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Livro Ex 157

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Afro x livro

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CRISTIAN DE SOUZA AUGUSTO(AFRO-X)

PATROCÍNIO:

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Copyright © 2009 by Cristian de Souza Augusto

Todos os direitos desta edição reservados àAuto-Estima Entertainment RecordsSão Paulo-SP-CEP 09895-595Tel: (11) [email protected]

DigitaçãoLindacir

Preparação de originaisDiva Ferreira

RevisãoMartha Souto

Contra-capaCristiane Bomfim

ColaboradoresVerônica TruppelCristiane BomfimKely Nascimento

PesquisaCristiane Bomfim

ProduçãoLu Clemente

FotosJoão Wainer

Projeto gráfico e diagramaçãoDécio Soncini

Cristian de Souza Augusto, Afro-XEX-157/ Cristian de Souza Augusto - São PauloAuto-Estima Entertainment Records, 2009.

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Dedico e consagro esta obra primeiramente a Deus, Criadordo universo, Rei dos reis, Senhor dos exércitos e meu maior ído-lo, Jesus Cristo.

Em especial, às fontes de inspiração: de coração aos meus amadosfilhos Ryan Eduardo, Aysha Benelli, Hemellyn Lawryn, João Pedro ea Malu. A minha querida mãe, Dona Neusa, e meu pai, Tião. Aosmeus irmãos Bad, Nithiely e a todos os entes queridos.

Em memória a todos aqueles que morreram injustamente emvirtude desse caos que vivemos e a todos aqueles que acreditamnum ideal de mudança.

Meu sonho é que essas singelas palavras contidas na obra sejam se-mentes para uma transformação espiritual e social para todos que lerem.

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-AGRADECIMENTOS-

A Deus pela dádiva de escrever esta obra. A toda minha família quesempre me incentivou nos momentos difíceis.

A todos que de alguma forma contribuíram com atenção, idéias,positividade, em orações, palavras. Este livro tem um pedaço detodos vocês.

Ao Dr. Ariel de Castro, Rose Nogueira, Margarida Pressburger, JonyaLúcia Tratte e a todas as comissões de direitos humanos do mundo.

Ao juiz de direito, Otávio Augusto Machado de Barros Filho. Ao agen-te Cultural, José Júnior (Afroreggae).

Aos jornalistas Gilberto Dimenstein, Cristiane Bomfim, AndréCaramante, Josmar Jozino, Bruno Paes Manso, Diva Ferreira.

Ao fotógrafo João Wainer, que me acompanha desde o início dacarreira.

A Lu Clemente, Marcos Caneta, Caru.

A revista Celebre, Dra. Miriam e Fernanda Kelly.

Um grande salve à todos os guerreiros do movimento Hip Hop por-que vocês são os principais protagonistas dessa história.

Ao terceiro setor. Aos movimentos sociais de inclusão e a todos osagentes multiplicadores que acreditam e fazem sua parte para a tãosonhada mudança.

A todos aqueles que estão privados de sua liberdade e a todas ascomunidades e favelas do Brasil.

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– SUMÁRIO –

Prefácio ..................................................................................... 6

Introdução .............................................................................. 11

Sexta-feira 13 ......................................................................... 16

Cinco meses depois ................................................................ 27

O rei da favela ........................................................................ 44

Do crime ao sucesso ............................................................... 52

Quarto mundo dentro de um terceiro ................................... 82

Segunda sem lei ..................................................................... 91

Campo de concentração ....................................................... 101

Inocente ou não .................................................................... 103

Conheci uma estrela ............................................................. 111

Alegria de preso dura pouco ................................................ 119

Radiografia do barril de pólvora ......................................... 128

Vaso ruim de quebrar ........................................................... 142

A lei é para todos, mas a justiça é para poucos .................. 156

Papai e mamãe, tô chegando ............................................... 162

Assim meu coração não agüenta ......................................... 169

Falhei na missão ................................................................... 177

A virada................................................................................. 182

Dialeto .................................................................................. 188

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– PREFÁCIO –

Conheci Afro-X nos últimos anos do século passado, quandoprocurava nas favelas de São Paulo sobreviventes das execuçõesda polícia. Eu era um repórter-garimpeiro, em busca de raridadesescondidas. Os forasteiros eram recebidos em silêncio, estranhe-za, desconfiança. Mas Afro-X me abriu as portas de sua casa parafalar, com indignação, das agruras da juventude do Jardim Calux.

Com o passar dos anos, nossos destinos não precisavam secruzar para eu acompanhar a sua trajetória de surpresas e desucesso. A voz de Afro-X, assim como a de seu parceiro Dexter,virou uma referência do rap. Tinha que ser o rap a música queamplificou o grito da periferia para todo o Brasil.

Agora, abril de 2009, recebo dele uma mensagem com umabela notícia, de primeira mão.

É nóis, agora com um livro... Em busca da tão sonhada paz.Registro aqui com alegria a minha ansiedade: quero ler antes

de todo mundo.A história da vida de Afro-X, tem elementos de sobra para a

garantia de uma leitura inesquecível.Caco Barcellos, repórter e escritor.

“Não há uma relação direta entre pobreza e violência. Se fos-se assim, todos os pobres seriam violentos. Há, sim, uma relaçãoentre violência e falta de perspectiva de futuro. Isso significaque quando os indivíduos não desenvolvem um sentido positivode pertencimento à escola, à família, ao trabalho ou á sua comu-nidade - corre maior risco de marginalidade.”

Gilberto Dimenstein, jornalista, escritor e colunista da Folhade São Paulo.

“Cada um escolhe o caminho por onde seguir. O criminosoestá no crime porque assim ele escolheu. A sociedade precisacriar caminhos alternativos atraentes que seduzam mais do que

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o crime. O jovem que conhece sua história e a de seus antepassa-dos estará mais preocupado com o futuro”.

Bruno Paes Manso, repórter do Estado de São Paulo.

“Se toda regra tem uma exceção, Afro-X, sem dúvida, é umadelas. Pagou pelo erro, saiu da prisão e superou os difíceis obstá-culos. Com fé, força de vontade, determinação e amor à família,aos amigos e a si próprio, reconstruiu sua vida. Mas nem todostêm essa chance. É difícil tentar explicar os motivos que levam aspessoas ao crime, ao 157. Mas num país de desigualdades, onde adistância entre pobres e ricos é cada vez maior, os menos favore-cidos têm mais chance de ir para a prisão. Milhões já nasceramexcluídos. Vivem em condições desumanas. Não tiveram oportu-nidade de concluir os estudos, trabalhar e consumir. São margina-lizados pela própria sociedade. A maioria que sai da cadeia é re-jeitada socialmente. Nem concurso pode prestar. Parecem conde-nados à prisão perpétua, mesmo soltos. Faltam ações sociais egovernamentais para assistir, com dignidade e seriedade, essapopulação. A educação é uma delas. Essa situação precisa mudar.Todos têm direito de se recuperar e mudar de vida. Tanto os queestão nas ruas como aqueles privados da liberdade.”

Josmar Jozino, repórter do Jornal da Tarde.

“Sem Justiça não há paz. Sem Justiça social, menos ainda. Oque faz do Brasil um país injusto? Parte das dezenas de respos-tas para pergunta tão complexa pode ser encontradas quandonos dispomos a conhecer a vida de homens como Cristian deSouza Augusto, ex-157, ou melhor, ex-ladrão, ex-perigo para asociedade, como se diz no submundo das ruas de São Paulo.Negro e pobre, Cristian resolveu buscar ascensão social com umrevólver na cinta. Saiu derrotado e amargou anos nos presídiossuperlotados. Na dureza da tranca da Casa de Detenção doCarandiru, onde o conheci há mais de uma década, ainda noinício da minha caminhada como repórter e ele na dele de ex-criminoso, Cristian sentiu o peso da Justiça no Brasil, princi-

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palmente quando a espada da deusa Têmis corta a pele dos jovensexcluídos. A vida de Cristian mostra porque no Brasil a lei é aplica-da de acordo com os números. Não os dos artigos do Código Penal(o 157, crime de roubo, foi o gravado em Cristian), mas, sim, deacordo com o número do CEP, do código postal, da origem do réu,dos cifrões. Para os da periferia, a severidade da Execução Penal eprisões podres; para os abastados, a proteção total.“

André Caramante, repórter da Folha de São Paulo.

Sempre me perguntava por que alguém viveria à margem dasleis. Cheia de “razões”, só condenava e julgava. E o pior, nãoacreditava na recuperação de presidiário. Por ironia, trabalheino Ministério da Justiça onde, me surpreendi abraçando um pro-jeto que buscava reintegrar egresso a socidedade. Em cada his-tória conhecia uma outra versão dos fatos. E descobri: quem erraestá condenado duas vezes: uma pelas leis, outra pelos homens,sem as leis. Isto é, pela sociedade. Talvez, eu não saiba respon-der porque uma pessoa comete erros graves. Mas, sei porqueessa mesma pessoa enfrenta tantas dificuldades para corrigir taiserros. É porque o sistema pune, mas não recupera. Constrói pre-sídios, mas não reconstrói vidas. E a saída está na vontade decada um, com o apoio de outros. Quem constrói sua própria li-berdade prova que o cenário pode mudar, porque a prisão nãoestá apenas por trás das grades. Está também, nos preconceitosfora delas. A vitória é individual, mas durante a caminhada podehaver incentivo e ajuda. Com os egressos, aprendi o quanto euera presa à minha ignorância, à crenças limitadas e a falsos con-ceitos. Essas pessoas me libertaram. Dentre elas, o autor desselivro, Cristian de Souza Augusto.

Meus parabéns e profunda gratidão ao meu amigo Afro-X.Diva Ferreira jornalista de Brasília, integrante do movimentoIVE-Imagens e Vozes da Esperança - Pela Paz na Mídia.

“Estamos num emaranhado de coisas que não sabemos ondeinicia muito menos onde se encerra. Estamos no meio deste tur-

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bilhão que fabrica todos os dias um montão de miseráveis, anal-fabetos, desempregados, desinformados, drogados. Pense noComplexo do Alemão, no Rio de Janeiro; na COHAB em São Pau-lo ou nos morros e favelas de Florianópolis. O que eles têm emcomum? Como vivem os pobres e jovens? Olhe os ricos, comovivem? Onde estudam? O que comem? O que vestem? Quais dro-gas consomem? Até na droga há diferenças. A culpa é de quem?Do Estado ou nossa?

Só sei que existe uma máquina gigante que utiliza a mão invi-sível para decidir vidas. Alguns, como nós, contrariam as estatís-ticas e combatem este sistema cruel, corrupto que fabrica exclu-ídos. Mas, sendo assim, quantos estão incorporados ao nossoexército? Onde estão os que acreditam na mudança?”

Marcos Caneta, Agente Cultural e secretário de Cultura emSão José - SC.

“Hoje tudo é muito rápido e o desejo de sucesso é vendidoa toda hora na televisão, nas revistas, até nos videoclipes deRAP.

E toda essa propaganda, pressão social, a falta de estrutu-ra familiar, aliada a quase inexistência de oportunidades queo Estado oferece, faz da nossa sociedade uma fábrica de jo-vens perdidos, que depois, os jogamos nas cadeias e “Funda-ções”, esperando que o problema se resolva sozinho.

O investimento em segurança é maior que em educação,isso é uma tendência em todo mundo, construímos mais pre-sídios que escolas, com essa política errônea os governantessão os co-criadores do crime organizado.

Enquanto não assumirmos nossas responsabilidades coma reintegração dessa parte da sociedade, estaremos alimen-tando um monstro, que já é grande, mas pode se tornar mui-to pior!”

Alexandre De Maio, editor da revista Cultura Hip-Hop e Jor-nal Boletim do Kaos.

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– INTRODUÇÃO –

Certo dia no pavilhão 8 do Carandiru um piolho me contouuma parábola que mudou minha vida. Ela era mais oumenos assim: estava acontecendo um grande incêndio na

selva e todos os animais corriam em direção contrária ao fogo,uns para salvar suas vidas e outros por não acreditarem que erapossível conter aquela situação. Por incrível que pareça o leão,rei da selva, gritava para todos fugirem, desacreditado com oque viu. Pensou ele: “O baguio tá loko. Não tem mais jeito, voume jogar, me salvar e salvar minha família, fui!”

Nesse episódio surgiu um personagem que fez a diferença.Era uma andorinha. O passarinho voava até a margem de umlago perto da floresta, pegava o que podia de água e voltavavelozmente para conter o incêndio.

Foi quando nessas idas e vindas o pássaro trombou como oleão correndo assustadíssimo já quase saindo da selva. Espanta-do exclamou para andorinha:

- Demorô, vambora que a chapa tá quente neguim!Respondeu o pássaro:- Sei que de repente não vou conseguir salvar a floresta, mas

eu tô fazendo minha parte!Essas idéias foram o meu despertar, minha visão mudou completa-

mente. Então comecei fazer minha parte escrevendo um manuscrito,me dedicando de dez a 12 horas diárias. Esse antídoto me fez enxergarque com o avanço desenfreado científico, espacial e tecnológico o ho-mem regrediu mental e espiritualmente. Prioridades como a paz, oamor, a igualdade entre os povos viraram mera utopia.

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Vejo as pessoas cada vez mais e mais materialistas,consumistas e o homem trabalhando em prol da cobiça, manipu-lando massas em nome do progresso.

Infelizmente o homem se perdeu por causa da ganância eobsessão pelo poder. Foi infectado pelo câncer do mundo: o ego-ísmo. A tendência é a perda de valores como: temor a Deus, im-portância da família e o amor ao próximo. O coração está nasola do pé. A moral e os bons princípios estão sendo dissolvidos.Infelizmente estamos vivenciando o descaramento da perda dosvalores, a banalização das coisas e a falência do sistema atravésdos indicadores:

- Desigualdade social ou falta de oportunidade: o rico é muitorico e o pobre é muito pobre. Apenas 10% da população brasilei-ra detêm todo o capital. Cerca de 45 milhões de brasileiros vi-vem em condições de miséria absoluta.

- Falta de Educação e Cultura: a qualidade do ensino públicoestá cada dia mais superficial. Um dos critérios de peso exigido éa frequência. O sistema não tem interesse que as pessoas sejamesclarecidas.

- Sonho de consumo: é ministrado por grande parte dosmeios de comunicação que vende ilusões e ganha milhões. ATV é a pior doutrinadora e todos nós temos uma dentro decasa. Através de mensagens subliminares que influenciam, temo poder de persuadir, gerar a alienação e o emburrecimento.Se não soubermos discernir algumas programações viveremosum mundo ilusório. Por falta de entendimento, a Palavra deDeus diz que o povo perece e nunca vai entender a escravidãosofisticada, a política do pão e circo vem através de futebol,carnaval e cachaça.

- As drogas são usadas como válvula de escape para as frus-trações do dia a dia. É o flagelo da humanidade. Existem as dro-gas liberadas (álcool, tabaco) e as não-liberadas (cocaína, hero-ína, crack, êxtase e maconhas as mais conhecidas). Temos o livrearbítrio para tomar nossas decisões e definir nosso destino, masquis tomar um atalho na vida e aprendi com a dor.

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Eu sou o retrato de vários jovens que estão espalhados pelasperiferias do Brasil, uma geração que vem morrendo precocementeno caos da violência, no álcool, nas drogas e na criminalidade.Mas a consciência só veio quando me tornei 157.858, apenas umnúmero no sistema penitenciário brasileiro.

Deus tinha uma promessa na minha vida, assim como tempara todos que n’Ele crer. O quebra-cabeça foi montado de umaforma sobrenatural. A partir daí, encontrei um amigo de infân-cia dentro do maior presídio da América Latina, o Carandiru.Criamos um grupo de nome 509-E, número da cela onde morá-vamos que resultou em sucesso nacional. Com o trabalho musi-cal conheci Simony, ex-integrante do grupo infantil Balão Mági-co ícone de minha geração.

O destino uniu nossas vidas, tivemos dois filhos. O conto defadas gerou controvérsias na mídia, numa sociedade que viveuma falsa democracia e ainda sofre os resquícios da ditadura. Oquestionamento revolucionou os conceitos da sociedade, entreeles, os conservadores, os hipócritas, os preconceituosos emquaisquer aspectos que sejam: de preto para branco, do rico parapobre, do livre para o preso etc. e tal...

Superar o medo, vencer a ansiedade e trabalhar as dores daexistência são as mais difíceis lições da vida. Amamos a sereni-dade quando estamos tranqüilos, mas quando angustiados vive-mos num cárcere emocional.

Te convido a conhecer um novo universo, a história que amídia desconhece da vida real de drama, suor, sangue, lágrimas,tragédia, descaso, omissão, luta, persistência, até a glória. Par-tindo do princípio que ninguém nasce com uma arma na mão,todo mundo merece uma oportunidade.

Ufa! Mesmo com todos meus erros e sofrimento descobri o se-gredo. Proponho um grande desafio de mudança, qual personagemna sua vida real você quer ser no término da leitura desse livro?

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QUE CHEGUEIQUE CHEGUEIQUE CHEGUEIQUE CHEGUEIQUE CHEGUEI

NA PRISÃO”NA PRISÃO”NA PRISÃO”NA PRISÃO”NA PRISÃO”FOTO: JOÃO WAINER

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––––– CAPÍTULO 1 –CAPÍTULO 1 –CAPÍTULO 1 –CAPÍTULO 1 –CAPÍTULO 1 –Sexta-feira 13

Manhã de sexta-feira, 13 de novembro de 1.998. Por vol-ta das 8h, um companheiro e eu fazíamos a faxina nagaleria, pois a limpeza é primordial para servir a refei-

ção matinal aos presos. Para mim era um grande alívio. Acarceragem do Depatri (Departamento de Investigação de CrimeContra o Patrimônio) não proporcionava banho de sol, causavafobia ficar dentro daquele barraco de 4 por 5 m2 abarrotado degente. Todas as 16 celas estavam superlotadas, com aproxima-damente 35 a 40 presos.

Assim que terminamos de servir a alimentação, um carcerei-ro encostou na gaiola e cantou meu nome completo. Logo dedu-zi que era bonde. Porque a liberdade iria demorar uns dias paracantar. Eu estava descabeladão, desesperançoso. Três dias atráseu havia completado 25 anos, contrariando a estatística dos jo-vens das periferias que muitas vezes nem chegam a completar amaioridade e são vitimados pelo caos da violência.

Minha filha primogênita, Hemellyn Lawryn, era recém nasci-da. Que pena da minha filha, imaginem o que é ter um pai atrásdas grades. Somando todas penas dava quase 23 anos de conde-nação. Peguei 16 anos só num BO que caí de laranja. No diaanterior por pouco não fui embora, maldito GOE (Grupo de Ope-rações Especiais), nos pegou no telhado da cadeia prontos paradescer pela tia e irmos embora. Liberdade! Que nada... Senti sóo gostinho da brisa no rosto. O couro comeu sem massagem!

Nossa tentativa de fuga foi frustrada. Os carrascos nos tortu-raram por aproximadamente uma hora. Meu corpo ficou cheio

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de hematomas pelas coronhadas e choques elétricos. Dois pre-sos foram baleados nas pernas, sem contar que também suspen-deram nossas visitas. Na vida tudo tem seu preço.

Deu mó desacerto. Com certeza caguetaram porque passari-nho era mato. Por outro lado, acredito que Deus tinha outro pla-no na minha vida. Enfim, uma verdadeira operação policial foimontada para transferir 60 presos. Coisa de cinema mesmo!

Várias viaturas a milhão no trânsito. Com giroflex ligado, po-liciais civis passavam sinal vermelho. Usavam coletes e estavamfortemente armados, com pistolas, escopetas, metralhadoras eaté fuzis, faziam a escolta. Aquela pressão com meio corpo parafora da janela da viatura. Até o mosquito de ferro acompanhavaa operação. Estávamos em oito no chiqueirinho. Nem imaginavapara onde nos levariam. Não demorou muito e a viatura foi re-duzindo, reduzindo até que pararam. Então ouvimos uma portadianteira abrir, ouvimos passos de um PM que desceu. Conver-sou com alguém. Não sei com quem.

Segundos depois, a viatura andou poucos metros. Na seqüên-cia, ouvimos o barulho de portões se abrindo. A viatura entrou eparou. Percebemos pelas frestas de ventilação que era um ambi-ente fechado e de pouca luz. Os PMs desceram novamente. Fica-mos parados por alguns minutos. Em seguida ouvimos mófalatório. Alguém perguntou:

“Quanto tem aí dentro?”O tira respondeu:“Tem oito ladrões!”Não demorou muito ouvimos abrir outros portões. A viatura

movimentou-se mais uma vez e parou poucos metros depois.Nessa hora ouvimos abrir mais outros portões. Nesse instanteregistrei:

“Caramba! Quantos portões. Vão nos trancafiar. Pra onde es-ses vermes tão levando a gente? Pelo amô são portões até umashoras”. Outro detento também comentou:

“Agora a gente ta trancado a sete chaves. Pra onde será quetrouxeram a gente?”

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“Pelo percurso rápido acho que é a detenção ou a penita doEstado. Só Deus sabe dizer”, respondi.

Outra vez a viatura movimentou-se, andando mais algunsmetros. Estacionou e desligou. Em conjunto, como se combina-do, falamos:

“Agora chegou!”Segundos depois, ouvimos as portas dianteiras abrindo. Os

PMs desceram. Senti o maior frio na barriga e até certo receio,porque é do ser humano temer o desconhecido.

Estava a maior lua dentro do chiqueirinho. O suor descia norosto e em todo corpo. Minha camiseta ficou encharcada. Nãoaguentava mais ficar naquele cubículo. Já estava respirando comdificuldade. Depois de muita canseira ouvimos alguém falando,caminhando em direção da viatura. De repente colocaram a michae abriram o tampão traseiro. Sentimos a brisa e a claridade ofus-cante. Minha vista demorou um pouco para se acostumar. Nãoconsegui me localizar. Logo um brutamonte abriu a grade quefecha o chiqueirinho e ordenou em voz alta:

“Vai ladrão, demoro! Desce rapidinho, forma uma fila, quevamos tirar as algema!”

Tiraram as algemas, falaram para cada um pegar suas trou-xas e continuar em fila. Nessa hora, reprisou um flash em minhamente. Tudo que eu havia passado desde criança, todo sofrimen-to que minha família estava passando por minha causa.

Quando olhei ao redor fiquei impressionado com o tamanhoda Casa de Detenção de São Paulo Professor Flamínio Fávero, vul-go Dita. Verdadeiro depósito humano, onde o filho chora e a mãenão vê. Estava no maior presídio da América Latina. Quem diria?

Por vezes passei de metrô na frente da Detenção indo e vol-tando da balada. Olhava e pensava em alguns conhecidos queestavam presos. Na muralha via os gambés com fuzis. Pareciaum mundo paralelo e desconhecido no centro da metrópole. Essemonte de prédios lembrava uma COHAB hostil, obscura e aomesmo tempo misteriosa. Pensava que nunca iria cair nesse in-ferno, mas para o criminoso só há três caminhos: ficar paralíti-

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co, ir para o cemitério ou para a cadeia. Sabia que qualquer diao desacerto aconteceria, mas a ambição, a ganância e a sensaçãode poder fizeram com que eu ficasse desacreditado e iludido.Por outro lado, o que vem fácil, vai fácil. O diabo dá com a mãoe puxa com as duas. É desse jeito. Agora tenho de sobreviver eme manter vivo. Passei por um inferno astral naquele momento.Logo saí do transe, com a ordem do chefe:

“Vai ladrão! Presta atenção na chamada. Permaneça em fila eme acompanhe!”

Abriu-se então o portão da Divinéia. No mesmo instante sentium temor, os batimentos cardíacos aceleraram, pedi proteção aDeus para entrar no universo do crime e segui na fé. Minha sorteestava lançada.

No pátio externo do P2, uma pá de presos olhava com curiosi-dade para saber quem chegou. Tanto poderia ser parceiro, comoinimigo. Paramos em frente à gaiola do pavilhão. Um funça, queestava sentado num banco, levantou e abriu o portão para pas-sarmos. O chefe, mais adiante, comandava a fila indiana.

Passamos pelo pátio interno do P2 e fomos parar no setor decontrole geral. Fomos obrigados a deixar as trouxas do lado defora. Fizeram novas chamadas e nos colocaram dentro de uma gai-ola fedorenta. O cheiro de urina e o mofo impregnavam. Luz, so-mente a que entrava pelas frestas do chapão de ferro. As paredesminavam água, sem contar os insetos, que faziam festa. Vários pre-sos vinham perguntar de onde era o bonde. Depois de algumashoras de molho, o chefe foi chamando um por vez. Revistavam astrouxas. Em seguida, apenas de cuecas, colocaram-nos em fila parapassar pela rouparia, e deixar os pertences, calças jeans, bonés,enfim toda vestimenta que não é permitida no país das calças be-ges. Deram-nos uma calça jega de tom bege. A cor servia para dife-renciar os presos dos funcionários. Na seqüência, nos mandarampara barbearia. Os barbeiros (detentos) fizeram o corte tradicionaltriagem, estilo tigela. A máquina é passada em formato circular naslaterais do cabelo, deixando raspada a parte de baixo e a parte decima mais alta. Servia de controle dos presos que chegam a casa.

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Saí de lá, fui ao boi. Paguei uma ducha e voltei para o setor docontrole. Recebi o nº 157.858 meu prontuário. Coincidência. Ostrês primeiros números se referem ao artigo criminal em que fuienquadrado: assalto à mão armada. Naquele momento me tor-nei apenas mais um número no sistema penitenciário brasileiro.Rótulo que carregarei pelo resto de minha vida.

Em seguida foi feita a qualificação dos presos. Ela consistiaem: dados pessoais, data da prisão, de qual cadeia era proceden-te. Depois me encaminharam a outro setor para preencher o rolde visitas, tirar a fotografia em preto e branco, com uma plaquetaindicando a data da inclusão, o prontuário e o artigo.

No pátio interno do P2 um fato me chamou a atenção e pareipara observar. Nunca ouvi tantas misturas de sons e ruídos aomesmo tempo. De um lado os evangélicos cantando, orando. Nooutro a umbanda em pleno ritual. Existia uma rádio interna queera apelidada de Locução que tocava vários gêneros musicais.

Estava num recinto multiétnico, com crenças e religiões dis-tintas. Todos em um mesmo espaço físico. Outro fato marcantefoi na marquise do segundo andar. Avistei um bando de pombos,que vivia em plena harmonia com dezenas de gatos. Maior liçãode vida para o ser humano que não consegue viver bem com osoutros homens. O homem fabrica as armas que poderão matá-lo, cria a droga que irá viciá-lo e destrói a natureza em nome doprogresso. Cria a justiça de olhos vendados. Enfim o homem é opior dos animais.

Os últimos raios do sol caíam no quadrangular do Carandiru.Não trombei nenhum aliado para me dar um auxílio. Me sentisó. Era um sinal que tinha de me preparar para os diversos im-previstos, dificuldades que viriam pela frente. Entretanto, sem-pre tive muita fé em Deus e a convicção que iria me dar bemdevido a caminhada no crime sem rastro, ao meu proceder, ahumildade e a disposição para resolver o que fosse necessário.

Depois de toda burocracia de inclusão na casa, nos levarampara a triagem no P6, que mais parecia um pulgueiro, um habitatnatural de insetos de todas as espécies. Procurei arrumar um

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cantinho, mas foi em vão. Ficamos amontoados naquele muquifo,lutando contra as muquiranas. Olhei ao meu redor e percebi queo sofrimento não escolhia cor, nem idade. Eu e outros 60 presosestávamos no mesmo barco.

Já era final de tarde, começo de noite, então os faxineirosvieram pagar nossa bóia. Quando peguei a boia pensei: “Nossa!É a mesma empresa que também distribui os bandecos no Depatrie nos distritos de São Paulo. Mó monopólio. Deus que me per-doe, mas nem cachorro come essa gororoba fria e azeda.”

Em princípio relutei, mas a lei da sobrevivência falou maisalto, ou melhor, a fome falou mais alto. Em certas ocasiões nãotemos muita escolha. Acabei de me alimentar, não demorou nada,deu mó revertério na barriga. Então corri para o boi. Nunca vium lugar tão imundo, o cheiro era insuportável, estava cheio depapéis sujos ao lado do vaso sanitário, que estava entupido até otopo. O ambiente era infestado de moscas, paredes verdes e es-corregadias de tanto lodo. Os banheiros dos bares mais nojentosdo centro de Sampa ganham de dez a zero daquela espelunca.Infelizmente fui obrigado a usar. Na parede de frente, um poucoacima da minha altura, tinha um cano todo enferrujado, com umregistro no mesmo estado. Aproveitei para usar, não existia pa-pel higiênico ali. Liguei o registro. Paguei uma ducha. A água erafria e avermelhada, saía igual um conta gotas. Após terminarenxuguei com minha camiseta e logo que vesti a roupa. Meucorpo começou a coçar. Mal havia acabado de me alimentar jáestava com fome. Tudo era amaldiçoado naquele lugar. “MeuDeus! As ratazanas mais pareciam gatos.”

Na triagem do sexto andar do P6, ficamos incomunicáveis.Somente pelas frestas das ventanas é que conseguíamos distin-guir se era dia ou se era noite. Dessas mesmas frestas conseguiavistar os dois pavilhões que eram chamados de fundão. O P8 eo P9 aparentavam dois castelos mal-assombrados, um acopladoao outro. Só as muralhas os dividiam. Era um contingente enor-me de presos, entrando e saindo daqueles castelos. Lá de cimaparecia um formigueiro, ainda mais que era final de semana e

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dia de visita. Relembrei de quando estava preso na penita dePresidente Bernardes, cidade paulista próxima às divisas de MatoGrosso do Sul e Paraná. Nos três raios (pavilhões) a populaçãoera de cerca de 1.500 presos. Não havia comparação de tama-nho com o que vi no P6 naquele sábado, 14 de novembro, quatrodias depois do meu aniversário. Bela comemoração!

Tinha certeza que me mandariam para um dos pavilhões dofundão. Em princípio o P9 era destinado a primários e o P8 parareincidente. O martírio durou até segunda-feira pela manhã,quando nos levaram para palestra do diretor da Casa e tambémpara sermos distribuídos nos respectivos pavilhões. O discursoirônico do diretor era mais ou menos assim:

“Sejam bem-vindos à nossa Casa! Costumo dizer que quembebe dessa água jamais esquece. Quem tem inimigo? Avisa logo,porque depois é tarde demais! Não pague pra ver”

Falou também que não interessava o que havíamos feito noDepatri. Na Detenção era outra história. Se obedecêssemos à dis-ciplina e cumprido o tempo penal, a Casa liberaria. Explicou maissobre algumas regras e desejou boa sorte a todos. Enquanto dis-cursava, um assistente seguia anotando tudo. Por fim, o tal dire-tor nos perguntou:

“Quem avisamos em caso de falecimento?”Aquilo era apenas o vestibulinho de preparação para a uni-

versidade. Na seqüência, o diretor avisou para cada um de nós,qual seria o pavilhão de destino. Fui encaminhado para o P8. Umfunça cantou alguns nomes, separou as fichas nas mãos, orde-nou para pegarmos nossos pertences e acompanhá-lo em fila.Seguimos pelo pátio externo do P2, quebramos à esquerda senti-do academia de boxe. No final do corredor, um funça responsá-vel pelo trânsito do P8, abriu o portão para passarmos. Entra-mos no pátio externo do P8. Fiquei abismado com o tamanho daárea. Tinha quadra de futsal, outro espaço enorme em volta dacaixa d’água desativada, mais adiante um campo de futebol apa-rentemente oficial. Nesse percurso, uma pá de presos curiososme entrevistava e perguntava de qual cadeia eu fui transferido e

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de que quebrada eu era. Nessa caminhada trombei com algunsconhecidos de outras cadeias até parar na carceragem do P8,onde foi feito outra chamada e o funça mal-educado disse queeu iria pro castigo, por causa da fuga da colônia, onde cumpria oregime semi-aberto. O restante dos detentos, o funça mandouprocurar uma gaiola.

Permaneci na carceragem. Em seguida, o funça me liberoupara eu dar um pião. Estava com preguiça porque tinha acabadode almoçar. O carcereiro avisou que mais tarde me trancaria.Deixei meus pertences num canto e fui ao pião para reconhecero território. Quando saí da carceragem olhei a minha direita eavistei um altar com uma imagem enorme de Nossa SenhoraAparecida e outros santos. Flores e velas acesas compunham areligiosidade. A minha esquerda estava o pátio interno do P8.Na marquise existia uma academia de musculação com váriosdetentos treinando com disposição, parecendo se preparar parauma guerra. Mesmo diante daquela realidade nua e crua tentavame adaptar. Ou melhor, tentava entender minha nova moradia.

Passei pela gaiola e comecei subir as escadas do prédio. Umclima pesado e tenso pairava no ar. Arrepiei dos pés à cabeça.Senti um calafrio, estava no antro da maldade. Em silêncio cla-mei a Deus e continuei subindo as escadas. Foi quando fiqueiatônito e estarrecido com uma cena que vi. Só deu tempo deencostar as costas na parede. O lagarto desceu arrastando o pre-sunto pelos pés com violência. O cadáver estava desfigurado,esfacelado. Por onde passava deixava um rastro de sangue e pe-daços da massa cefálica nos degraus. Mesmo esquivando, o san-gue respingou em minha calça. Olhei ao redor e notei a friezaque os presos encararam o fato. Era como se nada estivesse acon-tecendo. Todos sorriam e conversavam normalmente. Pensei: “Oque será que aquele homem fez para morrer tão brutalmente?”

Transtornado, continuei subindo até parar no quinto andar.Ninguém me dirigiu uma palavra. Muitos olhavam e sabiam queeu estava chegando aquele dia devido ao corte triagem. A cadeiaestava transbordando de detentos e gatos. Primeira vez que vi

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uma prisão com gatos. Na galeria deste andar a maioria dos bar-racos tocava rap. Parecia mercadão de peixe. Mó falatório. Umexército de homens na ociosidade, um verdadeiro depósito huma-no. Vida sedentária. O que mais me chamou a atenção foi que amaioria era jovem como eu e 70% não haviam completado 30anos.

Logo, os conhecidos me encontraram e me levaram para obarraco deles. Foi lá que paguei uma ducha gelada e prolonga-da, me alimentei. Trocamos várias idéias, até a hora em que ofunça iria me trancar no castigo do quinto andar.

Às 16h me apresentei na carceragem, pois era a hora da con-tagem, o funça ordenou que eu pegasse minhas coisas e me le-vou para o castigo. Quando a cela abriu, não acreditei. A cela2x4m2 estava abarrotada. Muito abafado lá dentro. O ambienteera mórbido. Maior fumaceira de cigarro, cheiro de baseado emesclado, doente com TB (tuberculose). Sem nenhuma condi-ção de convívio, um monte de gente em pé, porque não tinhaespaço para sentar. Injuriado, disse ao funça:

“Aí chefe, tá pagando mó raiva. Ali dentro não cabe maisninguém!”

Asperamente, o carcereiro algoz respondeu que se eu nãoentrasse rápido, me mandaria para a masmorra do P4 e aindadobraria o castigo: de 30 dias, passaria para 60 dias. Respireifundo contei até dez e agi com razão.

Provei mais uma vez do gosto amargo do fel. Naquela noiterevezamos. Enquanto um dormia, o outro ficava em pé acorda-do, assim sucessivamente por três dias. Outro fato que me dei-xou comovido e ao mesmo tempo perturbado foi à história deum preso que estava no castigo. Ele havia chapado doidinho dasilva. O mano era réu-primário, foi preso em fragrante no 157.Por não delatar seus parceiros, a polícia - para se vingar – olevou para um distrito de presos jurados de morte, a maioria erajusticeiro e estuprador. Por mera perversidade os jujus, em par-ceria com os duques 13, estupraram o mano. Logo em seguidarecebeu a notícia que haviam assassinado sua mulher e, para

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aumentar a desgraça, sua família o abandonou.Diante dessas catástrofes o mano não aguentou a pressão psi-

cológica e ficou com seríssimos distúrbios mentais. Ficou maisvulnerável do que uma criança, não tomava banho, não cortavao cabelo, mal se alimentava. Estava maltrapilho e com as unhasgrandes e sujas. Esse rapaz num certo dia foi usar o boi e comeuas suas próprias fezes. “Esse mano deveria estar num manicô-mio, só Deus para ter compaixão daquela criatura”, pensei. Diasdepois, soube que acabou o sofrimento do mano, porque ele seenforcou!

O jeitinho brasileiro predominava no Carandiru. Saí do casti-go porque paguei R$ 100 aos carcereiros. Ficar preso já é ruimimaginem ficar preso dentro da prisão. Aí é cruel. Desci para oconvívio e fui morar num barraco do setor do lixo. Fazia a faxinada favela - nome dado a área atrás do pátio externo do P8. Oinício da caminhada na prisão é muito difícil. Não há coletivida-de. É fundamental adaptar-se as regras porque na cova dos leõestodos estão sendo observados. As hienas ficam só esperando umdeixa, para te derrubar e fazer nome em cima de sua pessoa. Atoda hora tem que provar que é homem. Sempre terá alguémpara testar sua fé!

Com pouco tempo percebi que ninguém ajudava ninguém, anão ser por interesse, era cada um por si e Deus pra quem qui-ser. Certa vez li uma frase escrita na parede da cadeia. Naquelemomento definia tudo que eu estava vivendo: “O cárcere é umlugar onde vivemos do passado, pensando no futuro, tentandoesquecer o presente”.

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“ DIA-A-DIA NO CARANDIRU”“ DIA-A-DIA NO CARANDIRU”“ DIA-A-DIA NO CARANDIRU”“ DIA-A-DIA NO CARANDIRU”“ DIA-A-DIA NO CARANDIRU”

FOTO JOÃO WAINER

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– CAPÍTULO 2 –Cinco meses depois

Os meses passavam lentamente. Superava gradativamenteos estágios de dificuldade da ilha. Pelo instinto fui apren-dendo as regras do quarto mundo. Só com a prática ad-

quiri a vivência. A malandragem que aprendi nas ruas em mi-nha infância estava tendo um peso relevante na balança. A paci-ência, a psicologia e a disposição também foram pesos conside-ráveis.

A teoria capitalista de que o dinheiro fala mais alto era amesma no Carandiru. Tudo era bem mais fácil e simples paraquem tinha dinheiro ou para quem usava a violência para imporo poder e conquistar adeptos e o apoio da massa em todos ossentidos. Tudo custava dinheiro. Os maus exemplos partiam dosfunças, que cobravam propinas para simples favores como colo-car nomes do rol de visitas, levarem algum detento em outropavilhão. Esses expedientes eram os mais comuns.

Tudo era vendido. Desde a cela, colchões e lençóis até alimen-tos como feijão, bacon, carne seca, ovos, alho, cebola, temperos,biscoitos e produtos de higiene pessoal entre outros. Pasmem,eram vendidos com 100% de ágio nas banquinhas improvisadasnos andares, nas lanchonetes administradas e gerenciadas pordetentos.

A moeda da cadeia era o cigarro. Um maço de Hollywood equi-valia a R$ 1. O dinheiro era contravenção. Entretanto, a corrupçãopermitia que as cédulas circulassem normalmente. Compráva-mos alimentos nas banquinhas ou pedíamos para vir no jumbo,para reforçar nossa nutrição, sobreviver com aquele bandeco

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oferecido pela casa com certeza morreríamos de inanição.O P8 estava na maior gandaia. Por incrível que pareça a mai-

oria estava feliz! Não era para menos, a cadeia estava carregadade drogas. Mais tarde descobri que sem droga a cadeia não fun-cionava. A maldita segurava a prisão e a diretoria sabia disso. Obaseado deixava a rapa calminha. A farinha e a pedra desviavamo pensamento, distraindo os presos para não fugirem.

Na teoria, a segurança era muito rigorosa. A revista na visita,minuciosa e humilhante, mas todos sabiam que a conivência defuncionários para a entrada das drogas existia.

Resolvi morar no P7 por causa de algumas vantagens. Eramenos populoso e no xadrez moravam apenas três detentos. Eutinha conhecido lá também, o pavilhão era considerado de tra-balho, portanto, mais favorável para ganhar benefícios.

O fundão estava cruel. Era uma nave fora de controle. Umverdadeiro palco de guerra, onde foram registradas mortes bár-baras. Nos primeiros meses de 1.999 cerca de 70 presos morre-ram assassinados brutalmente com golpes de estiletes na guerraentre quadrilhas. O diretor em exercício na Casa de Detençãochegou a ser demitido pelo governador do Estado, pois não que-ria ser alvo, nem fazer parte de uma guerrilha banal, sem expli-cação, patrocinada pelo sistema. Não estava vendo ninguém seadiantando ou ganhando benefícios. Os manos tiravam cadeiafeito Mandela, indo embora somente de vencida. Eu observavaos episódios cruéis com atenção. Muitas vezes a desgraça alheiaservia de exemplo para não errar. Um piolho sempre dizia: “ocrime é podre, mas não admite falha.”

Muitas vezes reclamava com Deus sobre minha situação, masquando olhava e conversava com muitos ao meu redor não de-monstrava que por dentro eu ficava super comovido. É que viamuitos paralíticos em cadeira de rodas e outros tipos de defici-entes físicos sem condições adequadas. Via também portadorade HIV e tuberculosos em estado terminal. Quantos da minhaidade ou até mais novos estavam condenados na lei dos 30, perí-odo máximo de condenação? Vários estavam esquecidos e aban-

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“SÓ OS FORTES SOBREVIVEM”“SÓ OS FORTES SOBREVIVEM”“SÓ OS FORTES SOBREVIVEM”“SÓ OS FORTES SOBREVIVEM”“SÓ OS FORTES SOBREVIVEM”

FOTO: JOÃO WAINER

donados pelos parentes. Se eu parasse para analisar, preenche-ria uma lista enorme de exemplos. Vendo essas lições de vidacheguei à conclusão de que minha situação não era a mais triste.Em certo ponto era até um privilegiado por ter uma saúde deferro e entender a real intenção do sistema, pela minha conde-nação não ser fim de carreira e por ter meus familiares por per-to, especialmente minha mãe: a dona Neusa.

Buscando minha melhoria fiz uma manobra. Vendi meu bar-raco no P8 e fui morar junto com outro mano. O Pepe da ZonaLeste, que na real era baiano radicalizado em São Paulo. Uma

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verdadeira figura. Tinha 33 anos, boa aparência, jovial, fumavacachimbo e era viciado em atividades físicas. Mais tarde, se tor-nou meu parceiro na academia de musculação. Compramos oxadrez 225-E do P7, onde na manhã de 2 de abril de 1.999, logoapós o funça abrir a tranca, alguém bateu na porta.

De dentro do barraco em voz alta pedi para entrar. Em segui-da ouvi passos e um cara de estatura mediana, cheio de tatua-gens no braço, pediu licença e foi entrando. Era um doscarrinheiros da bóia. Sem cerimônia ele perguntou quem era oCristian. Meio cabreiro, respondi:

“Qual é a fita, mano?”“É o seguinte bandido. É que me pediram para entregar um

pipa para ele. Disseram que ele mora aqui!”“Sou eu mesmo, mano.”Sem hesitar, o carrinheiro sacou um papel do bolso e me en-

tregou. Em uma das dobras estava escrito: para Cristian de Sou-za Augusto, cela 225-E. Quando abri a pipa fiquei surpreso. Erao meu truta da rua, o Dexter. Ele tinha vindo de bonde da cadeiade Bragança Paulista e estava na triagem do P2. Pedi para o manoaguardar uns minutos e me fazer um favor. Rapidamente escreviuma pipa dizendo que recebi a notícia de sua chegada na ilha.Pedi para ter calma e que assim que possível iria até a triagempara prestar assistência a ele. Depois que o mano saiu, fiqueipensativo. Desde janeiro de 1.998 não tinha notícias dele. Fiqueisabendo que estava preso no interior, mas não sabia onde.

Dexter era meu amigo de infância. Jogávamos bola noscampinhos de terra da quebrada, corríamos descalços nas ladei-ras em época de empinar pipa. Desde pequeno convivemos com omiserê. Nossas famílias não tinham condições de nos dar brinque-dos eletrônicos sofisticados. O salário mal dava pro sustento. Nas-cemos no mesmo ano de 1.973, com três meses de diferença ape-nas: ele em agosto, eu em novembro. Por certo período ele sumiuda área e foi morar em Campinas, no interior de São Paulo. Perde-mos o contato. Só vim trombar ele aos 17 anos, justamente numatreta. Um maluco com inveja queria jogar um contra o outro, mas

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nossa amizade prevaleceu e o contratempo foi superado.Na década de 1.990, meu irmão Bad – que é dois anos mais

novo que eu –, o Denis Buiu – que hoje é skatista profissional – eeu formamos um grupo de rap chamado Suburbanos. Velhos tem-pos. Foi nosso começo dentro do movimento Hip Hop. Quandofui preso em 1.994, o Dexter convidou Bad para ser parceiro devocal em seu grupo de rap o Tribunal Popular. A união foi impor-tantíssima porque nessa época meu irmão ficou super abaladocom a minha prisão, já que sempre fomos muito unidos. O rapserviu para que ele espairecesse a mente e não fizesse besteira.

Inúmeras vezes o Dexter foi me visitar na penita de Presiden-te Bernardes. Em 1.998 ele foi preso no artigo 157 do códigopenal (assalto a mão armada) e entre inúmeras penitenciariasfoi parar justamente no Carandiru. Agora de visitante passou aencarcerado. Que zica! Na época pensei: “É, o mundo dá muitasvoltas. Por isso é que não podemos cuspir pro alto senão cai nacara. Agora tenho que ver como meu truta tá”. Coloquei rapidi-nho a calça, o tênis, a camiseta e saí na missão.

Assim que passei da gaiola do segundo andar e comecei adescer as escadas, ouvi uma sequência de tiros e, pelos estampi-dos, eram de fuzil. Logo em seguida a sirene soou. Rapidamenteos funças trancaram todos os portões de acesso aos pavilhões.Chegando ao pátio externo notei que o trânsito estava suspensoaté segunda ordem. Ninguém dizia o motivo real. Imaginei quepudesse ter acontecido uma fuga ou pelo menos tentativa defuga. Mais tarde soube do episódio trágico que deixou toda apopulação revoltada e de luto pela atrocidade.

Um mano que estava tomando sol no campo do P8 viu toda acena e me contou o fato. No campo transcorria uma partida defutebol entre detentos do P7 contra os do P8, pelo campeonatointerno da FIFA, interpavilhões. O sol rachava o coco e o chicoteestralava nas quatro linhas. Uma multidão se divertia com o espe-táculo e circundava o campo de terra. Afastado da massa estava oJoy, sentado e encostado na muralha. Era um faxineiro do terceiroandar do P8. Num dado momento foi surpreendido por um banho

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de urina. Enfurecido, com a fisionomia transformada, sangue nosolhos, levantou-se a fim de saber de onde veio a brincadeira demau gosto. Foi quando olhou para cima que fitou o autor: um poli-cial. Ele estava na muralha, tendo crise de gargalhadas.

Joy pegou vários pedregulhos e começou apedrejar. Dispara-va vários palavrões contra o vigia que se esquivou e procurouabrigo na guarita. Vendo que o mano não parava o policial já emestado revoltoso, empunhou, engatilhou e mirou seu fuzil. Aomesmo tempo berrou para o mano a fim de intimidá-lo:

“Pára ladrão! Pára, senão vão atirar em você! Pára páaaara!”Mas Joy estava cego, com os nervos abalados e exaltados.

Xingava o PM. Não quis acatar a ordem. O mano que me contoua cena disse que ficou mudo, atônito e com os olhos arregaladosquando assistiu a execução sumária. Joy foi mais uma vítima dodespreparo emocional, psicológico e o instinto assassino de mui-tos PMs. O militar friamente apertou o gatilho. O projétil de 762viajou e atingiu a cabeça, mais precisamente entre o nariz e osolhos. Nossa! O mano ficou feio na foto!

A garrafinha estraçalhou e se pá foi morte instantânea. A víti-ma só teve tempo de dar um grito estridente, agonizante e foicaindo em câmera lenta. O rosto ficou desfigurado, pedaços damassa cefálica, restos do globo ocular, chumaço de cabelos eparte da arcada dentária caíram ao redor do corpo. O sangueescorria no chão. Joy, segundo o mano me contou, ainda tentoureagir, mas o corpo começou a tremer e se debater. Nesse mo-mento a partida de futebol foi interrompida pelo corre-corre. Foio maior auê, muitos em pânico procuravam abrigo. Quando caí-ram em si, ficaram paralisados com a cena. Os mais serenos cor-reram tentando socorrê-lo, mas nada puderam fazer. Alguns mi-nutos depois Joy deu o suspiro derradeiro.

Assistir aquela tragédia e a facilidade com que um gambéalgoz pôde tirar uma vida foi como acender uma chama no com-bustível. A revolta foi geral. A massa, munida de palavrões epedregulhos, tentou atingir os policiais na muralha sem êxitoalgum. A reação foi rajadas de fuzis e bombas de efeito moral

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para intimidar e dispersar a multidão enfurecida. Com inúmerasdesvantagens os detentos foram vencidos pelo cansaço. O gambéfoi indiciado por homicídio - artigo 121 do código penal - e jul-gado pela polícia militar. Por causa do triste episódio, a cadeiaficou de luto. Um clima sombrio e sinistro tomou conta da ilha.O trânsito permaneceu suspenso e os funcionários ficaram emalerta temendo mais revolta. Nos finais de semana o trânsitointerpavilhões era suspenso por ser dia de visitas. Por isso, só nasegunda-feira pela manhã consegui atravessar para o P2. Leveipara o Dexter alguns produtos de higiene pessoal, cigarro, bola-cha, entre outras coisas. Quando cheguei ao guichê da triagemnão consegui localizá-lo entre os vários que se encontravam ali.Em voz alta saudei a todos:

“Salve, salve rapa! Aqui tem um mano chamado Dexter ouMarcos Fernandes de Omena?”

Sem hesitar, Dexter se levantou e veio em direção ao guichê. Oar de satisfação foi mútuo em nosso semblante. Apesar do lugar, égratificante encontrar um amigo verdadeiro. Naquele momentosenti que Dexter ficou aliviado em me ver. Automaticamente tivea certeza de que ali estava um forte aliado para somar na intensaguerrilha. Nos cumprimentamos com entusiasmo e demos mar-gem para uma longa conversa cheia de confidências. Contei omotivo pelo qual não apareci antes e logo em seguida perguntei:

“E aí, truta? Como cê tá? Tá firmão? Tá vindo de onde? Mózica hein, mano, a gente se trombar aqui nesse lugar?”

Dexter respondeu:“Aí, truta! O barato é loco mesmo ó! Tô vindo de Bragança. Acon-

teceu uma fuga lá, tá ligado? E eu fui nessa também. Mas aí dei umazar muito grande e fui recapturado no dia seguinte. Não fiqueinem 24 horas na rua. Foi cruel! Voltei pra cadeia, é mole? Poucosdias depois me mandaram pra cá. É cruel truta, fim de carreira!”

Balancei a cabeça concordando e indaguei novamente:“Você chegou que dia na ilha?”“Na quinta-feira truta. Por incrível que pareça dia 1o de abril”,

respondeu.

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“Nossa! Logo no dia da mentira! Você não se impressionoucom o tamanho da cadeia? Qual foi sua reação?”

Aí ladrão / essa aqui é sua nova casa / eu mando e você obe-dece / se tiver inimigo avisa logo e vai pro cinco, certo? (Trechoda música “Triagem” - Dexter 509-E).

“Foram exatamente essas palavras que ouvi de um funça alto,bem vestido, porém ríspido, quando desci do bonde e pisei pelaprimeira vez nas dependências do Carandiru. Confesso que meimpressionei com o tamanho do condomínio fechado. Fiquei meiosem reação. Queria acreditar que tudo isso era uma grande men-tira, já que a data me permitia pensar assim. É, irmão, tive quecair na real! Olhei para o alto e percebi o quanto era verdadeiroaquele momento. Ver aquela muralha me causou fobia. Ver aque-les ratos cinza em cima dela, armados com fuzis AR-15 me fezreviver o filme Alcatraz. Só que nessa produção eu era o ator quevivia na vida real o papel de prisioneiro sem bala de festim, semdublê e sem maquiagem. Não precisei ser muito inteligente paraperceber que não é só devagar que se vai longe. Com dinheiro sevai também. Corrupção total.”

Realmente, o mano Dexter tinha razão, concordei e em segui-da indaguei:

“E os funças, truta? Pagaram muita raiva pra você?”Com detalhes, ele continuou me contando:“’Aí ladrão! Mãos pra trás e me acompanhe!’ É truta, essa

frase vai ficar pra sempre na memória. Nesse momento, em si-lêncio, pedi proteção para Deus. Era chegada a hora de conhecero inferno por dentro. Um, dois, três. Quatro portões foram sufi-cientes para chegar ao setor de controle geral. Na sequência,tive que cumprir todos os requisitos de praxe da inclusão nacasa. Por fim, me deram o prontuário nº 164.953. Me tornei maisum gado marcado.”

Entusiasmado no papo, prossegui:“Mas aí, como você me achou? Foi difícil?”“Aí mano, não foi difícil não, tá ligado? Tem um conhecido

que chegou comigo e sabe como funciona. É o Kong, um patrício

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sangue bom. Nossa amizade iniciou quando ele me viu fumandoum cigarro. O mano me apresentou o japonês que por sua vezme orientou a escrever uma pipa com seu nome completo. Eledescolou o pavilhão e o xadrez que você estava. Na sequência,ficou na responsa de entregar o pipa, entendeu?”

“É, pode crê. O mano foi firmeza, pediu para o carrinheiroentregar o pipa na minha mão.”

Eu mostrava interesse no assunto e o Dexter continuou nar-rando sua chegada:

“Já era final de tarde, começo de noite. O sol sumia atrás do P2.Exausto e com muita fome, sentei em um dos bancos existentesno pátio interno. Vários triagens colaram a meu redor e ficamostrocando idéias. Mesmo assim me senti um forasteiro num terri-tório hostil. Por dentro estava receoso por não saber qual seriameu destino. De repente, um GP (guarda penitenciário) aspera-mente chamou todos os triagens e ordenou para formarem umafila. Em seguida nos escoltou até a triagem no terceiro andar.”

Dexter me pegou de orelhada, pois há vários dias não tinhaninguém para desabafar. Deixei o mano à vontade, já senti na peletodo o sofrimento que ele estava passando. Nessas horas o apoioé super importante. Na prisão nunca podemos esquecer o dia deamanhã. Estiquei mais a conversa e lhe fiz mais uma pergunta:

“Mas aí truta? Tem alguém aqui trincando com você e te dan-do uma assistência?”

Dexter continuava o mesmo, não mudou nada. Sempre extro-vertido, falando gíria. Gesticulando, ele me disse:

“É o seguinte truta. O Kong, aquele patrício que me ajudou ate encontrar, me apresentou quatro malandros ali do segundoandar da cela 217. Os manos me trataram no maior respeito É oPastel, o Maurício, o Gegê e o Tinda. Eles são lá da Bela Vista,exceto o Gegê que é do Mangue, em Pinheiros. Os manos trinco.Eles trocaram mó idéia com um funça, deram uma merreca e ofunça liberou a gente. Paguei uma ducha quente, tomei um caféde responsa, depois almocei com os manos. O Kong até fumouum baseado com os manos. Eu não quis. Tudo isso foi no segun-

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do dia depois que atraquei na ilha. O Maurício até fez um correpra gente ir até o pavilhão que você mora, mas por causa datragédia com o Joy, ficou impossível sair daqui. Passamos a tar-de de sexta-feira, só contando história. Você tá ligado como é.Ladrão vive de lembranças. Pelo menos nessas horas estamoslivres. Passei o final de semana trancado. Os manos chegô comi-go, mas te confesso truta, apesar do lugar tô feliz em revê-lo ever que você está bem. Não via à hora de te trombá, foi um gran-de alívio ouvir a sua voz.”

Há quanto tempo não ouvia palavras de um amigo. Às vezessentia mó vontade de desabafar com alguém. Muitas vezes esta-va agoniado, com um aperto no coração, mas em quem confiar?Convivendo diariamente com a maldade é impossível não termaldade. O dia a dia me ensinou assim, sempre ter um pé atráspara evitar decepção e traição, porque quem vê cara não vê co-ração. Enquanto Dexter retomava o fôlego, pediu para eu falarum pouco sobre mim. Sem rodeios fui falando:

“É o seguinte, truta, no último ano minha vida deu maior revi-ravolta. Tenho que dar graças a Deus por estar vivo. Foram muitasloucuras, aventuras desafiando a morte. Você se lembra? Em 98,tava firmão na colônia de Mongaguá. Meu intuito era dizer aocrime nunca mais. Tava trampando em Santos numa oficina me-cânica. Concluí os exames criminológicos para o RA (Regime Aber-to). Tava só no aguardo da liberdade para a felicidade ser comple-ta. Numa segunda-feira saí para trampar. A pedido de meu patrãosubi a serra para comprar algumas peças de carro na Avenida doCursino. Aproveitando minha vinda a São Paulo, passei antes emcasa para ver minha mãe que tava grávida de minha irmã caçula,a Nithiely. Na real um perdidinho básico. Fiquei cerca de uma horaem casa, despedi do pessoal e quando fui sair, minha mãe pediu:‘Filho pelo amor de Deus, faça o que tem que fazer e volte para acolônia. Tô com um mau-pressentimento’. O mal da gente é nãoouvir nossos pais. Naquela hora, até pensei: ‘Nossa, minha mãepesa até umas horas’, mas respondi para ela não esquentar e quesó ia resolver uma parada e voltar para colônia.

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“A despedida foi com um beijo no rosto. Minha mãe estavaapreensiva. Subi as escadas de casa rumo à rua. Desci a ladeira,resolvi parar na padaria para comprar chiclete, quando trombeio David. Foi uma surpresa revê-lo, pois há muitos anos não o via.A conversa foi breve. Quando me despedi, ele perguntou paraonde eu iria. Ofereceu carona. Aceitei. Elogiei a nave de fuga eentrei no golf prata. Foi quando recebi uma proposta indecente.O David me chamou para um assalto: ‘Jão tem uma fita ali mómamão. Ta faltando um mano pra cena. É uma fitinha dada pe-los pé-de-porco do coban. Tem uns R$ 200 mil, pra dividir emquatro, dá pra gente se levantar ou não? Ainda mais agora, cê tasaindo de cana, ninguém não dá nada pra ninguém. Tem quecorrer atrás neguim, por que agora você é um ex-presidiário. Asociedade vira as costas mesmo, mano. Fecha cum nóis, que édaquele jeito. Nosso lema é um pelo outro, se pam nóis trocacom os zomem até a última bala. ’”

O sonho de todo criminoso é fazer a boa, eu também acredi-tava nessa lorota. Mas o crime é um mundo de ilusões, costumodizer que é uma rosa que esconde seus espinhos. Em princípiofiquei meio cabreiro, mas não levei em conta meu sexto sentido.A maldita ambição fez os meus olhos brilharem. Agi pela emo-ção, aceitei o convite e já sentado no golf puxei o cinto de segu-rança, senti mó aperto no coração, me arrependi amargamentepor não ter ouvido minha mãe, mas já era tarde. O David ligou ocarro, acelerou, seguimos em frente. Nem sabia, mas estava numcabrito com várias armas e o vacilão do David pagando de gati-nho. Continuei:

“Ele sacou do bolso um celular. Na época, poucas pessoas ti-nham acesso a essa tecnologia. David ligou para os outros par-ceiros que já estavam na sintonia, depois ligou para o pé-de-porco que confirmou a quantia deixada pelo carro-forte. Logona outra quebrada encontramos os manos para uma breve reu-nião de acerto de detalhes, que chamávamos modus operantis,estratégia de entrada, a função de cada um, rota de fuga. O gru-po estava fortemente armado com pistolas, matraca, fura, cole-

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tes e até uma granada. Pouco depois entramos nos carros, Davide eu no cabritão e os outros aliados numa van adesivada de umaempresa. Saímos para a missão rumo ao coban na AvenidaJabaquara. Próximo ao metrô Saúde parou num farol. Segundosdepois ouvimos sirene de viatura. Nesse momento David se apa-vorou, os zomens desconfiaram da reação do rapaz que abriu aporta do carro e saiu à milhão no meio do trânsito. O camburãoda rota não iria nem nos parar, mas vendo o vacilo do David quetitubeou, veio para cima daquele jeito, já atirando.”

E não tinha como não dar errado.“Meus batimentos cardíacos aceleraram. Tava na cena do cri-

me, em flagrante ainda. Saquei minha quadrada, abri a porta,saí me esquivando. Dei alguns disparos para dispersar, comeceicorrer, pânico geral, aquele auê, pessoas apavoradas, correndo,gritando, carros freando. A troca de tiros começou a ficar inten-sa, eu tentava a todo custo escapar, mas foi em vão, sem chances.Fui pego e autuado no artigo 157 e resistência à prisão, segundoo código penal, e o David conseguiu fugir é mole? Resultado:carro roubado e eu no semi-aberto. Os zomens não quiseramacreditar na minha versão, nem muito menos que eu era inocen-te. O couro comeu quando pegou em meu bolso a carteirinha dacolônia. Me bateram até umas horas. Eles queriam que eucaguetasse a goma do David. Infelizmente fui coagido a seguraro BO porque Cagueta morre feio na foto, entendeu?”

Dexter com a mão no queixo, falou balançando a cabeça:“Ham, ham. Entendi tru.”“Irmão, peguei 16 anos de condenação. Há poucos dias ganhei

nove anos na apelação devido as falhas do processo. A natureza éjusta, fui preso nesse BO e o David nem me mandou uma bituca,me tirou grandão. Só que ele se envolveu numa quadrilha lá daZona Sul, os manos foram fazer um assalto. O prego tava no cava-lo e na hora que a chapa esquentou, ele se jogou e deixou osmanos falando, mó desacerto! Os caras caíram em flagrante nocoban. Só que dessa vez a falha de David não teve perdão. Cê táligado. Sem massagem os manos mandaram um pipa da cadeia

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pra rua, os parceiros dos assaltantes não mataram David, masderam vários tiros de ponto 40 nas rótulas e na coluna. Infeliz-mente hoje está amargurando em uma cadeira de rodas.”

Antes mesmo que meu amigo tentasse falar, prossegui:“Fiquei descabelado. A Luciana tava grávida de dois meses da

minha filha Hemellyn Lawryn. Fui preso no 16 ª DP de São Pau-lo. Fiquei durante um mês e fui de bonde para o 44° DP e fiqueipor lá três semanas. Aí meu cavalo marchô, trutão! Fugi pelotatu com mais nove caras. Foi mil grau, coisa de engenheiro.Demoramos dois dias para abrir o buraco com a matraca, depoiscavamos 13 metros debaixo da terra. No interior do tatu a gentesó se movimentava engatinhando. O túnel era turvo, abafado e oar era escasso. Em princípio me causou fobia, mas meu desem-penho valeria minha colocação na fuga.

“O que mais me causou aversão e agonia foi quando encontramosvários insetos como baratas, minhocas, inclusive ratazanas, fezes eágua suja de um cano de esgoto que se rompeu. A maioria dos ma-nos era experiente. Eles planejaram, calcularam e saímos no lugarexato, mas o diâmetro para descer no buraco era de apenas 30 cen-tímetros. Só deu para fugir de shorts e sem camisa. Saímos rastejan-do no estacionamento das viaturas no fundo, pulamos um muro demais ou menos três metros de altura, uma verdadeira prova de triátlon.Valia tudo pela liberdade, isso aproximadamente às 3h.

“Imagina negão, o bonde dos vida loka correndo pelas ruas.Pulamos para a linha do trem, sem parar continuamos correndodescalços nos trilhos, sujos de terra, até chegar numa favela. Foiaí que resolvemos nos dividir e três manos foram comigo, nãoconhecia a região e muito menos onde tava. A sorte tava do meulado. Consegui até escapar de um cerco de viaturas, pulei váriosbarracos e me escondi atrás de um. Depois cheguei numa viela,bati palmas num barraco, pedi ajuda. Um desconhecido me deuuma calça, uma camiseta e um chinelo velho. Saí correndo e meescondi num matagal. Só saí de lá por volta das 8h da manhã,quando vi um monte de trabalhador indo pro serviço, me envol-vi no meio do povo, abordei um táxi e fui embora pra casa, coisa

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de cinema, graças a Deus mesmo com os hematomas e os pésesfolados cheguei vivo no mundão.

“Pensa: tudo dando certo, eu tava sem freio de mão, comeceia meter uns BO. Ganhei uma grana, me levantei de novo, com-prei uma nave, meti rodas aro vinte, aí cê sabe né, vários rolês,praia, várias cachorras. Ajudei minha família, tive uns desacer-tos, tomei uns botes dos tiras e fui obrigado a fazer uns acertos.No dia 5 iria fazer à boa. Ia derrubar um carro-forte, só a minhaparte era de R$ 300 mil reais. Iria ficar sossegado, mas me atra-saram. Um zé povim me caguetou pro Depatri. Fui pego de sur-presa e voltei recapturado depois de três meses. Nem acreditei,nem senti o gosto da rua, meu castelo caiu. Mas o mais impor-tante é ta vivo. Logo a gente atravessa as fronteiras novamente.”

Dexter, viajando na idéia, disse:“Sumemo, mano! Deu mó trampo pra polícia, hein? Mas e

agora? Parou com o crime, deu um tempo? Já sei ganhouuma moeda e tá rico.”

Interrompi dizendo:“Que dinheiro que nada, só arrumei cadeia e inimigo! O bara-

to é loco truta. Fiquei meio revoltado por ter sido condenado hátanto tempo, a gente nunca aceita a correção de ninguém. Oprimeiro BO confesso que fui eu, mas o segundo tava de laranja.É difícil reconhecer nossos erros e ser homem de dizer que ocrime não compensa! Por algum tempo me deu vida boa, grana,ouro, carango do ano, moto, curtição, mulheres, enfim tudo quejamais teria condições de ter trabalhando. Mas parece um di-nheiro amaldiçoado. Hoje não tenho nada a não ser cadeia pratirar. Perdi tudo pros ladrões dos ladrões, para a polícia e paraum advogado, um tremendo doutor areia. Às vezes penso que tôfazendo minha família sofrer demais. Sabe, todos aqueles quediziam serem meus amigos nem uma carta me mandaram. Hojeem dia quem trinca comigo são meus familiares, realmente meamam, não há interesse. Mano, minha filha nasceu, é minha jóiarara, tem apenas seis meses, precisa tanto de mim. Que exemplopoderei dar a ela sendo um presidiário? Às vezes penso em pa-

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rar, mas será que a sociedade me dará uma nova oportunidade?Não sei, tenho minhas dúvidas. Por enquanto é muito cedo pradizer se parei ou não. Nós nem sabemos se sairemos vivos. Sintomó vontade de viver honestamente. Minha família sentiria mai-or orgulho de mim. É, mas o amanhã só pertence a Deus.”

Dexter concordou e mudou de assunto perguntando:“Mas aí? Quem tá vindo te visitar?”Com os olhos brilhando respondi:“A Dona Neusa trinca, né? São vários anos me acompanhando

nas caminhadas, não falta uma visita. Vêm sempre com minhaprima Célia, meu irmãozinho Jonathan e minha irmã caçula aNithiely. O Bad vem sempre que pode e traz meus sobrinhos, oJeron e a Sttephany. A Luciana também tá trincando, traz minhafilha Hemelly Lawryn de 15 em 15 dias, tá mó gracinha. É a minhacara. O meu pai tá firmão, mas é difícil ele vir me visitar devido àscorrerias do trampo, mas sempre me ajuda na medida do possí-vel. Minha família me dá muita força, em minhas orações diáriasagradeço a Deus e peço paz, saúde e proteção para todos eles.”

Depois desse papo, disse ao Dexter que tinha uma vaga noxadrez onde eu morava, mas o auxílio que os manos lhe deramficou uma gratidão e decidiu ficar provisoriamente no P2, xa-drez 404. Despedi-me do parceiro e retornei para o pavilhão.Como de costume, todo entardecer eu subia no quinto andarpara espairecer a mente. Olhei pela ventana e celebrei o final demais um dia. A brisa soprava em meu rosto. Logo viajei numbando de pombos que voava em sincronia e fazia o cruel con-traste com a sentinela na muralha. Mais uma tarde caía no Vietnã.Agradeci a Deus por mais um dia. No horizonte cor de anil, umespetáculo majestoso que só a natureza pode proporcionar. Osúltimos raios do sol reluziam feito ouro. Sua cor assemelhava-sea uma gema de ovo. Um presente para os meus olhos. Já haviaperdido até a conta e mais uma vez assistia o metrô itinerárioJabaquara passar. Pensei: “Hoje entendo que a natureza dos cri-mes que cometi me fez parecer uma pessoa violenta. Mas acreditoque a pessoa que mais prejudiquei fui eu mesmo.”

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42“BRINCA“BRINCA“BRINCA“BRINCA“BRINCAVVVVVA COM MEUS MANOS DE POLÍCIA COM MEUS MANOS DE POLÍCIAA COM MEUS MANOS DE POLÍCIA COM MEUS MANOS DE POLÍCIAA COM MEUS MANOS DE POLÍCIA

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43POLÍCIA E LADRÃO...”POLÍCIA E LADRÃO...”POLÍCIA E LADRÃO...”POLÍCIA E LADRÃO...”POLÍCIA E LADRÃO...”

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– CAPÍTULO 3 –O rei da favela

á vai o malandro dono do mundo”, era exatamente comona letra da canção da Sonia Santos que eu me sentia. Euqueria dar uma solução rápida e fácil para todos os meus

problemas. E só o crime poderia me ajudar. Só o crime poderiamudar minha vida de uma hora para outra.

Tudo começou como em uma brincadeira de criança. Comapostas se eu teria ou não coragem de roubar algo no supermer-cado sem ser notado. Para provar que eu era capaz, saí da lojacom um pacote de bolacha sem pagar. Eu ainda era criança, maso sucesso nesta ‘missão’ foi o incentivo para a prática. A aventu-ra, o desafio e a sensação do poder fascinam. E histórias como aminha se repetem todos os dias.

Na carreira do crime, comecei como trombadinha e chegueiao topo da profissão perigo: assaltante de banco, também co-nhecido como 157. Roubar banco exigia mais inteligência do queforça. Nossa quadrilha era formada, normalmente, por sete pes-soas. Para tomar um coban, contratávamos um maluco que rou-bava o carro que seria usado no dia do assalto. A preferência éque ele fosse, no mínimo, 1.8 e tivesse quatro portas.

Para sucesso da operação, realizávamos três reuniões. Aprimeira era para discutir a estratégia da entrada no banco,a rota de fuga e definir as funções de cada componente dogrupo. Todas as operações tinham as funções de cavalo – pi-loto de fuga –, o linha de frente – anunciava o assalto e ren-dia os vigias –, a isca – normalmente uma mina gostosa quedistraia o pé de porco.

“L

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Durante a segunda reunião, a rotina do banco era passada alimpo. Checávamos a quantidade e o horário de troca dos segu-ranças, a hora de chegada e saída do carro forte, quem eram ogerente e o tesoureiro, os dias e os horários de maior movimen-to. No último encontro escolhíamos as armas, treinávamos tiros,definíamos o horário do assalto, locais de esconderijo e repassá-vamos todos os modus operandis.

Saíamos com dois carros: um quente e um frio com placaadulterada. Preferíamos carros utilitários, como Kombi, Fiorinoe van, geralmente com adesivos de empresas, que mandávamosfazer. O cabrito estacionava na porta do coban. No carro quente,apenas o motorista carregava o armamento até próximo ao ban-co. Neste local, as armas eram entregues discretamente aos ban-didos que estavam dentro do carro frio.

Cerca de dois quarteirões antes da entrada do banco, os inte-grantes desciam, se separavam e iam a pé até a agência. O pri-meiro a entrar era o ladrão de boa aparência, com uma arma debrinquedo escondida. Depois entrava a mina de saia, com duasarmas Glock nas cochas. Cada pistola tinha apenas uma bala naagulha, para não ser detectada pelo alarme da porta giratória.

Por último, para distrair os seguranças, entrava o mais feinhode todos. Ele roubava atenção ao tentar passar pela giratória commolho de chaves, celular, moedas. Era nesse momento, que a minarendia o gerente e o cara de boa aparência, já na fila do caixa,Pegava um refém e dava voz de assalto. Com os vigias rendidos,era só pegar a grana nos caixas e, se desse tempo, no cofre. Assal-tar era o nosso trabalho e para que tudo desse certo, o tempomáximo dentro da agência não podia ultrapassar dois minutos.

A fuga era a maior adrenalina. Toda a quadrilha entrava nocabrito que circulava por, no máximo, dois quarteirões, quandoele era substituído pelo carro quente. Alguns quilômetros de-pois, o bando se separava e só se reencontrava no esconderijopara a partilha do roubo.

A desobediência gera abismo sobre abismo, mas a pegada atéentão era ser notado. Deixei de ser o “zero à esquerda” e me

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“O CRIME CRESCE“O CRIME CRESCE“O CRIME CRESCE“O CRIME CRESCE“O CRIME CRESCE

SEM PRECEDENTES”SEM PRECEDENTES”SEM PRECEDENTES”SEM PRECEDENTES”SEM PRECEDENTES”

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tornei “o cara” em pouco tempo. Virei referência, espelho daquebrada. Minha auto-estima foi lá para cima e passei a andarde queixo empinado, me achando.

Ascensão, dinheiro fácil, o “vibe” do momento. Eu era o maisrequisitado por todos, principalmente pelas mulheres. Elas que-riam diversão, glamour, luxo. Acreditavam nessa ilusão do “fimdo sofrimento”, de uma vida menos dura proporcionada pelodinheiro e pela companhia de um cara respeitado. As brigas parao posto de titular ao lado de um bandido eram freqüentes, maselas sempre sabiam da existência de filiais.

Vagabundo adora ostentar, se exibir. Ama pagar de pá. Eu nãoera diferente. Acreditava que com isso estava ganhando respei-to. Eu era o rei da favela, achava que estava em uma redoma devidro, com todos me olhando. A vaidade trouxe a cegueira e eupensava que estava abafando. Na real, o que eu chamava de res-peito não era nada além de medo.

O que vem fácil vai fácil, a conquista sem sacrifício não temvalor. Permaneci dando bandeira. Pulseira de ouro no pulso direito,cordão com pingente de crucifixo no pescoço. Quase 40 gramas deouro 18 quilates. Usava relógio original Bulova, camiseta BrunoMinelli, perfume Eternit, calça jeans Calvin Klein, o tênis Nike maiscaro que tinha nas lojas, óculos de sol da Armani. Sem contar anave zerada brilhando, cor preta, filmada, com rodas de liga - levearo 19 cromada, sonzera que mais parecia um baile ambulante. Ocarro era um Passat Pointer, a caranga do momento. Tive tambémvárias motos RD-350, CBR-450, Tenereé 600 e 7 Galo.

Quando chegava ao bar, gostava de ser notado. Para aparecerpagava uma rodada de cerveja para todo mundo, mandava bus-car vários quilos de carne da melhor qualidade, algumas garra-fas de uísque e energético. O churrasco seguia até altas horas.

Mas tudo indicava que não iria ter um desfecho feliz. Só eunão queria enxergar. Minha mãe desconfiava que eu estivesseenvolvido com o crime, mas eu dizia que estava fazendo rolo decarro. Ela dava conselhos, procurava me alertar, mas eu, feitoum cavalo com cabresto, não conseguia enxergar além. Vários

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manos que cresceram comigo no sofrimento não se corrompe-ram. Eu segui o outro caminho.

É dificílimo lidar com a vaidade, orgulho e o poder. Quemnão tinha um real no bolso, passou trazer alegria material parafamília. Tudo que fazia meus olhos brilharem enquanto assistiaa TV, eu já podia comprar. Meu hobby predileto era gastar noshopping, me sentia o Rei da favela com um praquezão de no-tas graúdas no bolso, as vitrines me fascinavam, realização desonhos, saia das lojas com um montão de sacolas, no passeioestava incluso uma paradinha numa lanchonete, cinema, motelvivendo a vida a mil.

Por incrível que pareça, minha quadrilha fazia o social.Os carros serviam de ambulância, distribuíamos cestas bási-cas para os necessitados, remédios, ajuda aos familiares dosmanos que estavam presos, bancávamos os advogados dosparceiros que caiam num BO.

Quando um macaco vê muita banana se lambuza. De que adi-antava ter grana e não ter mais sossego. Era um dinheiro amal-diçoado. Quanto mais eu ganhava mais eu gastava. O dinheiroque eu tinha não correspondia à realidade financeira do bairroque morava e dos ambientes que freqüentava, muito menos quan-do ia para metiês mais requintados. Fomos caguetados por nósmesmos, pela falta de etiqueta, o modo de agir, proceder, o so-brenome. Só mais tarde percebi que nem os mais ricos esbanja-vam tanto quanto eu, elemento suspeito.

O outro fator para minha decadência é que nos dia de hojeninguém quer ver ninguém bem. Recalcado e X9 é mato. Na que-brada, tinham vários gansos camuflados, que não se intimida-vam devido a proteção da polícia. Logo a casa caiu pela primeiravez e tive que fazer um acerto com os ladrões de carteirinhapara não ir preso. Daí por diante já fomos detectados, ficamosescrachados, não tivemos mais sossego.

A casa caiu neguim, não existe final feliz para o crime. É a lei dasemeadura você colhe o que planta é inevitável. Mundo de ilusão,sonhos e o castelo de areia desmoronaram no rei da favela.

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– CAPITULO 4 –Do crime ao sucesso

Muitas vezes me questionei: “será que a vida do crimecompensa?”. São tantos os porquês que caí em uma ine-vitável introspecção. Grande parte das drogas e arma-

mentos de última geração apreendidas no Brasil são de fabrica-ção estrangeira. Qualquer um pode ter acesso a essa tecnologiabélica, na real um bandido pé de chinelo que negocia na perife-ria é apenas a pontinha desse iceberg, homens do alto escalãoque usam terno e gravata estão por trás disso. Boa parte dosórgãos públicos nomeados para defesa e proteção do cidadão,está falida, corrompida. Ela extorque os criminosos, faz negoci-atas e financia a indústria do crime.

Tenho convicção que ninguém nasce criminoso, o ser huma-no é condicionado. A periferia hoje é a senzala de ontem, só quecom uma diferença: há brancos e negros no mesmo sofrimento.Os métodos de escravidão de hoje são sofisticados, não há esco-lha de cor. Os poderosos utilizam a periferia como um laborató-rio de experiências. Inserem o álcool e as drogas para nos viciar,patrocinam armamentos e munições para nos destruir.

Hoje, vejo vários debates e campanhas antiviolência, mas amaioria dessas pessoas não tem conhecimento de causa. Um pro-blema nunca será resolvido com soluções paliativas porque aprincipal causa está na raiz. Há muitos e muitos anos a violênciaexiste na periferia. Só que agora ela desceu o morro e chegou aoasfalto. Como conseqüência, atingiu todas as classes sociais.

Quem mora na periferia vive indiretamente ligado ao crime.Vejo por mim. Passei minha infância numa região pobre de São

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Bernardo do Campo, mais precisamente no bairro Jardim Calux.A vila era constituída de construções modestas com poucas casasde alvenaria. A maioria eram barracos de madeira. Poucas ruasasfaltadas e muitas ruas de terra, mal iluminadas. Faltavam águae saneamento básico, muitos morriam de inanição e epidemias.

Nossa casa era humilde como nós. A situação financeira nãonos dava luxo, nem comodidade. A construção era de alvenaria,mal acabada, num terreno de 10 por 25 metros quadrados, bemacidentados. Possuía três cômodos e um banheiro nos fundos.Na frente existia um quintal enorme com algumas árvores frutí-feras. Residíamos na casa meu pai, minha mãe, meu irmão maisnovo Cleiton e eu.

Meu pai, seu Tião, era mestre de obras autônomo. Minha mãe,a Dona Neusa, era dona de casa e trampava como diarista fazen-do faxina na casa das madames em troca de migalhas para com-plementar a renda familiar. O sonho dela era ver a gente forma-do, quem sabe um engenheiro, médico ou advogado. Minha co-roa havia sofrido de montão com o alcoolismo de meu avô, do-ença comum nas periferias e não tratada. Inúmeras tragédiasem família a indústria do álcool promove.

Quando tinha doze anos meus pais se separaram, após quase16 anos de casamento. Éramos muito apegados ao nosso pai.Não queríamos e nem conseguíamos entender. Foi um grandeabalo. Essa fase foi dificílima. Em uma separação conjugal quemperde mais são os filhos, a partir daí a família se desestabiliza. Éaí que mora o perigo, nessas falhas de atenção, carinho, ausên-cia, o crime surge como melhor amigo das crianças e adolescen-tes. Muitas vezes alguns sites de relacionamentos na Internet eas más companhias assumem a função da figura paterna.

Meus pais sempre tiveram que trabalhar muito ficavam o diatodo longe de casa. Era tudo muito precário. Eles não tinhamestudo. Isto facilitou que ficássemos vulneráveis ao crime, a pro-miscuidade. Vi muitas garotas, da minha idade na época – entre12 e 13 anos – engravidarem e garotos se tornarem pais quandoainda queriam brincar. Depois do primeiro filho, vinha o segun-

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do e até o terceiro em intervalos muito curtos de tempo. Imagine aconseqüência de situações como esta. Como será a geração futura?

Desde pequeno eu tinha uma personalidade marcante. Erateimoso e rueiro, como diz minha mãe. Tais travessuras me cus-taram muitas surras e choros como qualquer criança. Nessa épo-ca já despertava meu instinto de guerreiro. Era fascinado poraventura. Nunca fui parasita, acomodado. Eu e meu irmão catá-vamos ferro-velho para ajudar no orçamento de casa e trabalhá-vamos como ajudantes do nosso pai. Nas ruas aprendemos a leida sobrevivência, aliás, aprendemos o que é bom e o que nãopresta. O centro comunitário (sede do bairro) não tinha incenti-vo. Servia de ponto de encontro de aposentados e idosos.

Nosso bairro não oferecia muitas opções de lazer. Tinha so-mente quatro campos de terra ou brinquedos, brincadeiras im-provisadas pela pivetada, como soltar pipa, jogar bolinha de gude,jogar pião, esconde-esconde, caçar com estilingue, andar de car-rinho de rolemã, brincar de polícia e ladrão. Meu sonho era serjogador de futebol e jogar com a camisa oito na seleção brasilei-ra. Sonhar é bom e não custa nada. Os anos passaram, eu crescie esse sonho foi ficando para trás em decorrência da realidade.

Na região existia apenas uma escola estadual, a Escola Esta-dual de Primeiro e Segundo Grau Professora Pedra de Carvalho.Ela atendia três bairros que ficavam ao seu redor. Assistênciamédica só no PS (Pronto Socorro) localizado no centro da cida-de. São Bernardo vivia o caos na saúde. Os botecos batiam orecorde, aproximadamente um em cada esquina. O tráfico tam-bém se expandia feito erva daninha, recrutando cada vez maissoldados. Entre os envolvidos estavam amigos de infância, co-nhecidos de classe e vizinhos. A prática rendia bem mais do queo salário de fome oferecido pelo governo.

Os negócios ilícitos são um grande atrativo, fascinam eindubitavelmente são um mundo de ilusões. Defino o crime coma seguinte frase: “O crime é uma rosa que esconde seus espi-nhos”. Infelizmente a maioria dos manos que cresceu comigo seenvolveu. A necessidade ou o sonho de consumo faziam os olhos

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brilharem. Quem tinha os melhores tênis, roupas de grife, reló-gios da moda, cordão de ouro, caranga equipada, moto e as maislindas minas, eram assaltantes, traficantes ou quem tinha poderaquisitivo. O jovem é induzido a ser consumista em potencial.Vivemos numa sociedade do ser e do ter, mas o que prevalece é ado ter. Através de alguns meios de comunicação podemos serinfluenciados, porque a televisão é a pior doutrinadora e todosnós temos uma dentro de casa. Ela vende ilusões e ganha mi-lhões, nos faz viver num mundo surreal, dita comportamento. Amensagem subliminar contida em alguns comerciais tem grandepoder de persuasão. Esse quadro dificilmente mudará. Quem nãoquer ser reconhecido e bem sucedido? É o capitalismo selvagem:você vale o quanto pesa. Se você não tem, as pessoas te olhamcom menosprezo.

Um bairro carente se torna marginalizado, o povo vive ao deus-dará. Para esquecer as frustrações e os problemas, muitos en-chem a cara de cachaça. Os de mente mais fraca se envolvemcom as drogas, começando com o álcool depois a maconha, acocaína e por final o crack, mais conhecido como pedra. Os efei-tos são devastadores. Os manos desandam porque essa drogacausa dependência física e mental em pouco tempo de uso.

Perambulando na nóia os viciados roubavam varal, os comér-cios da área e até os coitados dos trabalhadores. Quando come-çavam a dever muito para os traficantes e não tinham como pa-gar, eram executados com vários tiros na cara. Grande parte doscasos não era elucidada, pois prevalecia a lei do silêncio. A tole-rância era zero. Inúmeras vezes a ignorância tomava conta darazão, o que contribuiu para uma taxa elevada de homicídios.Perdi a conta das donas Marias que vi de luto e dos manos tãojovens mortos brutalmente, deixando filhos órfãos, com a ten-dência de trilharem o mesmo caminho do pai.

O rabecão do IML (Instituto Médico Legal) e a perícia chega-vam, no mínimo com cinco horas de atraso. O cadáver ficavaexposto ao sol, ao relento, tornando a morte habitual, naturalpara as crianças e moradores do bairro. E para o governo, ape-

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“CRIANÇAS O FUTURO D“CRIANÇAS O FUTURO D“CRIANÇAS O FUTURO D“CRIANÇAS O FUTURO D“CRIANÇAS O FUTURO DA NAÇÃO”A NAÇÃO”A NAÇÃO”A NAÇÃO”A NAÇÃO”

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nas mais um número na estatística.Eu assistia a minha geração se acabando nas drogas, no alco-

olismo, morrendo prematuramente e ninguém fazia nada paracessar o caos urbano. Se não me falha a memória, recordo quealguns políticos só apareciam na quebrada em época de eleição.Prometiam melhorias, ganhavam a eleição e como num passe demágica desapareciam. Até hoje essa história se repete.

A escola da vida me tornou homem, precocemente, experien-te em quase tudo. Um guerreiro na luta pela sobrevivência. Nãonasci num berço de ouro, nada foi fácil para mim. Uma porta seabria e muitas se fechavam. O mundo não era tão colorido quan-to imaginava e assistia na TV.

Com todas as adversidades e contratempos sempre mostreiinteresse nos estudos. Exatamente em 1992 concluí o ensinomédio técnico em contabilidade. Do primeiro ano do ensinofundamental ao ensino médio, passei sem repetir. Já meu ir-mão Bad era bem preguiçoso e não demonstrava o mesmo em-penho. Minha família botava maior fé em mim que eu teria umfuturo promissor.

Assim que terminei os estudos fiz um curso profissionalizanteno Creci (Conselho Regional de Corretores de Imóveis) para exer-cer a profissão de corretor de imóveis. Batalhei um trampo, massó no início de 1.994, por intermédio de meu pai, foi que conse-gui uma vaga como corretor de imóveis autônomo. Justamentenesse ano Fernando Collor de Melo assumiu a presidência doPaís. Eu não tinha experiência nenhuma no ramo, mas me esfor-çava ao máximo para superar o estágio. Entrava às 8h, mas saíade casa duas horas antes porque só tinha dinheiro para pagaruma passagem. O ônibus vinha lotado, mais parecia uma lata desardinha. Por vezes viajei pendurado no ferro da porta para nãoperder o horário. O restante do percurso seguia a pé. A granaera tão curta que não sobrava para o almoço. Às vezes comia umpão com manteiga ou com mortadela. Muitas vezes uma coxinhacom um copo de água da torneira.

Mostrando dinamismo logo consegui dois sobrados para ven-

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“SONHO COM UM MUNDO MELHOR”“SONHO COM UM MUNDO MELHOR”“SONHO COM UM MUNDO MELHOR”“SONHO COM UM MUNDO MELHOR”“SONHO COM UM MUNDO MELHOR”

FOTO JOÃO WAINER

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da que me renderiam 6% em comissões. As coisas começa-vam a engrenar quando o Excelentíssimo Presidente deu aque-le golpe fulminante que quebrou as pernas de todos os brasi-leiros. O Judas cometeu um crime hediondo contra a pátria.Nessa época, o mercado imobiliário e financeiro sofreu umacrise jamais vista na história. As vendas tiveram queda. Nes-se ínterim fiquei desnorteado, pois era das vendas que vi-nham meu sustento e de minha família, de minhasvestimentas e alguns trocados para diversão. Lutei os 12rounds feito um guerreiro, mas o árbitro trapaceou e acabeicaindo na lona. A necessidade e a revolta começaram a per-turbar minha mente.

Decidi pedir ajuda a alguns parentes, mas não obtive oretorno esperado. Injuriado, fui pedir uma força para umamigo de infância. Desconfiava que ele mexesse com algumacontravenção, porque o mano era pobre e de uma hora paraoutra se levantou. A casa modesta se transformou num visto-so sobrado. Pense num vida boa, a sonzera na casa corriasolto a semana toda. Comprou carro do ano, moto, só anda-va com uns panos da hora, esnobava cada dia exibindo trêsmarcas diferentes de relógio: um Rolex, um Breitling e umBulova. Só sei que as minas o ovacionavam. O mano transavacom várias, estava no auge. Todos o respeitavam: as crian-ças, os caras da vila e até os tiozinhos. Também o malandroera muito educado. Ninguém dizia que o mano fazia algo deerrado. Quando expliquei minha situação, ele foi sincero edireto no assunto:

“É o seguinte mano, uma ajuda financeira fica difícil para eute dar, porque eu também tô na corrida. Eu tô ligado que vocênão é um cara bobo, cresceu com a gente na periferia e sabecomo é a lei da sobrevivência. Tem que correr atrás, truta. OCollor não ta nem aí com a situação da gente. Hoje em dia é cadaum por si. Ninguém ajuda ninguém. Você é respeitado pelo quetem. Nunca fui parasita, tudo que eu tenho foi porque não abai-xei a cabeça diante da situação, corri atrás do preju e desafiei o

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perigo. Só estou te contando porque confio em você e sei quenão dirá nada a ninguém, entendeu?”

No início fiquei chocado com a sinceridade que o mano abor-dou o fato, mas minha prioridade era dar logo uma solução paraminha situação. Aflito, olhando na menina dos olhos dele pergun-tei de que forma poderia me ajudar. Sem hesitar ele respondeu:

“É o seguinte, patrício, vou te passar umas coordenadas. Aívocê vê se ta dentro de suas condições. Se você tiver na pegadasua porcentagem é 70% de êxito.”

Tentando ser mais explícito, sacou da cinta uma pistola 380niquelada. Num movimento ágil apertou a trava e soltou o pen-te. Com a arma em punho estendeu em minha direção e indagouse eu sabia manejar. Aquele foi meu primeiro teste. O mano que-ria ver minha reação e me colocou em xeque: pegar ou largar.

Demonstrando atitude, friamente estendi a mão destra e pe-guei a PT. Com a arma na mão, fiquei girando-a com ar de admi-ração sem dizer nada – era novíssima. Meus olhos brilhavam, ecomo diz meu parceiro Dexter: “as armas têm um grande poder.Faz você pensar que é o foda sem ser”. Depois de alguns segun-dos respondi:

“Aí, truta, quanto ao manuseio da ferramenta é sem tempo ruim.Nunca tive uma dessa, mas sempre convivi próximo de quem ti-nha entendeu. Mas ai, qual é a minha missão?”

“Muita calma, mano, muita calma. Um conselho que te doué o seguinte: se você tiver que se arriscar, que seja por muitagrana. É claro que ninguém começa por cima, tem que fazerpor merecer pra subir os degraus. O barato é loco, pra se le-vantar, tem que colar com uns parceiros apetitosos e leais quejamais te vão caguetar e nem te deixar falando. Quando a cha-pa esquentar cê tem que pensar também, que tanto poderáadiantar como poderá se atrasar. Será a resolução de seus pro-blemas ou vários anos atrás das grades. É uma faca de doisgumes, um risco que terá que correr; só a prática lhe fará en-tender mais. Mas aí, vamos ao que interessa. Eu to precisandode uma moto, mais precisamente uma RD-350 porque tenho

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um documento quente e preciso de um cabrito pra jogar emcima dela. Você sabe pilotar moto?”

É lógico que sei, dirijo carro e piloto moto desde os 14 anos,morô? Exclamei.

Entusiasmado o mano respondeu:“Então demorô! Eu faço o cavalo e você enquadra uma RD-

350. Eu te pago US$ 400. A semana que vem tenho um coban(banco) pra derrubar. Aí é nós! Te envolvo na fita, é mó mamão!Na sequência, te explico qual é a pegada. A respeito da moto,você nem precisa me dá a resposta agora. Se achar que pá colaaqui na minha goma amanhã, às 8h. Firmeza?”

Conheci ali parcialmente o outro lado da moeda. Entreguei a pis-tola, cumprimentei com aperto de mão, me despedi do mano e disse:

Aí mano, sem palavras. Muito obrigado pela luz. Não vou teprometer nada, mas se pá amanhã cedão to aqui, certo!

“É nós, truta, lado a lado em qualquer situação.”Saí pensativo e fui para minha casa. Chegando lá minha mãe

estranhou minha atitude. Eu não quis jantar e nem conversarcom ninguém. Preocupada me perguntou o que estava aconte-cendo. Inventei uma desculpa esfarrapada, uma dor de cabeça efui para o quarto dormir ou pelo menos tentar.

Passei quase toda a noite em claro, perturbado pela insônia,pela dúvida e pela aversão da situação. Meu cérebro queimoumilhões de neurônios. Pensei em várias maneiras e não via op-ção. Queria esquecer os problemas, mas eram visíveis. E assim,seguiu esse inferno astral até clarear o dia.

Como era habitual, a dona Neusa me chamou às 5h. Le-vantei meio sonolento e fiz meu ritual de oração. Depois pre-senciei uma cena que me deu maior desassossego. Havia aca-bado o café, o açúcar e minha mãe não tinha o maldito di-nheiro para comprar pão e leite para tomarmos o café damanhã. Ela ainda tentou disfarçar, mas na real as prateleirasestavam quase vazias. Aquela cena foi patética. Percebi queela ficou muito triste por não poder me servir. Abracei-a nointuito de consolá-la, mas não consegui disfarçar meus sen-

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t imentos. Deu mó aperto no coração e meus olhoslacrimejaram. Fiquei mais indignado quando lembrei que nãotinha dinheiro para passagem. Aliás, não tinha nem um míserotostão no bolso. Senti que era o mais insignificante dos ho-mens. Naquele momento fiquei confuso. Perdi a noção docerto e do errado. Meu Deus! Nunca mais desejo sentir aque-la sensação.

Com o estado emocional abalado, deixei a ira aflorar. Ca-bisbaixo, me despedi dando um afetuoso beijo. Disse a elaque iria trabalhar, mas a intuição fez com que ela percebessea mentira na minha afirmação. Quando eu ia saindo ela dis-se com sapiência:

“Filho! Deus só dá a cruz que podemos carregar. Coração demãe não se engana, pense bem antes para não se arrependermais tarde. Cuidado e vai com Deus.”

Imaturo, não consegui ou não quis absorver a essência desuas palavras. Hoje me arrependo da minha ignorância, te-mos que acatar os conselhos de nossos pais, pois só queremo nosso bem. Considero herói todos que conseguem se es-quivar do ciclo vicioso. Os que sobrevivem com um salário-mínimo são vencedores. Confesso que falhei nesse desafio.Feito um cabeça dura, segui com um cabresto com olhar numasó direção. Quando cheguei em frente a casa do facínora,apertei a campainha, freneticamente: “dim dom, dim dom,dim dom!”

Eram mais ou menos 7h20. O mano abriu parcialmente a ja-nela, olhou meio desconfiado, fez um gesto com a mão para euesperar um pouco. Aguardei alguns minutos. Ele desceu as esca-das até chegar ao portão e exclamou:

“Nossa, hein, mano! Caiu da cama?”. Olhou no relógio e sor-rindo brincou:

“Caramba! Ainda é madrugada!”Dei um sorriso tímido. O comentário me descontraiu um pou-

co, porque eu estava muito tenso. Em seguida me cumprimen-tou com um aperto de mão. Pediu para eu entrar na garagem e

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perguntou com seriedade:“E aí, mano? Essa é a hora. Tá pronto para a missão?”Olhando na bolinha dos olhos dele respondi:“Demorô, é só explicar o modus operandis!”“É o seguinte: ontem fiz uma corrida e pedi para um aliado

trocar as placas do meu carro. Eu vô no piloto e a gente sai nopião sem destino até a hora que encontrarmos uma RD-350.Aí eu encosto você faz a cena, sobe na moto e eu te sigo! Se agente se perder no trânsito, você vem aqui pra casa. Vou tedar uma cópia da chave, você guarda o cabrito na garagem. Orestante é comigo. Assim que a gente chegar eu te dou a granaque combinamos. Outra coisa que você nunca poderá esque-cer: na hora em que você sacar a arma e der a voz de assalto,controle as emoções, demonstre calma. Enquadre a vítima pelomenos num espaço de um metro ou um metro e meio de dis-tância, ela ficará sem possibilidade de reação, caminhe deva-gar e faça uma revista minuciosa. Muito cuidado para não sersurpreendido. Mande a vítima virar de costas e correr semolhar pra trás, entendeu?”

Respondi a ele que havia assimilado a idéia. Sem hesitar, Davidsacou a PT da cinta e me entregou. Alertou que a arma estavamuniciada e travada. Então entramos no carro e seguimos emdireção ao centro de São Bernardo. Não rodamos muito. Logo omano avistou uma RD-350 cor cinza. Como um predador, tinhaolhos de águia.

Era chegada a hora. Não podia mais voltar atrás e nemquebrar as pernas. Só que jamais poderia imaginar que aque-la aventura se tornaria um vício e uma bola de neve. O dia-bo é astuto, se aproveita das horas de dificuldades e comsuave eloquência te ilude e convence. Como um aviso, aquelavozinha interior me disse que um dia iria me arrependerpor ter aceitado aquele convite. Toda a trajetória do jogoincerto foi relatada nas linhas de um rap intitulado Ex-157,que coincidentemente é uma triste realidade de vários bra-sileiros.

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“O CRIME NÃO“O CRIME NÃO“O CRIME NÃO“O CRIME NÃO“O CRIME NÃO

COMPENSA”COMPENSA”COMPENSA”COMPENSA”COMPENSA”

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Na favela é um dois pra se envolver,Assistia TV e não podia ter,

Mó veneno ir pra escola de chinelo de dedo,Não tive infância, muita menos brinquedo,

Sem perspectiva, sem futuro,Minha mãe doméstica sem estudo,

Família sem estrutura, meu pai batia em mim,A vida do crime se pam meu trampolim,

Muito álcool, muita droga, armamento pesado,Periferia laboratório eis o resultado,

Uma pá de Bin Laden descendo o asfalto,Violência trafico, latro e assalto,

Sem escola, emprego, incentivo cultural,Pátria amada, mãe gentil, Brasil desigual,

Necessidade ou ambição fui me entrutando,Quem será essas horas meu radim tá chamando,

É tudo nosso mó mamão cê vai ver,O time sou eu e mais quatro, nois num joga pra perder,

Duzentos mil só sua cara, só pra começar,É a boa rapaz, nóis vai se levantá,

Que tal uma lupa da Armany ou um sapão zerado,Um flat nos Jardins outra vida estatus,

Linha de frente entrei, no sapatim dominei,Todo mundo rendido me senti um rei,

Fisionomia transformada, tremia, suava,A adrenalina quase não controlava,

Tava tenso, mas firmão, ufa deu tudo certo,Meu ego disse o mundo é dos espertos,

A giratória não brecava agia com malícia,Eu pegava o pé de porco na febre sem preguiça,

Dois minutos era a cena encosta a tenereé,Puxa o pino da granada a rota volta de ré,

A gente não imagina do que é capaz,Eu era honesto, bom filho, bom rapaz,

Só que dinheiro é o mal, ambição em alto grau,O crime é uma mentira, só fui ver no final.

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OS SONHOSOS SONHOSOS SONHOSOS SONHOSOS SONHOS

SÃO OSÃO OSÃO OSÃO OSÃO O

PPPPPASSAPORTEASSAPORTEASSAPORTEASSAPORTEASSAPORTE

DDDDDA VITÓRIAA VITÓRIAA VITÓRIAA VITÓRIAA VITÓRIA

FOTO JOÃO WAINER

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Por todos esses motivos cheguei à conclusão de que o crimenão compensa. “O crime só compensaria se eu soubesse roubarcom uma caneta, tivesse colarinho branco e imunidade parla-mentar”. Esses caras-de-pau são os piores larápios e aves de ra-pina, enquanto nós servirmos de bode expiatório para encobrirsuas falcatruas. Na atual conjuntura os inúmeros escândalos vi-raram fatos corriqueiros. Os golpes de milhões estão na moda. ACPI (Comissão Parlamentar de Inquérito), órgão que foi criadopara agir com veemência na apuração dos fatos e responsabili-zar os culpados, não funciona na prática.

De volta à rotina. Passaram-se três meses e Dexter decidiu irmorar comigo no P7. Ele se ligou que num campo minado, énecessário ter um parceiro de confiança. Com muito sacrifíciocompramos em conjunto o xadrez 509-E. Pagamos na ocasiãoR$ 650. Em princípio não ficamos muito satisfeitos, mas nossodinheiro não nos dava outra opção.

A cela estava num estado lastimável, mais parecia uma espe-lunca. As paredes eram pintadas com cal. As cortinas, que dividi-am o barraco para nossa privacidade, estavam todas esburacadasdevido às traças. O chuveiro era frio e o vaso sanitário estavaestourado, exalando mau cheiro. Enfim, a cela precisava de umareforma geral e nós nos dispusemos, aos poucos, a fazê-la.

Apesar de não ter mais esperanças e achar que minha sinaera o crime, escrevia letras de rap e guardava a sete chaves. Con-fesso que o fato de o Dexter ter ido morar comigo me incentivoue reacendeu uma vontade de formar uma dupla com ele. Mesmoestando na vida do crime, ele também escrevia rimas novas e memostrava as levadas.

Um empurrão imprescindível foi quando meu irmão Bad assu-miu o grupo do Dexter Tribunal Popular, gravou o single Xeque +não mate, título escolhido por mim e duas composições do Dexter,pela gravadora Cosa Nostra, dos Racionais Mc’s. Lá no fundo, meusonho sempre foi gravar um CD de rap, só que esse sonho foifrustrado com a minha prisão. Senti mó orgulho de meu irmãopor não ter deixado a peteca cair e lutar em prol do objetivo.

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Sabia que também tinha o dom. Era só questão de acreditarem mim mesmo. Todos elogiaram o título do CD, fiquei conten-te. Meu irmão contribuiu muito para o aumento de minhaautoestima. Esse estímulo foi uma grande força para recomeçar.Tinha ciência que não seria nada fácil devido às condições remo-tas e a falta de oportunidade. Era apenas mais um desafio, por-que basicamente o dia a dia no cárcere consiste em desafios.

Sempre tive o rap na veia. Faz parte de minhas raízes. Porisso, quando ouvia esse ritmo no rádio ficava vidrado, sentia móemoção, energia, a adrenalina acelerava. Nessas horas batia anostalgia, lembrava com saudade dos tempos bons quando ini-ciei no movimento hip hop, nessa época o rap era desconhecidopara a mídia. Quem estava envolvido era por amor à camisa.Com o decorrer dos anos percebi que não era efêmero e nemmoda, amava o ritmo de coração.

Após longos anos de ditadura militar, a juventude pobre enegra resgatou a voz ativa, através desse veículo de comunica-ção de massa, mais consciente e emergente da atualidade. Essemovimento assumiu uma postura sarcástica devido à crise e mortesúbita do caráter de algumas autoridades.

Com indignação vejo o surgimento do lixo fonográfico im-posto por multinacionais invadindo as paradas de sucesso edizimando os valores da boa música. A população sofre semreferência, sem acesso à qualidade musical fica sem senso crí-tico. Não há nada de consistente, a não ser alguns pretos vendi-dos, servindo de chacota e rebolando bem mais que as mulhe-res. É tudo por dinheiro. A demagogia é notória quando banali-zam a palavra amor que só é usada na relação homem-mulher,porque na prática é tudo fugaz, vivemos a era do ficar e conti-nuamos mais carentes de amor ao próximo. As mulheres torna-ram-se objeto de desejo, fetiche. Só são consideradas artistasporque têm um corpo sensual e se submetem a cenas eróticas.No meu caso, que sou preto, pobre e enxergo a necessidade demudanças, o rap veio a calhar e se tornou minha forma de de-sabafar. É a minha cara.

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O movimento hip hop nasceu na Jamaica. Foi levado para osguetos norte-americanos onde se desenvolveu, aprimorou, con-solidou e se lançou no âmbito mundial. Em meados dos anos1980 chegou ao Brasil, mais precisamente no metrô São Bento,na cidade de São Paulo. Ecoou nos quatros cantos e levantoumultidões. E continua levantando. O rap é o filho mais novo dasramificações originárias da Mama África que nos concedeu o jazz,o blues, o rock, o reggae, o soul e, posteriormente, o funk.

O estilo se mostrou completo. Está dividido em quatro ele-mentos: o rap (música), o break (dança), o grafitte (arte) e oconhecimento. A abreviação de rap em inglês é Rhythm and Poetry,a tradução para muitos é ritmo e poesia. Para mim, Revoluçãoatravés das palavras. Com a música vieram também outros com-ponentes, sendo eles, o DJ (Disk-Jockey) que comanda e animaas festas com as pick-ups, ou seja, com os toca-discos fazendoscratchs, riscando os discos em cima de batidas pesadas. O outroaliado é o MC (mestre de cerimônias), vocalista que rima nocompasso da batida. Rap é sinônimo de resistência.

Em 1.988, um truta skatista foi participar de um campeonatonos Estados Unidos e me trouxe um presente que guardo commuita estima: um vinil do grupo Public Enemy. Quando ouvi pelaprimeira vez a faixa Fight the Power foi simplesmente contagiante.O parceiro me explicou mais ou menos a letra. A tradução eraCombata o Poder. Foi amor à primeira ouvida pelo ritmo.

Anos depois, em 1.990, conheci o trampo de uns manos quefalavam numa linguagem simples, objetiva e fácil de assimilar.Era tudo que eu queria ouvir e falar. As letras eram conscientes,falavam do dia a dia da periferia, do racismo velado, daautovalorização do homem preto. Ouvir aquela obra-prima cha-mada Holocausto Urbano, do grupo Racionais Mc’s, despertouuma luz em minha mente. O conteúdo me fez entender a realintenção do sistema e resolvi fazer minha parte para a situaçãomelhorar. Desde então, tornei-me mais um aliado em prol darevolução mental das pessoas.

Certo dia, no mês de julho de 1.999, Dexter e eu fomos convi-

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dados por Mauricio, um patrício da Bela Vista lá do P2, paraassistir a uma aula de teatro no P6, ministrada por uma ex-atriz,voluntária. Na Casa de Detenção, o trabalho dela trazia aos pre-sos uma atividade com perspectiva de resgate da autoestima.Essa pessoa de grande senso humanitário e carisma chama-seSofia Bisiliat.

Sofia, uma mulher de estatura mediana, com característicaseuropéias, pele clara com sardas, nariz fino e vistosos olhos azuis,nos trataram com cordialidade. E, diante de tanta simpatia, foiimpossível não me interessar e me envolver no projeto intituladoTalentos Aprisionados. Todos esses aspectos favoráveis que citeiforam um trampolim para a formação de nosso grupo de rapbatizado de Linha D´frente, nome escolhido por mim.

Na prisão há vários caminhos, cabe a você escolher qual dese-ja trilhar. Há o caminho das drogas, o caminho para se especi-alizar em um PHD no crime, o caminho do cristianismo ou aindadescobrir o talento e o dom que Deus lhe deu. O caminho dareligião atingia cerca de 40% de adeptos. Na real, poucos se con-vertiam de coração. A grande maioria infringira regras do crimee se escondiam atrás da Bíblia, mas eram desmascarados, por-que não tem como enganar a Deus.

Nós resolvemos optar pelo caminho da música. Após muitosanos de sofrimento, cheguei à conclusão de que o sistema nãoregenera e não tem interesse de recuperar ninguém. Senti umavontade interior de mudança. Senti necessidade de dar alegria àminha família, de usar em benefício próprio e até mesmo comolição de vida, os quatro anos e seis meses que estava cumprindo.Passei a acreditar que a minha vida poderia servir de testemu-nho e exemplo para evitar que muitos jovens e adultos se deixas-sem levar pelos convites e pela ilusão com a vida do crime, queem principio é glamouroso. Mas o final é trágico, pouquíssimase raras exceções.

Nesse intuito, passamos a nos dedicar com afinco, durantemuitas horas do dia e muitas vezes invadindo pela madrugadaafora. Nossa mudança de comportamento despertou muita curi-

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osidade e crítica, algumas construtivas e outras um tantodesanimadoras. Uns diziam: “Vão em frente que vocês têm ta-lento e irão conquistar o que almejam”. O time de pessimistasera bem maior: “Ih! Mano ta chapando! Nossa cara é o crime! Láfora que é campo aberto vocês não conseguiram gravar, imagi-nem atrás das grades! Vocês acham que alguém vai acreditar einvestir em dois presos? A sociedade é descrente na questão queos presos possam se regenerar. Tão sonhando muito grande,quando vocês acordarem nos avisem.”

Entre todo o otimismo e pessimismo, tínhamos que respeitaras opiniões, fazer nossa parte, contrariar a estatística e provar ocontrário para essa sociedade que fabrica bandidos. M e uirmão Bad vinha eventualmente nas visitas. Num daqueles dias,mostramos nosso trampo para ele analisar e opinar. Ele curtiumuito o projeto e com empolgação exclamou:

“Nossa mano! É mil grau. Quando lançar no mercado, vai serum estouro, pode acreditar!”

A opinião de Bad era válida, porque é um cara que tem visãodo negócio e estava na rua analisando a tendência do mercado.Entusiasmado, ele pegou uma cópia da fita demo, levou para fa-zer uma corrida nas gravadoras, difundir o trampo e levar ao co-nhecimento dos manos do rap, que o Dexter e eu havíamos forma-do um grupo com letras conscientes, verídicas e bombásticas. Aidéia espalhou-se e nomes de peso do cenário do rap nacionalapoiaram e aprovaram. Entre eles: Mano Brown, Edi Rock, IceBlue e Kljay, todos dos Racionais Mc’s. Fui apresentado aos com-ponentes em 1.992, por intermédio do Dexter. Tínhamos ideologi-as parecidas e uma grande proximidade musical. Nasceu uma gran-de amizade e acredito que o apreço seja recíproco. Nosso grupotambém teve o apoio de MV Bill, do Rio de Janeiro, e Thaíde & DJHum, um dos grupos pioneiros do rap.

Quando soubemos do apoio, apostamos todas as fichas emnosso trabalho, com o pé no chão, é lógico. Não nos empolga-mos. Usamos o apoio como incentivo para a luta, em busca docume da montanha. Desde o início analisamos e chegamos ao

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consenso, que nossa cara era surgir de forma autêntica, diferen-te de tudo que estava no mercado, desde a ideologia, o estilo devestir, de cantar, o nome do grupo e o modo de falar. O conjuntoiria fazer o diferencial. Não queríamos ser apenas mais um.

Levamos aproximadamente três meses para selecionar umrepertório de nove músicas. Quando finalizamos essas faixas re-solvemos gravar outra fita demo (independente), no micro systemque o Dexter ganhou de presente. Tínhamos vários CDs instru-mentais que nos serviram de fundo musical.

Nos tornamos autodidatas, mas o que me levava a crer quetinha o dom era cantar na cadência da batida, sem sair docompasso, mesmo sendo leigo em música, sem saber partitu-ra e as notas musicais. Compor um rap sem arranjo e encaixarperfeitamente esse rap na base instrumental. Quando pareipara analisar essas questões, me empolguei ainda mais. Pas-sei a me dedicar de corpo, mente e coração. Notei tambémque o sistema poderia prender meu corpo, mas jamais pode-ria prender meu espírito, meus pensamentos. Concluí que emqualquer situação a pior prisão é a do preconceito, do egoís-mo, da mentira, da hipocrisia, da inveja e a da cobiça. Enfim,a pior prisão é a da mente!

É óbvio que para atingir as metas almejadas, contamos comalgumas lições desses professores renomados. Através de visitasperiódicas, nos davam algumas dicas para descobrirmos nossoreal estilo. Ensinaram alguns métodos para parecermos maisautênticos ao cantar e expor com veracidade as letras. Chama-vam nossa atenção para analisarmos minuciosamente o conteú-do das letras, pois passaríamos a ser formadores de opiniões.

Como alunos dedicados, seguíamos à risca os ensinamentosdos professores da Old School. Depois, resolvemos levar nossotrabalho ao conhecimento da diretoria, porque estávamos en-contrando certa resistência e perseguição por parte dos funcio-nários, que muitas vezes brecavam nossos visitantes e inventa-vam pretextos absurdos.

Certa vez, barraram o mano Brown, porque ele estava com

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trança enraizada no cabelo. Inúmeras vezes proibiram meu irmãoe os manos de entrarem na visita. Implicavam com a calça muitolarga. Proibiam de entrar revistas, fitas, CDs de rap. O recalqueera total. Nas revistas mensais na cela, amassavam, rasgavamnossas letras, quebravam CDs, esculhambavam com tudo. Jura-mos para nós mesmos que esses imprevistos serviriam de forçaspara alcançarmos nossos objetivos. Não poderíamos perder a opor-tunidade, a sorte não bate várias vezes na mesma porta.

No mês de julho de 1.999, tivemos a idéia de fazer um showno dia dos pais para os presos e visitantes do P7 com grupos derap da rua e com grupos locais da detenção. Não tínhamos expe-riência nenhuma no assunto, mas metemos as caras. Desde 1996a cadeia estava de castigo e não tinha nenhum tipo de evento.Foi uma tremenda queda de braço. Na negociação com a direto-ria, tivemos que assinar vários termos de responsabilidade. Casoacontecesse algum desacerto assumiríamos toda a culpa.

Graças a Deus deu tudo certo. Conseguimos realizar nossopropósito quebrando um jejum de três anos e levando aos inter-nos e visitantes o entretenimento, informação e a consciênciaatravés do rap. Foi satisfatório ver nos semblantes das crianças,dos pais presos e das mães, sorrisos e alegria que não são co-muns mesmo em dia de visita. Havia muitos que nunca tiverama oportunidade de assistir a apresentação ao vivo do RacionaisMc’s. Uns por estarem presos havia muitos anos. E alguns visi-tantes que não tinham condições financeiras de ir num show.Tenho certeza de que esse dia ficará guardado para sempre namemória, de todos aqueles que estavam presentes.

Aquele dia me fez crer que o rap tem um grande poder. Écapaz de mudar as pessoas, que é nosso caso. A música rompeubarreiras e as energias negativas. Nosso evento foi encerradona paz total. Apresentaram-se nesse dia, no palco de madeira,construído por nós, detentos, no fundo do pátio externo do P7,os grupos Racionais Mc´s, Tribunal Popular, Lino Cris & DJ Dri.Os grupos não cobraram cachê. Nosso grupo, o Linha D’Frente,e mais uns nove grupos da Casa também se apresentaram.

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Nunca esquecerei os vários guerreiros que correram lado a ladoe contribuíram para a realização daquele projeto.

A partir desta data, as portas começaram a abrir para nós. Oshow do dia dos pais foi filmado e a gravação do evento foi pararnas mãos de José Carlos dos Reis Encina, vulgo Escadinha. Ele eraex-traficante e assaltante, do Morro do Juramento, no Rio de Ja-neiro, e cumpria pena no presídio de segurança máxima Bangu l.

Escadinha estava com um projeto em andamento para lançarseu CD Coletânea, em parceria com 12 grupos de rap renomados.Convidou o Linha D’Frente para fechar esse time. Aceitamos aoreconhecermos a seriedade do trabalho em prol da recuperaçãodo ser humano. Isso sem contar que era nossa chance de provarporque viemos.

Não conseguimos autorização judicial para sair da prisão egravar em um estúdio apropriado. Fomos obrigados a improvi-sar em nossa cela 509-E, uma espécie de estúdio, para captarnossa voz, num aparelho de MD. Na sequência, levaram para umestúdio profissional em São Paulo e resultado foi à faixa batiza-da de Barril de Pólvora, produzido por DJ Luciano e MV Bill, noCD intitulado Escadinha Brasil-1 Fazendo justiça com as própriasmãos. Graças a Deus, a tecnologia e ao profissionalismo conse-guimos realizar nosso sonho. Ao ouvir a música produzida fica-mos radiantes. É difícil explicar a sensação. A vitória com sacri-fício tem um sabor especial. Fiquei muito orgulhoso de mimmesmo, foi o primeiro filho do Afro-X e do Dexter.

Sofia com seus olhos clínicos enxergou nosso talento. Incum-biu-se de levar a fita demo e o CD recentemente gravados paraum velho amigo. Nada mais, nada menos, que Wilson Souto, pre-sidente da multinacional Warner na época. Caímos nas graçasdo homem, porém não tínhamos bagagem suficiente para umagravadora daquele porte. Oferecíamos alguns fatores interessan-tes como: a polêmica de estarmos presos, a autenticidade denosso trabalho e o time de produtores que iríamos reunir sim-plesmente a nata, jamais reunidos num cd de rap nacional. Mas,para ele ainda não era o suficiente para estarmos na Warner.

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Tínhamos que fazer estrada, conquistar o sucesso e consagrar onome do grupo, porque o mercado fonográfico não trabalha comhipóteses e sim com bases concretas. Wilson Souto, visando nos-so crescimento futuro, nos levou para a Atração Fonográfica, gra-vadora de médio porte e assinamos o contrato de 18 meses, emnovembro de 1999.

Selecionamos o repertório de doze faixas para o primeiro ál-bum da dupla, intitulado Provérbios 13. O título ganhou por una-nimidade entre os vários nomes indicados por nós. Certo dia emsua oração matinal, Dexter abriu a Bíblia justamente no livro deProvérbios, capítulo 13 versículo 1 que diz: “o filho sábio ouve acorreção do pai, mas o escarnecedor não ouve a repreensão”.Dexter teve uma idéia brilhante. Tinha tudo a ver com nossarecuperação. O livro de provérbios consiste em conselhos eensinamentos de Salomão, considerado o homem mais sábio erico do mundo. Adaptados para o nosso dia a dia, essa analogiaqueria dizer que se tivéssemos praticado a palavra de Deus eouvíssemos nossos pais, não estaríamos atrás das grades.

Quanto ao nome do grupo, tivemos que substituir, para evitarproblemas futuros, porque fizemos uma pesquisa e constatamosque já existia um Linha D’frente registrado. Escolhemos váriosnomes e fizemos uma votação entre o Dexter, o Leandro, vulgoFunção, e eu. O Leandro morava conosco no xadrez e escreveu oprefácio do CD. Permanecemos num impasse durante quase umdia para escolha do novo nome. No final da tarde Função opinou:

“Aí, rapa, já sei. Por que não 509-E, o número da nossa cela?”De bate pronto aceitamos. Nada mais justo, porque foi ali que

tudo começou. Ficou super original, seria também uma novida-de, já que no Brasil, não existia nenhum nome de grupo comnúmero. Realmente era nossa cara.

O próximo passo foi selecionar o repertório, a escolha dosprodutores de nosso segundo filho, onde definimos que ManoBrown juntamente com os co-produtores Zé Gonzáles (DJ doPlanet Hemp) e o Marquinhos Borracha da Vida Loka produziri-am cinco faixas: Triagem, Oitavo Anjo, Castelo de ladrão, Uh!

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Barato é loco e De A a Z. Edi Rock seria responsável por quatrofaixas: Só os fortes, Sem chances, Carta a sociedade e Sem pala-vra. Já MV Bill, em parceria com DJ. Luciano produziram os sons:Hora H e Confiança e Desconfiança. Por fim, o DJ Hum produziuuma faixa: a Saudades mil.

Influenciados pela Black Music, procuramos resgatar a he-rança do soul, do funk, misturando um suingue abrasileiradoque ouvimos em vinis em nossa infância e adolescência. Saudo-sas trilhas sonoras, que eram nosso passaporte de emoções. Taisinfluências foram significativas para formação do meu caráter eautovalorização enquanto homem preto.

A gravadora Atração nos deu livre arbítrio para trabalhar.Apostaram em nosso talento e na assessoria. As fotos ficaram ameu critério: tanto a capa, como a contracapa e encarte. Procu-rei seguir o script das letras.

Observando a seriedade do trabalho, a diretoria concedeuaos produtores uma visita extra semanal. A reunião de praxe erautilizada para acompanharmos o andamento das músicas. Assimfoi possível opinar na produção e nos familiarizar com as basesinstrumentais. A produção foi concluída em tempo recorde, devi-do a nossa afinidade e proximidade musical com os produtores.Foram precisos dois meses para produzir as onze faixas.

Mesmo diante de todas essas realizações, ainda pairava umimpasse, porque necessitávamos de uma autorização judicial parasair da prisão e gravar a voz no estúdio profissional. Caso o pe-dido fosse indeferido, optaríamos por um estúdio móvel, masdificilmente alcançaríamos 100% de qualidade. Em busca desseêxito, Sofia não mediu esforços com nossa gravadora, marcouuma audiência com o Juiz de Direito Corregedor da Vara de Exe-cuções Criminais da Comarca de São Paulo, Otávio Augusto Ma-chado de Barros Filho. A autorização foi deferida e expedida parao período de 15 a 18 de março de 2.000. O horário era das 19hàs 5h em três estúdios diferentes de São Paulo.

Nos quatro dias em que saímos, permanecemos num esta-do de êxtase. Se eu sofresse de problemas cardíacos, com certe-

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za teria um enfarto. A emoção foi tamanha, sensação de liberda-de com realização de um sonho. Parecia mentira. Não sabia segritava se chorava se dava risada. Só sei que agradeci muito aDeus por aquela vitória. Quase dois anos sem ver a rua, a nãoser pela televisão. O Dexter idem.

Fomos levados no chiqueirinho do camburão da Casa, semalgemas e três funcionários na escolta. Rolou até uma apostaentre os funças da Detenção. A maioria apostou que nós iríamosfugir. Em resposta a esse pré-julgamento decidimos fazer a aber-tura do CD com a faixa Confiança e Desconfiança, que retratou aperda da aposta dos medíocres.

Procuramos ser mais verdadeiros possíveis. Até as partici-pações nas músicas foram feitas por nossos parentes que mesmosem experiência trabalharam como o previsto. O profissionalismofoi relevante para a desinibição e a produtividade. Parcialmentemissão cumprida, bem que os manos disseram que nosso timesó joga para ganhar.

Nem acreditamos na velocidade com que foi feito o Provérbi-os 13. Foram muitos sacrifícios, muita ansiedade e noites de in-sônia, mas valeu à pena. Agora era outra etapa. O filho foi gera-do. Como pais corujas, tínhamos que cuidar com amor, dedica-ção e atenção, para ele crescer e ter um futuro promissor.

No lançamento oficial do CD, enfrentamos uma comitivade 60 repórteres numa entrevista coletiva. Foi um momento his-tórico e glorioso. Nunca imaginei ser o centro das atenções. Nuncavi tantos holofotes, câmeras e fotos em toda minha vida. Fomosmuito bem assessorados por uma nipônica, de estatura media-na, responsável pela divulgação e marketing de nosso produto.Com muita competência, ela nos orientou como agir diante dasituação. Levei algum tempo para acreditar. Era tudo muito novo.À noite, deitei a cabeça no travesseiro e refleti o quanto Deus foibom conosco. Hoje acredito que ele tinha um plano para nossasvidas. Realmente fomos abençoados.

Em abril de 2.000 demos um entrevista para a Folha de SãoPaulo no caderno teen intitulado A Voz da Cadeia. Tal entrevista

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chamou a atenção de duas jovens, a Tiane e a Samara, estudan-tes de jornalismo. Devido ao nosso exemplo de recuperação den-tro do sistema carcerário falido, elas foram estimuladas a fazeruma entrevista conosco, já que na ocasião desenvolviam um tra-balho de faculdade sobre ritmos musicais. Da entrevista nasceuuma amizade e posteriormente surgiu um relacionamento entreSamara e eu. Ela era uma mulher madura, extrovertida, 28 anose desimpedida. Em princípio não queríamos nada sério, mas aca-bamos nos envolvendo afetivamente.

Cumprindo com o trato, a gravadora bancou dois videoclipesdas músicas Só os fortes e Triagem. A primeira retrata com au-tenticidade o dia a dia cheio de tortura no Carandiru, o sistemafalido, a lentidão da justiça e o jogo de cintura necessário parasobreviver no quarto mundo. No refrão uma frase de força e per-severança que acaba se tornando uma lição de vida no cárcereou nas ruas: Só os fortes sobrevivem. No clipe tivemos participa-ções especiais do meu irmão Bad (Tribunal Popular) e Edi Rock(Racionais Mc’s), recitando um trecho do salmo 91. No final damúsica, o diretor Mauricio Eça, mostra todo seu brilhantismo,com atores encenando os sete pecados capitais. Meu sensoparticipativo fez com que eu fizesse a prévia de um roteiro.

O clipe da música Triagem retrata a chegada de um novato noCarandiru, toda a burocracia de inclusão na Casa, a agonia e aver-são de ser prisioneiro na maior cadeia da América Latina. Dexternarra tudo isso minuciosamente. Contamos com a participaçãode Mano Brown, Bad, Batatão, Neguinho, DJ. Niggaz e Marcão.

Os dois clipes levaram dois dias árduos de filmagens, das 9hàs 16h30, com muita cooperação da massa. A direção contoucom o profissionalismo dos renomados Maurício Eça, MarceloCorppani e Tereza Eça. Eles foram vencedores do VMB 98 (VídeoMusic Brasil, da MTV) com o clipe Diário de um detento, do Raci-onais Mc´s.

Nem imaginava a proporção que o 509-E iria tomar. A firmacresceu e começamos a fazer shows. Lembro como se fosse hoje.Nosso cachê inicial era de R$ 1.000. Em gratidão por toda bene-

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volência, convidamos Sofia para ser nossa empresária, que acei-tou e somou em nosso time.

Gradativamente fomos ganhando espaço. Agenda lotada, di-vulgações a milhão, com entrevistas em revistas e jornais nacio-nais e internacionais, em destaque a Newsweek americana. Fo-mos ouvidos em rádios FM e comunitárias. Demos palestras emfaculdades e até na antiga FEBEM, hoje Fundação Casa. Fomosconvidados para gravar programas da TV aberta brasileira.

Íamos de vento em popa, em busca de prestígio profissional.A firma já tinha um time de dez manos longe do crime, à inclu-são social sempre foi nosso foco principal. O rap aguçou maismeu discernimento. Resgatei minha auto estima, descobri o sig-nificado de minha vinda na terra, notei que tinha um valor.

Honroso é ajudar nossa família. Poder ser orgulho paraeles é de extrema importância. Nosso discurso se tornava práti-ca a partir do momento que gerávamos empregos. Levar entre-tenimento, informação e conscientização através da música égratificante demais. Ver o delírio da galera, arrancar aplausosdos manos e das minas, gritos histéricos, lágrimas e sorrisos aomesmo tempo. A energia positiva, assédio, dar autógrafos aosfãs, o carisma, o calor humano. Estar no palco é minha grandepaixão. Confesso que se não fosse Deus e o rap, com certezateria voltado para vida do crime. Agora, com convicção, possodizer ao crime nunca mais! O sucesso foi notório, mas meu mai-or sucesso foi sair do crime.

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– CAPÍTULO 5 – Quarto mundo dentro de um terceiro

A Casa de Detenção foi fundada em 11 de setembro de 1956.Ficava no número 2630 da Avenida Cruzeiro do Sul, aolado direito do metrô Carandiru. Na fachada, um letreiro

identificava o estabelecimento penal como Casa de Detenção deSão Paulo, também conhecida como Carandiru. Para os detentos,Dita, a cidade do crime. Depois da demolição parcial dos pavi-lhões, o local se tornou o Parque da Juventude.

Na fachada existia uma guarita do lado direito. No pátio fun-cionava o estacionamento dos funcionários. Todos os prédios naárea da entrada compunham o complexo de acesso restrito, comoa diretoria geral e administração. Na sequência, estava a porta-ria central, dividida por dois portões, depois vinha a ratoeiracom o portão de acesso a Divinéia. Em 28 de fevereiro de 2.001,os números do Carandiru eram:

DivinéiaEra como um setor de cargas e descargas. Tudo entrava e saía

pela Divinéia, que tinha formato de encruzilhada. Poucosreeducandos tinham acesso a essa área, considerada de segu-rança máxima. Ela era formada por um departamento de revistade funcionários, copa de funcionários da administração e direto-ria geral. Havia também o parlatório para atendimento dos ad-

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“O JOGO É JOGADO“O JOGO É JOGADO“O JOGO É JOGADO“O JOGO É JOGADO“O JOGO É JOGADO

ENTENDEU NEGÔ”ENTENDEU NEGÔ”ENTENDEU NEGÔ”ENTENDEU NEGÔ”ENTENDEU NEGÔ”

FOTO JOÃO WAINER

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vogados. No mesmo lado ficavam: as salas da equipe técnica doCTC (Centro Técnico Criminológico) e a plataforma de carga edescarga dos patronatos.

Do outro lado estavam à sala da FUNAP (Fundação de Ampa-ro ao Preso), os setores de identificação e do lado esquerdo, umjardim mal cuidado. Mais adiante, ficava o portão de acesso aoP2. Do lado direito, uma guarita do funcionário responsável pelotrânsito de detentos. Logo atrás, um jardim rodeado de árvoreshabitadas por saguis, um coreto no centro de outro jardim comtrês bancos de concreto. Quase no centro da Divinéia havia umchafariz de azulejo branco. Ele estava inativo.

Pavilhão 2 (P2)Era o primeiro pavilhão da cadeia, que dava acesso para toda

prisão. Todos que chegavam obrigatoriamente sendo réu primárioou reincidente passavam por ele. O prédio era composto por cincoandares. Todas as celas eram moradias, com a média de dez presosem todo o xadrez. A exigência para morar no P2, era que o reedu-cando estivesse trabalhando em algum setor. Todas os X que conti-nham o número 17 moravam os faxineiros e os boieiros. Era o pavi-lhão com a maior galeria. O P2 era o único que não tinha celas dolado externo e todas as ventanas eram voltadas para o pátio inter-no. O lado externo ficava tão próximo da rua, mas rendia castigopara quem fosse flagrado olhando para rua da ventana.

Saindo da Divinéia chegava-se ao pátio externo do P2. O de-pósito de lixo ficava à esquerda. O patronato de cadernos e pas-tas, à direita. Em frente ao patronato ficava a borracharia paraconserto dos pneus dos carrinhos. Na sequência, o setor de pro-dução e a academia de boxe para os reeducandos. Ao lado, umaguarita e um funça no portão que controlava o trânsito do P8.

Após o primeiro portão do P2, havia uma gaiola. À esquerdaficava a sala do diretor. À direita, a sala dos rondantes e a escadade acesso aos andares. Havia também uma copa minúscula dosfuncionários. Na seqüência entramos no pátio interno, onde fi-cavam alguns setores burocráticos e de trabalho da casa.

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Rodeando o pátio interno existiam os setores: de elétrica, achefia, a lanchonete, a sala de compras, a laborterapia, aalfaiataria, a igreja Assembléia de Deus, a igreja Universal doReino de Deus, o refeitório dos funcionários, o portão de acessoao campo, o controle geral, a rouparia, a carceragem, a barbea-ria, a enfermaria, os banheiros para os visitantes, a fotografia, aUmbanda e por fim a igreja Católica.

População total = 645 presos.

Pavilhão 4 (P4)Era pavilhão-hospital, considerado o mais triste e deprimen-

te. Lá também ficava a temida masmorra ou cela forte e os casosgraves ADD (À Disposição Da Diretoria). O preso nesse regimepermanecia incomunicável com o restante da prisão. O contatoera conseguido apenas através de pipas, camuflados por códigospara que os funças não percebessem. O dialeto, os códigos eramdemonstração da criatividade dos presos. Nesse período as visi-tas familiares eram canceladas.

No quinto andar ficavam os doentes com HIV. Os doentesem estado terminal ficavam em doze celas. No pavimentoainda havia um duchão com três chuveiros elétricos e umgelado, três vasos sanitários, uma sala de cirurgia improvi-sada, o depósito de remédios e o setor burocrático da enfer-maria central, onde eram feitos os encaminhamentos e re-tornos dos hospitais.

No quarto andar ficavam a gráfica, a laborterapia, o judiciá-rio, o setor de esporte e também alguns reeducandos em cum-primento de pena. No terceiro pavimento, ficava o setor do en-carregado geral da faxina e era ocupado para cumprimento depena. O segundo era um dos mais deprimentes, pois era o andardos doentes mentais e dos paralíticos. Todos os anda res ti-nham um duchão coletivo.

Na gaiola do P4 à direita estava à escada. A esquerda fica-va o único elevador em funcionamento de todo o complexopenitenciário. Mais a frente à esquerda existia a elétrica. À

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direita tinha um patronato de cadernos. No corredor a frentetinha outro portão, à direita ficava uma gaiola, onde os funçasdeixavam os requisitados para médico ou exame CTC. Na se-qüência vinha à masmorra, o pátio interno com seus diver-sos patronatos. Do outro lado ficavam os banheiros masculi-nos e femininos, o ambulatório, a chefia, a diretoria, o con-sultório médico, o raio-X, a carceragem, a escola, a igreja epor fim uma gaiola que antecedia o setor de tuberculose, áreaaltamente contagiosa.

No pátio externo havia a quadra de esportes. Atrás do pavi-lhão tinha um campo de futebol tipo society, um jardim com ban-cos de cimento, uma balança, duas gangorras e dois portões deferro ao lado da guarita que dava acesso ao P7.

População total= 69 presos

Pavilhão 5 (P5)O pavilhão cinco era considerado seguro de vida. Geralmente

habitavam lá os detentos que infringiam as regras do crime e oshomossexuais. Era também um dos mais populosos.

O pátio interno era constituído dos setores de carceragem,a chefia e diretoria, a odontologia (única existente no com-plexo), o setor de educação, a biblioteca, a enfermaria, a ca-pela São Luiz, o judiciário, a barbearia, a igreja PentecostalDeus é Amor, a academia, os banheiros para visitantes, a hi-dráulica, a manutenção, a igreja Congregação Batista Betel eo setor de espiral.

O prédio era composto por cinco andares com 71 celas dolado externo e 42 do lado interno em cada andar. Atrás do pavi-lhão existia um campo de terra pequeno.

No P5 ficava o amarelão. Dependendo da gravidade docastigo, o indivíduo era mandado pela diretoria para lá semretorno ao seu pavilhão de origem. Todas as celas de todosos andares eram moradias. Cabiam cerca de cinco presos emcada uma.

População total = 1.722 presos

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Pavilhão 6 (P6)A rigor era o centro de segurança e disciplina do complexo.

Ficava cercado por todos os pavilhões. Era o único composto porseis andares, sendo que só os dois últimos eram habitados porreeducandos. Era o pavilhão mais habitado por estrangeiros pre-sos, principalmente, por crimes internacionais. Eles ficavam, namaioria das vezes, em celas do quinto andar.

No sexto andar à direita ficavam: as celas de RCD (Regimede Cela Disciplinar), RO (Regime de Observação) e ADD (À Dis-posição da Diretoria). No quarto andar, ficavam a diretoria deeducação, ao lado setor de central de correspondência. No mes-mo andar ficavam as salas de aula, a sala de informática, a salade datilografia e cursos extras, a sala de supletivo da igrejaUniversal e a central da laborterapia.

No terceiro andar ficavam: o arquivo vivo, o expediente ge-ral, a correspondência oficial, a sala de sindicância interna e porúltimo a sala do diretor de disciplina e segurança.

No segundo andar era situado: o arquivo morto, o esportecentral (FIFA), Umbanda, judiciário central, a quadra de esportee uma academia de musculação, o salão nobre, posto culturalcentral, a sala de informações da VEC (Vara de Execução Crimi-nal) e a sala de diretoria de recursos humanos.

E, por fim, no térreo ficavam: a cozinha inativa, a dispensa,as caldeiras, a lavanderia, a elétrica, a sala do rondante, doiscorrós, a chefia, a carceragem e no portão de saída, uma mesaonde o funça controlava o trânsito com listas dos outros pavi-lhões. Era o único pavilhão que não tinha campo de futebol emenos populoso.

População total = 166 presos

Pavilhão 7 (P7)Foi construído para ser pavilhão de trabalho, embora não ofere-

cesse serviço para todos reeducandos. O P7 possuía um amplo pá-tio externo. Atrás dele estava situado um campo de futebol de ter-ra. O prédio era composto de cinco andares, sendo que todos os

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andares serviam de moradia. Em cada andar havia 45 celas do ladoexterno e 24 do lado interno, com a média de três presos por cela.Todas as celas 22-I eram celas de boieiros e encarregados do andar.

Rodeando o pátio interno existiam os seguintes setores: a pro-dução, a chefia e sala do diretor, a elétrica, a carceragem, a igrejaUniversal do Reino de Deus, a escola, o setor de clipes, o silk-screen, o setor de obras, a laborterapia, o jumbo, a capela Católi-ca, a judiciária, os banheiros para visitantes, a Assembléia de Deus,a Tenda da Mãe Ogun, a enfermaria, a lanchonete, a barbearia eno piso superior a academia de musculação para os presos.

As celas que não eram registradas nos setores de trabalhofechavam às 16h. As registradas fechavam às 19h.

População = 973 presos.

Pavilhão 8 (P8)Em princípio era destinado aos presos reincidentes. Era tam-

bém o pavilhão com a maior extensão, com um campo de fute-bol de terra, tamanho oficial e uma quadra de futsal. O prédioera composto de cinco andares, sendo em cada andar 44 celasdo lado externo e 30 do lado interno. Todas serviam de moradia.Com a média de cinco presos nas celas do lado externo e doispresos nas celas do lado interno.

Na entrada do pavilhão, dentro da gaiola ao lado esquerdo,ficava uma imagem de Nossa Senhora de Aparecida, com floresartificiais e uma bíblia nos pés da santa. Seguindo à esquerdaestava a carceragem. Em seguida constituindo o pátio internoexistiam a chefia, a igreja Assembléia de Deus, a cantina, o setorde rap e artes, a barbearia, a serralharia, a hidráulica e manu-tenção, a marcenaria e artesanato, o setor do lixo, o jumbo, oposto cultural, a laborterapia, a igreja pentecostal Deus é Amor,a igreja Universal do Reino de Deus, a Tenda de Umbanda, aescola, a igreja Católica, a cabine de som, a sorveteria, o judiciá-rio, o setor de lixo reciclado, a enfermaria, a elétrica e a acade-mia de musculação em cima da marquise.

População total = 1.489 presos

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Pavilhão 9 (P9)Assim como P8, o P9 era denominado fundão. Os dois pavi-

lhões eram os últimos do complexo. Teoricamente, o P9 era des-tinado para presos primários. No amplo pátio externo existiamum campo de terra, semi-oficial e uma quadra de futsal. Certodia fui conhecer o pavilhão, que recentemente havia passadopor uma reforma. Mesmo com uma “boa aparência”, quandoentrei nas dependências senti um calafrio, era o mais sinistro,tenebroso e de clima tensão pairava. Não conseguia esconder asmarcas do massacre ocorrido em outubro de 1992, quando 111presos foram executados pela Tropa de Choque da Policia Mili-tar, comandada pelo coronel Ubiratan Guimarães.

O pátio interno era constituído pela chefia, a diretoria, acabine de som, a igreja Universal do Reino de Deus, a escola, ojumbo, a manutenção, a produção, o laborterapia, a barbearia,o setor de cadernos, a escada de acesso a academia demusculação, a igreja Católica, a judiciária, a igreja Batista, aTenda de Umbanda, a lanchonete, os banheiros dos visitantes,a enfermaria e a elétrica.

O prédio era composto por cinco andares, sendo que todosserviam de moradias, em cada piso existiam 46 celas do ladoexterno e 52 do lado interno, com a média de 12 presos nascelas do lado externo e dois presos nas internas. Em todos ospavilhões os barracos internos eram menores os do que as celasdo lado externo.

População total = 2.035 presos

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FOTO JOÃO WAINER

“ O AMANHÃ PERTENCE SÓ A DEUS“ O AMANHÃ PERTENCE SÓ A DEUS“ O AMANHÃ PERTENCE SÓ A DEUS“ O AMANHÃ PERTENCE SÓ A DEUS“ O AMANHÃ PERTENCE SÓ A DEUS”””””

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– CAPITULO 6 –Segunda sem lei

Os boieiros, ao pagar o café da manhã, já estavamestressados no maior murmurinho na galeria. Nem osfunças queriam subir o prédio para soltar os presos para

tomar sol. Pelo andar da carruagem, a chapa iria esquentar. Quan-do todo mundo estava de tênis, calça comprida, logo cedo, sabiaque tinha maldade no ar. Mesmo assim peguei meu walkman eliguei bem alto. E, alheio ao quarto mundo, fui dar um pião paraver qual era o buxixo.

De cara, vi um monte de exum na rua dez trocando idéia jácom os nervos exaltadíssimos. Nem tomei conhecimento, virei econtinuei minha caminhada. A bruxa estava solta.

No quarto andar também havia uma confusão generalizada.Corria um boato que um maluco era talarico. No terceiro andar, oclima era totalmente tumultuado. Tinha um sequestrado sendo es-pancado, porque fumou o maldito crack e não tinha como pagar.

Vi uma pá de sangue-bom virar nóia, perder a moral e o cará-ter por causa desse vício devastador. Depois que perdeu o con-ceito já era. O cara virava lagarto para não morrer. No walkman,Bob Marley tocava I shot the sheriff. Continuei descendo, no se-gundo andar avistei um maluco apenas de cuecas e correntinhano pulso caído ao chão. O indivíduo agonizava numa poça desangue, com o crânio dividido e uma faca cravada nas costas naaltura dos pulmões. Vixe! Ficou feio na foto! O fedor de sanguefresco era repugnante!

Enquanto não é com a gente ou com um dos nossos, nadavimos. Assim não somos vistos e permanecemos incógnitos à si-

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tuação. Aquela era uma das cenas mais violentas que presencieidesde que fui preso. Segui em frente, virei à esquerda enquantoos predadores certificaram-se do serviço. O maluco levou facadaaté na sola do pé. Quando terminei de descer as escadas, piseina gaiola de alimentação. Mesmo com o som no último volume,consegui ouvir em alto tom o grito de misericórdia da caça e aomesmo tempo o do caçador: “Já era! Já era! Já era”. Estarrecido,nem olhei para trás. Continuei indo para o campo de futebol.

Minutos depois, o enfermeiro passou correndo, empurran-do o carrinho-ambulância e nele estava o cadáver. Pensei:“como pode estar ali um ser humano morto. Que frieza! Ocoração do ser humano ta na sola do pé. Meu Deus! Tenhomedo de me tornar um homem desprovido de sentimentos. Amim parece que todos são assim, porque se acostumaram aocotidiano violento”. Enquanto isso, em vez de assistir umapartida de futebol, vi o Terror dar um rodo e um tapa na ore-lha do Bino que caiu, tentou levantar, mas levou um chute nomeio do peito e caiu novamente.

Foi aí que a turma do deixa - disso correu para separar. Ossoldados do Bino chegaram bravos, mas se o tal patrão do tráfi-co apanhou, imagina o que poderia acontecer com os subordina-dos, apesar da massa ter chegado a um consenso de que a brigano campo findava dentro das quatro linhas. Contudo, na beirado terrão eu assistia mó pandemônio. Com certeza a discussãoiria ser resolvida dentro do pavilhão e, provavelmente, termina-ria em facada. Bino morava no quarto andar e o Terror no tercei-ro. Se essa fita não fosse bem conversada, engrossaria muitomais o caldo, podendo até pôr um andar contra o outro, pois osdois eram considerados e o Bino era o pai do mel.

Em todos os andares estava tendo briga. No dia anterior, apósterminar a visita no P9, cerca de 500 homens endiabrados per-tencentes à Seita Satânica (SS), queriam bater de frente com afaxina do terceiro andar. Eles estavam vestidos e calçados depreto, prontos para agraciar Satanás com um banho sanguíneo,só que não contavam que a faxina seria apoiada pelas faxinas

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dos outros pavilhões e a maioria da população carcerária. A con-fusão foi geral, porque também tinha faxineiro de preto e nin-guém sabia ao certo quem era quem. De qualquer maneira, eununca tinha visto alguém desafiar a temida faxina do P9, comseus mais de 600 faxineiros. O bagulho estava louco e com certe-za a rivalidade não iria acabar assim.

À beira do campo de futebol eu observava os fuzis encostadosna guarita. Os PMs, de braços cruzados, assistiam à nossaautodestruição com sorriso no rosto. Senti uma angústia tão gran-de que minha cabeça chegou a doer. Acabou o lado da fita doBob Marley, virei e saí andando curtindo Racionais Mc’s, MundoMágico de Oz.

No campo tentavam pôr os pingos nos is. O PM continuavarindo, agora apoiado na muretinha da muralha. Resolvi voltarpara o mundo interno do meu xadrez. Subindo ao segundo an-dar avistei os faxineiros. Eles iam dar início à lavagem do san-gue, fazendo a limpeza dos pedaços de carne humana e dos ves-tígios de massa craniana. Mesmo após tudo bem lavado, o odordo sangue impregnava todo o ambiente. Mais adiante soube deum fato que me deixou ainda mais chocado.

Um diabinho da SS decepou alguns dedos do morto – verda-deiro ato de crueldade - para executar um ritual macabro. Pen-sei que essas cenas só aconteciam em filmes de terror. Meu Deus!Aquele lugar era o verdadeiro inferno!

Repugnado, segui subindo as escadarias do prédio, pensan-do em minha liberdade, minha vida, minha filha, meus pais,meus familiares. Invoquei Jesus Cristo, pedindo paz, força, sabe-doria e proteção. O walkman tocava minha trilha sonora: “Que-ria que Deus ouvisse a minha voz e transformasse aqui no mun-do mágico de Oz”. Firmei os passos e fui parar na minha cela, a8529-I. As tretas continuavam sendo debatidas. Os ânimos es-tavam à bilhão, mas a fita do terceiro andar com muitíssimocusto e muita idéia foi apaziguada. O maluco não tinha comopagar a droga consumida e para não morrer ficou a disposiçãodos bandidos. Virou laranja!

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O quarto andar já estava calmo. O talarico foi para o P5 (pavi-lhão de seguro), porém levou uns tapas na cara e umas facadasna jaca. Teve sorte, pois a sentença era a morte!

Cheguei a minha cela, que fica bem próxima à rua dez. Estavao maior alvoroço. A bruxa estava solta naquele dia. Liguei a TV,dei um pião no seletor de canais. Não consegui sintonizar nadamelhor do que Tom & Jerry. Fiz um suco artificial de abacaxi,voltei à fita para novamente ouvir Racionais Mc’s dessa vez, amúsica A fórmula mágica da paz. Dei um gole no suco. Na TV,nada interessante. Vi o Jerry dar umas pancadas no Tom. Abri aporta do xadrez para dar uma olhada rápida no movimento docorredor e vi um rapaz que conhecia de vista que vivia fazendouns corres loucos para cima e para baixo a fim de levantar umagrana para sustentar o maldito vício.

As más línguas diziam que era porque ele tinha roubadooutro preso. Rato de mocó meu! Mas, independentemente dequalquer coisa, ele tinha um conceito, pois uma pá de exuestava do lado dele e contra a faxina. A tensão do debate foitanta, que ele não suportou a pressão psicológica e confessouo erro. Quebrou as pernas dos parceiros que deram apoio ecolocaram as próprias vidas em risco. Quando os faxineirosganharam o debate, todos viraram contra ele. Para amenizarcom a faxina seus companheiros disseram:

“Pode deixar que nós tomamos conta disso!”Os faxineiros guardaram as facas, cruzaram os braços e junta-

ram-se aos demais expectadores. E, para evitar guerra com os faxi-nas, os próprios companheiros, deram covardemente quase que aomesmo tempo, dezenas de facadas no peito, na barriga, na cara,nas costas, nas pernas e até na sola dos pés. Novamente os inte-grantes da SS entraram em cena para a coleta de órgãos humanos.

A neurose dos companheiros revoltados era tamanha, que umdeles com uma faca com cabo branco de açougue arrancou o cora-ção do traidor e mordeu. O sangue escorria pelos cantos da boca.Parecia que o coração ainda pulsava. Enquanto isso, outro homemendemoninhado arrancava um dos olhos do esfaqueado. Dificilmen-

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te o IML (Instituto Médico Legal) conseguiria decifrar quantas faca-das esse indivíduo tomou. Enquanto o olho esquerdo do morto eracolocado em um vidrinho, ouvimos um grito: “Já era!”. Horroriza-do, dei uma olhada, pensei comigo: “Já era mesmo!”

Quando cheguei ao Carandiru, as regras já existiam e mesmoque não concordasse com elas não poderia ir contra. Eu não eramelhor do que ninguém para inventar regras novas na cidadevelha. Tive que fazer a minha correria e comprar uma cela novalor de R$ 600 para morar. A pior coisa era depender dos ou-tros. Quando menos esperava, tacavam na cara. A maioria dospresos era interesseira e só ajudava visando algo em troca. Alémdisso, eu tinha visita íntima e era raridade alguém fazer o sacri-fício de sair do seu conforto para andar o dia inteiro a fim de queo outro tivesse algum momento de prazer. Quem não tinha visi-tas intimas invejava quem as tinha. Sorte daquele que recebevisitas, já que a maioria dos presos era abandonada pelas famíli-as. Por isso decidi comprar a cela 529-I. Como o imóvel era valo-rizado no Carandiru! Será por que estava situado numa regiãocentral? Ou será por que algumas celas tinham vistas para ometrô? Ou por que outras tinham vista para o Center Norte? Dealgumas celas dava até para ver o movimento do mundão. Tran-seuntes em seus carros, a linha azul do metrô. Até a AvenidaPaulista, eu conseguia avistar. O barato era louco. Parecia umamiragem: estava perto e ao mesmo tempo tão longe.

Nos finais de tarde, os presos que exerciam a função de car-teiro entregavam as correspondências nas celas. Muitas vezes,as cartas eram passaportes para grandes emoções. Serviam atémesmo como uma visita, nos fazia sair daquele mundinho deprisão, tristeza, reclusão social e nos trazia alegria de ter infor-mações boas de quem estava do outro lado da muralha.

Certo dia recebi uma carta que não trazia uma boa notícia.Meu irmão Bad escreveu dizendo que o Adhemar, um conheci-do nosso, havia feito um assalto. Houve troca de tiros e ele foialvejado. O mano perdeu os movimentos das pernas e passoua viver em uma cadeira de rodas. Pensei na hora: “olha as

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conseqüências do crime! Agora só Jesus pode fazê-lo andar,agora só um milagre!”

É uma grande virtude enxergar um palmo além do nariz. Co-mecei a perceber coisas que me deixaram desapontado. Vi muitagente morrendo por causa de ninharia. Presenciei atos banaisfruto de desamor, falta de humanidade e muita opressão. Coisasque poderiam ser resolvidas numa conversa amigável. Mas oCarandiru era a terra de ninguém, onde só podíamos contar comDeus. A cegueira espiritual de muitos e suas mentes empresta-das ao Diabo agiam de forma tão espantosa que contando ficadifícil alguém imaginar.

Na Casa de Detenção as mentes eram oficinas da maldade.Certa vez vi um cara sendo vítima de uma roubadinha. Ele foiextorquido e violentado. Na cadeia não vale nada o ditado antesum covarde vivo, do que um herói morto. É melhor ser um ho-mem morto do que a palavra não valer nada. A dignidade e amoral valiam tanto quanto a vida. Porém vi pouquíssimos presoslutando por liberdade. A mente havia atrofiado, o corpo e a almaestavam presos no quarto mundo. É incrível a capacidade queum ser humano tem de se conformar em praticar o mal. Enten-der a prisão é muito complexo, cada qual interpreta ao seu modo.Éramos testados psicologicamente em todos os momentos. Viví-amos em conflito interno e a briga entre o bem e o mal era trava-da diariamente. Só os fortes resistiriam.

O complexo penitenciário era formado por famílias, ou seja,grupos de aliados e parceiros de uma mesma região ou não. Eramunidos em qualquer situação. A maior família era a da Zona Leste.Eu nunca me envolvi com elas, sempre trilhei minha caminhadasozinho, porque sempre corri pelo certo, não caguetei ninguém,nunca dei a bunda na cadeia e se eu não puder adiantar, jamaisvou atrasar, porque acredito 100% na lei da causa e efeito.

Os meses foram passando: mais um Natal, mais um Ano Novo,mais um Carnaval. Quatro aniversários perdidos. Quatro anosde neurose e sofrimento. Só Deus para saber se eu sairia vivo.Mesmo com todos os contratempos, fui convivendo, aprendendo

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e sobrevivendo no ninho de cascavéis. Com muito jogo de cintu-ra, tentava me esquivar dos atrasalados. Contudo, se nem JesusCristo que foi o único homem perfeito do mundo, conseguiu agra-dar a todos, imaginem eu, um mero mortal. Nunca conseguiria.

Para passar o tempo eu fazia desenhos artesanais. Uma espé-cie de papel de carta confeccionado com diversos desenhos colo-ridos, purpurinados, com frases românticas em letras manuscri-tas. Vendia por um maço de Hollywood (cigarro era a moeda dacadeia). Vendia aproximadamente 30 desenhos por dia. No finaldo mês eu tirava cerca de R$ 400 e ajudava a minha família. Massempre tinha alguém para testar a fé.

Certo dia, um malandrão quis montar uma roubadinha emcima de mim para tomar minha cela. Então, numa segunda-fei-ra, que pelo resto de minha vida ficará em minha memória, fuiao barraco de um traficante fazer a cobrança. Um dos indivíduosque morava com ele havia comprado 30 desenhos. Já passavamde duas semanas e ele não me pagava e nem dava explicaçãopara o atraso. Só podia estar me tirando como otário.

Quando entrei na cela, tinha um montão de gente trocandoidéia, cheirando farinha e fumando mesclado, mó fumaceira.Nesse instante toda a atenção se voltou para mim. Educadamentepedi licença, saudei a todos com a mão e chamei o tal fulano decanto para saber o que estava pegando. O maluco, na maior ar-rogância e com a voz alterada, chamou a atenção de todos nobarraco gritando:

“Então maluco, essa é hora de vim me cobrar? Estava na mai-or idéia com meus aliados. Sem contar que 30 moedas pra mimé merreca, é mixaria.”

“Só vim aqui te cobrar porque faz semanas que você disseque iria me pagar e não pagou. Não me deu nenhuma satisfação.E a sua palavra não vale nada?”

Nessa hora todos levantaram. Revoltado, o traficante orde-nou que um dos presos travasse a porta por dentro da cela. Omalandrão, gesticulando muito e falando gíria, sacou um cabobranco da cintura e comprou a treta. O tal traficante tinha diver-

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sos soldados ao seu comando que o defendia com a própria vida,só sei que a chapa esquentou!

O calor psicológico não me intimidou. Não demonstrei fraque-za para o bolo podre. Além disso, eu estava certo. Sabia bem comoproceder e conhecia a ética do crime. Poderia até acontecer umacovardia que custasse a minha vida. Entretanto, na continuação,sei que os parceiros iriam cobrar. Os manos estavam ligados queeu não dava mancada. As vozes foram se alterando de ambos oslados. A discussão foi tomada pelo nervosismo. Queriam passar oerrado por certo e eu não admitia. Batia de frente dizendo:

“Só quero o que é meu. Se vocês me matarem, vão matar umsujeito homem e que tá certo” Irredutível, o traficante disse queo malandrão não iria me pagar porque eu não soube cobrar. Semcontar que não acreditaram em mim. Disseram que se eu corres-se atrás do prejuízo, me mandariam pro amarelão, no P5, e ain-da ficariam com a minha cela.

Indignado com a situação, tentei reverter a meu favor. Eracomo um jogo de xadrez, ataque e defesa. E, naquele instante,meu melhor lance foi recuar um pouco para retornar com umcontra-ataque fulminante. Xeque! Saí dizendo que 30 moedasnão me deixariam nem mais rico e nem mais pobre. Eles mesubestimaram e me mandaram sair andando.

Saí da cela atacado. Subi correndo as escadas. Fui parar nafaxina do quinto andar. Já cheguei desabafando para o encarre-gado. A faxina é o coração da cadeia. Todos os problemas, demodo geral, eram discutidos por ela, inclusive as sentenças demorte também eram decididas lá.

Enquanto eu explicava o fato para o encarregado chegou ummano que me conhecia da penitenciária de Presidente Bernardes.O mano era super respeitado no crime, devido seus 15 anos decaminhada limpa dentro do sistema. Eu estava cumprindo quasequatro anos e sempre tive meu conceito. Jamais admitiria queuns pés de breque tirassem minha moral. Liguei o ocorrido parao mano também e disse que estava disposto a duelar com omalandrão que queria me tirar.

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“Demorô! Se você estiver certo a gente tá lado a lado, corren-do com você. Só não pode quebrar nossas pernas!”

“De jeito nenhum rapaz. Tô certo. Disposição é mato, vôpro arrebento.”

Nessa hora meu coração ficou apertado. Pensei: “Caramba.Sinto que estou na idade medieval, igual um gladiador preste aduelar na Rua 10, a arena da detenção”. A ajuda quase semprevem de onde a gente menos espera. Nessa fita fui armado poruns manos do barraco de frente ao meu. Me deram um facão deaço confeccionado na cadeia e ainda disseram que se tivesse co-vardia eles entrariam na treta. Era nóis na fita!

Estava transtornado naquela hora, nem eu mesmo me reco-nhecia. Era matar ou morrer. Minha fisionomia estava mudada.Eu suava. Meus batimentos cardíacos estavam à milhão, igualbateria de escola de samba. Fiz um juramento para mim mesmo,que custasse o que custasse, iria sobreviver.

Mesmo diante daquele clima tão tenso, embaraçoso e exaus-tivo clamei interiormente pelo Senhor dos Exércitos. Senti entãominha alma ficar serena, pronta para defender a minha vida aqualquer custo, assim como minha moral. Então meu instintoguerreiro ficou pronto para o combate. A fé é imprescindívelnessas horas. A sorte mudou de lado. Era minha vez de surpre-ender os inimigos. Eles não imaginavam que depois de tudo, euainda bateria de frente.

Os atrasalados foram requisitados na faxina do quinto andar,que era a nave central de todos os debates. Quando chegaramna gaiola do andar, notaram um movimento diferente. Percebe-ram uma pá de caras de canto, com olhares sinistros, volume nacinta e com semblantes preparados para a guerra. Ficaram per-plexos quando me viram.

A cela estava abarrotada de presos e o encarregado pediu paraeu dizer o que havia acontecido. Repeti o ocorrido na presençade todos os bandidos. Em seguida, como num júri, ouvimos aversão do malandrão. Sempre eram ouvidos os dois lados dequalquer questão. Ao tentar se justificar, dizendo que eu não

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soube fazer a cobrança, o malandrão foi Imediatamente inter-rompido e os vários bandidos afirmaram:

“Quem deve é a cara pagar! Nunca vimos o mano aqui metidoem confusão, o que não é seu caso!”

Incisivo, o encarregado concluiu que o malandrão estava er-rado e que não adiantaria bater o pé. As evidências eram notóri-as. Deu o prazo até o outro dia às 12h para ele me pagar o quedevia. Todos deram a palavra de homem e bruscamente o encar-regado do setor da faxina finalizou dizendo:

“Já era manos, já era!”Senti um alívio enorme. Interiormente dei glória a Deus pela

vitória. A justiça foi feita. Agora tinha que ser cada dia mais sa-gaz para superar o limite entre a vida e a morte. Nesse momentocumprimentei apertando a mão de todos os bandidos, agrade-cendo também pela sensatez. Aquela experiência somou em maisuma página da minha vida, que graças a Deus teve um final feliz.Minha mãe costuma sempre dizer que depois da tempestade vema bonança. Acredito neste ditado. Uma semana após esse infor-túnio, minha pena foi reduzida. Ganhei um beneficio de apela-ção no total de nove anos de reclusão, apesar das falhas do pro-cesso serem suficientes para minha absolvição.

Minha pena que era de 23 anos foi reduzida para 14,5 anosde reclusão no regime fechado. Enquanto não vinha a minhaliberdade, a prioridade era sobreviver naquele lugar com a cer-teza de que Deus me daria o livramento.

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– CAPÍTULO 7 – Campo de concentração

Quinta-feira, 15 de fevereiro de 2.000. Por volta das 6h damanhã acordamos assustados com as pancadas do funçano guichê, gritando:

“A contagem. Óia a contagem.”Permaneceu batendo no guichê até que a luz fosse acesa. Ele

nos contou e foi contando de cela em cela. Estranhamos, poisnão era praxe contagem neste horário. O funça ainda deu umaletra, só que não captamos. Ele disse:

“Guardem a sacola de pães. Vocês vão precisar!”Ainda estava escuro. Voltamos a dormir. Porém menos de uma

hora depois o Careca levantou gritando:“Óia a Tropa de Choque. Óia a Choque mano!”Levantamos. Subimos todos na jega de cima para olhar pela

ventana e ver o que estava pegando. Nisso, vimos a Choque apostos na Divinéia com os seus cães latindo, estilo soldadinhode chumbo. Estavam armados com metralhadoras, fuzis, escu-dos, capacetes e alguns até com colete, prontos para embocar.Mais que depressa começamos a desmontar os quietos e tirar osquadros da parede, principalmente os do Malcom X, dos Racio-nais Mc’s e por fim a foto do Caco Barcellos com o Dexter. Tira-mos todas as nossas coisas para que os policiais não destruís-sem. Da última vez, zuaram tudo! Jogaram óleo e pó de café emnossas roupas. Fizeram com que ficássemos nus e ajoelhadoscom as mãos na nuca por mais de uma hora. Os cachorros trei-nados latiam, babavam e pareciam loucos para estraçalharemladrão. Essas terríveis experiências deixam muitas seqüelas. Co-

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nheci alguns sobreviventes que ficaram traumatizados devidoao episódio que assistiram em outubro de 1.992, quando 111presos foram assassinados dentro do Carandiru. A tropa de cho-que banhou de sangue as galerias e escadarias do P9.

Relutamos, mas fomos coagidos. O policial ordenou para quetirássemos nossas roupas. Olhamos com a maior cara de despre-zo e Dexter, irônico, perguntou:

“É agora que a gente vai sair?”. Os PMs da tropa de choqueresponderam: “

“Vai Zé, vai Zé!”Com desdém tiramos nossas bermudas, ficamos só de cuecas

e de joelhos olhamos para a bolinha dos olhos do policial, queesbravejou apontando a arma.

“De costas! No canto da cela de joelhos! Sai logo, seu filho daputa! Vai Zé, vai logo!”

Enquanto isso, na cela 502-I, um detento chamado Gil se re-voltou com a atitude da tropa e em voz alta chamou a atenção detodos:

“Cu, não! Me respeita! Sô homem! Quer me humilhar? Mehumilhar vocês não vão! Aí todo mundo, tão querendo me zuar!Aí todo mundo.”

O grito ecoou na galeria. Algum tempo depois, vimos daventana que Gil vestia apenas cueca. Ele estava sendo levadopara a Divinéia, com as mãos para trás. Estava sendo agredidocovardemente por funcionários da Casa de Detenção e por PMsda tropa de choque. Gil, na neurose, continuou exigindo seusdireitos e pedindo respeito. Mas mesmo assim foi de bonde parao Anexo de Taubaté, no interior paulista.

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– CAPÍTULO 8 – Inocente ou não

Trocávamos idéias S.R., o Z, o Bebeto e eu. Falávamos denossas famílias, da dificuldade em sair da vida do crime,assuntos pertinentes a música e quando ainda falávamos,

no rádio tocou a música Esquinas, do Djavan. Ela nos fez relembraros bons momentos que passamos quando éramos felizes e nãosabíamos. Estávamos empolgados com a conversa quando de re-pente ouvimos baterem na porta da cela: “Tum, Tum, Tum”.

Com passos cuidadosos o maluco entrou no barraco. Nesse ins-tante toda atenção se voltou para ele. Foi aí que eu quis saber:

“Liga mano, qual é a fita?”Houve silêncio por alguns segundos. O rosto do rapaz não

disfarçava o nervosismo e até certo medo. Depois, com sotaquearrastado, ele disse:

“É que eu sou do Sul do país e lá ouvia a música de vocês. Ummano ligou que vocês moravam aqui. Nem acreditei. Todos sãodo grupo?”

“Não! Só eu e o Dexter”, respondi.“Quem é o Dexter?”“Ele tá tirando um descanso. Faz um favor, volta na seqüência

que você conhecerá o parceiro, certo?”“Ta bom! - Depois eu volto”, respondeu o sulista.Assim que ele saiu comentamos que o cara era humilde e tal-

vez nem fosse do crime.“Ah, mas quem vê cara não vê coração”, retrucou Bebeto.Não passou muito tempo e o sulista estava de volta. Olhou

pelo guichê e meio desconfiado abriu a porta. Entrou novamen-

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te no xadrez sem pedir licença. Ficou alguns segundos parado,só observando. Todos nós ficamos impressionados com o rápidoretorno e a ansiedade do rapaz em conhecer o 509-E. Sugerimosque ele sentasse. O maluco sentou no banco de concreto e apoiouo cotovelo direito na mesa também de concreto e calado conti-nuou observando. Foi então que puxei assunto:

“Qual o seu nome?”“Jairo. Jairo dos Santos, mas me chamam de Catarina.”“Por que você tá preso, Jairo?”“Num sô do crime não. É que eu vim do Sul para trabalhar

aqui e quando cheguei na rodoviária do Tietê fui roubado.”“Mas porque você veio pra trampar em São Paulo?”“Eu morava em Araranguá, em Santa Catarina, e era pesca-

dor. Mas não tava dando nem pro sustento. Minha família é po-bre. Sou casado e tenho um filho de nove anos. Meus pais traba-lham na lavoura de arroz. Eu assistia na televisão que São Pauloera um bom lugar de ganhar dinheiro, que tinha muitas empre-sas, bastante emprego e iludido decidi arriscar tudo em busca deuma vida melhor. Juntei tudo o que tinha, dava para compraruma passagem de vinda e dormir duas noites numa pensão.”

“Mas me diga, por que você foi preso?”“Quando eu cheguei em São Paulo e desci na rodoviária do

Tietê dois homens me abordaram dizendo ser policiais. Eles rou-baram tudo o que eu tinha: dinheiro, documentos, e até a espe-rança. Desnorteado, sem conhecer ninguém, num lugar estra-nho, fui andando. As pessoas não me davam atenção e muitomenos queriam saber o que aconteceu comigo. Minha cabeçarodopiou que nem um pião. Fiquei todo confuso. Lembro comose fosse hoje, fazia muito frio e meu estômago vazio reclamava.São Paulo era totalmente diferente do que vi na TV. Na televisãovia as pessoas calorosas e amistosas. Senti na pele que os cida-dãos daqui eram iguais a temperatura.”

“Cheguei até a pedir algo para comer nos botecos que encon-trava pelo caminho, mas queriam me pagar apenas pinga. Entreas pessoas tiveram exceções uma ou outra me deu um pedaço de

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pão, um prato de comida. A grande maioria me ignorava, tinhamedo por causa da minha aparência e fisionomia. Continuei an-dando, diversos porquês confundiam meu raciocínio eperambulando pelas ruas fui parar nas escadarias da catedral daIgreja da Sé”.

“Eram umas 17h. As portas da Igreja estavam abertas. Entrei,rezei, deixei tudo na mão de Deus para ser ajudado e abençoadono meu dia a dia. Pedi também para voltar pra Santa Catarina.Depois saí sem destino, caminhei uns 50 metros. Fui abordadopor um casal que distribuía panfletos de evangelização da As-sembléia de Deus. Começamos a conversar sobre a situação ter-rível em que me encontrava. Pediram para eu ter fé, que Cristo éa salvação e ele iria providenciar minha vitória.”

“Perguntaram se eu já tinha me alimentado. Respondi quenão. Eles disseram que não me acolheriam porque não tinhamcondições, pois a família deles era muito grande. Mesmo assimme convidaram para jantar. Fomos pro ponto de ônibus, pega-mos o Vila Penteado. O casal pagou minha passagem. No ônibuseu dizia que estava admirado com a cidade, por que comparadacom a minha cidadela, os prédios aqui são bem maiores que osde lá, eles riam muito da forma deu conversar, muito ligeiro.Explicaram que eu estava na terceira maior metrópole do mun-do. Se uma pessoa é atropelada os outros passam por cima. Nin-guém ajuda ninguém. Disseram que aqui a pessoa tem dois ca-minhos. Ou trabalha para sobreviver ou cai pro assalto. Princi-palmente forasteiros iludidos pela cidade grande. Disseram tam-bém que muitos se davam bem, outros retornavam para a cida-dezinha de onde saíram ou viravam mendigos. Comentaram quecom o meu jeito meio sonso, era capaz que os outros se aprovei-tassem de mim”.

Os evangélicos ainda orientaram o catarinense:“Você tem que ser mais esperto! Não converse com qualquer

um, tá? Por que têm pessoas boas, mais a maioria tem maldade,pode até te pôr na vida do crime, te iludir com drogas. Essasforam as palavras daquele senhor crente e de bom coração”.

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“Ao descer do ônibus, caminhamos uns cinco minutos até acasa deles. Era um sobrado modesto, de cor amarela com jane-las e portões de alumínio, não tinha garagem. Havia uma pe-quena varanda, um tanque de lavar roupas no canto esquerdo,um varalzinho com uma toalha pendurada. Fiquei na varanda.Eles entraram pela cozinha. Eu queria ficar ali mesmo, mas in-sistiram para que entrasse. Então, fiquei sentado na cozinhaenquanto a mulher fazia a comida e o marido dela tomava ba-nho. Depois que jantamos, o irmão me levou na casa do pastor,que ficou boquiaberto e me perguntou por que eu tinha saídoda minha cidade”.

“Depois de nossa conversa o pastor se propôs a me ajudarprovisoriamente. Pediu para o seu filho me levar para a crechedeles. Chegando lá me apresentaram a todos. Mostraram ondeeu iria ficar. Fiz minha cama no chão, me arrumaram um col-chão igual ao nosso aqui, rezei junto com eles, conversamos so-bre meu caso e fui dormir”.

“Ao amanhecer, enquanto esperava fazer o café na cozinhada creche a mulher do pastor chegou com uns papéis nas mãos,perguntando se eu sabia desenhar. Eu disse que mais ou me-nos. Ela me mostrou umas cinco folhas com desenhos infantis eperguntou se eu conseguiria desenhar nas paredes e nos mu-ros. Respondi que sim. Desenhei nas paredes externas e noportão da creche. Botei o Pato Donald e o Patolino na entradano portãozinho, espalhei os outros desenhos pela creche toda.Levei dois dias para terminar tudo. Como pagamento, recebicomida e estadia.”

“Noutro dia, ao amanhecer, pedi um copo de café para umamulher que trabalhava na cozinha da creche e ela respondeucom estupidez que não era minha empregada. Nem levei emconsideração. Virei as costas e saí. Fui terminar as pinturas evoltei ao meio-dia para o almoço. Nessa hora ela perguntou oque eu estava fazendo na cozinha. A mulher me pareceu indig-nada e disse que era melhor eu voltar para minha terra. Mesmoassim, serviu o almoço.

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“Chorei bastante quando lembrei do que tinha ouvido. A cozi-nheira tava certa, eu tinha que voltar pra minha cidade mesmo.Ao cair da noite tomei banho e desci para rua, era mais ou me-nos 20h. Botei um cigarro no dedo e saí fumando ladeira abaixo,igual a um louco. Após uns 500 metros, encontrei um mendigoque me pediu um cigarro. Dei um pra ele e me sentei ao seulado. Aproveitei e tomei um gole da cachaça que ele carregava.Triste comecei a desabafar. A calçada serviu como um divã e omendigo como um conselheiro, diga-se de passagem, do Diabo.Neste momento pensei que éramos iguais, ele era um mendigo,mas era um mendigo consciente. Sabia o que tava falando.

“O problema do mendigo era a esposa que o deixou. Nuncame esqueço ele levou a garrafa de pinga à boca, como se elafosse um microfone e disse: ‘se amar fosse pecado, eu jamaisseria perdoado, porque estou amando demais’. Ele era um poe-ta. Sabia conversar, apesar de ser mendigo. Em nossa conversaele me convenceu que o único jeito era assaltar, porque ninguémdava nada pra ninguém em São Paulo. Agradeci pelo gole decachaça, me despedi e saí meio tonto, cambaleando, apoiei nomuro com a mão canhota, comecei a chorar pensando em minhamãe, meus irmãos e em tudo que havia deixado para trás.”

“E pensando, falei com Deus. Pedi para eu voltar para meuestado. Eu tava de bermuda, chinelos e camiseta. Resolvi voltaraté o mendigo, tomei outro gole e disse pra ele agora eu voumesmo... e fui.”

“Parei num trevo. Minha cabeça doía muito. Nesse momentoavistei um carro e percebi que era um táxi. Acenei. Ele parou.Abri a porta dianteira, sentei no banco do passageiro e disse aotaxista para tocar rumo á Santa Catarina. Ele pensou que era umbairro muito violento na zona Sul, mesmo assim continuou ro-dando. O taxista só foi perceber que eu estava bêbado quandoavisei que ia mijar dentro do carro. E mijei. Ele reclamou e disseque ia parar o carro.”

“Com a mão esquerda em baixo da camiseta simulei estar ar-mado e disse que ele não iria parar o carro porque era um assal-

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to e eu queria ir para Florianópolis, em Santa Catarina. Em pâni-co, o velho taxista fez seu apelo: ‘Pelo amor de Deus, eu tenho62 anos. Trabalho honestamente pra cuidar da minha família,meus filhos, minha mãe. Trabalho porque preciso. ’”

“Na sequência, pedi que ele parasse o carro. Peguei o dinhei-ro, coloquei o taxista no porta-malas e assumi a direção. Dirigisem saber. De vez em quando eu mexia na marcha e arranhavatudo e o coitado do taxista gritava do porta-malas para eu tomarcuidado para não bater o carro. E eu mandava calar a boca. To-quei sentido Limeira. Avistei uma barreira com várias viaturas,era uma blitz. Conclusão: os policiais me pararam. Ouviram otiozinho no porta-malas em pânico. Aí o chicote estralou promeu lado. Apanhei até umas horas, fiquei cheio de hematomas eainda me quebraram um braço. Me confundiram com ladrões deuma quadrilha que roubava carros e levava para o Paraguai.”

“O xadrez para onde fui levado estava superlotado. Nem seicomo cabia tanta gente. Perguntei para o preso mais velho como éque funcionava o xadrez. Recebi as orientações de praxe. Eu nãosabia, mas estava tudo pronto para uma fuga. Os manos serraramas grades e eu segurei a porta para passar os quatros manos. Nes-sa hora pensei na liberdade e não resisti, fui o quinto. Saí à mi-lhão. Lá fora perguntei: E agora? Pra onde é que eu vou? Ummano de Santos sugeriu que eu fugisse com ele. Entrei dentro deum Santana quatro portas que tava estacionado com a chave nocontato. Nem imaginava para onde tava indo. Depois de uns mi-nutos chegamos a uma mansão. Ele tocou a campainha e se iden-tificou pelo interfone. O portão abriu. Entramos e uma mulherloira nos recebeu. Tomamos um cafezinho na casa e descemospara a garagem, lá tinha um carro e quatro caras armados compistolas 9 milímetros, 45 cromadas e fuzis. Os caras perguntaramquem eu era. O mano de Santos respondeu que eu era sanguebom e que estava dando uma força pra eu voltar para minha casa.

“Enquanto eles conversavam, eu com medo olhava para asarmas. O que eles falavam eu não estava nem ouvindo, muitomenos entendendo. No outro dia a mulher do Santista foi ao

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banco pegar dinheiro para eu retornar para casa. Me levarampra rodoviária, agradeci por tudo, comprei a passagem e volteipra minha terra. Botei a cabeça no lugar e fui trabalhar de ser-vente, de engraxate, vendi frutas, cervejas e refrigerante na praia.Passei num concurso da prefeitura do município de Balneáriopara trabalhar em serviços gerais. Fiquei um ano. Até que a mes-ma cachaça que nove anos atrás me trouxe pra cadeia, me pren-deu! Estava num boteco, bebendo com uns amigos depois doexpediente, arrumei uma confusão, fui parar na delegacia e cons-tatou que eu era fugitivo da justiça, aí minha casa caiu! Por issoque o crime não compensa. Minha mulher vendeu a TV e daquiuns quinze dias ela vem me visitar.”

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“DEUS ESCREVE“DEUS ESCREVE“DEUS ESCREVE“DEUS ESCREVE“DEUS ESCREVE

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– CAPÍTULO 9 – Conheci uma estrela

Entardecer de inverno de agosto de 2.000. Uma beldade noauge da juventude voltava para casa após seu hobby: fazercompras no shopping acompanhada de uma amiga a bor-

do de seu Audi A3 prata. Por descuido, ela havia esquecido emcasa o estojo de CDs. Sem opção sintonizou o rádio na FM paraouvir uma música que agradasse. Nesse momento a amiga disse:

“Deixe aí na 105 porque vira-e-mexe toca um rap da carta,que você vai adorar!”

“Ih! Rap? Aquela música que só fala de violência?”“Esse rap é diferente. É muito legal. Se você não gostar, a

gente muda de estação, tá bom?”Assim que acabaram de falar, como se fosse planejado, o rap

da tal carta tocou.“Amiga, amiga! Aumenta o volume. É essa a música!”

Alô, alô amiga, como vai você?Senti saudades resolvi te escrever

Espero que esta carta te encontre numa legalCom saúde, harmonia e tal

Eu tô por aqui, na fé, na pazNa correria, adiantos e mais

(Trecho do rap Saudades mil/ Dexter 509-E)

A música fala de sentimentos, em especial da saudade. A me-lodia tocou fundo o coração daquela jovem, tirando toda máimpressão que tinha do rap. No término da música, o locutor

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anunciou o nome do grupo. Mais que depressa pediu para que aTatá, sua amiga, anotasse o nome, já que as duas desconheciama existência dele.

Seguiram o percurso na marginal Tietê sentido Castelo Bran-co, foi quando a jovem resolveu parar em shopping para com-prar o CD do grupo 509-E. Quando pegaram o disco na mão,olharam para a capa e ficaram impressionadas com o realismo eacabaram deduzindo que era uma montagem para o marketingdo produto. Tata, conhecendo bem a amiga, notou certo encan-tamento, algo assim meio anormal. Nesse instante deu um sorri-so sarcástico e balançou a cabeça.

Eufórica, ainda com o CD na mão, sorriso no rosto, a jovemdona do A-3 disse apontando para o cara do lado direito da capa

“Ah! Ele não é lindo?”No mesmo instante se apressou para pagar o CD. Foram para

o carro e seguiram rumo a Alphaville. Em poucos minutos esta-vam em casa, já era noite. Parou o carro na garagem e retirou dobanco traseiro sua bolsa Louis Vuitton e várias sacolas com aajuda de Taís. Caminharam para o quarto amplo. As sacolas fo-ram jogadas pelo chão. Deitaram sobre a cama enorme, modeloking size. Retirou o CD da bolsa. Elogiou a qualidade do encartee pôs no micro system para tocar.

“Nossa! Não é montagem não! Os caras realmente estão pre-sos naquela cadeia onde só tem ladrão de alta periculosidade, oCarandiru!”

Em princípio a jovem sentiu certo receio, pois nada daquilofazia parte da sua realidade, por ser uma pessoa de mente aber-ta seguiu o que seu coração mandava. Com o controle remoto namão aumentou o volume do som e atenciosamente lia todo oconteúdo do encarte. Seu interesse aumentava a cada página.

No seu modo de ver, aquele CD era um trabalho inusitado e aomesmo tempo exótico. As fotos revelavam uma história de sofri-mento, lição de vida. As lágrimas rolaram. O CD foi ouvido muitasvezes e a amiga não aguentava mais o repetição, muito menoscomentar sobre o assunto. Por um momento se arrependeu de ter

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feito o comercial, porém achou que aquela euforia era passageira.Aturou a teimosia da amiga até a hora de dormir, a 1h30.

Naquela noite, a jovem não dormiu bem. O sono foi interrom-pido várias vezes, em razão do universo que acabara de conhe-cer, mesmo que parcialmente. Acordou por volta do meio-dia,seu horário costumeiro e novamente foi perturbada pelo desejode saber mais sobre o 509-E, em especial sobre um integrante dadupla. Lutou contra esta vontade, mas foi em vão. Existia umaforça maior agindo.

Teve a idéia de ligar na Casa de Detenção no intuito de conhe-cer os integrantes pessoalmente. Parou e refletiu para saber deque modo iria fazer esse contato. Resolveu ela mesma ligar, masse identificou como assessora. No Carandiru, conseguiu falarsomente com a secretária do diretor-geral na época, MaurícioGuarnieri. Perguntou se o 509-E se encontrava detido na Casa ese poderia fazer uma visita ao grupo. A secretária foi gentil edisse que esse tipo de visita era meio burocrático, então orien-tou que ela pedisse uma autorização judicial e passou o telefoneda Vara de Execuções Criminais de São Paulo com o nome dojuiz responsável.

A jovem tentou falar com o juiz, mas não teve êxito. O juizOtávio Augusto Machado de Barros Filho estava em uma audiên-cia. O secretário a aconselhou que passasse um fax solicitando avisita extra em caráter excepcional. Mesmo impaciente, seguiucomo mandava o figurino. Enviou o fax descrevendo o motivo dasolicitação e ficou aguardando o retorno ansiosamente.

O juiz de direito retornou atenciosamente o fax depois de al-gumas horas, vetando a possibilidade de visita extra, pois temiapela segurança da visitante. No entanto, foi gentil passando onúmero do telefone da Sofia, empresária do 509-E. Deixou tam-bém à disposição o número do seu celular.

O resultado não foi o esperado, mas ainda havia outras tenta-tivas Os contratempos se tornaram estimulantes. Ligou para aSofia, mas também não teve êxito. Tentou inúmeras vezes. Onúmero havia mudado.

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Aguardou quatro dias e voltou a ligar para o juiz, mas ele foicategórico e descartou qualquer possibilidade de visita. Para nãoser totalmente intransigente, disse à jovem que a cadeia não ofe-recia segurança. Passou os contatos da Sofia, a empresária dogrupo, para que fosse assistir a um show do 509-E.

Descontente com a notícia ligou de novo para a Casa de De-tenção. Foi atendida pela secretária que estava bem-humorada eresolveu passar a ligação para o diretor de segurança e discipli-na. Com intenção de ser atendida, foi logo se identificando. Odiretor ficou tão surpreso com a ligação inusitada, que achouque era trote:

“Nossa! Você sendo uma cantora consagrada, qual seu inte-resse com dois presidiários?”

“Senhor Manoel, creio que o senhor desconhece, mas aí naCasa de Detenção existem dois rappers do grupo 509-E, de mui-ta expressão e com a carreira em projeção nacional. Para sanarqualquer dúvida basta o senhor acessar a internet. Eu sou fasci-nada pela Black Music. Acredito que tenho uma grande proximi-dade musical com o grupo. Para falar a verdade eu não curtiarap por achar que incentivava a violência e era destinada a mar-ginais. Um grande preconceito da minha parte. Hoje, através damúsica deles, consegui entender o intuito e o valor do rap. Ooutro fator é que aprendi admirar demais a força de vontadedeles.”

O Diretor ouviu atentamente e ficou espantado com aeloquência e sinceridade da jovem e sentiu-se constrangido peladisplicência a respeito do 509-E. Mesmo diante do exposto nãolevou a idéia a sério. Desconfiado, prosseguiu o interrogatório:

“Até agora não consigo acreditar que você é a Simony do Ba-lão Mágico. Como você pode provar isso?”

A cantora estava impaciente com todo aquele interrogatório,mas naquele momento não via outra opção a não ser convencê-lo, porque ele era possivelmente o intermediário entre ela e o509-E. Taxativa, sugeriu ao cético:

“Como o senhor não conseguiu reconhecer minha voz, a úni-

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ca forma que vejo para provar que sou eu mesma, é cantando otrecho de uma música”.

Com um timbre de voz inconfundível, cantarolou trechos damúsica Quando te vi.

“Realmente você é uma cantora profissional, mas não me con-venceu que é a Simony.”

“Senhor Manoel, já que eu não lhe convenci, não posso maistomar seu precioso tempo. Espero pelo menos contar com umagentileza. Por favor. É possível o senhor anotar meu número detelefone e entregar para o 509-E?”

Duas semanas após este episódio, Dexter e eu trombamos como diretor de segurança e disciplina caminhando na radial, indoem direção ao P6. Ele nos parou imediatamente e pediu parairmos com urgência até sua sala. Ficamos preocupados e nãodemoramos muito tempo para chegar ao local. Ele nos contoutoda a história com menosprezo e ainda duvidando da veracida-de dos fatos. De qualquer forma foi sujeito homem e nos passouo número do telefone que ela deixou.

A notícia nos surpreendeu. Ficamos lisonjeados. É muito gra-tificante ver o reconhecimento do nosso trabalho. Nós tambémchegamos a pensar que era uma brincadeira, mas analisamos:“Se fosse mentira porque ela deixaria o número do celular?”

Chegamos à cela. Peguei meu telefone. Ligamos imediatamentepara aquele número. Simony atendeu e foi pega de surpresa enem acreditou, pois estávamos presos.

Enquanto Dexter conversava com ela fiquei ansioso esperan-do, pensando no quê iria falar. Quando chegou minha vez meucoração disparou. Foi difícil conter a emoção. Quando criança,era um telespectador assíduo do Balão Mágico. Para mim aquelemomento também foi mágico e de imensa satisfação.

Assim que o Dexter me passou o telefone, me identifiquei efiquei todo encabulado em meio aos elogios. O carisma dela foicativante. Admirei a simplicidade, pois a televisão nos passa umaimagem bem diferente das pessoas. Ela disse ser fã do nossotrabalho e me parabenizou. Agradeci dizendo que estava lisonje-

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ado e em seguida retribui os elogios com cordialidade dizendoser fã dela também, que aquela data seria inesquecível e o iníciode uma grande amizade. Disse também que a voz dela era muitobonita e inconfundível, que seria um enorme prazer conhecê-lapessoalmente e ter presença dela em um show do 509-E.

Simony é extrovertida e por isso a conversa ficou descontraída.Papo vai, papo vem, percebemos muitas coisas em comum entrenós. Para finalizar a idéia ela propôs que mantivéssemos contatoe que muito em breve nos encontraríamos pessoalmente. Respon-di que seria uma honra e nos despedimos com egos enaltecidos.

Continuamos trocando confidências pelo telefone. O tempopassou e restava saber se pessoalmente teríamos a mesma afini-dade. O sofrimento me ensinou que os olhos são janelas da alma.Através deles captamos diversos sentimentos do ser humano. De-vido ao entrosamento tudo levava a crer que éramos amigos hámuitos anos. Sentia no coração que as trocas de idéias eram sin-ceras. Nos envolvemos de tal forma que falávamos abertamentede nossas vidas particulares. Na ocasião minha mina, a Sá, estavagrávida de três meses. Simony estava livre, desimpedida e, peloque eu podia perceber, muito carente. Com satisfação me torneiseu analista preferido e o telefone, o divã.

Chegou o grande dia. Íamos fazer um show em 26 de agostode 2.000 e, coincidentemente, Simony iria fazer uma tarde deautógrafos no Mc Donald´s do Carrefour da ponte do Limão.Ambos os compromissos eram na Zona Norte. O 509 - E con-quistou a confiança das autoridades e judicialmente conseguiua autorização para sair da Casa de Detenção para cumprir aagenda de shows.

Nesse dia, Dexter e eu conseguimos convencer um agentepenitenciário, o mesmo que fazia nossa escolta, para sairmosduas horas mais cedo. Por volta das 18h30, meu irmão Bad jáestava aguardando no estacionamento dos funcionários. Quan-do pisei no estacionamento minha adrenalina já tava a milhão.Entrei no carro, cumprimentei Bad com um aperto de mão, esentei no banco traseiro. Assim que o Dexter e o agente peniten-

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ciário entraram e bateram as portas, meu irmão deu a partida.Estava muito ansioso, procurei controlar as emoções. Nesse ins-tante, abaixei o vidro para sentir a brisa no meu rosto.

Minutos depois chegamos ao tão esperado estacionamentodo Carrefour da ponte do Limão, deixamos o carro e subimos asescadas rolantes rumo ao Mc Donald’s. Quando chegamos aopiso, peguei o celular e liguei para saber onde ela estava. Simonyatendeu e me surpreendeu dizendo:

“Boa tarde, Afro. Tudo bem? Tenho uma boa notícia. Vira umpouquinho para a sua esquerda, olha em linha reta e você teráuma surpresa, porque eu já estou filmando você!”

Meus batimentos entraram em ritmo acelerado. Virei e olheiem direção ao local indicado por ela. Simony estava sorrindo eacenando com as mãos, numa distância de mais ou menos 100metros. A cena chamou a atenção de vários curiosos que esta-vam no local. Também acenei com a mão e em passos apressa-dos segui puxando a fila. Logo notei que ela também estava acom-panhada de duas minas. As três estavam sentadas, rodeadas devárias crianças, adolescentes e adultos eufóricos na caça de umautógrafo. Simony adorava aquela folia e assinava todos os pe-didos gentilmente.

Assim que nos aproximamos, ela pediu licença, levantou, ecaminhou em nossa direção. Nessa hora fiquei parado de braçoscruzados babando no mulherão de sandália plataforma, calçajeans cintura baixa. Com olhos clínicos e em fração de segundosregistrei os dotes da musa e em devaneios viajei.

“Nooossa Simony, como você cresceu!”Desinibida ela nos cumprimentou com um beijo no rosto,

esbanjando alto astral. Para descontrair, disse olhando em seurelógio Cartier:

“Pensei que vocês não viessem mais. Estão vinte minutosatrasados!”

Quando finalizou a frase soltou um belo sorriso e discreta-mente cruzamos os olhares. Fiquei atraído pelo brilho de seusolhos. Ela superou todas as minhas expectativas. Nessa hora des-

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pertamos a atenção do público presente. Três rappers natos, pre-tos, carecas e mal encarados vestidos com calça larga, tênis decouro, jaqueta de nylon. O agente penitenciário era o único quefugia do estilo, parecia nosso segurança. Os olhares dos curiosospareciam perguntar: “Quem são esses caras?”

O clima era de total descontração, assim como nossas curiosi-dades. Quando olhei o relógio, já eram 20h. Tínhamos que irpara o nosso compromisso. Aproveitei o ensejo e fiz o convitepara Simony colar conosco no show na quadra da escola de SambaUnidos do Peruche. Sem hesitar ela aceitou, fita dominada! Avida é uma caixinha de surpresa!

Em questão de minutos chegamos à Peruche, a bordo do AudiA3 e acompanhados de três gatas. Os manos já estavam no apon-tamento. Com muito custo driblamos o assédio dos fãs, ospaparazzi e fomos para o camarim. Lá estava todo o nosso timeda produção, que ficou surpreso e lisonjeado com a presença dacantora Simony. Me apresentei naquele show com grandeadrenalina, afinal no palco uma estrela estava me esperando.

Assim que nossa apresentação terminou, fomos jantar e logosurgiu o primeiro beijo. A partir daí começou o nosso namoro.Simony passou a me visitar no presídio semanalmente. Fazía-mos planos para o casamento. Aquele era o início da formaçãode nossa família, o alicerce do homem.

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– CAPÍTULO 10 – Alegria de preso dura pouco

O 509-E recebeu o prêmio Hutúz de revelação no ano de2.000. Com isso, nossa agenda lotou e logo tivemos umasurpresa: as saídas do grupo do Carandiru para realizar

shows foram vetadas. Nossa trajetória foi interrompida precoce-mente após a participação no programa Altas Horas (Globo),comandado por Serginho Groisman. O tema do programa eraviolência e ressocialização. Éramos a prova viva que o ser huma-no pode se regenerar. Estava presente na mesa debatedora, odeputado estadual Conte Lopes - deputadozinho com visão rea-cionária.

O auditório estava formado por estudantes que apoiaram nossatemática contra a política de repressão do sistema. O deputadose sentiu ofendido. Posteriormente sofremos represálias. No de-bate desmoralizamos uma autoridade em rede nacional, toca-mos na ferida. Dois presidiários – Dexter e eu – levaram simulta-neamente a 12 países a verdadeira face de um sistema atroz,intransigente, implacável e degenerativo.

Conquistamos a confiança das autoridades por méritos e fo-mos autorizados a desenvolver as nossas atividades profissionais,como músicos, com apenas uma escolta e um carro particular.Estávamos presos somente pela consciência. O crime era um pas-sado e uma referência para o futuro. Queríamos apenas espaçopara desenvolver o nosso trabalho honestamente, com a respon-sabilidade de pagar os impostos, gerar empregos e ajudar nossasfamílias. Tínhamos 156 saídas com retorno para shows, entrevis-tas e palestras. E nada que desabonasse a nossa conduta.

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Percebemos que não há in-teresse para que as pessoas sai-bam da verdade sobre a desi-gualdade social e suas conse-qüências. Conscientizar as pes-soas é como dar um golpe deestado. Hoje, Dexter e eu ad-mitimos que deveríamos tersido meticulosos, porque está-vamos nas mãos do sistema. Eo sistema nunca poderia sabera nossa real intenção. Aqueleepisódio foi questão de honra.Desabafamos os longos anos desofrimento que estavam enta-lados em nossas gargantas.

Muitos revolucionários so-freram drásticas conseqüênci-as porque lutaram por umacausa em prol de mudanças,entre os memoráveis destaco:Malcolm-X, Martim LutherKing, Mahatma Gandhi, Zum-bi do Palmares, Che Guevara,Steve Bico entre outros. Elesmorreram por uma causa jus-ta, mas deixaram discípulos. Ométodo usado para destruir o509-E foi nos tirar de circula-ção, mas não contavam quedeixaríamos uma sementeplantada na mente dos adep-tos e fãs. Ícones do Rap e a po-pulação fizeram uma passeataque saiu da galeria 24 de maio

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até a Vara de Execuções Penais, na Avenida Brigadeiro Luis Antô-nio, região central de São Paulo, protestando a liberação paravoltarmos a fazer os shows. Contudo, foi em vão.

O interesse em brecar o 509-E passou a ser político. Descobri-mos que fama tem um preço e pagamos caro por isso. Amarga-mos a volta ao cárcere, a vida vegetativa e improdutiva. Todos ospedidos judiciais para shows, palestras, entrevistas passaram aser indeferidos. Mesmo com o boicote concorremos e fomos pre-miados. Ganhamos um troféu de melhor videoclipe do ano 2000,do programa Clipper TV Gazeta, com o videoclipe da música Sóos Fortes. Outro troféu foi o de melhor grupo do ano, do ProjetoRadial e Rádio Imprensa FM 102. Infelizmente não tivemos ogosto de levantar os canecos. As autoridades nos tratavam como maior desdém. Não deram justificativa cabível para as recusas.Simplesmente vetaram.

Esse foi um período dificílimo para o Dexter e eu. A pressãopsicológica era enorme. Ficamos desnorteados. Tanto sacrifíciopara projetar o nome no mercado, e ver todo sonho ir por águaabaixo. Perder o prestígio é fácil. O 509-E tinha muitos showsagendados. Os contratantes investiam o capital na divulgação eo grupo estava impossibilitado de sair. Pagamos muitas multascontratuais, assistíamos a tudo de mãos atadas. A possibilidadede desapontarmos nossos fãs não saia da minha cabeça. O nãocomparecimento nos shows poderia resultar em descrédito.

Aquela reviravolta em minha vida causou uma inevitável dú-vida: “Agora é o fim. Será que a Simony virá me visitar aqui noCarandiru?” Felizmente ela superou minhas expectativas. Mes-mo com toda a humilhação e constrangimento da revista na en-trada do presídio, a fila quilométrica que o visitante de um pre-sidiário enfrentava, Simony continuou me visitando.

Nosso sossego acabou quando um repórter sensacionalistadescobriu nosso relacionamento e nossa vida particular virounotícia em um jornal de São Paulo. Luz, câmera, ação, a impren-sa de todo Brasil aderiu transformando a nossa história em ibope.A notícia ganhou destaque nos principais jornais e emissoras do

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“ALIADOS”“ALIADOS”“ALIADOS”“ALIADOS”“ALIADOS”

FOTO FELIPE

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Brasil por duas semanas consecutivas. O assunto despertou con-trovérsias e até uma divisão da opinião pública. Muitos diziamser golpe de marketing. Outros consideravam o relacionamentouma utopia. Inevitavelmente fomos alvo da má fé de profissio-nais da imprensa que distorceram informações, disseraminverdades e caluniaram. Mas, felizmente entre os profissionaisda imprensa há pessoas idôneas, competentes, que exercem aprofissão com imparcialidade. E, diante de tudo isso, o mais im-portante é que nosso relacionamento se mantinha inabalável.Aquela fase difícil só foi superada porque o nosso amor foi ver-dadeiro. Lutamos com cumplicidade contra as críticas, o precon-ceito, a hipocrisia, as armadilhas, as intrigas, as inverdades, adiscórdia, a inveja, enfim, os testes.

O sistema famigerado encurralou o Dexter e eu de tal formaque quase nos forçava a voltar a ser o que éramos: um perigopara a sociedade. Imagine só como foi difícil administrar essacatástrofe em nossas vidas. Foi difícil nos conformar porque sa-bíamos que não tínhamos cometido erro.

Nesse período descobri em Simony, uma beleza interior gran-diosa, solidária, amiga, leal, enfim uma mulher de fibra, que es-tava lado a lado comigo em qualquer situação. E, um pouco an-tes do fim do ano, fiquei sabendo que ela estava grávida. A notí-cia nos deixou felizes e apreensivos ao mesmo tempo.

Chegou mais um Natal. Outro Ano Novo atrás das grades. Ine-vitavelmente, caí numa tremenda nostalgia. Meu pensamentovoltou-se para a Simony e para a minha família. Muitos lamen-tos por não poder estar ao lado deles. Senti agonia quando osfogos de artifício começaram a explodir no céu. Dei um giro de360 graus na cela e fitei os meus companheiros cabisbaixos. Nessemomento peguei minha Bíblia, dobrei meus joelhos, fiz uma ora-ção com bastante fervor a Deus. Pedi ao Criador para tocar, con-fortar os corações de meus entes queridos e que Ele nos abenço-asse com paz, saúde e sabedoria para enfrentarmos nossa árduacaminhada. Só assim consegui dormir mais aliviado e esperan-çoso com o ano vindouro.

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Chegou o ano novo e com ele muitas expectativas. No iníciode 2.001, Simony foi a mais uma consulta periódica de pré-natale felizmente, acabou a nossa grande curiosidade. O Dr. Luiz, gi-necologista, revelou que o sexo de nosso filho era masculino.Quando soube da notícia, comemoramos com sorrisos, afagos,abraços e muitos beijos extras em sua barriga. Simony e eu pres-sentíamos que seria homem. Quando estava com dois meses degestação, ela teve um sonho e foi algo sobrenatural: foi reveladoo sexo e o nome de nosso filho. Quando ela me contou o fatofiquei surpreso e aceitei de bate - pronto. Ryan é o nome donosso primogênito.

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126“A F“A F“A F“A F“A FAMILIA É TUDO”AMILIA É TUDO”AMILIA É TUDO”AMILIA É TUDO”AMILIA É TUDO”

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127FOTO JOÃO WAINER

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– CAPÍTULO 11 – Radiografia do barril de pólvora

ma semana de esperança.- Mó expectativa. Felizmente chegou o tão esperado dia devisita.

O dia de visita é sagrado para o preso. É quando se mata asaudade e encontramos quem amamos. Até o mais cruel dos ban-didos se arruma, sorri e fica bem barbeado. Quem é flagradoolhando para visita alheia, é penalizado pelos próprios presosno fim da tarde. Dependendo da gravidade, a sentença pode seraté a morte com golpes de estiletes. Só sei que para quem nãorecebe visita o relógio anda em câmera lenta e para quem estáacompanhado as horas voam. Na Casa de Detenção era permiti-do que cada preso recebesse até dez visitas.

Amanheceu. Mais um domingo ensolarado. Parecia que iriafazer um calor daqueles. Era um lindo dia de verão. Dia 18 defevereiro de 2.001. Às 6h o S.R. levantou enquanto todos aindaestavam aparentemente dormindo. Tomou uma ducha e fez abarba embaixo do chuveiro. Logo em seguida eu levantei. Juntocom S.R acordamos o Careca e pedimos para que ele tirasse asroupas do varal. Em seguida jogamos almofadas para acordar oDexter, que reclamou:

“Ta loco, hein mano!”Procurei não me atrasar. A Simony chegava cedo e eu não

queria dar canseira. Pensei no meu amor.“Tá acabando a água mano. Mas eu não vou deixar vocês

na mão. Vou encher o balde pra ninguém ficar falando”, ex-clamou o Careca!

U

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Tomei banho e me vesti rapidinho. Olhei no relógio e meespantei:

“Nossa, já são 7h20! Vou descer a milhão. Se pá ela já tá en-trando.”

Assim que cheguei à porta da esperança, avistei meu amor naradial. Fui ao encontro em passos rápidos. Beijei-a e peguei assacolas que estavam muito pesadas para uma mulher grávidacarregar. Fomos caminhando e eu perguntava:

“Como está o meu Ryan? Como você passou a semana? Tavamorrendo de saudades!”

Simony, ainda ofegante respondeu:“Nossa amor, a cada dia que passa, minha barriga pesa mais.

Nosso filho está enorme. Ele já tem 23 centímetros. E são sócinco meses de gravidez. Vai ser um meninão!”

“Graças a Deus. Que venha com muita saúde.”Chegamos às escadas, rumo aos andares do P7. O funcionário

do controle de visitas íntimas liberou nossa entrada mediante aapresentação da carteirinha. Subimos até chegar à cela. Ela en-trou, sentou no banco de concreto, pediu um copo d’água e de-pois se deitou na minha jega. Após nossa troca de confidências ede colocar os assuntos da semana em dia, passamos o tempo nosamando. Às 12h30 a sirene tocou. Comentei:

“Estranho, se pá ta tendo uma fuga, porque a sirene só tocanessas ocasiões.”

No mesmo instante Dexter deu vários socos na porta, em vozalta me chamou e disse:

“Afro-X preciso falar com você truta, mó responsa.”Rapidamente vesti a bermuda e fui ver o que o meu parceiro

queria. Ele falou mais ou menos assim:“Jão, uns caras tomou a cadeia agora. Só que é na demo-

cracia, segundo eles.Não sabia como dar a notícia para a Simony.“Amor, sabe aquela sirene que tocou agora há pouco? É o se-

guinte, os caras tomaram a cadeia. É o início de uma rebelião.Vai dar tudo certo. Pense em Deus porque Ele está conosco”.

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Tentei acalmá-la. Mesmo apreensiva, ela me disse:“Eu confio em você. Por favor, fica perto de mim”Nesse momento chegou o S.R. e duas visitas batendo na porta

e dizendo:“Tru o barato é loco! Os caras já tomaram todos os pavilhões

e se pá todo o sistema ao mesmo tempo.”O Dexter estava com as suas visitas e a sua mina. Preocupado

com as outras visitas que aguardava foi correndo ver se tinhamchegado. Notou que não havia mais nenhum funça no portão doP7 continuou seguindo sentido o P2. O portão da Divinéia jáestava trancado a sete chaves e um montão de funcionários ar-mados do outro lado. Mesmo assim Dexter perguntou:

“Aí, chefe, e as visitas que tão na Divinéia, vão entrar?”Amedrontado com o auê, o funça respondeu dizendo que as

visitas que não tinham entrado não entrariam mais. Aliviado,Dexter voltou pela radial e encontrou com um menino de maisou menos seis anos, que chorava muito pedindo pela mãe. ODexter parou e perguntou onde a mãe dele estava. Entre soluçose lágrimas o menino apontou o dedinho para o portão da Divinéiae disse:

“Minha mãe tá ali naquele portão!”“Então tá bom. Sua mãe já, já, vai entrar. Fica calmo e presta

atenção. Quem você veio visitar?”“O meu padrinho.”“Onde é que ele tá, que eu vou te levar lá.”“Ele tá no nove. Lá no fundo”, disse o menino em prantos.Dexter pegou o garoto no colo e apressadamente foi até o P9,

onde trombou alguns conhecidos. O pivete, mesmo no desespe-ro, soube dizer o local em que ficava a gaiada do seu padrinho.O mano não sabia o que fazer para agradecer a solidariedade.

Enquanto isso, Simony, que estava faminta, pediu para eu es-quentar a comida. Esquentei a caldeirada de frutos do mar eservi com arroz, purê e salada de brócolis. Na TV, o programaDomingo Legal, apresentado por Gugu Liberato, transmitia aovivo a paralisação que acontecia na Dita e em outros presídios.

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Nesse momento, S.R. desceu com o Dexter para ver como estavao clima lá embaixo. Quando retornaram perguntei:

“Como tão as coisas?”“O bagulho tá loco, mano. Tá tumultuado”, respondeu Dexter.“Mas o barato não era pacífico, na democracia?”“Mas você tá ligado mano. Rebelião na paz?”, falou S.R.“Por que o tumulto?”, questionei mais uma vez.“Por causa das gritarias dos ladrões, que tentavam controlar

a situação. As visitas estão apavoradas. Veja só, visitante de pre-so não é criminoso. Deve ter mais de 4.000 visitantes, com mais7.000 mil presos são quase 12.000 mil pessoas prestes a seremexplodidas no caos. Subi as escadas e ao chegar ao quinto andar,me deparei com um verdadeiro paradoxo. Duas crianças de maisou menos seis anos brincando alegres e sorridentes. Caminheiem silêncio e minha angústia foi aumentando. Elas nem me no-taram, pura inocência de dois anjinhos que estavam no inferno”,concluiu S.R.

No xadrez, todos nós assistíamos o Domingo Legal. Foi quan-do o apresentador pediu no ar para que a Simony e eu déssemosum sinal de vida. Nos deslocamos até o campo do P9. Chegandolá alguns presos escreveram com cal o nome da Simony no chãono campo para identificar a nossa posição. Quando avistamos ohelicóptero do SBT sobrevoando a Casa de Detenção acenamoscom uma toalha branca. Em seguida retornamos para a cela.

Depois de alguns minutos que estávamos no xadrez, ouvimosalguns disparos e em seguida uma sessão de tiros. Pareciam serde fuzil devido aos estampidos. O eco nos fazia pensar que esta-va bem próximo. A adrenalina foi à milhão. Temi pela vida daminha mulher e meu filho, pela vida de todos os visitantes e demeus parceiros de cela. Nessa hora milhões de coisas passarampela cabeça. Até que seria o fim da linha, mas eu não podia de-monstrar fraqueza. Tinha que ser forte e tranquilizar o pessoal.A primeira coisa que fiz foi pedir para que todos ficassem cal-mos e acreditassem em Deus.

Ao ouvir tiros, uma das visitas do Dexter subiu correndo para

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a jega de cima e impressionado com o que viu pela ventana qua-se sem voz falou:

“Nooossa, truta mó desgraça! Os coxinhas da muralhasapecaram um monte de caras. Tem uma pá caído lá em baixo emuito sangue escorrendo!”

A sessão de tiros continuou, pedi aos visitantes que se escon-dessem no canto da parede, temendo uma bala perdida. O águiapreto da polícia sobrevoava os pavilhões com seus atiradores deelite que miravam para as celas. Em seguida a cena é reprisadana TV mostrando toda a covardia, despreparo emocional e a exe-cução sumária.

Os presidiários que estavam no pátio externo do P4 tentavamuma negociação com a tropa de choque que estava do lado defora na Divinéia. Intransigentes, não queriam conversa. Esboça-vam reações tentando embocar para dentro da prisão. De repen-te, um PM deu um disparo para intimidar. Os presos se assusta-ram e saíram correndo. Nessa hora, três militares e um policialcivil à paisana começaram a atirar de cima da muralha com amaior frieza na direção dos presos que estavam no P4. Eles vira-ram sentido P7 e correram de costas procurando abrigo. Algunspresos foram atingidos pelas costas. Eles estavam todos desar-mados. Foram cenas de terror, desespero, agonia, pânico e grita-ria. Parecia um filme de guerra, só que real, sem cortes, semdublês e sem balas de festim. Nos bastidores da guerra, um marde sangue escorria.

Tico do Guacuri foi um grande guerreiro e colocou a vida emrisco. Em meio ao conflito arrastou um dos quatro baleados. Elescaíram próximos um ao outro, mais precisamente ao redor doportão do P7. Tico correu no pátio externo se esquivando dostiros e chegou próximo ao Sabugo que agonizava no chão quecom muita dificuldade acenou a mão, tentando falar alguma coi-sa, mas a voz não saía, sua respiração era bem lenta. Tico doGuacuri socorreu Sabugo cuidadosamente. Com o movimento, odetento baleado começou a jorrar sangue por debaixo do braçoesquerdo. Tico ficou impressionado ao ver esguichar tanto san-

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gue. Desesperado saiu arrastando o ferido pelo pátio externo doP7. Deixou o corpo no chão, na entrada do pavilhão e tentouabrir caminho. Devido ao tumulto na gaiola, uns queriam descerdo segundo andar, outros queriam subir, com medo de serematingidos pelos tiros. Tico gritava:

“Olha os manos baleados. Olha os manos baleados! Sai dafrente!”

Entre empurrões e gritos alguns ajudaram a arrastar Sabugoaté a enfermaria do pavilhão. Outros presos traziam o Tio Cario-ca, que também agonizava, vomitava sangue e tremia. Comovi-do Tico falou que ainda tinha esperanças, mas a enfermaria nãotinha recurso algum. Juntamente com os presos Jorge e Neilton– que trabalhavam como enfermeiros do pavilhão –, colocaramSabugo e o Tio Carioca nos carrinhos de servir as refeições esaíram arrastando. Vendo todo o pavor e desespero, os policiaisnão paravam de atirar. Os manos continuaram empurrando oscarrinhos até o portão da Divinéia, para que os baleados fossemlevados para um Pronto Socorro. Detalhe: apesar dos dois esta-rem gravemente feridos, ainda estavam vivos!

Mais tarde soubemos da triste notícia: saldo negativo de qua-tro mortos. Quando foram arrastados, os baleados deixaram umrastro de sangue em todo pátio externo do P7. Esse episódioentristeceu e ao mesmo tempo revoltou a todos. Tio Carioca eravizinho do 509-E e faltava apenas um mês para o vencimento dasua pena. Sabugo tomou dois tiros: um no coração e outro naperna. A condenação era de cinco anos e já havia cumprido qua-tro de reclusão. Que loucura! Poderia ter sido qualquer um denós!

A partir daí o que era pacífico ficou louco. Um clima de ten-são e nervosismo se instalou nos pavilhões. Foi deprimente ou-vir os choros das crianças querendo ir embora, mulheres e se-nhoras com crises de desmaio e olhares de desolação. A tropa dechoque aproveitando a “deixa” ameaçava embocar com visita etudo; e os caras pelo rádio amador revidavam:

“ Se embocar, vamos matar todos os reféns!”

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Revoltados com as mortes dos companheiros, alguns presidi-ários queriam subir os funças. Outros pediam paciência. Haviaum impasse. As autoridades cortaram a água e a luz. Os líderesda rebelião dividiram os 20 funcionários reféns entre os pavi-lhões e colocaram seis deles amarrados entre as barreiras commadeiras e botijões de gás nas três entradas de acesso para acadeia.

A situação preocupava, pois a paralisação tornou-se a maiorrebelião da história do sistema prisional brasileiro. Simultanea-mente, 28 mil presos de 29 presídios do estado de São Paulo seamotinaram exatamente às 12h30. No dia seguinte o fato exigiuuma reunião extraordinária para conter o conflito. Em todos ospresídios havia visitantes, entre eles crianças, adultos e idosos.

Conclusão: O governador em exercício, Geraldo Alckmin, jun-to com o ministro da Justiça, José Gregori, o coordenador deassuntos penitenciários Nagashi Furokawa, o secretário da segu-rança pública de São Paulo, Marcus Petreluzzi e o comandantegeral da polícia militar Rui Cezar Mello, estavam irredutíveisquanto a atender as reivindicações impostas. Os presos pediama transferência de cinco integrantes do PCC (Primeiro Comandoda Capital) para a Casa de Detenção. Eles tinham sido transferi-dos para a Casa de Custódia, o Anexo em Taubaté.

Se o governo recuasse e fizesse o acordo, a opinião públicacairia matando. Então o governo anunciou que conteria as rebe-liões e acabaria com os celulares nas prisões. Que ironia, né? Seexistem celulares nas prisões, é porque são levados pelos própri-os funcionários. Nesse caso a questão seria combater a corrupção.Até um cego enxerga que celulares não são os principais respon-sáveis para organização de rebeliões. Dizer isso é simplesmentesubestimar nossa inteligência. Por trás dessa problemática, asautoridades no Brasil aplicam soluções paliativas.

No início de 2009, a população carcerária brasileira era de447 mil presos, segundo estudo realizado pelo CNJ (ConselhoNacional de Justiça). Destes, 191.949 estavam à espera de julga-mento. O número equivale a 42,9% do total. Estes dados de-

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monstram que nunca houve interesse em desafogar o sistemaprisional. Não há informatização do poder judiciário, o que re-sulta na lentidão de análise dos processos criminais. Enquantoisso, os presos aguardam em celas abarrotadas e na ociosidade.Não há o que fazer além de esperar. E aí, infelizmente, o ditadose torna verdadeiro: “mente vazia, oficina do Diabo”. O presoestá sob a tutela do Estado, isso quer dizer que o mesmo deveriagarantir uma vida digna e oferecer condições para aressocialização do encarcerado. Mas, apesar do custo mensal,entre R$ 1.300 e R$ 1.600, que sai do bolso do cidadão paramanter cada preso, pouco é feito.

Caía a tarde. A rebelião deixou destroços, pessoas feridas eaté mortas. Teve choro, angústia e muito sangue no chão. Foi umdos dias mais tristes de nossas vidas. Mas mesmo diante do in-fortúnio, minha mulher e eu nos mantínhamos unidos.

A queda de braço prosseguia, a tropa de choque ditava umanova ordem: só liberariam os visitantes após a soltura dos funci-onários que estavam sendo feitos de reféns. Os presos que lide-ravam a rebelião relutaram dizendo que não aceitariam a ordeme afirmaram que soltariam 30 visitantes e um funcionário a cada30 minutos. Não era o acordo esperado, a tropa de choque nãopoderia entrar nos pavilhões com os visitantes saindo.

A noite chegava e com ela pairava no ar um clima sinistro. Ocansaço físico e mental era aparente e a tendência era que oclima ficasse mais tenso a cada hora. Já passavam das 22h e osnervos cada vez mais à flor da pele. Completavam quase dezhoras de ansiedade. Parecia uma morte lenta e dolorosa. É mui-to difícil descrever o que sentíamos. Em silêncio eu orava a cadainstante pedindo proteção à Deus para que não acontecesse opior. A pressão era imensa, mas a fé e a vontade de viver nosconfortavam.

Fiquei muito preocupado porque Simony continuava comigolá dentro e se a rebelião durasse muito tempo o estoque de ali-mentos que tínhamos não daria para o dia todo. Nessa hora deumó aperto no coração. Todos visitantes se alimentaram. Depois,

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resolvemos nos isolar com nossos familiares. Pensei em comoestariam nossas famílias lá fora. Peguei o celular e liguei paraminha mãe, mas foi em vão. Não consegui fazer com que elaficasse mais calma. Em seguida a Simony fez contato com a mãedela. Era um dia de terror e tínhamos uma tarefa quase impossí-vel: tranqüilizar nossas famílias.

Minha mãe reuniu a todos e juntos fizeram uma oração. Amãe da Simony fazia uma corrente com seus entes também. Apro-veitamos e ligamos para o nosso empresário e ele fez um conta-to com o senador Eduardo Suplicy e o doutor Ariel de CastroAlves que prontamente solidarizaram-se juntamente com outraspessoas dos Direitos Humanos e seguiram para o Carandiru afim de intervirem nas negociações. O senador chegou com a co-mitiva por volta das 5h e foram peças chaves para o fim da rebe-lião.

Depois de uma noite tenebrosa, amanhecia no Vietnã. A tropade choque estava doida para invadir. Queriam sanar logo o pro-blema, porque acreditavam que ao controlar o motim no maiorpresídio do Estado, conseguiriam enfraquecer as outras rebeli-ões simultâneas.

Antes mesmo do sol raiar bateram agressivamente na portachamando:

“Afro-X, Dexter. Mó responsa, irmãos!”Levantamos rapidamente para ver o que estava pegando. Era

um dos líderes da rebelião pedindo para que ajudássemos nasnegociações. Ele acreditava que nossa participação seria impor-tante porque tínhamos o respeito dos presos e também da dire-toria da Detenção.

“Por favor, dá essa força pra nós!”O Dexter se propôs a ir até lá e eu fiquei para cuidar das

nossas visitas. Caminharam com destino ao pátio externo do P2.Lá o sururu estava formado. Nem os presos e nem a diretoriaqueriam ceder. No meio do caminho, já no final da radial, umpreso disse ao Dexter que o Senador Suplicy já estava na Divinéiaconversando com o comandante do pelotão do Choque. Dexter

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atravessou o portão do P2 e avistou o diretor-geral da Casa e umfuncionário em uma conversa nem um pouco amigável com al-guns presos bem próximo ao portão da Divinéia. Dexter pediulicença e cumprimentou todos. Foi quando o diretor-geral excla-mou:

“Me falaram uma coisa e eu vou te perguntar. O que vocêfalar pra mim é o que eu vou acreditar! Disseram que você e oAfro-X, em companhia da Simony, guentaram o P2 com uma armade fogo, é verdade?”

“O senhor sabe que isso é mentira. O nosso princípio é o rap.O senhor conhece nossa diretriz e sabe que nossa corrida é pelapaz e pela vida. Tanto é que tô aqui na intenção de ajudar, aca-bar com toda essa agonia da visita e de todos nós também. Seique o senhor acredita em nós!”

Com um ar de desconfiança, o diretor-geral do presídio res-pondeu que acreditava em Dexter.

Dexter conversou com os presos e se ofereceu para intermediaras negociações com a diretoria em prol da paz. Naquele exatomomento o senador atravessou o portão da Divinéia sentido pá-tio externo do P2. Dexter o avistou e foi ao encontro dele, esten-deu a mão e cumprimentou dizendo:

“Muito obrigado, senador, por ter vindo para nos ajudar eevitar que acontecesse o pior. Os caras tão querendo entregar aarma e falaram que só entregam na mão do senhor. O 509-E e aSimony pedem também, encarecidamente, que vossa excelênciae os Direitos Humanos acompanhem a blitz do Choque nas ce-las, porque tememos que os nazistas entrem e matem um mon-tão de gente!”

Após o senador dar a certeza de que acompanharia a blitz,Dexter passou a idéia para os presos e seguiu para o P9 no intui-to de passar o salve ao restante dos responsáveis pela paralisa-ção. Com muito custo todos chegaram a um acordo e entrega-ram a arma para o diretor-geral, na presença do Suplicy.

Ufa, que alívio. Foram mais de 24 horas de suplício, no campode concentração. Dexter trouxe a notícia que as visitas poderiam

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sair que o senador queria falar comigo e com a Simony. Semhesitar nos aprontamos e saímos. Havia uma fila enorme. Todosestavam abatidos, famintos e alguns até em estado de choque.Passamos pelo pátio externo e vimos um rastro enorme de des-truição: muito sangue ressecado no chão, mesas e cadeiras demadeiras queimadas e muito lixo espalhado. Parecia que haviapassado um furacão.

Prosseguimos pela radial com destino ao pátio externo do P2.Quando atravessamos o portão avistamos o senador Suplicy con-versando numa banca de presos. Chegando próximo, estendi asmãos para cumprimentá-lo. Minha mulher cumprimentou-o tam-bém com um sorriso. Juntos agradecemos pela preocupação eele educadamente nos respondeu:

“Não há o que agradecer. Só queria que acabasse tudo bem!”Quando tudo acabou, nossa sensação era de que tínhamos

ressuscitado. Graças a Deus superamos aquela terrível experiên-cia. Por volta das 10h, me despedi de Simony com um abraçoapertado e um beijo afetuoso. Passei a mão na barriga dela edisse:

“Vão com Deus, você e meu filho!”“Amém. Se cuida, tá?”Ela virou em direção ao portão da Divinéia. Antes de atravessá-

lo deu mais uma olhada para trás. A tristeza era nítida em seurosto. Acenei e ela apertou os passos. Na saída, ouvi uns putosdo Choque a atacando com palavras de baixo calão. Foi um ab-surdo. Não respeitavam nem o sofrimento das pessoas. Os funçasa colocaram na ambulância, para evitar o assédio dos jornalis-tas, e seguiram para o Pronto Socorro. Lá, um dos segurançasparticulares já a esperava. Ela entrou no carro e foi para casa.

O senador Suplicy permaneceu no pátio externo conversandocom alguns presos e deu a palavra de que só arredaria o pé de-pois da blitz do Choque. A saída dos visitantes do Carandiru sóterminou por volta das 15h da segunda-feira. O choque, aindaem forma, queria embocar para a blitz, mas os funcionários dacasa estavam exaustos para acompanhá-los. Mesmo contra von-

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tade, o pelotão de Choque teve que aguardar até outro dia.Para mim, a palavra de um homem vale muito. Já admirava o

senador Suplicy, agora admiro muito mais e sei que é um ho-mem de palavra, íntegro e prestativo. Enquanto permaneceu oimpasse do Choque entrar ou não para revista, o senador e odeputado federal Fernando Gabeira, acompanhados de advoga-dos dos Direitos Humanos, como o Ariel de Castro Alves, perma-neceram a noite inteira de prontidão no Carandiru e continua-ram até o desfecho da blitz.

Na terça-feira, às 7h, acordamos com os cachorros latindo.Rapidamente levantamos, subimos na jega de cima e da ventanaganhamos o movimento. O choque já estava em marcha acelera-da, subdividido em grupos. Um deles entrou pelo P4. Outro veiopela radial. Parecia que iriam embocar no P7, mas quebraram àesquerda e foram sentido P9 ou P8, pois o caminho dava acessoaos dois pavilhões.

Já passavam das 15h quando os policiais entraram no P7.Subiram as escadas na maior sede. Ao pisarem no quinto andar,teve início a sinfonia satânica. O som dos cachorros latindo semisturava com a gritaria dos carrascos. Eles batiam com brutali-dade as coronhas de suas armas nas portas de ferro. Ordenavamque todos ficassem de cuecas e ajoelhados. Assim seguiram abrin-do cela por cela. Estavam chegando perto do meu xadrez. Aadrenalina já tinha ido à milhão. Os gritos histéricos ecoavam ese perdiam na galeria afora. O clima lembrava um filme de ter-ror. Fazia parte da tática essa pressão psicológica e entre ummonte de asneira gritaram:

“Onde fica o 509-E? O capitão Conte Lopes mandou a gentevisitar vocês!”

Da última vez, os brutamontes com cérebros de ameba, zoa-ram tudo. Essas terríveis experiências deixam seqüelas. Conhecialguns sobreviventes que ficaram chapados, traumatizados, de-vido ao Massacre de 1.992. A cada barraco que entravam per-guntavam quem eram o Afro-X e o Dexter.

Ninguém falava nada e isso aumentava a ira dos PMs. Chega-

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ram em frente de nossa cela dando a entender que na 509-Etinha só elementos de alta periculosidade e que ofereciam riscode vida à eles. Nós estávamos fortemente trancafiados, de cue-ca, ajoelhados, com as mãos na nuca e com a principal arma, ainteligência. Enquanto isso, os policiais usavam escudos,coturnos, capacetes, coletes, metralhadoras, bombas de gás la-crimogêneo e cachorros treinados. É, realmente oferecíamos ex-tremo perigo de vida à eles!

Chave no cadeado. Era chegada a nossa hora! Abriram a por-ta com as metralhadoras em punho, engatilhando e gritando aomesmo tempo:

“Vai ladrão. Vai, Zé. Sai um por vez. Antes de sair abaixa acueca e agacha; vai rapidinho e corre agachado. Demorô!”

O primeiro a sair foi Dexter. Fez tudo que ordenaram, quandofoi sair tomou uma escudada na cara com tamanha força quebateu a cabeça na quina do batente da porta, atingindo osupercílio, fazendo um corte. O melado desceu na hora. Mesmoassim, Dexter saiu agachado no meio dos PMs. O Careca foi osegundo e conseguiu se esquivar. O S.R. foi muito ligeiro conse-guiu se livrar. Fui o último a sair da cela e quando cheguei àgaleria tomei várias coturnadas na canela que ficaram roxas.Permanecemos cerca de 40 minutos ajoelhados e enfileirados.Meu joelho doía, dilatava, mas se nos mexêssemos os policiaiszoariam a gente em dobro. Sem contar que bateriam em todosque ali estavam e falariam que alguém “deu milho”. Depois demuita canseira, nos mandaram voltar para as celas agachados,correndo no corredor polonês. Quando entramos, a cela estavairreconhecível, de cabeça pra baixo, um verdadeiro pandemônio.Parecia que tinham jogado tudo no liquidificador e batido. Issoporque o diretor do pavilhão acompanhou a blitz. Essa é a vidaboa que leva o presidiário, como dizem muitos na televisão!

Mas o que eles não dizem é que só no estado de São Paulo,78% dos presos não concluíram o ensino fundamental e 8,2%são analfabetos. Os números são bem maiores que a média dapopulação estadual, que aponta que 52% das pessoas não têm o

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ensino fundamental e 7,2% não sabe ler e escrever. O que nin-guém diz, é que 54% destas pessoas presas são jovens com idadeentre 20 e 29 anos. E a maioria não poderá mudar a história. Osdados são referentes à pesquisa Retratos do Cárcere, realizadapela FGV (Fundação Getúlio Vargas) e divulgada em maio de 2006.Naquele ano, só em São Paulo havia 144.630 pessoas encarcera-das, segundo dados da SAP (Secretaria de Administração Peni-tenciária). Seis anos antes, quando eu era mais um número den-tro do sistema prisional paulista, havia outras 92.185 pessoasna mesma condição.

O episódio prova, mais uma vez, que é o sistema que estáfalido e não o ser humano...

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– CAPÍTULO 12 –Vaso ruim de quebrar

uinta-feira, 15 de abril de 2001. Era cerca de 7h, quandoacordamos assustados com os gritos do S.R. que dizia:“Olha o Choque, manos! Olha o Choque, manos!”

Despertamos já na adrenalina.“Outra vez esses putos?”, reclamei.Ligeiramente pulamos das jegas para não sermos pegos de

surpresa. Na madrugada quase não conseguimos dormir. Tinhamó bolão de funças andando pelas galerias do prédio, feito cãesfarejadores, com marretas, ponteiros, quebrando as caixas elé-tricas do lado de fora das celas, onde ficavam as fiações. Esta-vam à procura de flagrantes e assim permaneceram até altashoras.

A cadeia amanheceu fora do seu ritmo normal. Silenciosa,fúnebre. Sentindo esse clima, corri até o guichê, olhei para agaleria escura, fria e sem nenhuma alma viva. Na tarde do diaanterior, depois da abertura das trancas, o “jornal da pedra dopreso” difundia a notícia de que a cadeia amanheceria trancada.O motivo ninguém sabia dizer.

Mais um dia de veneno. Querem nos matar aos poucos. Redu-ziram a quantidade de alimentação que nossos familiares depo-sitavam no jumbo e ainda distribuíram apenas 300 senhas na-quele dia. Na semana anterior, minha mulher teve que chegar àfila do jumbo às 2h para conseguir depositar o meu aproximada-mente às 7h. Um absurdo!

S.R. estava na jega de cima, ganhando o movimento daDivinéia e anunciou pasmo:

Q

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“Ih manos. Os vermes já tão embocando no pavilhão!”Vendo a reação do S.R., pulei na jega de cima para me certi-

ficar do fato. Quando olhei pela ventana vi que o céu estavacinzento. Poucas aves voavam no céu. Os raios do sol despon-tavam com timidez. Na Divinéia, parte do pelotão ainda estavaem posição, com seus cães assassinos. Havia também muitosfuncionários da Casa, inclusive o diretor-geral, com sua incon-fundível vestimenta: uma camisa social azul-celeste, calça pre-ta e sapatos pretos. No céu, acima da Divinéia, o mosquito deferro dava rasante. Os policiais pareciam ninjas, todos de pretocom fuzis e uma ponto 50 apontada para as ventanas das celas.Em seguida, três bondes azuis e brancos da COESP(Coordenadoria dos Estabelecimentos Prisionais de São Paulo)entraram pelos portões da Divinéia. Manobraram e estaciona-ram de ré, encostando no portão de ferro que dava acesso àradial, em frente ao P6.

Em questão de segundos o Choque estava no quinto andar.Meu Deus, tudo de novo! Desta vez estranhamos porque não ou-vimos abrir os cadeados das celas. Pensamos até que iriam pas-sar batido, quando de repente um bando de PMs parou em fren-te ao nosso xadrez, com as armas em punho e engatilhadas. UmPM colocou bruscamente a metralhadora no guichê e esbravejou:

“Vai ladrão! Todos de cueca e de joelhos no fundo da cela!Vai, filhos da puta. Demorô!”

Em voz alta cantaram o nome completo do Dexter. Quandoele se apresentou, colocaram a micha no cadeado, abriram a cela,com várias armas apontadas para nós e ordenaram:

“Vai, ladrão, rapidinho, abaixa a cueca, agacha, levanta saida cela. Só você vem com a gente!”

Senti vontade de reagir, mas estava de mãos atadas. Me sentium inútil. Sequestraram meu truta e eu não pude fazer nada.Fiquei por alguns segundos pensando naquela cena covarde. Nãosabia o que pensar. Minha mente rodopiava. Fiquei desnorteadoe desesperançoso.

Sem hesitar subi na jega de cima para, pelo menos, ver onde

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estavam levando meu parceiro. Logo vi vários presos enfileirados,somente de cuecas, com as mãos para trás e cabeça baixa. Aospoucos iam entrando nos bondes. No meio das dezenas de pre-sos avistei o Dexter. Corri no mocó, tirei o celular rapidinho,liguei para a Simony e pedi para que ela ligasse com urgênciapara o advogado. Algo me dizia que eu também iria de bonde,por isso deixei meus contatos, escritos na caixa de sapatos.

Minha intuição não me traiu. Minutos depois, chave no cade-ado. Senti um aperto no coração. Um arrepio. Quando a portaabriu, o diretor e mais ou menos uns dez capangas anunciaram:

“Cristian, coloque uma calça rápido que você também vai debonde!”

Pedi para levar minhas coisas, mas disseram que meu tempohavia se esgotado. Ligeiramente vesti uma calça da casa, colo-quei uma camiseta e o meu tênis molhado, despedi dos compa-nheiros e saí na fé, escoltado pelos funças.

No caminho até a Divinéia notei que a cadeia toda estavatrancada. Enquanto andava, analisava a frieza dos robôs que meescoltavam. Me senti como uma mercadoria descartável e semvalor. Mesmo assim, mantive a cabeça erguida, com a coragem ea dignidade para recomeçar.

Quando atravessei o portão do P2 rumo a Divinéia, em con-junto vários funças voltaram a atenção para mim. Olhares demenosprezo, murmurinhos, sorrisos de satisfação e os maisrecalcados praguejavam:

“Até que enfim. Agora já era o 509-E! Vai cantar rap lá emVenceslau!”

Muitos deles ganharam CDs, pôsteres, camisetas do 509-E.Presentearam os filhos e familiares. Nossa recompensa foi tão-somente a ingratidão. Segui com o bolão de robôs me escoltan-do, firme sem dar ouvidos ao bombardeio de asneiras dos inve-josos. Mais adiante, os policiais do Choque me mediam dos pés àcabeça, me rogando mau-agouro. Achei que me jogariam em al-guns daqueles bondes estacionados, mas quebramos à direita efomos parar na GPM. Deram uma geral e me jogaram numa gai-

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ola imunda no mesmo local.Quando entrei no corrozinho fedorento encontrei o Dexter só

de short, com as costas cheias de vergões, pela surra de cassetetesdada pelos covardes do Choque. Ao nos vermos, reagimos comsurpresa e alegria. Nos abraçamos e agradecemos à Deus. Atéironizamos para amenizar o sofrimento:

“Aí, truta te sequestraram também?”“Pensou que ia se livrar de mim, hein.”Alguns minutos depois, lamentamos e comentamos como nos

trataram feito bicho. Não aprontamos nada grave, para que nosmandassem de bonde daquela maneira. Nem nossos pertencesdeixaram levar. Mó esculacho. Um camburão velho, de cores pretoe branco, com o escapamento estourado, poluindo todo o ambi-ente encostou na Divinéia. Um funcionário abriu o corró. Comuma lista, ordenou para saírem quatro presos por ordem de cha-mada. Todos foram novamente revistados, escoltados eenfileirados até a traseira do camburão. O motorista abriu o tam-pão. Antes de sermos colocados no chiqueirinho, fomos algema-dos e entrelaçados uns aos outros. Meu braço destro ficou presoao braço esquerdo do Dexter e meu braço esquerdo, ao braçodestro de um outro preso.

O chiqueirinho era dividido em duas partes por um chapão deferro. Cada uma tinha 60 centímetros de largura por 1,20 metrosde comprimento e 90 centímetros de altura. Jogaram nós trêsamontoados de um lado. Do outro lado ficou um preso com defi-ciência física nas pernas e um par de muletas. Com estupidez, omotorista bateu a grade, colocou o cadeado e fechou o tampão.Ouvimos as portas dianteiras abrindo. Depois, foram batidas comviolência.

O motorista ligou e acelerou a viatura que se locomoveu poralguns metros. A viatura parou. Abriram os portões da Divinéia.Em poucos segundos, o carro se deslocou alguns metros. Ouvi-mos abrir os portões da ratoeira, destino portaria central. Maisuma vez, o carro se movimentou. Os últimos portões foram aber-tos e a sirene da viatura foi acionada. O motorista acelerou a

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charanga que fazia um barulho fora do comum. A fumaça im-pregnava e nos sufocava.

Dentro do chiqueirinho o calor era insuportável. O suor es-corria intensamente, chegando a encharcar minha camiseta.Aquele cubículo escuro, de pouca ventilação causava fobia e muitaagonia. O oxigênio era escasso. Respirávamos com dificuldade.Nessa tortura física e mental, o camburão com a sirene ligadaseguiu a milhão no trânsito ultrapassando os sinais vermelhos.

Rapidamente pegamos uma estrada. Calculo que o percursodeve ter durado uns 40 minutos. Em um dado momento, a viatu-ra reduziu a velocidade e pegou um caminho à direita. Subimosuma ladeira, que só percebemos que era de terra por causa dapoeira. Graças a Deus chegamos à portaria da Penitenciária II deFranco da Rocha. A viatura parou no estacionamento.

Pensamos que a sessão de tortura havia acabado. Estávamosenganados. Os policiais militares resolveram almoçar. Pagarammó raiva, porque a parte traseira do camburão ficou exposta aosol escaldante. Fritávamos feitos ovos na frigideira.

Depois de muita canseira, os funças voltaram do almoço. En-traram na viatura no maior falatório. Bateram as portas. Logoem seguida a viatura foi ligada. Ouvimos portões se abrindo e ocamburão se moveu para dentro do presídio. As escoltas desce-ram. A chave foi colocada na fechadura do tampão traseiro.

Quando a porta abriu fomos surpreendidos pela claridade eum golpe de ar que serviu de lenitivo para nos reanimar. O mo-torista abriu a grade do chiqueirinho estupidamente e ordenouque descêssemos. Quando pisamos em terra firme suspiramosaliviados. Os brutamontes soltaram as algemas que deixarammarcas aparentes em nossos pulsos. Na sequência os funças daCasa fizeram outra chamada e nos separaram.

Três funcionários de aparência jovial pediram, educadamente,para que os acompanhássemos até a inclusão. Um deles nos per-guntou:

“Nossa, onde estão as coisas de vocês? Não trouxeram nada?O que será que vocês aprontaram?”

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Com indignação, respondi:“É, chefe. Nós também não sabemos. Fizeram mó patifaria

com a gente. O senhor pode ter certeza. A gente é da paz. Nossodia a dia vai mostrar.”

Sem dizer nada, balançando a cabeça o funça abriu a cela epediu para entrarmos. A cela de mais ou menos 25 metros qua-drados era muito fria. Não existiam janelas. Apenas duas ventanaspróximas ao teto, de aproximadamente 15 centímetros por 1,3metros na parede do fundo. O ambiente tinha duas jegas belichede concreto. O banheiro ficava ao fundo e um cano servia dechuveiro.

Depois de algumas horas fomos chamados um por vez parafazer a inclusão. Lá deixamos os pertences não permitidos nacasa. Em seguida nos deram um kit preso que continha: 1 pratode plástico, 1 colher de plástico, 1 caneca de plástico, 1 gandolacor padrão (camisão bege), 1 colchão usado, 1 aparelho de bar-bear, 1 creme dental, 1 escova dental e 1 sabonete.

Não precisei de calça. A que eu vestia era da cor permitida.Fomos encaminhados para o controle e perguntaram se eu játinha matrícula no sistema.

“Sim chefe, tenho. Minha matrícula é 117.187.”Nesse momento tive uma péssima recordação de quando esti-

ve preso naquele local. Época de muito sofrimento. Setembrode 95, Penitenciárias de Presidente Bernardes foi lá que me de-ram essa matrícula. Os anos passarão, mas nunca essa feridacicatrizará.

Depois preencheram nossa ficha cadastral com os dadospessoais. Por último, a fotografia em preto e branco, com umaplaqueta que continha a data de inclusão, artigo e condenação.Todos passavam por essa burocracia. Por volta das 15h30, fomosrequisitados para falar com o diretor-geral da penitenciária.

Ao entrar na sala, nos deparamos com dois homens. O dire-tor-geral era Adevaldo Ferreira de Souza. Ele era branco, de es-tatura mediana, sotaque interiorano. O outro homem era o dire-tor de disciplina. A recepção foi cordial, ambos nos cumprimen-

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taram com um aperto de mão, olhos nos olhos e com um tomsarcástico o diretor-geral disparou:

“Então, são vocês o famoso 509-E? Quem é o Afro-X e quem éo Dexter?”

Nos apresentamos. O homem balançou a cabeça prosseguiunos interrogando:

“Vocês devem estar sabendo do BO de que estão sendo acusa-dos. Ou melhor, o Dexter. Fui informado que durante a rebeliãoo senhor estava andando com uma PT-380 pra cima e pra baixo.Mas não interessa o que fizeram no passado. O que importa é opresente, na minha cadeia as coisas são diferentes!”

Esperamos o diretor concluir o raciocínio para então, Dexterretrucar:

“Mas, doutor, isso é uma grande injustiça. Realmente surgiuesse comentário, mas ninguém provou nada. Se fosse para jogarfora nosso objetivo, teríamos fugido quando estávamos saindopra fazer shows. Nas 156 saídas tivemos inúmeras chances defuga, só que em nome do objetivo, do futuro e da confiança devárias pessoas, suportamos as tentações, humilhações... e embusca do ideal não fugimos. Tenho fé que nenhum boato irá atra-sar nossa meta. O principal é que minha consciência ta tranquila!”

Pedi licença e, convicto, complementei o raciocínio do parceiro:“Não precisamos provar nada pra ninguém, a não ser pra gente

mesmo. Sei que na condição de presidiários temos um grandedesafio. Passamos pelo fundo do poço, estamos aos poucos pro-vando que o ser humano quando tem oportunidade é capaz dese regenerar.”

“Agora quero sinceridade de vocês. Qual o envolvimento dosdois com o PCC?”

Em conjunto respondemos:“Nenhum! Nosso partido é o rap. É óbvio que temos uma

grande coletividade com a população, entre eles alguns mem-bros do PCC. Veja bem, doutor, nosso grupo nasceu na prisãoe nossas músicas relatam o dia a dia dessa massa no qualeles fazem parte.”

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Satisfeito, o diretor concluiu o assunto impondo suas regras:“Bom, já disse à vocês, o que fizeram no passado não me inte-

ressa. O importante é o presente. Caso queiram ficar em minhacasa, terão que abdicar algumas coisas. Esqueçam as saídas parashows. Outra coisa, imprensa nem pensar. Odeio a mídia. Aqui éuma prisão de disciplina. Se preencherem o lapso temporal man-do embora. Dou minha palavra de homem. No ano passado man-dei 500 presos para rua como benefícios. Dou a escolha à vocês.Se quiserem ficar tenho minhas exigências.”

Era como uma queda de braço. Tínhamos que raciocinar etomar decisão coerente. Só tínhamos duas opções: A primeira,era ficarmos juntos e acreditarmos nas promessas do homem. Asegunda, era irmos separados de bonde para outras prisões.Naquela altura do campeonato, a primeira alternativa pareciamais lógica, já que tínhamos voltado à estaca zero. Teríamos queconquistar o espaço e a confiança novamente. Na mesma sintonia,olhamos um para o outro e apostamos todas as fichas na primei-ra opção.

Voltamos para cela da inclusão e poucas horas depois paga-ram três presos, que chegaram de bonde da penitenciária deAvaré. Por volta das 18h30, os faxineiros serviram a bóia. Euestava sem fome, preocupado, sem saber se meus entes recebe-ram a notícia de que Dexter e eu tínhamos sido transferidos. Odiretor se propôs a avisá-los, mas a incerteza queimava milhõesde neurônios. Mesmo sem apetite, fui ver o cardápio: arroz papaparcialmente cozido, feijão aguado. De mistura, picadão de car-ne cozida com batata e cenoura. Nenhum tempero. Parecia co-mida para doente. O gourmet deixou a desejar na gororoba. Deiumas duas ou três garfadas e joguei fora.

A noite caiu. Deitei na jega para refletir. Queria ficar só. Esta-va empapuçado de trocar idéia. O cansaço dominava meu corpo.O dia foi estressante. Dormi rapidamente.

Às 5h acordamos com o carcereiro batendo no guichê parafazer a última contagem da noite. Cochilei de novo até as 7h30,quando fizeram outra chamada. Nessa contagem era obrigatório

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que respondêssemos vestidos e em pé. Por volta das 10h, umfunça – que mais parecia um jagunço – ordenou que arrumásse-mos rapidamente nossos bagulhos. Fomos levados para o RO(Regime de Observação).

Logo chegamos ao setor de disciplina e vigilância. O RO eraconstituído de pequenas celas. À direita, avistei algumas celascom presos do MPS (Medida Preventiva de Segurança), o cha-mado seguro. São os presos que infringiram as regras internasdo crime.

Outra chamada e abriram as portas de ferro. Num tom gros-seiro ordenaram para que entrássemos. Fui pago na cela de nú-mero 24 e o Dexter na cela 26. Fiquei perplexo com o tamanhoda cela – 3 metros de comprimento por 2 de largura E já haviadois moradores. O cheiro de mofo impregnava. Acho que lá den-tro a temperatura era de uns 40o graus. Existiam apenas duasventanas para ventilação. A janela era lacrada com um vidro trans-parente e grades de ferro do lado de fora. No canto esquerdo, nofundo da cela, um buraco na parede na altura da cintura serviade torneira e chuveiro. A água e a descarga eram controladaspela boa vontade dos funças. Embutido no chão, um vaso sanitá-rio que mais parecia um bueiro. Ao lado direito uma jega decimento. Nesse momento senti um calor subindo dos pés até acabeça. O ódio transpareceu em minha face. Tive que fazer umgrande esforço para me acalmar.

Com traje usual do país das calças beges, entrei no cubículosem luxo ou conforto, mas fui acolhido com o maior respeitopelos companheiros que já estavam lá. Nunca esquecerei as pa-lavras de apoio:

“A gente não tem nada, mas o que tem aqui é tudo nosso.”Eram o Eliel, de Francisco Morato, e o Marrom, de Itapira.

Eles estavam há 20 dias no veneno, cumprindo castigo porqueforam pegos na blitz com faca. Esse tipo de contravenção é con-siderado grave. Durante seis meses ficariam na reabilitação enão poderiam pleitear nenhum benefício.

Conversa vai e conversa vem, não me reconheceram. Só fo-

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ram juntar as peças do quebra-cabeça quando o Dexter me ligoupela ventana para saber se estava tudo pela ordem comigo. Nes-sa hora, com um gesto de admiração Marrom falou:

“Cê tá brincando. É você que é o Afro-X do 509-E?”“Pode crê. Sô eu mesmo mano!”Eliel nos elogiou:“Nossa, comprei o CD de vocês em 2000, quando tava no

mundão. Independente do lugar é mó satisfação conhecer você.O som de vocês é mil grau. Num tô nem acreditando!”

“É nóis, rapaz. Infelizmente viemos nos trombar aqui nesseinferno, mas a tendência é melhorar. Se Deus quiser logo maisnos encontraremos num show qualquer.”

“Tem uns artistas que só porque gravou um CD, menosprezaas pessoas e se acha o tal, melhor que os outros.”

Incisivo, respondi:“Não me considero artista, trampo com arte. Não gosto deste

rótulo. Não sou melhor que ninguém, estou no mesmo barco. Asimplicidade cabe em qualquer lugar e situação.”

Por alguns minutos, o papo até amenizou o sofrimento. De-pois, caímos na maldita monotonia. Fizemos vários castelos,relembramos tempos bons e de uma hora para outra o silênciotomou conta do xadrez. Cabisbaixo, sentei na jega, olhei paramim e para minhas vestes. Vi um verdadeiro farrapo humanocom barba por fazer, debilitado e desesperançoso. Os dois gui-chês da porta permaneciam constantemente lacrados. Só abri-am na hora de servir a bóia. Mais parecia um sepulcro de mor-tos-vivos. Tomar ducha apenas uma vez por dia. O boi causavanáuseas. As moscas brigavam pelo espaço nas fezes e urina. Atristeza e a agonia tomaram conta de mim. Sentia vontade dechorar, mas não saíam as lágrimas. Mesmo estando rodeado detrês caras, me senti o mais solitário dos homens.

Mó neurose. Em meu subconsciente, foi travada uma luta en-tre o bem e o mal, mas lá no fundo algo me dizia que jamaispoderia me entregar aos sentimentos ruins. Enrijeci meu cora-ção, minha prioridade era sobreviver.

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Há alguns meses eu seguia a risca meu ritual de jejuar por 12horas diárias, a conselho de minha mãe. O corpo espiritual ficamais desprendido e consequentemente mais apto para buscarum contato íntimo e profundo com Deus, que é Espírito. Duranteo jejum, o espírito fica mais à vontade, os desejos da carne sãoaniquilados pela força de Deus. Para os cristãos o jejum é consi-derado oração mais fervorosa do que a feita com os lábios, por-que nela há gemidos inexprimíveis da própria alma humana, embusca de benefícios. Consegui muitas bênçãos através do jejum.

Eu buscava orientação na Bíblia Sagrada. Nela está contido osumo da sabedoria: “E quarenta dias foi tentado pelo diabo enaqueles dias não comeu coisa alguma, terminados Ele teve fome(Lucas 4.2).

Era o primeiro final de semana em Franco da Rocha. Aos pou-cos fui me adaptando na esgotante rotina: quatro contagens, duasrefeições. A paciência e a fé foram relevantes para o êxito dessamissão.

Amanheceu uma linda segunda-feira de outono. Os primeirostímidos raios do astro-rei já refletiam com intensidade e invadiamo xadrez pelas ventanas. Eu estava com um bom pressentimento.Eufórico, permaneci deitado, só castelando e esperançoso.

Quando o funcionário bateu na porta, abriu os guichês e can-tou minha matrícula. Senti um alívio tremendo. Pressenti que oscaminhos estavam se abrindo. Nossa mente é igual a um apare-lho de rádio, em que sintonizamos as freqüências. Assim, os bonse os maus fluídos dependem de nós. Em princípio passamos noteste, mas nossa missão, ainda era reconquistar a confiança.

Além do Dexter e eu, saíram do RO outros 15 presos que fo-ram subdivididos nos três raios da penitenciária (pavilhões 1, 2e 3). Uma revista rigorosa foi feita. A cadeia tinha apenas doisanos de inauguração. A radial era uma galeria ampla e extensa.Todos entravam e saíam por ela. Era o único e principal acessopara todos os raios e setores de trabalho, como enfermaria, la-vanderia, FUNAP, escola, biblioteca, cozinha, controle geral, se-tor de segurança e vigilância e a sala dos advogados.

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Muitos funcionários fizeram nossa escolta pela radial até oraio em que moraríamos. O Dexter, eu e mais alguns detentosatracamos na gaiola do raio 1. O clima era aparentemente nor-mal. Uns jogavam futebol, muitos andavam em volta da quadra,outros faziam exercícios físicos, alguns costuravam bola. Aliás,cada bola pronta rendia R$ 1 ao preso, sem contar a remissão depena (a cada três dias de trabalho, o preso ganhava um de re-missão na pena).

O bonde chamou a atenção e vários presos curiosos vieramnos recepcionar. Nessa hora, o Luizinho - um mano firmeza to-tal, que conhecemos na Dita - colou na grade junto com outrosmanos: o Marquinhos, o Belo, o Paulinho, o Magaiver, o Vô, oTóta, o Gordinho, o Nego de Itu, o Júlio, o Gringo, o Verdãoentre outros. A recepção foi daquele jeito. A rapa nos acolheu demaneira amistosa.

Como um bom aliado, Luizinho se prontificou em nos dar todaassistência necessária. O mano tinha ótimas lembranças, refe-rências de adianto e correria da gente. Para quem chega é muitoimportante um apoio, pois os obstáculos no recomeço são inú-meros. O “salve” dele foi mais ou menos assim:

“E aí tios, tão firmão? Infelizmente a gente tá se trombandoaqui, mas se Deus quiser vai melhorar. É tudo nosso. Vocês vierampara o lugar certo. Tão indo um monte de cara de liberdade!”

Ainda na gaiola o carcereiro nos perguntou a matrícula, nomecompleto e o nome dos pais. Por fim anunciou os números dascelas em que seríamos distribuídos.

Ao pisar no raio em silêncio, mais uma vez pedi proteçãoao nosso Criador e confiante dei início à minha nova caminhada.Em vista do Carandiru a nova arena era minúscula. A populaçãototal da Casa era de aproximadamente 881 presos. No raio 1eram 88 celas, sendo 44 do lado ímpar e 44 do lado par. Cadalado era dividido em dois andares com 22 celas cada. As alaspares e ímpares eram divididas por uma quadra de futebol society.A população total do raio 1 era de 249 presos.

As celas dos setores de faxina, jumbo, correspondência,

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esporte, judiciária, manutenção e barbearia fechavam às 19h30.Os barracos dos detentos comuns, que não constituíam os seto-res de trabalho, trancavam às 17h.

A construção era padrão em todos os raios, com uma diferen-ça nos raios 2 e 3 denominados fundão.Existiam no fundão ape-nas 51 celas, porque os barracos eram maiores contendo seisjegas. Lado par era constituído por 25 celas e o lado ímpar 26celas, composto por dois andares, sendo que o lado par continha12 celas embaixo e 13 celas em cima, e o lado ímpar com 14celas embaixo e 12 celas em cima. A quadra de futebol society,como no raio 1 fazia a divisão dos dois lados.

Para ser vaso ruim de quebrar, acreditei piamente que só osfortes sobrevivem.

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FOTO JOÃO WAINER

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– CAPÍTULO 13 –A lei é para todos, mas a justiça é para poucos

A primeira contagem era pontualmente às 7h30. Na sequência,às 8h, os funças abriam as 88 celas do raio 1. A falta de estru-tura era nítida. As vagas nos setores de serviço e na escola

não eram suficientes para o contingente dos três raios, por isso amaioria dos presos ficava na vadiagem. As opções de lazer da rapaeram jogar futebol, praticar musculação com pesos inadequados eimprovisados (com garrafas de plástico), jogar pingue-pongue numamesa caindo os pedaços ou andar em volta da quadra society.

Todas as atividades externas das celas eram monitoradas porum circuito interno de câmeras (estilo Big Brother). Às 17h tranca-vam a maioria das celas. Logo em seguida ocorria a segunda conta-gem do dia. Após a troca de plantão, às 18h30, sem falta efetua-vam, mais uma contagem.

Ver aquele quadro diariamente me dava agonia. Os dias pareciameternidade. Os personagens e os figurantes eram sempre os mesmos.Vez em quando “cantavam” uma liberdade. Muitas vezes, quandoestava deprimido, olhava pela ventana para espairecer, mas o visualera imutável. Por entre as grades, eu avistava o alambrado, a linhade tiro, a muralha, a guarita. Dentro desta guarita ficava um PM pas-sa fome empunhando um fuzil 762, com ódio por estar de castigonos vigiando. Ele ficava à espreita de uma deixa para treinar tiro aoalvo e estraçalhar miolos. Lá longe, além das muralhas, existia umaglomerado de montanhas formando pela Mata Atlântica. Essa via-gem pela natureza não se prolongava muito, pois logo voltava para amesmice da fortaleza de concreto e grades. Em questão de dias caí-mos na esgotante rotina da vida sedentária e do presídio de seguran-ça máxima Nilton Silva II, apelidado pela massa de Franco II.

Estávamos no mês de março. Dentro de poucos dias Simony com-pletaria seis meses de gravidez. Fui “obrigado” a apelidá-la de bar-riguda. Mas ela ficou uma grávida bonita, saudável e sem ganho depeso excessivo. Graças a Deus nosso bebê estava muito bem. Osbatimentos cardíacos eram perfeitos, o desenvolvimento físico sur-

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preendia, conforme ultrassom.Minha maior emoção foi quando vi, pela primeira vez, ele mexer

na barriga dela. Parecia conhecer minha voz. Eu chegava bempertinho da barriga e falava:

“Cadê o bebê do papai?”Ryan atendia ao chamado e se mexia. Era muito bom ter esse

contato. O médico ginecologista, Luís Salvoni, orientou que era muitoimportante essa proximidade tanto do pai como da mãe. O bebê,instintivamente, absorve esse amor, que é essencial desde o perío-do da gestação. Além de ser o símbolo de nossa aliança, Ryan tam-bém se tornou o principal escudo de defesa para Simony contratodas as maledicências.

À noite eu deitava a cabeça no travesseiro, refletia sobre nossasvidas. Ficava orgulhoso e ao mesmo tempo espantado diante de tama-nha coragem e dedicação. Desde quando vetaram nossas saídas, Simonynão faltou a uma visita sequer, apesar dos incidentes, percalços, dorde cotovelo e provocação de invejosos. Todos os domingos ela acorda-va às 4h. Às 4h50, já estava em frente ao presídio. Encarava uma filapara conseguir entrar às 8h. Geralmente ela conseguia, pois era sem-pre uma das primeiras visitas a chegar.

Um fato que me deixava profundamente aborrecido, era saberque eu tinha outro filho, o João Pedro, e não o conhecia. Estava proi-bido e impossibilitado de ter contato com ele. Esse foi o pior castigo.Fiquei sabendo que ele havia nascido pela TV. Na época, pedi paraminha mãe tentar uma aproximação. Foi inútil.

Sei que o rompimento de uma relação é complicado. Um ladosempre fica mais magoado. O fato de eu ter me separado antes donascimento do bebê não justificava aquele tipo de vingança. A crian-ça não tem nada a ver com os problemas dos pais. Também acho achantagem emocional um jogo desleal, em que o maior prejudicadoé tão somente o filho. Ainda hoje não o conheço. Tenho muita fé emDeus que esse drama em minha vida seja efêmero e que um dia possadar todo o amor para o meu filho.

Mesmo com todos os desacertos e adversidades, Simony e eu es-távamos otimistas e esperançosos de que ganharíamos o benefíciopleiteado pelo meu advogado – o semi-aberto –, amparado pelo arti-go 112 da Lei de Execução Penal nº 7.210 de 11 de julho de 1984.

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Art. 112- A pena privativa de liberdade será executada em forma pro-gressiva, com a transferência para regime menos rigoroso, a ser deter-minado pelo Juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos um sexto dapena no regime anterior e seu mérito indicar a progressão.Parágrafo único - A decisão será motivada e precedida de parecer da comis-são técnica de classificação e do exame criminológico, quando necessário.

O regime semi-aberto é menos rigoroso e a execução da pena éem colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar. O semi-aberto dá direito ao interno sair no período diurno para trabalhar eregressar à noite.

Em abril de 2.001 nossa espera já durava sete meses. A ansiedadenão era para menos. Faltavam menos de dois meses para o tão espera-do nascimento de nosso filho. Mesmo diante desse impasse e da moro-sidade da justiça, Simony e eu estávamos convictos que eu teria o be-nefício do semi-aberto, devido ao lapso temporal. Na ocasião eu jácumpria mais de um terço da pena. O exame criminológico era favorá-vel pela equipe técnica, pela diretoria e ainda a minha evolução com otrabalho musical na reintegração social. Todos esses requisitos, indis-cutivelmente, preenchiam os adjetivos e subjetivos exigidos na lei 7.210da Execução Penal.

Mesmo com todo o nosso otimismo e os critérios exigidos favoráveis,ainda assim o inesperado aconteceu: o semi-aberto pleiteado foi indefe-rido pelo juiz da comarca de Franco da Rocha. Simony e eu ficamosfrustrados com a decisão. Que absurdo! Isso foi um tremendo balde d’água. Ficamos desorientados com o nocaute. A partir daí, minhas possi-bilidades de estar na rua para ver o nascimento de meu filho eram qua-se nulas. Sem ter a quem recorrer, sem mais nada a fazer, nos abraça-mos dividindo o sofrimento e juntos, choramos.

Não é preciso ser bacharel em direito para enxergar arbitrarie-dade ou perseguição. O juiz alegou que eu tinha indícios de perso-nalidade exibicionista, agressiva e narcisista. Contesto usando aspróprias palavras do meritíssimo: “Apesar dos técnicos terem con-cluído pela possibilidade de progressão, acredito que os indíciosde personalidade exibicionista, agressiva e narcisista, teriam queser detectados pela equipe técnica. Ou juiz também é psicólogo?

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O juiz alegou que o fato do reeducando exercer atividade artísticanão é suficiente para possibilitar a progressão ao regime intermediá-rio. Acredito, piamente, que o meu envolvimento com a música tenhasido fundamental para minha recuperação e perspectiva futura, por-que está mais que comprovado que o sistema carcerário não regeneraninguém. Penso que esse tipo de comportamento exemplar deveria serreconhecido e apoiado pelas autoridades.

A teoria diz que o trabalho, disciplina no cárcere, é imprescindívelpara reintegração social do reeducando e eu cumpria com meu dever.

Para negar o benefício, o meritíssimo se apoiou ainda em umadúvida criada por ele mesmo de que o meu interesse em estabelecerum relacionamento familiar não era verdadeiro. Nas palavras dele:“Diante do histórico de relacionamentos amorosos frustrados, inclu-sive com gravidez, o reeducando não se mostra suficientemente pre-parado para possibilitar a progressão ao regime semi-aberto.” Paramim, o argumento foi absurdo. Minha vida particular diz respeitosomente a mim. Ou será que o número de relacionamentos que tivetem algo haver com os crimes que cometi?

Por mais que eu tente, não sou perfeito e nem as pessoas que merodeiam. As questões em pauta eram o julgamento dos requisitospara galgar o semi-aberto, baseado no lapso temporal, o examecriminológico e a atividade laborterápica. Independentemente danitidez dos meus argumentos para o deferimento do benefício, mi-nha intuição ainda diz que tinha algo por trás, bem mais além doque o que levou ao indeferimento pleiteado para o semi-aberto.Enfim, a lei é para todos, mas a justiça é para poucos. O julgamentoé diferenciado para quem tem poder aquisitivo. Cadeia não valepara políticos sujos e corruptos, só para pobres, nordestinos e ne-gros nesse país de impunidade. Sei que um erro não justifica o ou-tro, mas a desigualdade é inafiançável. Vivi boa parte de minhavida tentando provar algo para as pessoas, e nessa incansável lutacheguei à conclusão que não consigo ser perfeito”. “O choro podedurar uma noite, mas a alegria vem pela manhã.” (Salmos 30:5).

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– CAPÍTULO 14 – Papai, Mamãe tô chegando

Duas semanas após passarmos pelo revés do indeferimentode meu beneficio, Simony me fez uma surpresa maravi-lhosa. Trouxe minha filha Hemelly Lawryn, de 2,6 anos

para me visitar. Fiquei muito orgulhoso ao revê-la. Estava linda!Trancinha no cabelo, calça bailarina, mini-blusa, botinha de couroe o mais importante, estava saudável. É impressionante como ascrianças se desenvolvem tão rapidamente.

Minha filha nasceu no dia 27 de outubro. Tão pequenininha ejá demonstrava traços de personalidade marcante. Sem mais,nem menos soltou a tagarela, falou de tudo, que estava com sau-dades de mim, que o Ryan que estava na barriga da Simony, erairmão dela. Fiquei impressionado e admirado quando ela cantoua música Caixa Postal, do CD da Simony. Minutos depois, no rá-dio, tocou um pagode do Jorge Aragão e repentinamente ela co-meçou a dançar. Entusiasmado brinquei:

“Filha, agora só me falta você arrumar um namoradinho. Vêdireito, hein? Ta deixando seu pai de cabelos brancos!”

No mesmo instante, peguei-a no colo, distribui vários beijos,afagos e abraços. É tão bom sentir-se amado. Acredito que mi-nha filha sentia essa ausência, a presença da figura paterna. Emsilêncio lamentei a inevitável distância. Fiquei muito satisfeitocom o comportamento civilizado de Simony e minha ex-mulherLuciana, que deixaram a rivalidade, o orgulho e até a indiferen-ça de lado para focar apenas no bem-estar da minha filha.

Também fiquei muito contente quando Simony me entregouuma carta escrita pelo meu sobrinho e afilhado Jeron, de 7 anos.Fiquei lisonjeado com as singelas palavras que diziam: “Te amotitio, volta logo. Beijos Jeron”.

Chegava o mês de maio e com ele contagem regressiva para o

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nascimento do meu Ryan. O clima era de muita ansiedade e ex-pectativa. As consultas de pré-natal passaram a ser quinzenais.Por precaução deixamos tudo pronto para sua chegada. O designdos móveis de seu quarto era arrojado, modelo exclusivo, comdecorações e papéis de parede na cor branca com detalhes azul-turquesa, sem perder a característica infantil e angelical. Graçasa Deus, Ryan foi bastante presenteado com todos os itens de umenxoval.

No primeiro dia de junho, Simony foi a mais uma consulta depré-natal. O médico deu o diagnóstico sobre o último mês degravidez. O ultrassom constatou que pelo desenvolvimento dobebê era conveniente que o parto fosse cesariana. Ryan media46 centímetros e pesava 3,2 quilos. O parto estava previsto parao dia 17 de junho. Meu coração disparou quando recebi a notí-cia. O tão esperado dia estava bem próximo. Faltavam apenasduas semanas. Percebi que Simony estava muito sensível, e comum barrigão enorme.

Mais uma segunda sem lei passou com alguns atritos, acertosde conta, buxixos e todos os fatos corriqueiros da ilha. A noitefria caía. A impressão que eu tinha era de que o inverno seriarigoroso. Mas, o mais triste era enfrentar a ducha de água fria,que infelizmente fazia parte da rotina da penitência.

Na noite de segunda-feira, Simony não dormiu bem. Cochila-va, acordava. A sensibilidade estava à flor da pele. O barrigãoincomodava. Ela não tinha posição adequada para dormir. O bebêmexia demais. Nostálgica, levantou às 5h23 da manhã, pegoupapel, caneta e resolveu me escrever para desabafar, pois as car-tas se tornaram o passaporte de nossos pensamentos, sentimen-tos e emoções.

Por volta das 14h de 5 de junho de 2.001, uma terça-feira,Simony começou a sentir dores fortes na barriga em intervalosde dez minutos. Antes de tomar qualquer providência, aguardoualguns minutos para se certificar que não era alarme falso, masas dores não cessavam. A instrução do médico foi que ela tomas-se algumas gotas de analgésico e anotasse os horários que sen-

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tisse dores. Mandou que fosse para casa repousar, porque den-tro de meia hora, retornaria a ligação para saber do seu estado.

Simony seguiu a risca a orientação e dirigiu-se para casa. Pas-sados os minutos estipulados pelo médico, ele retornou a liga-ção e soube que ela não havia melhorado. Pelo contrário, o in-tervalo das dores diminuiu de dez para cinco minutos. Nessasalturas Simony já estava apavorada. O médico pediu que ela fos-se ao hospital e maternidade Israelita Albert Einstein, na capital.

Assim que ela pisou no saguão da maternidade as dores setornaram insuportáveis. O bebê mexia como nunca. Estava ofe-gante e sentindo muita falta de ar. Ela foi colocada em uma ca-deira de rodas e levada para o centro obstétrico. As enfermeirasmediram os batimentos do coração do bebê. Constataram as con-trações com o exame de toque que mostrava cinco dedos de dila-tação. Era chegada a hora do parto.

Dentro de poucos minutos, o ginecologista chegou ao hospital.Nesse momento o nervosismo estava estampado no rosto da ma-mãe de primeira viagem. Enquanto terminavam os preparativospara o parto, Simony pegou o celular e ligou para sua mãe emAraraquara. Em seguida para minha mãe, em São Bernardo do Cam-po. As vovós ficaram em estado de frenesi. Largaram tudo que esta-vam fazendo. Avisaram o pessoal e se dirigiram para o hospital.

O relógio marcava 21h27. Estava encerrado o momento su-blime do nascimento do nosso Ryan que foi esperado com muitaansiedade. A natureza agiu com perfeição, apesar de Ryan nossurpreender e antecipar 12 dias sua chegada. Ele nasceu com3,21 quilos e 49 centímetros. Ao vê-lo, Simony entrou num esta-do de êxtase. Os olhos lacrimejaram e as lágrimas caíram. Acre-dito que não existam palavras suficientes para descrever aquelemomento único. Dar à luz era realização do sonho de Simony.Mais importante era ver que Ryan era saudável, perfeito. Seusdotes de mãe se fizeram presente. Com palavras suaves e afeto,conseguiu acalmar o choro do filho. Instintivamente Ryan reco-nheceu sua genitora, parou de chorar e ficou apenas soluçando.

Em Franco II nenhum fato novo aconteceu. Escrevi até as 23h.

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Exausto encerrei minha atividade, paguei uma ducha gelada, deiteina jega, peguei o controle remoto, mas a TV só sintonizava a Globoe o SBT. Como não encontrei nenhuma programação interessante,peguei minha Bíblia, fiz minha oração habitual e fui dormir.

No dia seguinte, assim que a tranca foi aberta, um funça foilogo me parabenizando pelo nascimento do Ryan. A notícia medeixou atônito. Causou surpresa e desconfiança ao mesmo tem-po. Respondi dizendo que a notícia era falsa, porque a previsãoera que meu filho nascesse em 17 de junho. Ele insistiu dizendoque assistiu na televisão na noite anterior. Ainda assim, eu nãoquis acreditar, por causa da maneira que ele me deu a notícia.

Mesmo não levando muito a sério o fato perturbou minhamente. Saí da cela fui até a caixinha do correio colocar uma car-ta. No caminho, vários presos me felicitaram. Nesse instante dedúvida passou para preocupação. Não era possível que todasaquelas pessoas estivessem enganadas, pensei. O que fazer?

Voltei em passos apressados para a cela. Desnorteado liguei orádio de pilha e a televisão ao mesmo tempo a fim de saber notíci-as. Não sabia o que fazer para conter a adrenalina. Impaciente co-mecei a andar para lá e para cá dentro da cela. Foi quando, feliz-mente, a locutora Sandra Groth, da rádio 105 FM, confirmou o nas-cimento de meu filho e acabou de vez com a minha terrível dúvida.

No início fiquei radiante com a notícia, mas depois fui toma-do pela angústia por não saber nada de concreto. Me senti invá-lido por não estar ao lado de Simony em um momento tão glori-oso. Olhei ao meu redor: só eu e as paredes da cela. Cabisbaixo,cheguei a derramar algumas lágrimas. Felizmente Deus ouviumeus lamentos. Minutos depois o diretor-geral pediu falar comi-go na sala dos advogados. Entrei na sala vazia. Logo em seguida,foi a vez do diretor entrar. Ele me cumprimentou com um apertode mão. Pediu para que eu sentasse. Aquele suspense me causoutemor. Meu coração batia forte.

Assim que sentei, o diretor-geral foi direto ao assunto. Pergun-tou se já sabia da notícia. Respondi que soube pelo rádio, massem detalhes. Como ele também era pai entendeu a minha preo-

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cupação e sem hesitar me parabenizou e com palavras tentou meacalmar. Ele já sabia que as possibilidades do juiz autorizar minhaída à maternidade eram nulas. Maldito sistema. Não tive o prazerde presenciar o nascimento de nenhum de meus três filhos.

O diretor geral fez uma gentileza que nunca vou esquecer. Pe-gou o telefone que estava em cima da mesa, discou um número eme passou o aparelho. Ao ouvir a voz rouca do meu bem, abri umsorriso de contentamento. A satisfação foi mútua. Simony nãoescondeu o ar de entusiasmo com o telefonema inusitado. O dire-tor-geral saiu da sala e permitiu que eu continuasse a conversa.

Sem rodeios indaguei como os dois estavam. Radiante, Simonyrespondeu que estavam bem. Eram tantas curiosidades que nãosabia por onde começar, mas a conversa tinha que ser breve.Perguntei se o Ryan era parecido comigo. Bem humorada, eladescreveu as características do nosso filho. Disse que ele era lin-do, com o cabelo pretinho e tinha a minha cara. Falou quantopesava, quanto media e a hora do nascimento. Romântica, disseque a distância não impedia de estarmos sempre juntos. Ela mefez o pai mais feliz do mundo.

Simony encerrou a conversa dizendo que Ryan estava rece-bendo muitas visitas de nossos familiares e também de artistas.Disse que nossas mães estavam disputando o espaço para verquem o pegava mais no colo e que provavelmente teria alta nosábado. Assim, no domingo, levaria nosso filho para eu conhe-cer. Quando desliguei o telefone, senti o maior alívio.

Aquela semana parecia ser a mais longa de todas. Eu não con-seguia dormir direito. Não sentia fome. Em meus castelos ficavatentando imaginar como era sua fisionomia, o corpinho, a cordo meu filho. O que eu mais queria era pegá-lo no colo.

O tão esperado final de semana chegou. No sábado pela manhãquando a tranca foi aberta, o jornal do ladrão e alguns funcionárioscomentavam que minha mulher, meu filho e a produção do Gugupousariam de helicóptero em frente da penitenciária. Em princípioo rumor me causou dúvida. O assédio da imprensa foi driblado:Eles subiram de elevador até o heliporto, embarcaram na aeronave

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com destino a Penitenciária II de Franco da Rocha.Quando o funcionário me avisou da visita inusitada meus

batimentos cardíacos aceleraram. Deu até tremedeira nas per-nas. Me vesti rapidamente. Fiquei apreensivo e impaciente coma demora, devido a algumas burocracias da Casa. Fui liberadodepois de 20 minutos. Que alívio! Um funça seguiu na frenteescoltando, quando saí da gaiola do raio I, avistei no final daradial, próximo a entrada da inclusão estavam as câmeras, holo-fotes e filmadoras do SBT que focalizaram cada detalhe, cadareação e meus passos rumo ao encontro memorável.

Foi uma sensação indescritível, um prazer inenarrável verSimony com meu filho no colo. Meus olhos brilharam como dia-mantes. Deus sabia de nossas necessidades e o que se passavaem nossos corações. De braços abertos apertei os passos e fui aoencontro dos dois, num clima de euforia, sorrisos e lágrimas,beijei e abracei meus amores. Em seguida, finalmente pegueimeu bebê no colo para dar-lhe a bênção e as boas vindas. Fiqueiencantado com o Ryan. Graças a Deus nasceu saudável, compri-do e cabeludo. Era impressionante como se parecia comigo. Her-dou da mãe apenas algumas características como a boca, o quei-xo, as mãozinhas e o sorriso cativante.

Ele dormia tranquilamente feito um anjinho. Não dava a mí-nima para o “coruja” que o estava bajulando. Como Ryan nãoqueria acordar, fui obrigado a despertá-lo. Levantei-o com as duasmãos até esticar os braços. Foi emocionante vê-lo abrir osolhinhos, espreguiçar, fazer um biquinho de reprovação e umacareta igual a minha quando acordo. Meu ego ficou enaltecidocom aquele pedacinho de gente tão inocente, tão vulnerável etão dependente de nós.

Apenas um gesto do bebê foi suficiente para que a mamãesoubesse que era hora da amamentação. Foi emocionante veraquela cena e inesquecível aos olhos e coração. Em silêncio agra-deci muito a Deus pela dádiva da vida do meu filho. Família é oalicerce do homem!

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– CAPÍTULO 15 –Assim meu coração não aguenta

O sonho de liberdade virou realidade. Fui contemplado como regime semi-aberto após quatro meses doindeferimento. Mais uma tarde chegava a Franco I. O sol

descia no horizonte feito uma gema de ovo. Após a tranca dascelas, os companheiros e eu conversávamos, reclamávamos daburocracia, morosidade e também da demora para o julgamentodos benefícios pleiteados, quando de repente um mano que es-tava na campana exclamou:

“Mano, o funça tá subindo aqui pra galeria com uns papel na mão.”Corri para ver, foi quando o funcionário parou em frente a

cela e cantou meu nome completo. Meu coração disparou. Esta-va com um bom pressentimento e realmente era a luz brilhandono fundo do túnel. Ganhei o semi-aberto.

A partir daquele momento, os minutos, os dias, as semanas,enfim todo o tempo começou a ficar mais longo. Não conseguiamais comer direito. Mal dormia. Só pensava na rua. Na minhamente mó castelo, sonhos, planos, anseios, projetos e perspecti-vas para a tão sonhada liberdade.

Fui transferido para o semi-aberto de Franco da Rocha emnovembro de 2.001 e recebi a oportunidade de saída temporáriapara as festividades de fim de ano. Glória a Deus. Lembro comose fosse hoje. Na noite de 14 de dezembro nem consegui dormirpor causa da ansiedade. Por volta das 6h os primeiros raios dosol reluziam e anunciavam um dia lindo daqueles de verão. De-pois de todo o procedimento de chamada, seleção e conferência,quase 90% do contingente de 1.500 presos saiu para as ruas domundão, com retorno previsto para 5 de janeiro de 2.002.

Do lado de fora, Simony me esperava com nosso filho Ryanno colo. Quando os avistei, apertei os passos e logo cheguei aocarro. Peguei meu filho no colo e o beijei muito. Seguimos rumo

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ao bairro de Higienópolis, na capital paulista. Aproveitei muitobem os 15 dias com a minha família. O tempo passou voando eme deparei com a tristeza do retorno à penitenciária.

Tive momentos extremamente prazerosos no convívio famili-ar, o luxo da minha casa, meu colchão macio, enfim coisas sim-ples do dia a dia que muitas vezes não damos valor. Entristeci aopensar que teria que enfrentar tudo de novo: regras, pressõespsicológicas, maldade, humilhação, perigo, sofrimento, desca-so... todos esses sentimentos negativos que queria esquecer eapagar de vez da minha memória. Dos males o menor, aqueleprocesso era o primeiro passo rumo à vitória.

Em abril de 2.002 fui transferido para cumprir o semi-abertona Chácara Belém 1, na zona leste de São Paulo. A expectativapara minha liberdade era enorme, pois já preenchia o lapsotemporal e os requisitos exigidos pela LEP (Lei de ExecuçõesPenais). Fiquei frustrado, a condicional foi negada.

Realmente Deus escreve certo por linhas tortas. Fui apresentadoà dois advogados criminalistas, Regis de Oliveira – que tambémexercia o cargo de deputado federal e Moacir Tutui – um japonêssimpático, especialista em defesa oral, promotor aposentado. Jun-to com a minha advogada, eles desenvolveram a defesa escrita eoral para pleitear o benefício indeferido no Supremo Tribunal. Ga-nhei a condicional no supremo, com apenas um voto contra.

Em 11 de julho de 2.002, rotineiramente acordei às 5h. Fizminha oração habitual. Fui ao banho, me vesti e me prepareipara sair do semi-aberto para o trabalho. Estava de bem com avida, feliz e otimista. Parecia pressentir algo de bom naquelamanhã. Quando fui pegar minha carteirinha de trabalho estavabloqueada para saída, logo questionei o funcionário que fazia aliberação dos presos do semi-aberto que tinha trabalho externo.

“Que tá pegando, chefão? Cadê minha carteirinha de saída?Não vai dizer que esqueceram de mim?

Dando uma risada irônica o funça respondeu levando naesportiva:

“Epa, péra lá, muita calma, ladrão! Aqui não tá especificando

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o motivo, cê aprontou alguma? Só pode ser resultado de algumbenefício ou exame que você tem que fazer.”

“Tenho o benefício de condicional, que graças a Deus já estáganho. Só pode ser liberdade chefão, tenho convicção!”

Naquela altura do campeonato, nada poderia tirar minha paze a certeza da vitória. Mas confesso que fiquei um pouco ansiosoe eufórico. Não via a hora de acabar aquele pesadelo que já du-rava 7,5 anos. Perdi praticamente toda a juventude atrás dasgrades. Os momentos finais no cárcere foram os de maior refle-xão em toda a minha vida. Tinha uma imensa responsabilidadede não errar de novo, principalmente de não decepcionar á Deuspela a oportunidade. Tinha que lutar contra o preconceito porser ex-presidiário, ser exemplo para os meus filhos, familiares efãs. Meu maior desafio era dizer ao crime: Nunca mais. Logo saída viagem com um grito de um preso que indagou:

“E aí, rapaz? Tá chapando? Tem uma ligação da sua senhoralá no orelhão do pátio externo, corre lá, meu.”

Corri até o orelhão, a Simony já estava mó tempão na linha elogo foi dando a melhor notícia do dia, em ritmo de muita come-moração e entusiasmo:

“Parabéns, você ganhou sua liberdade, você é um homem livre!”Por segundos fiquei sem fala. Que felicidade! Deu mó

tremedeira nas pernas, dor de barriga, nem acreditei que estavaacordado e gaguejando perguntei:

“Mas é quente mesmo essa notícia? Como você sabe?”“Falei com os advogados logo cedo e a papelada da condicio-

nal já foi despachada do Fórum. O alvará de soltura já está aídesde ontem a tarde. Falei também com o diretor e ele me disseque essas coisas são meio burocráticas mesmo, entendeu?”

“Ah, então é por isso que ontem quando cheguei do trampo,ouvi uns funças comentando que iria ter várias liberdades hoje.Então tá. Deixa eu fazer uns corres aqui pra ver essa parada. Depoiscomunico o horário pra você vir me buscar. Beijão querida, fui.”

Desliguei o telefone e apressei os passos rumo ao portão prin-cipal. Bati na grade e chamei o funcionário responsável. Ainda

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bem que era plantão limpo e logo veio o chefe. Esse funcionário eraa maior figura. Usava óculos Ray-Ban na cara, calça jeans quasecaindo, barrigona gigante para fora da camiseta branca, colete pre-to de agente penitenciário. Andava sempre em passos de tartaruga.

Depois de muita dificuldade o figura chegou para falar comi-go. Trouxe uma boa notícia, mas demorou um pouco porque eragago. Disse para eu me aprontar que por volta das 13h buscariatodos os reeducandos que tinham ganhado o benefício. Ufa!

Era difícil conter a adrenalina. Olhei no relógio que marcava9h30. Liguei para Simony e pedi que ela estivesse na portaria dopresídio às 15h30. O trâmite de qualificação para evitar fraudese fugas consistia em conferência da documentação enviada peloFórum (alvará de soltura), planilha de impressões digitais dobeneficiado, questionamento dos dados pessoais, comparaçãocom as fotos da pasta cadastral, comparação com a assinaturade entrada na prisão e assinatura na cópia do alvará de soltura.Tudo isso levava tempo. Somente depois, o preso estaria parcial-mente livre. Porque a condicional é um benefício muito delicadoe cheio de requisitos à serem cumpridos, qualquer infração mí-nima pode levar de volta à prisão, na estaca zero.

Depois de quase uma eternidade, minha hora chegou. A despedi-da dos companheiros de sofrimento e dos funcionários do pavilhãofoi rápida. Com sorriso no rosto desejei boa sorte a todos. Mesmoassim um pessimista falou para eu tomar cuidado para não voltar. Afelicidade era tanta que ignorei o invejoso e segui para o “abre-te,Sesámo”. A cada portão que abria meu coração acelerava mais.

Habitualmente já transpiro muito, mas naquele dia o suordescia sem cessar. Um funcionário acompanhava três reeducandose eu. Coitado, ele falava sozinho. Eu estava longe dalí. No meucastelo, em silêncio, orava e agradecia a Deus. Era só alegria,que sentimento bom.

Logo adiante, avistei a Simony, meu filho Ryan, a babá e nos-so segurança. Vi também outras pessoas ao redor que não co-nhecia. Alguns paparazzi com suas câmeras de filmagens e foto-grafias. Apertei os passos. Deixei o funça para trás. Era uma tar-

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de ensolarada, com um céu azul lindo. Os pássaros voavam, pa-reciam comemorar a dádiva comigo.

Cheguei bem próximo do último portão de acesso para a rua.De longe, o funcionário que estava comigo acenou com a cabeçaem sinal de positivo para que o outro liberasse a saída. Naquelemomento me senti um pássaro saindo da gaiola, dei um grito deliberdade. Abracei e beijei a Simony. Peguei meu filho levanteibem alto, cumprimentei a todos. Não consegui impedir que aslágrimas de felicidade rolassem.

Sobrou um tempinho para as fotos, entrevista rápida. Logoseguimos rumo a Alphaville. No banco de trás segurei na mão daSimony, fui curtindo o meu filho e a paisagem. Abri o vidro docarro senti a brisa agradável no rosto. Olhava aqueles carros emalta velocidade na marginal meus pensamentos voavam.

Numa tarde de verão eu estava em casa curtindo o meu bebê,quando meu celular tocou e recebi uma ligação ilustre. Era meuparceiro, Netinho de Paula, que fazia um convite:

“Nego, é o seguinte, tô com um projeto de vanguarda, que vaifazer a diferença na TV brasileira e ao mesmo tempo oportunizarnossa raça que é tão descriminada e não tem espaço por direito.O projeto consiste num seriado chamado Turma do Gueto. Eleirá retratar o dia a dia das comunidades mostrando o paraleloque a sociedade desconhece e também seu lado bom. Vários ta-lentos anônimos irão participar. Será exibido pela Rede Record e70% do elenco será de manos das periferias. Então, gostaria defazer um convite para você e a Simony somarem conosco. O queacha da idéia?”

“O projeto é fantástico. Parabéns. Só que não sou ator, mas agente aprende. Da minha parte tá tranquilão, tô envolvidão. Agorapreciso falar com a patroa pra ver o que ela acha, ok? Aí dou umretorno e marcamos uma reunião.“

“Negrão esse é o momento, você tem que fazer parte dessahistória. Te aguardo, fica com Deus, tamo junto”. Assim que des-liguei dei a notícia para a Simony, que curtiu muito a idéia doprojeto e aceitou de bate pronto.

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A novidade das gravações do programa se misturou com aansiedade sobre o nascimento de mais um filho meu com Simony.Desta vez, uma menina. Nosso sonho de ter um casal estava serealizando. O tempo não pára. Logo chegaram as últimas sema-nas de gestação. Era maravilhoso falar com o rosto colado nabarriga da mãe e sentir a reação. Na manhã de 13 de maio de2.003, começou o corre-corre. Acionei o médico e seguimos áspressas rumo ao Hospital Maternidade Albert Einstein, no bairrodo Morumbi. Já na maternidade, conheci o rei do futebol, o Pelé.O negrão é mó simpatia. Ele estava acompanhando o filho Edinho,que também aguardava o nascimento da filha.

Simony estava tranquila e não era mais marinheira de pri-meira viagem. Fui convidado para ficar numa ante-sala. Leveiuma filmadora portátil para registrar um dos momentos maissublimes que meus olhos iriam presenciar. Uma enfermeira metrouxe um kit que continha uma calça com elástico, um camisãoverde clarinho, um forro para o tênis, uma touca e uma máscaraque cobria a boca e o nariz.

Nervoso, comecei a andar de um lado para o outro e a roer asunhas. Parecia que iria demorar. Olhava de segundo em segundopara o relógio e quando faltavam 25 minutos para o início doparto a enfermeira me chamou. Nesse momento fui tomado poruma tremedeira nas pernas, até senti um friozinho na barriga,então peguei a filmadora e segui a enfermeira.

Tenho pavor de hospital porque o ambiente me faz recordaralguns episódios tristes da minha vida. Perda de alguns amigos eainda quando sofri um atentado. Fui baleado nas costas e per-maneci por 15 dias internado sendo oito na UTI (Unidade deTerapia Intensiva). Tudo aconteceu na noite de 20 de agosto de1.994, poucos meses antes de eu ser preso pela primeira vez. Euestava em casa quando três caras armados com revólveres cali-bres 38, 32 e 22 bateram palmas. Eles queriam se vingar de umabriga que eu tive dias antes com um amigo deles em um baile.Ao chegar ao portão, eles já estavam com as armas em punho.Instintivamente pulei sobre um destes homens. Durante a luta,

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houve vários disparos, mas não consegui tirar a arma das mãosdo cara. Neste momento, um dos comparsas do sujeito disparoucom a arma calibre 22 nas minhas costas. Deus me livrou damorte e de ficar numa cadeira de rodas.

Mas desta vez, a minha visita ao hospital era por um bommotivo. Entrei no centro cirúrgico da maternidade à procura damamãe e da princesinha. Me mantive firme. Com a mão esquer-da acenei cumprimentando a junta médica e com a mão direitameio trêmula segurava a câmera e filmava tudo o que podia.

Entre a junta médica, toda aquela parafernália de aparelhos eluzes avistei Simony. Ela estava pálida e abatida, mas soltou umsorriso maroto. Aquilo foi como injeção de ânimo. Passei afilmadora para um enfermeiro continuar a cobertura e meposicionei na frente da mesa de cirurgia. Aparentemente, paraum leigo como eu, era tudo muito simples. Tinha que ter estô-mago para ver a cena. Quando a nega saiu do quentinho da bar-riga para o mundão frio de ar condicionado artificial abriu umberreiro. Fui chamado para cortar o cordão umbilical. Não sabiase acudia minha filha ou se cortava o cordão.

“Vamos, Cristian. Temos que comemorar o nascimento daAysha.”

A parte mais fantástica foi quando o médico levantou a Ayshaque chorava muito e deu em minhas mãos. Quase tive um “tro-ço” de tanta emoção. Fiquei com um olhar fixo admirando a obra-prima. Esqueci de tudo naquele momento. Só sai do transe coma enfermeira querendo o bebê para fazer os procedimentos pós-parto. A Aysha era perfeitinha, chorava demais e para que elaficasse mais calma, coloquei bem pertinho do meu rosto, dei umbeijinho e falei no ouvidinho dela:

“É o papai amor, calma meu bem, é o papaizinho.”Instintivamente ela parou de chorar. É claro que me emocionei.

Mais uma vez as lágrimas de felicidade caíram. Aqueles momentosestão eternizados na minha memória. Deus concluía mais um pro-jeto em minha vida, proporcionando uma das maiores experiênciasque um homem pode ter que é o nascimento de seu filho.

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FOTO FELIPE

“A VID“A VID“A VID“A VID“A VIDA NÃO É UM VÍDEO-GAME”A NÃO É UM VÍDEO-GAME”A NÃO É UM VÍDEO-GAME”A NÃO É UM VÍDEO-GAME”A NÃO É UM VÍDEO-GAME”

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– CAPÍTULO 16 –Falhei na missão

Eu não estava preparado para o sucesso, portanto fadadoao fracasso. Tudo começou quando a soberba subiu à ca-beça. O meu mal foi pensar que o sucesso era eterno. Me

tornei uma pessoa arrogante e insuportável. Esqueci que o se-gredo do sucesso é a humildade. A vida me ofereceu grandesoportunidades e ao invés de agarrar com unhas e dentes, fiqueiolhando para trás e uma fila imensa tomou minha vaga. Minhamoral estava em alta, baixei a guarda e a empolgação se uniu àvaidade excessiva. Sem perceber, confundi todos os valores.

Hoje em dia é tão difícil furar o bloqueio, ser bem-sucedido,ganhar dinheiro, ter a sonhada estabilidade financeira. Édificilíssimo construir uma carreira sólida. Mas é muito fácil per-der tudo num piscar de olhos. Quando percebi meus erros acheique era tarde demais, que o sol já tinha se posto e o tempo pas-sado. Ou era apenas o começo de uma nova história?

Em 2.005, eu passava por uma boa fase. A situação financeiraestava equilibrada e eu colhia os frutos do meu trabalho. O pri-meiro CD do 509-E vendeu cerca de 90 mil cópias. Dexter e euficamos conhecidos no Brasil todo. Fizemos muitos shows e via-gens. Era um momento de alta na nossa carreira musical. Está-vamos divulgando o segundo álbum 2002 depois de Cristo. Porum descumprimento contratual por parte da gravadora AtraçãoFonográfica, rescindimos o contrato.

Infelizmente comecei a perder a essência da família, invertivalores que são sagrados. Minha família ficou em segundo pla-no. Acreditava que o meu sucesso era apenas resultado do meu

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próprio esforço, sendo que os méritos são de Deus. O ditado po-pular prevalece: quer conhecer o homem, dê poder à ele. Pode-mos ter dinheiro sim, mas nunca deixar que ele seja nosso dono.

Estava me sentindo o rei da cocada preta, com fama, dinheiroe poder. Eu não reconhecia que precisava de ajuda. Tinha maniade maquiar as coisas, fazer vistas grossas e dizer que estava tudobem. Tudo indo de vento em popa materialmente, mas em casanão exercia a figura de pai. Era omisso, um péssimo marido,péssimo irmão, péssimo filho, um colega e não um amigo. Co-meçaram as crises no casamento e no grupo 509-E. A pressãopsicológica era muito grande eu não tinha estrutura para lidarcom o sucesso, a grana, o glamour, o assédio, as tentações. Mi-nha postura era sempre de um homem durão, mas, na verdadeeu estava fragilizado com tudo aquilo.

Desde a minha saída da prisão, a comunicação com o Dexterficou abalada. O sistema também tinha interesse no fim do gru-po, pois nosso discurso tocava na ferida dos poderosos, já quedenunciava a ineficiência do sistema. Eles não querem a solu-ção desse caos para não perderem as chances de desvio dasverbas astronômicas. Na prática, está comprovada a falênciado sistema. Não há interesse algum de que pessoas sejam recu-peradas. Prova disso são os presídios brasileiros onde sereshumanos são jogados.

Negaram minha entrada na prisão para ver o Dexter. Minhaexposição na mídia se transformou em uma relação de amor eódio. Algumas matérias saíram destorcidas. Achavam que Dextere eu fomos presos juntos e com a mesma condenação; e por issoquestionavam por que eu havia saído e meu parceiro não. Mui-tos achavam que eu tinha a chave da cadeia e estava fazendocorpo mole para soltá-lo! Apostavam ainda que meu casamentocom a Simony fosse por interesse, puro marketing. A verdade éque quando a conheci, o 509-E já tinha vendido 60 mil cópias,com exposição nos principais veículos de comunicação.

Como se não bastasse, corria o boato de que fiquei rico e aban-donei o meu parceiro Dexter na cadeia. Infelizmente existem

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pessoas que perdem tempo praticando a maldade para atrasar avida dos outros. Os medíocres fomentavam inverdades, envene-nando o Dexter que estava enclausurado, fragilizado e com pers-pectiva remota de saída. Analiso também que o 509-E causavamuita inveja, ciúmes por se tornar uns dos ícones do movimentoHip Hop em menos de um ano de carreira. Era o preço da fama.

Envolvidos nesse jogo começamos a bater de frente um com ooutro. Tolerância zero. Muito estresse. Hoje vejo que tanto euquanto o Dexter tivemos culpa para o fim do 509-E. O principalmotivo foi o nosso orgulho. Um grupo é igual a um casamentoou uma família. É muito difícil uma convivência a dois, aindamais sendo dois líderes.

Em uma tarde de maio de 2.005, recebi um telefonema do Dexterque me deixou desnorteado. A triste notícia decidia de uma vezpor todas acabar com nossa parceria no 509-E. Ele não deu expli-cações. Mas não era apenas um grupo, era muita coisa envolvida,um conjunto de sonhos, amor, dedicação, ideologia, luta, conquista,projetos, fãs. Estava tudo isso indo por água abaixo.

O que mais me deixou magoado foi saber que várias pessoasjá tinham conhecimento dessa decisão antes de mim. Fiquei in-dignado, mas o pior ainda estava por vir. Saí como vilão da his-tória, traidor, desonesto. A pior coisa do mundo é ser responsa-bilizado por algo que você não fez, mas a arapuca estava armadae eu caí. O coração do homem é terra desconhecida.

Era aquela fase que tudo dava errado. Uma avalanche dedesgraça me assolou. Em casa, vivíamos um período de muitasbrigas, às vezes por coisas banais. Sei que todo casal passa pormomentos difíceis, mas na hora do nervosismo um dos doistem que ceder. Sem dar o braço a torcer comecei a sair constan-temente para a balada para me distrair e encontrar os meus“amigos”. Isso só piorava a situação, chegava e já era dia. Vi-nham mais discussões, trocas de ofensas. O afeto foi acabandoe o amor esfriando. Íamos empurrando com a barriga por amoraos nossos filhos. Mas chegou uma hora em que ficou impossí-vel refazer o nó desatado.

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Eu, que me sentia um super-homem, me vi na rodovia CasteloBranco parado, sem rumo, chorando igual criança, sem meumaior patrimônio: a família. Fiquei sem horizonte. Não passoumuito tempo, a tentação veio me visitar. Os falsos amigos diziamque a vida era assim mesmo e me arrastavam para mais umabalada. Começaram a pipocar ligações das piriguetes. As putasdescobriam o número do meu telefone. Comecei a achar que asaída estava numa boa transa, num copo de bebida ou até mes-mo num baseado. Acreditava que a droga aliviaria a pressão.Mas na real, era tudo ilusão.

O 509-E me deu vários privilégios: dinheiro, família, fama,carros, prestígio, vantagens, fãs, shows por todo o país. O di-nheiro mal administrado foi à raiz de todos os males. Tudo o queeu tinha conquistado passou como um vento. Fiquei na rua daamargura. Voltei a morar hora com o meu pai, hora com a minhamãe. Fiquei meio perturbado, tive sintomas de depressão, dor-mia demais para fugir da realidade, queria ficar sempre sozinho,achava que não tivesse mais amigos. Pensei muito em suicídio.Ainda tinha uma arma guardada e várias vezes ficava olhandopara ela a fim de apertar o gatilho na cabeça, achando que mi-nha vida não teria mais jeito e nenhum valor. Estava na lama, nofundo do poço. Só e sem saída!

De carro importado passei a andar de trem e ocupar o últimovagão. O pior era ser reconhecido e ainda ter que dar autógrafosquando alguém admirado falava bem alto e chamava a atençãodos outros passageiros:

“Afro-X? Você é o Afro-X? Pode me dar um autógrafo?”E daí já sabe, todos que me conheciam se aproximavam para

falar comigo. Eu ficava constrangido, não me via mais como oídolo do 509-E. Meus “amigos” do meio artístico nem atendiamaos meus telefonemas.

Uma realidade que a mídia desconhece, nua e crua como umsoco fulminante no estômago, reagi tentei lutar, mas não deu,com o tempo perdi as forças e então me vi nocauteado pela vida.

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“SOUL LIVRE”“SOUL LIVRE”“SOUL LIVRE”“SOUL LIVRE”“SOUL LIVRE”

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– CAPÍTULO 17 –A Virada

Os momentos difíceis que eu atravessava eramconsequência das minhas atitudes e erros. A vida nospermite aprender pelo amor ou pela dor. Aos poucos

descobri que enquanto há vida, há esperança. Toda aquela provafoi importantíssima para o resgate de valores que eu havia per-dido e o entendimento do projeto grandioso que Deus tinha re-servado para mim.

As coisas acontecem com muita rapidez do lado de cá. Eupaguei o que devia junto a lei dos homens. Foram 7,5 anos dereclusão ou 2.737 dias preso. Essa eternidade atrás das gradesfoi um grande aprendizado. Percebi que não havia interesse al-gum do sistema em recuperar o grande contingente de internosdo qual eu fazia parte.

Depois de todas as perdas veio a desilusão. Como Salomão,percebi que “todas as coisas debaixo do céu, são vaidade”. Falta-va algo e eu saía à procura. Precisava preencher o grande vazioque me assolava. Mesmo tendo o costume de fazer as minhasorações, precisava de um encontro verdadeiro com Cristo. Umdia, minha mãe fez um convite:

“Filho, vou te levar à um lugar que irá te fazer muito bem emudará a sua vida.”

“Mas onde é esse lugar que eu procuro e não encontro. Seráque existe mesmo?”

Por alguns instantes desconfiei do convite, mas tinha que darcrédito diante da voz mansa que falava ao meu coração. Fiz abarba e me arrumei ainda meio desanimado. Lembro que era

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uma linda manhã. No caminho, fiquei imaginando que lugar se-ria aquele que minha mãe insistia tanto em me levar. Quandome dei conta, estava entrando em uma grande igreja e logo sentialgo prá lá de especial, uma forte presença. Eu realmente estavaem um pronto-socorro espiritual. Sentei e ouvi atentamente to-dos os acontecimentos no templo.

Um jovem pastor pregava a Palavra com muita ousadia. Afir-mava, com convicção, que Jesus estava naquele lugar. Falavamde um Deus de amor, esperança, restauração, promessas e vitó-rias. O Deus de Abraão, Isaque e Jacó que me faria viver maravi-lhas como eles viveram, coisas que meus olhos não viram, meusouvidos não ouviram e nem jamais subiram ao coração de ho-mem algum. Uns cantavam, outros choravam, aplaudiam, levan-tavam as mãos e adoravam dando glória em voz alto. Tudo aqui-lo era novo e estranho, mas eu também estava sendo envolvidopela Shekinah – a Glória de Deus.

Algumas pessoas me reconheceram e eu sabia no íntimo quedesejavam meu encontro real com Jesus. Queriam que eu saíssecurado pelo poder de Deus. Eu, que criticava os crentes, diziaque nunca pisaria numa igreja evangélica e tinha convicção deque os cultos não passavam de encenação e que pastor era tudoladrão, estava lá. Era agosto de 2.005.

Ao final da reunião o pastor perguntou se algum dos presen-tes queria aceitar Jesus Cristo, propondo um desafio de mudan-ça. Hoje, compreendo muito bem essa proposta, a melhor que járecebi em toda a minha vida. Levantei da cadeira, impulsionadopor uma força que eu não conhecia e fui até o pastor. Minha mãechorava compulsivamente. Ela sabia que aquele era o primeiropasso para a minha mudança definitiva.

Foi um momento “mágico”. Só quem vive compreende. Emminha vida experimentei muitas sensações, mas aquela de en-contrar a Jesus Cristo foi ímpar, inigualável, a melhor. Fiqueimais leve, o aperto em meu coração foi afrouxado e me sentilivre. A felicidade ressurgiu. Eu sei que Jesus também me cha-mou e fico feliz por ter ouvido o chamado em tempo. Ainda pos-

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so viver dias para o louvor da Sua glória, salvando vidas, sendoum instrumento de Deus para estabelecer a Sua vontade na ter-ra. As coisas velhas já passaram e tudo se fez novo. O passadoserve apenas como referência para o presente. Tenho prazer emviver, pois fui curado da depressão que me assolava e me faziadesejar a morte. Comecei a compôr músicas de maneira diferen-te. A renovação surtiu efeito no meu semblante, na maneira defalar e em minhas atitudes de tal forma que as pessoas reconhe-ciam a transformação.

Hoje, vivo para o louvor d’Ele. O meu prazer é ganhar vidasatravés do Evangelho transformador. Enxergo que o mundo pre-cisa conhecer Deus, assim como eu precisei conhecê-lO um dia.Desde que iniciei minha caminhada com Cristo coisas novas co-meçaram a acontecer.

Depois de 15 dias da minha conversão, eu estava em um cultoe recebi, por intermédio de uma profetiza, um recado de Deus. Esó quem tem fé poderia alcançar. O Senhor disse que eu fariauma viagem para ao Exterior. Era preciso de um milagre paraque isso acontecesse. Eu precisava romper quatro obstáculos:ter autorização do juiz e do ministério público, ter autorizaçãoda policia federal, ter permissão do consulado americano, terpermissão da Imigração.

Tudo isso me fazia pensar no impossível. Corri atrás das per-missões necessárias e tive sucesso absoluto. Incrível, incrível.Quando entrei no avião eu nem acreditei. Feito um bobo, cum-primentava a todos dentro da aeronave. Era o milagre concreti-zado. Passei 30 dias em Nova Iorque, nos Estados Unidos. Fiz umintercâmbio cultural. O lançamento do videoclipe da música ORegenerado aconteceu em Manhattan. Conheci personalidadesda Old School do Hip Hop.

Com Cristo somos mais que vencedores. Tudo que perdi estásendo restituído. Hoje tenho a amizade dos meus filhos, o aces-so a eles é legal e ao mesmo tempo espontâneo. Trabalho comafinco para realização de todos os meus projetos sócio-culturaise tudo que pretendo conquistar. Fiquei mais inspirado, comecei

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a compor músicas para o meu primeiro CD gospel e continuominha carreira solo como rapper, “Das ruas pro mundo.”

Em abril de 2009, concluí o cumprimento dos sete anos dacondicional, colocando fim aos 14 anos que fui condenado semnenhum ato que desabonasse a minha conduta. Reconquisteiminha cidadania. Sou livre, um homem livre.

Graças a Deus essa experiência no crime teve um final feliz,porque aprendi o segredo para me esquivar das armadilhas dosistema e só assim desenvolvi uma estrutura para vencer a esta-tística alarmante dos quatro Cs (Crime, Cadeia, Cadeira de ro-das ou Cemitério). É necessário fazer algo urgente em prol datão sonhada mudança. Convido você para este desafio: Qual per-sonagem você desejou ser ao concluir a leitura desse livro?

Se um dia você me encontrar em algum lugar, lembre-se: Omeu passado ficou para trás.

Exatamente em 23 de abril de 2009, foi cumprida a pena totalde 14 anos e meio de reclusão.

A história continua. De vitória em vitória!

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186“D“D“D“D“DAS RUAS RUAS RUAS RUAS RUAS PRO MUNDO”AS PRO MUNDO”AS PRO MUNDO”AS PRO MUNDO”AS PRO MUNDO”

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– DIALETO –

A prisão adotou seu próprio dialeto. Muita gente não temnoção, mas tais gírias usadas no nosso dia a dia são extra-ídas da prisão. Um exemplo muito usado é a expressão

“sangue bom”. Ela foi levada para as ruas e posteriormente alinguagem tomou conta das telinhas.

A chapa tá quente – os nervos es-tão exaltados, pode rolar confusãoA milhão - agitado, a todo vaporAmarelo – local para onde é levadoo preso que está de castigo. A celafica isolada e não recebem raios so-lares, o indivíduo fica com uma coramarelada por causa da falta de sol.Área - bairroArtigo 12 - tráfico de drogasArtigo 155 - furtoArtigo 157 - assalto a mão armadaArtigo 121- homicídioAté umas horas – por muito tempoAtracar – chegarAtrasalado – pessoa que atrapalhaa vida de alguémBO – boletim de ocorrência, desa-certo ou situação difícilBanca - turmaBandeco - marmitaBarato – legal, coisaBaseado - cigarro de maconhaBode - dormirBoeiro - preso que serve as re-feiçõesBoi – banheiroBoia- comidaBolão - muitosBolo podre - aglomerado de genteperversaBonde - transferência

Botes - enquadro da políciaBurra - cama de concretoCabrito - carro, moto ou caminhão,roubado ou furtadoCalça jega - calça bege com elásti-co na cintura, uniforme padrão dosistema carcerárioCantiga de grilo - papo furadoCara - indivíduoCarrinho de pagar bóia - carrinhode servir as refeiçõesCarteirinha de íntima - carteirinhade identificação com foto da espo-sa de detento para visita íntimaconjugal dentro da celaCastelo - devaneioCavalo - piloto de fugaChapando - ficando loucoChiqueirinho - compartimento naparte traseira da viatura onde ospresos são levadosCoban - bancoCoxinha - apelido dado aos polici-ais militaresDar guela - deixar notar, ser per-cebidoDa hora - legalDemorô - que passou da horaDar milho - errar ou deixar a dese-jar.Documento quente – documentoautêntico

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Duque 13 – estuprador, condenadopelo artigo 213 do código penalÉ mato – vários, diversosÉ nóis - estamos juntos em qualquersituaçãoÉ quente - é verdade.Exú - indivíduo endiabradoFamília - parceiros ou companhei-ros que estão lado a lado em qual-quer situaçãoFaxineiro - indivíduo que faz a fa-xina e tem voz ativa na prisãoFazer a boa - ganhar muita granaFeio na foto - prejudicadoFirmão - estar bem de saúde e compaz de espíritoFirmeza total – tudo bem, tudo certoFita – local, produto, situação.Exemplo: “você vai naquela fita?”,que significa “você vai naquele lu-gar?”. É usado como código.Ir de bode – ir dormirFura- fuzilFunça - funcionárioFundão - último ou lugar peri-féricoGaiada - ambiente ou lugar.Gambé – policialGanso – espião da polícia que morana quebrada, fofoqueiroGarrafinha - projétil de fuzilGoma - casaGP - guarda penitenciárioGüentar – enquadrarH - fazer médiaHiena - pessoa que deseja o malpara os outrosIlha - cadeiaIr pro arrebento - ir para o tudo ounadaJaca – bunda, nádegasJack - estuprador

Jega - cama de concretoJornal da Pedra do Preso – os co-mentários, as fofocasJumbo - alimentação que alguémenvia para o presoJusticeiro ou juju - matador de alu-guel ou quem mata ladrãoKGB - preso que trabalha junto coma políciaLagarto - laranja ou preso que as-sume os atos do outroLei dos 30 - por mais alta que sejaa pena, a legislação brasileira per-mite somente o cumprimento de 30anos de reclusãoLigar - contar algoMano - amigo ou irmãoMarrocos - pãoMatraca - ferramenta confecciona-da pelos presos para furar concre-to, metralhadoraMelado - sangueMereça - mixariaMesclado - cigarro de maconha comcrackMil grau - coisa admirávelMina - mulher ou namoradaMicha - chaveMó - maior ou muitoMó lua - maior calorMorô? – entendeu?Mosquito de ferro - helicóptero dapolíciaMula - brincadeiraMulei - brinqueiNóia - dependente de drogasO cavalo marchô - deu certoOnça - funcionárioP2 - Pavilhão 2P4 - Pavilhão 4P5 - Pavilhão 5P6 - Pavilhão 6

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P7 - Pavilhão 7P8 - Pavilhão 8P9 - Pavilhão 9PS - Pronto SocorroPá – talvez, talPagar de pá – se sentir o talPagar ducha - tomar banhoPagar mó madeira - grande ad-miraçãoPagar sapo - tentar impressionaralguémPai do mel- o caraPano da hora - roupa de grifePassarinho - informante da políciaPatrício - conterrâneo ou da mes-ma corPé de breque - otário, sem futuroPé de porco – vigia ou segurançade agência bancáriaPedalar - andarPedra - crackPegar de orelhada – falar muitoPenita - penitenciáriaPião – andar, dar uma voltaPiolho - cara experientePipa - bilhetePregadas - golpes de estiletePresunto - cadáverQuebrada - bairroQuebrar as pernas - decepcionarQuieto - lençol estendido em voltada jega para privacidadeQuiaca - brigaRA - regime abertoRachar o coco - sol escaldante.Radial - rua de acesso a todos pavi-lhõesRapa - rapaziadaRastro no crime - falha em sua tra-jetóriaRato - polícia

Rato de mocó - preso que furta ou-tro presoRecursista - preso que presta servi-ços judiciários aos outros presosRoubadinha -plano para enganaralguémRodo - rasteiraRua 10 - galeria isolada do fundode qualquer andar, lugar onde ocor-riam os acertos de contasSair quente - ir na disposiçãoSalve - saudaçãoSangue- bom - um cara respeitadoSem palavras - ato de agradecerSeqüestrado - indivíduo que infrin-giu as regras do crime e está aguar-dando o debate para saber qualserá sua sentençaSete Galo – moto de 750 cilindradasSúbir o gás – matarSururu – confusãoTatu - túnel embaixo da terraTestar a febre - testar a paciênciaTia - corda confeccionada com lençolTiozinho - idosoTreta - brigaTriagem - novatoTrinco com a favela - agradecer fa-vor ou ajudaTruta - aliadoUm duque – R$ 200Um galo – R$ 50Uma pá - um monte, váriosVeneno - raiva ou ódioVerme - políciaX – xadrezX9 – dedo duro, cagueta, delatorZé povinho - raléZica - azar ou indivíduo que se meteconstantemente em confusãoZomem – polícia

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