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ANO 9 2º SEMESTRE 2001 22 22 22 22 22 Herança e gênero entre Herança e gênero entre Herança e gênero entre Herança e gênero entre Herança e gênero entre agricultores familiares agricultores familiares agricultores familiares agricultores familiares agricultores familiares Resumo esumo esumo esumo esumo: Entender as lógicas de transmissão do patrimônio familiar, particularmente no caso da terra, levando-se conta as diferenças de gênero, exige identificar os distintos papéis reserva- dos ao homem e à mulher na dinâmica de reprodução social. A compreensão de tais lógicas distintas requer que investiguemos os diferentes signficados do patimônio territorial em cada contexto social e cultural. Embora a herança seja baseada na noção de consanguinidade, as regras costumeiras não reconhecem os mesmos direitos para todos os filhos. É precisamente sobre essas diferenças de que trataremos nesse artigo, particularmente no que se diz respeito às distintas práticas derivadas das identidades de gênero. Buscar-se-á entender a lógica das diferentes formas de transmitir a herança e sua relação com a reprodução social de famílias de agricultores familiares em duas regiões distintas: no municipio de Nova Pádua, na região de influência de Caxias do Sul, no estado do Rio Grande do Sul, e na região serrana do estado do Rio de Janeiro, município de Nova Friburgo Palavras-chave alavras-chave alavras-chave alavras-chave alavras-chave: reprodução social, agricultura familiar, herança, identidades de gênero. MARIA JOSÉ CARNEIRO MARIA JOSÉ CARNEIRO MARIA JOSÉ CARNEIRO MARIA JOSÉ CARNEIRO MARIA JOSÉ CARNEIRO Compreender as regras de transmissão do patrimônio familiar, em particular a terra, entre agricultores familiares levando-se em conta as diferenças entre os gêne- ros exige que se reconheçam os distintos papéis reservados a homens e mulheres na dinâmica de reprodução social. Se considerarmos que, além dos bens materiais, outros tipos de bens, simbólicos, são transmitidos de uma geração a outra, verificaremos o papel crucial desempenhado pela mulher na dinâmica dessas famílias, não somente como elemento da produção ou do trabalho, mas também como elemento da reprodução: como guardiãs e transmissoras privilegia- das de valores. 1 É importante ter-se em mente que as formas de trans- missão do patrimônio mudam de acordo com o contexto histórico, econômico, geográfico, institucional, etc. Diferentes práticas sustentam-se em lógicas reprodutivas próprias e, portanto, não podem ser entendidas dentro de um concep- ção meramente formal, ou seja, da jurisprudência. A diversi- dade de soluções possíveis é fruto não apenas de diferentes tradições mas, sobretudo, de diferentes sistemas de repro- dução cultural, social e econômica. Nestes termos, não exis- te uma rigidez de regras nem uma diversidade descontextu- 1 O presente artigo é fruto de uma pesquisa que venho desenvol- vendo ao longo dos últimos cin- co anos com uma equipe de alunos do Curso de Pós-Gradu- ação em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, da UFRRJ e de bolsistas de IC e de Aper- feiçoamento do CNPq.

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HERANÇA E GÊNERO ENTRE AHERANÇA E GÊNERO ENTRE AHERANÇA E GÊNERO ENTRE AHERANÇA E GÊNERO ENTRE AHERANÇA E GÊNERO ENTRE AGRICULGRICULGRICULGRICULGRICULTORES FTORES FTORES FTORES FTORES FAMILIARESAMILIARESAMILIARESAMILIARESAMILIARES

ANO 9 2º SEMESTRE 20012222222222

Herança e gênero entreHerança e gênero entreHerança e gênero entreHerança e gênero entreHerança e gênero entreagricultores familiaresagricultores familiaresagricultores familiaresagricultores familiaresagricultores familiares

RRRRResumoesumoesumoesumoesumo: Entender as lógicas de transmissão do patrimônio familiar, particularmente no casoda terra, levando-se conta as diferenças de gênero, exige identificar os distintos papéis reserva-dos ao homem e à mulher na dinâmica de reprodução social. A compreensão de tais lógicasdistintas requer que investiguemos os diferentes signficados do patimônio territorial em cadacontexto social e cultural. Embora a herança seja baseada na noção de consanguinidade, asregras costumeiras não reconhecem os mesmos direitos para todos os filhos. É precisamentesobre essas diferenças de que trataremos nesse artigo, particularmente no que se diz respeito àsdistintas práticas derivadas das identidades de gênero. Buscar-se-á entender a lógica dasdiferentes formas de transmitir a herança e sua relação com a reprodução social de famílias deagricultores familiares em duas regiões distintas: no municipio de Nova Pádua, na região deinfluência de Caxias do Sul, no estado do Rio Grande do Sul, e na região serrana do estado doRio de Janeiro, município de Nova FriburgoPPPPPalavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chave: reprodução social, agricultura familiar, herança, identidades de gênero.

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Compreender as regras de transmissão dopatrimônio familiar, em particular a terra, entre agricultoresfamiliares levando-se em conta as diferenças entre os gêne-ros exige que se reconheçam os distintos papéis reservadosa homens e mulheres na dinâmica de reprodução social. Seconsiderarmos que, além dos bens materiais, outros tipos debens, simbólicos, são transmitidos de uma geração a outra,verificaremos o papel crucial desempenhado pela mulherna dinâmica dessas famílias, não somente como elementoda produção ou do trabalho, mas também como elementoda reprodução: como guardiãs e transmissoras privilegia-das de valores.1

É importante ter-se em mente que as formas de trans-missão do patrimônio mudam de acordo com o contextohistórico, econômico, geográfico, institucional, etc. Diferentespráticas sustentam-se em lógicas reprodutivas próprias e,portanto, não podem ser entendidas dentro de um concep-ção meramente formal, ou seja, da jurisprudência. A diversi-dade de soluções possíveis é fruto não apenas de diferentestradições mas, sobretudo, de diferentes sistemas de repro-dução cultural, social e econômica. Nestes termos, não exis-te uma rigidez de regras nem uma diversidade descontextu-

1 O presente artigo é fruto de umapesquisa que venho desenvol-vendo ao longo dos últimos cin-co anos com uma equipe dealunos do Curso de Pós-Gradu-ação em Desenvolvimento,Agricultura e Sociedade, da UFRRJe de bolsistas de IC e de Aper-feiçoamento do CNPq.

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alizada. A transmissão dos direitos sobre a propriedade fami-liar de uma geração a outra é objeto de múltiplas estratégiasque variam de acordo com as condições de cada família,ou seja, com os instrumentos de negociação ou de com-pensação disponíveis, derivados tanto da sua história espe-cífica como da sua inserção na economia e na sociedade.

No entanto, não é sem contradições e tensões queesta situação é vivida. As questões relativas à transmissão daherança podem ser resolvidas, por um lado, no sentido deconduzir à fragmentação do patrimônio familiar e àinviabilidade da manutenção da unidade de produção, epor outro podem atuar no sentido de favorecer a integridadedo patrimônio. De um modo ou de outro, é importante consi-derar tanto os custo individuais na obediência às decisõesfamiliares quanto as perdas ou frustrações dos interesses cole-tivos em decorrência dos projetos individuais. É assim que situ-ações tais como a partilha dos bens, a escolha do sucessor ea escolha do cônjuge escondem dramas individuais e senti-mentos que não podem ser reduzidos à lógica do sistema, namedida em que também afetam a estrutura dos laços afetivosentre os membros da família. Disto nos persuade o estudo deWoortmann & Woortmann sobre a fuga como forma de resol-ver as dificuldades de realização do casamento em famíliasde camponeses pobres do nordeste.2

Diversos estudos têm apontado para a relação entreos modelos de partilha da herança e estratégias matrimoniaisque têm como objetivo realizar, de maneira menos dramáticapossível, a passagem do patrimônio familiar de uma geraçãoa outra, sem que a observância dos interesses do grupo sejaabandonada ou gravemente ameaçada.3 Tais estudos nosrevelam que a terra, como parte da ordem simbólica, temsignificados que transcendem o seu valor econômico. Bourdieuobserva que as estratégias familiares são acionadas paraneutralizar a ameaça que cada casamento de um filho trazao conjunto do patrimônio familiar. Com o objetivo de maximizaros lucros e/ou minimizar os custos (econômicos e simbólicos)do casamento, as famílias realizam alianças em condiçõesdiferenciadas, segundo as restrições impostas tanto pelo ca-pital simbólico-cultural quanto pelo capital econômico à dis-posição de cada uma delas.4 Nestes termos, a transmissãodo patrimônio e as demais regras de acesso à terra refletemnão somente as condições sociais e econômicas das famíli-as, mas também a hierarquia interna destas últimas, e conso-lidam relações desiguais entre os indivíduos no interior do gru-po familiar e na sociedade. Particularmente, reforçam posi-ções diferenciadas entre os gêneros.

No Brasil, apesar do Código Civil estabelecer a igual-dade de condições entre todos os filhos no que se refere aodireito sobre a herança, as regras culturais (os códigos costu-

2 Cf. WOORTMANN, 1993, eGOTMAN e LAFERRÈRE, 1992.

3 BOURDIEU, 1972, LAMAISON eCLAVERIE, 1982, e SALITOT, 1988.

4 BOURDIEU, 1972.

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HERANÇA E GÊNERO ENTRE AHERANÇA E GÊNERO ENTRE AHERANÇA E GÊNERO ENTRE AHERANÇA E GÊNERO ENTRE AHERANÇA E GÊNERO ENTRE AGRICULGRICULGRICULGRICULGRICULTORES FTORES FTORES FTORES FTORES FAMILIARESAMILIARESAMILIARESAMILIARESAMILIARES

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meiros) modificam a lei de acordo com os “interesses” de umator coletivo — a família —, que se impõe aos interessesindividuais. Esta prática torna-se realidade principalmentequando o que está em jogo é a manutenção da integrida-de do patrimônio como condição para o funcionamentoda unidade de produção, e para a reprodução de umaidentidade social sustentada na propriedade fundiária e notrabalho agrícola. Este fenômeno, observado entre agricul-tores de origem italiana no sul do país, é também realidadeem diversos países ou regiões, sobretudo os da Europa, comorelata a bibliografia especializada.5 Lamaison e Claverie,num estudo sobre a relação entre o casamento, a violênciae o parentesco em Gevaudan, França, dos séculos XVII aXIX, observam que a obediência ao princípio da igualdadeuniversal entre os herdeiros ou a instituição de um herdeiroprivilegiado é resultado das condições econômicas e soci-ais que, combinadas aos projetos familiares, se manifestamtambém nas estratégias matrimoniais.

Nesses casos, observa-se que as regras de trans-missão recebem a legitimidade (com maior ou menor confli-to) dos envolvidos na transação, sustentados que se encon-tram pelo “valor família.” A família, entendida por esses ato-res como uma unidade cujos interesses coletivos devem serpreservados, se impõe como uma entidade supra-jurídicacujas regras internas (do mundo privado, da casa) são tidascomo particulares, não devendo ela, portanto, submeter-seàs determinações de qualquer ação estranha (exterior) eimpessoal da justiça oficial. Assim, o que se estabelece den-tro dos limites familiares deve ser respeitado e acatado poraqueles que se reconhecem (e são reconhecidos) comointegrantes deste grupo.

De acordo com esta lógica, o pai, responsável pelamanutenção do grupo familiar, recebe nominalmente umpatrimônio, o direito à propriedade que não é entendidocomo individual. Ao contrário, a responsabilidade do pai ézelar por este patrimônio coletivo, cuidando de transmiti-loàs demais gerações. Esta propriedade, encarnada na figu-ra do chefe da família, é o símbolo da unidade e da identi-dade familiar que deverá reproduzir-se no tempo atravésdos laços familiares e da partilha desigual. É importante re-gistrar que, baseada embora na idéia da consangüinidade,regras consuetudinárias não reconhecem a todos os filhosos mesmos direitos.

Por outro lado, noutras situações — tal como se ob-servou na região serrana do estado do Rio de Janeiro — aprática da partilha generalizada do patrimônio familiar, inclu-indo o direito da mulher à terra, aponta para condições espe-cíficas de produção e de reprodução social das famílias, prá-ticas que são bem distintas daquelas observadas no Sul.

5 A bibliografia sobre este assun-to é extensa; destacaria M. Salitot,1988a e 1988b; G. Augustins,1987; G. Augustins e R.Bonnain,1981; P. Lamaison e E. Claverie,1982; G. Ravis-Giordani, (dir.),1987 entre outros

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As lógicas de transmissão da propriedade pelo sis-tema de herança se articulam com os sistemas de reprodu-ção social aos quais essas lógicas estão referidas, e sofreminfluências dos valores da sociedade abrangente. Provo-cam-se assim crises e mudanças também nas relações intra-familiares, sobretudo no que se refere à desigualdade dosdireitos entre homens e mulheres. É justamente sobre essasregras e mudanças em curso, sobretudo no tocante às dife-renças advindas das identidades de gênero, que iremostratar neste artigo.

Para entender estas lógicas distintas é certamentenecessário buscar os diferentes significados que o própriopatrimônio — no caso, patrimônio territorial — assume emcada contexto social e cultural. Logo, partimos do princípiode que a terra não tem sempre o mesmo significado para osdiferentes grupos de proprietários.

Falar de herança na sociedade camponesa impli-ca reconhecer dois processos que se articulam: a escolhado sucessor — aquele que assegura a continuidade da ex-ploração agrícola e a manutenção do grupo familiar — e apartilha dos bens, diretamente associada ao primeiro. Ape-sar da íntima relação entre os dois processos, trataremos aqui,especificamente, do segundo.

Buscar-se-á entender a lógica das diferentes formasde transmitir a herança, bem como a sua relação com areprodução social de famílias de agricultores familiares emduas regiões distintas: no município de Nova Pádua, na re-gião de influência de Caxias do Sul, no estado do Rio Gran-de do Sul, e na região serrana do estado do Rio de Janeiro,município de Nova Friburgo. Ainda que ambas as regiõesestudadas tenham sido originalmente povoadas por imigran-tes europeus (descendentes de colonos italianos no primeirocaso e descendentes de colonos suíços e alemães, no segun-do), a maneira como se processaram as ocupações dessesterritórios foi totalmente distinta num e noutro caso, o que, semdúvida, teve conseqüências sobre a dinâmica de reprodu-ção social desses colonos, resultando em realidades culturaise econômicas díspares para os seus descendentes.6

O estabelecimento da agricultura familiar naO estabelecimento da agricultura familiar naO estabelecimento da agricultura familiar naO estabelecimento da agricultura familiar naO estabelecimento da agricultura familiar naregião colonial italiana de Nova Pádua (RS)região colonial italiana de Nova Pádua (RS)região colonial italiana de Nova Pádua (RS)região colonial italiana de Nova Pádua (RS)região colonial italiana de Nova Pádua (RS)

As famílias entrevistadas e observadas no sul do paíspertencem a uma única linha de descendência de um dostrês irmãos que chegaram no Brasil em 1885 e se instalaramcomo colonos numa área que recentemente (1993) rece-beu autonomia administrativa como município de NovaPádua, referência ao local de origem dos imigrantes. Esta-belecendo-se inicialmente em “colônias,”7 esses migrantes

6 Para desenvolver as questõeslevantadas neste artigo, recorreu-se sobretudo a entrevistas paralevantamento de genealogias,de histórias de famílias e de tra-jetórias individuais. No caso doestudo sobre os descedentes demigrantes de Nova Friburgo, aparticipação de uma historiado-ra na equipe permitiu recorrer-setambém à pesquisa de arqui-vos locais e nacionais na tenta-tiva frustrada de se resgatar astrajetórias de algumas famíliasdescendentes de migrantes.Além disto, a elaboração de umadissertação de mestrado namesma região, por uma inte-grante da equipe (cf. TEIXEIRA,1998), ampliou o leque de infor-mações sobre os agricultores dosdistritos de Nova Friburgo.

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HERANÇA E GÊNERO ENTRE AHERANÇA E GÊNERO ENTRE AHERANÇA E GÊNERO ENTRE AHERANÇA E GÊNERO ENTRE AHERANÇA E GÊNERO ENTRE AGRICULGRICULGRICULGRICULGRICULTORES FTORES FTORES FTORES FTORES FAMILIARESAMILIARESAMILIARESAMILIARESAMILIARES

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dedicaram-se principalmente à agricultura, que se tornou abase da reprodução social dessas famílias — então bas-tante numerosas. Tal como o esperado pela política de colo-nização, desenvolve-se nessa região uma produção de ali-mentos voltada para o mercado interno, sustentada na pe-quena propriedade e no trabalho livre — familiar — de ho-mens brancos.8 Combinando a produção para o consumopróprio com a produção de mercadorias, esse campesinatocaracterizou-se pela articulação íntima com o mercado, so-frendo assim as suas ingerências. Além da comercializaçãodos excedentes das roças de alimentos, esses colonos des-cendentes de italianos da serra gaúcha dedicaram-se,como se sabe, à produção de uva, inicialmentecomercializada in natura e, posteriormente, transformadaem vinho ou vendida para as vinícolas.

As transformações de ordem econômica, a partirda década de 40, marcaram o início do desenvolvimentodas colônias, devido à expansão do comércio e às novasoportunidades de mercado.9 A partir dos anos 60, os colo-nos começam a investir na aquisição de novas tecnologias,o que tem como efeito a melhoria da renda familiar. As dé-cadas de 60 e 70 são marcadas pela diversificação daprodução, com a introdução de pomares e hortifrutigranjei-ros, possibilitando um rendimento mais regular durante o anoe a inserção no mercado de forma mais competitiva. Esteperíodo marca também a inserção definitiva desses produ-tores no mercado, associada à modernização tecnológicae à racionalização da produção, o que veio a resultar naliberação de parte da mão-de-obra familiar. A consolida-ção da pequena propriedade acelerou o processo de mo-dernização da região e proporcionou a inserção dos colo-nos na sociedade de consumo, a partir da década de 70.

Acompanhando o processo de modernização agrí-cola e da expansão do mercado promovida pela amplia-ção da rede de rodovias, essas famílias desenvolveram es-tratégias diferenciadas de reprodução social para os seusfilhos ao longo do tempo. Até à década de 60 a terra era oprincipal meio de sobrevivência, fazendo com que as famí-lias traçassem estratégias no sentido de ampliar o seupatrimônio e possibilitar assim a instalação de todos os filhoshomens em unidades de produção agrícola. A partir dosanos dos 60, os esforços voltam-se para a preparação dealguns dos filhos para enfrentarem o mercado de trabalhourbano, o qual se expandia com o crescimento industrial deCaxias do Sul. Inicialmente, somente os homens migravam;mas o crescimento industrial de Caxias e a divulgação devalores centrados na realização do indivíduo, encarado nãomais como um integrante de um coletivo — a unidade fami-liar — mas como um ser com um certo grau de autonomia,

7O termo “colônia” nesta regiãoera usado, originalmente, parase fazer referência ao lote de terrarecebido na época da instala-ção do migrante. Inicialmente,até 1851, os lotes eram de 77hectares, diminuindo posterior-mente para 48,4 hectares e che-gando, finalmente, a 25 hecta-res a partir de 1889 (BRUM, 1988).Atualmente, este termo acaboupor designar a pequena proprie-dade ou uma área territorial pa-drão, que na região estudada éde 25 hectares. Assim, os colo-nos referem-se à extensão dassuas propriedades falando emtantas colônias ou tantas colôni-as e meia.

8 Há vários estudos sobre a colo-nização italiana no Rio Grandedo Sul. Especificamente sobre aconstituição do campesinato co-lonial, sugiro SANTOS, 1984. So-bre o papel atual da cultura ita-liana na reprodução social dasfamílias de colonos da região emquestão, ver MOCELIN, 1993.

9 MOCELIN, 1993.

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contribuíram para a participação da mulher no mercadode trabalho. Como veremos adiante, estas mudanças intro-duziram modificações nas práticas de transmissão dopatrimônio.

Ainda hoje, a produção de uva é a mais importan-te de Nova Pádua. No entanto, os colonos que estudamosse distinguem pela produção de frutas de mesa, por possu-írem propriedades acima da média do município e por umalto grau de mecanização. Os seus produtos, com melhorpreço no mercado, possibilitaram um enriquecimento des-sas famílias, sobretudo no início da década de 90. Este enri-quecimento é visível na segunda fase de modernização dascasas. Em substituição às antigas moradias, construídas emdois ou três andares em que se acomodavam simultanea-mente até quatro gerações, as novas casas seguem o pa-drão urbano — tido como “mais prático e mais adaptadoaos novos tempos.”

Nova Pádua detém hoje uma população predo-minantemente rural. Isto revela o peso da agricultura para amanutenção dos seus habitantes e para a economia domunicípio: 86% da população municipal se dedicava àagricultura em 1997, atividade responsável por cerca de80% do rendimento municipal.

Predominam no município as pequenas proprie-dades, com cerca de 5 hectares, centradas na mão-de-obra familiar e no contrato eventual de empregados assala-riados na época da colheita da uva. Apesar das adversida-des geográficas, as propriedades rurais encontram-se bas-tante desenvolvidas no aspecto tecnológico, responsávelpelos índices de produtividade altos relativamente à médianacional. Parte deste sucesso pode ser atribuída ao ethos demigrante, ethos este sustentado pela valorização do traba-lho como base para a ascensão social e para a valorizaçãodo homem.10 Esta situação contrasta fortemente com a dosagricultores de Nova Friburgo (RJ), particularmente aquelesdos distritos de Lumiar e São Pedro da Serra, como veremosabaixo.

No entanto, ainda que os valores reconhecidos comopróprios à cultura italiana ainda sejam uma forte referência,observa-se entre os componentes das gerações mais novasa elaboração de uma versão moderna desses valores, osquais passam então a conviver com a contraposição entre anoção de indivíduo e a exclusividade da família como locusde socialização e de realização.11 O trabalho, por exemplo,que constitui a categoria cultural central no universo das pri-meiras gerações de colonos, também adquire uma novasignificação; deixa de ser a expressão de um valor moral, epassa a ser encarado como tão-somente um meio de reali-zação pessoal.12 Naturalmente, o sistema de transmissão da

10 MOCELIN, 1993.

11 CARNEIRO, 1999.

12 MOCELIN, 1993.

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HERANÇA E GÊNERO ENTRE AHERANÇA E GÊNERO ENTRE AHERANÇA E GÊNERO ENTRE AHERANÇA E GÊNERO ENTRE AHERANÇA E GÊNERO ENTRE AGRICULGRICULGRICULGRICULGRICULTORES FTORES FTORES FTORES FTORES FAMILIARESAMILIARESAMILIARESAMILIARESAMILIARES

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herança não está imune a esta nova dinâmica. Durante trêsgerações, a reprodução social destas famílias de origem ita-liana se baseava num sistema que produzia herdeiros edeserdados; atualmente, as contradições entre o peso do“valor família” (um coletivo que se impõe aos interesses parti-culares dos seus membros) e o indivíduo (um valor da socie-dade moderna, foco da realização pessoal) constituem umaameaça para a reprodução do antigo sistema colonial.

A pequena propriedade agrícola naA pequena propriedade agrícola naA pequena propriedade agrícola naA pequena propriedade agrícola naA pequena propriedade agrícola naregião serrana de Nova Fregião serrana de Nova Fregião serrana de Nova Fregião serrana de Nova Fregião serrana de Nova Friburgo (RJ)riburgo (RJ)riburgo (RJ)riburgo (RJ)riburgo (RJ)

A origem dos agricultores da região de NovaFriburgo está vinculada à primeira tentativa de colonizaçãopromovida no contexto da política colonial de D. João VI, em1819. Por diversos motivos, a instalação desses agricultoresse deu, logo de início, num contexto de grandes dificulda-des e crises sucessivas.13

Os lotes originais, com aproximadamente 108 hec-tares,14 eram traçados de forma uniforme sobre um mapa,sem que se tomasse em consideração a geografia da re-gião; assim, os chefes de família, após retirarem o seu loteatravés de um sorteio, tomavam conhecimento das suascaracterísticas apenas ao desbravarem parte da mata queos cobria. Muitos se depararam com precipícios e solos nãoapropriados para a agricultura. Ao longo do tempo, estequadro fundiário se foi modificando, influenciado por váriasrazões: o processo de fragmentação por herança, que obe-decia ao sistema de partilha igualitária; a migração de fa-mílias para regiões vizinhas em busca de terras mais apro-priadas para o plantio do café; e, mais recentemente, aintervenção de novos agentes integrantes da classe médiaurbana.15

A constante peregrinação em busca de terras maisapropriadas para a agricultura ou de melhores condiçõesde vida fora da atividade agrícola é, a nosso ver, uma im-portante chave para a compreensão da maneira como seprocessou a formação e a manutenção desses povoados,podendo fornecer uma explicação para a ausência de umamemória coletiva ou individual sobre os antepassados e seuscostumes.16

A ausência de uma identidade social centrada naorigem étnica, bem com a memória genealógica curta, dis-tinguem esses migrantes dos descendentes de colonos eu-ropeus que se instalaram no Rio Grande do Sul e em SantaCatarina. Ao contrário do que apontam os estudos sobre acolonização européia no sul do país,17 aqui predomina afalta de informação e de registro de memória sobre os as-cendentes. Quando muito, há referências vagas sobre a

13 CARNEIRO, 2000.

14 NICOULIN, 1995.

15 SCHIAVO, 1991, e TEIXEIRA,1998.

16 CARNEIRO, 1998b.

17 Ver SEYFERTH, 1985, eWOORTMANN, 1995.

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figura de um avô e de um passado envolvido em muita lutapela sobrevivência (tal fator é apresentado como responsá-vel pelo esquecimento de suas trajetórias). A ausência dememória genealógica pode ser interpretada também comoum indicador da predominância de uma organização soci-al baseada na família nuclear. Seja pela morte prematurados avós, seja pela fragmentação e dispersão dos grupos,na região agrícola de Nova Friburgo não chegaram a cons-tituir-se famílias extensas, tal como aconteceu nos núcleoscoloniais do sul.

A insuficiência de recursos e a sobrevivênciacentrada no acesso à terra e na agricultura familiar exigiamfreqüentes deslocamentos dessas famílias, em busca de umacondição estável: a propriedade de um lote — que significa-ria o abandono da condição de “parceiro” ou “colono” — outerras melhor localizadas ou mais férteis. Além da adversida-de da topografia, o costume da partilha igualitária da terracomo forma de transmissão da herança também contribuiupara esse deslocamento, na medida em que a fragmenta-ção contínua das propriedades acabou resultando em áre-as insuficientes para a atividade agrícola. Diferentemente doprocesso de reprodução social dos colonos do sul, que con-taram com fronteiras agrícolas para se expandirem e comum crescimento industrial que absorvia a mão-de-obra ex-cedente, na região de Lumiar e São Pedro da Serra a frag-mentação das propriedades esteve associada àmobilização espacial da população rural, em busca de ter-ras mais férteis. O sistema de parceria surge como uma alter-nativa para o acesso à terra. Mas por mais perenes quesejam as relações entre proprietário e parceiro, este contratoimplica, por princípio, uma relação transitória com a terra; talfator é responsável pelo agravamento da situação de insta-bilidade do agricultor. Submetido a constantes negociaçõespelas condições de acesso à terra, o parceiro é muitas vezeslevado ao rompimento do contrato ou à saída voluntáriapara outras áreas, na expectativa de melhores condiçõesde produção.

O isolamento desses povoados perdurou até bemrecentemente. Somente na década de 50 foi aberta umaestrada acompanhando o antigo trajeto das tropas de mula,que ligava o distrito de Lumiar à estrada de acesso à cidadede Friburgo. Mas é somente na década de 80, quando aestrada é asfaltada, que Lumiar começa a sentir e a se res-sentir do contato com os “de fora”, quando o lugarejo setorna uma atração turística.

Embora façam parte do contingente de pequenosprodutores marginalizados no mercado, devido à baixa pro-dutividade que alcançam, os agricultores de Lumiar e SãoPedro da Serra não permaneceram alheios ao processo de

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HERANÇA E GÊNERO ENTRE AHERANÇA E GÊNERO ENTRE AHERANÇA E GÊNERO ENTRE AHERANÇA E GÊNERO ENTRE AHERANÇA E GÊNERO ENTRE AGRICULGRICULGRICULGRICULGRICULTORES FTORES FTORES FTORES FTORES FAMILIARESAMILIARESAMILIARESAMILIARESAMILIARES

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modernização da agricultura dos anos 60. Favorecida pelaabertura da estrada, a produção mercantil vai pouco apouco se impondo, relegando ao segundo plano a produ-ção para o consumo próprio e aumentando a dependên-cia ao mercado, tanto na esfera da produção como na doconsumo. As trocas dão lugar às relações monetárias, nasquais a figura do intermediário surge como mais um elemen-to de diferenciação entre os agricultores.18 A intensificação dadependência relativa ao mercado, que perdura até à déca-da de 80, aumenta a fragilidade desses agricultores, integra-dos a uma rede de troca desigual com os intermediários ecomerciantes. Neste contexto, foram poucos os que tiveramsucesso e uma trajetória ascendente pautada na capitaliza-ção e na modernização tecnológica. Ao contrário, a maioriadeles é hoje composta de pequenos produtores que contambasicamente com a força de trabalho familiar, um pequenolote de terra e instrumentos rudimentares.19

Estimulados pela situação favorável do mercadofinanceiro na década de 70, muitos desses agricultores ven-deram as suas propriedades, na ilusão de terem vidas me-lhores com o resultado da aplicação dos recursos obtidosna caderneta de poupança. Resultou daí que boa partedeles vivem hoje como assalariados das fábricas ou comoambulantes nas ruas de Nova Friburgo.

Ainda hoje, a agricultura que se desenvolve na re-gião de São Pedro da Serra e Lumiar é expressão das dificul-dades estruturais por que passaram as gerações anteriores.A referência que fazem às sucessivas crises que lhes afeta-ram a atividade agrícola denota o esforço renovado dessesagricultores em redefinirem estratégias de sobrevivência, asquais variam de acordo com as possibilidades apresenta-das pelo contexto econômico e social.

Atualmente, a produção agrícola desses distritos ébastante limitada em termos numéricos. A estrutura fundiáriafluminense é caracterizada pela predominância de peque-nos estabelecimentos agrícolas, com área inferior a 10 hec-tares, e os distritos de Lumiar e São Pedro da Serra não fogema este padrão. A região á ocupada por pequenas e médiaspropriedades rurais, situadas na faixa abaixo de 100 hecta-res (cerca de 96%), sendo que prevalece a faixa de zero adez hectares.20 A produção agrícola, nestas condições, contacom o agravante das dificuldades de mecanização, devi-das à topografia acidentada e à escassez de crédito e sub-sídios para o pequeno produtor rural; isto torna a produçãopouca competitiva em termos de mercado regional. Há quese registrar também o baixo preço dos produtos desses agri-cultores no mercado, o que tem contribuído para agravar asua descapitalização.

Soma-se a essas condições negativas o fato da

18 SCHIAVO, 1997, e TEIXEIRA,1998.

19 TEIXEIRA, 1998.

20 TEIXEIRA, 1998.

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região ter sido classificada como “área de preservaçãoambiental” subordinada à fiscalização do IBAMA, cuja legis-lação tem limitado sobremaneira a continuidade da lavou-ra ao impedir a queimada das capoeiras21 e o replantionessas áreas. Resulta que os agricultores, além de todas asdificuldades a que estão submetidos, estão também sujeitosa multas caso realizem o desmatamento dessas áreas parafins de plantio.

Neste contexto, não espanta que testemunhemosuma crise aparentemente insanável da produção agrícolanesta região, e uma mudança nos padrões de vida quetem efeitos sobre a lógica de reprodução patrimonial. Aocontrário da região de colonização italiana, no Rio Grandedo Sul, onde a agricultura se mantém competitiva no merca-do, produzindo rendimentos importantes para as suas famí-lias, na região de Nova Friburgo observa-se uma retraçãosignificativa da área em lavouras e um crescimento do nú-mero de residências secundárias e de estabelecimentos tu-rísticos, os quais vêm ocupando progressivamente áreasagrícolas. Como conseqüência, estas últimas têm o seu va-lor de mercado majorado de maneira importante.22

Juntamente com a expansão da exploração turísti-ca na região, a ampliação do mercado de trabalho fora daagricultura tem contribuído também para o abandono daatividade agrícola ou para a sua secundarização em ter-mos econômicos. Uma das consequências disto é a excessi-va fragmentação das terras, a qual torna os lotes insuficien-tes para a atividade agrícola. O recurso ao trabalho assala-riado nos estabelecimentos turísticos ou nas construções decasas para os turistas acelera a ruptura entre a estratégia demanutenção da unidade de produção agrícola (centrada napropriedade familiar) e os interesses individuais, os quais se diri-gem cada vez mais para a busca de uma remuneração indi-vidualizada fora da atividade agrícola. Disto resulta, a partir dosanos 90, uma queda significativa da população dedicada àagricultura, principalmente aquela que se ocupa com estaatividade em tempo integral, o que se reflete na retração acen-tuada da produção agrícola no mesmo período.23

A partilha desigual: os “herdeiros” e osA partilha desigual: os “herdeiros” e osA partilha desigual: os “herdeiros” e osA partilha desigual: os “herdeiros” e osA partilha desigual: os “herdeiros” e os“excluídos” entre os ‘colonos’ de Nova“excluídos” entre os ‘colonos’ de Nova“excluídos” entre os ‘colonos’ de Nova“excluídos” entre os ‘colonos’ de Nova“excluídos” entre os ‘colonos’ de NovaPádua (RS)Pádua (RS)Pádua (RS)Pádua (RS)Pádua (RS)

Numa sociedade sustentada pelo trabalho agríco-la, o principal bem transmitido é a terra. Esta divide-se entre,por um lado, a terra para exploração agrícola familiar e poroutro as demais terras, trabalhadas ou não, adquiridas aolongo do desenvolvimento do ciclo familiar. Na sociedadecolonial, a casa paterna recebia significação semelhante à

21 “Capoeira” é o termo utilizadoregionalmente para designar amata de recuperação da fertili-dade do solo em áreas anterior-mente plantadas por um perío-do longo. A queimada da ca-poeira para o replantio, técnicatradicionalmente praticada pe-los agricultores com poucos re-cursos para adubação, é hojeproibida pelos organismos deproteção ambiental.

22 TEIXEIRA, 1998.

23 TEIXEIRA, 1998.

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HERANÇA E GÊNERO ENTRE AHERANÇA E GÊNERO ENTRE AHERANÇA E GÊNERO ENTRE AHERANÇA E GÊNERO ENTRE AHERANÇA E GÊNERO ENTRE AGRICULGRICULGRICULGRICULGRICULTORES FTORES FTORES FTORES FTORES FAMILIARESAMILIARESAMILIARESAMILIARESAMILIARES

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maison descrita por Zonabend (1980) ou à casa analisadapor Narotsky (1988). Estruturavam-se neste espaço as rela-ções sociais de produção e de reprodução que orientavamas trajetórias de cada um dos membros do grupo doméstico.

Nas duas primeiras gerações das famílias de colo-nos,24 a sucessão e a herança da colônia cabiam normal-mente ao filho mais velho.25 A escolha do sucessor era legi-timada e publicitada à comunidade por ocasião do seucasamento. O padrão de família extensa, chegando a agre-gar até quatro gerações, era coerente com o sistema dereprodução social sustentado exclusivamente na explora-ção agrícola e na pouca mecanização. Conhecida como“família tronco,” esse tipo de organização familiar se ca-racterizava pela residência patrilocal de um dos filhos e dasua prole, pela residência neolocal dos demais, e pelaherança indivisível, na tradição européia. Na região coloni-al italiana do sul do país, a regra era manter a integridadeda exploração agrícola familiar, que deveria ser transmiti-da ao sucessor. Os demais filhos ou se instalavam em áreasvizinhas recém adquiridas ou seguiam carreira religiosa.Para que estas regras fossem respeitadas, a herança eranormalmente transmitida em forma de doação antes damorte do pai.26

A terceira geração enfrentou uma mudança nestepadrão de sucessão. A necessidade de comprar terras paragarantir o sustento de todos os filhos homens estendia a su-bordinação dos filhos à autoridade do pai mesmo após ocasamento daqueles. Todos eram obrigados a trabalharsob a tutela do pai até que fossem adquiridas terras paraque os demais herdeiros se instalassem com suas famíliasnuma nova unidade familiar e de produção. A ultimogeniturase instala como tendência na medida em que são os maisvelhos os primeiros a se casarem, ficando o mais novo comoresponsável pelos pais durante a velhice destes. Trata-se deum mecanismo de preservação da integridade da unida-de de produção e de ampliação do patrimônio familiar. Opai continuava contando, assim, com a mão-de-obra doconjunto dos filhos e com a totalidade da renda da explora-ção agrícola, acumulando recursos que iriam ser revertidosna instalação de todos os filhos homens que permaneces-sem na colônia e no dote das filhas. Tratava-se também deum mecanismo para assegurar a autoridade do pai comochefe da família por mais tempo. A subordinação dos filhose das noras à autoridade paterna persistia enquanto per-manecessem morando sob o mesmo teto, coisa que se trans-formou em fonte de conflitos inter-geracionais conforme asociedade se foi modernizando e criando espaços maisdefinidos de expressão de interesses e de divergências entreos indivíduos dentro da estrutura familiar.

24 Os primeiros colonos italianosda região estudada chegaramao Brasil em 1876.

25 Este princípio nem sempre érespeitado. O pai tem a autori-dade moral de “fazer o suces-sor”, escolhendo entre seus filhosaquele que melhor se adapta aesta posição (Cf. BOURDIEU, 1972,LAMAISON el alli, 1982, e SALITOT,1988a).

26 SEYFERTH, 1985, e WOORTMANN,1997.

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A terra atribuída a cada filho no momento do casa-mento era entendida como parte de sua herança (“adian-tamento da legítima”) e só era legalizada no momento dapartilha definitiva, realizada normalmente em vida pelo paiao atingir idade próxima aos 60 anos. Havia casos em que ofilho recebia com a terra a dívida de uma parte do seu valor,que deveria ser paga com o resultado da produção da sualavoura. O sucessor normalmente recebe o título de proprie-dade em usufruto enquanto os pais são vivos. A sua parte ésempre maior que a dos demais irmãos, uma forma decontrapartida dos gastos com a manutenção dos pais. Cons-tava da maioria dos atos de transmissão de herança daépoca a cláusula de revogação do direito à terra caso o filhonão cumprisse com este compromisso. Constava também arecusa formal das mulheres ao direito à herança da terraque o Código Civil Brasileiro (de 1916) lhes garantia.

Seguindo a prática costumeira, as mulheres recebi-am “a sua parte” em módica quantia de dinheiro e na formade enxoval, composto de roupas de cama, mesa e banho,utensílios domésticos e, por vezes, máquina de costura. Adoação da parte em dinheiro e o tamanho do enxoval de-pendia dos recursos disponíveis pela família. A prioridadeera dada àquele que era socialmente instituído como o res-ponsável pela manutenção da família: o sucessor. “Naquelaépoca não se dava terra (às mulheres) porque elas casa-vam bem. Seus esposos tinham terra, tinham o alicerce, en-tão eles (os pais) davam uma parte em dinheiro” (agricultor,70 anos).

Às mulheres restavam, portanto, três opções: o ca-samento, o ingresso na vida religiosa ou o celibato civil. Aocasar, a mulher ingressava na família do marido. Obede-cendo à regra de residência patrivirilocal, ela ia residir comos sogros no caso de se casar com o sucessor, submetendo-se, assim, à autoridade destes até ao fim das suas vidas. Asdemais se instalavam inicialmente também na casa dossogros até que os seus maridos recebessem o seu lote deterra e construíssem nele a casa para a nova família. O ca-samento implicava, assim, na extinção dos direitos da mu-lheres à terra e na sua reclusão ao espaço doméstico, dentroda lógica da simbiose que se estabelece entre mulher efamília e que determina a supremacia dos papéis de mãe eesposa sobre todos os demais.

A partilha, ainda que formalmente, devia sustentar-se numa lógica igualitária, obedecendo ao direito de igual-dade entre os herdeiros (os filhos homens, é claro). Embora sesubmetesse a um princípio aparentemente objetivo, na rea-lidade este tinha forte conteúdo valorativo: o direito à heran-ça da terra era dado àquele que nela trabalhasse. Assim,ficavam excluídos, por princípio, todas as filhas e os filhos

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homens que saíssem da “colônia” para estudar na cidade.Woortmann confirma esta mesma regra no seu estudo sobreherança entre colonos de origem alemã. Nas suas palavras,a herança é “conquistada.” Distinguindo-se dos teuto-brasi-leiros (e demais brasileiros) urbanos, para quem o direito àherança é definido pelo nascimento, como “direito natural,”entre os colonos de origem alemã e italiana o montante deherança que assume a forma legal de “adiantamento dalegítima,” concedida por ocasião do casamento, era defini-do de acordo com a contribuição de cada um como parteda força de trabalho familiar. Como lembra a autora, “osdireitos e deveres não são dados pela descendência; adescendência abre as possibilidades lógicas de acesso aosbens e status da família, porém não é um direito adquiridopelo indivíduo e seus siblings”.27

Neste sentido, podemos dizer que a esposa era tri-plamente excluída da herança da terra na região colonialalemã e italiana. Inicialmente, porque ela não é descen-dente do proprietário (o marido), depois porque o seu traba-lho na lavoura familiar era visto como “ajuda” inerente aodesempenho do seu papel de esposa e, finalmente, por-que ela não era tida como capacitada socialmente paraexercer o papel de chefe da unidade produtiva.28 Assim, aterra parte diretamente das mãos do marido para as dosfilhos. Com a morte do marido, a esposa entra na depen-dência do filho, numa posição de disputa com a nora, oque se converte em uma fonte inesgotável de conflitos. Aesposa não exerce, portanto, o seu direito de meeira domarido, tal como estabelece o Código Civil.29 Na ocasiãoda partilha das terras, ela apenas coloca a sua assinaturano ato de doação das terras aos filhos — o “adiantamentode legítima.”

Como filha de proprietário, ao se casar ela perdiadireito à herança da terra devido ao fato de sair da casapaterna e, portanto não contribuir, com o seu trabalho, paraa renda familiar, a qual era convertida, sempre que possível,em mais terras. Além disto, dentro do esforço de se manter aintegridade do patrimônio familiar, não se justificaria ceder àmulher parcelas de terras que acabariam integrando opatrimônio de outra família — a do marido. Assim, é social-mente esperado que as filhas “abram mão” da sua parteda herança através de ato em cartório por ocasião da rea-lização da partilha definitiva, evitando desta maneira qual-quer conflito futuro ou ameaça à propriedade dos irmãos.Alternativamente, elas vendem ao irmão sucessor a parteque lhes seria de direito. Esta venda tanto se pode realizarmaterialmente ou apenas simbolicamente, transformando-se o ato de compra e venda numa transação meramenteformal, sem conteúdo monetário real. A venda de terra entre

27 WOORTMANN, 1997, p. 175.

28 Esta invisibilidade da partici-pação feminina na esfera pro-dutiva é uma característica dasunidades de produção de cará-ter familiar que permanece atéhoje no meio rural brasileiro sobcondições de propriedade priva-da e em que o direito à terra écondicionado ao trabalho inves-tido na propriedade

29 O Código Civil Brasileiro reco-nhece três regimes de bens nocasamento: no regime de comu-nhão universal, todos os bens doscônjuges adquiridos antes oudepois do casamento passarãoa pertencer a ambos os cônju-ges, tendo cada um direito àmetade do patrimônio comum(meação); no regime de comu-nhão parcial, somente os bensadquiridos depois do casamen-to integram o patrimônio comumdo casal; finalmente, no de se-paração de bens cada cônjugeé dono exclusivo de todos os seusbens presentes e futuros.

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irmãos é um mecanismo que permite resguardar o título depropriedade no nome do irmão sucessor, favorecendo a re-gra de manutenção da integridade do patrimônio. No en-tanto, esta prática não é muito comum entre os colonos itali-anos, já que as mulheres só têm direito à terra em situaçõesexcepcionais, isto é, quando permanecem solteiras ou quan-do não têm irmãos. Como observa Moura, essas transaçõesentre irmãos são tidas como preferenciais e, nestes casos, asterras são cotadas por um preço inferior ao preço de merca-do.30 Na comunidade estudada por Moura, ao sul de MinasGerais, a mulher herda uma parcela de terra mas dificilmen-te irá explorá-la já que, ao se casar, irá residir no lote marido.

Filhas mulheres nunca recebem parcelas deterra do pai, já que este as provê de todo o “sustento,”abrigadas como estão sempre sob o teto da ‘casa de-morada’ dos pais. Também não recebem ‘casa demorada’ dentro da terra paternal ao se casar, já quesão os seus maridos (e neste quadro estão incluídos ossogros) que devem pôr em prática a regra. Avirilocalidade resulta ali da posição específica da mu-lher face à produção e à propriedade da terra (a mu-lher não trabalha a terra, portanto não será cabeçadum empreendimento agrícola). E sem isto não se justi-fica que seja proprietária de uma parcela.31

O dote atribuído às filhas por ocasião do casamen-to era uma maneira de compensá-la pela desistência dasua parte da herança em terra. Mas sob a justificativa deque ao se casar estaria protegida economicamente pelomarido, o valor do dote era sempre inferior ao valor recebidopelos filhos como herança. Além disto, como a mulher nor-malmente só recebia bens móveis (utensílios e, nalguns ca-sos, dinheiro) estes eram incorporados imediatamente aopatrimônio da nova unidade familiar, sob a administraçãodo marido.

Celibato e herançaCelibato e herançaCelibato e herançaCelibato e herançaCelibato e herança

Num texto que se tornou referência clássica para osestudos da reprodução social camponesa, Bourdieu (1962)observa que o celibato masculino constitui um dos mecanis-mos a que recorre a família camponesa para preservar aintegridade da propriedade territorial. No sul do Brasil, e so-bretudo entre os colonos de origem italiana — de forte tradi-ção religiosa católica — o celibato religioso e o leigo, de umdos filhos, é uma prática ainda recorrente na maioria dasfamílias.

Como mecanismo de diminuir a pressão dos her-deiros sobre o patrimônio familiar, no caso de famílias com

30 MOURA, 1978.

31 MOURA, 1978, p. 54.

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grande número de filhos homens, é comum que ao menosum dos filhos seja orientado a seguir a carreira religiosa. Aoentrar para o seminário, o rapaz perde o direito à herança daterra por dois motivos: porque recebia a sua parte em formade estudos e porque não havia trabalhado na terra. Estalógica regula até hoje a transmissão do patrimônio familiaràqueles que optaram por estudar e se capacitar para umaprofissão fora da agricultura, coisa que, dentro do códigocostumeiro, lhe furta também qualquer direito sobre a partici-pação na partilha definitiva da terra após a morte do pai:

Não [eu não herdei terra], porque eu saí daqui[da colônia]; eu troquei a minha... eu diria assim, a mi-nha herança eu troquei pelo estudo. Então eu ganheiuma parte do terreno em Caxias do Sul (na cidade). Euganhei um estudo pago até me formar na Faculdade.Então a minha “terra” foi essa que ganhei da família. Senós ficássemos em doze (irmãos) aqui, repartindo umpedaço prá cada um... ia ficar pouco prá todo mun-do. Então, eu disse, “me paga o estudo, me ponha naFaculdade e eu não preciso mais da terra... (advoga-do, filho de colono)

Sabe, a minha herança eu renunciei, não quisnada, porque sabe, nós éramos dez irmãos e eu desdea idade pequenininha saí de casa e fui estudar.... Meuspais, quando foi a hora de assinar [a transmissão daterra], quando eles distribuíram a herança, eles me per-guntaram: “Tu queres alguma coisa, como as outras?”.Eu disse. “Não.” Não porque eu achasse que eu rouba-va dos meus irmãos, “não”, é porque eu nunca traba-lhei... (professora aposentada).

A formação religiosa, além de ter sido altamente valo-rizada por esta sociedade, era a única formação profissionalalternativa disponível para os filhos de colonos até aos anos 50.As escolas religiosas da região, tidas como de melhor qualida-de, intermediavam o ingresso no seminário ou no convento.

Enviar filhos para o convento era uma prática queobedecia a finalidade principal de impedir a fragmenta-ção excessiva do patrimônio familiar, seja pela obrigaçãoda partilha da herança, seja pelo dote32 a que as moçastinham direito ao se casar.33 Se por um lado a prole numero-sa era desejada, na medida em que se convertia em mão-de-obra para o trabalho agrícola e doméstico, por outroameaçava a integridade do patrimônio e desencadeavacrises de reprodução social.34

O ingresso no convento também exigia um doteque funcionava como um distintivo simbólico no interior das

32 Não foi encontrada a referên-cia ao termo “dote” para desig-nar os bens doados pelos pais àfilha na ocasião do seu casa-mento.

33 GROSSI, 1995. Esta mesmaautora observa uma coincidên-cia entre o período de esgota-mento dos lotes coloniais para areprodução social da segundae terceira gerações de colonos(1920-40) e o crescimento do nú-mero de conventos e indústriastêxteis na região de Itajaí, emSanta Catarina. Tanto um comooutro absorviam mão-de-obraexcedente das famílias campo-nesas.

34 Em estudo sobre as estratégiasde reprodução camponesa naParaíba, Garcia aponta um pa-radoxo que consiste na valoriza-ção da prole numerosa, sobretu-do de homens, como condiçãopara o aumento da produção eacumulação de recursos e apossibilidade de pulverizaçãodesse patrimônio pelo processode herança na geração seguin-te (GARCIA, 1989). O mesmo pa-radoxo é observado por outrosautores em outras regiões do país.Ver, entre outros, MOURA, 1978,para Minas Gerais, e GROSSI,1995, para Santa Catarina.

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comunidades camponesas, já que variavam de montantesegundo as posses da família e o status do convento.35 Asfamílias mais pobres pagavam as despesas da formaçãoreligiosa com doações de parte da produção e com o tra-balho do próprio filho ou filha no convento. No entanto, em-bora a “opção” pela vida religiosa tivesse um conteúdo eco-nômico forte, seria empobrecedor restringir o significado des-sa prática a tal conteúdo. Como sugere Grossi, há que seconsiderar também a existência de um imaginário social al-tamente favorável a essa “opção,” cuja compreensão exigeestudos mais aprofundados.

Também o celibato leigo feminino é ainda muitofreqüente entre os colonos de origem italiana. Nas geraçõespassadas, a presença de um padre ou uma freira entre osfilhos era quase uma norma; na atualidade, como aponta abibliografia e os dados desta pesquisa, em praticamentetodas as famílias de colonos há uma filha que não se casou.Suas histórias individuais são diversificadas, mas apresen-tam um elemento comum: a esperança do casamento ou,no caso das mais velhas, um certo ressentimento por nãoterem encontrado um marido.

A situação dessas mulheres é extremamente peno-sa apresentando alguma semelhança com a condição doscelibatários camponeses franceses descrita por Bourdieu(1962). Todas elas exerceram ou exercem um papel funda-mental na administração doméstica. Pertencentes a famíliasde prole numerosas, essas mulheres auxiliam (ou mesmo subs-tituem) a mãe nas tarefas domésticas e participam igual-mente das tarefas produtivas junto com o pai e os irmãos.Sendo embora o casamento, como dissemos acima, umfator de exclusão da mulher do mundo do trabalho e daprodução, por outro lado lhe atribui uma posição de poderrelativo dentro da unidade doméstica, e o reconhecimentode uma status social. O celibato leigo, pela sua parte, permi-te o reconhecimento e a visibilidade da participação damulher na produção, mas tem a contrapartida de lhe sub-trair qualquer espaço de poder dentro da esfera doméstica,atribuindo-lhe o status social mais inferior na hierarquia fami-liar, próximo ao da empregada doméstica. A mulher solteiraé, assim, destituída de reconhecimento social.

Após a morte dos pais, era comum que filha “solteiro-na” permanecesse exercendo as mesmas funções de auxiliarna nova unidade doméstica constituída pelo irmão-sucessor,o que normalmente gerava conflitos com a cunhada e provo-cava a sua retirada dessa unidade doméstica e no seu des-locamento para outras casas — geralmente de primos ousobrinhos recém-instalados na vida familiar. Mais recentemen-te, a migração para a cidade é uma opção que lhe abre apossibilidade de ingressar no mercado de trabalho mais qua-

35 GROSSI, 1995. Infelizmente, osdados que dispomos sobre esteassunto ainda são insuficientespara uma análise mais deta-lhada do celibato religioso entrefilhos de colonos.

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lificado, conforme o seu grau de instrução.No entanto, como o que confere direito a terra é tê-

la cultivada, é justificável que as celibatárias recebam umapequena parcela de terra pela sua participação na lavou-ra familiar e nas tarefas domésticas, o que lhe garante umadose de segurança para enfrentar o futuro após a morte dospais. Como não lhes é reconhecido o direito de exercer opapel de chefe da unidade produtiva, a mulher recebe sem-pre a menor e a pior parte.

Da partilha eu ganhei aquele terreno em NovaPádua (na sede municipal)... Meu pai ficou com essacasa mais esse parreiral de quase 2 hectares; o terrenotem 3 hectares e pouco. Daí, como o meu irmão ga-nhou bastante terra e um terreno bom no plano, entãomeu pai disse que depois que ele e a mãe morrerem,essa terra vai ficar metade para min e metade para omeu irmão né... mas só se eu não casar. Agora, se eucasar, então muda... Mas isso foi discutido em casa só.Tu sabes, né, porque realmente eu herdei mais que asminhas irmãs... (agricultora, solteira, 45 anos).

Como já se sublinhou, o processo de transmissãodo patrimônio é sempre traumático e configura um momen-to em que a autoridade patriarcal pode ser questionada.Por este motivo, é um assunto que deve ser tratado comreserva mesmo no interior do grupo familiar; os descontenta-mentos devem ser reprimidos, como pode ser observado nodepoimento acima. Os conflitos de que se tem notícia sãonormalmente manifestados pelos “de fora”, ou seja, os gen-ros ou noras que, em situações excepcionais, reclamam osdireitos iguais com base no Código Civil. Estes casos, vistoscomo motivo de vergonha para a família, solucionam-seatravés de uma negociação interna, evitando-se o recursoà justiça. No entanto, alguns depoimentos coletados apon-tam para uma mudança nesta prática.

Recorrendo à lógica em vigor, segundo a qual têmdireito à terra própria para cultivo aqueles socialmente aptosa assumirem o papel de chefe da unidade produtiva, umajovem viúva reclama o direito de herdar terras produtivas dopai de seu falecido marido. Esta reivindicação, aparente-mente absurda segundo a lógica dos direitos consuetudi-nários locais, pode sustentar-se em dois fatores: no fato deque ela se manteve na casa do sogro assumindo as tarefasdomésticas e participando da produção familiar, tal comouma “celibatária”, e pelo fato de que ela é a representantelegal dos herdeiros do seu marido — dois filhos homens. Alémdisto, ela necessitaria de meios de produção para se man-ter a si e aos filhos após a morte do sogro. Enfrentando rea-

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ções veladas tanto dos cunhados e cunhadas como dopróprio sogro, esta viúva acaba vencendo a demanda, re-cebe uma boa parcela de terra e, o que é mais controverti-do, continua residindo com os filhos e o novo marido naantiga casa da família do sogro. Para evitar constrangimen-tos e novos conflitos, o sogro, o cunhado (sucessor) e a suaesposa mudam-se para uma casa nova, recém-construída,em frente da antiga. Esta situação excepcional, observadadurante o trabalho de campo, pode ser reveladora de mu-danças em curso na definição das identidades de gêneroem decorrência das transformações recentes nas posiçõesocupadas pela mulher nesta sociedade, sobre as quais tra-taremos mais tarde.

Novas alternativas à agricultura Novas alternativas à agricultura Novas alternativas à agricultura Novas alternativas à agricultura Novas alternativas à agricultura e mu-e mu-e mu-e mu-e mu-dança no padrão de herançadança no padrão de herançadança no padrão de herançadança no padrão de herançadança no padrão de herança

Como tentamos demonstrar até aqui, o sistema deherança sofre modificações ao longo do tempo. No entan-to, é importante registrar que na chamada “colônia italiana”do Rio Grande do Sul estas mudanças não são percebidascomo algo que foge à tradição, tal como ela era praticadapelos antepassados. A tradição é manipulada, modificadae até mesmo negociada, mas ainda é tida como a princi-pal legitimadora das práticas de transmissão da herança ede escolha do sucessor entre os agricultores descendentesde migrantes italianos. É certo, no entanto, que essa “tradi-ção” está sendo colocada em cheque pelas gerações maisjovens, principalmente pelas mulheres, como já nos referi-mos acima e voltaremos a detalhar mais adiante.36

As estratégias descritas atrás funcionaram com cer-to sucesso sobretudo nas três primeiras gerações, emboraalguns dos filhos mais jovens da segunda geração tenhamsido levados a buscar outras alternativas. A escassez de ter-ras na região levou-os a migrarem para o estado de SantaCatarina ou a ingressarem no mercado de trabalho urbano.O desenvolvimento da atividade industrial em Caxias do Sul,nos anos 50 e 60, reforça a tendência à migração dos filhosexcluídos da herança quando, na maioria das unidadesdomésticas, ainda numerosas, apenas um ou no máximodois filhos permaneciam na atividade agrícola.

A diminuição de terras disponíveis na fronteira agrí-cola, a mecanização iniciada nos anos 60, diminuindo anecessidade de mão-de-obra na produção familiar, e aforça dos valores urbanos sobre os jovens atraíram-nos parao trabalho assalariado, quebrando assim com a identidadeentre a unidade familiar e a unidade produtiva. Esta novarealidade introduz mudanças no padrão de sucessão. Sãoos filhos mais velhos que saem de casa para estudar e in-

36 A situação é totalmente distin-ta na região de Nova Friburgo,onde não existe o recurso à “tra-dição”, seja alemã ou suíça,como legitimadora de práticasculturais.

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HERANÇA E GÊNERO ENTRE AHERANÇA E GÊNERO ENTRE AHERANÇA E GÊNERO ENTRE AHERANÇA E GÊNERO ENTRE AHERANÇA E GÊNERO ENTRE AGRICULGRICULGRICULGRICULGRICULTORES FTORES FTORES FTORES FTORES FAMILIARESAMILIARESAMILIARESAMILIARESAMILIARES

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gressar no mercado de trabalho urbano, restando ao maisnovo a responsabilidade de dar continuidade ao projetofamiliar, centrado na manutenção da integridade dopatrimônio familiar e na exploração agrícola.

O estímulo da família para que a mão-de-obra ex-cedente saísse da “colônia” exercia forte pressão sobre osfilhos não-sucessores. No entanto, apesar das privações a queestavam sujeitos na cidade, os filhos dos colonos não viverama pressão para sair da casa paterna como uma “exclusão” doprocesso de herança. Nos primeiros tempos de migração dojovens para a cidade, o abandono da casa paterna era vistocom naturalidade, como um dever decorrente da submissãodos indivíduos aos interesses familiares. Mais tarde, esta situa-ção será invertida: dependendo das condições econômicasda propriedade familiar, permanecer na “colônia” passará arepresentar um fator de exclusão social.

A migração para os centros urbanos passa a seracompanhada da valorização do estudo e da atração porvalores culturais e materiais sustentados no crescimento in-dustrial da cidade de Caxias do Sul. O estudo passa a ser,então, uma nova forma de herança: um investimento nofuturo como um caminho alternativo à agricultura.

Eu tenho 41anos e saí com 11 anos, e se eu teopinar, te disser algo do porquê, a única coisa que eutenho para te falar é que tinha gente da família aqui,tinham os tios que saíram. Saí por convite por família,não por mim. Não, porque na minha época eu nãotinha opinião formada ainda, tinha 11 ou 12 anos... nãotinha opinião formada ainda. A gente saiu para buscarum estudo, mesmo nossos pais, nossa família influen-ciou muito pra que a gente saísse para estudar, paraque tivesse estudo, tivesse uma formação. Não com ointuito de sair da terra mas para ter uma formação. Sóque evidentemente com a idade que eu tenho, com aexperiência... todos que saíram não voltaram porque aprópria cidade te oferece mais coisas, ela te oferecelazer (...) Hoje não! Hoje se tivesse uma terra para euvoltar nas condições que eu tenho hoje eu até voltaria.(pequeno empresário)

As mulheres só ingressam neste movimento migra-tório uma geração mais tarde. Ao ir estudar na cidade, elasperdiam o direito à herança da terra, mesmo se não se ca-sassem. Recentemente, em decorrência da pressão dosvalores que sustentam os direitos da mulher na sociedadeurbana, os pais, dependendo da situação econômica,doam lotes ou apartamentos na cidade para as filhas quemigraram.

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A oferta de emprego urbano e a valorização doestudo como meio de ascensão social têm efeitos sobre adesvalorização do trabalho agrícola. Ocorre a flexibilizaçãodo padrão de herança: não há mais uma regra a seguir, efica em casa aquele que tiver “mais aptidão” para a agricul-tura e “menor vocação para os estudos.” Idealmente, aindaé o mais novo quem deve ficar, mas esta regra é abandona-da face aos projetos individuais e às aptidões pessoais;abrem-se portanto espaços de negociação entre filhos epais. É claro, no entanto, que esta flexibilidade tem um limite,que é dado pela necessidade de haver um sucessor. Nocaso de invalidez ou morte do pai, ou do seu sucessor, hásempre um filho que retorna à casa para dar continuidadeao projeto familiar de manter a exploração agrícola.

A partir da década de 70, conforme os vínculos coma cidade se foram estreitando, as transformações no interiorda família começaram a ser notadas. Famílias de 3 ou 4gerações deram lugar a famílias nucleares, ainda que atéhoje um filho sempre seja escolhido como responsável pelocuidado dos pais na velhice. No entanto, observa-se atual-mente a tendência à neo-localidade do jovem casal suces-sor, o que pode ser entendido como uma decorrência dasmudanças nos valores que conformam as identidades degênero. Com o acesso ao mercado de trabalho, seja comoprofessora primária, balconista ou funcionária da prefeitura,as mulheres conquistaram um maior espaço de individuaçãotanto na esfera pública como na doméstica. Consequente-mente, a resistência das noras a se subordinarem à autori-dade das sogras aumenta. A tendência recente à neo-loca-lidade vem, assim, resolver os conflitos inerentes à coabita-ção de gerações distintas. Seguindo esta nova orientação,até mesmo o filho escolhido como o sucessor constrói a suacasa própria ao lado da casa dos pais, mantendo destamaneira a independência da administração doméstica epreservando a autonomia da nora em relação à sogra.37

Atualmente, são os velhos a residir na casa dos fi-lhos, e a ajudá-los. Com a mecanização, o filho sucessorassume mais rapidamente a posição de chefe da unidadeprodutiva, deslocando o pai na hierarquia familiar. Estas ob-servações nos permitem sugerir que a destruição das anti-gas casas e a sua substituição por construções que seguemos padrões arquitetônicos urbanos é uma atitude densa designificados simbólicos, os quais reforçariam esta mudançanos padrões de comportamento e na estrutura familiar.

Uma hipótese explicativa seria a de que as relaçõesfamiliares altamente hierarquizadas e com forte submissãofeminina são coerentes com um padrão de reprodução so-cial sustentado na primazia dos interesses familiares — leia-se na manutenção da unidade produtiva agrícola e da pro-

37 A mesma prática foi observa-da entre agricultores dos Alpesfranceses (cf. CARNEIRO, 1998a)

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priedade familiar — sobre os individuais, em decorrênciadas necessidades impostas pelas condições de produçãono passado. Esta situação, como já enfatizamos, estaria emtransformação, com conseqüências para as relações soci-ais de gênero.

Modernização, herança e condição deModernização, herança e condição deModernização, herança e condição deModernização, herança e condição deModernização, herança e condição degênero: mudanças e continuidadesgênero: mudanças e continuidadesgênero: mudanças e continuidadesgênero: mudanças e continuidadesgênero: mudanças e continuidades

A unificação dos mercados econômico e simbólicoem âmbito nacional, decorrente da maior proximidade en-tre os modos de vida urbano e rural e da ampliação dasatividades não-agrícolas no campo,38 vem produzindo umatransformação no sistema de referência do mundo rural. Opapel da família como instância privilegiada de mediaçãoentre o indivíduo e a sociedade é neutralizado, abrindo-seespaço para estratégias concorrentes e antagônicas entreo indivíduo e a família, o que, sem dúvida, surte efeitos nasrelações sociais de gênero e na posição da mulher na soci-edade rural. O enfraquecimento da autoridade patriarcaldecorrente da própria crise do sistema de reprodução, e oestreitamento das relações entre o campo e a cidade, abremnovos espaços à socialização feminina. As mulheres já nãovêem no casamento ou na atividade religiosa as únicasfontes de inserção social. Cada vez mais, elas buscam for-mação profissional qualificada para o mercado de traba-lho urbano. Na geração anterior, esta formação ficava limi-tada ao curso secundário, já que o mercado de trabalhofeminino ainda era restrito às profissões de auxiliar de escritó-rio ou de comércio. Algumas dessas moças eram levadas atrabalhar como empregadas domésticas em residênciasde classe média urbana, para poderem sustentar, elas pró-prias, os seus estudos. 39 Em pesquisa realizada entre alunosda escola secundária da região das colônias italianas, ob-servou-se que um número maior de filhas de agricultorestem intenção de seguir formação universitária e de deixar alocalidade de origem. Num universo de 28 filhas de agricul-tores, apenas 32% apontaram a perspectiva de permane-cerem na “colônia”, sendo que 85% das moças e 60% dosrapazes revelaram a intenção de seguir carreira universitá-ria. A crise sucessória também foi notada: apenas 46% dosfilhos de agricultores tencionavam continuar na atividadeagrícola, enquanto somente 7% das filhas aceitavam a idéiade permanecer na “colônia”, ou seja, casar com agricultor.

Estes dados, ainda que de um universo reduzido,apontam para a mesma tendência observada em outraspesquisas no Brasil e na Europa.40 Para as moças, a vida nalavoura se torna cada vez menos atraente quando se vis-lumbra a reprodução do papel da esposa tradicional. Nes-

38 SILVA e GROSSI, 1998.

39 Uma pesquisa realizada nooeste de Santa Catarina revelouum processo de “masculinização”do meio rural, em decorrência doviés masculino dos processossucessórios associado à moder-nização da família de agriculto-res que abrem caminho à mi-gração de moças (ABRAMOVAYet alli, 1998). A amplitude desteprocesso pode ser observadapelos dados para a AméricaLatina, que apontavam um ex-cedente de 5,2 milhões de ho-mens em relação às mulheres nazona rural, em 1995 (CEPAL, 1995citado por ABRAMOVAY et alli,1998).

40 ABRAMOVAY et alli, 1998, eCARNEIRO, 1998a.

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te sentido, para encontrar uma esposa o jovem agricultortenta incorporar as mudanças nos papéis desempenhadospelas mulheres na estrutura familiar, o que implica modificaro próprio sistema de produção através da introdução deatividades econômicas sob a responsabilidade das mulhe-res.41 A questão que permanece é até que ponto estas no-vas dinâmicas nas relações sociais de gênero podem convi-ver com a forma de organização de produção familiar.

Contudo, é importante ressaltar que estas mudan-ças não foram totalmente concluídas. Valores fundados naidentidade familiar e na etnicidade oferecem resistência aoprocesso de individuação no interior da família e à conse-qüente transformação das relações sociais de gênero no inte-rior do grupo doméstico. Este processo ambíguo e contraditó-rio apresenta, ao mesmo tempo, uma face moderna, comênfase na elaboração dos direitos individuais e outra, conser-vadora, onde o que prevalece são os valores que reforçam osentimento de pertença à família e à localidade. Neste senti-do, entende-se que a intenção (ou desejo) de permanênciana região de origem (a colônia) aparece, na maioria dos ca-sos, associada a um projeto de profissionalização próprio, in-dependente da atividade agrícola, o que explica a incidên-cia de moças que se preparam para cursar o terceiro grau.Profissões liberais como a odontologia, por exemplo, permitiri-am a combinação de um projeto individualizante com asgarantias e proteção oferecidas pelo núcleo familiar.

No entanto, a diversificação de uso da terra promo-vida por um processo de complexificação do mercado deprodutos agrícolas e de valorização da natureza tem abertonovas perspectivas de trabalho para as mulheres. Instala-ção de pousadas voltadas pra o lazer de camadas médiaurbanas ou de pequenas oficinas de “produtos da fazenda”(queijos, geléias e doces de fruta, massas caseiras...) atuamno sentido de contribuir para a construção de uma identida-de feminina não mais sustentada na simbiose entre mulher eesposa de agricultor. Esta nova realidade, sem dúvida, temrepercussões sobre o processo de herança, na medida emque a terra não está mais associada exclusivamente à ativi-dade agrícola, e em que se amplia o espaço de individua-lização dentro do núcleo familiar.

Esse processo é particularmente visível entre as mu-lheres que permaneceram celibatárias justamente em de-corrência de imposições da estrutura familiar tradicional. Asnovas alternativas de trabalho, independentes do casamen-to, e os novos valores sobre os papéis de gênero aguçam osentimento de direito à herança da terra, e estimulam asmulheres solteiras a reclamarem pela sua parte.

41 O recurso à pluriatividade foiuma das soluções encontradaspelos agricultores franceses paraevitar o celibato (cf. CARNEIRO,1998a).

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PPPPPararararartilha generalizada: a repartilha generalizada: a repartilha generalizada: a repartilha generalizada: a repartilha generalizada: a repartição datição datição datição datição dapobreza entre agricultores de Novapobreza entre agricultores de Novapobreza entre agricultores de Novapobreza entre agricultores de Novapobreza entre agricultores de NovaFFFFFriburgoriburgoriburgoriburgoriburgo

Ao contrário da situação observada entre os colo-nos de origem italiana do sul do país, a regra que predomi-na na transmissão patrimonial em dois distritos rurais da re-gião serrana do Estado do Rio de Janeiro é a da partilhaigualitária generalizada.

Observam-se aí dois processos. O que é definidolocalmente como herança só ocorre após a morte do as-cendente (pai ou mãe) e é dividido de forma tida comoequivalente entre todos os irmãos, independentemente dacondição de gênero.42 Ainda que alguns relatos revelemuma distribuição diferenciada de acordo com as condiçõese as necessidades de cada um, não foi registrada nenhu-ma reclamação dos informantes quanto a possíveis injusti-ças na partilha da herança da terra, com exceção de umproprietário bastante idoso que se referiu à disputa entre osfilhos pela parte que lhes caberia. Para evitar que a criseeclodisse, o pai confirmou a regra ao decidir que não reali-zaria a partilha em vida. Esta prática pode ser interpretadacomo um meio de garantir a sua manutenção na velhice,por parte dos filhos. Associado a este mecanismo encontra-se o segundo procedimento de transmissão de proprieda-de: a parceria entre pais e filhos, que só ocorre sob algumascondições determinadas.

Ao se casarem, dependendo do tamanho da pro-priedade, todos os filhos que permanecerem na atividadeagrícola recebem, em usufruto, uma parte de terra, delimita-da informalmente pelo pai, na qual deverão construir umacasa e explorar a agricultura de maneira a retirar dela osustento para a sua unidade familiar em formação e pagarum terço da produção aos pais. Estabelece-se então umarelação de parceria entre filhos e pais nos mesmos moldesda que rege a relação entre proprietário e arrendatário não-parentes. Aos filhos homens, de acordo com o tamanho dapropriedade familiar, é concedida uma parcela de terraantes mesmo de se casarem, de maneira a obterem rendi-mentos para construírem as suas futuras casas e formar umfundo de instalação com a parte da produção que lhescabe. Mas nestes casos, a dívida para com o pai é de me-tade da produção. Sendo assim, cada propriedade podeabrigar várias pequenas unidades de produção constituí-das pelos filhos e suas famílias além da unidade de produ-ção principal formada pelo pai e seus filhos solteiros, quealternam o trabalho na sua roça individual e na coletiva.43 Aparceria pode ser entendida também como uma forma deremuneração individualizada do trabalho do filho, o que

42 Não foi possível obter dadosem registros cartoriais que confir-massem esta informação.

43 A concessão de uma roça in-dividual dentro ou fora da pro-priedade familiar é uma práticacomum entre agricultores famili-ares em diversas regiões do país,funcionando como uma fonte derenda individualizada, sem pre-judicar a lavoura familiar, quese impõe como prioritária em ter-mos de trabalho, e tambémcomo espaço de socializaçãodo jovem para a futura posiçãode chefe de unidade produtiva.

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certamente contribuiu para a ruptura da identidade entrefamília e produção.

Nestas condições, o novo casal se estabeleceráonde houver melhores condições. Caso o rapaz não tenhaherdado terra, é-lhe dada a oportunidade de se instalar napropriedade do sogro. A casa paterna normalmente cabeao último a se casar, independentemente do gênero, já queeste ou esta permaneceu cuidando dos pais.

A propriedade da parcela recebida em usufruto éconfirmada após a morte do pai, quando se observa o direi-to de meação do cônjuge sobrevivente. Esta parcela serátransmitida legalmente aos filhos após a sua morte, mesmono caso em que a esposa sobreviva ao marido.

É interessante observar que nesse sistema de repro-dução social a prática de inventário resulta no respeito aosdireitos igualitários de todos os herdeiros em obediência aoCódigo Civil Brasileiro, cabendo acertos entre irmãos, quan-do necessário. Em geral, os filhos que migraram não recla-mam a sua parte em terra e aceitam vendê-la, preferencial-mente, a um dos irmãos.

Nós não dividimos ainda, só fizemos doação,por enquanto tá tudo global. Eles fazem lavoura, dão aterça prá nós, também trabalham em terreno de outraspessoas porque nosso terreno não é suficiente prá tantagente. (...) Aí, quando a gente morrer cada um vai ficarcom o seu pedaço. (...) Então cada um já fica sabendoonde é o seu lugar, enquanto a gente viver é dono detudo, tem usos e frutos, depois então cada um já ficacom o seu lugar prá não dar problema. (...) Todo mun-do recebe o mesmo tamanho, ninguém vai ser privilegi-ado. Eu disse que esta casa vai ficar com o meu filhoque é mais pobre. (agricultora, mãe e esposa de agri-cultores)

Ao contrário do que ocorre entre os colonos do Sul,aqui não são acionadas estratégias de manutenção daintegridade do patrimônio, sendo o sistema igualitário deherança responsável pela fragmentação excessiva da ter-ra. Isto gera uma situação de ameaça estrutural à reprodu-ção social e à manutenção das explorações agrícolas. Nes-sas condições, torna-se freqüente o recurso ao arrendamen-to de terras complementares de terceiros ou a atividadesnão-agrícolas. Estas duas características distinguem ocampesinato nesta região como incapaz de se manter ex-clusivamente na agricultura dentro das condições econômi-cas atuais.44

Este sistema de parceria entre parentes tal como foidescrito acima só funciona em comunidades onde há uma

44 TEIXEIRA, 1998.

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forte identidade entre o território físico — a localidade — e asfamílias que o habitam. Tal identidade atualiza-se por umaintrincada rede de relações de parentesco, reforçadas poralianças matrimoniais e sobretudo pela prática daendogamia territorial, o que possibilita a permanência damulher na propriedade paterna, vista como uma exceçãoà regra.45 O parentesco é, portanto, uma pré-condição parao acesso à terra e para a regulação dos direitos e deveresde cada indivíduo em relação ao trabalho e à família. Nestesentido, o sistema de parceria, ao preservar o controle daterra por uma determinada família e reforçar, assim, os vín-culos simbólicos entre terra/localidade e família, parece res-ponder muito mais à defesa dessa comunidade frente aameaças externas, cada vez mais presentes, do que à inte-gridade do patrimônio familiar. Ao se tentar manter os filhosvinculados à comunidade, nos moldes acima descritos,aumenta-se o contigente de pessoas comprometidas coma defesa da propriedade e, consequentemente, com a pre-servação dos hábitos culturais de uma localidade. Aindaque a propriedade tenha sido fragmentada, a identidadeatribuída pelo nome familiar é mantida dentro de um siste-ma de referência simbólico que associa o nome de família auma dada localidade. Nestes termos, coíbe-se qualquer tran-sação de terra com “pessoas de fora.”

A bibliografia sobre transmissão do patrimônio emsociedades camponesas européias tem enfatizado os es-forços empreendidos pela família para garantir a reprodu-ção social dos seus filhos sem ameaçar a integridade dopatrimônio familiar. A família empenharia todos os esforçospossíveis no trabalho de inculcação de valores aos demaismembros do grupo familiar, no sentido de legitimar a institui-ção de um herdeiro único e a exclusão dos demais, comofoi observado nas colônias alemãs e italianas do sul do Bra-sil. No entanto, esta prática não foi observada entre agricul-tores, também de origem européia (alemã e suíça), habi-tantes da região serrana do estado do Rio de Janeiro.

Prevalece aí a partilha igualitária, onde homens emulheres têm os mesmos direitos. Resta, portanto, entendera lógica deste sistema.46 Cabe investigarmos a lógica daprática da partilha generalizada, que tem produzido situa-ções de incompatibilidade entre o sistema de transmissãoda terra e a reprodução social.

Um processo semelhante de partilha igualitária foiobservado por Seyferth entre colonos de origem alemã emSanta Catarina, onde a fragmentação da propriedade en-tre os herdeiros aparece associada ao recurso ao trabalhoassalariado, dando origem à categoria social de duploativosou operário-camponeses. Ali, contudo, ao contrário do quefoi observado entre os camponeses de Nova Friburgo, no

45 SCHIAVO, 1997 e 1998.

46 Nossos dados são limitados àpesquisa de campo. Não foipossível encontrar informaçõessobre o transmissão no decorrerda história. A desorganizaçãodos arquivos locais não permitiueste tipo de análise, ainda queum levantamento sobre o proces-so de transmissão desde a pri-meira geração de algumas fa-mílias tenha sido ensaiado.

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estado do Rio de Janeiro, a partilha da terra só se realizaentre os herdeiros homens, sendo a mulher excluída da he-rança da terra. Quando a partilha é realizada após a mortedo pai, as moças são levadas, por obrigação social, a ven-der a sua parte a um ou mais irmãos por ocasião do inventá-rio. Esta venda geralmente não resulta em rendimento paraa mulher, já que é regida pela necessidade de legalizar atitulação da terra ao irmão, excluindo-se, portanto, o valormonetário da transação.

A autora aponta a aproximação do mercado detrabalho urbano e a insuficiência de terras como alguns doselementos explicativos desta prática. Apesar da regra dapartilha compartilhada, a subdivisão da terra é desigual,favorecendo um dos filhos, o qual herda a unidade de pro-dução enquanto que aos demais cabe apenas, a título deindenização, uma pequena parcela para construir a suamoradia. “Os arranjos de herança, então, dependem dasestratégias reprodutivas desse campesinato, entre elas a co-locação de alguns filhos no mercado de trabalho urbano”.47

Portanto, nestas condições de escassez de terras, aherança igualitária ou compartilhada se submete a um prin-cípio maior que é o da manutenção de ao menos um filhona condição de camponês, o que implica a obediência deduas regras: a exclusão das filhas como herdeiras e a distri-buição desigual de terras entre os demais filhos homens. Acolônia permanece portanto indivisível como unidade deprodução familiar, sob a administração de um dos filhos. Oacesso à terra pelos demais, ainda que insuficiente paragarantir uma reprodução com base na produção agrícola,é uma condição necessária para assegurar aos filhos exclu-ídos a identidade de colono/camponês, mesmo que traba-lhem em fábrica.

Em contextos nos quais a situação fundiária é umimpeditivo da reprodução social do campesinato, a partilhaigualitária é uma prática associada ao recurso a outros meca-nismos de reprodução social, como o trabalho assalariado,atividades não agrícolas, ou mesmo o sistema de parceria.

Retornando à situação observada na região serra-na do Estado do Rio de Janeiro, vimos que a partilha igualitá-ria está articulada ao sistema de parceria, seja entre mem-bros de uma mesma unidade familiar (pai/sogro e filhos) sejaentre “estranhos.” Diferentemente do sistema de herançacompartilhada descrito por Seyferth, o modelo posto em prá-tica na região de Nova Friburgo inclui a mulher como herdei-ra em condições iguais às dos irmãos, pelo menosidealmente. No entanto, esta igualdade, ainda que nãoquestionada pelos informantes, esconde algumas peculiari-dades. Aqui, o princípio que rege originalmente o direito àterra é também o da participação na produção familiar.

47 SEYFERTH, 1985, p. 20.

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Reconhece-se o trabalho feminino na lavoura, em condi-ções semelhantes ao do homem, ainda que caiba a este aposição de chefe da unidade produtiva, mesmo quando éa mulher quem assume, de fato, essa função.48 Cabeenfatizar que a participação nas tarefas agrícolas não mo-difica a posição da mulher na hierarquia familiar. Mesmoem situações em que esta assume quase por completo aatividade produtiva, ela permanece na posição de auxiliardo homem.49 Neste sentido, a desigualdade entre os gêne-ros não está calcada na invisibilidade social do trabalhofeminino ou na não-participação do processo produtivo, masnos valores ideológicos que sustentam uma sociedade pa-triarcal.

Como explicarmos, então, o direito daComo explicarmos, então, o direito daComo explicarmos, então, o direito daComo explicarmos, então, o direito daComo explicarmos, então, o direito damulher à terra?mulher à terra?mulher à terra?mulher à terra?mulher à terra?

Primeiramente, é importante reconhecer que a sub-divisão da propriedade familiar apenas obedece à igual-dade entre os herdeiros conforme a importância da lavourapara a reprodução social. Assim, a maneira de se realizar apartilha variará em função do interesse que os demais ir-mãos do gênero masculino tenham sobre a terra. Nãoobstante a divisão da herança decorrente do processo deinventário ser regulada pelo Código Civil Brasileiro, é recor-rente o remanejamento dos títulos de propriedade quandoexiste um irmão, ou vários, interessados no terreno. Nestescasos, o costume dita o privilégio deste ou destes em detri-mento da mulher, que é levada a doar ou a vender a suaparte nos moldes acima descritos. No entanto, para enten-dermos a lógica deste sistema, devemos levar em contaalgumas características deste campesinato.

Os dados sobre a origem desta colonização sãoprecários, mas suficientes para que seja possível identificarque não há mulheres titulares dos lotes coloniais. A má qua-lidade do solo, excessivamente acidentado, e a inexistênciade vias de acesso para escoar a produção, entre outrosfatores, fizeram com que se produzisse aí um campesinatoameaçado desde a sua instalação. Uma estratégia paraos que permaneceram foi, desde sempre, a troca das terrasoriginais por terras melhores. Como dissemos acima, a mo-bilidade espacial dentro de um território restrito se constituiunuma característica desse campesinato, marcando as his-tórias dos indivíduos e os ciclos de vida familiar, estando arti-culada com as estratégias de constituição e de transmissãodo patrimônio familiar. Este último não é constituído com basenuma territorialidade definida. Os constantes deslocamen-tos, sejam decorrentes de transações de compra e venda,sejam decorrentes da relação de parceria, inibem a cons-

48 Uma situação inversa foi obser-vada entre agricultores dos Alpesfranceses, onde a mulher é for-malmente chefe da unidade pro-dutiva, para ter direitos previden-ciários, ao passo que o homem,operário, é reconhecido pelamulher como responsável pelaadministração da produção (cf.CARNEIRO, 1998a)

49 TEIXEIRA, 1996.

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trução de um sistema simbólico que associe uma determi-nada propriedade fundiária à identidade familiar, comoocorre com o campesinato europeu e com o do sul do país.Além disso, há que se levar em conta um fator cultural: váriosdesses colonos não tinham, originalmente, vínculo com aatividade agrícola antes de migrarem para o Brasil. A ausên-cia de um valor moral atribuído à terra (associado ao valorfamília) é um dos fatores explicativos para a ausência deestratégias voltadas para a manutenção da propriedadefamiliar, o que teria favorecido a prática da herança com-partilhada e as inúmeras transações de compra e vendaentre os pequenos proprietários. Como uma prática contra-ditória do ponto de vista da reprodução camponesa, a ven-da da terra é um mecanismo de sobrevivência. Vários infor-mantes se referiram à perda da propriedade pelo pai que foilevado a vender a terra “para viver” ou “para beber.”

Inicialmente, antes da localidade se tornar uma atra-ção turística, o baixo valor da terra como mercadoria, asdificuldades de se garantir a reprodução familiar com basena atividade agrícola e a ausência da valorização simbóli-ca da terra, associada a um nome de família, são fatoresque certamente contribuíram para a inclusão da mulhercomo herdeira. A ausência de mecanismos voltados para apreservação da propriedade familiar está, assim, diretamenterelacionada com a utilização da terra como uma mercado-ria como qualquer outra, bem como com o processo detransmissão da herança através das regras do Código Civil,pelas vias do inventário post mortem.

Quando a terra não simboliza a linha de ascendên-cia e perde o seu valor como meio de produção, a preserva-ção da propriedade deixa de ter sentido, e passa a ser umaquestão a ser resolvida por indivíduos e não pela família.Neste contexto, entende-se a partilha generalizada: a mu-lher herda uma parcela de terra já destituída de valor econô-mico (porque inviável para a agricultura) e de valor simbólico(porque não é atributo de identidade social).

No entanto, esta situação está-se modificando ra-pidamente com a exploração da terra para fins turísticos. Aprocura de terras por pessoas da cidade para instalação depousadas ou de casas secundárias tem provocado umavalorização vertiginosa dessas terras, justamente aquelasmenos apropriadas para a atividade agrícola, o que temfavorecido igualmente tanto herdeiros homens quanto mu-lheres. Resta pesquisar as implicações deste processo, ain-da recente, nas relações sociais entre os gêneros e na posi-ção da mulher nessa sociedade.

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Como tentamos demonstrar, os padrões de trans-missão do patrimônio familiar tendem a acompanhar astransformações econômicas e sociais que afetam os mode-los de reprodução social dos agricultores familiares das regi-ões estudadas. Observou-se, sobretudo nos distritos estuda-dos do município de Nova Friburgo, uma ruptura do laçoabsoluto entre família e propriedade associada à perda daidentificação da terra com a atividade agrícola, o que cons-titui uma das mudanças mais profundas nas sociedadesrurais contemporâneas e engendram mudanças nas práti-cas de partilha da herança. Como vimos, na busca fre-qüente por melhores terras a situação de migrante se eterniza,estimulando a dispersão dos novos núcleos familiares quese formam com o casamento. É de se supor, portanto, queas lembranças dos antepassados, o que poderíamos cha-mar de “uma tradição,” se perderam com estes constantesdeslocamentos, impedindo a atualização dos registros damemória sobre traços da cultura originária e a capacidadede reelaboração destes traços como marcas definidoras deuma identidade social. A dispersão constante impediu, por-tanto, a formação de núcleos sociais mais estáveis, o quesem dúvida contribuiu para, nos termos de Halbwachs (1990),destruir as condições necessárias à reprodução e transmis-são da memória sobre a cultura originária. Para este autor, aevocação de lembranças se apoiam nos “quadros sociaisda memória” entendidos como o meio que envolve o indiví-duo, como o tempo, o espaço, os eventos compartilhados(comemorações, festas) e as pessoas. O desaparecimentoou a transformação dos quadros da memória favorece odesaparecimento ou a transformação das nossas lembran-ças. Neste sentido, é possível sugerir que a perda de referên-cias espaciais e pessoais, sobretudo da família, seja um ele-mento explicativo para a ausência da construção de umaidentidade sustentada na origem étnica.50

Não é portanto de se estranhar que neste contextonão tenhamos encontrado, imbuído na lógica de transmis-são da herança, o “valor família.” A terra, neste caso, nãoadquire um valor patrimonial associado a uma família e auma historia familiar a ser preservada pela memória coleti-va. A terra assume o caráter de um bem no sentido de umamercadoria. O seu valor de troca impõe-se a qualquer outrovalor simbólico que possa ter tido no passado, o que é ex-presso pela excessiva fragmentação das propriedades, sejacomo uma decorrência das práticas de partilha de heran-ça, seja como resposta à demanda do mercado de terrasrelacionada com a mudança na forma de utilização dosolo.

50 CARNEIRO, 2000.

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Neste contexto, os fatores de ordem econômica (acrise da agricultura e a valorização da terra para fins turísti-cos) se somam às condições sócio-históricas no reforço àregra da partilha generalizada do patrimônio familiar, o quepor sua vez tem contribuído para acelerar a fragmentaçãodas propriedades e o abandono da atividade agrícola.Como alternativa, as atividades não-agrícolas exercem maioratração sobre os jovens, que não se sentem mais no com-promisso moral de seguirem a atividade dos seus pais. As-sim, a sucessão deixa de ser um problema, porque a terranão é mais valorizada como um bem associado à memóriada família e à identidade social de agricultor. Em transforma-ção, essa identidade sofre uma desvalorização crescente,decorrente muito mais do baixo rendimento que promovedo que da formulação de imagens negativas associadas àatividade de agricultor. Abramovay vai no mesmo sentidoquando afirma que “a profissão de agricultor perde o cará-ter “moral” que já teve no passado e coloca-se como umapossibilidade entre outras. Acaba a fusão entre o destino daunidade produtiva e o da própria família”.51 Concluímos, as-sim, que nestas condições, em que a propriedade territorial édestituída de valor simbólico e econômico (como meio deprodução), a mulher se torna herdeira da terra sob um siste-ma de transmissão da herança regido pela partilha genera-lizada. No entanto, cabe perguntar, para pesquisas futuras,até que ponto esta situação sofrerá modificações em decor-rência da valorização da terra devido à especulação imobi-liária provocada pela exploração turística.

Em Nova Pádua, município essencialmente agríco-la, a situação é um pouco distinta, acenando com os limitesdeste processo. As mudanças observadas dizem respeito àmulher fora da relação conjugal: a solteirona (celibatária).Somente nesta situação lhe é possível reivindicar o direito àsua parte na herança da terra, seja como mercadoria quelhe propiciará um valor que poderá ser aplicado em outrosfins, seja como um bem que poderá ter outra utilização quenão a agricultura.

No entanto, a situação é diferente quando a mulherocupa a posição de esposa em uma estrutura familiar queintegra ao mesmo tempo as relações de parentesco e deprodução. Nesta situação, acreditamos que a capacidadede ruptura com a identificação entre trabalho agrícola e tra-balho doméstico, e por conseguinte com a subordinaçãoda esposa ao marido, é muito pequena. Sustentado pelaideologia patriarcal, o trabalho feminino no contexto da agri-cultura familiar está subordinado às regras do contrato con-jugal, sendo portanto entendido como parte do sistema deobrigações recíprocas que se estabelece entre os cônjuges,o que impede a formalização jurídica de um contrato de

51 ABRAMOVAY et alli, 1998.

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HERANÇA E GÊNERO ENTRE AHERANÇA E GÊNERO ENTRE AHERANÇA E GÊNERO ENTRE AHERANÇA E GÊNERO ENTRE AHERANÇA E GÊNERO ENTRE AGRICULGRICULGRICULGRICULGRICULTORES FTORES FTORES FTORES FTORES FAMILIARESAMILIARESAMILIARESAMILIARESAMILIARES

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trabalho, como observaram Lagrave e Caniou (1987) paraa realidade francesa. Nestes termos, ser agricultora não éuma profissão, mas um estatuto matrimonial. Quando casa-da, a mulher passa a dever várias obrigações frente aomarido, o que na agricultura implica participar dos traba-lhos da lavoura. Como foi observado em uma aldeia dosAlpes, as regras de transmissão de herança também vari-am em função do contexto sócio-econômico. A tendência aprivilegiar um herdeiro, no caso o irmão mais novo, escolhidocomo sucessor, também tem sofrido resistências, na medidaem que cresce o valor mercantil da terra e diminui o seu valorcomo meio de produção.

Voltando ao Brasil, a incapacidade social da mu-lher para assumir a chefia da unidade de produção, emambas as regiões estudadas, pode ser justificada pelo fatode que isto seria contrário ao direito matrimonial segundo alegislação em vigor anterior à Constituição de 1988, queinstituía o marido como chefe de família e responsável exclu-sivo dos bens comuns e da manutenção familiar.52 Com anova Constituição (1988), os direitos e deveres referentes àsociedade conjugal passam a ser exercidos igualmente pelohomem e pela mulher, sendo mesmo reconhecida comoentidade familiar a união estável, ou seja, não formalizada,entre o homem e a mulher. Além disto, a mulher passa a terdireito ao título de domínio e à concessão de uso da terra,independentemente do seu estado civil, tanto na área ur-bana como na rural.53 No entanto, resta saber até que pontoa força dessas leis se impõe às práticas derivadas da tradi-ção cultural sustentada, por sua vez, por formas de organi-zação social e econômica que lhes são contrárias.

Neste sentido, concluímos que o acesso da mulherà terra por herança depende tanto da posição específicada mulher no processo produtivo quanto dos valores quesustentam esta posição e, mais particularmente, do valor(econômico e simbólico) da terra. Embora os direitos legaissejam importantes como uma condição para a igualdadeentre os gêneros, eles não são, contudo, suficientes. Por outrolado, se as relações assalariadas, seja no mercado de tra-balho urbano seja em atividades não-agrícolas no campo,têm contribuído para a individualização dentro da esferafamiliar, quebrando com a simbiose entre mulher e família,nas relações de trabalho familiar a esposa tem sua autono-mia econômica neutralizada pelas imposições devidas aum sistema que articula produção e parentesco. Dentro destaestrutura, ao se casar ela perde a possibilidade de ter reco-nhecida como “trabalho” a sua participação na lavourafamiliar. Este passa a ser representado como uma “ajuda”decorrente do exercício do seu papel de esposa. Nestascondições, as mulheres não são legitimadas na demanda

52 Para uma análise da situaçãofrancesa, ver CANIOU, J. 1987.

53 CFEMEA, 1994.

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do seu direito legal à terra. Isto pode ser percebido tanto noque se refere à herança (demanda legal ou mesmo direta-mente ao pai) quanto no que se refere à posição de titular emassentamentos do INCRA, após a separação do marido.54

Se quisermos testar a argumentação desenvolvidaaqui para o contexto da reforma agrária, é importante subli-nhar que o processo de reforma agrária brasileiro supõe aconstrução de uma nova sociedade da qual a mulher é,naturalmente, excluída como ator social.55 Centrado na lógi-ca da modernização tecnológica, o processo de constru-ção do assentado como personagem social e político impli-ca a exclusão das mulheres, por imposição dos valores queinformam a ação do poder público e dos próprios agriculto-res, para quem a mulher não está capacitada para tomardecisões referentes à organização produtiva e muito menospara manipular técnicas “modernas.” Nestes termos, poucointerfere o fato da legislação sobre a seleção de assentadosnão incluir nenhuma discriminação específica da mulhercomo titular da terra. As discriminações culturais que infor-mam e ao mesmo tempo são reforçadas pelas relações degênero agem, por si sós, na exclusão das mulheres, que sópassam pelo crivo do processo de seleção legal comocandidatas a lotes no caso de serem viúvas, mães solteirasou quando for comprovada a impossibilidade do marido.56

No entanto, se por um lado ocorre a exclusão damulher dos processos decisórios e de sua condição de titulardo lote, por outro a sua presença é condição altamente va-lorizada para a seleção do candidato, já que a imposiçãode um modelo de agricultura familiar pressupõe a existênciade uma família, identificada pela presença da esposa. Re-produz, assim, uma organização familiar constituída combase na íntima articulação entre as esferas do parentesco eda produção, o que, como vimos, é responsável pela invisi-bilidade do trabalho da mulher e pela sua exclusão da con-dição de chefe da unidade produtiva. Neste contexto, en-tende-se que lhe seja negado o direito ao acesso à terra,seja como herdeira, seja como titular de um lote no processode reforma agrária.

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54 FERRANTE,1998. Isto apontapara a necessidade de, no pro-cesso de reforma agrária, o títulode acesso legal à terra ser con-junto, i.e., do casal (DEERE,1999).

55 FERRANTE, 1998.

56 FERRANTE, 1998.

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[Recebido para publicação em julho de 2000]

Inheritance and Gender Identity Among Brazilian Farming FamiliesAbstractAbstractAbstractAbstractAbstract: To understand the rules by which family estates are transmitted among farming families,particularly in the case of land and taking into account gender differences, it is necessary toidentify the distinct roles reserved to men and women in the dynamics of social reproduction. Theunderstanding of these distinct logics requires the investigation of the different meanings that theterritorial patrimony itself has in each social and cultural context.Although inheritance is based on the notion of shared blood, common law rules do not recognizethe same rights for all children. It is precisely these differences that we will deal with in this article,particularly in respect to those differences derived from gender identity. We will be seeking tounderstand the logic of different forms of transmitting inheritances and their relationship with thesocial reproduction of farming families in two different regions: in southern Brazil (state of RioGrande do Sul), among descendants of Italian colonists, and in the mountainous region of thestate of Rio de Janeiro, among descendants of Swiss and German colonists.Key wordsKey wordsKey wordsKey wordsKey words: inheritance, gender identities, social reproduction, farming family.