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Castelo Branco Científica - Ano I - Nº 01 - janeiro/junho de 2012 - www.castelobrancocientifica.com.br Faculdade Castelo Branco ISSN 2316-4255 01 científica Revista INTERFACES ENTRE AS VIDAS SECAS: PRODUÇÃO LITERÁRIA E PRODUÇÃO CINEMATOGRÁFICA Elizabete Gerlânia Caron Sandrini 1 Resumo: O presente trabalho tem por objetivo destacar alguns aspectos das interfaces da mesma narrativa em mídias diferentes - a adaptação ci- nematográfica Vidas Secas de Nelson Pereira dos Santos, baseada na obra homônima, de Graciliano Ramos. Para tanto, discutiremos não somente sobre a linguagem específica dessa produção cinematográfica, mas tam- bém sobre a questão da fidelidade do filme com a obra literária por meio de algumas considerações acerca do diálogo estabelecido entre os dois meios semióticos - literatura e cinema - desde o surgimento da sétima arte; do contexto de produção de cada um dos Vidas Secas e da análise de algumas cenas da adaptação audiovisual em que procuraremos identificar alguns desses aspectos. A base teórica será pautada em textos críticos. Palavras-chave: Vidas Secas. Cinema. Literatura. Nelson Pereira dos San- tos. Graciliano Ramos. Abstract: This paper aims to highlight some aspects of the interfaces of the same story in different media - the film adaptation Barren Lives by Nelson Pereira dos Santos, based on the homonymous work of Gracilia- no Ramos. The discussion not only about the specific language of film production, but also on issues of fidelity of the film with the literary work 1 Mestranda do PPGL/UFES – Programa de Pós-Graduação em Letras da Univer- sidade Federal do Espírito Santo.

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INTERFACES ENTRE AS VIDAS SECAS:PRODUÇÃO LITERÁRIA E PRODUÇÃO

CINEMATOGRÁFICA

Elizabete Gerlânia Caron Sandrini1

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo destacar alguns aspectos das interfaces da mesma narrativa em mídias diferentes - a adaptação ci-nematográfi ca Vidas Secas de Nelson Pereira dos Santos, baseada na obra homônima, de Graciliano Ramos. Para tanto, discutiremos não somente sobre a linguagem específi ca dessa produção cinematográfi ca, mas tam-bém sobre a questão da fi delidade do fi lme com a obra literária por meio de algumas considerações acerca do diálogo estabelecido entre os dois meios semióticos - literatura e cinema - desde o surgimento da sétima arte; do contexto de produção de cada um dos Vidas Secas e da análise de algumas cenas da adaptação audiovisual em que procuraremos identifi car alguns desses aspectos. A base teórica será pautada em textos críticos.

Palavras-chave: Vidas Secas. Cinema. Literatura. Nelson Pereira dos San-tos. Graciliano Ramos.

Abstract: This paper aims to highlight some aspects of the interfaces of the same story in different media - the fi lm adaptation Barren Lives by Nelson Pereira dos Santos, based on the homonymous work of Gracilia-no Ramos. The discussion not only about the specifi c language of fi lm production, but also on issues of fi delity of the fi lm with the literary work

1 Mestranda do PPGL/UFES – Programa de Pós-Graduação em Letras da Univer-sidade Federal do Espírito Santo.

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through some thoughts about the dialogue between the two semiotic me-ans – literature and fi lm – from the emergence of cinema; the context of production of each of the Barren Lives and analysis of audiovisual scenes of adaptation in which we will seek to identify some of these aspects. The theoretical basis is grounded in critical writing.

Keywords: Vidas Secas. Cinema. Literature. Nelson Pereira dos Santos. Graciliano Ramos.

2 A partir do aperfeiçoamento do cinetoscópio – criado por Thomas Edison, os irmãos Auguste e Louis Lumière idealizaram o cinematógrafo – uma espécie de ancestral da fi lmadora. O nome do aparelho passou a identifi car, em todas as lín-guas, a nova arte (ciné, cinema, kino etc.). Disponível em http://www.webcine.com.br/historia1.htm. Acesso: 02 agosto 2011.

3 A respeito dessa experiência com a imagem em movimento, o escritor russo Má-ximo Górki que assistiu à primeira sessão de cinema, relata que “quando as luzes se apagam, na sala onde nos mostram a invenção dos irmãos Lumière, uma grande imagem cinza – sombra de uma má gravura – aparece, de repente na tela; é Une Rue de Paris (uma rua de Paris). Examinando-a, vêem-se automóveis, edifícios, pessoas, todos imóveis; pressupõe, então, que esse espetáculo nada trará de novo: vista de Paris que já vimos várias vezes? E, de repente, um curioso clique parece reproduzir na tela; a imagem nasce para a vida. Os automóveis, que estavam no fundo da imagem vêm direto sobre você. Em alguma parte longínqua pessoas aparecem, e quanto mais se aproximam, mais crescem. [..] Tudo isso se agita, tudo respira vida [...] E tudo isso é estranhamente silencioso. Tudo se desenvolve sem que ouçamos o ranger das rodas, o barulho dos passos ou qualquer palavra.” Para saber mais ler PRIEUR, Jerôme. O espectador noturno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995, p.28-29.

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A vida, ação e movimento; o homem, um eterno ser de desejo. Estimulado por esse sentimento, desde os primórdios dos tempos, o homo sapiens pôs--se em ação para poder reproduzir em imagens os movimentos da vida. Muitas foram as tentativas, as inovações em prol desse objetivo. Mas esse sonho, ou melhor, esse desejo teve seu marco inicial somente no fi nal do século XIX com o surgimento do cinematógrafo2 dos irmãos Lumière, em 1895. Nascia assim o cinema, que, já na primeira sessão, causou sensações indescritíveis na plateia. Esta, acostumada com a captação das estáticas imagens fotográfi cas, foi tomada pelo espanto e pela emoção ao ser surpre-endida pelas imagens em movimento3 . Passado esse primeiro momento, de fascínio geral, ocasionado pelo puro prazer de ver imagens em movi-mento na tela, a invenção – supostamente sem futuro no pensar de seus criadores – que “Era nos primeiros tempos um espetáculo um tanto vil, uma atração de feira que se justifi cava essencialmente – mas não apenas – pela novidade técnica” (AUMONT, 1995, p. 91) ganhou interesse por parte de alguns artistas. Esses protagonistas começaram a investigar as possibili-dades cinematográfi cas da invenção e, para tirá-la do gueto relativo em que se encontrava, a colocaram “[...] sob os auspícios das ‘artes nobres’, que eram, na passagem do século XIX para o XX, o teatro e o romance, a fi m de que passasse, de certo modo, pela prova de que poderia também contar histórias ‘dignas de interesse’ [...]” (AUMONT, 1995, p. 91).

Mesmo não tendo, a princípio, as formas narrativas desenvolvidas e com-plexas como as apresentadas pelas duas “artes nobres” citadas por Aumont, o cinema, que trazia em seu cerne a condição de contar algo, estabeleceu

4 É importante ressaltar que para o teórico russo Mikhail Bakhtin o cerne do dia-logismo é a preocupação na ênfase de que nenhum discurso se constrói sobre si mesmo, mas sim a partir de outros discursos, como por exemplo, o que estamos por ora tratando – literatura e cinema.

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uma busca crescente para atingir tais formas e suprir essa carência. O cine-asta D. W. Griffi t, por exemplo, utilizou-se da técnica de montagem para-lela, como se sabe, tomada de empréstimo do literato Charles Dickens para realização de seus fi lmes, o que muito contribuiu para a estética inicial do cinema. Assim, o cinema encontrou na literatura, em especial nos roman-ces e novelas, ao aderir à narratividade, sua inesgotável fonte de narrativas. Desse diálogo4, dentre tantos outros possíveis, capitulou a dinâmica capa-cidade de contar histórias e com isso adquiriu sua pretensa pureza estética e foi reconhecido enquanto arte.

Mas, nesse embate, torna-se mister vislumbrar que essa nova forma artís-tica e também nova possibilidade de representação e construção do real, apesar de ter muitos pontos em comum com a literatura, possui certos ele-mentos, específi cos de sua linguagem, que estabelecem diferenças entre as duas formas de arte. Embora relacionadas, constituem campos de produção cultural distintos. O cinema lida com elementos específi cos de sua lingua-gem diferentes dos vivenciados na literatura. Enquanto o texto literário apropria-se da linguagem verbal para estruturar sua narrativa, o cinema, além dessa vertente, utiliza-se da audiovisual. A partir dessa observação, torna-se fácil constatar que, durante o trabalho de adaptação, cabe ao cine-asta fazer escolhas que nem sempre coincidem com o texto original. Nesse processo, estão em jogo fatores estéticos, ideológicos, culturais, políticos e sociais que fazem do fi lme um entrelaçamento de vozes intertextuais, em que o diálogo não se dá somente com a obra adaptada, mas com o próprio contexto, bem como explica Ismail Xavier:

A fi delidade ao original deixa de ser o critério maior de juízo críti-co, valendo mais a apreciação do fi lme como nova experiência que deve ter sua forma, e os sentidos nela implicados, julgados em seu próprio direito. Afi nal, o livro e fi lme estão distanciados no tem-

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po; escritor e cineasta não têm exatamente a mesma sensibilidade e perspectiva, sendo, portanto, de esperar que a adaptação dialogue não só com o texto de origem, mas com o seu próprio contexto, inclusive atualizando a pauta do livro, mesmo quando o objetivo é a identifi cação com os valores nele expressos. (XAVIER, 2003, p. 62)

Partindo dessa consideração, pode-se, efetivamente, afi rmar que o fi lme Vidas Secas de Nelson Pereira dos Santos – interface do livro homônimo de Graciliano Ramos – é uma nova experiência. As duas obras, distancia-das no tempo por quase três décadas - precisamente, por vinte e cinco anos – mantiveram, cada uma a seu modo, um nítido diálogo com o contexto em que foram produzidas. Assim, em consonância com o pensamento de Xavier, compreende-se o porquê de a fi delidade ao original deixar de ser critério de maior juízo crítico. A obra audiovisual, ao manter uma identifi -cação com os valores expressos na obra literária em questão, foi, em certa medida, fi el ao texto de origem. No entanto, ao ser elaborada sob a pers-pectiva, a sensibilidade e a vivência do cineasta, atualizou a pauta do livro e assegurou novas percepções diante do tema retratado, no caso, a seca.

Pensando no valor e nas implicações das estreitas ligações entre obra e contexto, entende-se ser de extrema importância uma breve abordagem de cada um dos momentos em que foram realizadas as criações artísticas Vi-das Secas – marcos da literatura brasileira da década de 1930 e do cinema nacional da década de 1960. Para tanto, interessa a segunda fase do Mo-dernismo e o Cinema Novo. Este, por corresponder à época da produção do fi lme Vidas Secas; aquele, por ser o movimento literário em que se enqua-dra tal romance, fonte de inspiração para a efetivação da obra audiovisual.

O Modernismo tinha por proposta principal “[...] a adesão profunda aos problemas da nossa terra e da nossa história contemporânea [...]” (CAN-

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DIDO, A. CASTELLO, J. A., 1958, p. 09) o que abriu novas possibilidades para a Literatura brasileira, em especial para a explicitação crítica da reali-dade, para as discussões dos problemas sociais. A Literatura, dessa forma, rompeu com a estética passadista e com o academicismo voltando-se para uma literatura participativa, instrumento de denúncia social que evidencia-va o atraso social e cultural do país. Por apresentar um enredo permeado por marcas sociais, econômicas e políticas, Vidas Secas atende à perspec-tiva do Modernismo, especifi camente, de sua segunda fase, que dá maior destaque aos problemas sociais das regiões mais carentes do país e “[...] se enquadra no movimento do romance nordestino de 30” (MOURÃO, 1971, p. 143). Em relação a esse tipo de romance, Alfredo Bosi relata que a tensão atinge o nível da crítica. Em seu mote, os fatos passam a ter uma signifi cação menos ‘ingênua’, colaborando para revelar as grandes tensões que a vida em sociedade produz na pessoa humana. Com isso, adquire uma verdade histórica muito mais profunda, além de ter “[...] menos proliferação de tipos secundários e pitorescos: as fi guras são tratadas em seu nexo dinâmico com a paisagem e a realidade socioeconômica” (BOSI, 1994, p.393).

Vidas Secas, publicado em 1938, relaciona as personagens intimamente à paisagem seca do sertão. O mentor de Fabiano, ao expor de maneira contundente, sob a ótica da consciência do subdesenvolvido, o retrato da miséria e do descaso a que está submetido o sertanejo, mereceu destaque da crítica. A esse respeito Candido e Castello relatam que

O romancista intuiu admiravelmente a condição subumana do ca-boclo sertanejo, com sua consciência embotada, e sua inteligência

5 Expressão utilizada por Wander Mello Miranda no artigo O mundo coberto de penas – In: Graciliano Ramos. São Paulo: Publifolha, 2004 – para designar a es-tética do escritor alagoano.

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retardada, as suas reações devidas a refl exos condicionados por um sofrimento secular, por sua vez determinado pelas relações do ho-mem com a própria paisagem e pela passividade ante os mais pode-rosos. (CANDIDO, A. CASTELLO, J. A., 1968, p. 295)

Para representar de forma ainda mais fi el o retrato da vida do nordestino, o escritor alagoano elaborou o seu romance sob a “poética da escassez”5, marcado por uma linguagem que se assemelha à paisagem do Nordeste – seca, enxuta e cortante. As frases curtas e o número pequeno de adjetivos traduzem a objetividade do autor em expressar a seca em que vive o sertão nordestino e em eliminar tudo o que não é essencial. Na realidade, a essên-cia traduz-se na força do meio sob a vida das personagens, que consoantes à escolha dos procedimentos narrativos, são secas de físico, de psíquico, de linguagem articulada, de fome, de direitos. Levadas ao limite de suas resistências vagam pelo sertão nordestino em busca de um lugar que pos-sam fi ncar raízes e construir, de alguma maneira, uma identidade. Com isso, à medida que Graciliano Ramos documenta as agruras vividas pe-las personagens de “consciência embotada” e de “inteligência retardada” que se assemelham a animais, sua prática estética fundida com sua prática política vai adquirindo valor e lhe permite realizar um contradiscurso ao Estado Novo que pregava o desenvolvimentismo para o Brasil e propagava o projeto de nação do futuro.

Futuro era o que não tinham os viventes de Vidas Secas. O romance retrata a saga da família de Fabiano – sinhá Vitória, o menino Mais Novo, o me-nino Mais Velho, a cachorra Baleia – que depois de muito vagar pelo árido sertão e ter devorado o papagaio, que era considerado um dos membros da

6 A partir desse ponto, todas as vezes que fi zermos referência ao romance Vidas Secas daremos somente a informação do número da página.

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8 Os neorrealistas italianos, ao contrário de Eisenstein e outros cineastas russos, não acreditavam na função narrativa da montagem e por isso preferiam a cole-ta das imagens para a construção da cena. Vidas Secas é infl uenciado por essas ideias, por isso, fi lmado nos moldes do neorrealismo italiano.

família, devido à imensa fome, encontra uma fazenda sem vida onde, no interstício entre duas secas, se instala. Fabiano tem a sina de “Trabalhar como negro [sem] nunca arranjar carta de alforria [...]” (RAMOS, 2006, p. 94) para um patrão que lhe rouba nas contas e ser enganado pelos ha-bitantes da cidade como o soldado amarelo, o dono da bodega, o fi scal da prefeitura, que “[...] só lhe falavam com o fi m de tirar-lhe alguma coisa” (p. 76)6. Devido a esse embate, estabelecido com o espaço social e com as adversidades da natureza, é defl agrado na família do vaqueiro todo um confl ito interior que estampa em cada um “[...] a face angulosa da opressão e da dor” (BOSI, 1994, p. 401). Esses miseráveis, que, de tão oprimidos, tinham “[...] se habituado à camarinha escura e pareciam ratos” (p.18), não possuem linguagem articulada. Extremamente introspectivos são apresen-tados ao leitor atento por um narrador em terceira pessoa que descreve o que se passa no íntimo de cada um e revela, sem maquiagem, a cruel realidade do país.

O Cinema Novo, movimento que tinha por questão estética a diretriz “uma câ-mera na mão e uma ideia na cabeça”7, também sem nenhum retoque, retratou “[...] criticamente a realidade brasileira” (JOHNSON, 1982, p. 82). Opondo--se às chanchadas e aos modelos hollywoodianos, tal programa, de produção independente e de baixos custos, expôs sua relação direta com o movimento político, buscando explicitar uma visão crítica e desalienadora da experiência social. “Tal busca se traduziu na ‘estética da fome’, na qual a escassez de re-

7 Glauber Rocha resumia a atuação do cineasta cinemanovista na expressão “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”.

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cursos técnicos se transformou em força expressiva e o cineasta encontrou a linguagem em sintonia com seus temas” (XAVIER, 2001, p. 57).

Nelson Pereira dos Santos, um dos grandes nomes do Cinema Novo, desde Rio 40 graus, já demonstrava preocupação em fazer um cinema de carac-terísticas brasileiras, de luta. Contudo, foi após presenciar uma enorme seca que pôde concretizar esse tipo de cinema. Quando gravava um docu-mentário no Vale do São Francisco, viu o fl agelo de milhares de retirantes que chegavam a Juazeiro da Bahia e Petrolina em busca de socorro. Na verdade, a busca desse contingente humano era por alimentos, para não morrer de fome. O cineasta, conhecedor de tal fl agelo só de imaginário, proporcionado pelas leituras literárias – uma vez que, naquela época, não havia televisão - de repente, diante do vivo, do real, teve sua preocupação ainda mais afl orada. Resolveu, dessa forma, volver seu olhar artístico para a contundente história enxergada e, nos moldes do neorrealismo italiano 8, expressar cinematografi camente o ritmo real de tudo que experienciou. A materialização dessa experiência particular do articulador urgia de um roteiro para tornar-se arte. Escreveu um sobre a seca, sobre o retirante. Na verdade escreveu várias vezes. Foram inúmeras as tentativas de fazer o fi lme, de escrever a história do fi lme. Todavia, todas as vezes, percebia que o roteiro, a sinopse, os argumentos, tudo o que escrevia era superfi cial. Produto de alguém que não possuía a menor intimidade com o tema. O que escrevia “Podia ser no máximo uma reportagem mal feita de um foca, de um repórter que estava começando a profi ssão” (SANTOS, 1995, p.157). O curioso, porém, é que entre os livros consultados, utilizados para pro-curar referências sobre o comportamento psicológico do sertanejo, estava o romance de Graciliano Ramos Vidas Secas. E, após muitas tentativas, Nelson Pereira viu o óbvio e disse para si mesmo: “[...] o fi lme está aqui, o fi lme é esse livro; eu vou fazer um fi lme baseado nesse livro, porque o

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livro Vidas Secas é um depoimento [...] é uma análise que tem o poder de síntese artística.” (SANTOS, 1995, p.158) (grifos do autor)

Nelson Pereira dos Santos procurou “[...] traduzir no fi lme o sentimento ex-perimentado diante da seca e diante do livro [...]” (AVELLAR, 2007, p.48). Filmado fora do estúdio, sem ter que contar com o aparato material e econô-mico da indústria cinematográfi ca norte-americana, o audiovisual faz uma denúncia da realidade social. O cenário da miséria, da fome, da violência, da opressão social e política, da marginalização econômica e do abandono a que está condicionado o nordestino, evidenciado na película, expõe a real situação do país. Com isso, o cineasta consolidou o novo modelo de cine-ma que estava surgindo – o Cinema Novo, cuja primeira fase, denominada nacionalista-crítica, se estendeu de 1962 a 1964 (LEITE, 2005, p. 49).

O fi lme que praticamente lançou o Cinema Novo surgiu em 1963 e, já em sua primeira legenda, acentua as marcas da infl uência do contexto em que foi produzido. De forma clara e objetiva, o advogado que virou cineasta evidencia a rejeição de a produção audiovisual ser uma simples transposição da literária.

Este fi lme não é apenas a transcrição fi el, para o cinema, de uma obra imortal da literatura brasileira.É antes de tudo, um depoimento sobre a dramática realidade social de nossos dias de extrema miséria que escraviza 27 milhões de nor-destinos e que nenhum brasileiro digno pode ignorar.

9 Nelson Pereira dos Santos queria que a fotografi a de Vidas Secas fosse próxima à desenvolvida na Europa por Cartier-Bresson, ou seja, sem fi ltros. Um dos dire-tores de fotografi a do fi lme – José Rosas – foi quem muito contribuiu para que a fotografi a do fi lme fosse a mais natural possível ao utilizar a técnica das lentes da câmera sem fi ltro.

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A extrema miséria que escravizou milhares de nordestinos, no fi lme, a exemplo do romance, é apresentada logo no início da narrativa pelo espaço geográfi co que estará invariavelmente em cena. A imagem ampla da imen-sa planície com uma única árvore seca no canto do quadro desprovido das cores da fotografi a, captada pela câmera do cineasta, reforça a miséria e a secura retratadas também e primeiramente na obra literária de Graciliano Ramos. O fato de as fotografi as do fi lme serem em preto e branco realça ainda mais a luz forte, luz esmagadora, luz inclemente, luz estourada9 do sol do sertão que sugere a alta temperatura da região e dá destaque à paisa-gem hostil que aniquila o sertanejo.

Na primeira cena da película, pode-se perceber que Nelson Pereira dos Santos utiliza-se de recursos técnicos possibilitados pela câmera para apre-sentar de forma verossímil a pobreza e a miséria vivida pelo sertanejo. É sob as lentes sem fi ltro que peregrinam, principalmente, no primeiro e no último plano, as vidas secas do paulista que são as mesmas do escritor alagoano. Na projeção inicial a família de Fabiano surge minúscula no ho-rizonte e caminha pela seca planície em direção à câmera. A cachorra Ba-leia vem à frente. O plano longo sugere a caminhada lenta e cansativa dos infelizes, enquanto a câmera móvel acompanha os passos dos viventes pelo leito do rio seco e a vertigem do menino mais velho ao olhar em direção

10 Em entrevista concedia a RAMOS, Paulo Roberto. Nelson Pereira dos Santos: resistência e esperança de um cinema, o cineasta paulista assim se pronunciou : “As datas. Explico: o livro é de 1938, e eu coloquei as datas de uma época da guerra: 1940, 1941, 1942. Escolhi os anos que lembram os momentos decisivos da Segunda Guerra Mundial, a invasão da França, o bombardeio de Pearl Harbor e a Batalha de Stalingardo a fi m de realçar a singularidade do sertão, longínquo espa-ço do nosso planeta.” Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?pid=s0103--40142007000100026&script=sci_arttext. Acesso: 02 agosto 2011.

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ao sol. No último plano, já sem Baleia – sacrifi cada devido à hidrofobia – os miseráveis se afastam, indo em direção contrária à câmera, até fi carem “[...] miudinhos, perdidos no deserto queimado” (p. 14). Essa disposição das cenas os faz girar em círculos. Eles revivem a mesma situação mitoló-gica de Sísifo – do eterno retorno, neste caso, o retorno da seca que reforça o sentimento de escravização do sertanejo pelo círculo vicioso de miséria e da exploração que os expulsa de seu lugar – o sertão.

Ambos os planos estão em consonância com os capítulos Mudança e Fuga, respectivamente o primeiro e o último, do romance homônimo. Porém, apesar da literatura e do cinema evidenciar a vida cíclica a que está con-dicionado o sertanejo – devido ao fenômeno da seca que é infi ndável – há alguns aspectos a serem destacados. O romance é atemporal, o fi lme não. Graciliano alerta o leitor menos ingênuo sobre a perene questão nordestina e suas consequências. Nelson Pereira dos Santos vai além, associa datas10

de confl itos importantes que modifi caram o mundo a cenas do fi lme que, aparentemente, não se relacionam com o sertão. Ao apresentar essa correlação, o cineasta não só explicita ao espectador atento a realidade histórica mundial, mas também realça a singularidade do sertão, a realidade local – entenda-se aqui nação brasileira – que parece, aos olhos de muitos, estar tão distante. Considerado por Rubem Braga como “romance desmontável” por seus ca-pítulos terem sido publicados originalmente como contos para revistas e

11 Em março de 1936 Graciliano Ramos torna-se preso político do Estado Novo sobre a acusação de subversão sem haver processo contra ele. Somente dez meses depois da prisão é solto e, não tendo como se manter, escreve contos para jornais e revistas para poder pagar o aluguel de um quarto de pensão. Para saber mais ler: RAMOS, Clara. Graciliano Revisitado em seu centenário. In: DUARTE, Eduar-do de Assis (org.). Graciliano Revisitado: coletânea de ensaios. Natal: UFRN/CCHLA; Editora Universitária, 1995.

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jornais, devido a necessidades fi nanceiras do escritor que acabara de sair da prisão11 , o Vidas Secas de Graciliano Ramos é composto por treze capí-tulos. O primeiro a ser escrito foi Baleia, que, na organização do romance, passou a ser o nono e assim aconteceu com os demais. Portanto, não há uma linearidade na obra. Nelson Pereira dos Santos aproveita-se dessa pos-sibilidade e “[...] desmonta seu material básico em uma narrativa coerente e até mais linear [...]” (JOHNSON, 2003, p. 46), recriando-a, reordenando os fatos e, com isso, além de dar autonomia estética ao fi lme, realiza uma leitura crítica e criativa do romance, conservando, no entanto, suas carac-terísticas centrais.

Se o cineasta contasse os treze capítulos, tal qual Graciliano, a produção poderia tornar-se muito longa e, talvez, inviável para as telas. Era preciso contar a história da seca com mais fl uidez. Por isso o desmonte do roman-ce, o encadeamento de alguns capítulos, onde um, imediatamente após o outro, dava ritmo e linearidade ao desenvolvimento da trama. Ao contrário de Graciliano, Nelson Pereira dos Santos, então, constrói uma estrutura a fi m de compor certa linearidade compatível com as exigências necessárias para realizar a película. Tal empreendimento mescla os capítulos da obra literária provando que o novo olhar projetado na trama não é uma repro-dução do que foi escrito no romance regionalista. Cadeia, Festa, Baleia... não são mais que meras inspirações às quais o cineasta tomou para montar sua obra. Na verdade, o que há é uma desestrutura, uma nova leitura do que agora é público. Esse diálogo possível é asseverado por JHONSON ao relatar sobre a montagem paralela da Festa e da Cadeia:

[...] a seqüência de Vidas Secas encapsula as diferenças denotativas entre o romance e o fi lme, sintetizando os temas principais do fi lme por meio da criação de um núcleo estrutural que irradia signifi cados

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e estabelecendo um espaço público que ressoa intertextualmente pelo fi lme. Além disso, ela [a sequência] desenvolve uma relação dialógica com seu modelo de referência, discutindo aspectos laten-tes ou implícitos no romance de Graciliano Ramos. Nesse sentido, o fi lme constitui uma leitura crítica e criativa da obra original. A seqüência também representa um microcosmo das estruturas eco-nômicas, políticas e culturais do Nordeste, abstraídas de tal forma que ela trata não só da opressão de um homem e de sua família, mas também de mecanismos mais generalizados de opressão.

A seqüência é composta de 37 planos divididos em três espaços físicos distintos: 14 planos retratam Fabiano e outro prisioneiro na cadeia; 13 mostram a celebração do bumba-meu-boi diante das au-toridades locais; 8 revelam Vitória e os dois garotos na escadaria da igreja, esperando retorno do pai e da cachorra Baleia, que também desapareceu; 2 planos revelam soldados na porta da cela (JOHN-SON, 2003, p. 46-47).

No filme, constata-se que há diversas inserções ausentes no romance. Uma delas é o prisioneiro, um cangaceiro que se encontra na cadeia com Fabiano. Esse acréscimo, realizado por Nelson Pereira dos San-tos, juntamente com a celebração do bumba-meu-boi – também ine-xistente no texto graciliânico, explicita não só a estrutura da hierar-quia de poder da região, mas também quem está à sua margem, além de evidenciar os elementos da cultura sertaneja e preencher as lacunas deixadas por Graciliano Ramos em Vidas Secas. No romance não se toma conhecimento de como Fabiano saiu da cadeia, já o filme dá essa explicação como tantas outras. Por exemplo, mostra que o contato com o patrão foi após a vinda do inverno; que a indagação do menino mais velho sobre a palavra inferno foi devido à reza que a benzedeira sinhá Terta realizou em Fabiano para curar as feridas que a surra lhe causara. Aí está a força do filme: essas novas abordagens reafirmam

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o grito mudo e ensurdecedor dos flagelados da seca que tiveram voz inicialmente com Graciliano Ramos. O que está em questão não é puramente a ordem da sequência, as inserções de fatos ou o desfecho dos acontecimentos, mas a crítica suplantada de cada interlocutor que se apropria da obra audiovisual.

A análise da sequência em que Fabiano está Cadeia torna-se imprescin-dível para melhor compreensão da base à qual a produção audiovisual foi estruturada. Sua prisão é efetivada por se recusar a continuar num jogo de cartas. A personagem sofre uma pisada do amarelo e o xinga. As palavras graciliânicas assim a traduzem: “A autoridade rondou por ali um instante, desejosa de puxar questão. Não achando pretexto, avizinhou-se e plantou o salto da reúna em cima da alparcata do vaqueiro” (p. 31). Ao transformar essa passagem literária em imagem, Nelson Pereira dos Santos realiza uma modifi cação ímpar – apresenta Fabiano descalço. A câmera, aqui, desem-penha um papel fundamental: a plongée12 em close-up13 mostra os pés descalços do vaqueiro no momento em que o soldado amarelo planta-lhe o salto da reúna. O recurso cinematográfi co – movimento da câmera de cima para baixo – evidencia o quão “pisado” e diminuído é aquele que não tem meios para se defender, pois se encontra desnudo de condição, de cidada-nia. A força dessa imagem, como tantas outras do fi lme Vidas Secas, ul-trapassa os limites de sua signifi cação e desperta no espectador a sensação de impotência vivenciada por muitos Fabianos diante dos donos do poder – personifi cados no soldado amarelo, no patrão e no cobrador de impostos.

12 Tomada em plano vertical de cima para baixo.13 Tomada em primeiro plano, neste caso dos pés da personagem.

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A cena avança. Fora da cela acontece a festividade do bumba-meu-boi. Ao mesmo tempo em que as autoridades locais recebem honras da apre-sentação artística, o vaqueiro que foi preso injustamente, ouve, da cela, os ruídos de música que sugere a partilha do boi, sendo que as melhores partes são oferecidas aos mais abastados. A tomada alterna-se entre esses dois pontos. É por meio dessa montagem paralela que as instâncias do poder são mostradas em sua plenitude, realçando a dicotomia existente no seio social subdesenvolvido. Quando o boi é servido às autoridades, a câmera em close up focaliza o rosto de Fabiano. O bumba-meu-boi pode, então, ser lido como metáfora do vaqueiro que também é servido às autoridades. O que isso lhe causa pode ser percebido em seu rosto e por meio do seu olhar. O que Graciliano despertou com Vidas Secas fez brotar inúmeras leituras que trouxeram como resultado a indignação. Nelson Pereira dos Santos e todos interlocutores da obra fi cam inquietos com as cenas que, independente dos meios semióticos, chocam. No romance, conforme já evidenciado, as personagens quase não falam e possuem um grande confl ito interior. Comunicam-se apenas por ono-matopeias, resmungos, interjeições, monossílabos, grunhidos e sons gutu-rais. Os humanos são zoormofi zados, nivelados ao animal. Para traduzir as emoções, angústias e refl exões das vidas secas, Graciliano Ramos optou pelo discurso indireto livre em junção com a onisciência seletiva do nar-rador que penetra nos universos mentais de cada um dos viventes a fi m de traduzir o seu mundo íntimo. No entanto, no fi lme, a densidade psico-lógica trabalhada por Graciliano Ramos desaparece e a luta interna das personagens não existe. Só em um único momento do fi lme é registrada a tentativa de comunicação entre Fabiano e sinha Vitória: ao se concretizar a sobreposição sonora dos monólogos interiores das personagens. Estas

14 É um ângulo de fi lmagem do ponto de vista da personagem.

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falam ao mesmo tempo sobre seus sonhos: sinha Vitória sobre o desejo de possuir uma cama de lastro de couro igual a do seu Tomás da bolandeira; Fabiano, em possuir a linguagem legitimada e tão bem empregada pelo mesmo seu Tomás. Contudo, um não é ouvido pelo outro. Um narrador em off poderia ser a solução para isso, mas Nelson Pereira dos Santos opta pelo silêncio que acentua a condição social e a incomunicabilidade das personagens. Concentra em suas ações, reações e sensações utilizando para isso a câmera subjetiva14 que possibilita ao espectador inserir-se na trama e na percepção que a personagem tem do mundo.

Por meio dessa estratégia que incita o espectador, o cineasta também revela o desejo de Fabiano em ser violento para se libertar da violência. Nesse sentido, apresenta, mais uma vez, de forma criativa, uma leitura crítica do romance e insere na cena a ideia política de resistência contra a exploração. Assim, Fabiano, ao sair da cadeia, segue até certo ponto com um grupo de cangaceiros que, “[...] naquela época, no Nordeste era uma das obsessões do nordestino: a revolta individual, o cangaço como perspectiva de supe-ração de todos aqueles problemas” (SANTOS, N. P. Acesso: 02 agosto 2011). Aqui, diferentemente do romance, Fabiano aparece como um herói, um homem – montado sobre o cavalo que o cangaceiro lhe cedera e com uma arma na mão. Para dar essa conotação positiva, o vaqueiro é fi lmado várias vezes nessa sequência a contra-plongée15. Mas, atrelado que estava à estrutura social vigente, no momento de decidir se seguia com o grupo, optou, ao ouvir o som de um sino de vaca que signifi cava sua sobrevivên-cia, seguir com a família, submisso, calado, mudo, silencioso.

O silêncio ensurdecedor que percorre as cenas do fi lme, desprovido de

15 Tomada em plano vertical de baixo para cima.

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trilha sonora, não pode ser imperceptível para aquele que o aprecia. Essa característica traz uma força muito mais representativa do que uma série de diálogos. Os raros sons ouvidos são os das sandálias dos retirantes no solo seco e gretado do sertão durante sua perene caminhada e os dos ani-mais daquela região. Ouve-se também o estridente e melancólico ruído das rodas do antigo e arcaico carro de boi que acompanha, principalmente, a cena inicial e a fi nal da película. Esses sons, ao contrário do que se possa imaginar, intensifi cam o pesar e a angústia sofrida pelos sertanejos e evi-denciam o atraso em que se encontra o Nordeste da seca.

A ciranda de argumentos pautados na Vidas Secas de Nelson Pereira dos Santos vem, a cada cena, enriquecer a genialidade de sua produção. Por isso, não pode deixar de ser analisada a sequência em que é retratada a angústia do retirante mediante o som produzido pelo violino. Ao inserir na cena em que Fabiano vai acertar as contas com o patrão, o instrumento mais comum ao gênero da música erudita, o enredo choca, por incitar um contraste. A tomada tem início com uma imagem dividida ao meio. Dois quadros opostos em tela: do lado esquerdo Fabiano, cabisbaixo, subser-viente; do direto, a fi lha do patrão em uma aula de violino. O artifício metafórico denuncia as duas vertentes sociais que antagonizam vidas in-tensamente opostas: as secas – do marginalizado e, as insensivelmente im-produtivas – do detentor do poder.

Desde o título, em seu sentido mais polissêmico e intertextual, devidamente incorporado no construto do fi lme Vidas Secas, Nelson Pereira dos Santos dá nova roupagem, não só ao texto graciliânico, mas também ao cinema brasilei-ro, apontando rumos para uma estética nacional que una o comprometimento ativo de um engajamento político consoante aos fatos narrados com a poten-cialidade específi ca da linguagem narrativa cinematográfi ca. Vidas Secas fi lme

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vem, então, reforçar que, mesmo mantendo uma identifi cação com os valores expressos na obra literária, transformações são inevitáveis. Devido à mudança de suporte, à nova abordagem ocasionada pelo contexto vivido e à criatividade peculiar do artista a produção se concretiza criando paradigmas que, por mais parecidos com os sugeridos em Vidas Secas de Graciliano Ramos, incitam outros pensamentos, ultrapassando os limites da obra literária. Têm-se assim as interfaces da mesma narrativa em mídias diferentes.

Encerrando a análise, constata-se que a indiferença política a que o Nor-deste brasileiro esteve/está atrelado é, ainda, uma problemática vigente. Um posicionamento cego, diante das condições sociais dessa parcela da população, localizada em um espaço geográfi co mal trabalhado, faz com que continuem a imperar vidas secas. Isso prova que a temática não se en-cerra. O que Nelson Pereira dos Santos viu poderá ser matéria-prima para outras produções das mais diversifi cadas naturezas. A associação da seca somente à obra graciliânica ceifa a oportunidade de eternizar um tema que é plural não só por sua gravidade social, mas tam-bém pela poesia que sua imagem inspira.

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________. Entrevista concedida a Pompeu de Souza e Paulo Emilio sobre Vidas Secas. Disponível em http://www.contracampo.com.br/27/debatevi-dassecas.htm. Acesso: 02 agosto 2011.

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