Análise - Vidas secas

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    PERF IL BIOGR ÁF ICOGraciliano Ramos (Quebrangulo, AL, 1892 — Rio de Janeiro, RJ, 1953) foi o mais velho dos de-

    zesseis filhos do casal Sebastião Ramos de Oliveira e Maria Amélia Ferro. Em 1894, seu pai trocouo comércio pela criação de gado e se transferiu para a fazenda Pintadinho, arredores de Buíque, noestado de Pernambuco, onde Graciliano fez seus primeiros estudos. Um longo período de seca tor-nou impossível a vida na fazenda, e, em 1904, a família retornou para Viçosa (Alagoas). De 1911 a

    1914, ajudou o pai numa loja de tecidos, em Palmeira dos Índios. Entre um freguês e outro, escrevesonetos e crônicas, enviados para jornais alagoanos e cariocas.

     Aos 22 anos vai para o Rio de Janeiro, para trabalhar como revisor. Em 1915, a morte de trêsirmãos e um sobrinho, vítimas da peste bubônica, o traz de volta a Palmeira dos Índios. Retoma o co-mando da loja Sincera. Rascunha seus primeiros contos, dois dos quais — “A carta” e “Entre grades”,sob decisiva influência de Eça de Queirós, serão os embriões dos romances São Bernardo e Angústia.

    Em 1926, é nomeado presidente da Junta Escolar da cidade. Sua verve e inteligência como pe-dagogo impressionam favoravelmente os políticos da região, que o lançam candidato a prefeito dePalmeira dos Índios.

     Vitorioso, realiza notável administração, de que dão conta dois relatórios enviados ao governa-dor Álvaro Paes. Redigidos com modéstia e informalismo, revelam a competência do prefeito eantecipam o brilhante estilista que Vidas secas e Infância confirmariam.

    É nomeado diretor da Imprensa Oficial do Estado de Alagoas, renunciando a dois anos demandato na prefeitura. Pouco antes de deixar a prefeitura, recebe uma carta de Augusto FredericoSchmidt, que o consultava a respeito da possibilidade de ele escrever um romance. Caetés, que já vinha sendo escrito há cinco anos,será editado por Schmidt em dezem-bro de 1933.

    Com a revolução de 1930, Gracilia-no Ramos afasta-se do cargo público eretorna a Palmeira dos Índios. Nos finsde tarde, refugia-se na sacristia daIgreja de Nossa Senhora do Amparo,onde escreve os primeiros capítulos deSão Bernardo.

    Em 1933, torna-se diretor da Ins-trução Pública, operando drásticasmodificações na estrutura educacio-nal de Alagoas. Em março de 1936 épreso, sob a acusação de ser aliancista.É conduzido ao Recife, e de lá enviadoao Rio de Janeiro. Essa experiência vi-rá relatada em  Memórias do cárcere,de publicação póstuma.

    VIDAS SEC  AS Graciliano Ramos

    ANALISE DA  OBRA DÁCIO ANTÔNIO DE CASTRO

    Foto de Graciliano com seu filho, o escritor Ricardo Ramos.

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    Libertado, hospeda-se na casa de José Lins doRego, um dos amigos que mais se empenharam porsua libertação. Fixa-se no Rio de Janeiro. Em 1940, énomeado inspetor federal de ensino secundário. Ade-re oficialmente ao Partido Comunista Brasileiro em1945, ano em que começa a trabalhar como revisor noCorreio da Manhã (RJ).

    Em 1951, é eleito presidente da Associação Bra-sileira de Escritores. É convidado a visitar a UniãoSoviética, Tchecoslováquia, Portugal e França, expe-

    riência relatada na obra Viagem.De volta ao Brasil, consulta médicos sobre for-tes dores no peito que sentira durante a viagem.Estes lhe recomendam ir à Argentina, onde espe-cialistas diagnosticam um câncer na pleura em está-gio avançado. Como a cirurgia fosse inútil, reco-mendam seu retorno ao Brasil; os cinco meses se-guintes, Graciliano suporta à base de morfina. Fale-ce no Rio, aos sessenta anos.

    O SEGUNDO T EMPO MODE RNISTAVidas secas é uma obra que se insere no ciclo do

     romance regionalista nordestino desenvolvido aolongo da década de 1930, constituindo-se num dosmarcos do Neo-Realismo na literatura brasileira.

    O crítico Tristão de Athayde refere-se à décadade 1930 do seguinte modo: “Passou a hora das coisas bonitas” . Com efeito, um grupo de escritores norte-nordestinos mobilizou-se para tomar os problemasda região como pano de fundo de sua experiêncialiterária. A bagaceira (1928), de José Américo de Al-meida, é considerado o marco inicial do ciclo do ro-mance regionalista nordestino.

    O F IL  ÃO REGIONAL ISTADesde o Romantismo, o regionalismo se consti-tuiu num dos filões temáticos mais explorados pelosescritores brasileiros. A convicção de que o verda-deiro Brasil é o do sertão decorre do modo “caran-guejo” como se processou a colonização portuguesa,que procurou se concentrar no litoral, dada a dificul-dade de penetração no interior do país. Essa con- vicção, de fundo nacionalista, reforça-se com a Inde-pendência, levando escritores a enveredar pelo serta-nismo. José de Alencar (O sertanejo, 1876) e FrânklinTávora (O cabeleira, 1876) são os escritores que me-lhor representam essa tendência, ao oferecerem uma visão grandiloqüente e apocalíptica da seca de 1777.

    No Realismo, em sintonia com a teoria do deter-minismo que influencia a estética, o regionalismo se“desidealiza”. Os autores mostram-se agora empenha-dos em revelar como a realidade é influenciada porpressões exercidas pelo meio, pela raça e pelo mo-mento histórico. Escritores como Rodolfo Teófilo ( A fome, 1888), Domingos Olímpio ( Luzia homem, 1903)e, principalmente, Oliveira Paiva ( D. Guidinha do Poço,

    1891, publicado em 1952) passam a denunciar as-pectos retrógrados de nossa organização rural, co-mo o regime de apropriação da terra, o aproveita-mento e a transformação dos recursos naturais, apermanência das relações de trabalho nos mesmosmoldes da era colonial.

     A prosa pré-modernista, ainda alinhada com aconcepção, instaurada pelo Realismo, de arte comoinstrumento de crítica social, alargou essa visão pro-blematizadora da sociedade rural brasileira, incor-

    porando ao texto literário as particularidades sin-táticas, fonéticas e vocabulares do falar regional.Duas obras do período que se estende do Rea-

    lismo ao Pré-Modernismo podem ser consideradascomo antecipadoras e/ou preparadoras de Vidas se-cas. A saga do vaqueiro nordestino em sua lida diá-ria com o gado e as exíguas possibilidades de so-brevivência que lhe restam nos períodos da seca,deixando-lhe como única saída a migração, foramtemas explorados, inicialmente, em  Dona Guidinhado Poço, romance realista-naturalista de Manuel deOliveira Paiva (1861-1892), cujo estilo lembra o deGraciliano Ramos, pelo despojamento e pela inclu-

    são de vocábulos e expressões regionais:

     Estava-se em fevereiro e nem um pingo de água.O poço da Catingueira, o mais onça da ribeira do Ba- nabuiú, que em 1825 não pôde esturricar, sumia-sequase na rocha, entre as enormes oiticicas, de um lado,e do outro o saibro do rio. Era um trabalhão para os pobres vaqueiros: aqui, alevantar uma rês caída; ali, fazer sentinela nas aguadas a fim de proteger o gadoamofinado contra a crueldade do mais forte; e, todosos dias que dava Nosso Senhor, cortar rama. E aindatinham de percorrer constantemente as veredas e bati-das para acudir prontamente à rês inanida de fome e

    sede, perseguir os porcos, que algum desalmado vizi- nho teimava em criar, persegui-los a bala, porque otorpe cabeça-baixa impestava os bebedouros.

    (São Paulo, Ática, 1982)

     A outra referência é Os sertões (1902), de Eu-clides da Cunha (1866-1909), obra pré-modernistade cuja costela parece ter saído Vidas secas. Os ser-tões, misto de sociologia, literatura, reportagem deguerra, revelam a admiração de Euclides da Cunhapelos sertanejos, a compreensão de suas lutas con-tra a natureza, constituindo um protesto contra o des-prezo com que são tratados pelo governo federal.

    O princípio da tragédia que orienta a vida deFabiano e de seus descendentes é um prolonga-mento de um conceito instaurado por Euclides daCunha em Os sertões. É uma verdade histórica que vem de longe: Euclides já dizia que o sertanejocopia o pai, como o pai copia o avô, como o avô co-piava o bisavô, numa seqüência de gestos que seperpetuam eternamente: é uma genealogia em quenão há progresso social.

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    No fragmento transcrito a seguir, de “O homem”(segunda parte de Os sertões), Euclides descreve o vaqueiro nordestino, num retrato muito próximo doque Graciliano Ramos desenharia de Fabiano:

    Cedo encarou a existência pela sua face tormen-tosa. É um condenado à vida. Compreendeu-se envol-vido em combate sem tréguas, exigindo-lhe imperiosa- mente a convergência de todas as energias [...]. O seuaspecto recorda, vagamente, à primeira vista o deguerreiro antigo cansado da refrega. As vestes são uma

    armadura. Envolto no gibão de couro curtido, de bodeou de vaqueta; apertado no colete também de couro;calçando as perneiras, de couro curtido ainda, muito justas, cosidas às pernas e subindo até as virilhas, arti-culadas em joelheiras de sola; e, resguardados os pés eas mãos pelas luvas e guarda-pés de pele de veado — écomo a forma grosseira de um campeador medievalem nosso tempo. (São Paulo, Círculo do Livro, s/d.)

    No século XX, o fenômeno da seca também foireferência para obras como  A bagaceira (1928), deJosé Américo de Almeida, O quinze (1930), de Ra-chel de Queirós, e Seara vermelha (1946), de Jorge

     Amado, entre outras. Vidas secas (1938), entretanto,distingue-se pela técnica narrativa e pela singulari-dade da estrutura de romance, inovações que supe-ram o empenho documental, testemunhal das obrasmencionadas.

     A tendência regionalista se renovou, em meadosda década de 1940, com Guimarães Rosa, que crioupoeticamente um sertão imaginário, a partir das vi- vências do homem da região centro-oeste do Brasil.

     A PUBLIC  AÇ  ÃO DE VIDAS SEC AS  A gestação de Vidas secas1 começou num mo-

    desto quarto de pensão, localizado à rua Correia Du-tra, 164, no bairro do Catete, Rio de Janeiro. Ali, aindacom a cabeça raspada — lembrança da temporada naIlha Grande —, em carta, datada de 7 de maio de 1937,à esposa, Heloísa de Medeiros Ramos, que perma-necera em Alagoas, Graciliano conta como foi oprimeiro movimento de elaboração da obra:

     Escrevi um conto sobre a morte duma cachorra,um troço difícil, como você vê: procurei adivinhar oque se passa na alma duma cachorra. Será que há mesmo alma em cachorro? Não me importo. O meu bicho morre desejando acordar num mundo cheio de

     preás. Exatamente o que todos nós desejamos. Adiferença é que eu quero que eles apareçam antes dosono, e padre Zé Leite pretende que eles nos venhamem sonhos, mas no fundo todos somos como a minhacachorra Baleia e esperamos preás. É a quarta his-tória feita aqui na pensão. Nenhuma delas tem movi- mento, há indivíduos parados. Tento saber o que eles

    têm por dentro. Quando se trata de bípedes, nem por  isso, embora certos bípedes sejam ocos; mas estudar o interior duma cachorra é realmente uma dificul-dade quase tão grande como sondar o espírito dum literato alagoano. Referindo-me a animais de dois pés, jogo com as mãos deles, com os ouvidos, com osolhos. Agora é diferente. O mundo exterior revela-sea minha Baleia por intermédio do olfato, e eu sou um bicho de péssimo faro. Enfim parece que o contoestá bom, você há de vê-lo qualquer dia no jornal.

     Baleia é como esse poeta que gostava de cheirar  roupa de mulher.(GARBUGLIO, J. C.; BOSI, A.; FACIOLI, V., 1987, p. 241.)

    Três meses depois da carta, Graciliano provi-dencia a vinda da esposa e dois filhos, que passam amorar com ele na pensão de da. Elvira, no Rio. Todamanhã, bem cedinho, tirava do fundo de um armá-rio uma garrafinha de cachaça, tomava um gole em jejum, arrumava os três maços de Selma que fuma- va diariamente e sentava-se à mesa para escrever asaga da família de retirantes nordestinos.

    O projeto inicial era produzir um romance, mas

    a conta da pensão não podia esperar. Por isso, cadacapítulo ficou sendo uma espécie de episódio, logo vendido para  La Prensa, um dos mais prestigiosos jornais da Argentina, atendendo a uma encomendade um amigo, Benjamin de Garay, que solicitara aGraciliano “umas histórias do Nordeste”. Algumasdessas estórias, por intermediação de Rubem Braga,são também vendidas para O Jornal, do Rio de Ja-neiro, por cem mil réis. Para ganhar dinheiro, Gra-ciliano usou do artifício de publicá-las, com títulosdiferentes, em vários jornais e revistas, como OCruzeiro, Diário de Notícias, Folha de Minas e Lan-terna Verde. Era o único meio de aplacar a fome de

    dinheiro semanal da dona da pensão, que perderasuas parcas economias na roleta do Cassino da Urca.

    No ensaio Alguns tipos sem importância, escritoem agosto de 1939 e publicado, posteriormente, em Linhas tortas (1962), Graciliano dá outro depoimentosobre a produção de Vidas secas:

     Em 1937 escrevi algumas linhas sobre a morte du- ma cachorra, um bicho que saiu inteligente demais,creio eu, e por isso um pouco diferente dos meus bí- pedes. Dediquei em seguida várias páginas aos donosdo animal. Essas coisas foram vendidas, em retalho, a jornais e revistas. E como José Olympio me pedisse

    um livro para o começo do ano passado, arranjei ou-tras narrações, que tanto podem ser contos comocapítulos de romance. Assim nasceram Fabiano, a mu- lher, os dois filhos e a cachorra Baleia [...]. Vidas secassão cenas da vida do Buíque.

    Foi se armando assim, peça por peça, a estrutu-ra desse “romance desmontável”, como o classificouRubem Braga, companheiro de letras de Graciliano,que morava na mesma pensão. Vidas secas foi publi-

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    1 Todas as citações provêm da 63ª- edição da obra (São Paulo,Record, 1992), com ilustrações de Aldemir Martins.

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    cado em março de 1938, dois meses antes do ataqueintegralista ao Palácio do Catete, residência oficialde presidentes da República que, na época, hospe-dava Getúlio Vargas, ditador desde a instauração doEstado Novo, a 10 de novembro de 1937.

    O ano de 1938 seria também marcado pela par-ticipação da seleção brasileira de futebol na Copado Mundo, realizada na França (em que obtém o 3º-lugar, eliminada pela Itália nas semifinais), e pelasmortes de Lampião e Maria Bonita, assassinados

    em Sergipe.No plano internacional, marcariam esse ano apublicação de A náusea, de Jean-Paul Sartre, a reali-zação da Grande Exposição Internacional do Surrea-lismo, em Paris, a primeira apresentação de Guer- nica, mural em que Pablo Picasso denuncia o bom-bardeio da cidade basca pelo comando condor daLuftwaffe alemã, em apoio às tropas monarquistasde Francisco Franco, durante a Guerra Civil Espa-nhola. É também em 1938 que Orson Welles realizaa célebre performance que deixaria os americanosarrepiados: transmite pelo rádio a “invasão” dosEstados Unidos por marcianos.

    Em julho de 1944, a propósito de Vidas secas,Graciliano prestou o seguinte depoimento ao colu-nista João Condé, de O Cruzeiro:

     No começo de 1937 utilizei num conto a lembrançade um cachorro sacrificado na Maniçoba, interior de Pernambuco, há muitos anos. Transformei o velho Pedro Ferro, meu avô, no vaqueiro Fabiano; minha avótomou a figura de sinha Vitória; meus tios pequenos, machos e fêmeas, reduziram-se a dois meninos.

     Publicada a história, não comprei o jornal e fiqueidois dias em casa, esperando que meus amigos es-quecessem Baleia. O conto me parecia infame — e

    surpreendeu-me falarem dele. A princípio julgueique as referências fossem esculhambação, mas aca- bei aceitando como razoáveis o bicho, o matuto, a mulher e os garotos. Habituei-me tanto a eles que re-solvi aproveitá-los de novo. Escrevi “Sinha Vitória”. Depois, apareceu "Cadeia". Aí me veio a idéia de jun-tar as cinco personagens numa novela miúda — umcasal, duas crianças e uma cachorra, todos brutos.

    Octávio de Faria me dissera, em artigo enorme,que o sertão, esgotado, já não dava romance. E eu havia pensado:

    — Santo Deus! Como se pode estabelecer limi-

    tações para essas coisas?  Fiz o livrinho, sem paisagens, sem diálogos. E 

    sem amor. Nisso, pelo menos, ele deve ter alguma ori-ginalidade. Ausência de tabaréus bem-falantes, quei- madas, cheias e poentes vermelhos, namoro de ca- boclos. A minha gente, quase muda, vive numa casavelha de fazenda. As pessoas adultas, preocupadascom o estômago, não têm tempo de abraçar-se. Até

    a cachorra é uma criatura decente, porque na vizinhan-ça não existem galãs caninos.

     A narrativa foi composta sem ordem. Comecei pelo nono capítulo. Depois chegaram o quarto, o ter-ceiro etc. Aqui ficam as datas em que foram arruma-dos: “Mudança”, 16 julho 1937; “Fabiano”, 22 agosto;“Cadeia”, 21 junho; “Sinha Vitória”, 18 junho; “O menino mais novo”, 26 junho; “O menino maisvelho”, 8 julho; “Inverno”, 14 julho; “Festa”, 22 julho;“Baleia”, 4 maio; “Contas”, 29 julho; “O soldado

    amarelo”, 6 setembro; “O mundo coberto de penas”,27 agosto; “Fuga”, 6 outubro.

     Apesar de Graciliano já desfrutar de alguma fama, a primeira edição de Vidas secas  vendeupouco. Mesmo bem recebida pela crítica, os milexemplares da obra demoraram dez anos para seesgotar. Até a morte do escritor, em 1953, foramlançadas somente três pequenas edições.

     APRESENTAÇ  ÃO DE V I DAS SECA S 

    Vidas secas se destaca, dentre as obras de Gra-ciliano Ramos, por explorar em grau máximo expe-rimentações no modo de narrar. O romance repre-senta sua consagração como escritor, nele atingin-do seu mais elevado grau de depuração estilística.De fato, a obra surpreendeu pela concisão e pelosefeitos de sentido criados pelas manobras com alinguagem.

     A amarga experiência vivida como preso políticoteve muito a ver com a gestação de Vidas secas, quese deu nos meses seguintes à sua libertação. Pareceter iluminado a decisão de Graciliano retomar as raí-

    zes regionais. A 4 de maio de 1937 escreveu “Baleia”,resgatando emocionadamente a figura de um cachor-ro de seu avô. A partir desse conto — verdadeiro nú-cleo gerador da obra —, os outros episódios foram-seacumulando, de forma espontânea e imprevista, semobedecer a um plano rígido no modo de narrar. Ao final, cada um dos treze capítulos apresentava umaorganização interna própria, enredada por um acen-tuado domínio da unidade de espaço, sem a preocu-pação ostensiva de fixar referências temporais muitonítidas. Externamente, conseguia uma estrutura bemdemarcada, com doze páginas, em média, por capítu-lo-quadro. Ao contrário dos romances anteriores, em

    que os capítulos vinham numerados ou separadospor espaços em branco, os episódios de Vidas secasreceberam títulos, que impõem limites aos assuntostratados, focalizando ora o traço dominante no es-pírito da personagem (ex.: “O menino mais novo” — aimitação do pai como domesticador de animais bra- vios), ora situações que envolvem todas as persona-gens (“ Mudança” — a caminhada nômade da família).

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    O romance adquire uma dimensão épica, por pro-blematizar, com lúcida radicalidade, as exasperan-tes condições de sobrevivência no sertão, definidaconcretamente pela viagem sem rumo da família de flagelados. Reproduz, metonimicamente, por meiodo relato da existência sem destino de Fabiano, deSinha Vitória, do menino mais velho e do meninomais novo, o drama que ultraja multidões de erran-tes sem-terra. Adequando harmoniosamente a lingua-gem a essa temática social, Graciliano soube explo-

    rar com talento a descontinuidade dos episódios, oque lhe possibilitou abandonar uma técnica aplica-da nas obras anteriores: inserir um romance dentrode outro.

    Por trás dos eventos narrados, subjaz permanen-temente o tema da utopia de justiça social. Em Vidassecas, esta chama de esperança se sustenta na deter-minação com que os retirantes perseguem uma pos-sibilidade concreta de participação social. Isso semanifesta no anseio maior que congrega todas aspersonagens em torno de uma aspiração comum: odireito à cidadania, tema representado por desejosparticularizados de cada personagem. Sinha Vitória,

    ao almejar uma cama com lastro de couro, na ver-dade acalenta o sonho de viver com o mínimo deconforto material; já Fabiano alimenta a fantasia de fixar-se num grande centro urbano, com um traba-lho regular, para não mais correr o perigo de sucum-bir à fome e à sede; o menino mais velho, obcecadoem conhecer o significado de certas palavras, pre-tende inconscientemente a aquisição de um saberque goze de reconhecimento social, dado pela esco-laridade; o menino mais novo, imitador do pai va-queiro, revela em sua quimera o desejo de continui-dade na profissão do pai, algo que se mostra quaseimpossível numa existência tão descontínua. Baleia,

    que sonha com comida até na hora da morte, repre-senta a angústia diante da carência de recursos atépara satisfazer os apetites e necessidades biológicas,demonstrando que, na paisagem embrutecedora donordeste, homens e animais se igualam na luta con-tra a adversidade das condições de sobrevivência.

     A estrutura do romance é aberta, em grau inver-samente proporcional ao fechamento existencial queencurrala as “vidas secas”. Com a lucidez de quemaprendeu a observar pragmaticamente a realidade,Graciliano anula o deslumbramento maniqueísta eanuncia o anseio por um futuro melhor já nas pági-

    nas iniciais do romance. Entretanto, registra-a no futuro do pretérito, para firmar o quanto sonha comessa possibilidade, mesmo consciente dos imensosobstáculos que impediam sua consecução: “SinhaVitória vestiria uma saia larga de ramagens. A cara murcha de Sinha Vitória remoçaria , as nádegas bambas de Sinha Vitória engrossariam , a roupaencarnada de Sinha Vitória provocaria a inveja dasoutras caboclas. [...] A fazenda renasceria — e ele,

     Fabiano, seria o vaqueiro, para bem dizer donodaquele mundo.” (p. 15-16). Essa utopia é retomada na página final: “ Chegariam a uma terra des-conhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o sertãocontinuaria a mandar gente para lá. O sertão man-daria  para a cidade homens fortes e brutos, como Fabiano, Sinha Vitória e os dois meninos.“ (p. 126)

    Deve-se destacar também a circularidade quecompõe a arquitetura romanesca de Vidas secas, co-mo desenho que descreve o movimento de um bu-

    merangue: o romance termina como começou. Ao final, os flagelados iniciam nova andança, que repetecertas características da que se registrara no início. Ocapítulo “Fuga” pode ser lido, assim, como o princí-pio de “Mudança” e este marcaria o fim daquele.

     As vidas se secam não só fisicamente. A secacalcina a alma das personagens, se se considera oproblema moral, manifesto sobretudo na dificul-dade que sentem para estabelecer relacionamentosinterpessoais. A exploração econômica, que os sub-mete tanto quanto a crueldade da natureza, conde-na-os a viver num mundo primário. A perspectivada morte torna-se, para eles, a única certeza.

     A linguagem rarefeita dos flagelados espelha adegradação do universo em que vivem. A reprodu-ção sistemática dos mesmos modelos sintáticos, oposicionamento muito semelhante das palavras nasorações, a insistência na repetição de vocábulos-chave, o acúmulo de pausas na narração, são recur-sos que se somam para produzir, entre outros, oefeito de desumanização das personagens. Essesrecursos, explorados com tanta habilidade por Gra-ciliano, associam-se complementarmente ao tema,orientando-se com funcionalidade para confirmar oseu significado. Afinal, não basta apenas denunciar

    a reificação de Fabiano; sobretudo, é preciso reco-nhecer os instrumentos que o autor operou parapersuadir o leitor dessa desumanização. Daí ainsistência, por exemplo, com que se enfatizam, em vários momentos da narrativa, os pés das persona-gens. Graças à alquimia metonímica, o narrador fazcom que eles sejam vistos como a parte mais impor-tante do corpo, pois a ameaça permanente donomadismo exige dos sertanejos deslocamentosconstantes e involuntários.

     A dificuldade de relacionamento interpessoalmanifesta-se sobretudo no plano da estruturação da

    linguagem. Há pequena incidência do discurso di-reto; isso acontece não apenas porque as persona-gens sejam semi-analfabetas. Nos poucos diálogosque travam, acumulam-se tantos ruídos que elas se frustram ou se inibem no uso da linguagem. Con- versam muito pouco, valendo-se muitas vezes deonomatopéias, sons guturais e animalescos. Até opapagaio, em seu curto intervalo de vida, aprendeuapenas a imitar aboios e latidos.

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    Esse rudimentarismo psicológico dos membrosda família sertaneja é, no entanto, aparente. Num exa-me mais acurado dos monólogos, vai se observar que,embora haja, de fato, acentuado desnivelamento en-tre a vida interior e a exterior dessas criaturas, a todomomento elas procuram demonstrar a capacidade desentir, de desejar, de levantar problemas para resol- ver. Esse traço as nobilita como seres humanos, dife-renciando-as dos animais brutos. Tal comportamentoé extensivo inclusive a Baleia, que pensa como gente,

    mesmo que seja uma gente que, por força das cir-cunstâncias, tenha de viver como bicho.Nota-se, então, que a narrativa foi engendrada de

     forma a apontar, dialeticamente, a relação contra-ditória entre a precariedade dos recursos de lin-guagem — para figurativizar o tema da marginaliza-ção social — e a competência do monólogo interiorpara figurativizar o rico substrato de humanidadedas personagens —, apesar da incompetência de for-malizá-lo segundo moldes de linguagem mais sofis-ticados.

    Cena do filme Vidas Secas . Ática Iório, com um dos meninosàs costas, Maria Ribeiro, carregando o outro menino, e a cachorraPiaba no papel de Baleia.

    Por tudo isso, Vidas secas é um romance áspero,mas a verdade que carrega em sua dura poesia é tãodensa, que o torna permeável a todas as sensibili-dades. De forma contundente, aponta para a urgên-cia da reforma agrária no país. A advertência de Fer-nando Sabino, na abertura da adaptação cinemato-gráfica de Vidas secas, ganha hoje proporções muitomais dramáticas que as de 1963 (época da realização

    do filme) e, sobretudo, que as de 1938 (publicação dolivro) pela amplitude que tais problemas assumiramnas últimas décadas: “Este filme não é apenas a trans- posição fiel, para o cinema, de uma obra imortal da li-teratura brasileira. É antes de tudo um depoimentosobre uma dramática realidade social de nossos dias ea extrema miséria que escraviza 27 milhões de nor-destinos e que nenhum brasileiro digno pode mais ignorar.” 

    ENRE DOOs C apítulos–Quadros

    Os treze quadros que compõem Vidas secas le- vam o leitor a acompanhar o passo erradio dos reti-rantes, o percurso incerto desses flagelados cujo des-tino é condicionado por um sol que brilha como seexistisse unicamente para castigá-los. A seqüênciadescontínua das cenas possibilita uma leitura alea-tória dos capítulos intermediários, porque o romance

    não segue um esquema convencional de enredo. A estrutura do livro é definida por três movimentos: re-tirada — permanência na fazenda — retirada.

    Mais que qualquer outra obra da tradição lite-rária brasileira, Vidas secas condensa todas as pres-sões que circunstanciam a miséria sertaneja. A pre-cisão no desenho das imagens, sem concessões senti-mentais, revela que o que realmente pesa, no dia-a-dia dos retirantes, é a ausência de qualquer possibi-lidade de vida contínua. Tudo permanece estanque,sem que os membros da família possam alcançar umacomunhão maior entre si: o que os vincula é o silên-

    cio, o não saber fazer uso da palavra para abrir bre-chas que os levem a conhecer o mundo, para alémdos estreitos limites do cotidiano.

     As palavras cujo significado Fabiano desconhecesão inequívoco sinal de perigo: por meio delas, o pa-trão, o soldado amarelo, o fiscal da prefeitura, enfim, ogoverno, conseguem submetê-lo, como já o fizeramcom seu pai e avô e, provavelmente, virão a fazer comos dois meninos, a despeito do sonho paterno de en- viá-los para o Sul, para que possam estudar.

    I – Mudanç aUma família sertaneja, constituída pelo vaqueiro

    Fabiano (pai), sinha Vitória (mãe), dois filhos (referi-dos como “ menino mais novo” e “ menino mais velho”),acompanhados da cachorra Baleia, atravessa a caatin-ga. Na condição de flagelados retirantes, eles dor-mem no leito seco dos rios, permanentemente ator-mentados por sede, fome e cansaço. Arrastam-se pelosolo estorricado, com seus minguados pertences. A certa altura, o filho menor se deita no chão, sem for-ças para continuar. Fabiano se enraivece, a ponto depensar em abandonar o menino; depois, apieda-sedele, coloca-o nas costas e prossegue a caminhada,ainda mais lentamente. Não sabem para onde ir. An-

    gustiados, sem perspectiva, atenuam a fome com osacrifício do papagaio e com um preá, caçado por Ba-leia. Homens e animais igualam-se na condição deretirantes. A expressão “seis viventes” (Fabiano, sinha Vitória, o menino mais velho, o menino mais novo,Baleia e o papagaio) coloca-os num mesmo plano. Aproxima-os o destino comum, materializado nas ne-cessidades pelas quais passam durante a seca nor-destina. Enquanto os humanos são zoomorfizados,

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    Baleia apresenta sentimentos e pensamentos nitida-mente humanos, num processo simbólico de antro-pomorfização. A morte do papagaio, apresentadano passado, é assim relatada:

    [...] Baleia jantara os pés, a cabeça, os ossos do ami-go, e não guardava lembrança disto. Agora, enquanto parava, dirigia as pupilas brilhantes aos objetos fami- liares, estranhava não ver sobre o baú de folha a gaiola pequena onde a ave se equilibrava mal” (p. 11).

    Já no capítulo inicial, Graciliano manifesta pre- ferência por uma seleção lexical mais direta, áspera,dura e agressiva. Tal tratamento, além de caracteri-zar o vocabulário típico da região, parece querer pro- vocar o leitor, retirando-o de seu estado de acomo-dação ou apatia e estimulando-o a recorrer constante-mente ao dicionário para conhecer o significadodos termos regionais.

    II – Fabiano A família se aloja numa fazenda abandonada, ali-

    mentando-se de “ raiz de imbu e sementes de mucu- nã”. Após uma trovoada, aparece o dono da fazenda

    e expulsa os invasores. Fabiano finge-se de desen-tendido e se oferece para trabalhar como capataz va-queiro. O fazendeiro aceita a oferta e lhe entrega aspeças de ferro para marcar a posse do gado.

    Satisfeito por ter encontrado refúgio, Fabianotemporariamente esquece os sofrimentos. A princípio,compara a si próprio e a família a “ ratos”. Depois depreparar um cigarro de palha, exclama em voz altaque é um homem. Como está próximo dos filhos, con-tém-se, preferindo identificar-se como “cabra”, formanordestina de se referir a pessoas de nível social infe-rior. A expressão conota também a idéia de animaliza-

    ção, de adaptação e resistência a ambientes agressivose inóspitos. A seguir, orgulha-se por se sentir mais co-mo um bicho: “Sim senhor, um bicho, capaz de vencer dificuldades”. Tomava conta da fazenda, do pouco ga-do que restara da outra seca, da casa, de coisas quenão eram dele. Criava raízes em terra alheia. Enten-dia-se com os animais, usando a mesma linguagempara se comunicar com a mulher e os filhos. Diz asse-melhar-se a um “ macaco”. Progressivamente, Fabianoconscientiza-se de sua condição inferior. A enumera-ção dos caracteres físicos enfatiza sua irrelevância co-mo indivíduo socialmente situado. A auto-imagem de-gradante de Fabiano se completa ao se considerar

    “uma coisa da fazenda, um traste”, pois, apesar debranco como os patrões, falta-lhe o essencial — a pro-priedade —, uma vez que “vivia em terra alheia, cuidavade animais alheios”. Não era uma pessoa diante de quem

    outras pudessem se inclinar, em sinal de respeito.

     Apesar de tudo, espera que os filhos venham aser como ele:

     Indispensável os meninos entrarem no bom ca- minho, saberem cortar mandacaru para o gado, con-

    sertar cercas, amansar brabos. Precisavam ser duros,virar tatus. Se não calejassem, teriam o fim de seuTomás da bolandeira. Coitado. Para que lhe serviratanto livro, tanto jornal? Morrera por causa do estô- mago doente e das pernas fracas (p. 24).

    Seu Tomás da bolandeira era conhecido por tera máquina de triturar cana-de-açúcar e ralar man-dioca, puxada por animais que movimentam umaroda grande, acionando o rolete da moenda.

    III – C adeia Aproveitando a estabilidade temporária, Fabia-

    no vai à feira da cidade fazer compras. Inseguro edesconfiado, visita as lojas, sempre pechinchandomelhores preços ou reclamando da qualidade dosprodutos. Na bodega em que toma uma cachaça,Fabiano é convidado por um soldado amarelo para jogar cartas. Responde, negaceando, com expres-sões emprestadas de seu Tomás, empregadas de for-ma completamente desarticulada: “—  Isto é. Vamose não vamos. Quer dizer. Enfim, contanto, etc. É con- forme” . No trinta-e-um, perde dinheiro e, acabrunha-

    do, retira-se do jogo sem se despedir do parceiro. En-quanto pensava no álibi com que iria justificar-seperante a esposa, Fabiano é abruptamente empur-rado pelo soldado amarelo, que o censura por aban-donar o carteado. Dizendo-se desrespeitado, o sol-dado pisa no pé de Fabiano, que retruca xingando-lhe a mãe. O soldado dá um apito e, imediatamente,todo o destacamento aparece para apoiar a voz deprisão a Fabiano. A vingança sádica da autoridademesquinha se completa na cadeia: Fabiano é impie-dosamente surrado, recebendo golpes de facão nolombo; passa a noite a remoer sua revolta, em com-pleto estado de confusão mental.

    Para ampliar a conexão com a realidade, o nar-rador, antes de Fabiano ser violentamente inter-pelado pelo soldado amarelo, registra minuciosa esimultaneamente imagens do cotidiano de um po- voado, no interior nordestino:

    [...] A feira se desmanchava; escurecia; o homemda iluminação, trepando numa escada, acendia os lampiões. A estrela papa-ceia branqueou por cimada torre da igreja; o doutor juiz de direito foi brilhar  na porta da farmácia; o cobrador da prefeitura pas-sou coxeando, com talões de recibos debaixo do bra-ço; a carroça de lixo rolou na praça recolhendo cas-

    cas de frutas; seu vigário saiu de casa e abriu o guar-da-chuva por causa do sereno; sinha Rita louceira retirou-se (p. 28-9).

    IV – Sinha V itóriaSinha Vitória se revolta com a rotina dos afaze-

    res domésticos. Indignada, enerva-se com Baleia ecom os filhos. A certeza de ter que continuar dor-mindo numa cama de varas e a lembrança do papa-

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    gaio que fora obrigada a sacrificar intensificam suaamargura. Cafuza e inteligente, ela dirige o marido,bronco e bruto. Na discussão com Fabiano, faz alu-são ao dinheiro perdido no jogo e na bebida. O ma-rido retruca, censurando a esposa por ter comprado“sapatos de verniz [...] caros e inúteis”.

    Sinha Vitória sonha possuir uma cama confor-tável, de lastro de couro cru e estrado de sucupira,igual à de seu Tomás da bolandeira. Pensa nas di- versas maneiras de obtê-la: venderia as galinhas e a

    porca marrã, deixaria de comprar querosene. Ca-chimbando, alimenta a esperança de, algum dia,conseguir o que deseja, e isso a deixa quase feliz.

     V – O menino mais novoO menino mais novo procura em vão aproximar-

    se dos parentes. Fixa-se no pai; admira-o, especial-mente quando o vê montar a égua alazã. Imagina, umdia, fazer o mesmo, principalmente para demonstrarcoragem junto ao irmão mais velho e a Baleia. Precisa fazer uma proeza, algo que os deixe maravilhados.Para tanto, resolve cavalgar num bode: desastrado,acaba caindo numa ribanceira, sob os risos e chacotas

    do irmão mais velho e o olhar de censura de Baleia.Para se consolar, imagina-se adulto e, espelhado nopai, vê-se no lombo de um cavalo bravio, “de pernei- ras, gibão, guarda-peito e chapéu de couro com bar- bicacho”, disparando livre pela caatinga.

     VI – O menino mais velho Ao ouvir sinha Terta pronunciar a palavra infer-

     no, o menino mais velho, intrigado, pede à mãe quelhe desvende o significado dessa palavra. Depois dedizer que era um lugar cheio de fogueiras e espetosquentes, a mãe indigna-se com a nova pergunta do

     filho: “—  A senhora viu? ” Revoltada com a própriaincapacidade de lhe dar uma explicação satisfatória,aplica-lhe um cascudo e expulsa-o da cozinha. Hu-milhado, o filho vai se esconder na caatinga, pertoda lagoa vazia. Procura consolo junto à cachorra,também enxotada. Relegados ao mesmo plano, osdois se entendem: “O menino beijou-lhe o focinhoúmido, embalou-a. A alma dele pôs-se a fazer voltasem redor da serra azulada e dos bancos de macam- bira” (p. 60). Abraçada pelo menino, Baleia sente que“O cheiro dele era bom, mas estava misturado comemanações que vinham da cozinha. Havia ali um osso.Um osso graúdo, cheio de tutano e com alguma car-

     ne” (p. 62), que sinha Vitória preparava.

     VII – InvernoQuando chega a estação das chuvas, a família se

    reúne ao redor do fogão de lenha. Sonolentos, os me-ninos ouvem os pais conversarem animadamente edesfiarem seus sonhos de felicidade. Com a caatin-ga verde, gado para aboiar e feijão com rapadurapara comer, afasta-se o perigo da seca. Temporaria-

    mente, Fabiano tranqüiliza-se, na esperança de queessa situação permaneça. Sinha Vitória, mais realis-ta, apavora-se com a possibilidade de uma enchente:as águas sobem perigosamente...

     VIII – Festa Vestindo roupas de passeio, confeccionadas es-

    pecialmente para a ocasião, a família vai passar oNatal na cidade. Como Fabiano comprara tecido emquantidade insuficiente, as roupas haviam ficado

    curtas e apertadas. A sensação de ridículo aumentacom o desconforto e a falta de hábito de usar sapa-tos: o constrangimento quase anula o deslumbramen-to. Na igreja, só sinha Vitória identifica-se com a re-ligiosidade do ambiente e procura participar da mis-sa. Os meninos amedrontam-se com tanta gente, eFabiano, deslocado e ainda traumatizado pelo con- fronto com o soldado amarelo, compara-se aos tiposda cidade e se sente inferiorizado. Foge da igreja e vai até a bodega, onde se embriaga; bêbedo, enche-se de coragem para reclamar que o dono do bote-quim misturara água à bebida e desafia os presen-tes. Como ninguém aceita suas provocações, Fabiano

    recolhe-se, prostrado, junto à família.

    IX – BaleiaBaleia fica hidrófoba. Antes de se decidir a sacri-

     ficá-la, Fabiano, supersticiosamente, coloca um colarde sabugos de milho queimados no pescoço da ca-chorra. Todos se desesperam com o sofrimento dela,principalmente Fabiano, por ter de cumprir a difícilmissão de lhe dar um tiro. A agonia da cachorra, nar-rada em “câmara lenta”, amplifica seu halo de huma-nidade. Ela entremeia cenas do passado (quando ca-çara um preá, que saciou a fome de todos) com o pre-

    sente (não entendia o porquê do tiro). Agindo assim,Fabiano procurava abreviar-lhe o sofrimento e evitarque a família se contaminasse.

    Em seu desvario, à véspera da morte, Baleia sen-te-se entrando num espaço de liberdade e de caça farta, sem limites para saciar-lhe a fome.

    X – C ontasComo meeiro, Fabiano vivia numa permanente

    condição de achatamento social: tinha sempre derecorrer ao patrão para satisfazer necessidades bá-sicas, como comida, roupa e instrumentos para o tra-balho. Pagava, por isso, um preço bem superior ao domercado, o que o deixava continuamente endividado junto ao fazendeiro.

    Convidado para um acerto de contas, Fabiano vai até a casa do patrão. Os cálculos do fazendeiro semostram muito diferentes dos de sinha Vitória. Co-mo Fabiano não sabia ler (“um bruto, sim senhor ”),sinha Vitória realizava as somas e diminuições. Fa-zia-o de forma rudimentar, utilizando “sementes devárias espécies” . Mas a diferença entre as contas se

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    devia ao fato de que o patrão computava à divida os“ juros” do empréstimo. Sentindo-se lesado, Fabianoreclama, mas sua contestação é sufocada pelo pa-trão. Passivamente, o vaqueiro aceita a justificativadada pelo fazendeiro. Torna a ficar revoltado ao selembrar do que lhe acontecera na feira da cidade.Tentava vender um porco quando foi surpreendidopelo fiscal da prefeitura; além de multá-lo por ven-der carne sem pagar imposto, o funcionário o insul-tara e o escorraçara do lugar.

    [...] Aparentemente resignado, sentia um ódio imenso a qualquer coisa que era ao mesmo tempo acampina seca, o patrão, os soldados e os agentes da prefeitura. Tudo na verdade era contra ele (p. 95).

     A miragem de permanecer na fazenda vai sedesfazendo.

    Neste capítulo, fica evidente a dificuldade de ex-pressão de Fabiano diante de pessoas que julga su-periores, no caso, o dono da fazenda e o fiscal daprefeitura. Acabrunhado diante dos poderosos, Fa-biano tenta reproduzir um discurso que não era oseu, demonstrando dificuldade em organizar o ra-

    ciocínio. Identifica o patrão como “governo”, repre-sentante arbitrário das instituições sociais, especial-mente porque usava uma linguagem que estavaalém das possibilidades de seu entendimento.

    XI – O soldado amareloObservador arguto da natureza, Fabiano sai pela

    caatinga, à procura de reses fugidas. Examina ochão, decifrando sinais que lhe permitem diferenciaros rastos de uma égua ruça dos de sua cria. De re-pente, depara-se com o soldado amarelo, perdido nacaatinga. O reencontro se dá um ano após o vaquei-ro ter sido preso. Ao evocar aquele episódio, Fabia-no é tomado pelo desejo de vingança. Embora fosseconcreta a oportunidade da revanche, num gesto degrandeza, o vaqueiro apieda-se do soldado:

     Aprumou-se, fixou os olhos nos olhos do polícia,que se desviaram. Um homem. Besteira pensar que ia ficar murcho o resto da vida. Estava acabado? Nãoestava. Mas para que suprimir aquele doente que bambeava e só queria ir para baixo? Inutilizar-se por causa de uma fraqueza fardada que vadiava na feirae insultava os pobres! Não se inutilizava, não valia a pena inutilizar-se. Guardava a sua força (p. 107).

    Deixa-o partir, pois o vê como representante deinstituições abstratas e até inúteis mas que deviamser respeitadas: “— Governo é governo”.

    XII – O mundo cober to de pe nas Aves de arribação anunciam novo ciclo de seca.

    Elas constituem um símbolo ambíguo: de um lado,acentuam os efeitos da seca, porque bebem a poucaágua existente; de outro, servem de alimento e, tem-

    porariamente, impedem que a família morra de fo-me. Os animais começam a tombar. Fabiano procu-ra atirar nos pássaros, garantindo alimento para ospróximos dias. Atemorizado, pensa no que signi- ficam o soldado amarelo e o dono da fazenda. Sen-te-se numa encruzilhada: tanto poderia ser vaqueirocomo cangaceiro. Nota igualmente como sua sinase assemelha à de Baleia... Volta para casa, infeliz erevoltado com sua impotência, julgando-se um “Ca- bra safado, mole. Se não fosse tão fraco, teria entra-

    do no cangaço e feito misérias”.Neste episódio, o inconsciente da personagemprocura suprir as lacunas do consciente, concla-mando-a a transformar a revolta em ação:

    — Fabiano, meu filho, tem coragem. Tem vergo- nha, Fabiano. Mata o soldado amarelo. Os soldadosamarelos são uns desgraçados que precisam morrer. Mata o soldado amarelo e os que mandam nele (p. 111).

    XIII – FugaCom a chegada novamente da seca, a princípio

    Fabiano pensa em resistir e permanecer na fazenda.

    No entanto, a morte de um número cada vez maiorde reses faz com que ele se decida a tentar a sobre- vivência noutro lugar. Desconsolados, o casal e os fi-lhos resolvem partir de madrugada, evitando outro econstrangedor encontro com o patrão, pois não têmcomo saldar a dívida acumulada. Despojados de tu-do, iniciam nova retirada, levando às costas os pou-cos bens. Caminham sob um céu implacavelmenteazul. Asperamente, Fabiano ordena à família quemarche em ritmo mais intenso. Lembram-se de Ba-leia e, para atenuar o sofrimento, começam a conver-sar sobre um futuro melhor. A intermitência da secaparece reservar-lhes o indesejado papel de Sísifos

    sertanejos. Para eles, a vida é um eterno recomeço.Sem destino, só lhes resta a opção da retirada. Fa-biano sonha ainda com os filhos aprendendo a ler eindo morar numa cidade grande: sinha Vitória ali-menta, mais uma vez, a esperança de poder um diadormir numa cama de lastro de couro.

    EST  RUT UR A DA OBR AVidas secas é uma composição literária aberta:

    seus capítulos são autônomos, ordenam-se por jus-taposição. Esse tipo de estrutura permite leituras variáveis, em seqüência aleatória, numa disposição

    diversa da proposta pelo autor. Isoladamente, os ca-pítulos são quadros, painéis diversificados a con- vergir para um mesmo drama.

    “Baleia”, o nono capítulo na seqüência de publi-cação mas o primeiro a ser escrito, é o único que re-cebe o tratamento de conto, por apresentar caracte-rísticas fundamentais deste gênero: um único con- flito dramático, uma tensão interna apresentada jánum pré-clímax, que se atenua num epílogo sem pos-

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    sibilidade de continuação, e uma unidade dramática, fruto de rigorosa condensação de efeitos e porme-nores. Os outros capítulos não apresentam tais tra-ços; são apenas quadros autonômos, que se justa-põem, com recorrências e cruzamentos entre si.

    Curiosamente, no conjunto, esse “romance des-montável” tem um todo coeso, homogêneo, que re-sulta do tema e da organicidade de concepção.

    Embora todos os membros da família enfren-tem basicamente os mesmos obstáculos, cada capí-

    tulo focaliza particularmente uma das figuras doplano geral: Fabiano, sinha Vitória, os dois meni-nos, Baleia. A problemática humana — fome, misé-ria e necessidade de fuga — determina a unidadedramática dos capítulos.

    Praticamente, só existe uma seqüência narrativabásica, definida pelos movimentos de partida e dechegada da família sertaneja. Essa arquitetura cícli-ca se delineia pela repetição da mesma ordem: háuma convergência entre o primeiro capítulo (“Mu-dança”) e o último (“Fuga”), pois ambos são marca-dos pela mesma pressão implacável da seca, queafugenta a família e impede qualquer forma deestabilidade. Desse modo, a obra termina da mesma forma que começa. Os capítulos intermediários re-tratam flagrantes da existência cotidiana desse gru-po de pessoas, sem grandes mistérios.

    O romance abre-se com a caminhada dos reti-rantes, em busca de um lugar menos castigado pelaseca. Encerra-se com outra, que, afinal, é o mesmocaminhar. Tem-se, assim, o efeito de circularidade,pois se prevê a retomada da mesma fuga. Nada sealtera: “mudança” e “fuga” distinguem-se apenas nonome; são rotas de quem pretende desviar-se damorte. O deslocamento para o Sul — miragem final

    — não é nem confirmado nem negado. É apenas umaesperança, e isso é decisivo para manter acesa achama da vida.

    Os episódios independentes facultam ao leitoroutras combinações de seqüência, como um lequeque se abre para a percepção de outros significa-dos. O drama das personagens pode assim ser vis-lumbrado sob outras e diferentes perspectivas, poisa realidade se torna menos previsível e mais com-plexa, envolvendo surpresas e acasos.

    Muitas vezes, os títulos dos capítulos indicamcircunstâncias em que se encontra a família: “Mu-dança”, “Cadeia’, “Inverno”, “Festa”, “Contas” etc.Isso reforça a arquitetura fragmentária do romance:não existe uma transição entre os capítulos, porquenão há continuidade no destino dos retirantes. Essatécnica de justaposição dos episódios confere mo-dernidade à estrutura narrativa, pois rompe com alinearidade e a relação de causalidade, característi-cas da literatura do século XIX.

    Pode-se dizer também que, ao estruturar seu ro-mance em capítulos compartimentados, Graciliano

    Ramos conseguiu espelhar na organização internada obra o ilhamento do sertanejo, impossibilitadode constituir uma forma de vida gregária, que con-seguisse ordenar um entendimento razoável tantoentre os membros da família como desta com a so-ciedade. Isso faz com que as personagens tenham domundo uma percepção fragmentada, desconexa.Esse aspecto também exige do leitor um permanentetrabalho de amarração das imagens, para poderalcançar uma visão de totalidade do drama sertanejo.

    FOCO NARR AT I VOVidas secas, único romance de Graciliano Ra-

    mos com enunciação em 3ª- pessoa, apresenta umaspecto inovador para esse foco de relato: a onis-ciência é prismática. Diferentemente do narradoronisciente tradicional, que vê tudo e sabe de tudo,posicionando-se muitas vezes ostensivamente, emVidas secas, o relato é conduzido de tal forma que oleitor entra em contato direto com a realidade, enxer-gando-a pelo prisma da personagem que está em ce-na. Assim, uma mesma realidade é vista por óticas

    distintas, variando conforme a personagem que a fo-calize. Isso se torna possível graças ao emprego dodiscurso indireto livre, que dá ao narrador-ob-servador um posicionamento discreto: sua “voz”quase se confunde com a das personagens. Em“Inverno”, o leitor “vê” a chuva, guiado pelo olharde Fabiano e sinha Vitória; já em “Fuga”, que encer-ra o romance, a retomada da sina de retirantes é fo-calizada sob a ótica do menino mais velho. Assim,acumulam-se ângulos de visão parcial, próprios decada personagem do romance.

    Como o narrador se dissimula por trás do rela-to, flagrantes aparentemente desconexos, quando

    reunidos, trazem uma conjugação entre aspectossociais, naturais e psicológicos distintos mas com-plementares para formar o perfil das personagens edas situações. De fato, enquanto a consciência dosocial se dá pela vivência de uma situação hostil,que gera fome e incompreensão, o componente psi-cológico emerge independentemente dessas pres-sões do contexto, nas lembranças, muitas vezesagradáveis, de festas, vaquejadas e novenas. Tal si-multaneidade resulta da decisão do narrador de usara onisciência não para retratar o ambiente, mas comoinstrumento de análise comportamental e psicoló-gica. Esse traço empresta ao romance um perfil bemmais complexo do que aquele que teria se o nar-rador se limitasse a descrever fatos e personagens.

    O discurso indireto livre cria uma convergênciasolidária entre a expressão do narrador e a da per-sonagem. Falas ou pensamentos dos membros da família sertaneja (incluindo Baleia) vêm inseridos norelato do narrador, o que permite ao autor sondar verticalmente o universo mental das personagenspara revelar o quanto ele se encontra esgarçado.

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    Se achassem água ali por perto, beberiam muito,sairiam cheios, arrastando os pés. Fabiano comuni-cou isto à sinha Vitória e indicou uma depressão doterreno. Era um bebedouro, não era? Sinha Vitóriaestirou o beiço, indecisa, e Fabiano afirmou o que havia perguntado. Então ele não conhecia aquelas paragens? Estava a falar variedades? Se a mulher ti-vesse concordado, Fabiano arrefeceria, pois lhe falta-va convicção [...] (p. 123).

    É importante que se destaque igualmente o fe-

    nômeno do mutismo introspectivo das personagens.Silenciosas e circunspectas, elas substituem o diálo-go — forma mais natural de trocarem informações— pela linguagem gestual ou gutural:

    [...] a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos peladosda catinga rala.

     Arrastaram-se para lá, devagar, sinha Vitóriacom o filho mais novo escanchado no quarto e o baúde folha na cabeça, Fabiano sombrio, cambaio, o aióa tiracolo, a cuia pendurada numa correia presa ao

    cinturão, a espingarda de pederneira no ombro. O menino mais velho e a cachorra Baleia iam atrás.

    Os juazeiros aproximaram-se, recuaram, sumi- ram-se. O menino mais velho pôs-se a chorar, sen-tou-se no chão.

    — Anda, condenado do diabo, gritou-lhe o pai. Não obtendo resultado, fustigou-o com a bainha

    da faca de ponta. Mas o pequeno esperneou acuado,depois sossegou, deitou-se, fechou os olhos. Fabianoainda lhe deu algumas pancadas e esperou que elese levantasse. Como isso não acontecesse, espiou osquatro cantos, zangado, praguejando baixo. [...] Si-

     nha Vitória estirou o beiço indicando vagamente umadireção e afirmou com alguns sons guturais que es-tavam perto (p. 9-10).

    Como se percebe, o filho mais velho, em vez deexplicar ao pai que já não consegue caminhar, sen-ta-se no chão e põe-se a chorar. Em seu rudimenta-rismo psicológico, o pai, em vez de conversar comele, passa a xingá-lo e a espancá-lo. Em seguida, vendo que sua atitude não produz nenhuma reaçãono filho, começa a falar consigo mesmo, esbrave- jando contra a paisagem.

    Para compensar a quase ausência de diálogos, o

    narrador registra, com absoluto poder de síntese,planos da realidade exterior, atos, gestos e movi-mentos das personagens:

    [Fabiano] Alcançou o pátio, enxergou a casa bai- xa e escura, de telhas pretas, deixou atrás os juazei- ros, as pedras onde se jogavam cobras mortas, o car- ro de bois. As alpercatas dos pequenos batiam nochão branco e liso. A cachorra Baleia trotava arque- jando, a boca aberta.

     Aquela hora sinha Vitória devia estar na cozinha,acocorada junto à trempe, a saia de ramagens entala-da entre as coxas, preparando a janta. Fabiano sentiuvontade de comer. Depois da comida, falaria com si- nha Vitória a respeito da educação dos meninos (p. 25).

     T EMPO As referências temporais na obra são discretas.

    O capítulo inicial (“Mudança”) e o final (“Fuga”) ofe-

    recem ao leitor dados suficientes para perceber quea trama se desenrolará entre duas estiagens. Embo-ra a cronologia não seja explícita, os painéis ou ce-nas autônomas deixam transparecer algumas orde-nações temporais mais concretas que outras.

    De fato, sabe-se apenas que, dentro do quadrocíclico da seca, uma família se estabelece provisoria-mente numa fazenda; a partir daí, é necessário umainvestigação detalhada para levantar indicadoresque demarquem com clareza a passagem do tempo.De posse desses dados, pode-se deduzir que mari-do e mulher aparentam a mesma idade. A diferençade idade entre os meninos também é pequena.

    Dentro desses limites, os indicadores temporaistêm um duplo movimento: alguns se referem ao pre-sente da narrativa, outros representam experiênciasdo passado, resgatados pela memória, sequiosa detempos mais felizes. Sabe-se, por exemplo, que oreencontro de Fabiano com o soldado amarelo, nacaatinga, deu-se um ano após sua vexatória prisão. Demodo geral, os acontecimentos não estão datados emrelação à memória das personagens, como se percebepelas passagens seguintes: “ Recordou-se do que suce-dera anos atrás , antes da seca, longe”; “fazia horas que pisavam a margem do rio”; “Entrava dia e saía dia”;

    “Viveria muitos anos, viveria um século”. No final, re-gistra-se a seguinte observação: “ Dobrando o cotoveloda estrada, Fabiano sentia distanciar-se um pouco dos lugares onde tinha vivido alguns anos ; o patrão, o sol-dado amarelo e a cachorra Baleia esmoreceram no seuespírito” (p. 120). O que se pode ter como norma é quelembranças desagradáveis ou humilhantes são sem-pre mais recentes.

    Essa dissolução do tempo cronológico produzum efeito psicológico e estilístico notável, na medidaem que amplifica a carga de dramaticidade das per-sonagens, intensificando a sensação de viverem nummundo regido pela instabilidade: não se sabe nem de

    onde Fabiano e família vêm como também para ondecaminham. Ignora-se quando chegaram, quantotempo demoraram e durante quanto tempo terão decaminhar: “Os pés calosos, duros como cascos, meti-dos em alpercatas novas, caminhariam meses. Ou nãocaminhariam? ” (p. 121).

    O esvaziamento do tempo cronológico possibili-ta ao narrador desviar-se da exterioridade dos acon-tecimentos, podendo registrar o fluxo mental das

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    personagens, revelador da reificação e do caos ins-taurados em suas vidas. Ao longo do relato, para in-tensificar a noção de tempo interior, os verbos vêmnos pretéritos imperfeito, perfeito e mais-que-per- feito, registrando como essa família rústica reagepsicologicamente às pressões da natureza e da socie-dade. A angústia, o medo, a opressão revelam emtoda sua brutalidade a face mais arcaica do país.

    Os indicadores temporais evidenciam também aincipiente organização social em que vivem as per-

    sonagens, oriundas da economia rural. O campo ti-nha seus mecanismos de produção ainda atreladosa um formato semifeudal, não se articulando com asexigências do mercado consumidor urbano, que jáse achava num estágio econômico mais avançado,próximo do capitalismo. Esse choque manifesta-seagressivamente em “Contas”, na passagem em queFabiano vai à cidade tentar vender um porco. Acua-do pelo fiscal da prefeitura, o sertanejo revela todoo seu despreparo para enfrentar as instituições dasociedade.

    ESPAÇOPode-se dizer que o verdadeiro protagonista

    alegórico de Vidas secas está no espaço social e físi-co. A família sertaneja tem suas possibilidades de vi-da e de realização bloqueadas tanto pela naturezaadversa como pelos limites impostos por aqueles quedetêm alguma forma de poder: o “dono da fazenda”,o “soldado amarelo” e o funcionário da prefeitura.

     A paisagem natural é tão hostil que é possível falar na existência de um contra-espaço nesse ro-mance. Inóspito, o agreste sertão nordestino torna-se o principal responsável pela periódica expulsãodos sertanejos. Essa região apresenta como carac-

    terística dominante o clima tropical semi-árido, comchuvas escassas e irregulares. Predominam ali osrios intermitentes — rios “vaziados”, no dizer deJoão Cabral de Melo Neto —, pois ficam parte doano totalmente secos. Apresentam drenagem exor-réica, ou seja, em épocas de chuva (o “inverno” ser-tanejo) suas águas correm em direção ao mar; noperíodo da estiagem, seus mananciais temporaria-mente se extinguem: seus leitos viram rotas de fugapara o litoral.

     A monotonia marca o tom do ambiente: não há florestas nem montanhas para distrair a visão e ate-

    nuar a secura. Quase sempre sinistra e desolada, apaisagem permite que se veja longe e fundo, tor-nando ainda mais ostensivo o drama dos retirantes.Determinador de destinos, o espaço torna essa mar-cha vã, pois o caminho que procuram se fecha em simesmo, não leva a parte alguma. Paisagem e lin-guagem tendem a se fundir: a aridez do semi-áridonordestino encontra seu paralelo na escassez das falas das personagens.

     A infalibilidade dos urubus, traçando círculos emtorno desses seres, tem efeito similar aos condiciona-mentos socioeconômicos implacáveis, que lhes im-põem como única saída o nomadismo. Fechadas, asaspirações têm de ser adiadas continuamente.

     A dificuldade de interação, imposta pela geo-grafia, cresce em função da crise do trabalho e dasua demanda. Além do mais, Fabiano é vaqueiro,atividade solitária na região. No capítulo “Cadeia”,constata-se que o isolamento de Fabiano é pleno e

    definitivo. Anda a esmo pela cidade, num meio es-tranho, cheio de situações e desafios constrangedores. As pessoas, o comércio e as instituições o deixamacuado, reduzido à sua inferioridade e impotência.Minado, reage passivamente, retrai-se. O ilhamentoimpõe às personagens certa afasia: por não intera-girem, ficam “sonadas”, incapazes de ler a realida-de. Falam pouco, e ainda assim com um discursoemaranhado e desconexo.

    Se o trabalho duro na fazenda dava a Fabianoalguma consciência de utilidade, a cidade dissolveisso, pois o reduz, explora e corrompe. As institui-ções sociais — genericamente designadas por ele

    como “governo” — são entidades abstratas e distan-tes, associadas permanentemente a algo que se de- ve temer. Também no capítulo “Festa” ficam paten-tes o conflito e o contraste entre campo e cidade:

    Comparando-se aos tipos da cidade, Fabiano re-conhecia-se inferior. Por isso desconfiava que os ou-tros mangavam dele. Fazia-se carrancudo e evitavaconversas. Só lhe falavam com o fim de tirar-lhequalquer coisa. Os negociantes furtavam na medida, no preço e na conta. O patrão realizava com pena etinta cálculos incompreensíveis. Da última vez que setinham encontrado houvera uma confusão de núme-

     ros, e Fabiano, com os miolos ardendo, deixara in-dignado o escritório do branco, certo de que fora en-ganado. Todos lhe davam prejuízo. Os caixeiros, oscomerciantes tiravam-lhe o couro, e os que não tinham negócio com ele riam vendo-o passar nas ruastropeçando. Por isso Fabiano se desviava daquelesviventes [...] Estava convencido de que todos os habi-tantes da cidade eram ruins (p. 76).

     Ao se confrontar com as imposições de umaorganização social impermeável, arcaica e precon-ceituosa, Fabiano é punido: por reagir contra a arbi-trariedade do soldado amarelo, é preso e espanca-

    do; por questionar a contabilidade do patrão, é amea-çado de expulsão da fazenda; por tentar vendercarne de porco na feira, é multado.

     Alfredo Bosi, no ensaio “Céu, inferno” (GAR-BUGLIO, J. C.; BOSI, A.; FACIOLI, V., 1987, p. 386),estabelece uma correspondência bastante esclare-cedora entre espaço e comportamento psicológicodas personagens. A alternância climática, segundoele, explicaria a oscilação entre felicidade e angústia

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    no comportamento do sertanejo. A estação das chu- vas, característica do “inverno” nordestino, dá a Fa-biano a sensação de que ele pode se aprumar na vida e até mesmo confiar no patrão; já a seca, comseu sol causticante, o expõe à inclemência da retira-da, remetendo-o bruscamente à realidade, um pe-sadelo com suas marcas de desgosto e pavor. Nessaúltima circunstância, a natureza assume tal poderdesagregador que, praticamente, decide o destinodas personagens. Fabiano conjetura: “Se a seca che-

    gasse, ele abandonaria mulher e filhos, coseria a facadas o soldado amarelo, depois mataria o juiz, o promotor e o delegado” (p. 66-7). A idéia de vingan-ça não se consuma porque chove. Com a chuva, ele“esquecia as pancadas e a prisão, sentia-se capaz deatos importantes” (p. 67).

    Como conclusão, destaque-se que Fabiano e sua família se orientam no mundo por meio de índices,um tipo de signo assim denominado por CharlesSanders Peirce (Semiótica, São Paulo, Perspectiva,1995). As lições da semiótica de Peirce foram pro-postas, sobretudo, para a leitura do mundo não-ver-bal. Índice é um sinal diretamente ligado a seu obje-

    to, à coisa a que se refere (p. ex.: trovão → tempes-tade; aves de arribação→ seca; soldado amarelo→ódio etc.).

     Alguns estudiosos, como Antônio Risério, vêemtoda a vida sertaneja regida por índices. O sertanejoos recolhe por toda parte, observando as manifes-tações da natureza. O índice é universalmente im-portante: em todas as sociedades, o homem se acos-tuma com eles. Por meio deles é que se constrói umraciocínio fundamental à vida, chamado indução;noutros termos, é próprio do homem amadurecercertos conhecimentos gerais a partir da observação

    repetida de experiências singulares, manifestadaspor meio de índices. A indução, portanto, permiteao homem prever eventos futuros e tomar os devi-dos cuidados para se preservar.

    O que acontece com Fabiano, entretanto, é algosemelhante ao que acontece com os animais quandose altera seu habitat natural: eles se desnorteiam, nãopodem mais confiar nos índices habituais. Fabiano esua família se mostram a toda hora angustiadosporque se vêem repentinamente atirados pela secanuma espécie de “desconcerto do mundo”. Os índices,outrora tão confiáveis, impõem a dúvida e o temor.Certamente, muitos deles eram novos, desconhecidos

    (não se pode esquecer de que a família fora deslocadade seu habitat). O que é dramático e tenso é justamen-te perceber, a cada passo, que Fabiano hesita diantede quase todos os sinais, como um animal acuado. Écurioso observar que, independentemente disso,Fabiano também se mostra um dedicado aprendizdessas novas formas do perigo. Isso faz parte do seuheroísmo natural, em que emerge um lado “bicho”,que quer reconhecer certas formas já desaprendidas.

    Charles Peirce também falou nos símbolos querepresentam as formas do pensamento. Ora, Fa-biano não está totalmente alheio a estas últimas. Odiscurso indireto livre o mostra como um homemque, dentro de suas limitações, pensa e raciocina,isto é, um homem que trabalha com idéias ousímbolos. Entretanto, seu próprio faro animal lhediz que todo pensamento ou palavra excessiva po-deria ser naquela hora um perigo a mais. De qual-quer forma, pode-se dizer que Vidas secas é um ro-

    mance em que todos os símbolos da cultura vãosendo gradativamente devorados pelos índices dasobrevivência.

     A presença de índices ocorre intensamente noromance. Como exemplo, pode-se evocar o episó-dio em que Fabiano tenta “ farejar ” uma novilhapara lhe fazer curativo. Como não consegue encon-trá-la, desiste e decide-se a fazer o curativo naspegadas do animal, rezando em cima do rastro dei- xado na areia. Toda a caracterização de Fabiano co-mo um “ homem empurrado pela seca” é uma mul-tidão de índices, que o tipificam como um homemque dialoga com os elementos da natureza. Observe

    esta seqüência, do capítulo final do livro:

     Agora Fabiano examinava o céu, a barra que tin-gia o nascente, e não queria convencer-se da realida-de. Procurou distinguir qualquer coisa diferente davermelhidão que todos os dias espiava, com o co- ração aos baques. As mãos grossas, por baixo da abacurva do chapéu, protegiam-lhe os olhos contra aclaridade e tremiam.

    Os braços penderam, desanimados.— Acabou-se. Antes de olhar o céu, já sabia que ele estava ne-

    gro num lado, cor de sangue no outro, e ia tornar-se profundamente azul . Estremeceu como se desco- brisse uma coisa muito ruim (p. 117-8).

     A reação de Fabiano diante da iminência deuma nova seca é instintiva e a resposta, imediata: odesânimo e a tremedeira tomam conta do vaqueiro.

    PE RSONAGENSDe acordo com a já clássica divisão de Lucien

    Goldmann, Vidas secas pode classificar-se comoromance de tensão crítica. As personagens princi-

    pais representam a típica família sertaneja nordestina(pai, mãe, filhos, com estes os animais: cachorro,papagaio) em conflito com a paisagem natural e comas personagens que representam os signos do poder:o dono da fazenda, o soldado amarelo e o funcionárioda prefeitura. Com isso, pode-se dizer que o conjuntodas personagens alcança uma dimensão alegórica,pois elas se distribuem em pólos opostos mas repre-sentativos da ordem socioeconômica regional.

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    O romance provoca impacto justamente pelo no-

    tável grau de verossimilhança alcançado: a construçãode personagens é tão habilmente engendrada que elas

    parecem transformar-se em seres reais. Para marcar oestado de embrutecimento a que foram reduzidas, oautor recorre freqüentemente a comparações com ani-

    mais, que demonstram a existência insípida, a aflição eos anseios desses seres, inertes diante das imposições

    da paisagem natural e social: “ Estava escondido no mato como tatu”; “era como um cachorro, só recebia

    ossos”; “Fabiano estacou desajeitado, como um pato”. A propósito da afetividade das personagens do

    romance, no depoimento dado ao jornalista JoãoCondé, Graciliano Ramos comenta: “ A minha gente,quase muda, vive numa casa velha de fazenda; as pessoas adultas, preocupadas com o estômago, nãotêm tempo de abraçar-se”. A passagem seguinte,extraída do capítulo inicial, confirma tal declaração:

     Miudinhos, perdidos no deserto queimado, os fu-gitivos agarraram-se, somaram as suas desgraças eos seus pavores. O coração de Fabiano bateu juntodo coração de sinha Vitória, um abraço cansadoaproximou os farrapos que os cobriam. Resistiram à fraqueza, afastaram-se envergonhados, sem ânimode afrontar de novo a luz dura, receosos de perder aesperança que os alentava (p. 13).

    PE RSONAGENSFabiano

     Vaqueiro do sertão nordestino, competente nalida do gado e perfeitamente entrosado com o meiorural. Na cidade, sente-se como um estrangeiro que é violentado por instituições sociais incompreensíveis e

    abstratas. Genericamente as vê como manifestaçõesdo “governo”, distantes de sua realidade porque nãoresolvem seus problemas. A retração, a desconfiançae o temor de Fabiano se ampliam nos confrontos como soldado, o patrão e o funcionário da prefeitura.Nessas situações, sente-se tão diminuído e marginali-zado que constantemente é comparado a um animal: é“quase uma rês” ou ainda “Tinha muque e substância, mas pensava pouco, desejava pouco e obedecia”.

    No  Dicionário da língua portuguesa, de AurélioBuarque de Holanda, o verbete  fabiano  vem assimanotado: “(Do antr. m. Fabiano, decerto) subst. m.Lus. 1. Indivíduo inofensivo; pobre-diabo. 2. Indiví-duo qualquer, desconhecido, joão-ninguém”.

    Se, de um lado, isso sugere embrutecimento, dooutro parece representar uma extraordinária capa-cidade de resistência, cujos limites são superadoscom fibra e dignidade. Uma vez que a organizaçãosocial não lhe possibilita realização individual, sólhe resta uma saída: fugir, buscando nova possibili-dade de integração. Fabiano constitui, assim, um“herói” problemático, marcado pela contradição

    entre a revolta e a passividade. O que mais o ator-menta é a impotência de não se sentir "dono" daprópria linguagem, que lhe é subtraída pela con-dição social adversa. O que mais o anima é a pers-pectiva de que, algum dia, seus filhos possam vir adominá-la. Em princípio, possuir uma linguagemarticulada significa ter possibilidade de acesso auma melhor compreensão do mundo. As circuns-tâncias de pressão transformam Fabiano num serque vive alternadamente situações de estabilidade

    (“ Agora Fabiano era vaqueiro, e ninguém o tirariadali. Aparecera como um bicho, entocara-se comoum bicho, mas criara raízes, estava plantado. [...] Ele,sinhá Vitória, os dois filhos e a cachorra Baleia esta-vam agarrados à terra” — p. 19) e sufoco (“Entris-teceu. Considerar-se plantado em terra alheia! Enga- no. A sina dele era correr mundo, andar para cima e para baixo, à toa, como judeu errante. Um vagabun-do empurrado pela seca” — p. 19).

    Um traço importante da personalidade de Fa-biano é a crença quase absoluta nos poderes sobre-naturais. Quando se vê em situações difíceis, o vaqueiro apela para as superstições: em “Mudança”,

    olha para o céu e se põe a contar estrelas, por acharque isso traria a chuva; em “Fabiano”, para curaruma novilha doente, monta um cruz com gravetos ereza, fazendo o curativo nas pegadas que o animaldeixara na areia; em “O menino mais velho”, con-sidera que uma entidade protetora segurava-o nasela quando domava animais xucros. Por fim, em “Omundo coberto de penas”, atemoriza-se com a pos-sibilidade de Baleia, em quem dera um tiro, viraruma alma penada para vir assustá-lo.

    Sinha V itória

    Por ser mais astuta que Fabiano, é menos vul-nerável que o marido. Suporta, com constantesreclamações, a carga dos afazeres domésticos e lidaimpacientemente com os filhos. Algumas vezes, osresmungos transformam-se em palmadas nas crian-ças. Diferencia-se também do marido pelo instintode posse, manifesto no sonho de vir a ter uma “camade lastro de couro”, igual à de seu Tomás da bolan-deira. A posse desse objeto básico representa, paraela, uma forma de realização, de alcance duma es-pécie de consciência de cidadania, fundamentalpara a construção de sua auto-imagem, pela neces-sidade de sentir que vive uma vida plena e autênticanão só no domínio da natureza, mas sobretudo nodomínio da cultura. Para atenuar suas frustrações,nas horas de aflição costuma apelar para Deus epara a Virgem Maria.

     A vontade de alcançar um mínimo de conforto ebem-estar brota de uma personalidade mais decidi-da, não tão tosca e primitiva como a do marido. Suacondição de âncora da família se manifesta no epi-sódio do “acerto de contas” com o patrão: é ela

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    quem faz os cálculos, dando a Fabiano a certeza deque fora ludibriado pelo fazendeiro. Mesmo na con-dição subumana de retirante, ela demonstra possuiruma certa destreza mental, é “letrada”, e detém, decerta maneira, a supremacia da família, pois “orien-ta” Fabiano. Quando Baleia ficou doente, a ponto depoder contagiar a família, a racionalidade de Vitória foi maior que a estima pela cachorra: pressionou omarido na decisão de se livrar da cachorra.

     Ao contrário de Fabiano, as comparações que

    sinhá Vitória faz da família com animais assumemsempre caráter negativo: “o costume de encafuar-seao escurecer não estava certo, que ninguém é gali-nha”.

    Os Meninos As crianças, único fiapo de esperança possível

    de um futuro melhor, são referidas em todo o ro-mance como “ menino mais novo” e “ menino maisvelho”. A ausência de nomes que as singularizemrevela o processo de despersonalização a que foramsubmetidas pelas injunções sociais. Em nenhum

    momento, o narrador se refere ao rosto das crian-ças. Assim, a questão da miséria está diretamenterelacionada ao problema da nomeação e da ausên-cia de fisionomia dos meninos. Serve como referên-cia confirmadora de sua baixa condição econômica,de sua insignificância social. Apesar ou por causadisso, os pais intuem que educar os filhos é a únicamaneira de romper com o círculo vicioso impostopela fome, pela sede e pelo desemprego.

    O mais novo, em sua ingenuidade, vê no pai ummodelo a ser seguido; o mais velho, mais inquieto epermanentemente movido pela curiosidade, ousa

    perguntar aos pais o significado da palavra inferno.Fabiano sequer dá importância à interpelação do fi-lho; a mãe, revoltada com a própria incapacidade dedar uma resposta satisfatória, aplica-lhe um cascu-do. Amargurado, o menino mais velho refugia-se junto a Baleia, seu par. Os pais desejam mudar-separa as cidades grandes do Sul, perseguindo a sortede um futuro diferente: “Os meninos em escolas,aprendendo coisas difíceis e necessárias”.

    No romance A hora da estrela (1977), cuja narra-tiva central parece ter sido desentranhada de umapossível continuidade de Vidas secas, Clarice Lis-pector aponta que não é bem isso o que pode acon-

    tecer: Macabéa e Olímpico, flagelados nordestinos,conseguem fugir da seca, do desespero e da pobre-za nordestinas migrando para o Rio de Janeiro. Maso que os aguarda, ali, é a continuidade de uma vidamiserável de marginalizados sociais.

     Bale iaDe certa maneira, a cachorra é tratada como

    gente e, assim humanizada, torna-se um membroda família, especialmente para os meninos que atransformam numa espécie de irmã. Sua magrezade vira-lata é anulada já pela escolha do nome,demonstração de afeto própria do sertanejo nordes-tino, que costuma dar a seus animais nomes depeixe. O que, a princípio, aparenta ser uma ironia(pois ela em nada lembra um cetáceo), é muito maisuma compensação, dada a secura da terra. Os trancose pontapés que recebe deixam-na revoltada e, talcomo os homens, “cogita” da possibilidade de fuga:

     Baleia detestava expansões violentas: estirou as pernas, fechou os olhos e bocejou. Para ela os pon-tapés eram fatos desagradáveis e necessários. Sótinha um meio de evitá-los, a fuga (p. 60).

    Nesta caricatura, Alvarus faz um cruzamento entre a representa-ção biográfica e ficcional de Graciliano Ramos. Instalado numcenário agreste, o escritor, magra e com o eterno cigarro entreos dedos, traz numa coleira sua famosa personagem, a cachorraBaleia.

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    Na passagem em que é morta pelo tiro de Fa-biano, o processo de antropomorfização de Baleiase completa: “ Defronte do carro de bois faltou-lhe aperna traseira.  E, perdendo muito sangue, andoucomo gente, em dois pés, arrastando com dificul-dade a parte posterior do corpo” (p. 88).

    Seu Tomás da Bolande iraTido, a distância, como exemplo de “sabedoria”,

    é acariciado por Fabiano como modelo de indivíduo

    alfabetizado e ideal. Embora não intervenha direta-mente em nenhum episódio do romance, seu Tomásda bolandeira serve de escada, como se diz emteatro, para estabelecer um contraste com as expec-tativas de Fabiano e, sobretudo, de sinha Vitória.Embora sábio e culto (até “votava”...), seu Tomás es-tava falido. Mesmo assim, Fabiano procurava imitar-lhe o vocabulário. Algumas palavras ele não enten-dia, as idéias ficavam truncadas; iludia-se com isso,achando que, por imitá-lo, melhorava de situação.

     Ao se referir a esta personagem, o narrador criatorneios de linguagem culta, caracterizando-o como

    uma pessoa de certa leitura que, por isso mesmo,transforma-se num arquétipo em que as demaispersonagens se espelham.

    O Soldado AmareloSe a natureza oprime (basta evocar a imagem

    dos urubus traçando círculos em torno dos retiran-tes), mais hostis são os homens que representam opoder, em suas várias manifestações. O soldadoamarelo simboliza o despotismo dos militares acu-ando os “ paisanos”. Nessa mesma perspectiva, o sar-gento Getúlio, protagonista do romance homônimode João Ubaldo Ribeiro, publicado em 1971, é umaespécie de extensão da personagem de Graciliano.Freqüentemente, esta personagem é evocada apenascomo “o amarelo”, cor que simboliza, no imagináriopopular, o desespero, o ódio e a raiva. Por ressenti-mento, impõe-se com arrogância diante de Fabiano,prendendo-o de forma injusta e arbitrária. Quandose encontram pela segunda vez — o soldado estavaperdido na caatinga (o amarelo ganha aí a conotaçãode medo) —, a situação tinha tudo para se inverter.Fabiano, entretanto, contém seu ímpeto revanchistae poupa o soldado, talvez por perceber que matá-lode nada adiantaria, pois não era assim que poderia

    resolver suas dificuldades.

    O Dono da FazendaSímbolo do poder econômico opressor (“o pa-

    trão era seco também, arreliado, exigente e ladrão,espinhoso como um pé de mandacaru”, p. 24), repre-senta o imobilismo de uma estrutura social que, ali-ada a outros elementos, acaba por determinar onomadismo dos retirantes.

    O F isc al da Prefei turaRepresenta, juntamente com o dono da fazenda

    e o soldado amarelo, as instituições sociais em seusestágios menores, genericamente identificadas porFabiano como “governo”. Figura como símbolo daintolerância da máquina governamental.

    ELEMEN TOS ESTIL ÍST ICO-T EM ÁT ICOSQuando prefeito em Palmeira do Índios, Gra-

    ciliano Ramos recrutou os presos da cadeia munici-pal para construir uma estrada com quilômetros equilômetros de reta, ligando a cidade a um municí-pio vizinho. No famoso relatório de suas atividadesà frente da prefeitura, ele faz o seguinte comentáriosobre esse episódio: “Procurei sempre os caminhoscurtos. Nas estradas que se abriram só há curvasonde as retas foram inteiramente impossíveis”.

     A determinação do prefeito pode servir comoreferência para a representação do método depura-do do estilista: não existem curvas no texto de Gra-ciliano Ramos. Sucinta, dura e descarnada: assim é

    a tessitura verbal de Vidas secas. Sua obsessão pelaredação gramaticalmente imaculada e elegante lem-bra Machado de Assis. Embora seu estilo não pos-sua o jogo de ambigüidade e ironia do autor de DomCasmurro, é preciso dizer que de todos os escritoresbrasileiros o mais “clássico”, o mais “machadiano” éGraciliano, pela correção da escrita, que decantaconscientemente o jorro da oralidade e evita fazerconcessões ao gênero populista.

    O Estilo C acto A sugestão de secura envolve o livro todo, mar-

    cando a vida das pessoas e a paisagem em que elasdesfiam sua angústia. O tratamento dado à lin-guagem assombra pela fusão entre a ordem e ocaos: onomatopéias, monossílabos guturais e gestosaglutinam-se para demonstrar a alternância entreuma condição de vida digna e as reduzidas possibi-lidades de sobrevivência das personagens, esma-gadas pela agressividade do clima e pelos desloca-mentos periódicos a que são obrigadas.

    O estilo de Graciliano Ramos se caracteriza pelasobriedade no uso dos adjetivos; ele prefere darnome às coisas. Daí, o critério e a sintonia fina naseleção dos substantivos. Essa virtude é, aliás, exal-tada por João Cabral de Melo Neto no poema “A palo seco”:

    ..................................... A palo seco existemsituações e objetos:

    Graciliano Ramos,desenho de arquiteto......................................

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    Eis uns poucos exemplosde ser a palo seco,dos quais se retirarhigiene ou conselho:

    não o de aceitar o secopor resignadamente,mas de empregar o secoporque é mais contundente......................................

    (Quaderna, 1960, fragmento.) A expressão “a palo seco” é usada na região de

    Sevilha, Espanha, para designar o canto a capella,em que a voz forte e vibrante dos cantores dispensao acompanhamento por instrumentos musicais.Ora, um dos traços de maior refinamento do es-tilista Graciliano é o uso de frases nominais, queapuram seu significado na força expressiva dossubstantivos, selecionados tão criteriosamente quedispensam a presença de verbos e adjetivos comoacessórios de acompanhamento. Sua beleza e har-monia, por vezes, alcançam a graça da prosa poéti-ca. O acúmulo de orações coordenadas e de frasesnominais, curtas e densas, amplificam as sugestõesde revolta e desencanto:

     Falta de criação. Tinha lá culpa? O sarapatel se formara, o cabo abrira caminho entre os feirantesque se apertavam em redor: — “Toca pra frente”. Depois surra e cadeia, por causa de uma tolice. Ele, Fabiano, tinha sido provocado. Tinha ou não tinha? Salto de reiúna em cima da alpercata. Impacientara-se e largara o palavrão. Natural, xingar a mãe deuma pessoa não vale nada, porque todo o mundo logo vê que a gente não tem a intenção de maltratar  ninguém. Um ditério sem importância (p. 102).

     À sintaxe tradicional, Graciliano Ramos associaum variado leque de termos regionais, que, ao mesmotempo, ampliam o vocabulário do leitor e servem deacesso para um conhecimento específico das particu-laridades locais. Termos como emproado2, encafuar-se3, esbrugar 4,  macambira5,  mandacaru6,  mangação7, marrã8,  mossa9,  mulungu10,  parolagem11,  pedrês12,

     perra13,  pucumã14, quenga15,  reúna16, tolda17 pro-duzem também um efeito de despojamento, pelapropriedade com que são aplicados, sem nenhumaconcessão ao mero pitoresco.

    Um L ivro “Mudo”Em Vidas secas praticamente não existem diálo-

    gos. Daí, a presença quase absoluta do monólogointerior. As personagens se comunicam por meio deexclamações, interjeições guturais, onomatopéias,muxoxos, resmungos e gestos. A comprovação damarginalidade lingüística dos retirantes é uma daschaves decisivas para a compreensão do livro.

    Quando o soldado amarelo convida Fabiano para jogar trinta-e-um, o vaqueiro não quer ir. A resposta,no entanto, caracteriza bem sua excessiva humildadee sua carência de instrução: “ Isto é. Vamos e nãovamos. Quer dizer. Enfim, contanto, etc. É conforme”(p. 27). A resposta evasiva enerva o soldado, que,arbitrariamente, decide prender o vaqueiro.

    Outra dimensão do mesmo problema: o menino

    mais velho, que “Tinha um vocabulário quase tão minguado como o do papagaio que morrera no tem- po da seca” (p. 55), ouve a palavra  inferno e desejasaber seu significado. Como a mãe descreve de for-ma exagerada o mundo do diabo, ele ceticamentequestiona a explicação materna com uma frase inci-siva: “— A senhora viu?” (p. 54).

    O acanhamento faz com que o sertanejo só faleo que é estritamente necessário. Apresenta, noentanto, uma atividade psíquica intensa, à suamaneira chegam até a filosofar, como se percebenos freqüentes monólogos. A dificuldade em orga-

    nizar o raciocínio verbal, que parece emperrado,travado por bloqueios insuperáveis, é tal que, paratornar a comunicação eficiente, as personagens valem-se constantemente da mímica e dos gestos. O falar pouco também pode ser explicado pela inibi-ção ou receio de incompreensão. Há poucos diálo-gos com os representantes do poder, a família ser-taneja se frustra por não ser compreendida. Apesarde embrutecidas, possuem um certo discernimento, vivem se autocriticando, lamentando sua limitação verbal, sua dificuldade de abstração e de ordenaçãológica, como se pode constatar na passagem se-guinte:

    SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 121 • ANGLO VESTIBULARES

    2 emproado: altivo, de cabeça empinada.3 encafuar-se: esconder-se.4 esbrugar: tirar a pele de um animal.5 macambira: fibra usada na confecção de esteiras ou cadeiras.6 mandacaru: arbusto característico das regiões de caatinga.7 mangação: gozação, zombaria.8 marrã: porca nova desmamada.9 mossa: cavidade entre os dentes do pau da canga dos carros

    de boi.10 mulungu: semente vermelha e preta de uma árvore legumi-

    nosa, também chamada de corticeira.11 parolagem: tagarelice, papo furado, conversa fiada.12 pedrês: cor de pedra, salpicada de preto e branco.

    13 perra: teimosa, obstinada, pertinaz.14 pucumã: mancha preta que se impregna no teto da cozinha,

    resultante da fumaça produzida pelo fogão de lenha.15 quenga: vasilha feita com a metade da casca do coco.16 reúna: botinas, com elástico lateral, usadas por militares.17 tolda: espigueiro de milho.

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