, sem demonstrá-lo. Pessoas assim, sem sair recrutando cegos e aleijados, praticam o que Jesus ensinou, se o fazem por benevolência e sem ostentação, conseguindo, com sua sincera cordialidade, fazer com que não se perceba sua boa ação.