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404 AGOSTO 2014 ÓRGÃO OFICIAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA CLAUDIO DUARTE Ariano Suassuna Eduardo Campos

Jornal da ABI 404

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Nesta edição, o Jornal da ABI presta uma grande homenagem a Ariano Suassuna, morto em 23 de julho aos 87 anos. Também traça o perfil da editora Maria Amélia Mello, da José Olympio, amiga de Suassuna. Estão nesta edição Millôr Fernandes, Lúcio Rangel, Neville de Almeida e Julio Cortázar.

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404AGOSTO

2014

ÓRGÃO OFICIAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA

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Ariano Suassuna Eduardo Campos

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2 JORNAL DA ABI 404 • AGOSTO DE 2014

EDITORIAL

UM COMPROMISSO COMO FUTURO DA ABI

VIVEMOS UM MOMENTO DECISIVO e trans-formador na história da Associação Brasi-leira de Imprensa. Pela primeira vez, nos106 anos de existência de nossa Casa, só-cios residentes em São Paulo, Belo Hori-zonte, Brasília, Maceió e São Luís, cidadesonde estão localizadas as Representaçõesda ABI, poderão expressar sua vontade porintermédio do voto.

O VOTO FORA DA CIDADE DO Rio de Janeirorepresenta uma revolução no processo elei-toral da ABI, e constitui umfator decisivo para retomaro prestígio nacional da Casade Gustavo Lacerda, HerbertMoses, Barbosa Lima Sobri-nho, e tantos outros defen-sores da democracia repre-sentativa e da liberdade de imprensa, poisuma não existe sem a outra. No futuro,chegaremos ao voto eletrônico, modalidadeque permitirá a todos os sócios da ABI es-palhados pelo território nacional manifes-tarem sua opinião e vontade de forma diretae democrática.

É EM NOME DA DEMOCRATIZAÇÃO e am-pliação do alcance institucional da Asso-ciação Brasileira de Imprensa que convo-camos os associados para comparecer noslocais de votação no próximo dia 26 paraeleger a nova diretoria da entidade e co-locar a ABI em um novo tempo.

OS FUTUROS DIRIGENTES TERÃO umaárdua batalha pela frente, face à situaçãode descalabro em que se encontra a insti-tuição. Deles será exigido prestígio pro-fissional, visibilidade no interior da soci-edade civil, respeitabilidade, férrea deter-minação e competência para resolver osproblemas que afligem a Casa dos Jorna-listas. À nova direção caberá a solução de

problemas das mais diversas ordens – deestruturais e físicos a burocráticos e finan-ceiros. Não será fácil reverter um quadromarcado pelo descaso e pela inércia.

O VOTO DOS SÓCIOS RESIDENTES fora doRio de Janeiro, embora ainda em poucos lo-cais, tem um significado histórico, pois apontapara a ampliação da presença institucionalda ABI em todo o território nacional. Infe-lizmente, nossa Casa vem perdendo visibi-lidade no interior da sociedade civil em rit-

mo acelerado, o que é inad-missível em se tratando damais importante trincheiracontra o arbítrio e a opressão.Caberá à futura direção colo-car a ABI na trilha traçada porseu passado histórico, e tor-

ná-la novamente protagonista das trans-formações sociais que ocorrem celeremen-te na sociedade brasileira atual, e não meratestemunha passiva e inoperante.

NO ATUAL MOMENTO HISTÓRICO, é im-prescindível que a futura direção batalhepela ampliação do quadro social da enti-dade, para fortalecer a ABI na luta em defesados profissionais de imprensa. A ABI pre-cisa estar presente onde querque ocorra uma ameaça à li-berdade de imprensa ou à in-columidade física de profis-sionais durante seu trabalho.Diariamente os meios de co-municação registram os maissórdidos e covardes ataquesa jornalistas que tão-somenteexercem sua profissão. Umataque a um jornalista é umataque à ABI.

A DIREÇÃO A SER ELEITA DEVE represen-tar uma garantia de honestidade, compe-

LUTHERO MAYNARD

tência e coragem na defesa da liberdade deimprensa e do patrimônio físico, moral eintelectual da Associação Brasileira deImprensa.

A ABI, NESTA QUADRA HISTÓRICA, marca-da por transformações radicais nos veículose modos de comunicação, não pode se isolar,não pode estar com falta de sintonia com amodernidade, especialmente porque as ino-vações tecnológicas, que se sucedem rapi-damente, atingem diretamente o mercadode trabalho dos jornalistas, criando novasrelações, exigindo novas soluções.

É PARA REVERTER ESSE LAMENTÁVEL es-tado de coisas que precisamos que vocêparticipe do processo eleitoral e vote ten-do em vista a preservação do patrimôniohistórico, ético e físico da ABI. Nesta elei-ção, o valor maior a ser defendido é o res-peito ao processo democrático e o resgatedo espaço perdido pela ABI entre as enti-dades representativas da sociedade civil.

VOCÊ TEM UM COMPROMISSO com a ABIe com o seu futuro. Um compromisso coma multiplicação democrática das represen-tações da entidade por todo o País. Um

compromisso com a luta pelovoto eletrônico, que trará aparticipação fecunda decolegas de todo o territórionacional. Um compromissocom a ética, a transparênciae a competência profissio-nal. Um compromisso coma ousadia por dias melhorespara a Casa dos Jornalistas.Em nome desses ideais par-ticipe das eleições e contri-

bua para promover um tempo de mudan-ça em direção ao futuro e em sintonia comos anseios da sociedade brasileira.

“A ABI, nesta quadrahistórica, marcada portransformações radicaisnos veículos e modosde comunicação, nãopode se isolar, nãopode estar com faltade sintonia com amodernidade.”

“O voto fora da cidadedo Rio de Janeirorepresenta uma

revolução no processoeleitoral da ABI.”

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Duas Chapas concorrem ao pleitoDuas chapas, a Vladimir Herzog,

liderada por Domingos Meirelles, ea Prudente de Moraes, neto, encabe-çada por Fichel Davit Chargel, tive-ram seus pedidos de inscrição homo-logados pelo Presidente da Comissão

PresidenteFichel Davit Chargel

Diretor Vice-PresidenteCarlos Marchi

Diretor AdministrativoIrene Cristina Gurgel do Amaral

Diretor Econômico-FinanceiroSérgio Caldieri

Diretor de Cultura e LazerJorge Roberto Martins

Diretor de Assistência SocialSônia Góes

Diretor de JornalismoAltenir Santos Rodrigues

CONSELHO CONSULTIVO 2013/2014Teixeira Heizer, Continentino Porto, FranciscoPaula Freitas, Carlos Alberto Caó, HildebertoAleluia, Ponce de Leon, Gilson Monteiro

CONSELHO FISCAL 2013/2016Loris Baena Cunha, Manoel Epelbaum,Jarbas Domingues Vaz, Antônio Nery, JorgeSaldanha de Araújo, Randolpho Silva deSouza, Luiz Paulo Machado

CONSELHO DELIBERATIVO (Efetivos) 2013/2016Milton Temer, Ilimar Franco, Luiz CarlosAzêdo, Dácio Malta, Pinheiro Júnior, DulceTupy, Carlos Alberto Marques Rodrigues,

Promover a democratização na to-mada de decisões na ABI, por meioda ampliação efetiva da participaçãodos associados. Este é um dos com-promissos básicos da chapa VladimirHerzog. Uma vez eleita, a nova dire-ção implementará o voto eletrôniconas próximas eleições, de forma quetodo associado possa votar, estandoele em qualquer ponto do territórionacional. A intenção era adotar omodelo de votação na eleição marca-da para 26 de setembro. No entan-to, a novidade, que viria corrigir a dis-torção que hoje limita ao espectroregional o foro de decisões de uma ins-tituição nacional, acabou tendo que

No próximo dia 26, atendaao chamado da ABI

ELEIÇÕES

ser adiada, por causa de ação movidapor representantes da chapa Pruden-te de Morais, Neto, que postularama realização das eleições apenas noRio de Janeiro.

De qualquer forma, o primeiro pas-so rumo à renovação da ABI já foidado. No pleito do dia 26, será aber-ta aos associados a possibilidade devotarem em seis estados. Além dasede da entidade, na capital fluminen-se, na Rua Araújo Porto Alegre, 71 -Centro do Rio, a votação ocorrerá,sempre presencialmente, em São Pau-lo (capital) - Rua Martinico Prado 26,grupo 31, Bairro Santa Cecília (emfrente ao Pronto-Socorro da Santa

Casa); Belo Horizonte/MG - RuaBahia 1.450, Centro; Maceió/AL,Rua Sargento Jaime Pantaleão, 370;Brasília/DF - SCLRN 704, Bloco F, loja20. Asa Norte (DF); e São Luís/MA -Rua Assis Chateaubriand, s/nº, Re-nascença II.

TODOS PODEM VOTAROutro dado importante: poderão

participar desta eleição histórica to-dos os associados, mesmo aqueles quenão se encontram em dia com suasmensalidades. Estes estão automa-ticamente anistiados e, assim, podemfazer valer sua vontade nas urnas. Aeleição será uma oportunidade úni-

ca de todos reaproximarem-se daentidade, inclusive aqueles que, porqualquer razão, há anos deixaram departicipar de suas atividades. É che-gada a hora de mostrar seu apreçopela Casa dos Jornalistas, ajudan-do-a a soerguer-se. Neste sentido, adefesa da adoção do voto eletrônicoconstitui capítulo fundamental na car-tilha a ser adotada para a reconstru-ção da Associação. Reconhecidamen-te seguro, adotado por importantesentidades, como as de assistência afuncionários e aposentados do Ban-co do Brasil, o modelo permitirá quea ABI reconquiste, pela via democrá-tica e justa, sua ressonância nacional.

Todos os sócios foram anistiados e podem votar em um dos seis endereços espalhados pelo Brasil:Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília, Belo Horizonte, Maceió e São Luís.

Eleitoral Roberto Monteiro de Pi-nho. As eleições da ABI começam nodia 25 de setembro, com a Assem-bléia Geral, e no dia 26 acontece a vo-tação na sede da entidade, e nas cin-co Representações da ABI espalha-

das pelo País (São Paulo, Brasília, BeloHorizonte, Maceió e São Luís). Nopleito, os associados irão escolher anova Diretoria Executiva, ConselhosFiscal, Consultivo e dois terços doDeliberativo (efetivos e suplentes).

Todos os os sócios da ABI foram anis-tiados e, para participar desta festademocrática, o eleitor em atraso deveacertar apenas o pagamento da men-salidade de setembro no local ondeirá votar.

Diretor PresidenteDomingos Meirelles

Diretor Vice PresidentePaulo Jerônimo de Sousa

Diretor AdministrativoOrpheu Santos Salles

Diretor Econômico-FinanceiroAna Maria Costábille

Diretor de Cultura e LazerJesus Chediak

Diretor de Assistência SocialArcírio Gouvêa

Diretor de JornalismoEduardo Cesário Ribeiro

CONSELHO CONSULTIVOAlberto Dines, Audálio Dantas, FerreiraGullar, Juca Kfouri, Cícero Sandroni, HélioFernandes, Ziraldo

CONSELHO FISCALArnaldo César Jacob, Jorge Ribeiro, LindolfoMachado, Luiz Carlos Chesther de Oliveira,Geraldo Pereira dos Santos, RosângelaAmorim, Paulo Roberto Gravina

CONSELHO DELIBERATIVO (Efetivos) 2013/2016Aziz Ahmed, Flávio Tavares, Jesus Antunes,Lima de Amorim, Bernardo Cabral, Jorge deMiranda Jordão, Sérgio Gomes (Serjão),

Andrei Bastos, Paulo Gomes Neto,Austrégesilo de Athayde Filho, Ralph Lichote,Silvestre Gorgulho, Elio Maccaferri, Antônio JoséFerreira Carvalho e Udson da Silva de Oliveira

CONSELHO DELIBERATIVO (Efetivos) 2014-2017Ricardo Kotscho, Milton Coelho da Graça,Anna Lee, Joseti Marques, Moura Reis,Tarcísio Baltar, Nivaldo Pereira, CarlosChaparro, Luthero Maynard, Daniel Mazola,Amiccucci Gallo, Oswaldo Augusto Leitão,Siro Darlan, Jeronimo do Espírito Santo eFábio Costa Pinto

CONSELHEIROS SUPLENTES 2013/2016Adalberto Diniz, Adilson Ribeiro, CarlosAlberto da Rocha Carvalho, Carlos Di Paola,Terezinha Santos, João Luiz Dória, MaurícioMax, JL Costa Pereira, Luarlindo Ernesto,Marcia Guimarães, Carlos Newton, MoysésChernichiarro Corrêa, Raul Silvestre,Reinaldo Leal, Wilson Alves Cordeiro

CONSELHEIROS SUPLENTES 2014-2017Lourival Marques Bogea, Petrônio SouzaGonçalves, Elisabete Burlamarqui, IlmaMartins da Silva, Vilson Romero, BonifácioRodrigues de Mattos (Ikenga), ClaudinéiaLage, JB Serra e Gurgel, José CarlosMachado, Jayme Gama, Érika Branco, LuizWanderley da Silva, Roberto Martins, TiagoSantos Salles, Wilson Carvalho

Argemiro Ferreira, Alcyr Cavalcanti, Jorge(Arapiraca) Oliveira, Sérgio Cabral Santos,Germando de Oliveira Gonçalves, BenícioMedeiros, Raul Quadros e Pery Cotta.

CONSELHO DELIBERATIVO (Efetivos) 2014/2017Glória Alvarez, Fátima Regina Lacerda,Fernando Paulino, Antero Luiz MartinsCunha, Osvaldo Maneschy, Silvio Tendler,Jorge Antônio Barros, Mário AugustoJakobskind, João Máximo, Moacyr Andrade,Andréa Vieira Gouvêa, Arthur Poerner,Octávio Costa, Cid Benjamin, Fernando Foch.

CONSELHO SUPLENTES 2013/2016Erika Franziska Herd Werneck, Bruno TorresParaíso, Leda Acquarone de Sá, José AntônioGerheim, Arthur Fraga, Manoel Pacheco,Laerte Costa Moraes Gomes, ItamarGuerreiro, Rubem Mauro Machado, VeraMaria Perfeito de Berrêdo, Mirson Murad,Edimilson Gomes Soares, Glauco de Oliveira,Zilmar Borges Basílio, José Pereira da Silva.

CONSELHO SUPLENTES 2014/2017Tadeu Aguiar, Salete Lisboa, CleyberFintelman, André Luiz Lacé Lopes, Maria IgnezDuque Estrada, Zilda Ferreira, Modesto daSilveira, Maria Luiza Franco Busse, Nilo Braga,Marcelo Tognozzi, Claudia Santiago VieiraGiannotti, Victor Cavagnari Filho, José RezendeNeto, Beatriz Santacruz, Ernesto Vianna.

CHAPA VLADIMIR HERZOG CHAPA PRUDENTE DE MORAES, NETO

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HOMENAGEM

Morte do escritor que fincou suas obras nas mais profundas raízes brasileiras chama a atenção para os valores da cultura nacional,em especial, a do Nordeste. Em vida, Suassuna foi árvore frondosa, da qual brotaram alguns dos mais saborosos frutos da nossa literatura.

POR PAULO CHICO

á quem faça relaçãodireta com aquelesnascidos sob o signode Áries. Outros des-tacam diferentes idi-omas e grupos étni-

cos, desde os indo-europeus que se espa-lharam pela Europa ainda Antes de Cris-to. Pesquisas revelam também a designa-ção de ‘raça pura’ – na verdade, uma refe-rência aos povos nórdicos ou germânicos.Esta, uma leitura bastante controversa,bem mais recente, utilizada para justifi-car atrocidades cometidas no período doNazismo. Seja como for, pode procurarpor aí, nos mais diversos dicionários. Overbete Ariano traz referências das maisdiferentes. Nenhuma delas, no entanto,

presta homenagem ou sequer traduz –não o termo, e sim a pessoa – em seu ple-no significado. Falamos de Suassuna. Tal-vez o mais brasileiro dentre os escritoresbrasileiros. E, por isso mesmo, autor dosmais universais. Não por acaso, com obrastraduzidas para o inglês, francês, espanhol,alemão e italiano, entre outros idiomas.

Nascido em João Pessoa, em 16 de ju-nho de 1927, Ariano Vilar Suassuna foidramaturgo, romancista, ensaísta, pales-trante, poeta e... artista plástico. Esta úl-tima talvez tenha sido a menos reconhe-cida de suas artes, mas nem por isso a demenor importância. Em todas essas ma-nifestações, o idealizador do Movimen-to Armorial e autor de obras como Auto daCompadecida destacou-se como inabalá-vel defensor da cultura do Brasil, em es-pecial a do Nordeste. Valores nacionaistão pouco cultivados, que ficam assim,meio que órfãos, após a sua morte, ocor-rida aos 87 anos, em 23 de julho deste ano,no Recife, vítima de complicações decor-rentes de um acidente vascular cerebral.

“Já na juventude Ariano gostava dedesenhar. Oficialmente, porém, podemosdizer que o seu trabalho no campo dasartes plásticas se inicia com os desenhosque fez para ilustrar o Romance d’A Pedrado Reino, lançado em 1971. A partir daíele começou a se dedicar às artes plásticasde modo mais regular, procurando, sem-pre que possível, uma associação entretexto e imagem. Ele sempre teve muitoprazer na criação artística, de um modogeral. Várias vezes eu o encontrei dese-nhando ou pintando na cama ou mesmosentado no chão”, contou ao Jornal da ABICarlos Newton Júnior, poeta, escritor eprofessor da Universidade Federal de Per-nambuco, provavelmente o maior espe-cialista na obra de Ariano, além de orga-nizador de diversas mostras que destaca-vam o lado ilustrador do ilustre escritor.

Carlos Newton é autor de Suassuna –Vida e Obra em Almanaque, ensaio biográ-fico publicado no começo deste ano, noRecife, dentro de um projeto patrocina-do pela Caixa Econômica Federal. O alma-naque tem 70 páginas, rica iconografia eilustrações com desenhos do próprioAriano. O projeto gráfico, com seus títu-los e capitulares, usa a fonte Armorial,

SuassunaO universo árido e fértil de

H

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espécie de alfabeto criado por Ariano,com inspiração nos ferros de marcar boino sertão nordestino. Também comoartista plástico, Ariano era único, por sermúltiplo. Atacava de desenhista, pintor,gravurista, tapecista, ceramista... Nãohavia limites para sua imaginação. “Parase compreender melhor a sua obra, a vi-são sistêmica é fundamental. É precisoperceber, ainda, que comumente o seutrabalho no campo das artes plásticasparte de sua obra literária, e não o inver-so”, pontua Carlos Newton, que fala deseu encanto pelo universo do autor.

“Meu interesse pelas artes plásticas doSuassuna surgiu naturalmente, na medidaem que eu estudava a sua obra. Por outrolado, além de escritor e crítico, sou pro-fessor de História da Arte na UFPE. Sem-pre dei razão às palavras do músico JarbasMaciel, um dos primeiros – senão o pri-meiro – a chamar atenção para o aspectosistêmico da sua obra, ou seja, na medidado possível, ela deve ser analisada emconjunto; romance, teatro, poesia e artesplásticas, pois a produção de Ariano emqualquer um desses campos lança luzsobre a dos outros. Há muito do Arianoainda a ser descoberto. Seus desenhos sãoa parte menos conhecida de sua obra.Tenho um livro inédito sobre o trabalhode Ariano neste campo. É um livro difí-cil de publicar, pois é um livro de arte, commuitas reproduções coloridas de pintu-ras, tapetes, gravuras... Ou seja, dependede patrocínio, dificilmente um editor obancaria sozinho. O primeiro capítulo –Ariano Suassuna, Artista Plástico – já foipublicado, como um ensaio, em uma co-letânea de textos de vários autores, pelaeditora da universidade”, conta CarlosNewton.

Todas as facetas do grande talento deAriano estão contadas didaticamentepor Carlos Newton Júnior, nos 12 capí-tulos do livro Suassuna – Vida e Obra emAlmanaque, começando com o seu nasci-mento no Palácio do Governo do Estadoda Paraíba. Na época, junho de 1927, seupai, João Urbano de Vasconcelos Suassu-na, era o Governador. No capítulo seguin-te o menino já aparece no sertão desco-brindo os encantos da Fazenda Acauhan.E aí a história continua, incluindo a tra-gédia do assassinato do pai, episódio queestá sempre presente na sua obra literá-ria. Assim Ariano reconhecia. “Posso di-zer que, como escritor, eu sou, de certa for-ma, aquele mesmo menino que, perden-do o pai assassinado no dia 9 de outubrode 1930, passou o resto da vida tentandoprotestar contra sua morte através do quefaço e do que escrevo, oferecendo-lheesta precária compensação e, ao mesmotempo, buscando recuperar sua imagem,através da lembrança, dos depoimentosdos outros, das palavras que o pai deixou”.

Apenas como registro histórico, valeesclarecer as circunstâncias do assassina-to de João Suassuna. O crime ocorreucomo desdobramento da comoção poste-

rior ao assassinato de João Pessoa, Gover-nador da Paraíba e candidato a vice-Pre-sidente do Brasil na chapa de GetúlioVargas. Ariano Suassuna atribuía à famí-lia Pessoa a encomenda do assassinato deseu pai, João Urbano, ao pistoleiro MiguelLaves de Souza, que atirou na vítima pelascostas, no Rio de Janeiro, num contextode pré-revolução de 1930. Em funçãodeste episódio, desgostava do nome atri-buído à cidade onde nasceu, a capital doEstado – João Pessoa –, até então chama-da Parahyba. E também por esse fato, nomesmo ano, sua mãe se transferiu com osnove filhos para Taperoá, onde Ariano fezos estudos primários. No sertão paraiba-

no, se familiarizou com os temas e as for-mas de expressão que, mais tarde, viriampovoar suas histórias.

Em Suassuna – Vida e Obra em Almana-que, Carlos Newton Júnior aborda atémesmo a origem das concorridas ‘aulas-espetáculo’. “Trato dessa faceta ‘professor’do Ariano no capítulo ‘Aula-espetáculo:a educação pelo riso’. Muito embora oconceito dessas palestras tenha surgido,oficialmente, durante a sua gestão na Se-cretaria de Cultura de Pernambuco (1995-1998), durante o terceiro governo deMiguel Arraes, Suassuna ministrava au-las-espetáculo há muito mais tempo doque se imagina. Professor da UFPE de 1956

até aposentar-se, em 1989, lecionou dis-ciplinas como Estética, História do Tea-tro e História das Artes, sempre neste mes-mo estilo. Suas aulas irrompiam na uni-versidade como um redemoinho forte arasgar as folhas dos velhos manuais de di-dática que a maioria dos professores seguiapor comodismo ou limitação intelectual.Ariano jamais precisou lançar mão doexpediente da chamada para que seusalunos se fizessem presentes na sala deaula. Suas aulas eram concorridíssimas, eos alunos regulares eram obrigados a che-gar cedo para disputar espaço – muitasvezes sentando-se no chão ou no peitorildas janelas – com alunos ouvintes e demais

interessados, muitos dos quais já haviamcursado as disciplinas e voltavam a fre-qüentá-la por vontade própria”, relata.

Vale a pena ressaltar o quanto a ‘meto-dologia’ das aulas-espetáculo de Ariano,muitas delas gravadas em vídeo e dispo-níveis nas redes sociais e canais da inter-net, se encontra em sintonia com ospostulados pedagógicos de Paulo Freire,de quem foi grande amigo. “Poderíamosafirmar, sem risco de erro, que o seu pen-samento em relação à arte e à culturatoma por base os mesmos princípios hu-manísticos que fundamentam o pensa-mento de Freire em relação à Educação.Isso não só teria reforçado a amizade

entre os dois como apontaria para a for-te possibilidade de uma influência recí-proca de um sobre o outro: o Ariano pro-fessor teria sido influenciado pelo educa-dor Paulo Freire. E o educador, por sua vez,influenciado pelas idéias do teórico dabeleza e pensador da cultura”, apostaCarlos Newton.

Formado na Faculdade de Direito doRecife em 1950, Ariano já havia iniciadosua produção literária três anos antes, em1947, com Uma Mulher Vestida de Sol. Paracurar-se de doença pulmonar, em 1951viu-se obrigado a mudar-se de novo paraTaperoá, na Paraíba, onde já havia resididotemporariamente quando do assassinatodo pai. Lá, naquele mesmo ano, escreveue montou a peça Torturas de um Coração. Em1952, volta a residir no Recife. Deste anoa 1956, dedicou-se à advocacia, sem aban-donar, porém, a atividade teatral. Sãodesta safra O Castigo da Soberba (1953),O Rico Avarento (1954) e o clássico Auto daCompadecida (1955), peça classificada,em 1962, pelo crítico Sábato Magaldi,como “o texto mais popular do modernoteatro brasileiro”. Em 1956, abandona emdefinitivo a advocacia para tornar-se pro-fessor de Estética na UFPE. Ainda assim,nos anos seguintes, jamais deixou de ladosua verve literária.

Carlos Newton Júnior destaca suaprodução predileta do autor, no campodas artes plásticas, ao mesmo tempo emque lamenta certa falta de reconhecimen-to de parte da crítica à genialidade de seupersonagem de estudo. “Creio que as vin-te iluminogravuras, trabalho em que eleassocia poemas a imagens, que formam osdois álbuns publicados na década de 1980– Sonetos com Mote Alheio e Sonetos de AlbanoCervonegro – dão bem a medida do seu tra-balho enquanto artista plástico. Há, alémdisso, pinturas em madeira, em papel etapeçarias. De uma maneira geral, a críti-ca – sobretudo a que se faz em Pernambu-co – não compreende a proposta doMovimento Armorial. Por mais inacredi-tável que possa parecer, dizem, por aqui,que o Movimento ‘quer resgatar a IdadeMédia’, entre outras tolices. Quando, naverdade, foi e continua sendo uma açãoimportantíssima, no sentido de apontaruma direção para artistas que acreditamque a arte universal deve ser, antes detudo, local, universalizando-se depoispela qualidade.”

UMA RELAÇÃO PROFISSIONAL,PAUTADA PELO AFETO

Jornalista, Adriana Victor foi assessorade imprensa de Ariano em seu primeiromandato como secretário de Cultura dePernambuco, no período de 1995 a 1998.Depois, foi secretária adjunta na mesmapasta, na segunda gestão do escritor. Foirepórter da TV Globo e diretora da colu-na O Canto do Ariano, produzida pela TVGlobo Recife e exibida também pelo Mul-tiShow e pelo Canal Brasil – canais porassinatura. Ainda emocionada, impacta-

O cavaleiro diabólico que apareceu a Lino Pedra-Verde, é um dos desenhos que Ariano fezpara o romance o Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai e Volta.

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da pela morte do amigo, Adriana conce-deu entrevista ao Jornal da ABI.

“O conheci em 1995. Ele tinha assumi-do a Secretaria de Cultura, no GovernoMiguel Arraes. Eu, jornalista, sonhei emser a sua assessora de comunicação – es-tava trabalhando como repórter de tele-visão havia alguns anos e queria mudar avida. Mas fui informada de que Arianopreferiria que todos os seus assessoresfossem artistas: era o caso, por exemplo,de Mestre Salustiano, do Maracatu Pia-ba de Ouro, e do músico Antônio Madu-reira. Assessor de comunicação não esta-va nos planos dele. Pedi, então, para co-nhecê-lo, e ele topou me receber. Conver-samos uma boa meia hora – conversa quefluiu, encaixou-se, afinou-se, natural-mente. Ao final, não pedi nada, ele nãome prometeu nada. Dias depois, recebium telefonema solicitando que eu levasseminha documentação para a contrataçãocomo assessora de comunicação”, recor-da-se. A partir daquele momento, umarelação especial se desenvolveu.

“Durante quase vinte anos, não tive-mos um desentendimento, nenhum atri-to, nada. Muita afinidade, muito respeito– e, de minha parte, uma admiração pro-funda, que só aumentou, dia após dia.Apesar dos 40 anos que nos separavam,digo sempre que nunca o vi como um pai,como muitos pensavam. Ariano era meuamigo, meu grande amigo. Alguém aquem eu aprendi a conhecer profunda-mente: o marido apaixonado, o pai e avôafetuoso, o intelectual brilhante, o escri-tor raro”, revela Adriana, que segue nadescrição da personalidade do mestre. “Eletinha um senso de humor muito intenso– mas nada ranzinza. Dizia-se ‘animoso’.E era. Sempre achava motivo para a gra-ça, para o riso. Como filósofo que era,estudava o risível sob a ótica da filoso-fia e criava as suas próprias teorias. Con-fessava admirar o povo brasileiro, entreoutras coisas, pela capacidade de achargraça em momentos, às vezes, difíceis.Por exemplo, transformar em piada asgrandes derrotas da seleção brasileira.Sempre tinha uma história, quase sem-pre divertida, engraçada.”

Investida delicada, e que gera descon-forto a muitos escritores, as adaptações deobras literárias para as telinhas, telonasou palcos faziam a alegria de Suassuna,garante a jornalista. “Ele gostava muito.Poderia ter uma ou outra observação afazer – mas, dificilmente, a fazia publi-camente. Ariano lembrava que foi procu-rado pela TV Globo, na década de 1970,para que suas obras fossem levadas à pro-gramação. Impôs condições que, na épo-ca, não foram aceitas pela emissora –como escolher a trilha sonora. Ele chega-ria à televisão só em 1994, pelas mãoscuidadosas e cheias de talento de LuizFernando Carvalho. Havia uma sintoniafina e rara entre Ariano e Luiz. A obraescolhida foi Uma Mulher Vestida de Sol,primeira peça escrita por ele e nunca

encenada. Ariano ficou extremamentefeliz, muito satisfeito com o resultado. OAuto da Compadecida, veja só, teve trêsadaptações para o cinema. A primeira, de1969, teve ativa participação do autor.Francisco Brennand pintou, a pedido deAriano, cada um dos figurinos. Ele tam-bém gostava da versão de Os Trapalhões,dirigida por Roberto Farias, em 1987. Emuito, é claro, da que foi levada à frentepor Guel Arraes, para a tv e, depois, parao cinema”.

Os três diretores citados por AdrianaVictor também lamentaram a morte doautor. “Eu conheci Ariano desde meninoe o encontrei várias vezes ao longo detodo esse tempo. Admirava-o duplamen-te, pelo grande artista que foi e pela for-ma como levou sua vida, sempre coeren-te com sua forma de pensar, com suasconvicções. Ele viveu sua obra e sua obraé a transfiguração de sua vida. Ariano foium humanista brasileiro. Além de umgrande escritor, foi o pensador de umaarte nacional, e um pensador do nossoPaís como um todo. A literatura foi o seuponto de partida, mas isso se expandia poroutras áreas. A gente fica muito mais po-bre. Quem tem essa cabeça e esse conhe-cimento pra pensar com tanta amplidão oBrasil?”, questionou Guel Arraes.

“Sempre fui um grande admirador esinto muito a morte dele. Ele era umapessoa extraordinária. A primeira vezque me comuniquei com ele para fazeruma adaptação do Auto da Compadecidafoi 25 anos antes, mas não foi um primei-ro bom contato. Ele dizia que eu tinhabrigado com ele. Acontece que ele não meconhecia, eu ainda estava no início dacarreira, e ele não autorizou. Mas 25 anosdepois, ele me atendeu com alegria, comose lembrasse de mim daquele primeirocontato. E foi maravilhoso, ele me deu otexto. Era meu sonho fazer uma adapta-ção do Auto desde a década de 1960. Euconsidero um privilégio ter tido a opor-tunidade de fazer uma obra com um textodele”, festeja Roberto Farias.

Luiz Fernando Carvalho, que já adap-tou três obras de Suassuna para o vídeo,

fez questão de ir ao Recife para se despe-dir do amigo. Ele contou que está traba-lhando em cima de mais um livro do es-critor, A História de Amor de Fernando eIsaura. “Eu adaptei os extremos de Aria-no: A Farsa da Boa Preguiça, Uma MulherVestida de Sol e também a Pedra do Reino...Foi uma grande viagem de aprendizado, de

troca de afeto, de conhecimento do País,de sua gente, de sua cultura. Você pergun-tava sobre a diferença entre jagunço ecapanga e vinha uma aula sobre Geografia,sobre música sertaneja, sobre Geologia,sobre canto. Ariano era um tesouro, umcometa raro”, comentou o diretor, quemora no Rio de Janeiro, e se recorda ain-da dos intantes de trabalho junto ao mes-tre, quando das adaptações que produziu.“Nesses momentos, éramos duas crianças.Ficávamos no chão da casa dele, recortan-do as xerox das peças, dos livros, para queas páginas ficassem perto da gente. A genteficava recortando frases, palavras, a adap-tação era como se fosse uma colagem devários pedacinhos de papel.”

A pedido do Jornal da ABI, AdrianaVictor define a relação de Ariano comEduardo Campos, neto de Miguel Arraese candidato à presidência do Brasil peloPSB, morto em acidente aéreo ocorridono dia 13 de agosto, em Santos/SP. “Erauma relação de respeito e admiração re-cíprocos. Ariano conheceu Eduardo cri-ança: ele era amigo do escritor Maximi-ano Campos, pai de Eduardo, a quem elechamava Dudu. Viviam na mesma rua, em

HOMENAGEM O UNIVERSO ÁRIDO E FÉRTIL DE SUASSUNA

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Suassuna gostava especialmente da minissérie O Auto da Compadecida, dirigida por Guel Arraes eestrelada por Selton Mello e Matheus Nachtergaele, que encarnaram Chicó e João Grilo.

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casas que ficavam frente a frente. Depois,Eduardo casa-se com Renata, sobrinha deZélia Suassuna, viúva de Ariano. Tinhammuita afinidade política, acreditavam nocrescimento do Brasil, na garra e na for-ça do povo brasileiro. Logo que soube damorte de Eduardo, pensei: pelo menosessa tristeza Ariano, que foi secretáriotambém na gestão de Campos, não vi-veu.” (Leia perfil de Eduardo Campos nes-ta edição do Jornal da ABI)

Visivelmente emocionado com a per-da do ‘grande professor’, o próprio Eduar-do Campos lamentou a morte de Ariano.“O Brasil perde a maior expressão dacultura popular brasileira. Nós perdemosum amigo, um conselheiro, uma referên-cia de toda a vida. Mas Ariano deixa umexemplo de dignidade, que todos nósbrasileiros devemos seguir. Exemplo deausteridade, amor ao povo e amor aoBrasil, amor à cultura e à ética. Então, vivaa Suassuna e ao seu exemplo de vida!”,declarou, cerca de três semanas antes doacidente que o vitimou.

Para Adriana Victor, Ariano deixa comolegado sua obra e, sobretudo, seu compro-misso para com o Brasil. “Ele defendia,com todas as armas de que dispunha, avalorização da cultura brasileira. Comoalguém que cresceu no sertão, região quetanto admirava, talvez tenha ressaltado,na defesa da cultura do Brasil, a alma e asverdades sertanejas. Mas era do Brasil queele falava, o tempo todo. Acho que deixoumuitos admiradores – não gostava da pa-lavra ‘fã’. Os músicos Antônio Nóbrega eAntônio Madureira, os artistas plásticosRomero de Andrade Lima e Manuel Dan-tas Suassuna. Dantas, pintor de talentoincontestável, tinha a sincera e intensaadmiração do pai. Agora, tem um legado,um patrimônio, uma herança de arte. E deidéias, de crenças, de fé. Depois da alegriaao ver uma das exposições de ManuelDantas, Ariano escreveu, repetindo umditado popular: ‘Triste dos pais que nãovêem seu filho ir adiante deles’”, conta.

REPERCUSSÃO DE PESARJUNTO À CLASSE ARTÍSTICA

Também citado por Adriana, o músi-co pernambucano Antônio Nóbrega, umdos fundadores do Movimento Quinte-

morte de Ariano confrange e entris-tece a Academia Brasileira de Le-tras. No espaço de um mês, é oterceiro grande acadêmico queparte. Estendemos à famílianossos profundos sentimentosde pesar. E à multidão de seus

amigos, leitores e admiradores noBrasil e no mundo, nossa solidari-

edade pela imensa perda. Ariano reu-nia em sua pessoa as extraordinárias

qualidades de homem de letras e de inte-lectual no melhor sentido da palavra, al-guém que, dispondo de uma cultura invul-gar, era, ao mesmo tempo, um homem deação. À sua maneira ocupava-se e preocu-pava-se com os problemas sociais, focadonos da sua região. Não podemos esquecerseu engajamento com o Movimento Ar-morial, através do qual buscava revigorara identidade nordestina e suas peregrina-ções levando, com humor, sua mensagempor todo o Brasil”, disse Holanda.

Maria Amélia Mello, editora da JoséOlympio (leia perfil na página 16), que pu-blica a obra de Ariano, confirma o depo-imento de Antônio Nóbrega. Havia, defato, um novo romance em produção. Olivro se chamaria O Jumento Sedutor e es-tava sendo elaborado ao longo das últi-mas três décadas. “Eu já tinha recebidouma versão que seria a final, mas, emmaio, ele me pediu para fazer algumasmodificações. Prometeu entregar logo,agora no início do segundo semestre, anova versão, para que pudéssemos prepa-rar tudo e lançá-lo até o fim do ano. A idéiaera viajar o Brasil para divulgar a obra. Éum romance, bastante robusto e commuitas particularidades da obra do Aria-no, como molduras nas páginas. Só nãoposso falar sobre o enredo porque elehavia me pedido para não comentarmos”,revelou Maria Amélia. O título seria umareferência ao romance O Asno de Ouro,lançado pelo escritor romano Apuleio noséculo 2. “A publicação, agora, depende decomo ele deixou o livro e do interesse dafamília. Para a José Olympio, que semprefoi a casa do Ariano, será uma satisfaçãolançá-lo. Também tínhamos um projetode fazer uma publicação com as poesiasdele, uma parte de sua obra menos conhe-cida”, conclui a editora.

to Armorial, escreveu um texto em seusite oficial em que relembra sua parceriacom o escritor. “Conheci Ariano em 1970quando fui convidado por ele a integraro Quinteto. Na ocasião, ele acabara depublicar o seu livro, o Romance d’A Pedrado Reino e o Príncipe do Sangue do Vai eVolta, e foi por meio dessa obra que aden-trei no Mundo Ariano. Minha ligaçãocom ele foi imensamente frutífera: anosde convivência quase que cotidiana du-rante a fase de apresentações do Quinte-to; musiquei alguns de seus poemas, re-presentei o personagem Joaquim Simãoda sua peça A Farsa da Boa Preguiça numaversão realizada pela TV Globo; inspirei-me em seus ‘amarelinhos’ para construiro meu personagem Tonheta. E sobretudoisso: foi a partir do meu encontro com eleque minha maneira de fazer arte, enten-der cultura e ver o mundo ganhou outrase novas dimensões”.

O artista segue em sua análise. “Aria-no teve, e continuará tendo, um papelabsolutamente imprescindível, vital paraa arte e cultura brasileiras. Foi escritorversátil – dramaturgo, romancista, poe-

ta, cronista, ensaísta – e um misto de em-preendedor, ativista e animador cultural.Todas essas suas atividades tiveram comopano de fundo a visceral paixão pelo povoe pela cultura brasileira, uma tão inten-sa amorosidade só comparável àquela debrasileiros como Mário de Andrade e Dar-cy Ribeiro. Ariano há muito vinha escre-vendo o que, segundo ele, seria a sua obrasíntese. Esse livro tive a oportunidade de‘escutá-lo’ inúmeras vezes quando o visi-tava. Ariano tinha um enorme prazer emler trechos dele para nós, amigos que ovisitávamos. Por alguma razão desconfiavaque essa sua obra não seria publicada emvida. Ainda terá muito a nos revelar. Umavida desse tamanho e quilate não se extin-gue com a morte. Como ele dizia, em tomde brincadeira, referindo-se à sua entradana Academia Brasileira de Letras: ‘Nãoquero ser um imortal, quero ser imorrí-vel’”, diverte-se Nóbrega. Em tempo: naABL, Ariano ocupava, desde 1990, a cadeira32, cujo patrono é Manuel José de Araú-jo Porto Alegre, o barão de Santo Ângelo.

Presidente da ABL, Geraldo HolandaCavalcanti divulgou nota oficial. “A

Quatro trabalhos do artistaplástico, Ariano Suassuna:

No alto, à esquerda, InsígniaAstrológica de Quaderna,

técnica mista sobre papel apartir de desenho de A Pedra

do Reino; à direita, A MorteCaetana, tapete criado apartir de uma ilustração

originalmente publicada emO Rei Degolado. Ao lado, ailuminura O Campo, Tema

do Barroco Brasileiro, eacima, um exemplo de

pintura sobre cerâmica.

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Junto com Alexandre Nóbrega, genrode Ariano, Carlos Newton Júnior trans-crevia as cópias feitas à mão. O texto fi-nal de O Jumento Sedutor tem cerca de 300páginas. “O problema é que o livro, paraser editorado, demanda certo tempo,sobretudo para a inserção das ilustrações,também de autoria do Ariano”, diz o pro-fessor. “Este é um grande e extraordiná-rio texto, onde ele reuniu prosa de ficção,cantoria, poesia, repente e teatro”, afirmao escritor Raimundo Carrero, um dosprivilegiados que já leram a obra e que, aconvite de Ariano, escreveu o prefácio damesma. E, para quem achava que o autornutria algum tipo de ressentimento emrelação à disparidade entre o apelo popu-lar de seu teatro e o de sua literatura, Car-rero garante o contrário. “Nunca o ouvireclamar de nada. E ele era muito bem lido,basta lembrar que A Pedra do Reino temmais dez edições, o Auto da Compadecidafoi lido e visto por milhares de pessoas emtodo o mundo.”

No teatro, foi montado ininterrupta-mente desde os anos 1950, contando comencenações de grandes nomes como Zi-embinski (O Santo e a Porca), AdemarGuerra (Auto da Compadecida), AderbalFreire-Filho (A Farsa da Boa Preguiça) e

A ação coordenadapor Ariano tem comometa elaborar uma arte

de natureza erudita a par-tir de ingredientes típicos

da cultura popular. Esta corrente artísti-ca foi lançada no dia 18 de outubro de1970, em um ritual consagrado na Igrejade S. Pedro dos Clérigos, no bairro de SãoJosé, no Recife, acompanhado por umamostra de artes plásticas e pela apresen-tação da Orquestra Armorial de Câmara,que tinha então como regente o maestroCussy de Almeida. É marcada principal-mente pela tendência de sintetizar ele-mentos e figuras da cultura do povo nor-destino e obras clássicas da literaturauniversal. Esta mistura de gostos e expres-sões é o móvel que inspira o tempo todoo autor e seus companheiros do Movi-mento, que foi criado para fazer face aomassivo domínio dos imperativos cultu-rais norte-americanos no Brasil. Busca-va fazer valer o legítimo regional, emcontraposição à importada cultura demassa.

Os integrantes do Movimento tinhamcomo objetivo empenhar todas as moda-lidades artísticas nesta direção – música,dança, literatura, artes plásticas, teatro,cinema, arquitetura, entre outras expres-sões. Assim, figuras de todos os campos seuniram neste esforço nos anos 1970:

O Movimento Armorial

Antunes Filho (A Pedra do Reino). “Dolo-rosa notícia a da morte de Suassuna, queconsidero, ao lado de Nelson Rodrigues,dramaturgos maiores do teatro brasilei-ro. Não fosse suficiente também conside-rá-lo um dos nossos grandes romancistas,depois de Guimarães Rosa, com a obra APedra do Reino”, lamentou este último.“Ariano nasceu em meio à aristocracia ru-ral de Recife, e então relaciona com inten-sa paixão esse passado culto com toda acultura popular. Essa é a importância delee do seu teatro. Hoje observamos um tea-tro cada vez mais desligado do povo, porconta de todo esse colonialismo cultural.Então as pessoas olham para cima, para ohemisfério Norte em busca de referência,enquanto brota daqui uma cultura riquís-sima. Ele era um nobre artista, como foiTolstói, está no DNA de toda a humanida-de, assim como Cervantes. Quando al-guém desse tamanho morre, imediata-mente se torna imortal. E a partir daí, nocurso da História, Ariano vai aparecer esumir, aparecer e sumir, aparecer e sumir...”,decretou o dramaturgo e diretor José CelsoMartinez Corrêa.

Afeita aos palcos, a atriz Inez Viannateve a oportunidade de estreitar os laçosartísticos com o escritor nascido na Paraí-

ba, mas radicado em Pernam-buco. Ela dirigiu a versãopara os palcos de As Con-chambranças de Quaderna,espetáculo que faz longacarreira desde sua estréia, em2009. “Queria que minhaprimeira direção teatral fosse uma obra deAriano. Então, fui no Recife ao seu encon-tro, para que ele me indicasse uma. Ele mefalou dessa peça, e eu adorei e ainda crieia Cia OmondÉ, uma expressão usada notexto. O espetáculo reúne duas peçasnuma só, ligadas por um mesmo narrador,Dom Pedro Diniz Quaderna, personagemprincipal do famoso romance Romance d’APedra do Reino. A primeira, conta a saga deduas irmãs prometidas em casamento,onde o noivo de uma delas, no dia do ma-trimônio, resolve que quer se casar comoutra, gerando uma grande confusão. Jána segunda história – baseada em fato realpublicado num jornal nordestino – umamulher resolve fazer um pacto com odiabo, para que este leve para o inferno oseu marido, junto com a amante”, resumiuao Jornal da ABI.

Inez não tem dúvidas ao apontar o quehá de mais especial na obra do dramatur-go. “Me impressionam a atemporalidade

e a capacidade que ele tinhade se inspirar no popularpara se chegar no erudito. E,ao contrário do que muitopensam, não é difícil trans-por o universo de Arianopara os palcos. Basta você

não cair na armadilha de criar uma cari-catura dos signos nordestinos, de seuuniverso mítico. Sua obra é universal, enão regional”. As Conchambranças deQuaderna está em cartaz há cinco anos,mas diretora e autor se conheceram bemantes. “Conheci Ariano em 1998, no ca-marim do Teatro Santa Isabel, no Recife,ao final de uma peça que eu fazia comArlete Salles e Laura Cardoso. Chegoucom Zélia, sua mulher, seu filho Dantase sua nora Denise. Foi logo contando suashistórias hilárias, e aí me apaixonei... Erameu amigo desde 1999, quando dirigi eproduzi o documentário Cavalgada àPedra do Reino, onde ele foi o narradorprincipal.”

Na visão da atriz, Ariano tinha a ne-cessidade de transmitir o que sabia. “E erapara o povo brasileiro que ele queria fa-lar, levantar sua auto-estima, mostrar quetemos uma cultura rica, que não precisa-mos imitar ninguém. Fez disso sua ban-

sitalmente, Suassuna conferiu-lhe umcaráter adjetivo, para que assim ela defi-nisse qualitativamente o canto do ro-manceiro, os acordes da viola e os demaiselementos que tecem o movimento. Soba coordenação do escritor, a ação deslan-chou, com a participação ativa de diver-sos artífices e escritores do Nordeste bra-sileiro e o suporte essencial do Departa-mento de Extensão Cultural da Pró-Rei-toria para Assuntos Comunitários da

Antônio Nóbrega, Antonio José Madurei-ra, Capiba, Jarbas Maciel e Guerra Peixe,dentre outros. No campo da música, essaescola está vinculada à produção da litera-tura de cordel, à moda de viola, a instru-mentos como a rabeca. As capas de seustrabalhos são manufaturadas com a técni-ca própria da Xilogravura.

A expressão ‘armorial’, um substanti-vo em nossa língua, sempre teve o senti-do de ‘livro de registro de brasões’. Propo-

UFPE, conquistando também o auxíliooficial da Prefeitura do Recife e da Secre-taria de Educação do Estado de Pernam-buco. O Movimento deu um impulsosignificativo à cultura brasileira, permi-tindo que ela fosse respeitada em todo oPlaneta. Por vezes, mais lá fora do queaqui dentro. E não se restringiu ao âmbi-to cultural, uma vez que estendeu suainfluência ao universo da moda e do com-portamento.

HOMENAGEM O UNIVERSO ÁRIDO E FÉRTIL DE SUASSUNA

Convidado por Suassuana em 1971, oconsagrado mestre gravurista Gilvan Samico,

integrou o Movimento Armorial. É de sua autoriaa gravura Alexandrino e o Pássaro de Fogo, que

ilustra a capa do primeiro lp do QuintetoArmorial, do qual fizeram parte José Madureira e

Antônio Nóbrega. É de Samico também axilugravura A Tentação de Sto. Antônio (direita).

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‘ “Acredito que toda arte é local, antesde ser regional, mas, se prestar, serácontemporânea e universal.”

“Os doidos perderam tudo, menos arazão. Têm uma (razão) particular.Os mentirosos são parecidos comos escritores que, inconformadoscom a realidade, inventam outras.”

“Arte pra mim não é produto demercado. Podem me chamar deromântico. Arte pra mim é missão,vocação e festa.”

“O otimista é um tolo. O pessimista,um chato. Bom mesmo é ser umrealista esperançoso.”

“Estendo meu horror ao terrorismoaos atos praticados pelos americanos.O pior terrorismo é o de Estado. Aspessoas que derrubaram as torresde Nova York: é um ato reprovável,mas são corajosos. Enfrentaram emorreram. O terrorismo de Estado éao abrigo de qualquer risco.”

“Não troco o meu ‘oxente’ pelo ‘ok’de ninguém!”

Algumas das frases maisbrilhantes de Ariano...

“Sempre me vêm com estatísticas,tentando provar que viajar de carroé mais perigoso, que as estradassão cheias de buracos. E eurespondo: ‘Pior é no avião, que oburaco acompanha a gente otempo inteiro.’”

“Eu tenho dentro de mim umcangaceiro manso, um palhaçofrustrado, um frade sem burel, umprofessor, um mentiroso, umcantador sem repente e um profeta.”

“A globalização é o novo nome doimperialismo, e o gosto médio éuma peste, é muito pior do que omau gosto.”

“Já me disseram que eu querocolocar a cultura brasileira dentro deuma redoma de vidro pra que elanão se contamine, e isso ébobagem. Sou a favor dadiversidade cultural brasileira. Sónão admito é a influência de umaarte americana de segunda classe.”

“Tenho duas armas para lutar contrao desespero, a tristeza e até a morte:o riso a cavalo e o galope do sonho.É com isso que enfrento essa dura efascinante tarefa de viver.”

“Eu sou um péssimo ator. Não sousó o pior ator vivo, eu sou o piorator vivo e morto.”

“Tem gente que não gosta deadjetivo em texto. Eu confesso quenão sei escrever nada sem adjetivo.”

“Não tenho medo da morte. Naminha terra, a morte é uma mulhere se chama Caetana. E o único jeitode aceitar essa maldita é pensandoque ela é uma mulher linda.”

“O Brasil tem uma unidade em suadiversidade. A gente respeita acultura gaúcha, nordestina,amazônica. O que é ruim é esteachatamento cosmopolita. Você ligaa televisão e não conseguedistinguir se um cantor é alemão,brasileiro ou americano, porquetodos cantam e se vestem domesmo jeito.”

deira. Amava profundamente o BrasilReal, e quis conhecê-lo de perto. Nestesúltimos anos, não só continuou a escrever,como também percorreu o Brasil de Nor-te a Sul e de Leste a Oeste, lotou teatros epraças, com suas aulas-espetáculo. E ao seulado, sua incansável musa inspiradora,Zélia Suassuna, a quem ele dedicou todasua obra e todo seu amor. Além de gene-roso, culto, inteligente, carinhoso, eramuito, mas muito engraçado. Dizia sermetade rei, metade palhaço.”

Fernanda Montenegro lamentou nãosomente o falecimento de Ariano, mas operíodo marcado por perdas inestimáveispara a cultura brasileira. “O conheci porvolta de 1957, quando estreou o Auto daCompadecida. E nos aproximamos muito.É muito triste. Esta é uma geração quesempre lutou por esse País, que travoubatalhas pela liberdade de expressão.Além de autor e professor, tinha disposi-ção de atuar. De modo que era também umator. Um homem de cultura imensa, quetem aquele Nordeste esculpido na alma.É uma situação extremamente insuportá-vel esta perda. Ele vai seguindo JoãoUbaldo Ribeiro e Rubem Alves. Quemvai substituir essas pessoas? São pessoasque sustentaram a cultura e o social des-

se País. A grande arte de escrever, a gran-de arte de interpretar, a grande arte deobjetivar a visão do Brasil. Acho justo quese homenageie sempre, e que não se dei-xe morrer este tipo de gente.”

Aos milhares, familiares, amigos e ad-miradores passaram pelo Palácio do Cam-po das Princesas, sede do governo de Per-nambuco, para se despedir do escritor,velado no local a partir da noite do dia 23.Lá também estiveram autoridades, comoa Presidente da República Dilma Rous-seff, o Governador do Estado, João Lyra Fi-lho, que decretou luto oficial de três dias,e o presidenciável Eduardo Campos. Aosom da rabeca, dos chocalhos e da batuca-da do maracatu, o bloco carnavalesco OGalo da Madrugada prestou sua últimahomenagem. Antes da partida para o cemi-tério, os presentes cantaram o hino dobloco Madeira do Rosarinho, canção sem-pre entoada por ele e que está para Pernam-buco como Cidade Maravilhosa para o Riode Janeiro. Ariano era torcedor fanáticodo Sport Club do Recife e muitos fãs apa-receram no velório com a camisa do clu-be. Durante todo o velório, o caixão este-ve coberto com bandeiras do Brasil, dePernambuco e do time do coração. Após 16horas de velório e desfile em carro aberto,

o corpo foi enterrado no Cemitério Mo-rada da Paz, em Paulista, no Grande Reci-fe, no final da tarde de 24 de julho.

A defesa da cultura nacional, de tãoradical, muitas vezes rendeu ao escritoro rótulo de xenófobo. Em sua cruzada con-tra a invasão da indústria cultural norte-americana, falava mal de Madonna eMichael Jackson. A primeira, foi por eledocemente chamada de ‘débil mental’.Em relação ao rei do pop, Suassuna nãofoi mais complacente. “Eu daria a MichaelJackson o título de representante númeroum do lixo cultural. Mas eu já estou compena dele, porque os americanos inven-tam um mito assim falso como ele e de-pois destróem”. Sem piedade, detonava osEstados Unidos. “Estendo meu horror aoterrorismo aos atos praticados pelosamericanos. O pior terrorismo é o de Es-tado. As pessoas que derrubaram as torresde Nova York: é um ato reprovável, massão corajosos. Enfrentaram e morreram.O terrorismo de Estado é ao abrigo dequalquer risco”, declarou em entrevista àFolha de S.Paulo.

Adriana Victor diz acreditar que, casopudesse escolher, Suassuna gostaria quesua obra poética fosse mais conhecida.“Ele dizia que ‘na Literatura que me entu-

siasma, a poesia é sempre o chão sagradono qual a prosa Armorial viceja’. No ro-mance que escrevia desde 1981, a obrapoética também estava presente”, confir-ma ela. No campo da poesia, destacam-sena sua obra títulos como O Pasto Incendi-ado, Sonetos com Mote Alheio e Os Homensde Barro. Apesar de polêmico aos olhos dealguns leitores, controverso na avaliaçãode parte da crítica, Ariano desfrutou emvida o devido reconhecimento e prestígioque merecia. É o que garante a ex-assesso-ra do escritor.

“Claro, há os que não gostam, há os quediscordam. Até com isso ele brincava, di-zendo: ‘divido o mundo em duas partes.Os que concordam comigo e os equivoca-dos’. Quem o conhecia bem sabia que essaera uma grande brincadeira. Nos últimostempos, ele ficou muito feliz com a visi-ta do escritor Valter Hugo Mãe que, empassagem por Pernambuco, pediu paraconhecer Ariano. Depois, escreveu umlindo texto, onde afirmou: ‘É de uma can-dura magnífica e coloca-nos num pata-mar de dignidade superior. Como amigos.Quem assim recebe, recebe como amigo’.Acho a descrição muito fiel ao que Aria-no de fato era: tinha uma capacidadeímpar de nos dignificar.”

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10 JORNAL DA ABI 404 • AGOSTO DE 2014

A absurda decisão judicial sobre umcaso acontecido há mais de 14 anos caiucomo uma bomba (e não como uma balade borracha) não só nos meios jornalísti-cos, mas também como em toda a socie-dade brasileira que preza pela democra-cia e pela liberdade de expressão. A 2ªCâmara Extraordinária do Direito Públi-co do Tribunal de Justiça de São Paulo, em28 de agosto de 2014, considerou que ofotógrafo Alex Silveira, que em 18 demaio de 2000 foi atingido pela Tropa deChoque da Polícia no olho esquerdo, en-quanto cobria manifestação de professo-res da rede estadual pelo jornal Agora SãoPaulo, do Grupo Folha de S.Paulo, não devereceber nenhuma indenização por partedo Estado. Motivo: segundo a Justiça, foio próprio fotógrafo que se colocou cons-cientemente em situação de perigo e,portanto, se existe algum responsávelpela perda de 80% da capacidade de visãode seu olho, este responsável é o próprioprofissional. A decisão reverte o julga-mento de primeira instância, vencido porAlex Silveira, que teria direito a receber100 salários mínimos como indenização.

Na visão turva do relator do processo,desembargador Vicente de Abreu Ama-dei, a conduta dos professores manifes-tantes justificou a reação da Tropa deChoque em plena Avenida Paulista, queabriu fogo com bombas de efeito moral edisparos de balas de borracha. Para ele,assim, a ação do Estado foi lícita. E o fo-tógrafo de forma consciente (e, conse-qüentemente, irresponsável), não zeloupela própria segurança.

Para espanto e indignação de quembusca uma sociedade livre, diz o relatorAmadei: “Não há, contudo, nas provas dosautos, plena certeza em relação ao obje-to contundente que feriu o autor, nemàquele que foi pessoalmente responsávelpor isso, nem até mesmo, se partiu de açãodos policiais ou dos manifestantes: a) oambiente era de confusão ou tumulto,com recíprocos lançamentos (pelos poli-ciais e pelos manifestantes) de objetospróprios ao efeito contundente; b) aperícia, neste ponto, foi inconclusiva,destacando não ser ‘possível estabelecerqual foi o agente contundente’ ; c) ape-nas uma testemunha presencial aponta odisparo de bala de borracha, subsequen-te à explosão de uma bomba de efeitomoral, como a causa material da lesão,

Bala de borracha fereliberdade de imprensa

Justiça paulista conclui que fotógrafo tem “culpa exclusiva” por ter sido atingido no olho, em pleno exercício da profissão.

POR CELSO SABADIN

mas o próprio autor, quando ouvido ex-trajudicialmente, declinou sua incerteza,dizendo, quanto ao objeto, que apenas‘imagina ter sido bala de borracha’, obser-vando, entretanto, que o médico que lheatendeu, parecia descartar isso, bem comobomba de efeito moral, dizendo que ‘tironão era porque não havia queimaduranem estilhaço de bomba’”.

É desprezível a tentativa do relator emsimplesmente desqualificar o depoimen-to de uma das testemunhas, ao questionarse era ou não uma bala de borracha o cau-sador do ferimento. Amadei tenta jogaruma cortina de fumaça no fato inquestio-nável que o dano causado é consequênciadireta da violência desproporcional utili-zada pela Tropa de Choque, não tendo amenor importância qual teria sido o obje-to causador da lesão. Deixa-se em segundo

ou até terceiro plano o fato de um profissi-onal da imprensa ter sido violentamenteatingido em pleno exercício da profissão.

Além de tentar desqualificar o depo-imento da testemunha, Amadei tambémbusca criminalizar o próprio ato reivin-dicatório em si: “As circunstâncias emque os fatos ocorreram não autorizam, ameu ver, a indenização por responsabili-dade imputada ao ente público. Com efei-to, destaque-se, de um lado, que o conjun-to dos elementos probatórios dos autosnão autoriza afirmar que tenha havidoabuso ou excesso na referida condutapolicial atrelada ao tal disparo, observan-do não só a circunstância de indevidobloqueio de tráfego de via pública pelosmanifestantes, que insistiam nesta con-duta ilícita, a justificar a repressão poli-cial, bem como o tumulto conseqüente,

inclusive com lançamentos de pedras,paus e coco nos policiais, que tambémjustificaram reação policial mais enérgica,com lançamento de bombas de efeitomoral e disparos de balas de borracha, paradissipar a manifestação já qualificada,para além de ilícita, como agressiva”, diz.

A conclusão chega a ter ares de sarcas-mo: “Ora, no caso, o autor, embora nãofosse um dos manifestantes (ou um da-queles que diretamente provocou o tu-multo ou causou a reação policial), en-contrava-se no local, como repórter foto-gráfico, no meio daquela confusão, ouseja, no tumulto, entre os manifestantese os policiais, buscando extrair fotogra-fias do que ocorria e, assim, realmentecolocou-se em situação de risco ou deperigo, quiçá inerente à sua profissão.Permanecendo, então, no local do tumul-to, dele não se retirando ao tempo em queo conflito tomou proporções agressivase de risco à integridade física, mantendo-se, então, no meio dele, nada obstante seuúnico escopo de reportagem fotográfica,o autor colocou-se em quadro no qual sepode afirmar ser dele a culpa exclusiva dolamentável episódio do qual foi vítima”.E, seria cômico se não fosse absurdamen-te trágico, Alex Silveira ainda foi conde-nado a pagar as despesas do processo e daverba honorária de R$ 1.200,00.

O juiz substituto em 2º grau MaurícioFiorito e o desembargador Sérgio GodoyRodrigues de Aguiar também participa-ram do julgamento e acompanharam ovoto do relator. Num flagrante caso deinversão de valores, onde a vítima vira ré,o caso lembra explicitamente os tristesanos onde as vítimas da ditadura “se sui-cidavam” sem dó nem piedade diante deseus torturadores.

“A decisão causa-me uma grande dor”,diz Maria Isabel Azevedo Noronha, Pre-sidente do Sindicato dos Professores doEnsino Oficial do Estado de São Paulo-APEOESP. “Fomos parte daquele episódioe também sofremos a repressão da PM.Testemunhamos o momento em que ofotógrafo foi atingido, em maio de 2000,quando fazia uma foto da atuação despro-porcional da Tropa de Choque em assem-bléia da APEOESP. Como Presidente doSindicato, pedia calma a todos, especial-mente aos policiais. Dezenas ficaramferidos. Espero que todas as vozes demo-cráticas se levantem contra essa decisãoe que as instâncias superiores da Justiçaa revejam”, conclama Maria Isabel.

Em solidariedade a Alex Silveira, jornalistas fazem campanha contra decisão judicial que pune a vítima.

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11JORNAL DA ABI 404 • AGOSTO DE 2014

“Carta aos companheiros.Não é necessário dizer a vocês o

quanto a posição tomada por esseJúri me afetou. Na prática, fiqueisem chão e me sentindo um lixoquando soube dessa notícia.Obviamente no primeiro momentofoi um misto de indignação e auto-piedade, coisa que quem meconhece direito sabe que passa logo,pois sou muito mais teimoso emtudo que faço.

Mas passado o susto da notícia,me veio o pior dos sentimentos, quefoi o de me sentir literalmente “umboi de piranha” por tudo que vemacontecendo já há um tempo e comvários de nós. (Obviamente queestou citando a era pós-ditadura), naqual saímos pra trabalhar comconvicção que somos abonados pelaconstituição e pelo direito de exercernossa profissão livremente. E é issoque mais me preocupa e amedrontano momento.

Pois permanecendo este parecerridículo, todos nós estaremos em umgrande perigo de uma nova ditadura,mas agora velada de interessesmesquinhos e danosos, e dandopara os agentes do Estado um SalvoConduto no qual o despreparodesses mesmos, certamente,causarão muitos danos, físicos,

A palavra de Alex Silveira,em carta dirigida aos colegas

morais e constitucionais, mas issotudo é muito óbvio.

Sobre essa decisão realmentenão consegui encontrar outra formade explicar tal absurdo: sim euestava lá no cumprimento de minhaprofissão, entendeu o Juiz. Sim, foia polícia a responsável pelo tiro queme atingiu no rosto (bala deborracha). Mas julgou com isso queeu tenho culpa por ter me colocadona frente da bala rs (podem rir, issorealmente foi cômico). E deixouclaro que eu deveria ter deixado olocal assim que o confrontocomeçou.

E o mais bizarro e perigoso “pratodos nós”: ele entendeu que aopermanecer no local eu “assumi orisco” de ter tomado o tiro. Bem,não acho que seja necessário falarsobre isso aqui entre nós, mas,alguém aí cobre, seja lá o que for,sentado na Redação? Obviamente,não! Enfim, no fim das contasentendi com tudo isso que essadecisão tem uma clara intenção de“colocarmos em nosso lugar”.Acredito que essa causa é maiorque todos nós. Perdemos a nossaindividualidade e nos tornamos umsó Repórter, essa luta agora é detodos nós.

Alex Silveira”

Já são quase 40 anos de história do quehá de melhor no jornalismo brasileiro.Pela 36ª vez, centenas de jornalistas detodo o Brasil inscreveram suas matériaspara concorrer ao Prêmio Vladimir Her-zog de Anistia e Direitos Humanos. Nes-ta versão 2014, o prêmio, consideradoum dos mais sérios e importantes na ca-tegoria, fará um reconhecimento especi-al aos trabalhos que versem sobre a De-mocracia, a Cidadania e os Direitos Hu-manos, nas mais diversas mídias.

São oito categorias: Artes (ilustrações,charges, cartuns, caricaturas e quadri-nhos), Fotografia, Documentário de tv,Reportagem de tv, Rádio, Jornal, Revis-ta e Internet. Além destas premiações,desde 2009 a Comissão Organizadoraindica profissionais que serão agraciadoscom um Prêmio Especial por serviços jor-nalísticos prestados à Democracia, à Paze à Justiça. Na verdade estas indicaçõesvêm corrigir um descompasso que reto-ma a proposta original do Prêmio, queprevia tais homenagens a personalidadesque jamais inscreveriam seus trabalhosem qualquer tipo de concurso.

Neste ano, receberão as homenagensa jornalista carioca Sandra Almada Lau-kenickas (uma das pioneiras da TV Glo-bo, onde assumiu o nome profissional deSandra Passarinho) e o político santistaRubens Paiva (in memoriam), cujo assas-sinato pela ditadura só foi finalmenteconfirmado mais de 40 anos após à suamorte (ocorrida em 1971), graças ao tra-balho da Comissão Nacional da Verdade.Em anos anteriores, foram homenagea-

Rubens Paiva e Sandra Passarinhorecebem homenagem

POR CELSO SABADIN dos Lourenço Diaféria (in memoriam),David de Moraes, Audálio Dantas, ElifasAndreato, Alberto Dines, Lúcio FlavioPinto, Perseu Abramo (criador do Prê-mio, in memoriam), Marco AntônioTavares Coelho e Raimundo Pereira.

Assim como já ocorreu em 2013, osvencedores serão escolhidos em sessãopública, da forma mais aberta e transpa-rente possível, com transmissão ao vivopela internet. Para quem preferir acom-panhar ao vivo, a sessão será no dia 30de setembro, na Sala Oscar PedrosoHorta da Câmara Municipal de SãoPaulo. Já a cerimônia de premiação seráem 29 de outubro, às 20 horas, noTUCA, em São Paulo.

O 36º Prêmio Vladimir Herzog deAnistia e Direitos Humanos é promovi-do e organizado, atualmente, por nadamenos que doze instituições: ABI/SP;Associação Brasileira de Jornalismo In-vestigativo – ABRAJI; Centro de Infor-mação das Nações Unidas no Brasil –UNIC Rio; Comissão Justiça e Paz daArquidiocese de São Paulo; Escola deComunicações e Artes da Universidadede São Paulo – ECA/USP; Federação Na-cional dos Jornalistas – FENAJ; Fórumdos Ex-Presos e Perseguidos Políticos doEstado de São Paulo; Instituto VladimirHerzog; Conselho Federal da Ordemdos Advogados do Brasil – OAB Nacio-nal, Ordem dos Advogados do Brasil /Secção São Paulo, Ouvidoria da Políciado Estado de São Paulo, Sindicato dosJornalistas Profissionais no Estado deSão Paulo e Sociedade Brasileira dosEstudos Interdisciplinares da Comuni-cação – Intercom.

E as vozes democráticas se levantaram.No dia 10 de setembro, um encontro foiorganizado pelo Sindicato dos JornalistasProfissionais no Estado de São Paulo-SJSPe pela Associação de Repórteres Fotográ-ficos e Cinematográficos do Estado de SãoPaulo-ARFOC-SP. Entre os participantes,estavam vários profissionais do Jornalis-mo, amigos, colegas e ex-colegas de Alex,além de entidades como Conectas, Artigo19, Advogados Ativistas e Associação Bra-sileira de Imprensa-ABI. Na ocasião, foilançada a campanha “Somos Todos Culpa-dos”, mostrando fotos de vários jornalistasutilizando um tapa-olho de pirata comosímbolo contra as agressões, em repúdiocontra a decisão da Justiça paulista.

O presidente do SJSP, José Augusto deCamargo, afirmou que o acórdão do Tri-bunal de Justiça “lembra os piores anos daditadura militar. É uma decisão que estáa serviço do que existe de mais retrógra-do na política brasileira, que é a proteçãoà violência praticada pelos agentes doEstado”. Em serviço fora da cidade, AlexSilveira não esteve no ato, mas envioucarta aos participantes da reunião, que foilida por Sérgio Silva, outro repórter foto-gráfico também agredido pela Tropa deChoque da PM, durante as manifestaçõesde 13 de junho de 2013 [veja o Box].

A Associação Brasileira de JornalismoInvestigativo -Abraji também se manifes-tou contrária à decisão da Justiça: “Nãoapenas o desembargador transforma avítima em culpado. Na sua justificativa, eleconsidera que todo jornalista que cumprao seu dever profissional de informar assu-me um risco e está por sua própria conta,desamparado pela sociedade. Por essa lógi-ca, não importa que o jornalista seja alvode uma violência nesse processo. A deci-são do desembargador Abreu Amadei dácarta branca para que essa violência per-sista e, quiçá, se agrave, já que não é passí-vel de punição. Trata-se, portanto, de umaameaça à liberdade de imprensa”, diz notaoficial assinada pela diretoria da Abraji.

A defesa de Alex Silveira vai agora re-correr da decisão, que pode chegar até oSupremo Tribunal Federal. “É uma decisãoabsurda, que reconhece que Alex foi atin-gido com uma bala de borracha disparadapor um agente público, mas conclui que aculpa foi toda da vítima”, disse a advoga-da Virginia Veridiana Barbosa Garcia, doescritório Rodrigues Barbosa, Mac Dowellde Figueiredo, Gasparian, que representao fotógrafo. “A imputação de culpa à víti-ma mutilada no exercício da atividadejornalística configura uma clara ameaça àliberdade de imprensa”, concluiu.

PRÊMIO VLADIMIR HERZOG

REPROD

UÇÃO

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A coerência era uma das marcas dohumor do jornalista, chargista, escritor,tradutor e dramaturgo carioca MillôrFernandes (1923-2012). Em mais de 70anos de carreira, com seu jeito inteligentede fazer rir, refinado e de bom gosto, ja-mais apelou para a piada fácil, o que faziadele quase um outsider dos dias de into-lerância e ofensas que correm nesse co-meço de século 21. Nunca chamou umPresidente da República de anta, mastambém não fazia elogios. Tanto que ja-mais foi acusado de apoiar a situação.Millôr estava sempre do outro lado. Eracada um no seu canto do ringue e uma vidainteira de luta lúcida por valores que seancoravam exclusivamente na liberdade.Preferia o boxe ao UFC. Ou seja, não batiaabaixo da cintura nem aproveitava a fra-gilidade do adversário para acerta-lhe umsoco na nuca. Deveria ser referência, hoje,a colunistas e humoristas destemperados,que procuram na agressão gratuita o efei-to para chamar atenção e conquistar sim-patizantes nas redes sociais.

Millôr estava em outro nível. O doopositor leal. A não ser que o assuntofosse Machado de Assis. Certa vez, rela-cionou mais de 30 passagens de DomCasmurro para fundamentar que aqueleera, sim, um romance gay. Ou seja, entreos dois personagens masculinos da tramaestava o real motivo da discórdia relaci-onada a Capitu. Em uma das entrevistasque fiz com ele – para a Gazeta Mercan-til, Entrelivros, Brasileiros, Jornal da ABI –,contou-me que suas armas eram os maisde 200 dicionários de todos os gênerosque mantinha em seu escritório, espalha-dos em todos os cantos, porém ao alcan-

ce das mãos. Não explicou, no entanto,como tirava dali alguma idéia para suasfrases, que se transformaram ao longo dotempo em requintada filosofia de vida.Entenda-se como tal seu olhar único so-bre comportamento, economia, política,relacionamentos. Sua lógica estava nahabilidade nata em buscar o sentido daspalavras para desnudar as distorções dopoder e as aberrações do comportamen-to humano, com suas incoerências, fra-quezas e contradições. Qualidades que,certamente, só o tempo dará a exata di-mensão. Como morreu há somente doisanos, por enquanto Millôr faz muitafalta quando se pensa em inteligênciapara avaliar os acontecimentos.

HUMOR

O PENSADOR DO BRASILHomenagem da Flip e cinco livros ressaltam a importância de humoristapara se compreender com lucidez a história do País nos últimos 60 anos.

POR GONÇALO JÚNIOR

Essas sensações, no entanto, foram emparte amenizadas na virada de julho paraagosto, com uma série de homenagens.Enquanto o Instituto Moreira Salles-IMS realiza uma exposição a partir de umnovo livro do artista, Millôr foi o home-nageado da Flip 2014, a Feira Literária deParaty, encerrada em 3 de agosto, aomesmo tempo em que a editora Compa-nhia das Letras manda para as livrariasquatro livros seus, dois deles dos maisfamosos. Os eventos do IMS exploram olado frasista do autor. Até o fim da vida,Millôr foi uma fonte inesgotável de frasesde efeito sobre tudo relacionado à vida emsociedade, ao seu País e à própria existên-cia. Entre janeiro de 1945, quando inaugu-rou a seção Pif-Paf, na revista O Cruzeiro, e2003, com o lançamento pela EditoraL&PM do antológico A Bíblia do Caos, eleproduziu cerca de 15 mil máximas, aforis-mos, pensamentos, meditações e apoteg-mas. E muitos pensamentos foram criadosnos oito anos subseqüentes. A primeira dasfrases que Millôr criou foi publicada nojornal Diário da Noite, em 1944: “Meu Bemé o nome de solteiro do marido”.

Toda essa produção ainda não devida-mente mapeada faz imaginar a dificulda-de que o jornalista e crítico Sérgio Augus-to teve para escolher apenas cem frases

que considerasse as melhores, a síntese desuas idéias, para a seleção que saiu pela pri-meira vez como encarte do volume Ca-dernos de Literatura, do instituto, dedica-do ao artista, em 2003. Agora, ampliadoe revisto, virou livro de luxo – Millôr100+100 – Desenhos e Frases. A novidadeé que cada aforismo vem acompanhadode um desenho selecionado pelo carica-turista Cássio Loredano. “Optei por ima-gens e fotos que dialogam com as frases”,explica o curador. Precisa é a definição queele dá a Millôr: “Autodidata, franco-ati-rador, brioso ‘especialista em coisa ne-nhuma’, polímata de muitas faces e nomes(Vão Gôgo, Volksmillor, Milton à Mila-nesa), sábio sem diploma, foi um dosmaiores pensadores do Brasil e seu maisdivertido, desconcertante e inventivofilósofo, ainda que, abusando da falsamodéstia, preferisse identificar-se como‘o maior leigo do País’”.

Na apresentação do livro, Sergio Augus-to conta que quando o IMS lhe pediu parafazer a seleção das frases, exclamou um“quanta honra!”. De imediato arrependi-do, porém, resmungou: “E agora?”. Redu-zir o colossal repertório de Millôr a umacentena, prossegue ele, “é desafio tão árduoquanto escolher as quatro melhores músi-cas de Tom Jobim, os seis quadros maisdeslumbrantes de Matisse, os três balésmais sublimes de Fred Astaire e os quatrogols mais empolgantes de Pelé”. E acres-centa: “É um recorde de quantidade e qua-lidade inigualado em nossa língua. A ne-nhuma delas – e não me refiro apenas às cemmelhores que selecionei – Groucho Marx,Oscar Wilde, La Rochefoucauld, GeorgeBernard Shaw, Ambrose Bierce e WoodyAllen recusariam suas assinaturas”.

Segundo Loredano, deu trabalho fazera coletânea, mas a experiência foi diverti-da. “Millôr é escritor e desenhista. Nessaordem: primeiro escritor”, enfatiza. “Nãoimporta se o futuro se ocupará mais do

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desenhista, inclusive porque sua obra lite-rária está, obviamente, toda na rua, e a obragráfica muito menos. Não interessa nomomento se o futuro decretará, e não éimpossível, que o desenhista seja maior queo escritor”. Importa, na sua opinião, dizercomo ele se via e é visto agora: um homemde letras que desenhava. “Desenhista bri-lhante, não tinha a menor vaidade dosdesenhos. E era vaidosíssimo de seus tex-tos. É muito comum. A palavra, ele estavaconvencido, é mais subida, é um salto maisalto do espírito, e Millôr amava a palavrasobre absolutamente todas as coisas. Pri-meiro escreveu. Depois desenhou.”

Ocupação MillôrNo ano passado, o IMS adquiriu o acer-

vo do herdeiro Ivan Fernandes e contra-tou Loredano para organizá-lo. A coleçãototaliza sete mil desenhos originais e vo-lumes encadernados de tudo que o artistapublicou na imprensa. Estão lá tudo o quesaiu na coluna Pif-Paf, a coleção originaldo jornal Pif-Paf (1964) e o que escreveupara a Veja, nas décadas de 1970 e 1980.“Ele era muito cuidadoso e organizado,caprichosíssimo”, observa Loredano, queacredita levar mais um ano para terminaro inventário. E muitos outros produtosdevem nascer desse trabalho. Em setem-bro, por exemplo, será feita uma grandeexposição no IMS. Estuda-se a volta dasatividades do site do artista, com maismaterial, e uma série de livros.

Enquanto isso, Millôr faz uma espéciede ocupação das livrarias, graças a um

projeto editorial importante da Compa-nhia das Letras. O primeiro dos cincolivros lançados simultaneamente é EssaCara Não me É Estranha e Outros Poemas. Ovolume é um exemplo de sua versatilida-de e confirma o que ele sempre fez ques-tão de se definir, não sem ironia, comoum “escritor sem estilo”. Durante a suaprodução intensa, transitou pelos maisdiferentes tipos de linguagem, do cartumà dramaturgia, e ao se dedicar à poesia, suafaceta menos conhecida, mantinha amesma abordagem iconoclasta, sem sepreocupar com a busca por uma unidadetemática nem se prender às formas fixas.Os poemas reunidos neste livro são des-critos pelo editor como exercícios livresde criatividade, que se debruçam com umolhar atento, inteligente e bem-humora-do sobre os mais variados assuntos: lite-ratura, tecnologia, convenções sociais,política, pequenos dramas cotidianos,filosofia, cultura e gatos. Aqui, ele usauma linguagem poética leve e sedutora,com versos daquilo que o notabilizou naimprensa, nas artes visuais e no teatro:expressar através do humor seu pensa-mento original e surpreendente – ouexpressar um pensamento original e sur-preendente como quem faz humor, se-gundo a apresentação dessa indispensá-vel antologia.

O volume Esta É Verdadeira História doParaíso é relançamento do livro publica-

do em 1963, quando Millôr era um im-portante colunista da semanal O Cruzei-ro, na época a revista mais lida do Brasil.Ateu desde menino, ele gostava de satiri-zar as passagens bíblicas e os dogmas re-ligiosos, posição que arrebatou milharesde fãs, mas também incomodou os maisfanáticos, como atesta a história em tor-no da primeira publicação desta versãodo Gênesis. Pressionada por “alguns caro-las do interior”, segundo as palavras doautor, a direção da revista afirmou queeste livro tinha sido publicado sem a suaautorização. A resposta de Millôr foiimediata e corajosa. Ele se desligou darevista depois de mais de duas décadas.Com o tempo, a obra passou a ser consi-derada uma das mais importantes doautor, com questionamentos que só po-deriam ter saído de seu temperamento tãoirreverente. Além do fac-símile publica-do em O Cruzeiro, a nova edição reúnealguns dos principais quadrinhistas daatualidade, que deram a sua versão sobrea origem do mundo.

Uma das seções mais populares de OCruzeiro – que chegou a ter tiragem de 700mil exemplares na década de 1950 –era uma página dupla de humorintitulada Pif Paf, assinada porum certo Emmanuel Vão Gôgo,cujo nome verdadeiro eraMillôr Fernandes, um jo-vem precoce de vinte epoucos anos que trabalha-va na imprensa desde osquinze. Primeiro livro do au-tor, publicado em 1949, Tempo eContratempo reúne poemas, contos,crônicas, sátiras, pastiches e pia-das visuais dos onze anos do au-tor na seção, que já na época al-ternava diferentes estilos coma naturalidade que só ele ti-nha. Luis Fernando Veríssimodiz, na apresentação deste vo-lume, em relação ao interesseque o amigo tinha sobre os maisvariados assuntos, que Millôr “an-dava (ou corria, ipanemamente, desunga) entre as coisas deste mundo,amando tudo e acreditando em nada.Já tinha nos dito que a morte é hereditá-ria, mas isso não era razão para nos re-signarmos a ela. Tudo que fez na vidafoi em desrespeito à morte”.

Dos tempos da ditadura militar (1964-1985) é The Cow Went to the Swamp – A VacaFoi pro Brejo. Como diz a apresentação, foia partir da sugestão de um amigo queMillôr começou a traduzir para o inglêsexpressões tipicamente brasileiras. Asmais de seiscentas frases reunidas nestelivro dão uma amostra da razão de o au-tor ser reconhecido como uma das men-tes mais talentosas que o Brasil já teve.Nessa “master class” da tradução literária– ou da tradução literal –, ele ensina comodizer que fulano é “casca grossa” (thickbark), ou que um amigo “meteu os péspelas mãos” (he stuck his feet through hishands), ou que chegou a hora de “tirar abarriga da miséria” (to take the belly fromthe wretchedness). Ao criar este antima-nual de tradução, Millôr Fernandes capa-citou o leitor a “tirar de letra” (to take ofletter) as dificuldades de tradução sem“pisar na bola” (step on the ball). Compi-lação abrangente de expressões que nãoestão no “pai dos burros” (the father of theasses), mostra a irreverência inconfundí-vel de um artista que melhor representouo Brasil em sua vasta produção.

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O cineasta mineiro Neville de Almei-da (que também assina como Nevilled’Almeida) foi um grande campeão debilheteria na época da Embrafilme. So-mente suas adaptações de Nelson Rodri-gues (A Dama do Lotação, de 1978, e OsSete Gatinhos, de 1980), venderam, jun-tas, mais de dez milhões de ingressos noPaís. Entre 1970 e 1991 dirigiu dez fil-mes, alguns deles jamais exibidos por pro-blemas com a ditadura, e sempre foiuma pedra no sapato dos censores. Semfilmar desde 1997 (quando adaptou parao cinema a peça Navalha na Carne, dePlínio Marcos), Neville tenta voltar aomercado com um novo projeto, masesbarra numa dificuldade que desconhe-cia: a burocracia e os entraves oficiais emtempos de leis e editais.

Jornal da ABI – Sem a censura da épocada ditadura, nosso cinema hoje é livre?

Neville de Almeida – Veja, o primeirofilme que eu fiz, Jardim da Guerra, emplena ditadura militar, em 1970, foi cen-surado e nunca foi lançado. O segundofilme, Piranhas do Asfalto, um ano depois,também foi censurado e nunca foi exibi-do. Isso seria suficiente para acabar coma carreira de qualquer um. Mas eu nãopensei em desistir. Pensei em fazer meuterceiro filme mais barato, rodado em 16milímetros, ao invés do tradicional 35, eexibi-lo clandestinamente, sem submetê-lo mais à censura. Quem busca a liberda-de precisa resistir, e não se resignar. Eutinha esta idéia fortemente na cabeçaporque, quando eu era garoto, eu via aque-les filmes americanos onde o mocinhocortejava a mocinha, se casava com ela, elea carregava no colo, vestida de noiva, osdois iam para o quarto, se beijavam, equando ia acontecer aquilo que todosqueriam ver, a cena já corta para o diaseguinte, com ele servindo um suco delaranja para ela no café da manhã. Ora,todo mundo que estava naquele cinemaficava profundamente decepcionado,mas engolia. Só que eu, caipira, com 15

anos de idade, pensava: “Se um dia eufizer cinema, eu não vou fazer assim. Issoestá errado, não pode ser assim”. O mun-do, através do cinema americano, ficouimpregnado por este moralismo, por estacoisa primária, hipócrita, mentirosa, querouba do cinema as melhores coisas davida. E não era assim que eu queria fazer.

Jornal da ABI – Mas você pegou emcheio a pior fase da ditadura.

Neville de Almeida – Viemos de umtempo de muita censura: moral, intelec-tual, política, policial... E tudo era mui-to, muito mais difícil. Quando há 35 anoseu passei o filme Os Sete Gatinhos noFestival de Gramado, fui ameaçado de serpreso e expulso da cidade. O secretário deCultura de então ameaçou interrompero festival por causa do filme, mas o Gas-tal (Paulo Fontoura Gastal, crítico de ci-nema e um dos diretores da mostra naépoca) peitou o secretário e garantiu aexibição do filme e a continuidade doFestival. Ou seja, havia uma censura,mas também havia uma luta pela liber-dade, uma resistência. Mas hoje a gentetem outra censura também muito forte,que é a censura dos patrocinadores e acensura institucional. Muitas vezes aspessoas pagam um preço muito caro paratentar falar as verdades universais atra-vés do cinema. Porque o cinema é umaarte cativa. A música é uma arte livre.Você pega o instrumento e toca o quequiser, como quiser, onde quiser. A lite-ratura é livre, você pega e escreve o quequiser, onde quiser, como quiser. A pin-tura é livre. Mas o cinema, não. O cine-ma é uma arte industrial cada vez maispoliciada e controlada pelos patrocinado-res e pelos mecanismos dos editais. Hoje,um roteiro de Glauber Rocha jamaisseria filmado. Veja este roteiro aqui, es-crito pelo Glauber (Neville abre umapasta repleta de anotações, esquemas,quadros e gráficos desenvolvidos a mãopor Glauber Rocha). Nenhum edital acei-taria isso. Atualmente um roteiro, paraparticipar de um edital, tem até tipo deletra certo, tamanho e espaçamento de

textos certos para poder concorrer, senãojá é eliminado de cara. Não podemosaceitar este pensamento de “isso pode,isso não pode; isso tem que ser na luz,isso tem que ser no escuro; esta cena jáestá durando seis segundos e deveriadurar cinco”. Que arte é essa, que liber-dade é essa, que artista é esse, que hipo-crisia é esta? O cinema é uma arte cadavez mais policiada.

Jornal da ABI – Você não acredita emformulações para escrever roteiros?

Neville de Almeida – Na hora de fazerum filme, de escrever um roteiro, nãoexiste uma fórmula. Existe a capacidadecriativa, a capacidade inventiva. Claro queexistem elaborações técnicas, isso acontece,e tem muita gente que prefere trilhar estecaminho, mas a elaboração técnica sem acapacidade criativa não dá em nada.

Jornal da ABI - Trabalhar adaptandograndes autores ajuda na capacidadecriativa?

Neville de Almeida – Ah, sim, muito.Eu já adaptei Nelson Rodrigues, umgênio, com todos aqueles diálogos mara-vilhosos. Os diálogos já estão lá, prontos,perfeitos, elaborados. E na época tevealguém que me disse: “Acho que preci-samos melhorar estes diálogos”. Eu res-pondi: “Tudo bem, se você conseguirfazer melhor, vá em frente”. E claro quea pessoa não conseguiu. Uma vez eu le-vei o Nelson para acompanhar as filma-gens. Vieram me dizer para não levá-lo,porque ele iria me encher o saco. Mas,puxa, o cara é um gênio e vai me enchero saco? E daí? Na minha equipe tem 30pessoas, nenhuma delas é gênio e todasme enchem o saco! (risos). O Nelsonficava modestamente sentado, só vendoas filmagens, e alguém da produção veiome cobrar, perguntando ”quem eraaquele velho que não fazia nada e aindaficava gastando o dinheiro do orçamentodo filme, almoçando, usando o transpor-te...”. É preciso ser humilde. A humilda-de faz com que a gente nunca se precipi-te nos julgamentos.

“Hoje temos outra censura muito forte, a dos patrocinadores”POR CELSO SABADIN Jornal da ABI - Como era na época da

Embrafilme?Neville de Almeida – Por incrível que

pareça, na época da Embrafilme tínhamosmais liberdade. Era uma única comissãoque aprovava o projeto, mas todos osmembros desta comissão entendiammuito de cinema. Os diretores da Embra-filme também entendiam de cinema, eisso facilitava muito a liberdade de cadaprojeto, de cada filme. Claro que houveperíodos ruins, com interventores, comdiretores que não eram da área, mas deuma maneira geral, naquela época, haviamais liberdade criativa que hoje.

Jornal da ABI - Como é o trabalho doroteirista quando ele não escreve o ro-teiro sozinho, mas em conjunto comoutros roteiristas?

Neville de Almeida – Eu escrevi os ro-teiros de todos os filmes que dirigi. Ousozinho, ou em parceria com compa-nheiros maravilhosos. Quando um gru-po vai desenvolver um roteiro, este gru-po tem que buscar harmonia, identida-de. Eu preciso gostar da pessoa que estátrabalhando comigo, e vice-versa. E escre-ver um roteiro a três pessoas, pode? Sim,pode, mas estas três pessoas precisamgostar umas das outras, e elas devemacreditar nas idéias umas das outras. Temque existir amor entre elas. Às vezesacontece algo mais profissional, comotrês pessoas que a princípio não se conhe-cem, ou se conhecem muito pouco, se-rem designadas para desenvolver umroteiro. É possível também, desde quehaja uma busca incessante pela harmo-nia. E que seja uma harmonia em funçãoda qualidade da obra que está sendo fei-ta. O objetivo comum é fazer o melhorroteiro, mas muitas vezes há brigas en-tre os roteiristas por causa de egos. Umquer provar que é melhor que o outro, edeixam em segundo plano a qualidadedo roteiro. Para se fazer um bom roteiro,em equipe, é preciso se abstrair do egomedíocre, ingressar no trabalho comconcentração, generosidade, aberturamental e criatividade.

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15JORNAL DA ABI 404 • AGOSTO DE 2014

26 de agosto é data festiva para nossoshermanos. Especialmente neste ano de2014, em que é comemorado um séculodo nascimento de um dos maiores craquesargentinos. Não daqueles que fizeram his-tória dentro das quatro linhas, mas sim deum dos autores que escreveram cente-nas, milhares de páginas, fundando umadas mais inovadoras escolas da literatu-ra latino-americana. Nascido acidental-mente na embaixada de seu país em Ixe-lles, distrito de Bruxelas, na Bélgica, em26 de agosto de 1914, Julio Cortázar fir-mou-se como um dos mais importantesescritores de língua espanhola de todos ostempos. Formou-se em Letras, dedicou-seà pedagogia e trabalhou como professorem várias cidades do interior da Argenti-na. Em 1951 fixou residência em Paris,onde desenvolveu uma obra literária úni-ca, que cativou admiradores anônimos ecélebres. “Qualquer um que não leia Cor-tázar está condenado; não lê-lo é uma do-ença grave e invisível que, com o tempo,pode ter terríveis consequências”, decre-tou o poeta chileno Pablo Neruda.

A publicação de A Fascinação das Pala-vras, que chegou às livrarias no fim deagosto, completa a celebração do cente-nário do autor na editora Civilização Bra-sileira, que também publicou Um Tal Lu-cas e Final do Jogo, ambos há anos fora decatálogo. Como parte das comemorações,foi criado o ‘Ciclo Todo Cortázar 100anos – um só autor, muitas artes’, em par-ceria com o Instituto Cervantes, com a re-alização de debates, no Rio de Janeiro.Imagine como seria conversar com JulioCortázar e passar longas tardes em seuapartamento na Rua Martel. Conhecersua biblioteca, repleta de livros até o teto,ouvir seus lps. O escritor revela-se despu-dorado, sem medo de se abrir e falar sobrea infância, o jazz, a literatura e algumasde suas manias esquisitas. Pois este é oclima de A Fascinação das Palavras, em queo jornalista uruguaio Omar Prego Gadeaconduz uma entrevista intimista sobreassuntos decisivos na ficção cortazaria-na e que refletem o inquieto talento doargentino.

Cortázar e Omar se encontraram pelaúltima vez em 20 de janeiro de 1984. Eleshaviam se conhecido dez anos antes, emum vernissage, em Paris. Em 1982, depoisda morte de Carol Dunlop, companheirado escritor argentino, nasceu a idéia des-ta obra – “um livro muito doido”, segun-do Cortázar. Os dois amigos combina-ram, então, escrever um texto “a quatromãos”, sem temas proibidos. A conversafoi interrompida somente com o faleci-mento do autor, em 12 de fevereiro de1984, na mesma Paris. O resultado é umaleitura imprescindível para os fãs de OJogo da Amarelinha e para aqueles que es-tão se iniciando no mundo dos cronópi-os – personagens marcantes do romanceHistória de Cronópios e de Famas, publica-

do em 1962, cuja personalidade é marcadapelo fato de não atribuírem importânciaexagerada às coisas.

Em suas obras, Cortázar manobravaelementos, convidando o leitor ao diver-timento, ao lúdico, a jogar o jogo, a pularamarelinha, a fim de escapar para outrosmundos. “Para mim, a literatura é umaforma de brincar. A literatura é assim – umjogo, mas um jogo no qual a gente podecolocar a própria vida. Pode-se fazer tudopor esse jogo. Esta espécie de constantelúdica explica, se não justifica, muito doque escrevo ou vivo”, dizia ele. “Cortázarera muito criativo, preocupado com a lin-guagem. Gostava de criar ilusões verbais,pensar a literatura. Por isso, foi, também,um bom ensaísta. A realidade para ele eraum enigma, um código, uma mensagemcifrada”, observa a editora Maria AméliaMello, da José Olympio.

Cortázar mudou-se com seus pais paraa Argentina com quatro anos, e lá viveuaté os 38, quando migrou, em 1951, paraParis, descontente com a ditadura pero-nista que se instalava em seu país. O au-tor não escondia sua paixão pela Cidade-

Luz, onde residiu por 33 anos. “Meu mitode Paris atuou em meu favor, me fez es-crever O Jogo da Amarelinha, que é um pou-co a encenação de uma cidade vista deuma maneira mítica. Toda a primeiraparte que se passa em Paris é a visão de umlatino-americano perdido em seus sonhosa passear em uma cidade que é uma imen-sa metáfora. Caminhar por Paris signifi-ca avançar até mim”. Tamanha admira-ção e tanto tempo no exterior não pou-param Julio de severas críticas.

“É famosa a campanha que foi movidacontra mim por muitos de meus compa-triotas argentinos, ao longo de uma por-ção de anos, pelo fato de eu não voltar aopaís. O que sempre me chateou um pou-co foi, isso sim, ver que aqueles que repro-vavam a minha ausência da Argentinaeram incapazes de perceber até que pon-to a experiência européia era positiva, enão negativa, para mim”, dizia ele. Argu-mentava que, à distância, podia compre-ender melhor a América Latina. “De lon-ge, pois todo intelectual é um asilado emseu próprio país”. A primeira viagem aCuba, em 1961, mexeu com o escritor.

“Descobri na ilha um povo humilhado aolongo de sua história, que havia recupera-do a dignidade”, explicava. A partir daí,adotaria postura ainda mais engajada, defranco combate aos regimes ditatoriaisem países como a Argentina, Chile, Uru-guai e Nicarágua.

O escritor Eric Nepomuceno, que jáhavia traduzido As Armas Secretas, traba-lha na finalização da tradução de O Jogoda Amarelinha (Rayuela, no original), quedeverá ser lançada em 2015, pela mesmaCivilização Brasileira. “Essa é, certamente,das obras mais monumentais da literatu-ra latino-americana da segunda metadedo século passado. Ele nos ensinou umacarpintaria, uma arquitetura literária ab-solutamente libertária e extremamente ri-gorosa. Um mestre total”, resumiu. “Todae qualquer tradução tem suas dificuldades,e não é possível comparar as de um autoràs de outro. No caso de Cortázar, tantonos contos como neste romance, o pri-meiro desafio é manter o ritmo da sua es-crita. Depois, a construção das frases. Es-pecialmente neste, essa arquitetura é in-trincada, inventiva, com um aspecto lú-dico muito complexo e, ao mesmo tem-po, com muita carga poética. Impossíveldizer qual a maior dificuldade. Melhorseria dizer das muitas dificuldades, masque acabam resultando num desafio irre-sistível.”

Assim como em O Jogo da Amarelinha,considerada sua obra-prima por ter aba-lado o panorama cultural do seu tempo ecriado uma referência indiscutível den-tro da narrativa contemporânea, em Fi-nal do Jogo, Julio Cortázar sugere diferen-tes caminhos para a leitura, de acordo coma interpretação do leitor. São 18 contoscom distintos níveis de dificuldade. Pu-blicado originalmente em 1956, apresen-ta múltiplas experiências com perfeição:em poucas páginas, as condições sãoapresentadas e cumpridas de um jeito apa-rentemente simples, o que desperta umemaranhado de novas sensações, idéiasque nunca foram pensadas, em diferen-tes perspectivas sobre a realidade.

Por sua vez, Um Tal Lucas, lançado em1979, é uma reunião de contos que mes-clam ficção com traços da realidade. Segun-do alguns críticos, o personagem que dá tí-tulo ao livro apresenta traços do próprioCortázar. A inteligência, o bom humor ea agudeza crítica são atributos do persona-gem, bem como a desenvoltura e a ironia.Possivelmente, mais que uma mera coin-cidência. Lucas foi professor de espanholem Paris e conheceu o tráfico de cadáveresna Argentina; assistiu a festas familiarese lustrou sapatos. Em meio a dramas e dú-vidas, o personagem exercitava ao máxi-mo a sua capacidade de se rebelar contraa monotonia mundana e, assim, criar umverdadeiro manual contra a formalidade.Um convite vívido ao exercício de cria-ção. Cortázar em seu estado mais bruto.

PAULO CHICO

No centenário de seu nascimento, um dos maisinfluentes escritores argentinos tem parte de sua obra

relançada. E sua genialidade, mais uma vez, constatada.

CORTÁZAREM CARTAZCORTÁZAREM CARTAZ

HOMENAGEM

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16 JORNAL DA ABI 404 • AGOSTO DE 2014

Foi bem por acaso que a jornalista Ma-ria Amélia Mello virou editora de livros.E que editora. Há quase 30 anos à frenteda tradicional José Olympio, hoje partedo Grupo Record, ela se descobriu umaexímia equilibrista para não apenas con-seguir manter em seu catálogo nomesconsagrados como José Lins do Rego – nacasa há mais de oito décadas – e Rachel deQueiroz, mas trazer outros de volta, comoaconteceu no ano passado com as obrasde Ferreira Gullar e Antonio Callado. Épreciso ter jogo de cintura, afirma ela, emuma época que as grandes editoras, asso-ciadas a grupos estrangeiros, buscam re-forçar seus catálogos com autores consa-grados e bons de venda. E ela não deixadúvida de que a principal arma da edito-ra é, sem dúvida, sua habilidade para fa-zer amizades com autores e herdeiros.

Maria Amélia convive com todos elesde um modo que vai além do profissio-nal. Almoça, marca cafés e encontros, vi-sitam-se mutuamente, têm longas con-versas por telefone, ouve desabafos. Man-da e-mails de vez em quando, telefona,pergunta se está tudo bem, se tal problemafoi superado e deixa carinhosas mensagensde apoio. Quem a conhece sabe que nãoé jogo de interesses. Para eles, uma amigafiel. Faz-se presente, como devem fazeros amigos que viajam no mesmo barco.Difícil resistir a tanta atenção. O retornodisso é a certeza de que os livros estão nasmelhores mãos e na melhor editora. Sim,porque ela conseguiu um feito extraordi-nário: recuperar a reputação da José Olym-pio, desgastada por duas crises que quasea levaram à falência nas décadas de 1970e 1980 e a fez perder grandes nomescomo Jorge Amado, Guimarães Rosa eCarlos Drummond de Andrade. Adorarepetir que Rachel de Queiroz disse quesó deixaria o navio – no momento em quea editora passava por dificuldades – como capitão José Olympio.

No princípio, era ojornalismo cultural

Antes de chegar à editora, como jorna-lista e assessora de imprensa, Maria Améliateve uma vida intensa, mas com flertes nomundo dos livros. Depois de fazer jorna-lismo na PUC do Rio, em 1972, colaborouno jornal O Pasquim, ícone da resistênciaà ditadura, que passava naquele momen-to por seu período mais crítico de repres-são. De 1973 a 1980, dirigiu o Suplemento

pria a missão, recebeu do amigo RubemFonseca, já contista consagrado e primei-ro Presidente da Rio Arte, o convite paracriar e estruturar o Centro de ImprensaAlternativa, que existe até hoje. Ali, de-sempenharia um papel histórico dos maisrelevantes, mesmo quase sem dinheiro, aomontar o maior acervo das publicaçõescriadas como forma de resistência à dita-dura, conhecidas como imprensa alterna-tiva (leia reportagem na página 18).

Em 1985, nova chamada editorial. Des-sa vez, para ser assessora de imprensa daJosé Olympio. Quando ela chegou, a edi-tora funcionava na Rua Marquês deOlinda, 12, Botafogo. Depois, foi para aRua da Glória. Encantou-se pelo míticoeditor, já aposentado e afastado da empre-sa, que fora vendida no ano anterior. Ocomprador se chamava Henrique SérgioGregori, então empresário importante.Com o seu falecimento, a família vende-ria a editora para o Grupo Editorial Record,no final de 2001. José Olympio, depois deperder sua editora, não abria mão de con-tinuar a dar orientações, a pedido do novodono. Já bastante idoso e obeso, preservavaa gentileza e a delicadeza no trato comtodos, não apenas em relação às mulheres.“Ele era um homem sedutor, muito inteli-gente e de grande visão, embora sem terestudado tanto”, afirma.

De modo curioso, os dois estabelece-ram uma relação por escrito. “Ele sempreme mandava bilhetinhos com sugestões,era muito atencioso”. Em um deles, escre-veu: “Quero que você dê certo”. JoséOlympio morreu em maio de 1990. Fica-ram boas lembranças. “Ele morava nomesmo prédio do escritor José. J. Veiga. Agente conversava muito, mostrou-me suabiblioteca, com as primeiras edições au-tografadas de tudo que ele publicou”. Deassessora de imprensa, Maria Amélia pas-sou à produção de livros. Como editora,além de cuidar da escolha de títulos, dastraduções, produção de fotos e diagrama-ção, teve de se reinventar no papel debombeira, com atribuições de diplomatae gerenciadora de crises. Desde a décadade 1970, a sangria de autores na casa paraas concorrentes não cessava. Os primei-ros terremotos ocorreram nos anos de1960, com a saída de Jorge Amado. De-pois, partiram Guimarães Rosa e CarlosDrummond de Andrade.

A história de umeditor exemplar

Natural de Ituverava, interior paulis-ta, José Olympio se mudou para São Pauloaos 16 anos. Pretendia estudar Direito,mas um emprego na seção de livros naCasa Garrau selou seu destino. A livrariapertencia a Charles Hildebrand. O em-prego consistia em abrir caixas de livrosnovos, limpar a poeira das estantes, e nãolhe sobrava tempo para estudar, como pre-tendia. Posteriormente passou a ajudan-te de balconista, e a tomar gosto peloslivros. Em 1934, a Livraria muda-se parao Rio de Janeiro, então centro intelectualdo Brasil. Em 1935, Olympio se casa comVera Pacheco Jordão, com quem teve doisfilhos, Vera Maria Teixeira e Geraldo Jor-

Literário da Tribuna da Imprensa, quando co-nheceu muitos escritores. “Foi uma expe-riência incrível, lutando diariamente con-tra a censura”, conta ela. A publicaçãosofria censura diária. “Primeiro, era umcensor que ficava o dia inteiro. Depois, vi-nham dois, para um vigiar o trabalho dooutro e não deixar passar nada”, recorda.“Eu olhava pro lado e todo dia tinha um su-jeito diferente lá, pronto para policiar oque fazíamos”. O Suplemento saía aos sába-dos, em formato tablóide, com oito pági-nas. Sob seu comando, ganhou o prêmio daAPCA (Associação Paulista de Críticos deArte) por sua contribuição às artes.

Ao mesmo tempo, no final de sua es-tada no caderno, Maria Amélia acumulouo trabalho de assessora de imprensa datradicional Civilização Brasileira, a edi-tora mais perseguida pelo regime militar.“Entrei pela porta da assessoria de im-prensa, na Civilização Brasileira. Mas,trabalhei por algum tempo – como free-la – para o Jornal de Letras, dos Condé.Entrevistei muitos escritores – Rachel deQueiroz, Raul Bopp, Aurélio Buarque,Adonias Filho, Gilberto Freyre... E aindatenho as fitas com as gravações, intactas”.Montou o Departamento de Comunica-ção, no final dos anos 1970. Quando cum-

PERFIL

A assessora de imprensaque virou editora

Há quase 30 anos à frente da tradicional José Olympio, Maria Amélia Melloé um exemplo de jornalista que se consagrou no mercado de livros.

POR GONÇALO JÚNIOR

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dão Pereira. Nos anos de 1940 e 1950,tornou-se o maior editor do País, publi-cando dois mil títulos, com cinco mil edi-ções, os quais nos anos 1980 atingem 30milhões de livros de 900 autores nacio-nais e 500 estrangeiros.

Maria Amélia faz questão de ressaltarque José Olympio foi e é um exemplo a serseguido, no seu modo de condução da pro-dução de livros. “Não é saudosismo, acre-dite, mas o comércio do livro era tambémafeto. As relações eram cordiais, traduzi-das na simples arte da amizade”. Por isso,seus editados freqüentavam a livraria daRua do Ouvidor, 110, dividiam conta nobar, falavam de política e de poética coma mesma desenvoltura, viravam compa-dres, brigavam e faziam as pazes, trocavamconfidências, não perdiam os famososalmoços da Casa, andavam sempre juntos.Assim se formou a grande família da JoséOlympio, retrato de uma época. Para MariaAmélia, quem hoje falar de Brasil, de lite-ratura brasileira, de talento, sabe que devemuito ao José Olympio, ao José, pai detodos, editores e editados, um exemplopermanente das raízes do Brasil.

Como bem definiu o amigo José Cân-dido de Carvalho: “um caçador de esme-raldas literárias, um desbravador”. Oeditor fazia sucesso com as mulheres.“Minha mãe sempre comentava isso.Quando ele entrava no salão de jogos, asmulheres olhavam, disfarçando. Ele eraum homem muito interessante, sedutor.Já conheci JO – como era chamado – maisvelho. E visitava o editor em sua casa, naRua da Glória. A morada ideal dos escri-tores, não? A Rua da Glória!”, brinca.

Como faz questão de narrar, MariaAmélia aprendeu a amar os livros em casa.Nascida no bairro de Botafogo, ela passoua infância e adolescência em Copacabana.“Sou carioquíssima!”, ressalta. As férias es-colares, de dezembro a fevereiro, as curtiaintensamente na Fazenda Mello, em Pi-raí, cidade perto da capital carioca. Regu-larmente, o pai ia a outra fazenda, Grama,antes do seu nascimento, participar derodas de cartas e de roleta. Um dos jogado-res era ninguém menos que José Olympio.“Ele jogava na mesma roda que meu pai, Jo-aquim Ferreira de Mello. Não eram ami-gos, mas se conheciam de vista. Minhamãe, grávida, brincava que tenho umarelação histórica com a editora! José Olym-pio já andava por perto e eu chegando.”

O mundo parecia mesmo pequenopara todos. Seu pai nasceu na mesma ci-dadezinha que Graciliano Ramos, Que-brangulo, interior de Alagoas, no final doséculo 19. Graciliano, em 1892. Joaquimera de 1895. “Ou seja, da mesma geraçãoe na mesma lonjura de cidade. Mas elesnão se conheceram”. A coincidência nãoacaba aí: a mãe do velho Graça se chamavaMaria Amélia e ele nasceu em 27 de ou-tubro, data do seu aniversário. Trabalha-dor de sol a sol, Joaquim se tornou donoda maior agência (como se dizia na épo-ca) de automóveis do Rio, a AgênciaMello. Foi importador de carros america-nos e ganhou muito dinheiro. Mas, gos-tava da terra, de fazenda. “Por isso, che-guei a pensar em ser veterinária, com tan-

ta convivência com os animais. O jorna-lismo, a literatura, a música, as artes fala-ram mais alto. Gosto do ‘mato urbaniza-do’ e adoro os bichos até hoje”.

Graciliano foi um nome que MariaAmélia sempre ouviu na sua casa: “Aquelehomem ilustre, de fibra, da terra de seupai”, fala a mãe Helena. Hoje, ela é mui-to amiga de Luiza Ramos Amado, filha deGraciliano. “Anote: com muito orgulho!Sou leitora permanente de Graciliano.Veja que sorte: no meu vestibular paraComunicação Social (PUC, onde estudei)caiu Vidas secas. Brincava que não foiuma prova, foi um presente”. Mas, o po-eta Jorge de Lima também era assunto emfamília. O “médico alagoano, com con-sultório na Cinelândia”. A futura edito-ra cresceu ouvindo estas histórias e asmúsicas de Jackson do Pandeiro, Jarara-ca e Ratinho, sanfona, forró e causos nor-destinos. Muitos anos antes de ela vir aomundo, José viajou para o Rio nos anosde 1920, em busca de gandaia. Isto é, brin-car um Carnaval. Não voltou mais. Ficouencantado com a cidade, com as oportu-nidades, com a vida urbana. Fez amizadecom muita gente importante por toda avida. “Ele era de ótimas ligações, ligavapara JK e Tancredo Neves”.

A menina pequenae os bichos

Depois da empolgação inicial, o desejode ser veterinária foi desaparecendo. Ma-

ria Amélia viveu como interna por algunsanos no tradicional Colégio Bennett,quando seus pais ficavam mais tempo naFazenda. Morou entre Copacabana, Fla-mengo e Botafogo, onde permanece atéhoje. Na fazenda, levava uma vida livre,andando a cavalo – que, no fundo, tinhamedo –, nadando em lagoa, pescando Tu-cunaré, jogando bola. E cartas também.“Herdei o gosto de meu pai. Mas, jogo porentretenimento, nunca a dinheiro”.

Ainda criança, começou a escrever po-emas, pequenas histórias, textos narran-do o cotidiano (com humor, em geral), afamosa redação no colégio. Já se eviden-ciava a vocação para as Letras, para o Jor-nalismo. Então, logo cedo a definição seconsolidou: jornalista. “E não mudei mais.Escrever, viajar, conhecer pessoas, ler eler. Pesquisar. Tudo me agrada muito. Mas,sempre pensei na área cultural, em espe-cial, a literária. E foi assim: cursei na PUC-Rio a Comunicação Social, com muitaalegria. E logo entrei para a profissão”.Sempre a Literatura. Daí, migrar para omercado editorial foi natural.

O Jornalismo sempre a atraiu pelo seudinamismo, pela busca da verdade, da apu-ração, da pesquisa, o bom texto. “Não pos-so deixar de mencionar: o que mais meatrai é a preservação, a memória, o regis-tro. Mas, escrevi para IstoÉ, resenhas paraO Globo, para as revistas Ficção, Vozes, Es-crita, entre tantas outras. Sempre sobrelivros e escritores. Na faculdade, ganhei

o prêmio Parker de Jornalismo Universi-tário (escrevi sobre as revistas do Moder-nismo)”. Maria Amélia publicou dois li-vros nessa época: Compasso de Espera (po-emas, rodado em mimeógrafo, na fase dosanos de 1970) e Às Oito, em Ponto – tambémde contos, ganhou o prêmio Afonso Ari-nos, da ABL. Em 2007, recebeu o prêmioFaz Diferença do jornal O Globo peloprojeto de recuperação (memória!) de-senvolvido na JO.

Um fato a marcou muito em 2005:conquistou a única bolsa de nível inter-nacional para estudar em Stanford, Cali-fórnia, em curso de verão sobre “Merca-do editorial”. No ano seguinte, lançouuma coleção de bolso que hoje é referên-cia, Sabor Literário, com textos inéditosou pouco conhecidos de grandes escrito-res. O objetivo era criar uma nova gera-ção de leitores para os clássicos. Tambémcriou a série Mar de Histórias, coordena-da pela historiadora Mary Del Priory, pararesgate de grandes textos de interesses li-terários, históricos e etnográficos. Maisou menos nessa época, começou a produ-zir com seu amigo Ruy Castro os dois lu-xuosos volumes de O Melhor da Senhor,que a Imprensa Oficial de São Paulo lan-çou em 2012, com o inestimável resgateda revista lançada em 1959 e que moder-nizou o jornalismo no Brasil.

Seguir o rumoda História

Em dezembro de 2001, Sergio Macha-do chamou Maria Amélia para um almo-ço no Jardim Botânico. Perguntou: “Oque quer que eu faça?”. Ele respondeu:“Quero que siga a sua história. Isso me in-teressa. Reconquistar autores e obras”.De imediato, ela disse que conseguiriaAriano Suassuna. E assim o fez. Assim,para sempre, faria parte do seu trabalhoevitar a deserção. “Eu costumo brincarque tenho o alfabeto da literatura brasi-leira em nossa editora”. Dentre os seusfeitos, destacam-se as voltas de AnibalMachado, Antonio Callado e Rachel deQueiroz. “Os herdeiros compreenderama essência da casa. A relação que essesautores estabeleceram pessoalmente comJosé Olympio era uma relação única, semprecedentes. Hoje a gente tem um espe-lho para dar continuidade a isso: afetivi-dade no diálogo. Tanto que não temos bri-gas com herdeiros, muito pelo contrário,sou amiga de todos”.

E ressalta: “Conheço essas pessoas, elasfazem parte do meu círculo de amizades,são minhas amigas”. A ponto de passarNatal com eles, como aconteceu recente-mente com a família de José Cândido deCarvalho. “Ariano era uma espécie de paipara mim”, diz ela, antes de ressaltar o or-gulho que o escritor recém-falecido tinhade ver seus livros sob a marca de JoséOlympio, que ele tanto admirava e res-peitava. “Todo segredo está no diálogo eno afeto”, entrega. “Editar é um gesto deafeto, não se deve impor nada, tem de serpela parceria, não se convida a pessoa so-mente na hora de renovar o contrato”.

Hoje, a casa é principalmente o lugar degrandes autores e livros. Maria Amélia se

Convidada por Sergio Machado, Maria Amélia chegou à José Olympio em 2001 para“reconquistar autores e obras” e trouxe, de imediato, Ariano Suassuna: afetividade no diálogo.

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Em tempos de mídias sociais e de ativis-mo online, chega a ser risível imaginar umarealidade em que a comunicação é um dosdireitos mais caros aos cidadãos. Pois foi as-sim no regime militar brasileiro, que vigo-rou de 1964 a 1985. Se a censura aos meiosde comunicação e à livre expressão do pen-samento causou danos irreparáveis à cida-dania, por outro lado, o autoritarismo doquartel fez surgir uma gama de publicaçõesaguerridas e de enfrentamento à censura.Grande parte ousava na forma e no conteú-do, já que não tinha nenhum compromis-so com o establishment – muito pelo con-trário, driblava e desafiava a ordem vigen-te de não contrariar o governo.

Por terem surgido à margem dos mei-os de comunicação oficiais e dominantes,a chamada “grande imprensa”, essas publi-cações passaram a ser classificadas como“imprensa alternativa”. O rótulo diz res-peito mais aos meios independentes deprodução e distribuição do que propria-mente ao conteúdo. Nem todas focavamna política ou no combate à ditadura mi-litar. Havia aquelas – em grande quanti-dade – especializadas em música, litera-

divide na parte estrangeira entre cuidardos autores consagrados e conseguir nomescultuados, como o americano outsiderJohn Fante e o argentino Manuel Puig.Deles, já lançou vários títulos. Seu catálogotem a autobiografia de Sarah Bernhardt ea obra-prima O Sol É para Todos, de HarperLee. Fazem parte do staff Pablo Neruda eCarson McCullers. “Na parte internacio-nal, seguimos o mesmo padrão de exigên-cia quanto à qualidade, mas sem a ansieda-de do novo, que já tem tanta gente fazen-do. Queremos os bons e não é fácil apre-sentá-los às novas gerações”. Ela trata osestrangeiros como “um mercado especial”.

Um de seus best-sellers é O Menino doDedo Verde, de Maurice Druon, publicadopela primeira vez em 1957. É o único livrofictício e de linguagem infantil que o autorescreveu. Foi traduzido para o português porDom Marcos Barbosa, o mesmo escritor/poeta que traduziu O Pequeno Príncipe. Asvendas passaram recentemente dos doismilhões de exemplares. Aliás, de meninosa casa vai bem: o de Engenho, de José Linsdo Rego, já ultrapassou um milhão de cópiasvendidas. “A escrivaninha é um lugar peri-goso de onde se pode observar o mundo”,cita frase de um autor cujo nome lhe esca-pa. “Por isso, estamos com os olhos no pre-sente, nas ruas, nas oportunidades. Mas,tradição é tradição, a nossa marca”.

Vozes escritas sem censuraPouca gente sabe que o acervo mais expressivo da imprensa alternativa de quese tem notícia está sob a guarda do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro.

POR ROBERTA SAMPAIO

O negócio do livro e suaspeculiaridades

Por outro lado, a editora sabe que edi-tar é também um negócio. Só que sem ummeio termo, um equilíbrio, não funciona.“A editora tem de estar no azul, como dizSergio Machado”. Para ela, quem tem debrilhar são os autores, não a editora. “Eaqui brilham todos, porque somos a Escolade Samba da Mangueira do mercado edi-torial brasileiro. Ou seja, todo mundotorce pela José Olympio, uma editora quetem tradição, história, lastro, cheque comfundos”. Ah, sem esquecer que tem a Ve-lha Guarda dos grandes livros na aveni-da. A editora está aí até hoje, ressalta Ma-ria Amélia, revitalizada e parte integrantedo Grupo Record. Não faz muito tempo,um amigo seu, brincando disse: “Isto nãoé uma editora, é um monopólio”.

Entre outros autores, para mencionarapenas os grandes clássicos, constam deseu catálogo, além dos já citados, Stanis-law Ponte Preta, Cassiano Ricardo, Má-rio Palmério, Marques Rebelo, AugustoMeyer, Raul Bopp, Sérgio Buarque deHollanda, Manuel Bandeira, Lucia Bene-detti, Maria Clara Machado, Paulo Ró-nai, Pagu, Vianna Moog, Brito Broca, LuísMartins, Elisa Lispector, Campos de Car-valho, Rachel Jardim, Bernardo Élis, Ro-cha Lima, Francisco de Assis Barbosa e

Amando Fontes. Este ano está sendo espe-cial para a José Olympio. Dentre os moti-vos, está a comemoração dos 60 anos daestréia de Ferreira Gullar na editora, ondeacaba de ter toda a sua obra relançada,com revisão de texto, poemas inéditos enovo projeto gráfico. Celebra o centená-rio de nascimento de José Cândido deCarvalho, prata da casa desde os primei-

ros tempos. E uma grande notícia: o lan-çamento da obra do crítico, ensaísta e ro-mancista Antonio Callado, sua mais re-cente aquisição. A propósito, o primeiroromance de Callado é de 1954 e, portan-to, também completa seis décadas de pu-blicação.

Não é coincidência, segundo ela, queo catálogo reúna tantos livros “emblemá-ticos”: Poema Sujo, A Pedra do Reino, Mar-tim Cererê, Cobra Norato, O Tronco, O Quin-ze, Menino de Engenho, A Bagaceira, Cha-padão do Bugre, A Estrela Sobe, João Ternu-ra, A Lua vem da Ásia, O Coronel e o Lobiso-mem, A Vida de Lima Barreto, Bandeirantese Pioneiros, O Melhor de Stanislaw, A VidaLiterária no Brasil, além dos ensaios sobreMachado de Augusto Meyer.

Se no passado a José Olympio foi umagrande editora, em dimensões editoriaise numéricas, hoje é um selo de grande re-putação. Maria Amélia se orgulha de tersido a única editora do País, em quase 30anos, a não perder nomes importantes. Otempo passa, percalços surgem, mas aeditora que mudou a história do livro noBrasil continua forte e saudável, com umcatálogo ativo de aproximadamente 500títulos de vários gêneros. “Nossa linhaeditorial é muito definida e sempre bus-camos a qualidade. E la nave va!”. Sim, ebem capitaneada, sem perder o rumo.

ligado à Secretaria de Cultura do municí-pio, que ocupa um prédio ao lado da sededos Correios, na Cidade Nova, centro doRio. O acervo tem, aproximadamente,24 metros lineares de documentação e,no momento, passa por tratamento téc-nico para sua melhor identificação e or-ganização. Conta com um catálogo onli-ne que, futuramente, deverá ser atualiza-do, segundo a direção. O endereço paraconsulta é http://migre.me/kX7u8.

Essa coleção foi formada por iniciativada editora Maria Amélia Mello, hoje àfrente da José Olympio, quando, em 1980,passou a trabalhar na RioArte, a convite doescritor Rubem Fonseca, então Presiden-te do órgão municipal. Um dos projetos le-vados por ela para a RioArte foi o do Cen-tro de Cultura Alternativa, cujos objeti-vos principais eram coletar, identificar,tratar e catalogar materiais da imprensa al-ternativa, e também inaugurar um espaçode estudos do período, aberto à pesquisa.“Tivemos que adiar o início dessa ação poralguns meses, por causa das bombas e ata-ques contra as bancas que vendiam publi-cações da imprensa alternativa. Mas, ain-da em 1980, começamos a divulgar a ini-ciativa”, lembra Maria Amélia.

O ponto de partida foi a sua coleçãoparticular, a primeira a ser doada. Comoera interessada no assunto havia bastantetempo, Maria Amélia sabia muito bemquais eram as pessoas que deveria procu-rar para angariar mais doações. Em nomeda RioArte, enviou uma circular para acomunidade artística e também divulgouo projeto na grande imprensa, que foimuito receptiva na época. Depois de umasérie de reportagens sobre a iniciativa, co-meçou a receber centenas de contribui-ções, de dentro e de fora do País, o que per-mitiu uma ampla garimpagem por váriosestados, onde os jornais de resistência ouculturais não tinham alcance nacional.

O Centro de Cultura Alternativa de-pendia exclusivamente de doações, já que

PERFIL A ASSESSORA DE IMPRENSA QUE VIROU EDITORA

Relançamento de toda obra de Ferreira Gullarcomemora os 60 anos de sua estréia na editora.

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MEMÓRIA

tura, humor, homossexualidade. Em co-mum, todas tinham a ousadia de existirpor conta própria, à revelia do sistema,sem se curvar à censura, que afetava nãosó a política, mas também os costumes.

O acervo mais expressivo dessa im-prensa alternativa de que se tem notíciaestá sob a guarda do Arquivo Geral daCidade do Rio de Janeiro-AGCRJ, órgão

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não dispunha de verbas para a aquisiçãodos materiais. Mesmo assim, o retorno foimuito positivo. “As pessoas começaram aligar, perguntando do que se tratava, comopoderiam colaborar de alguma forma. In-dicavam fontes, davam dicas muito úteise o material começou a chegar. Tambéminiciamos um arquivo de recortes de jor-nais e revistas sobre o tema, que eram or-ganizados por assunto, e de livros, manda-dos gratuitamente pelas grandes editoras,para formar uma biblioteca de apoio. As-sim, dia após dia, fomos estruturando oacervo”, conta Maria Amélia.

Em 1992, a RioArte doou o acervo Im-prensa Alternativa para o Arquivo Geral daCidade do Rio de Janeiro, onde permane-ce até hoje, sem atualizações desde então.A coleção é aberta para consultas do público,de segunda a sexta-feira, das 9h às 17h30, naSubgerência de Documentação Escrita, quefunciona no terceiro andar. Não houve in-terrupções no atendimento por conta docorrente trabalho de organização técnicado material. No entanto, segundo GeorgiaTavares, da Subgerência de DocumentaçãoEscrita da AGCRJ, os interessados na pes-quisa do acervo devem enviar um email parao setor “[email protected], discrimi-nando o tema “imprensa alternativa” no tí-tulo “com a listagem dos títulos que dese-jam pesquisar, para que o material seja se-parado previamente. Ela informa que essacoleção tem atraído um público variado,que inclui professores, estudantes, jornalis-tas, designers gráficos, arquivistas e histo-riadores, dentre outros.

Embrião do projetoNos anos 1970, a então responsável

pela produção do acervo Imprensa Alter-nativa, Maria Amélia Mello, trabalhavacomo editora do Suplemento da Tribuna daImprensa, que era voltado para a produçãocultural brasileira, especialmente a literá-ria. Nessa função, ela recebia muitos livrosde produção independente para divulgar,assim como se mantinha informada sobreos jornais considerados “marginais”, umuniverso que era de seu total interesse.“Vivi intensamente a chamada geração mi-meógrafo e todas as manifestações daqueleperíodo. Estava envolvida nesse universode contestação. Eram tempos sombrios ecomplicados, de repressão, censura, arbí-trio e medo.”

A hoje editora de livros considera queo embrião do Centro de Cultura Alterna-

tiva nasceu nesse seu trabalho como res-ponsável pelo Suplemento. Foi quando per-cebeu que toda aquela produção se perde-ria com o tempo, pela sua forma quase sem-pre restrita de produção, distribuição, co-mercialização e divulgação. “Eram tiragenspequenas, de feição artesanal, vendidas demão em mão, em bares, cinemas, espaçospúblicos, sem nenhum registro ou preser-vação. O destino dessa produção toda seriao esquecimento”. Assim, começou a mon-tar sua própria coleção e, anos mais tarde,deu início ao projeto maior na RioArte.

Além da coleta e preservação de publi-cações, o Centro de Cultura Alternativatinha como objetivo ser um pólo de pro-dução cultural. Pretendia-se organizar,por exemplo, prêmios de monografias,mostras de arte, debates, exposições, li-vros, catálogos etc. Alguns frutos dessetrabalho foram o Prêmio de Monografi-as Torquato Neto, que rendeu três volu-mes com os textos premiados, publicadosde 1984 a 1986; um disco, que foi distri-buído gratuitamente, com músicas docompositor piauiense, e um catálogo, emverbetes, com registros dos materiais doCentro – até hoje uma preciosa obra dereferência. “Cumprimos nossa meta:montar um centro de preservação da me-mória, aberto ao público para consultas”,afirma Maria Amélia.

Foram muitos os pesquisadores inte-ressados, de todo o Brasil e também do ex-terior. Ela conta que o acervo serviu de fon-te para teses universitárias e deu estímuloà publicação de livros. A procura passoua ser tão grande, inclusive pelo público

minantes desde 1964. Outras, eram cen-tradas mais no objetivo de contestar o re-gime, cumpriam um papel histórico im-portante, dando testemunhos, implícitosou não, das arbitrariedades que ocorriamno momento.

No vasto e imprescindível acervo, é pos-sível encontrar desde os títulos mais co-nhecidos e representativos da imprensaalternativa – são os casos dos jornais Opi-nião, Movimento, O Pasquim – a publica-ções em defesa de causas específicas (pelapreservação da Amazônia, contra a dis-criminação a homossexuais, pela igualda-de dos sexos, movimento feminista) ouvoltadas para expressões culturais e artís-ticas. Todas pregavam, de alguma forma,a defesa da liberdade de expressão.

Nicho musicalO jornal Alto Falante, por exemplo, era

especializado em música e tinha distribui-ção gratuita em lojas de disco. Entre seusredatores, estavam nomes hoje respeita-dos da crítica, como Ana Maria Bahiana eTárik de Souza, que já tinham certa pro-jeção como jornalistas de cultura na im-prensa carioca. Curiosamente, no núme-ro 3, o jornal teve como colaboradora acompositora Joyce, que assina uma críti-ca sobre os novos lps que acabavam de sairde Beto Guedes, Danilo Caymmi, Novelie Toninho Horta. Em todas as edições, umapágina era reservada a uma charge do car-tunista mineiro Henfil (1944-1988).

No nicho musical, havia muitos outrostítulos, como o Arranjo – um jornal que dan-ça conforme a música, para citar mais um.Esse era vendido (a três cruzeiros) e o seunúmero 1, de 4 a 17 de fevereiro de 1975,trazia na capa o título: “Sorry, periferia.Meu nome é Maria Bethânia”, em cima deuma foto estourada da cantora. Entre os re-datores, estavam Sérgio Cabral (o pai) eOkky de Souza. Outra curiosidade, nessenúmero de estréia, era o texto de apresen-tação, assinado por Fernando Lobo (pai deEdu Lobo), em que aproveitava para fazeruma defesa da classe jornalística: “Sabebem o que é de sofrimento ser jornalistanum tempo em que é moda o atraso geraldos pagamentos e a concorrente maisatuante é a moça de mini-saia que nãosabe de tesoura e cola, mas tem um grava-dor supimpa onde seus entrevistados escre-vem para ela as entrevistas melhores?”.

Para ele, “somos um mundo assim e serjornalista deixou de ser profissão para ser

acadêmico, que tornou necessário o agen-damento de horários para as consultasdesde os primeiros anos. Na época, a equi-pe do Centro de Cultura Alternativa con-tava apenas com Maria Amélia, na coor-denação, uma historiadora e um bibliote-cário. Porém, acabou atraindo a adesão demuitos colaboradores. “Mobilizou mui-ta energia, dedicação e esforço. Atraiu no-mes importantes para o projeto, estudi-osos e intelectuais que acreditavam nasua permanência”, completa ela.

Entre os fatos curiosos relacionados aesse trabalho, Maria Amélia lembra umavez em que uma moça foi consultar a co-leção do semanário O Pasquim, mas comum interesse nada cultural: ela simples-mente queria provar a traição do marido,que estaria, de alguma forma, “documen-tada” no famoso jornal carioca. “Dias de-pois, ela saiu com a cara amarrada, umtanto triste. Deduzimos que o objetivofora de fato alcançado”. Mas não faltaramhistórias felizes, como as de pesquisado-res que encontraram seus objetos de es-tudo ou aprofundaram suas dissertaçõese teses. “Para nosso orgulho, o Centro deCultura Alternativa sempre aparecia nosagradecimentos dos textos, em livros eaté em programa da TV Globo.”

Ao longo dos seus cinco anos à frente doCentro, Maria Amélia conseguiu garimparmuitas raridades. Ela cita coleções comple-tas de jornais alternativos e itens censura-dos que se tornaram uma raridade, comoexemplares do jornal Opinião e laudas dojornal Movimento, com riscos e cortes feitospelos censores – na época, a censura préviasó fora suspensa das Redações dos grandesjornais diários, a partir de 1975. “Quandodeixei o projeto, em 1985, já tínhamos cercade cinco mil itens, tudo organizado e cata-logado, fruto de doação, exclusivamente.Tive a sensação do dever cumprido.”

Viagem prazerosaA consulta ao acervo Imprensa Alter-

nativa no momento em que se comemo-ram os 30 anos das Diretas para Presiden-te e às vésperas do 30º aniversário do fimda ditadura é um mergulho em uma épo-ca de riqueza cultural, em que havia umageração fértil de jornalistas, músicos, car-tunistas, escritores em intensa produção,mesmo com a marcação implacável doscensores. Grande parte das publicaçõesrepresentava respostas ousadas, corajosase criativas à censura e ao autoritarismo do-

No preciso acervo que está sob a guarda do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, é possível encontrar desde os títulos mais representativos da imprensa alternativa, como os jornaisOpinião, Movimento e O Pasquim, a publicações em defesa de causas específicas ou voltadas para expressões culturais e artísticas. Em comum a todos: a defesa da liberdade de expressão.

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mais uma blague, onde se confunde umrepórter com um cronista, um redatorcom um colunista e colunista quantos poraí sem saber ao certo escrever ‘eu não soucachorro não’. Vamos em frente e se você,leitor, é de gostar de jornal antes de fazerdele o seu embrulho de sabão, veja queelenco foi convocado para este Arranjo:homens todos com mais de mil horas demáquina de escrever e outro tanto deespera de um valezinho no caixa...” (sic).Em outro número, Arranjo trazia, na capa,Ney Matogrosso, com o título que desa-fiava as convenções e os tabus para sefalar de sexualidade: “Não sou homemnem mulher”. Uma postura bastante co-rajosa para a época, divulgada por uma pu-blicação cujo intuito era também sacudiro sistema vigente. Nas páginas internasdessa mesma edição, outra declaração docantor destacada no título: “Quero que sedane a inteligentzia brasileira”.

Na linha underground ou udigrudi,como queriam alguns adeptos da contra-cultura, estava, por exemplo, o jornal Flordo Mal, lançado em 1971 e editado pelamesma empresa do Pasquim, cujo Presi-dente no momento de seu lançamento eraSérgio Cabral. Contava como colabora-dores com nomes do mesmo semanárioque era carro-chefe da editora, como LuizCarlos Maciel, Rogério Duarte, JorgeMautner e Waly Salomão, que assinavacom o codinome Waly Sailormoon (ma-rinheiro da lua) e publicou, nesse tablói-de, trechos do seu hoje mítico livro e clás-sico da contracultura nacional Me Segu-ra Que Eu Vou Dar um Troço, que seria edi-tado um ano depois, em 1972. Flor do Malfoi extinto após a quinta edição, por nãose mostrar “vendável”, o que ocorria, ali-ás, com muitas das publicações alternati-vas, que sequer conseguiam distribuiçãonas bancas de jornal e revistas.

No acervo, claro, não podia faltar o tãofamoso, mas pouco lido, O Sol, que fezparte da primeira leva de alternativos,ainda no final da década de 1960. Circu-lou por pouquíssimo tempo, só de setem-bro de 1967 a janeiro de 1968. O sufici-ente para ser imortalizado na cançãoinaugural do tropicalismo, Alegria, Ale-gria, de Caetano Veloso (“O Sol nas ban-cas de revistas/ me enche de alegria epreguiça...”). E, também, abriu caminhopara outras publicações do gênero, inclu-sive O Pasquim, com um projeto gráfico

arrojado e conteúdo crítico, produzidopor estudantes egressos das faculdades deHistória, Letras, Ciências Sociais e Comu-nicação, e também por nomes já bemconhecidos como Ziraldo, Zuenir Ventu-ra, Arnaldo Jabor, Chico Buarque e Car-los Heitor Cony.

Vão Gogo volta a atacarSátiras e humor eram recursos recor-

rentes na imprensa alternativa. A pri-meira publicação do gênero foi a revistaem formato tablóide Pif-Paf, de MillôrFernandes, na qual o próprio assinavacom o codinome Emanuel Vão Gogo – jáfamoso na revista O Cruzeiro – e contavacom colaborações de Sérgio Porto, Jaguar,Claudius, entre outros. Teve apenas oitonúmeros, no período de maio a agosto de1964. Outro exemplo é Babel, jornal dehumor que circulou a partir de outubro de1978, editado por Silvio de Abreu, o mes-mo que seria depois consagrado comoautor de telenovelas. Vinha com a seguin-te (e sugestiva) chamada na capa: “umórgão vibrante sempre por dentro”. Norodapé das páginas, freqüentemente,dava-se destaque a frases irônicas. Exem-plos: “O Brasil só tem 1% de corruptos. Oresto é subversivo” (Silvio de Abreu);“Quem vive de esperança morre muitomagro” (Millôr Fernandes); e “O piorcego é o que quer ver televisão” (JAAB).

O acervo Imprensa Alternativa fun-dado pela RioArte cumpre um importan-te papel didático, por mapear as princi-pais produções independentes do perío-do da ditadura militar. Faz parte da cole-ção o próprio Jornal da ABI que, a partir de1974 – quando voltou a circular, apósuma interrupção de mais de dez anos “foiuma voz em favor da redemocratizaçãoe pelo fim da censura aos meios de comu-nicação”. Para Maria Amélia Mello, a suainiciativa, materializada hoje na coleçãoque está sob os cuidados do AGCRJ, foifundamental para preservar materiaisque, inevitavelmente, seriam perdidos.“Essa coleção reflete uma época, o que sepensava e o que se dizia nas entrelinhas,muitas vezes. Reúne uma produção per-manente, corajosa, de teor cultural, lite-rário, jornalístico e sociológico. É o úni-co acervo no País voltado para esse tema”.Um capítulo da imprensa brasileira queestá salvo.

jornalista e crítico cari-oca Lúcio do Nascimen-to Rangel (1914-1979),conhecido como LúcioRangel, é um nome ra-

zoavelmente esquecido na história daMúsica Popular Brasileira na duas últi-mas décadas. Claro que qualquer pes-quisador da área não só sabe de quem setrata como, certamente, terá ao menosum de seus poucos (dois) livros na es-tante. Sua morte prematura, aos 65anos, e o fato da maioria dos seus textoster saído apenas na imprensa, ajudarama ofuscar a sua ainda não devidamentereconhecida importância para a memó-ria musical do País.

Sua bibliografia se limita a um únicovolume publicado quando ele estavavivo: Sambistas e Chorões: Aspectos e Figu-ras da Música Popular Brasileira, pela Edi-tora Francisco Alves, em 1962, transfor-mado em clássico da bibliografia musicalpor trazer o preciosismo de um dedica-do pesquisador no mapeamento e naanálise do que se considerava as raízes damúsica popular brasileira. E inclui aindao livro póstumo Samba, Jazz e OutrasNotas, publicado pela Agir, em 2002, or-ganizado por seu genro, o jornalista eescritor Sérgio Augusto.

Agora, o Instituto Moreira Salles-IMS promove seu resgate, com progra-mas de rádio e lançamento de bem cui-dada nova edição de Sambistas e Chorões.A idéia da instituição, que se especializacada vez mais em acervo de raridades daMPB, é celebrar seu centenário. Ao ladodo radialista, cantor e produtor Henro-que Foréis Domingues (1908-1980), oAlmirante, Rangel foi um dos pioneirosna pesquisa da memória musical brasi-leira. Pelo IMS, além do lançamento dolivro, ele ganhou um caprichado docu-mentário de rádio.

No dia 3 de junho, uma roda de cho-ro no Trapiche Gamboa, tradicionalcasa de samba da zona portuária do Riode Janeiro, marcou a volta às livrarias deSambistas e Chorões. No mesmo dia, en-trou no ar, na Rádio Batuta – no site doinstituto –, o primeiro de quatro progra-mas em que o jornalista e crítico JoãoMáximo, autor da biografia Noel Rosa

MEMÓRIA VOZES ESCRITAS SEM CENSURA

(em parceria com Carlos Didier) e cola-borador da Batuta, falou das relações deRangel com o samba, o choro e o jazz.Todos os programas estão disponíveisna internet.

Para se ter idéia do zelo do autor, em seulivro ele faz um amplo inventário dochoro que vai da literatura de cordel aocompositor e maestro Pixinguinha, aquem não se cansava de chamar de seuídolo maior. Há ainda anotações impor-tantes, como o papel decisivo de Mário deAndrade na história da nossa música,como aconteceram os primeiros registrosfonográficos no País e a devoção apaixo-nada por Noel Rosa, já consagrado, e a ad-miração pela então novata Inezita Barro-so, nos anos de 1950, e ainda na ativa hoje,como apresentadora da Rede Cultura. Anova edição atualiza a discografia nosúltimos 50 anos, além de mostrar o aces-

ORoda de samba no Rio de Janeiro, em 1946.

Abaixo, Rótulo do disco 78 rotações com osamba Pelo telefone, gravado pela banda

Odeon e xilogravura de Abraão Batista para acapa do cordel Vida e Morte Gloriosa do GrandeMúsico Negro Pixinguinha, de Edigar de Alencar

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so digital a todo o acervo por ele organiza-do, e incorporado à bibliografia da MPB,compilada por ele na década de 1970 e ago-ra editada pela primeira vez em livro. Tam-bém faz parte do volume a iconografia le-vantada por ele em arquivos das áreas demúsica e fotografia do IMS, inclusive noacervo Lúcio Rangel, de sua propriedade.

Testemunha e personagem atuante namúsica nas décadas de 1950 e 1960, Ran-gel foi quem apresentou o jovem pianistaAntonio Carlos Jobim ao consagrado po-eta Vinicius de Moraes. Desse modo, semquerer, tornou-se padrinho da mais decisi-va parceria da música brasileira. Mais doque o personagem a ele sempre associadona boemia carioca, Rangel mostra em seulivro uma dedicação impressionante nomapeamento e na análise do que conside-rava as raízes da MPB. Assim, apontou gê-

tituição. Como membro do Conselho, foium dos que passaram a escolher anual-mente os vencedores dos Prêmios Golfi-nho de Ouro e Troféu Estácio de Sá, dadosaos melhores de cada ano. Nos anos de1980, em reconhecimento ao seu traba-lho de historiador, a Funarte instituiu umprêmio de monografias com seu nome, oProjeto Lúcio Rangel, por onde foram pu-blicados vários trabalhos de pesquisado-res da MPB.

Ao longo de sua trajetória, Lúcio Ran-gel colaborou em inúmeras publicações.No suplemento literário de O Jornal, di-rigido pelo amigo Vinicius de Moraes,manteve uma coluna musical (1945-1947). Fez o mesmo em vários veículosjornalísticos, como Jornal do Brasil, AManhã, Diário de S. Paulo, Estado de Minas,Diário Carioca, Jornal do Comércio, O Comí-cio. Também assinou seções especializa-das em música em várias revistas, comoManchete, A Cigarra e Senhor, entre outras.Publicou uma série de 10 artigos intitu-lada “Discoteca mínima da música popu-lar brasileira”, entre janeiro e março de1960, no suplemento dominical do Jornaldo Brasil. Seu feito maior, porém, foi terfundado e editado a hoje venerada Revistada Música Popular, que teve curta duração(1954-1956), mas marcou época como umespaço de discussão dos principais temasrelacionados à MPB. “Ao estamparmos nacapa do nosso primeiro número a foto dePixinguinha, saudamos nele, como símbo-lo, ao autêntico músico brasileiro, o cria-dor e verdadeiro que nunca se deixou in-fluenciar pelas modas efêmeras ou pelosritmos estranhos ao nosso populário”,escreveu ele no editorial.

Somava-se a isso o fato de que, na pu-blicação – com 14 volumes lançados e queganhou edição fac-similar pela Funarte em2006 –, colaboraram grandes nomes da li-teratura ou da pesquisa em música noBrasil: Manuel Bandeira, Sérgio Porto, AryBarroso, Marisa Lira, Almirante, GuerraPeixe, Nestor de Holanda, Rubem Braga,

RESGATE

POR GONÇALO JÚNIOR

Paulo Mendes Campos, Haroldo Barbosa,Jota Efegê e muitos outros. “Lúcio Rangelcolocou no mesmo caldo a nata dos ana-listas da música brasileira e os artistas/jornalistas/escritores, formando um bai-ta time pra ninguém botar defeito”, obser-vou o jornalista e estudioso de música LuisNassif. Ele editou a revista em parceriacom o jornalista Pérsio de Morais.

A volta às livrarias da lendária revis-ta fez surgir uma discussão importante:qual o papel deste periódico na criação datradição na música brasileira? SegundoRangel, a revista pretendia resgatar opassado musical e criar um amplo deba-te a respeito da música na época. O resul-tado foi bem além disso. Ele se tornou umimportante interlocutor do pensamentofolclorista nacional. Em sua meticulosaanálise sobre a publicação, Maria ClaraWasserman a situa entre as gerações dasduas grandes “épocas de ouro” da MPB,anos de 1930 e os anos 1960, e resultadode um trabalho de memória comum deum grupo que encontrava na forma mu-sical dos anos 1930 o momento mais ex-pressivo da cultura brasileira. “Para esseshomens, o jornalismo deveria cumprir atarefa de formador de opinião pública.Atuar em jornais e revistas era funda-mental, não só porque fazia parte de qual-quer estratégia de ascensão intelectual,mas porque os periódicos eram a base dacirculação de idéias da época”.

O escritor, pesquisador e amigo JairoSeveriano definiu a revista como “a bos-sa nova da imprensa musical”. MariaClara observa que a Revista da MúsicaPopular contou com a colaboração diretae indireta de reconhecidos músicos, escri-tores, folcloristas, intelectuais e poetas,especialistas em diversos segmentos damúsica brasileira: Almirante, EmmanuelVão Gogo, Evaldo Rui, Fernando Lobo,Haroldo Barbosa, Jorge Guinle, José Sanz,Mozart Araújo, Nestor de Holanda, Síl-vio Túlio Cardoso, entre outros. A estru-tura editorial da revista, prossegue ela,com pouco impacto visual, repleta detextos e poucas fotos, diferenciava-se deoutras publicações, direcionando-a paraum outro leitor, que não fosse o consumi-dor dos periódicos de entretenimento daépoca, como Cinelândia, Radiolândia ouRevista do Rádio.

Para a pesquisadora, criar um novo pú-blico era um dos objetivos da Revista daMúsica Popular: “pretendemos fazer des-sa revista o guia de uma imensa legião defãs, de interessados, de colecionadores dediscos...”. Ou seja, a RPM procurava umpúblico de apreciadores de “música autên-tica”, que fizesse parte de um exército quecombatesse o “desvirtuado presente mu-sical” e recuperasse o passado, trazendo àtona o elemento mais original da músicabrasileira – o samba. Por isso mesmo, otema constante, gerador e não explícito,era o resgate do que consideravam a pure-za na música brasileira. O projeto dos ar-ticuladores do periódico pressupunha sal-var a legítima música da crise, onde o sam-ba tradicional estava sendo substituídopor ritmos estrangeiros, como boleros,sambas-canções e rumbas.

Livro sobre choro celebra 100 anos de

neros e subgêneros que, derivados direta-mente do samba e do choro, teriam forma-do uma identidade musical nacional. ParaJoão Máximo, que também assina a apre-sentação de Sambistas e Chorões, Rangel eraum arqueólogo da música brasileira e um“quixotesco batalhador” contra o esqueci-mento dos tesouros mais preciosos donosso repertório popular.

Freqüentador das melhores rodas daboemia e cultura da Cidade Maravilhosa,no começo de 1965, por solicitação doentão Governador do Estado da Guana-bara, Carlos Lacerda, Rangel vendeu suadiscoteca, especializada em MPB, para oMuseu da Imagem e do Som-MIS, queseria inaugurado ao fim daquele ano. Em1966, convidado pelo primeiro diretor doMIS, Ricardo Cravo Albin, passou a inte-grar o Conselho Superior de MPB da ins-

Clássico sobregênero musical

esgotado hádécadas volta

repaginado e com amesma força que o

tornou, por tantotempo, indispensávelpara pesquisadores.

Lúcio RangelLúcio Rangel

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22 JORNAL DA ABI 404 • AGOSTO DE 2014

Cada vez mais presentes no cotidianodos brasileiros, a internet e as redes soci-ais estão redefinindo o papel da imprensaconvencional, isto é, televisionada eimpressa em revistas e jornais vendidosnas bancas ou por assinatura. O leitor,antes mero espectador passivo, ganhouvoz e passou a desconfiar, questionar epressionar sobre a postura dos diários esemanais diante de acontecimentos eco-nômicos e políticos de relevância. O in-ternauta também é formador de opinião,não há mais dúvidas. No Brasil, o clímaxdesse contexto, ainda pouco compreen-dido, aconteceu em junho do ano passa-do, quando as primeiras manifestações derua por causa do aumento da passagem deônibus em São Paulo e no Rio de Janeiro– antes de se espalharem por todo o País– foram tratadas com desdém, até igno-radas por alguns veículos. Seus partici-pantes chegaram a ser chamados de vaga-bundos. As redes sociais, no entanto,romperam com o tradicional formato devia de mão única da informação. Alar-deou os fatos. E a grande imprensa tevede mudar de postura e fazer concessõesna cobertura.

Mas há outros eventos importantesem que os veículos maiores ainda condu-zem opiniões e o ponto de vista a seradotado. A leitura do indispensável livroCampanhas Presidenciais – Mídia e Elei-ções na América Latina: Brasil, Chile e Ve-nezuela permite uma reflexão profundasobre essa encruzilhada em que se encon-tra a ainda poderosa imprensa no come-ço do século 21. De modo instigante, ajornalista e doutora em política Kátia Saisianalisa as campanhas políticas recentes –desde 2010 – que elegeram Dilma Rous-seff, Sebastián Piñera e Hugo Chávezcomo presidentes do Brasil, do Chile e daVenezuela, respectivamente. Sem ban-

deira ideológica, simplesmente a partir doponto de vista acadêmico e técnico, elaesmiúça a relação entre mídia e podernesses países de forma clara e convincen-te. Seu estudo foi elaborado a partir domonitoramento da propaganda televisivados candidatos e da cobertura diária dosprincipais jornais desses países: Folha de S.Paulo e Estado de S. Paulo (Brasil), El Mercu-rio (Chile) e El Universal (Venezuela). “Asinterpretações sobre o papel da mídia napolítica são muito variadas, inserindo-se emum aspecto bastante amplo: da extremacrítica ao seu poder manipulador à visãoufanista de símbolo da liberdade e da demo-cracia na sociedade atual”, observa ela.

No livro, Kátia avalia a política do pon-to de vista da centralidade dos meios de co-municação de massa na sociedade contem-porânea. Ou seja, “como uma zona de fron-teira que perpassa várias áreas do conheci-mento científico, como ciências sociais,semiótica e análise do discurso, entre ou-tras”. Comunicação e política, segundo ela,portanto, são campos complementares econflituosos, mas também de relação con-

tingencial, em tempos de democracia mi-diática. “Se durante décadas a relação entreeleitores e partidos era forte e de confian-ça, reflexo de clivagens sociais, na atualida-de vê-se uma mudança no comportamen-to do eleitorado entre uma eleição e outra,sem identificação partidária, baseado exclu-sivamente na imagem que a personalidadedos líderes projeta”. Para ela, ficou claro queos partidos apresentam programas pontu-ais e o poder acaba associado à aptidão doscandidatos no uso dos meios de comunica-ção nesses países.

Segundo a pesquisadora, “não se tratade crise no sistema político e sim de umametamorfose do governo representativoque, nos dois últimos séculos, passou porimportantes modificações, destacando-se a ampliação do direito ao sufrágio,paralelamente à emergência dos partidosde massa, em meados do século 21”. Jánaquele momento, explica a jornalista,assinalava-se para uma crise da forma degoverno representativo que, em geral, foicompreendida como avanço da democra-cia como ideal de governo do povo pelo

povo. Em sua pesquisa, também embasa-da pela leitura de outros autores, vive-seuma situação simétrica: trata-se menos deuma crise de representação e mais de umaforma particular do governo representa-tivo. “Os representantes são eleitos pelosgovernados, sendo a eleição o método deescolha dos que devem governar e de le-gitimação do poder, o qual não é conferidopor direito divino, nascimento, riquezaou outro quesito, mas apenas pelo con-sentimento dos governados”.

A autora destaca que o sistema legisla-tivo e o financiamento de partidos e cam-panhas eleitorais também são analisadoscomparativamente. O estudo identificaos princípios norteadores dos discursosdos candidatos e da cobertura jornalísticasobre eles. Kátia explica que procurourelacionar as estratégias discursivas comos mitos políticos clássicos, mostrandoque em cada país há a prevalência de ummodelo, ainda que o personalismo sejauma tendência geral. Desse modo, reve-la a ascensão de novas formas de comu-

nicação dos candidatos (mídias alterna-tivas, desde rádio e tvs comunitárias, ce-lulares e redes sociais), que estão mudan-do o modo de se fazer política na atuali-dade. Na primeira parte do livro, ela tra-ça um panorama da democracia em todosos 20 países da América Latina, quandofaz uma espécie de sobrevôo panorâmi-co por processos históricos, políticos eeleitorais que se volta ainda mais genero-samente quando os tópicos são os siste-mas legislativos e as formas de financia-mento de partidos e campanhas. “Focoque se torna ainda mais intenso nas aná-lises das campanhas de Dilma Rousseff,Sebastián Piñera e Hugo Chávez”.

Ao esmiuçar a relação entre mídia epolítica, Kátia desvela a propaganda tele-visiva dos candidatos e a cobertura diáriados principais jornais dos três países,onde a corrida presidencial se deu demodo conflituoso, com animosidadeentre os vários segmentos envolvidos noprocesso, principalmente a imprensa, ape-gada a um discurso de liberdade de opi-nião para, muitas vezes, posicionar-se a

POR GONÇALO JÚNIOR

ELEIÇÕES

Manipulaçãoe ufanismo nas

entrelinhasA jornalista e doutora em política Kátia Saisi esmiúça,

em livro indispensável, a relação entre mídia epoder durante as campanhas recentes que elegeram

Dilma Rousseff, Sebastián Piñera e Hugo Chávez.Kátia Saisi: Os mitos políticos plenamente

adotados tanto pelas campanhas doscandidatos como pela cobertura jornalística.

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Lula e Dilma unidos por um ideal: Suas campanhas foram analisadas sem bandeira ideológica, a partir do ponto de vista técnico e acadêmico.

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Jornal da ABI

O JORNAL DA ABI NÃO ADOTA AS REGRAS DO ACORDO ORTOGRÁFICO DOS PAÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA, COMO ADMITE O DECRETO Nº 6.586, DE 29 DE SETEMBRO DE 2008.

Editores: Domingos Meirelles e Francisco Ucha

Projeto gráfico e diagramação: Francisco Ucha

Apoio à produção editorial: André Gil, Cesar Silva,Conceição Ferreira, Paulo Chico.

Publicidade e Marketing: Francisco Paula Freitas(Coordenador), Queli Cristina Delgado da Silva.

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Impressão: Taiga Gráfica Editora Ltda.Avenida Dr. Alberto Jackson Byington, 1.808Osasco, SP

ÓRGÃO OFICIAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA

Jornal da ABIDIRETORIA – MANDATO 2010-2013Presidente: Tarcísio HolandaDiretor Administrativo: Orpheu Santos SallesDiretor Econômico-Financeiro: Domingos MeirellesDiretor de Cultura e Lazer: Jesus ChediakDiretora de Assistência Social: Ilma Martins da SilvaDiretora de Jornalismo: Sylvia Moretzsohn

CONSELHO CONSULTIVO 2010-2013Ancelmo Goes, Aziz Ahmed, Chico Caruso, Ferreira Gullar, Miro Teixeira, Nilson Lagee Teixeira Heizer.

CONSELHO FISCAL 2011-2012Adail José de Paula (in memoriam), Geraldo Pereira dos Santos, Jarbas Domingos Vaz, JorgeSaldanha de Araújo, Lóris Baena Cunha, Luiz Carlos Chesther de Oliveira e ManoloEpelbaum.

MESA DO CONSELHO DELIBERATIVO 2011-2012Presidente: Pery CottaPrimeiro Secretário: Sérgio CaldieriSegundo Secretário: José Pereira da Silva (Pereirinha)

Conselheiros Efetivos 2012-2015Adolfo Martins, Afonso Faria, Aziz Ahmed, Cecília Costa, Domingos Meirelles, FichelDavit Chargel, Glória Suely Alvarez Campos, Henrique Miranda Sá Neto, Jorge MirandaJordão, Lênin Novaes de Araújo, Luís Erlanger, Márcia Guimarães, Nacif Elias HiddSobrinho, Pery de Araújo Cotta e Vítor Iório.

Conselheiros Efetivos 2011-2014Alberto Dines, Antônio Carlos Austregésilo de Athayde, Arthur José Poerner, DácioMalta, Ely Moreira, Hélio Alonso, Leda Acquarone, Maurício Azêdo (in memoriam), MiltonCoelho da Graça, Modesto da Silveira, Pinheiro Júnior, Rodolfo Konder (in memoriam), SylviaMoretzsohn, Tarcísio Holanda e Villas-Bôas Corrêa.

Conselheiros Efetivos 2010-2013André Moreau Louzeiro, Benício Medeiros, Bernardo Cabral, Carlos Alberto MarquesRodrigues, Fernando Foch, Flávio Tavares, Fritz Utzeri (in memoriam), Jesus Chediak, JoséGomes Talarico (in memoriam), Marcelo Tognozzi, Maria Ignez Duque Estrada Bastos, MárioAugusto Jakobskind, Orpheu Santos Salles, Paulo Jerônimo de Sousa e Sérgio Cabral.

Conselheiros Suplentes 2012-2015Antônio Calegari, Antônio Henrique Lago, Argemiro Lopes do Nascimento (Miro

Lopes), Arnaldo César Ricci Jacob, Continentino Porto, Ernesto Vianna, HildebertoLopes Aleluia, Irene Cristina Gurgel do Amaral, Jordan Amora, Luiz Carlos Bittencourt,Marcus Antônio Mendes de Miranda, Mário Jorge Guimarães, Múcio Aguiar Neto,Rogério Marques Gomes e e Wilson Fadul Filho.

Conselheiros Suplentes 2011-2014Alcyr Cavalcânti, Carlos Felippe Meiga Santiago (in memoriam), Edgar Catoira, FranciscoPaula Freitas, Francisco Pedro do Coutto, Itamar Guerreiro, Jarbas Domingos Vaz,José Pereira da Silva (Pereirinha), Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Ponce deLeon, Salete Lisboa, Sidney Rezende, Sílvio Paixão (in memoriam) e Wilson S. J. Magalhães.

Conselheiros Suplentes 2010-2013Adalberto Diniz, Alfredo Ênio Duarte, Aluízio Maranhão, Arcírio Gouvêa Neto, DanielMazola Froes de Castro, Germando de Oliveira Gonçalves, Ilma Martins da Silva, JoséSilvestre Gorgulho, Luarlindo Ernesto, Marceu Vieira, Maurílio Cândido Ferreira, SérgioCaldieri, Wilson de Carvalho, Yacy Nunes e Zilmar Borges Basílio.

COMISSÃO DE SINDICÂNCIACarlos Felipe Meiga Santiago, Carlos João Di Paola, José Pereira da Silva (Pereirinha),Maria Ignez Duque Estrada Bastos e Marcus Antônio Mendes de Miranda.

COMISSÃO DE ÉTICA DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃOAlberto Dines, Arthur José Poerner, Cícero Sandroni, Ivan Alves Filho e Paulo Totti.

COMISSÃO DE DEFESA DA LIBERDADE DE IMPRENSA E DIREITOS HUMANOSPresidente, Mário Augusto Jakobskind; Secretário, Arcírio Gouvêa Neto; AlcyrCavalcânti, Antônio Carlos Rumba Gabriel, Arcírio Gouvêa Neto, Daniel de Castro,Ernesto Vianna, Geraldo Pereira dos Santos,Germando de Oliveira Gonçalves, GilbertoMagalhães, José Ângelo da Silva Fernandes, Lênin Novaes de Araújo, Lucy MaryCarneiro, Luiz Carlos Azêdo, Maria Cecília Ribas Carneiro, Martha Arruda de Paiva,Miro Lopes, Orpheu Santos Salles, Sérgio Caldieri, Vitor Iório e Yacy Nunes.

COMISSÃO DIRETORA DA DIRETORIA DE ASSISTÊNCIA SOCIALIlma Martins da Silva, Presidente; Manoel Pacheco dos Santos, Maria do PerpétuoSocorro Vitarelli, Mirson Murad e Moacyr Lacerda.

REPRESENTAÇÃO DE SÃO PAULOConselho Consultivo: Rodolfo Konder (in memoriam), Fausto Camunha, George BenignoJatahy Duque Estrada, James Akel, Luthero Maynard e Reginaldo Dutra.

REPRESENTAÇÃO DE MINAS GERAISJosé Mendonça (Presidente de Honra), José Eustáquio de Oliveira (Diretor),CarlaKreefft, Dídimo Paiva, Durval Guimarães, Eduardo Kattah, Gustavo Abreu, José BentoTeixeira de Salles, Lauro Diniz, Leida Reis, Luiz Carlos Bernardes, Márcia Cruz eRogério Faria Tavares.

favor de um candidato ou deuma ideologia. Além de iden-tificar os princípios nortea-dores dos discursos dos can-didatos e da cobertura jorna-lística, a pesquisadora expli-ca de que modo se deu a as-censão de novas formas decomunicação dos candidatospor meio das mídias hoje con-sideradas alternativas, comoemissoras de rádio e tvs co-munitárias, telefones celula-res, blogs e redes sociais, queestão mudando o modo de sefazer política – e jornalismo– na atualidade. A autoraconcluiu que, ao se observaras mais recentes campanhaspresidenciais em toda a Amé-rica Latina, percebe-se umaconsolidação do personalis-mo. “Mas há também dife-rentes estratégias que fler-tam com os mitos políticosclássicos, não apenas no dis-curso dos candidatos comona cobertura jornalística”.

A autora argumenta que éimportante destacar que odiscurso mítico criado pela propaganda eque, pelo menos reiterado pela Folha epelo Estado no caso brasileiro, não encon-tra eco de modo absoluto em outros ve-ículos de comunicação de massa. Ela focaem dois exemplos, as revistas semanaisCarta Capital e Istoé, que se posicionaramclaramente a favor da candidatura petis-ta. “Não é esse aspecto – o do posiciona-mento dos veículos diante da corrida elei-toral – que discuto aqui”, observa. O queesta análise revela, prossegue Kátia, é queos mitos políticos de tipo clássico foramplenamente adotados tanto pelas campa-nhas dos candidatos em sua propagandacomo pela cobertura jornalística que sefez delas. Em sua opinião, os veículos de

imprensa são empresas com produtos àvenda e interesses corporativos em jogo“e não meramente representantes dosinteresses sociais e vigilantes de seu cum-primento, conceito que poderia ser defi-nido como outro mito da sociedademidiática contemporânea: a imprensacomo vigilante da democracia, sendo,portanto, imparcial e apartidária”.

Interessante é a descrição que ela fazdo mais polêmico político venezuelanode todos os tempos e sua relação de en-frentamento constante com a mídia no-ticiosa. “Chávez foi além de fazer do seupersonagem um objeto de culto. Fez umaleitura do herói que busca criar um sen-tido de continuidade histórica entre a luta

pela independência em rela-ção à Espanha e a atual lutapela independência do capi-tal internacional”. Dessa ma-neira, diz Kátia, mais do queum seguidor de Bolívar, Chá-vez constrói um discurso queo transforma no herói naci-

onal da atualidade, no porta-voz do pro-jeto bolivariano moderno que, num pri-meiro momento, resumia-se ao naciona-lismo patriótico e, com o tempo, se am-pliou e não se reduziu apenas à Venezue-la, mas a todo continente americano.Mais adiante, ela destaca: “Para seus ad-versários, esses recursos discursivos sãousados para desconstruir aquela estraté-gia, mostrando-o como um ditador, popu-lista, perigoso, comunista, bufão e canas-trão, apenas para usar os termos que nãosó a propaganda de oposição, como tam-bém a imprensa nacional e internacional,o qualificam”.

Formada em jornalismo pela Pontifí-cia Universidade Católica de São Paulo em

1983, Kátia Saisi é hoje uma respeitada es-pecialista em Comunicação e Marketing,segmento em que se formou pela Facul-dade Cásper Líbero em 2001. Na mesmainstituição, também defendeu o Mestra-do em Comunicação e Mercado (2003),cuja dissertação foi premiada pela Inter-com – Associação Brasileira de EstudosInterdisciplinares da Comunicação – em2004, na categoria Publicidade, Propa-ganda e Marketing. Em 2011, tornou-sedoutora em Ciências Sociais pela PUC-SP,área de concentração em Política, comtese que inspirou seu novo livro. Pesqui-sadora do Núcleo de Estudos em Arte,Mídia e Política-Neamp da PUC-SP, acu-mula mais de 25 anos de experiência emassessoria de imprensa de empresas pú-blicas e privadas, além de trabalhar comcandidatos e políticos no exercício domandato. Atualmente, ocupa o cargo dediretora executiva da Pluricom Comuni-cação Integrada.

Campanhas Presidenciais – Mídia eEleições na América Latina é um manual in-dispensável para jornalistas, profissionaisde marketing e publicidade e até mesmopolíticos, além do eleitor de modogeral. A recomendação se deve tambémpelo fato de a obra falar sobre o relacio-namento com o eleitor através dos mei-os de comunicação de massa, analisandoas mídias tradicionais – jornais e televi-são – e as mídias alternativas – redes so-ciais e tvs comunitárias – no Brasil, Chi-le e Venezuela. Após 20 anos de atuaçãoprofissional como assessora de imprensae de comunicação de instituições e polí-ticos em campanha, a autora percebeuque esta experiência pragmática, se porum lado mostrava-se intensa, por outroera esvaziada de uma reflexão críticasobre as engrenagens que fazem a políticae a disputa pelo poder funcionar, bemcomo sobre o seu papel nesse mecanismo.Pois bem. Isso mudou. A reflexão agoraestá aí, ao alcance das mãos.

“Chávez foi além de fazer doseu personagem um objeto deculto. Fez uma leitura do heróique busca criar um sentido decontinuidade histórica entre aluta pela independência emrelação à Espanha e a atualluta pela independência docapital internacional”

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té aqui, o ano de 2014 foiespecialmente penoso paraPernambuco. Além do fale-cimento de Ariano Suassu-

na em 23 de julho, os pernambucanoslamentaram a perda de um dos seus maisilustres políticos. Acidente aéreo ocorridona manhã de 13 de agosto, em Santos/SP,matou Eduardo Campos, ex-Governadordo Estado e candidato à Presidência daRepública pelo PSB, tendo como viceMarina Silva, que assumiu o posto prin-cipal na chapa que segue na disputa. Ari-ano, na verdade um paraibano, há muitasdécadas havia escolhido o Recife comoresidência. Campos, procurava justamen-te fazer o caminho contrário. Alargarseus horizontes políticos para além de seuestado natal e da região Nordeste, e fir-mar-se como liderança nacional.

Na madrugada do dia 23 de julho, pou-cas horas antes da morte de Suassuna, oentão candidato esteve no Real HospitalPortuguês, na capital pernambucana, ondeestava internado o escritor. Acompanha-do da esposa Renata, fora visitar o drama-turgo, àquela altura em coma e já em esta-do considerado grave. Além de amigospessoais de longa data – e aqui vale lembrarque Eduardo era neto de Miguel Arraes –eles eram, de certa forma, ‘parentes’. Re-nata, agora viúva de Campos, é sobrinha deZélia, viúva do escritor. E mais que isso.Suassuna ocupou secretarias estaduais emdois governos do Eduardo, com forte atu-ação na área cultural. “Pernambuco estáem choque. É como se tivessem tirado asfundações do Estado. A liderança de Eduar-do Campos era tão expressiva no campopolítico, e a contribuição cultural de Su-assuna era tão intensa, que os vazios sãoimensos. Duvido que Pernambuco tenhaestado tão triste e indefeso como agora”,afirmou Silvio Meira, cientista-chefe doCentro de Estudos Avançados do Recife.

Suassuna mostrava-se entusiasmadocom a candidatura de Campos à Presidên-

POR PAULO CHICO

cia. “A minha sintonia com o Governadornão vem somente do discurso, certo? Eleé a grande esperança. Getúlio, Jânio, Jus-celino e Lula da Silva. Para mim, foram osmelhores Presidentes que o Brasil já teve.Se Eduardo Campos fizer pelo Brasil me-tade do que ele fez em Pernambuco, vaiganhar de todos os quatro. Eu acho que eleé o político mais brilhante que eu já conhe-ci. E acho o mais hábil, o mais apto a me-lhorar e levar adiante as conquistas soci-ais obtidas no governo Lula. Na campanhade 2006, diziam que ele seria o novo Mi-guel Arraes. Eu disse: não! Ele vai ser maisdo que isso. Ele vai ser o Arraes novo. E foi,realmente. Ele não me decepcionou emnada. Na medida em que eu pude, ajudeiem 2006”, afirmou em entrevista a O Glo-bo, publicada em abril deste ano.

Trajetória políticaEduardo Henrique Accioly Campos

nasceu no Recife, no dia 10 de agosto de1965. Com formação em economia, tevediversificada trajetória política. Por doismandatos consecutivos, no período de2007 a 2014, foi Governador de Pernam-buco. Cumpriu ainda um mandato deDeputado Estadual, além de três passa-gens pela Câmara Federal. Foi Ministroda Ciência e Tecnologia, no segundo go-verno de Luiz Inácio Lula da Silva. Suamorte, aos 49 anos, colocou um precoceponto final em sua carreira, que pareciamesmo destinada a ocupar o posto máxi-mo no Executivo do País. Provavelmen-te, não nesta eleição. Chegar ao cargo dePresidente da República era missão que,certamente, ainda exigiria algum tempoe maior exposição em nível nacional.

O anúncio de sua morte fez arrefecerpor alguns dias o ritmo frenético da cam-panha. A Presidente Dilma Rousseff de-cretou luto oficial de três dias. “Perdemoshoje um grande brasileiro. Estivemosjuntos, pela última vez, no enterro donosso querido Ariano Suassuna. Conver-

samos como amigos. Sempre tivemosclaro que nossas eventuais divergênciaspolíticas sempre seriam menores que orespeito mútuo característico de nossaconvivência”. Dilma, assim como o ex-Presidente Lula, compareceu ao velório.Estimativas dão conta de que pelo menos160 mil pessoas, entre familiares, popu-lares e lideranças políticas, participaramdas despedidas a Eduardo Campos. Apóscortejo que durou mais de duas horas peloCentro Histórico de Recife, o corpo foienterrado sob aplausos, pouco depois das18h30 do dia 17 de agosto, no cemitériode Santo Amaro. Os restos mortais foramcolocados no jazigo da família, mesmolocal onde foi enterrado o avô MiguelArraes, em 2005.

Dois jornalistas entre as vítimasNo mesmo acidente aéreo, que segue

sob investigação, morreram os dois pilo-tos do jatinho, além de outros quatroocupantes da aeronave, membros da cam-panha de Eduardo. Eles haviam deixado oRio de Janeiro naquela manhã. Na capi-tal fluminense, na noite do dia 12, ocandidato do PSB havia concedido entre-vista para o Jornal Nacional, da TV Globo.No dia 13, Campos participaria de en-contro político em Guarujá/SP. Após malsucedida tentativa de pouso na pista lo-cal, dificultado pela má condição do tem-po, o piloto arremeteu o avião, que aca-bou por cair em bairro residencial deSantos, cidade vizinha.

Além de Eduardo, faleceu no aciden-te Carlos Augusto Ramos Leal Filho.Conhecido como Percol, o jornalista de36 anos era assessor de imprensa. Duranteo governo de Campos em Pernambuco,foi gerente de Relações com a Imprensa,assessorando diretamente o Governador.Em 2012, coordenou a comunicação dacampanha de Geraldo Julio, que se elegeuPrefeito do Recife, e foi nomeado secre-tário de imprensa da gestão. Percol era

casado com a jornalista Cecília Ramos.Segundo ela, o assessor estava “no melhormomento da vida”. “A gente casou háapenas quatro meses. Eu dizia que nãofazia questão de perdê-lo para Eduardo,porque era uma admiração mútua, umacompanhia, e ele tava tão feliz. A felici-dade dele era a minha”, disse ela, quechegou a cogitar também trabalhar pelaeleição do candidato do PSB.

Nascido no Recife em 1978, Alexan-dre Severo Gomes e Silva, era fotógrafoda campanha. Morava em São Paulo etinha pós-graduação em fotografia pelaFundação Armando Álvares Penteado(FAAP). Severo acumulou, desde 2002,importantes trabalhos e prêmios. NoRecife, passou pelas Redações do Jornal doCommercio, Diário de Pernambuco e Folha dePernambuco. Em 2009, recebeu mençãohonrosa no prêmio Wladimir Herzogpelo ensaio “À flor da pele”, que retrata-va a história de três irmãos albinos nas-cidos em uma família de negros em Olin-da. Assim como Alexandre, as imagenseram a paixão de Marcelo de OliveiraLyra, cinegrafista, outra vítima da quedada aeronave. Deixou mulher, uma filha de18 anos e um filho de pouco mais de umano. Pedro Almeida Valadares Neto, asses-sor de campanha e ex-Deputado Federal,também perdeu a vida na queda, fataltambém para os pilotos.

Geraldo Magela Barbosa da Cunhatinha 45 anos e há mais de 20 pilotavaaeronaves. Segundo a família, já tinhaacumulado mais de quatro mil horas devôo. Desde junho deste ano, trabalhavapara a campanha de Eduardo Campos àPresidência. A mulher de Geraldo, Jose-line Amaral da Cunha, está grávida de setemeses. O casal ainda tem um filho dequatro anos. Marcos Martins vivia emSão Paulo. Tinha 42 anos e exercia a pro-fissão há aproximadamente 15 anos. Eracasado com Flávia Vargas Martins, de 32anos, e deixou dois filhos.

VIDAS

EduardoCampos,

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