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Introdução No início dos anos 90 o Brasil parecia vislumbrar, a aurora de uma nova época. Depois de um longo período ditatorial, o país tinha formulado uma nova Constituição, caracterizada por um teor democrático decorrente, sobretudo, da pressão e mobilização popular para o reconhecimento e enfrentamento de suas problemáticas. Como protagonista desse processo destacava-se a sociedade civil, representada por diversos movimentos sociais e cuja ação foi decisiva para a redemocratização do país. Entre esses, identificam-se vários sujeitos coletivos, quais seja, o movimento negro, de mulheres, de meninos e meninas de rua, de portadores de deficiência. Apesar de possuírem agendas específicas de luta, esses movimentos eram convergentes na medida em que publicizavam e reivindicavam a necessidade da vivência de uma cidadania ativa, ou seja, que extrapolasse o sentido da democracia representativa e que se viabilizasse pela intervenção direta em espaços públicos, estatais ou não. Desse modo, pode-se afirmar que o movimento constituinte (1986 a 1988) foi um marco da consolidação dessa nova sociedade civil. A Constituição de 1988 “assentou os fundamentos a partir dos quais a dinâmica capitalista poderia ser direcionada de modo a reduzir, a níveis toleráveis, o que os próprios segmentos das classes dominantes então denominavam dívida social” (Netto, 1999: 77). Nessa perspectiva, entre outras questões, verifica-se a incorporação do conceito de seguridade social ao texto constitucional. Pelo menos legalmente, a garantia de segurança e proteção do indivíduo deixou de ser um problema apenas individual, para se constituir uma responsabilidade estatal. Colocava-se, portanto, pela primeira vez na história do país, a possibilidade de efetivação de um Estado de Bem-Estar Social, responsável pelo desenvolvimento de uma política social universal garantidora de direitos de cidadania. Para tanto, o esquema de proteção social preconizado pela Constituição deveria contemplar a articulação de três políticas sociais: Saúde e Assistência Social (redistributivas) e Previdência Social (contributiva). O reconhecimento dessas políticas como direitos sinalizou a possibilidade de romper com uma tradição autoritária e excludente que imputava às classes

Introdução Mono

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seguridade social

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Page 1: Introdução Mono

Introdução

No início dos anos 90 o Brasil parecia vislumbrar, a aurora de uma nova

época. Depois de um longo período ditatorial, o país tinha formulado uma nova

Constituição, caracterizada por um teor democrático decorrente, sobretudo, da

pressão e mobilização popular para o reconhecimento e enfrentamento de suas

problemáticas. Como protagonista desse processo destacava-se a sociedade

civil, representada por diversos movimentos sociais e cuja ação foi decisiva para

a redemocratização do país. Entre esses, identificam-se vários sujeitos coletivos,

quais seja, o movimento negro, de mulheres, de meninos e meninas de rua, de

portadores de deficiência. Apesar de possuírem agendas específicas de luta,

esses movimentos eram convergentes na medida em que publicizavam e

reivindicavam a necessidade da vivência de uma cidadania ativa, ou seja, que

extrapolasse o sentido da democracia representativa e que se viabilizasse pela

intervenção direta em espaços públicos, estatais ou não.

Desse modo, pode-se afirmar que o movimento constituinte (1986 a 1988)

foi um marco da consolidação dessa nova sociedade civil. A Constituição de

1988 “assentou os fundamentos a partir dos quais a dinâmica capitalista poderia

ser direcionada de modo a reduzir, a níveis toleráveis, o que os próprios

segmentos das classes dominantes então denominavam dívida social” (Netto,

1999: 77). Nessa perspectiva, entre outras questões, verifica-se a incorporação

do conceito de seguridade social ao texto constitucional. Pelo menos legalmente,

a garantia de segurança e proteção do indivíduo deixou de ser um problema

apenas individual, para se constituir uma responsabilidade estatal. Colocava-se,

portanto, pela primeira vez na história do país, a possibilidade de efetivação de

um Estado de Bem-Estar Social, responsável pelo desenvolvimento de uma

política social universal garantidora de direitos de cidadania. Para tanto, o

esquema de proteção social preconizado pela Constituição deveria contemplar

a articulação de três políticas sociais: Saúde e Assistência Social (redistributivas)

e Previdência Social (contributiva).

O reconhecimento dessas políticas como direitos sinalizou a possibilidade

de romper com uma tradição autoritária e excludente que imputava às classes

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subalternas1 um status de cidadania outorgada ou regulada e não de uma

cidadania plena2. A tentativa de consolidação de uma cidadania plena repercutiu

na direção teórico-prática de todas as políticas sociais, sobretudo a de

assistência social, historicamente considerada como o campo do não-direito3, na

medida em que até então, era tomada somente no seu sentido mais imediato e

superficial, ou seja, como forma de ajuda e solidariedade. Restringindo-a a esse

entendimento, a prática assistencial pública possui um caráter eminentemente

residual que a equipara à caridade e à filantropia. Nessa perspectiva, “a

assistência social representou nos dois últimos séculos e, principalmente, neste

século [XX] uma prática e uma política de relativo sucesso no obscurecimento

da questão social” (Sposati, 1989: 7), em vez de verdadeiramente combatê-la.

Pelo exposto, de uma maneira geral, a trajetória secular da assistência

social no Brasil remete-a ao assistencialismo. Entretanto, mesmo partindo dessa

limitação, no final dos anos 80, a assistência social,

“... sendo uma ação secundária ou secundarizada pelo Estado criou oportunidades de uma ‘ação libertária’ através de convênios com entidades sociais, organizações populares, organizações – de usuários mesmo – sem controle, já que se apresenta como o campo da não-política e da administração de favores. Desta forma, essa ação, não se limitando ao seu stricto sensu, sendo mesmo estimulada a

1 A subalternidade, legado gramsciano, “diz respeito à ausência ‘de poder de mando, de poder de decisão, de poder de criação e de direção’. A subalternidade faz parte do mundo dos dominados, dos submetidos à exploração e à exclusão social, econômica e política. Supõe, como complementar, o exercício do domínio ou da direção através de relações político-sociais em que predominam os interesses dos que detêm o poder econômico e de decisão política” (Yazbek, 1993: 18). 2 Por cidadania outorgada, entende-se a prática social que situa os usuários de políticas públicas não como sujeitos de direitos, mas como desamparados a quem se prestam favores. Nesse sentido, as medidas de proteção social decorrentes desse embasamento teórico-conceitual transformam-se em benesses e alimentam o clientelismo, perpetuando a tutela. Por outro lado, a cidadania regulada é devida somente aos indivíduos inscritos no mercado formal de trabalho; é o que se denomina seguro social e que depende, pois, de uma contribuição prévia. Para além dessas modalidades de proteção social é necessário observar ainda que a ineficiência do Estado no cumprimento de suas funções sociais, impeliu historicamente a realização de atividades assistenciais privadas que, motivadas pelas mais variadas razões, voltavam-se à amenização de situações-limite de miserabilidade.

3 Cabe ressaltar que também para os assistentes sociais, profissionais que historicamente operacionalizam essa política, a assistência social era visto como secundária. Especificamente no campo da reflexão e do debate, somente no fim da década de 70 é possível discutir a assistência numa perspectiva mais política e não apenas como prática a ser superada. (Cf. Sposati, 1991: 9).

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abarcar o conjunto das necessidades da reprodução social dos não-cidadãos, vai criando ações e processos de reconhecimento de sua cidadania”. (Sposati, 1991: 23)

A lida cotidiana dos movimentos sociais faz emergir uma percepção da

importância estratégica das ações de assistência social, re-significando essa

categoria como um mecanismo fundamental para a distribuição da riqueza

socialmente produzida e para a garantia dos mínimos sociais de cidadania a todo

o conjunto da sociedade. Assim, ao ser introduzida como um dos elementos do

tripé da seguridade social, passa de um lugar de reprodução de exclusão e

esvaziamento das lutas populares para um importante meio de materialização e

universalização dos direitos sociais. Diante das colocações precedentes, ter a

assistência social referendada como direito pelo texto constitucional significava

– ao menos juridicamente – alcançar um patamar mais elevado na escala da

proteção social, uma vez que deixou de basear-se na evidência da necessidade

ou no contrato realizado e passou a ser universal4.

Porém, o que foi preconizado na Constituição não pôde consolidar-se, pois

o momento de abertura democrática e de reconhecimento político das demandas

populares coincidiu com a emergência de uma nova configuração do capitalismo,

dada pela orientação política neoliberal, pela reestruturação produtiva e pela

mundialização do capital. Esses elementos traduzem um “novo” arranjo

societário marcado pelo aprofundamento das desigualdades sociais não apenas

em níveis internacionais, mas mesmo no interior de países considerados

desenvolvidos.

Esse novo contexto significou para os direitos e políticas sociais,

especialmente a de assistência social, a perda da centralidade recém-

conquistada. Tinha-se, portanto, uma situação paradoxal – ao mesmo tempo em

que se consagrava um contexto jurídico-institucional de garantia aos direitos de

4 Obviamente seria ingenuidade pensar que séculos de entendimento e de prática de assistência como ajuda, favor ou mesmo esmola pudessem ser superados apenas com a edição de leis e normas jurídicas. De qualquer modo, o que se deseja sublinhar é o resgate da significação estratégico-política da assistência social enquanto elemento de emancipação – e não mais somente de subalternização – dos segmentos brasileiros vulnerabilizados, seu público-alvo por excelência.

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cidadania, observa-se na prática o sucateamento e a diminuição das políticas

públicas estatais. Objetivamente, esse descompasso pode ser comprovado, por

exemplo, através do contraste entre os direitos sociais há pouco referendados

pela Constituição Federal em seu capítulo “Da Ordem Social” e a realidade de

miséria e fome a que estão submetidas significativas parcelas da população

brasileira.

Embora a resposta a esta precária situação seja tarefa ético-política

inadiável e de responsabilidade primordial do Estado, ante ao descaso

governamental, foi lançada em 1993 a Campanha “Ação da Cidadania contra a

Miséria e Pela Vida”. Liderada pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, esse

movimento “disseminou a idéia de que todos eram responsáveis (...) e [que] a

solidariedade seria algo capaz de ‘mover céus e terra’” (Monografia 2, 1999: 30)

no enfrentamento das seqüelas da questão social (especialmente a fome).

O discurso da solidariedade como fundamento da transformação social foi

então amplamente disseminado, tendo sido apropriado por distintos grupos

sociais: sindicatos, empresários, partidos políticos, igrejas, organizações não-

governamentais e inclusive, o governo federal. Esse discurso, aliado à tese da

cidadania participativa, fomentou as bases para a definição no Brasil, de uma

cultura moderna do voluntariado, que o supervaloriza e o coloca como agente

essencial de uma série de ações voltadas ao enfrentamento da pobreza.

Nesse sentido, são expressivos os números que envolvem a atividade

voluntária. Segundo dados do IBGE, em 2001 existiam no Brasil cerca de 20

milhões de voluntários. Um outro dado, fornecido pela Organização das Nações

Unidas afirmava que em 2002, esse número correspondia a mais de 42 milhões

de pessoas envolvidas em ações voluntárias5. Mas ao contrário do que se pensa,

o voluntariado não é um fenômeno contemporâneo; suas protoformas podem ser

identificadas desde os primórdios da história humana. Porém, é inegável que as

5 PESQUISA sobre a ação voluntária no Brasil: Parceiros Voluntários on line, 2006. Apresenta informações sobre o crescimento do voluntariado no Brasil. Disponível em: <http://parceirosvoluntarios.org.br>. Acesso em: 07 jul. 2006.

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modalidades de ajuda social que ora se materializam sob a forma de trabalho

voluntário reproduzem-se na atualidade segundo determinações que

ultrapassam a questão meramente humanitária e altruísta.

Historicamente, o trabalho voluntário esteve, grosso modo, circunscrito ao

campo religioso, embasado em valores como a caridade, compaixão e amor ao

próximo. Nesse contexto, seus agentes privilegiados foram religiosos e religiosas

que criaram e mantiveram diversas obras sociais e ainda, as chamadas damas

de caridade (o que lhe conferiu um caráter eminentemente feminino). Essa ação

caritativa predominou até a profissionalização e estatização da assistência. Ou

seja, a ação social do Estado está diretamente vinculada à diminuição do

trabalho voluntário no que se refere às suas práticas e ao seu status. Se há

tempos estas práticas estavam secundarizadas – por ter sido inclusive

consideradas “inócuas e perniciosas (...), ‘assistencialistas’, reprodutoras de

clientelismo e dominação” (Landim e Scalon, 2000: 19) –, é preciso desvendar

como e por que ocorre seu reavivamento, na medida em que, “assiste-se hoje

(...) a um revival de termos antigos e a um processo de redefinição ou re-

semantização, relacionando-se a um pano de fundo mundial de transformações

sociais e políticas (...)” (Landim e Scalon, 2000: 15).

Sabe-se que os sentidos das transformações societárias contemporâneas

são contraditórios, heterogêneos e ambíguos e refletem-se nas diferentes

dimensões da vida cotidiana, implicando especialmente na composição de um

cenário absolutamente adverso, marcado pelo acirramento das desigualdades

sociais, políticas e econômicas e ainda pelo sucateamento das políticas públicas

estatais. É, pois, nessa conjuntura de aumento de necessidades e negação de

direitos que vários atores investem no resgate do voluntariado como estratégia

de ação social.

Considerando esse panorama, esta monografia busca colaborar na

reflexão de como o voluntariado incide sobre a construção e a re-configuração

das sociabilidades e da ação de sujeitos coletivos no trato de questões sócio-

políticas. A realização desse estudo representa uma parte significativa de minha

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formação como assistente social, uma vez que recupera inúmeros elementos

com os quais venho me confrontando há tempos e que foram determinantes para

importantes escolhas profissionais e políticas que fiz.

Como educadora popular, desde 2000 tenho contato com muitas

atividades voluntárias que se caracterizam tanto por sua heterogeneidade de

expressões quanto de orientações e pautas políticas. A relação com o

voluntariado despertou em mim muitas inquietações, especialmente no que

concerne aos conteúdos, resultados e interesses – velados ou declarados – que

a ele se articulam. Entre essas, a percepção e o sentimento de que o

voluntariado é um terreno marcado por ambigüidades. Se de um lado ações

voluntárias podem colocar em destaque questões relevantes para a

consolidação da cidadania, de outro podem ofuscar demandas populares e

despolitizar seus protagonistas, renovando assim, situações de dominação e

subordinação6. Nesse sentido, também se questiona sobre o sentido teórico-

prático atribuído a termos como participação, democracia e cidadania,

especialmente quando se faz um recorte de gênero, visto que a ação voluntária

é eminentemente feminina7.

Para avançar na compreensão das questões apresentadas anteriormente

parto da investigação de elementos que dão forma e significado ao voluntariado

contemporâneo e que justificam sua existência, o que foi feito a partir da análise

do trabalho voluntário desenvolvido no contexto de algumas organizações

vinculadas ao Fundo Cristão para Crianças, uma Agência Internacional de

Desenvolvimento Infantil que opera há trinta anos no Brasil em alguns estados do

nordeste e em áreas empobrecidas de São Paulo e de Minas Gerais. Com isso,

busco compreender como esquemas de solidariedade social baseados na

6 Por exemplo, a ação voluntária de milhares de pessoas que doaram alimentos para a campanha contra a fome articulada pelo sociólogo Betinho, colocou a fome e a segurança alimentar na agenda de discussão política. Em contrapartida, quando o Programa Comunidade Solidária, ação governamental de enfrentamento da pobreza tem no voluntariado um de seus pilares, nega a responsabilidade primordial do Estado em responder – em quantidade e em qualidade – as demandas sociais referendadas inclusive no texto constitucional. 7 Entre as pessoas que realizam trabalho voluntário no Brasil, 23% são homens e 77% são mulheres. Ver o site http://www.parceirosvoluntarios.org.br/imprime_artigos.htm.

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responsabilidade individual se expressam e interferem na relação entre o espaço

público e o privado e ainda, como suas potencialidades podem ser apropriadas de

modo que ações benevolentes privadas se traduzam-se, ou não, em políticas

públicas garantidoras de direitos de cidadania.

Para tanto, este ensaio monográfico está dividido em dois capítulos. O

primeiro se intitula Desconstruindo e Reconstruindo Conhecimentos:

Aspectos Afetivos, Teóricos e Metodológicos da Pesquisa e apresenta o

objeto de pesquisa, considerando o percurso que me levou até ele. Além disso,

o capítulo informa sobre as estratégias metodológicas utilizadas para a

realização do estudo e apresenta ainda o campo e os sujeitos a partir dos quais

foi possível empreender esse estudo. O segundo capítulo, denominado

Cenários e discursos: sociedade civil, questão social e estratégias de (des)

mobilização e participação política, versa sobre alguns dos aspectos que

determinam a configuração atual e a incidência do trabalho voluntário no

contexto brasileiro, a partir de um diálogo entre os dados colhidos através de

pesquisas bibliográficas e documentais e das informações concretas fornecidas

através da fala dos vários sujeitos constituintes dessa pesquisa. Por fim, tem-se

as considerações finais.