Livro - Jean Jacques Roubine - Introdução às grandes teorias do teatro

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Jean-Jacques Roubine

Introduo s grandes teorias do teatro

Traduo:

Andr Telles

Jorge Zahar EditorRio de Janeiro

Ttulo original: Introduction aux grandes thories du thtre publicado por Editions Dunod, Paris Traduo autorizada da edio francesa publicada em 2000 por Nathan/HER, de Paris, Frana Copyright 2000 Nathan/HER Copyright 2003 da edio brasileira: Jorge Zahar Editor Ltda. rua Mxico 31 sobreloja 20031-144 Rio de Janeiro, RJ tel.: (21) 2240-0226 / fax: (21) 2262-5123 e-mail: [email protected] site: www.zahar.com.br Todos os direitos reservados. A reproduo no-autorizada desta publicao, no todo ou em parte, constitui violao de direitos autorais. (Lei 9.610/98) Capa: Srgio Campante Ilustraes da capa: em primeiro plano, gravura annima, 1817; em segundo plano, gravura de Jacques Callot, sc.xvn (Bibliothque Nationale, Paris)

CIP-Brasil. Catalogao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. Roubine, Jean-Jacques, 1939-1990 Introduo s grandes teorias do teatro / Jean-Jacques Roubine; traduo Andr Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003 Traduo de: Introduction aux grandes thories du thtre Inclui bibliografia ISBN 85-7110-708-4 1. Teatro francs Histria e crtica Teoria etc. 2. Teatro Esttica. I. Ttulo. 03-0436 CDD 842.009 CDU 821.133.1 -2 (09)

R764i

Sumrio

Introduo, 9I. ARISTTELES REVISITADO

1. Panorama sobre a Potica, 14 Uma dramaturgia do verossmil, 14 | O incontestvel e o persuasivo, 16 | A idealizao e a identificao, 18 2. A transmisso da doutrina, 21 Tradues e comentrios, 21 | O magistrio de Chapelain, 23 3. O aristotelismo francesa, 24 As "regras"do teatro, 24 | O imprio da Razo, 26 4. Imitar e embelezar, 28 Imitar a natureza, 28 | Idealizar a natureza, 30 5. Os imperativos da verossimilhana, 32 O verdadeiro e o verossmil, 32 | Verossmil ordinrio, verossmil extraordinrio, 33 6. O visvel e o invisvel, 37 7. A regra unitria, 41A unidade de ao, 4\\A unidade de tempo, 42 | A unidade de lugar, 46

8. Digresso sobre o decoro, 52 9. A esttica e a poltica, 55

II. DA TRAGDIA AO DRAMA

1. O gnio, o prazer e a virtude, 58 Aspirando renovao, 58 | Um relativismo, 60 | Os direitos do gnio, 62 | Uma pedagogia da virtude, 63 2. Da bela natureza natureza verdadeira, ida e volta, 65 A proximidade e o afastamento, 65 | Rumo a um mimetismo integral, 69 | Descoberta da teatralidade, 73 | A esttica e a moral, 75 3. O teatro, escola de civismo?, 77 4. O ator teorizado, 79 A paixo e a frieza, 80 | Um contrato de representao, 83

III. O PRINCPIO DE REALIDADE

1. O artista face histria, 86 A expanso do campo histrico, 86 | O realismo contra os costumes, 88 | Abaixo as regras!, 89 | A arte nova ser histrica, 92 2. Por uma "representao verdica da histria", 93 A histria para dominar o presente, 93 | A histria contra as regras, 95 | Da "cena histrica"ao "drama romntico", 97 3. Rumo ao realismo e mais alm, 99 Veracidadeepoesia, 99 | Shakespeare, "exemplo"ou "modelo"?, 101 | Uma ambio totalizante, 103 4. A mutao naturalista, 108 A esttica romntica em processo, 108 | O teatro, imagem viva

da vida, 110 | Uma teoria da direo, 114 | O palco naturalista: balano e conseqncias, 118 5. Devaneios simbolistas, 120 A palavra contra o palco, 120 | Fecundidade de uma teoria paradoxal, 125 6. O teatro a servio do povo, 126 Ressurgncias tericas eprticas novas, 127 | De uma guerra a outra, 129 \Jean Vilar: um ideal, uma teoria, uma obra, 132

IV. AS SEIS TENTAES DO TEATRO

1. Do "poeta" ao diretor, 138 2. O teatro, servidor do texto, 141 Sobre o repertrio, 142 | O culto do texto, 143 | Rumo a uma teoria da dupla soberania, 147 3. O esfacelamento das aparncias, 150 Descoberta de Brecht, 150 | Forma dramtica ou forma pica?, 151 | O efeito de distanciamento, 153 \ Discpulos franceses de Brecht, 154 4. O grande sonho litrgico, 158 De Wagner a Appia e a Craig, 159 j vi utopia artaudiana, primeiras imagens, 164 5. A exigncia sacrificial, 169 A crueldade e o transe, 169 | Da peste libertadora oferenda de si, 174 6. O teatro reteatralizado, 182 Representar por representar, 182 \A forma e a memria, 183 7. Cruzamentos e mestiagens, 188 O princpio de atualidade, 189 | O texto, denunciado, violado e... perpetuado, 190 | Lembranas, lembranas, 193

Concluso, 199 Cronologia, 203 Notas, 214 Bibliografia, 219 ndice de onomstico, 222

Introduo

Toda prtica artstica se desenvolve a partir de motivaes tericas implcitas ou explcitas. Ao mesmo tempo toda teoria se alimenta da prtica por ela fundada. Elas contribuem mutuamente para sua evoluo e sua transformao. Mas, no teatro, existe teoria e teoria! Em primeiro lugar, preciso considerar uma heterogeneidade fundadora: o teatro ao mesmo tempo uma prtica do ato da escrita e uma prtica de representao (interpretao, direo). As teorias relativas ao teatro tendem ou visam a cobrir essa heterogeneidade, elaborando corpos de doutrina que tomam por objeto ora o texto dramtico, ora a representao, s vezes ambas simultaneamente. Essa simultaneidade, no entanto, est longe de ser sistemtica. Por razes ideolgicas que abordaremos, as teorias do teatro na Frana, do sculo XVII at os anos 1880, so essencialmente poticas. Seu objeto principal o texto da pea. Os textos relativos representao restringem-se tecnologia do teatro. Limitam-se a explicar como, por exemplo, realizar acontecimentos espetaculares,1 como declamar corretamente o alexandrino trgico (tratados de dico) etc. A mais notvel exceo a essa regra evidentemente o Paradoxo sobre o ator, de Diderot, que constitui provavelmente a primeira abordagem terica moderna da arte do ator (mas esse texto no ser publicado antes de 1830). Nos anos 1880 produz-se uma transformao bem conhecida dos historiadores do teatro: o advento do diretor? A partir de ento, v-se multiplicarem as reflexes tericas sobre sua arte, seus direitos e seus deveres, ao passo que, ao mesmo tempo, observa-se uma rarefao dos discursos tericos de vocao totalizante. A histria do teatro recente incitou os "doutos" da poca moderna a serem mais modestos que os Chapelain, d'Aubignac etc. que dominavam o teatro clssico.

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Quanto aos dramaturgos, preocupam-se apenas em teorizar para seu uso pessoal (Claudel). A tambm, surge uma notvel exceo regra: a teoria de Brecht. Sua personalidade, sua competncia mltipla de crtico, esteta, dramaturgo e diretor lhe permitem cobrir com pertinncia o conjunto dos campos em que a coisa teatral elaborada. Uma outra distino deve ser feita. H dois tipos de teorias, o explcito e o implcito: o tipo explcito formulado atravs de um conjunto de textos diversos: dissertaes, ensaios, prefcios, advertncias etc. Tem freqentemente pretenses totalizantes, enunciando uma teoria que deve valer para toda uma poca e toda uma classe social (por exemplo, o gnero dito srio, para a burguesia da segunda metade do sculo XVIII, ou o drama romntico, para a gerao "artista" da Restaurao), e at mesmo para a eternidade (o aristotelismo revisitado pelos "doutos" do sculo XVII). Como seu nome indica, o tipo implcito dispensa a formulao discursiva. Esta existe, mas dificilmente perceptvel e vale apenas para seu autor. Vejam Marivaux: seu teatro pressupe uma reflexo terica sobre as principais categorias dramatrgicas que o constituem: o personagem, a ao, o cmico, o dilogo etc. Mas o autor de Falsas confidencias, salvo engano, no formulou nenhuma reflexo a esse respeito. Somos portanto obrigados a extrapolar e induzir a partir de suas peas uma hipottica teoria com margem de interpretao e de erro que tal procedimento supe.Uma Introduo s grandes teorias do teatro no podia ento

deixar de ser, por evidentes razes materiais, fortemente seletiva. Era preciso escolher o mais significativo. Era preciso tambm evitar o carter arbitrrio de uma subjetividade, portanto fixar e formular os critrios de seleo. O primeiro consiste em falar de ura teatro que permanece vivo. O campo ainda bastante vasto, uma vez que se pode caracteriz-lo como uma produo ininterrupta desde o incio do sculo XVII. No cessamos de retornar tragdia clssica e ao drama romntico; de representar Molire, Marivaux e Labiche. Em contrapartida, foroso reconhecer que o teatro da Idade Mdia no corresponde a esse critrio, constituindo apenas objeto de pesquisas eruditas. Eis por que esta Introduo no o leva em conta e no sem hesitao ou tristeza! Porm, mais uma vez, escolher eliminar...

Introduo

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Mantivemos as doutrinas que fizeram escola, que mobilizaram, mesmo atravs da polmica, uma ou vrias geraes de autores e de prticos. Foram excludas, alm disso, claro, aquelas fugazes teorias implcitas, todas as que diziam respeito exclusivamente a seus autores. O que no deve de maneira alguma ser assimilado a um juzo de valor: Musset ou Claudel no so absolutamente autores de segundo plano. Mas a doutrina deles essencialmente elaborada para uso pessoal. A partir dos anos 1880, optou-se por privilegiar as teorias da representao. So as mais numerosas, as mais diversas, freqentemente as mais interessantes. Soma-se a isso o fato de que a maioria das obras que tratam do teatro moderno e contemporneo fez antes a opo inversa: mais fcil, hoje em dia, informar-se sobre o teatro segundo Ionesco ou Beckett do que sobre o teatro segundo Mnouchkine ou Bob Wilson. O campo explorado prioritariamente o do teatro francs. Mas essa delimitao de tipo ideolgico-geogrfico perde quase toda a pertinncia no sculo XX: o teatro viaja, circula. Torna-se menos europeu, isso quando no se abre s influncias do Extremo Oriente. As grandes teorias do teatro de nosso sculo so francesas (Copeau, Artaud...), mas tambm russas (Stanislavski, Meyerhold...), inglesas (Craig...), alems (Brecht...), polonesas (Grotowski, Kantor...) etc. O critrio da escolha deixa ento de ser mecanicamente nacionalista, passando a levar era conta a importncia da ressonncia que uma ou outra dessas teorias puderam ter tido sobre a vida e a prtica teatrais francesas. Trata-se enfim de uma introduo, e apenas de uma introduo. Em outras palavras, so apresentadas as teorias em questo tentando apreender a lgica de sua elaborao, de sua operacionalizao. Porm, no foi o caso de resumi-las em detalhe. Limitamo-nos a dar as indicaes indispensveis para que o leitor pudesse compreender esta introduo, para que pudesse se encontrar em um conjunto de textos esparsos e nem sempre muito acessveis. Uma introduo apenas a cartografia de um territrio mal explorado.

I. ARISTTELES REVISITADO

1. Panorama sobre a PoticaAs teorias teatrais do sculo XVII apresentam uma estranha singularidade: no pretendem inventar um sistema novo, fundar uma esttica original (mesmo que, na prtica, fosse exatamente a que se chegasse). Seu projeto comum analisar e compreender a Potica de Aristteles e ajudar os dramaturgos a coloc-la em prtica. Apenas um Corneille se preocupar, em seus famosos Discursos,1 em ganhar um pouco de terreno e alargar as perspectivas aristotlicas. Mas no passaria pela cabea de ningum, tericos ou autores, proclamar sua inteno de romper com a esttica de Aristteles para lanar os fundamentos de uma nova teoria do teatro. Esse frenesi exegtico explica-se em primeiro lugar pelas prprias caractersticas da Potica. Inmeras vezes foram apontadas suas incoerncias, suas contradies, suas lacunas, suas digresses e suas elipses.2 Por exemplo, ao contrrio do que anunciado, a questo da comdia jamais examinada (o que, imediatamente, deixa uma margem de manobra maior para os autores que abordam esse gnero). Portanto, qualquer que seja a explicao desse estado de fato,3 a obra de Aristteles permite aos exegetas encontrar material para justificar as doutrinas mais diversas. Quais so, pois, os pontos importantes que o sculo XVII no podia ignorar em sua(s) leitura(s) da Potica?. Uma dramaturgia do verossmil Em primeiro lugar Aristteles insiste na noo de ao: [a tragdia] "representa no homens, mas aes". Seus "agentes so personagens em ao". 14

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Por outro lado, a representao no deve visar o realismo. Ela se baseia no sobre o real (o que efetivamente aconteceu), mas sobre o possvel {o que poderia ter acontecido). Todavia, essa noo de possvel delimitada, e portanto limitada, pelo verossmil e pelo necessrio. Aristteles no explicita de modo claro essas duas categorias que o sculo XVII tanto ir explorar! Pode-se porm alcanar seu pensamento referindo-se a outros textos seus. O verossmil procede da experincia comum. o que se produz com mais freqncia {Retrica) e portanto o que corresponde ao horizonte de expectativa do espectador. H, no verossmil, um componente psicolgico que define um espao no tanto do possvel mas do plausvel, isto , em suma, daquilo que um grupo social, em uma poca dada, acredita possvel. Eis exatamente por que a noo de opinio comum ter tanta importncia para o pensamento teatral do sculo XVII. Da mesma maneira, em relao doutrina de Aristteles que preciso compreender sua repugnncia por aquela "verdade que pode algumas vezes no ser verossmil" (Boileau). A dimenso psicolgica do verossmil introduz um outro parmetro: o da persuaso. O possvel, diz Aristteles, "persuasivo", uma vez que repousa em um determinado sistema de crenas. Eis por que dever ser excludo do campo da representao trgica o irracional. Para Aristteles, essa dimenso deve permanecer no domnio do texto, isto , no caso do teatro, do relato. Com efeito, ao carter de certo modo irrecusvel da representao ope-se o efeito de incerteza do relato. Pois o narrador no se limita a testemunhar. Ele relata tambm outros testemunhos... Com isso a persuaso tornase relativa, cada um sendo livre para atribuir ao que relatado o crdito que lhe convm. Racine, por exemplo, respeita escrupulosamente essa regra todas as vezes que precisa utilizar um episdio que derive do maravilhoso: O soldado espantado diz que em uma nuvem Diana desceu sobre a fogueira... {Ifignia) Dizem que foi at visto nessa desordem terrvel Um Deus... {Fedraf Como, alm disso, Aristteles parece recomendar que no se recorra ao relato na representao, podemos supor que, nesse sistema, o irracional estava destinado a ocupar apenas um lugar bem marginal.

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Por outro lado, a Potica inaugura uma tradio de desvalorizao do espetculo da qual, preciso reconhecer, o teatro francs se lamentar por se desfazer: Quanto ao espetculo, que exerce a maior seduo, ele totalmente estranho arte e nada tem a ver com a potica, pois a tragdia realiza sua prpria finalidade sem concurso3 e sem atores. Alm disso, para a execuo tcnica do espetculo, a arte do fabricante de acessrios mais decisiva do que a dos poetas. {Potica, 50 b 15) Os comentadores do sculo XVII, tendo a seu lado nesse ponto os autores e o pblico "intelectual", vo se apoiar nesse gnero de citaes para erigir em dogma uma ideologia que afirmava a superioridade, at mesmo a supremacia, do "poema" (do texto dramtico) sobre todos os outros componentes da tragdia. A partir da, as pesquisas que na mesma poca se desenvolvem no domnio das tcnicas do espetacular no encontraro terreno propcio seno nos gneros que, por sua prpria novidade, escapavam ao controle do aristotelismo: bale, pera, comdia italiana (commedia deWart)... E esses gneros no se eximiro de explorar todos os recursos cnicos oferecidos pelo irracional (o maravilhoso) tais como as aparies de divindades celestes ou infernais, de monstros marinhos etc. O incontestvel e o persuasivo Aristteles tambm exclui do campo da tragdia uma outra modalidade do irracional que o monstruoso (a se distinguir do apavorante). E isso por duas razes: a primeira que o monstruoso engendra uma reao de incredulidade. Com isso entra em contradio com a exigncia de persuaso. Depois, provoca uma reao de horror, visceral, fbica. Semelhante excluso vai ser de importncia capital na elaborao da esttica trgica francesa. Em particular, vai lhe impor uma ideologia da moderao e da justa medida que a tornar completamente estranha aos paroxismos e aos exageros dos dramaturgos ditos "prclssicos" ou "barrocos" (Hardy, Montchrestien...), que trabalhavam

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em uma poca em que a Potica ainda no constitua o incontornvel brevirio sobre o qual se basear o classicismo. Vai, por outro lado, provocar um duradouro fechamento de todo o campo cultural francs (autores, crticos, leitores, pblico...) a estticas diferentes. Sabemos que ainda sero necessrios dois sculos aos franceses para compreender e apreciar o teatro de Shakespeare! Essa excluso do monstruoso deve ser relacionada com o problema da verdade histrica, ou, em termos aristotlicos, do incontestvel. Um autor que trabalha sobre um assunto histrico pode de fato esbarrar nesse dilema: se o acontecimento, atestado pela Histria, que se quer levar ao palco da ordem do monstruoso, ser preciso fazer prevalecer este em nome da verdade? Ou ento transformar, atenuar essa verdade de maneira a eliminar o monstruoso? Aristteles se inclina nitidamente em favor dessa ltima soluo: O papel do poeta dizer no o que aconteceu realmente, mas o que poderia ter acontecido na ordem do verossmil ou do necessrio. (Potica, 51 a 36). Da as inmeras infraes verdade histrica que se permitiro os autores trgicos do sculo XVII, justificadas, em seus prefcios, por uma argumentao tipicamente aristotlica: basta que um acontecimento fictcio tenha uma capacidade de persuaso para que seja admissvel na estrutura de uma ao trgica. Racine: Eu [Jnia] a fiz entrar nas Vestais, embora, segundo Aulo Glio, no se receba ningum ali com menos de seis anos, nem acima de dez. Mas o povo toma aqui [no desfecho da ao de Britnico] Jnia sob sua proteo. E acreditei que, em considerao por seu nascimento, sua virtude e sua desgraa, ele podia dispens-la da idade prescrita pelas leis, como dispensou da idade para o consulado tantos grandes homens que haviam merecido esse privilgio. (Britnico, [segundo] prefcio) Isso posto, o incontestvel no absolutamente excludo, por Aristteles, do campo da tragdia. de fato evidente que, na generalidade dos casos, o incontestvel dotado de um poder de persuaso pelo menos to forte quanto o possvel ou o necessrio. Se a tradio

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histrica conhecida de todos conta que Csar foi assassinado por Brutus, que no entanto considerava como seu prprio filho, acreditarei facilmente na representao teatral de tal acontecimento... A idealizao e a identificao Uma obra de arte representa seu modelo ao idealiz-lo, ao imit-lo identicamente ou ao degrad-lo. Para Aristteles, o modo prprio da tragdia deve ser o da idealizao. O heri deve ser mostrado fora da cotidianidade do espectador. O que, ao mesmo tempo, redefine as relaes que a tragdia mantm com a verdade histrica ou psicolgica. Mas no incorramos em contra-senso em relao a essa noo de idealizao: a tragdia no deve ser um espetculo edificante. No deve mostrar, de maneira enganosa, um mundo purificado do Mal e submetido pura virtude. Ela pode, e deve, mostrar aes prprias a provocar medo ou piedade, isto , um mundo presa do eterno conflito do Bem e do Mal, um mundo no qual este nem sempre tem a ltima palavra. O "malvado" no de modo algum excludo da cena trgica. Mas sua representao tambm pode ser idealizada. Aristteles: Uma vez que a tragdia uma representao de homens melhores que ns, preciso imitar os bons retratistas: tornando a forma adequada, pintando retratos fiis, mas mais belos; do mesmo modo o poeta que representa homens colricos, apticos ou com outros traos de carter desse gnero deve lhes conferir, nesse gnero, uma qualidade superior. {Potica, 4 8 a i ) Eis a origem da esttica da "bela natureza" que prevalecer nos sculos XVII e XVIII antes de entrar no centro de uma discusso (imitar embelezando ou imitar exatamente) da qual sair a doutrina realista que, sob diversos avatares, orientar a maioria das estticas teatrais do sculo XIX. E que para Aristteles a obra de arte tem como funo provocar um prazer de natureza esttica atravs da representao do real. Ora, tal prazer, como ele observa, decorre da prpria representao, no do objeto representado:

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Sentimos prazer em olhar as imagens intensas das coisas cuja vista nos dolorosa na realidade, por exemplo as formas de animais totalmente ignbeis ou de cadveres. {Potica, 48 b 9) Mas o prazer produzido pela representao especificado por sua dupla origem emocional: O que o poeta deve produzir o prazer que, pela representao, provm da piedade e do terror. (Potica, 53 b 12) E a finalidade de tal prazer no o prazer em si, mas o aprimoramento e o apaziguamento do corao. A tragdia, "ao representar a piedade e o terror, realiza a depurao desse gnero de emoes" (Potica, 49 b 24). Eis a anunciado o famoso princpio da catarse sobre o qual se debruaro geraes de comentadores. Ora, esse termo que nunca encontrou traduo irrefutvel (purgao? purificao?), Aristteles o utiliza apenas uma nica vez e no julga necessrio propor uma definio explcita, como se se tratasse de um conceito trivial de utilizao absolutamente corrente. No entanto, na Retrica, ele elabora uma definio dessas duas emoes motrizes da catarse. Essas duas emoes dolorosas, explica, se distinguem pela orientao do afeto. No caso da piedade, trata-se de uma emoo altrusta: eu me apiedo ao espetculo do sofrimento que um outro homem experimenta sem t-lo merecido. J o terror uma emoo egocntrica: fico aterrorizado ante idia de que eu mesmo poderia experimentar a calamidade da representao qual assisto: A piedade se dirige ao homem que no mereceu sua desgraa, o terror desgraa de um semelhante. (Potica, 53 a 1) O paradoxo da catarse que o prazer da representao procede de duas emoes que so experimentadas como desagradveis. Para compreender isso basta transpor para o teatro a anlise aristotlica da representao plstica: sinto prazer diante do espetculo de acontecimentos que, na realidade, teriam me enchido de terror ou de compaixo, porque, precisamente, esses acontecimentos so mediados por procedimentos da representao. De modo que a piedade e o medo

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que posso sentir no teatro so como purificados da amargura que os impregna na realidade. Pois, ao mesmo tempo que me entristeo ou me assusto em contato com o acontecimento representado, gozo da beleza dessa representao. O corolrio dessa teoria que ela baseia o prazer, e portanto a prtica do teatro, na identificao. De fato, Aristteles observa que as duas emoes em questo no podem ser experimentadas seno por um espectador que adira intimamente aos sofrimentos do personagem trgico. A partir dessas premissas, Aristteles se empenha em caracterizar um paradigma da ao trgica, um modelo ao qual os praticantes podero se referir, sobretudo no que diz respeito ao problema da identificao. Um homem, que no atinja a excelncia na ordem da virtude e da justia, deve, no pelo vcio e pela maldade, mas por algum erro, cair no infortnio. {Potica, 53 a 7) V-se bem por qu: como regra geral, o espectador mediano no se percebe ele prprio como eminentemente virtuoso ou particularmente malvado. Ele se identificar portanto mais facilmente com um heri que tambm se mantenha entre esses dois extremos. Por outro lado, s sentir piedade ou medo se o infortnio trgico no lhe aparecer como a justa retribuio de atos repreensveis ou injustificveis. Essa doutrina da identificao fundamental na medida em que nela o teatro francs se engajar por trs bons sculos. O campo da representao portanto delimitado de maneira paradoxal. De um lado, pressupe a idealizao no desenho dos personagens. De outro, as exigncias da catarse fazem com que o espectador no deva se sentir afastado da humanidade que o palco lhe mostra. Portanto, a idealizao no deve resultar em uma representao na qual os heris excedam, por suas virtudes ou vcios, uma norma mdia, uma justa medida. Este ser um dos fundamentos do classicismo francs. preciso sublinhar que essa postura , em princpio, pragmtica: trata-se antes de tudo de desbravar o caminho mais direto para uma efuso emocional do espectador, ou seja, sua identificao com o heri. Eis a razo de a norma do verossmil se tornar um dogma

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cardeal: se no posso acreditar na possibilidade da ao representada, como poderia acreditar na realidade das desgraas que da decorrem? E se no acredito nessas desgraas, como poderia sentir medo ou piedade diante de sua representao? 2. A transmisso da doutrina O modelo aristotlico no ter nenhuma incidncia sobre o teatro latino ou medieval. Os gramticos e filsofos, que so praticamente os nicos leitores de Aristteles, no mostraram na poca nenhum interesse por seu pensamento esttico. Tradues e comentrios Portanto, s depois do Renascimento italiano que a Potica ser verdadeiramente redescoberta no grande movimento de reavaliao e exumao da herana antiga que caracteriza esse perodo. Ela traduzida em latim em 1498 e publicada em grego em 1503. Sua leitura ter grande repercusso entre o pblico culto. Numerosos crticos e filsofos retomam por conta prpria, e portanto contribuem para difundir, as bases do aristotelismo. Porm esses "poticos" no se interessam pela prtica do teatro nem mesmo pela elaborao de uma forma trgica. Visam apenas ajudar o poeta a pensar sua prpria criao ou, muito simplesmente, a lhe prodigalizar conselhos e receitas. Com a nova traduo latina de Paccius, em 1536, muito mais rigorosa do que a de Valia publicada em 1498, vem tona um sbito interesse pelo modelo teatral proposto pela Potica. Suas obscuridades so interrogadas; suas contradies, exploradas; e logo surgem edies comentadas. As duas mais importantes so as de Robortello (1548) e de Maggi (1550). Mas sobretudo Scaliger que, em 1561, conseguir dar mais clareza e coerncia ao texto de Aristteles. Com Scaliger comea a se operar uma transformao ideolgica decisiva: o aristotelismo se torna, mais ainda que uma teoria, uma ortodoxia em relao qual cada poeta poder se situar. Em 1570, Castelvetro apresenta um novo comentrio da Potica. No visa apenas tornar compreensvel o texto. Faz dele a base de uma

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esttica moderna e no hesita em extrapolar novos dogmas, at mesmo em substituir Aristteles onde este no formula nenhuma opinio. Assim, Castelvetro quem coloca a necessidade da unidade de tempo, cuja definio decorrer da durao da representao. A verossimilhana, diz ele, exige que a durao da ao (que, em princpio, no tem outros limites seno a imaginao do dramaturgo cf. Shakespeare) se aproxime o mximo possvel da durao da representao (cerca de trs horas, entreatos includos). A dificuldade est evidentemente em uma ao capaz de se desenrolar em to estreito lapso de tempo. tambm Castelvetro quem evoca a necessidade da unidade de lugar, um ponto que Aristteles no aborda. A Frana letrada logo se apaixona pelos debates provocados pelo modelo dramatrgico descrito na Potica. Todo autor que pretenda qualidade ou que vise conquistar um poder econmico-intelectual deve reivindicar um conhecimento aprofundado da Potica e de seus comentadores. O corolrio dessa situao ser que a ignorncia dos preceitos de Aristteles se tornar o argumento fundador de toda condenao crtica. De fato, a Potica s ser traduzida em francs em uma data tardia (1671), e o leitor do sculo XVII v diferena entre o texto aristotlico e as contribuies dos comentadores. Assim, a teoria de Aristteles, tal como a entendem os "doutos", repousa em leituras indefinidamente mediadas pelas obras italianas ou holandesas que lhe eram consagradas e no raro vermos atriburem a Aristteles frmulas que, na verdade, devem-se a um ou outro de seus exegetas. La Mesnardire, um dos primeiros tericos franceses do teatro, no hesita em canonizar Aristteles, "esse miraculoso gnio, que me parece estar no Cu e palestrar divinamente com essas Inteligncias que nos apresentou to bem"! O mesmo culto se encontra em pensadores representativos da primeira gerao clssica (Chapelain, Scudry, d'Aubignac...). Tal estado de esprito tem como conseqncia proibir qualquer discusso livre, afortiori qualquer questionamento. No se imagina conseguir resolver um problema de dramaturgia sem referncia ao corpo de doutrina que se constituiu sob a bandeira de Aristteles. Doravante o teatro francs vai ser sujeitado encruzilhada da norma e do desvio. Os autores sero constantemente submetidos a investigaes severas e no cessaro de se justificar diante da menor suspeita de desvio em

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relao a essa doxa. Os Prefcios e exames que Corneille redigiu para apresentar suas obras ao pblico letrado no tm outra funo, e seus trs Discursos de 1660 visaro apenas atenuar o peso do aristotelismo dominante de maneira a tornar lcita uma inveno dramtica, sob muitos aspectos, original. O magistrio de Chapelain Chapelain precisou de uma ocasio espetacular para assentar seu magistrio esttico. Ela consistir, em 1637, na famosa "querela" provocada pelo triunfo do Cid. Por instigao de Richelieu, Chapelain nomeado rbitro. Pedem-lhe que decida entre a esttica cornelliana e sua crtica radical, formulada por Scudry em nome, claro, de Aristteles. Isso significa que Chapelain se viu investido da funo (e do poder) de uma espcie de grande Inquisidor do Belo! Apoiando-se na Academia Francesa, Chapelain pronuncia uma sentena severa em relao a Corneille, a quem decreta culpado delesa-aristotelismo (cf. Os sentimentos da Academia Francesa acerca da

tragicomdia do Cid, 1637). Mas essa condenao est longe de granjear unanimidade, a despeito da influncia e do prestgio de Chapelain. Em particular, a opinio pblica compreende mal a distoro que surge entre a severidade dos "eruditos" e o entusiasmo dos espectadores comuns. E depois, a promoo da Academia a tribunal de arbitragem esttica comea a preocupar os profissionais do palco, autores e atores. No sem razo, viram nisso uma ameaa dirigida contra seus costumes e tradies, que julgavam necessrios e respeitveis. Finalmente, os princpios aristotlicos invocados em apoio da condenao de Corneille ainda esto longe de lhes serem familiares. Eles os percebem como estranhos e pouco compreensveis. Richelieu, alis, se lembrar dessas reticncias e dessa confuso. Pedir ento a Chapelain para que explicite os cnones do aristotelismo e os adapte s caractersticas e aos usos do teatro francs. Assim, cabe a Chapelain ter edificado a doxa francesa em matria de aristotelismo e ter descrito o modelo dramatrgico que devia prevalecer durante mais de um sculo e ainda encontrar defensores no sculo XIX. Chapelain um "douto" de singular erudio. Familiar da poesia antiga como das pesquisas modernas, fala correntemente o italiano e

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o espanhol. Leu e releu a Potica. Meditou seus comentrios italianos. A essa competncia acrescenta incontestvel lucidez intelectual. Em suma, impe rapidamente sua autoridade. consultado sobre pontos de doutrina julgados delicados. As peas so submetidas a seu julgamento. Atravs de suas respostas (cujo rastro encontra-se em sua correspondncia) se esfora metodicamente por enfatizar a superioridade do modelo aristotlico. E suas respostas circulam nos sales cultos. So estudadas, comentadas... O apoio de Richelieu vai prolongar, no plano poltico, o poder intelectual que Chapelain adquiriu. Essa interferncia vai contribuir em muito para fazer da ortodoxia aristotlica a base de uma arte oficial. No entanto, Chapelain, tanto por cansao diante das polmicas incessantes como pela preocupao de se consagrar sua obra de criador, recusa-se a assumir a tarefa que Richelieu queria lhe confiar. Assim, so dois eruditos, prximos do Cardeal, que daro ao teatro clssico seus fundamentos tericos mais sistemticos: La Mesnardire e d'Aubignac. La Mesnardire toma ento a iniciativa de redigir uma Potica em trs volumes. O primeiro publicado em 1639. Mas a morte de Richelieu, em 1642, terrvel para La Mesnardire. Privado de apoio, deixar sua Potica inacabada. D'Aubignac, em contrapartida, ir levar a cabo um empreendimento concebido como complementar da obra de La Mesnardire. Este ltimo visava explicitar, em inteno do pblico francs, os princpios que regem a esttica aristotlica. D'Aubignac ia tomar como objeto de reflexo A prtica do teatro. Este tratado ser publicado em 1657. 3. O aristotelismo francesa As "regras" do teatro Em nossos dias, pode ser difcil compreender; no entanto, o aristotelismo francs indubitavelmente uma tentativa para instaurar, de maneira coerente e sistemtica, um realismo no teatro. Naturalmente, essa pretenso ser questionada com intensidade pelas tentativas pos-

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teriores (teoria do drama no sculo XVIII, romantismo etc). A se ver mais do que uma impostura, na medida em que a codificao e a idealizao da forma trgica que essa esttica promoveu sero rejeitadas. Esclareamos, porm, esse ponto de vista: Aristteles e seus comentadores no reivindicam absolutamente uma representao do real apoiada em sua aparncia sensvel e nem um mimetismo fotogrfico. Ao contrrio, valorizam o inteligvel, ou seja, uma percepo que transpassa as aparncias e que visa dar conta de seu objeto. Eis por que no tero dificuldade alguma em preconizar uma idealizao formal deste ltimo, um embelezamento ou enobrecimento da "Natureza". que ao corrigir os "defeitos", o poeta infiel apenas a aparncias superficiais. Em compensao, favorece, acredita-se, a percepo dos elementos que tornaro inteligvel esse objeto. Esse cuidado com a inteligibilidade, alis, levar os tericos franceses a radicalizar tambm certas tenses do pensamento de Aristteles, a denunciar, por exemplo, o espetculo teatral, por eles assimilado a um jogo de aparncias, a um modo de representao mais favorvel ao sensvel do que ao inteligvel. Como conseqncia, valorizam a narrativa que , sem dvida, a forma do discurso teatral mais propcio inteleco. Acima de tudo o aristotelismo francs impe duradouramente a idia de que a obra de arte s pode atingir a perfeio com a condio de se conhecer e pr em prtica o conjunto das leis que permitem tal realizao. Nada mais distante do esprito clssico do que a idia de uma inspirao original que extrairia de si mesma suas prprias regras. E ele faz dessas leis no meras orientaes que cada um poderia seguir a seu bel-prazer e adaptar a necessidades especficas, mas imperativos que no podem ser infringidos. A formao do juzo crtico decorrer desse pressuposto. Para apreciar corretamente uma obra, preciso, e basta, conhecer o conjunto das leis que regem seu gnero, segundo Aristteles, e examinar o grau de sua adequao a essas leis. Chapelain: Quanto mais o poema se aproxima dessas regras, mais poema ele , mais se aproxima da perfeio. (Prefcio a Adnis, de Marino, 1623)

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A tambm a originalidade excluda dos critrios crticos da poca. E, nos ltimos anos do sculo, essa ideologia ir se afirmar tambm da maneira mais categrica: Para prevenir as objees de certos espritos inimigos das regras e que tomam por guia apenas seu capricho, creio ser necessrio estabelecer no apenas que a poesia uma arte, mas que essa arte est descoberta e que suas regras so to certamente as que Aristteles nos d que impossvel ser bem-sucedido nela por outro caminho. (Dacier, Prefcio Potica, de Aristteles, 1692) Esse triunfo de um aristotelismo ao mesmo tempo racionalista e dogmtico deve ser substitudo no contexto ideolgico de uma poca que combina mentalidade religiosa, culto da auctoritas, horror da heresia6 e esprito cientfico:7 toda criao humana supe uma racionalidade que basta dominar para atingir seu objetivo. Se Aristteles enunciou as leis da perfeio esttica, segue-se da um corolrio que, com a gerao de Chapelain, conhecer grande fortuna: uma vez que a Antigidade parece ter conhecido melhor tais leis que os modernos, a imitao torna-se o nico canal pelo qual os criadores contemporneos podero esperar rivalizar com seus distantes predecessores. O imprio da Razo Os "aristotlicos" se consideram, nesse contexto, paladinos do racionalismo em luta contra o obscurantismo. Chapelain recupera o "senso comum" proclamando que "o bom senso o pai das regras" e que cada uma delas "a prpria razo transposta para a lei". Que essas "regras" tenham sido to rapidamente impostas no campo do teatro se torna incompreensvel caso seus partidrios sejam apresentados de maneira anacrnica, como "reacionrios" que rechaassem qualquer modernismo. precisamente o contrrio. Para a gerao dos anos 1640, as "regras" constituem um modo de conhecimento cientfico da arte teatral e uma tecnologia cuja eficcia as obras-primas antigas comprovaram. O aristotelismo tem no fundo, em seu domnio, a mesma vocao metodolgica que o cartesianismo: os axiomas da

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arte encadeiam-se uns aos outros e so logicamente deduzidos uns dos outros. Assim como a razo cartesiana a ferramenta da inteligibilidade do mundo, a razo "aristotlica" a ferramenta da perfeio criadora. Alis, a autoridade da "razo" ser cada vez mais invocada no discurso terico da gerao de 1660, em detrimento daquela dos Antigos. Boileau: Amai portanto a razo: oxal seus escritos Extraiam apenas dela seu lustro e seu valor. {Artepotica, I, 37-38, 1674) A autoridade dos Antigos s preserva sua influncia se formos capazes de identific-la Razo. Pascal afirma em alto e bom som: Limitemos esse respeito que tnhamos pelos Antigos; assim como a razo o fez nascer, deve tambm ponder-lo. (Tratado sobre o vazio, Prefcio, 1651) O aristotelismo francs funda um elitismo intelectual. Define uma aristocracia do esprito exatamente homloga quela do nascimento. Uma vez que o xito do dramaturgo objetivamente atestado pela conformidade de sua obra s regras, quem poder avaliar essa conformidade seno aqueles que tm o mais perfeito conhecimento das ditas regras, ou seja, a casta dos "eruditos"? La Mesnardire declara sem rodeios que os nicos juizes autorizados so as "pessoas de esprito, conhecedoras e razoveis" (Potica). Diferentemente de todos os profissionais da cena para quem a principal regra agradar ao pblico, os aristotlicos recusam esse ponto de vista, alegando que esse pblico, salvo exceo, desprovido das luzes requeridas, isto , do conhecimento das regras. Provavelmente, a reivindicao de tal monoplio por parte dos "doutos" poderia parecer exorbitante. Ao mesmo tempo ela se suaviza ao integrar corporao dos juizes "legtimos" uma categoria de espectadores cuja definio no mais social ou corporativista e que tem a vantagem, essencial no sculo XVII, de recuperar a nobreza protetora das pessoas de letras. Admite-se, com efeito, que um juzo pertinente pode ser articulado por qualquer "homem honesto". Essa

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noo to fluida, sociologicamente, quanto capital na ideologia da poca. Em teoria, o homem honesto pertence a todas as camadas da sociedade. Vive na corte, ou na cidade (Paris). Tem como caracterstica possuir "luzes acerca de tudo", portanto um certo conhecimento das regras e uma avaliao justa. Respeita ao mesmo tempo a autoridade dos Antigos, sobretudo a de Aristteles, e submete-se ao imprio da Razo. Essa nova categoria permite aos "doutos" no se alienarem, tampouco a Corte e os profissionais do teatro. D'Aubignac: O povo o primeiro juiz dessas obras [as peas de teatro]; no que eu as assimile grosseria dos cortesos de butique e dos lacaios; entendo por povo esse contingente de pessoas honestas que se divertem e a quem no faltam nem luzes naturais nem inclinao para a virtude para serem tocadas pelos belos fulgores da poesia. {Terceira dissertaoacerca do poema dramtico, 1663)

Mas, claro, essa competncia geral permanece aquela do amador esclarecido. Por conseguinte dever se curvar diante da competncia do "profissional". Em outras palavras, os "doutos" que impunham sociedade culta um duplo poder, ao mesmo tempo legislativo formulam regras que apresentam como normas imperativas e judicirio controlam pelo juzo crtico a aplicao da lei , esses "doutos" aambarcavam a totalidade do poder intelectual.

4. Imitar e embelezar

Imitar a natureza A imitao est no cerne do aristotelismo francs. Mas reina tal fluidez conceituai em torno da prpria idia de "natureza" que quase no importa a obra que poder receber uma etiqueta de ortodoxia fundada nesse princpio de imitao. Um Donneau de Vise no considera a Cllie de Mlle. de Scudry, na qual as convenes rivalizam com as inverossimilhanas, uma representao exata da vida cotidiana? Como Pascal dir elegantemente, "no se

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sabe o que esse modelo natural que preciso imitar..." Provavelmente tal equvoco era necessrio para garantir um mnimo de assentimento autoridade de Aristteles como contrapartida a um mnimo de liberdade para os criadores. Em suma, no preciso ir mais longe do que Furetire, que, em seu Dicionrio (1690), define essa famosa "natureza" como "a massa do mundo, a reunio de todos os seres". O sculo XVII se inclinar bem mais para o prprio conceito de imitao. Chapelain, em 1630, reivindica uma absoluta similitude entre a representao e seu modelo em termos que no seriam desaprovados pelo "realista" mais convicto: Coloco como fundamento que a imitao em qualquer poema deve ser to perfeita que nenhuma diferena transparea entre a coisa imitada ea que imita. (Carta sobre as vinte e quatro horas)

O teatro, diro, com sua tecnologia rudimentar e suas coeres, poder se acomodar a obrigao to draconiana? A bem da verdade, importante destacar aqui que a maioria dos tericos se refere ao "poema dramtico" e no sua representao cnica. Ora, na tica de Aristteles, sua finalidade , como vimos, a catarse, que s pode operar se o espectador acaba por confundir a imagem e seu modelo. A menor ironia crtica prejudicial identificao e participao. Pois ela inibe a efuso provocada pela piedade ou a ansiedade provocada pelo medo. A credibilidade da obra teatral portanto sua virtude cardeal. No entanto, a exegese de Chapelain engloba explicitamente os componentes da representao: figurinos, gestual e dico dos atores... inmeros instrumentos que devem ser mobilizados para "tornar o fingimento semelhante prpria verdade". O fim da representao teatral portanto um verdadeiro processo de alucinao, at mesmo de alienao. O espectador dever esquecer que est no teatro e "acreditar que est presenciando um acontecimento verdadeiro". Fica muito claro que posio to radical no podia se materializar efetivamente em funo das coeres da cena da poca assim como de outros requisitos tericos que iam contra um realismo estri-

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to, sobretudo aquele da pompa, considerada um "embelezamento" indispensvel ao prazer proporcionado pela representao da tragdia. Idealizar a natureza Aristteles, devemos lembrar, colocava a necessidade da credibilidade da fico, credibilidade que baseava na verossimilhana. Chapelain vai bem alm, passando da verossimilhana veracidade. A primeira deixava ao dramaturgo uma margem de manobra e ao espectador, uma liberdade de apreciao. A segunda as abole. Sobre esse ponto, notvel que Chapelain se dissocie do gosto dominante de seu tempo. Seus contemporneos vem nas regras o meio de fornecer uma representao perfeita de um modelo que no o seria obrigatoriamente. A arte, atravs do domnio das leis do Belo, permite "corrigir" a natureza sem lhe ser infiel. o caminho de uma idealizao da qual, doravante, a produo teatral "literria" na Frana no ir se separar at o final do sculo XVIII. Esse processo se baseia no conceito da bela natureza, conceito que no ser questionado antes de Diderot e dos tericos do drama burgus. Estes recusaro a bela natureza em nome da natureza verdadeira, voltando assim ao estrito realismo que, por um momento, tentara Chapelain. Cabe ao artista, acredita-se, fazer uma triagem, privilegiar em sua obra aquilo que de mais nobre, belo ou agradvel encontra em seu modelo. Eliminar ento tudo o que lhe parea defeituoso segundo o critrio de uma avaliao esttica (a feira) ou moral (os vcios). A bela natureza vai ento se caracterizar por quatro parmetros: o Belo, o Agradvel, o Nobre e o Simples. Essa doutrina explica a hierarquia dos gneros que o sculo XVII adotar. No pinculo, aqueles que testemunham mais forte coeficiente de idealizao, a epopia, a tragdia etc... So ao contrrio desvalorizados aqueles que repousam em uma representao caricatural, isto , depreciativa, do mundo. A farsa, por exemplo, cujo universo se constitui dos aspectos do real que o sculo XVII julga "baixos" e "grosseiros". A incompreenso de Boileau em relao s Artimanhas de Escarpino no se explica de outra maneira. Molire, a seu ver,

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renunciara idealizao que a "grande comdia" operacionaliza para a trivialidade da farsa: E no saco em que Escarpino se esconde No reconheo mais o autor do Misantropo. A bela natureza induz ento ao que ainda no se chamava de princpio de estilizao. Mas a generalizao clssica est atenta tambm em fixar os limites dessa estilizao. Ela no deve com efeito nem entrar em conflito com a verossimilhana, nem com a semelhana. Os crticos esto sempre prontos a denunciar aqueles virtuosistas que se deixam levar por uma superabundncia de efeitos incompatveis com a situao ou o personagem. Pecado venial dos Hardy, Montchrestien etc, que associavam sem complexo situaes paroxsticas, personagens frenticos e superabundncia retrica. Em outros termos, se a arte deve permitir uma representao idealizada do real, em momento algum deve constituir obstculo participao e identificao do espectador. O dogma da bela natureza vai ento se apoiar em um par de conceitos antitticos, o falso e o fictcio. O falso, explicar o padre Bouhours, "deteriora e destri inteiramente a realidade". Em outras palavras, a representao errou seu alvo; a natureza no foi "embelezada". Tornou-se irreconhecvel, incompreensvel. O fictcio, ao contrrio, o desfecho positivo de um trabalho que "de certo modo imitou e aperfeiou a natureza" (A maneira de pensar corretamente nas obras do esprito, 1687). Acuado entre a postulao da semelhana e as exigncias da idealizao, o classicismo no podia fundar outra coisa seno uma esttica do meio-termo. Tal esttica se enraiza em uma concepo fixista da natureza humana: existe uma essncia permanente do homem. Suas determinaes sociais, histricas, biogrficas etc. so apenas epifenmenos que a arte deve saber superar. O amor e o cime, esses dois ingredientes do trgico raciniano, vo se manifestar de maneira praticamente idntica na boca de um heri da guerra de Tria (Pirro ou Aquiles), de um imperador romano (Nero ou Tito) e de um prncipe otomano

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do sculo XVII (Bajazet). Tambm manifesta desconfiana em relao s singularidades inerentes poca ou ao pas do personagem considerado. Se por um lado "admite uma certa dose de "diferenas" que dem base verossimilhana, ao mesmo tempo nega que essa singularizao seja um obstculo identificao do espectador pois, como se sabe, "certas vezes o verdadeiro pode no ser verossmil". Pode inclusive provocar incompreenso, ironia e reao de rejeio. Como escreveu Subligny: No so as cerimnias dos antigos que preciso reter na tragdia, mas seu gnio e seus sentimentos ... ao contrrio, so essas cerimnias que preciso acomodar nossa poca para no cair no ridculo. (Prefcio Louca querela, 1668)

5. Os imperativos da verossimilhanaO verdadeiro e o verossmil Em uma esttica assim, a verdade insuficiente e talvez perigosa, uma vez que tem vnculo estreito com a natureza bruta. Ela pode chocar, ser um obstculo identificao. Diz-se, por exemplo, que o espectador jamais suportaria que lhe mostrassem as brigas de Atreu e Tieste e seu desfecho canibalesco.8 Isso acontece, ainda que tais fatos tenham sido atestados pela tradio mitolgica, a qual assimilada verdade de uma Histria anterior Histria. preciso portanto seja renunciar a tratar tal assunto, seja "embelez-lo" substituindo a vingana de Atreu por um equivalente tolervel para as almas sensveis, uma ao que o personagem poderia ter perpetrado de modo verossmil (por exemplo, mandar seqestrar os filhos de Tieste e conden-los ao exlio) ... Isso no significa que o verdadeiro seja excludo do campo da representao. Verdadeiro e verossmil podem muito bem se conciliar. Alis, este o caso mais freqente. Por outro lado, o aristotelismo cedo vai tropear nessa dificuldade: suponha que um acontecimento histrico seja contrrio aos requisitos da idealizao ou aos do verossmile que, apesar disso, seja no somente atestado, como perfeitamen-

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te conhecido do pblico. Que partido deve ento tomar o poeta desejoso de mostrar uma ao que deveria, necessariamente, incluir esse acontecimento? Caso o substitua por uma fico mais conforme s exigncias do embelezamento e formalmente verossmil, no deixa de cair no inverossmil, pois o espectador, sabendo como as coisas "verdadeiramente" se passaram, no poder mais dar f fico de substituio. Ser que posso convencer a qualquer um que Csar, em vez de ter sido apunhalado pelos conjurados dos idos de maro, terminou seus dias tranqilamente nos braos de Clepatra? Por essa razo, os autores iro preferir evitar os episdios mais conhecidos da Lenda ou da Histria. Escolhero antes acontecimentos acerca dos quais tudo indica que o pblico tem apenas uma noo extremamente vaga. Reservam-se assim uma margem de manobra nitidamente mais confortvel.

Verossmil ordinrio, verossmil extraordinrio Castelvetro distingue as duas modalidades do verossmil que vo estar no centro da teoria teatral do sculo XVI: o verossmil ordinrio e o verossmil extraordinrio. Essa observao evidentemente muito mais fiel ao pensamento de Aristteles, que no admitia na ao trgica o acontecimento historicamente atestado, portanto verdadeiro, seno na medida em que respondesse exigncia da verossimilhana. Esta ser a posio dominante do aristotelismo francs. J em 1605, Vauquelin de La Fresnay, em sua Arte potica, parafraseia Castelvetro nos seguintes termos: O verso do verossmil aprecia uma boataria Bem mais do que o verdadeiro segue uma mentira. A opinio de Chapelain ter um peso decisivo e ir orientar duradouramente a esttica clssica. Em 1623 em seu prefcio ao Adnis, de Marino, d sua aprovao tese de Castelvetro. A seu ver, a obrigao da verossimilhana deve prevalecer. O poeta bem inspirado excluir da estrutura de sua obra qualquer acontecimento, mesmo atestado pela Histria ou pela Lenda, caso seu potencial de persuaso

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seja insuficiente. Esse debate estar no cerne da "querela" do Cid. Scudry: verdade que Ximena se casa com Cid, mas no absolutamente verossmil que uma dama de honra se case com o assassino de seu pai. Os partidrios de Corneille vo se apoiar evidentemente na anlise inversa, que legitimava o inverossmil incontestvel. A estes ltimos, Chapelain apontar bem claramente que esto errados: O poeta tem o direito de preferir a verossimilhana verdade, e de trabalhar antes sobre um assunto fictcio e razovel do que sobre um verdico que no se conforme razo. Se for obrigado a tratar um material histrico dessa natureza, deve ento reduzi-lo aos termos da boa apresentao, desvincul-lo da verdade. Deve antes transform-lo totalmente do que lhe acrescentar qualquer coisa que seja incompatvelcom as regras de sua arte. (Os sentimentos da Academia Francesa acerca da tragicomdica do Cid, 1637)

A posio que Chapelain formula tomada em nome de uma instituio oficial, a Academia, e sob encomenda do poder. No apenas uma opinio ou um julgamento. um decreto que ir se impor a todos os poetas. Chapelain, alm disso, retoma a distino entre verossimilhana ordinria e extraordinria. Mas, diferentemente de Castelvetro, prefere privilegiar a primeira. A verossimilhana extraordinria, estima, deve ser acionada com precauo, e raramente. A bem da verdade, os dois autores divergem sensivelmente sobre a definio desta ltima categoria. Para Castelvetro, ela engloba qualquer acontecimento possvel mas pouco freqente. Quanto a Chapelain, a reduz ao encontro fortuito, o que nitidamente mais restritivo. E tal encontro no deixava de ser, para ele, seno uma tolerncia. Portanto, no essencial, o campo da fbula trgica ficar limitado ao verossmil ordinrio. O verossmil ordinrio definido no apenas pela "necessidade", pela prpria lgica do encadeamento dos acontecimentos encenados, mas pela "credibilidade", isto , pelo crdito comum do espectador. O verdadeiro deve ser submetido a isso, deixando assim de ser verdadeiro! La Mesnardire:

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O falso que verossmil deve ser mais estimado que o verdadeiro estranho, prodigioso e inacreditvel. {Potica) Tudo isso deve nos precaver contra uma interpretao anacrnica da tragdia clssica. Como escrevia P. Martino, "nem Corneille nem seu pblico tiveram preocupao com quadros de costumes ou de evocao do passado ... O que subsiste de histria em Horcio, depois de todas as redues verossimilhana, pouca coisa, e isso no foi absolutamente considerado" (Introduo Prtica do teatro). O poeta e o dramaturgo no tm as mesmas obrigaes impostas ao historiador. No se poderia pedir aos primeiros o que da alada do ltimo. E deste ltimo no se esperam os "embelezamentos da arte" impostos aos primeiros. D'Aubignac: um pensamento totalmente ridculo ir ao teatro para aprender Histria. O palco no apresenta de modo algum as coisas como foram, mas como deviam ser, e o poeta deve ali deve restabelecer [= retificar] no assunto tudo o que no se acomodar s regras de sua arte ... O teatro deve devolver tudo em estado de verossimilhana e aprovao. (Aprtica do teatro, II, 1)

Semelhante doutrina explica claramente a desero do maravilhoso da cena trgica. Explica ao mesmo tempo uma repugnncia bastante genrica a utilizar assuntos inspirados na Bblia. No contexto religioso do sculo XVII, as Escrituras so tidas como verdade fundadora. A uma verdade dessa ordem era inbil impor as transformaes requeridas pelo verossmil. Ainda mais que esse gnero de liberdades arriscava ser pessimamente acolhido no apenas pelo pblico, mas pelas autoridades civis e religiosas. notvel que La Mesnardire, que, justamente, se interroga sobre a questo, conceda s Sagradas Escrituras um status que recusava Histria. Se o acontecimento representado atestado pelo Evangelho, "a verdade histrica deve prevalecer largamente sobre a verossimilhana teatral ... A Histria Sagrada deve aparecer em sua integralidade ou simplesmente no aparecer" [Potica). Esse consenso havia se chocado com uma ilustre rebelio, aquela de Corneille. O autor do Cid reivindica o direito de utilizar aconteci-

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mentos atestados pela Histria, mesmo que inverossmeis. E empenha-se em fundamentar sua posio atravs de uma exegese de Aristteles. No Discurso sobre a tragdia, observa que este ltimo pede ao poeta que represente "aquilo que poderia ter acontecido na ordem do verossmil ou do necessrio". Em outras palavras, certas circunstncias podem fazer prevalecer o segundo contra o primeiro. E o caso, salienta Corneille, quando devem ser encenados episdios relatados pela Histria. Por outro lado, sob essa mesma categoria do necessrio, Corneille coloca a finalidade do poema trgico, que , para alm de qualquer outra considerao, o prazer do espectador. Portanto o necessrio residiria na liberdade "de ir contra a verdade e contra a verossimilhana", se disso resultasse algum grande efeito do qual o espectador, finalmente, extrairia prazer. Naturalmente, Corneille est consciente de que assim se afasta da ortodoxia aristotlica, mas justifica sua opo destacando que a norma do verossmil um "privilgio que Aristteles nos d e no uma servido que nos impe". A contestao cornelliana visa claramente salvaguardar uma liberdade de inveno constantemente questionada desde a Querela do Cid, mas talvez tambm preservar para o dramaturgo a possibilidade de explorar essa mina que a Histria e servir-se teatralmente de acontecimentos inacreditveis mas incontestveis. De todo modo, a argumentao de Corneille no derrubar a convico dos aristotlicos de estrita obedincia. Por mais prestigiado que fosse, o autor de Rodogune se ver isolado e sob suspeita de heresia. A problemtica do verossmil no se aplica apenas aos acontecimentos representados, mas tambm aos instrumentos da representao, que so submetidos a uma investigao severa. Dois dentre eles, sobretudo, podiam levantar dificuldades: o monlogo e o aparte? Se seu carter convencional percebido como tal, ento toda a representao inteira ser, por assim dizer, infectada por ele. O espectador no poder mais dar crdito quilo. A catarse no ser mais capaz de operar. D'Aubignac recomenda ento ao dramaturgo que vele conscienciosamente para garantir a verossimilhana circunstancial do procedimento utilizado. A seu ver, o carter fundamentalmente convencional dessas modalidades do discurso teatral deve fazer com que sejam utilizadas com grande circunspeco:

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E muito pouco razovel que um ator fale mais alto para ser ouvido por aqueles que se encontram muito afastados e que o outro ator, que est bem mais perto, no o oua. {A prtica do teatro)

E, dificuldade suplementar, esses instrumentos "defeituosos" so fonte de um prazer tal que no se poderia prescindir completamente deles! Em suma, tudo acontece como se, aos olhos dos aristotlicos, a alucinao do espectador pelo efeito de verossimilhana fosse um estado precrio e constantemente ameaado. O menor gro de areia no mecanismo resultaria no retorno conscincia do "isso apenas teatro". A esttica clssica no imagina termos intermedirios nem gradao entre a conscincia da fico (o que vejo apenas teatro e no posso acreditar nisso) e a alucinao pura (o que vejo no palco a realidade). No primeiro caso, como vimos, as emoes constitutivas do processo da catarse no podero se manifestar. Estranhamente, os tericos franceses esquecem nesse ponto a sutil observao de Aristteles sobre o prazer (portanto a emoo) que se pode tirar da representao at de um objeto qualquer. Eles definem uma polaridade realista (representar um objeto de tal maneira que o espectador no possa mais distinguir a realidade de sua representao), considerada a nica proteo eficaz contra tudo o que ameaa a iluso. Mas essa polaridade nunca acontece. Ao mesmo tempo porque as condies da representao no permitem e porque o aristotelismo repousa em exigncias pouco compatveis com um estrito realismo: o embelezamento da natureza, a magnificncia do espetculo, o "decoro" etc. Assim, no antes do sculo seguinte que sero questionadas tradies nada menos que realistas ou mesmo verossmeis, tais como a do dilogo em alexandrinos. E no antes dessa poca que algum se preocupar com a "verdade do costume" definida a partir da situao concreta e singular de cada personagem.

6. O visvel e o invisvel A exigncia do verossmil e a definio bastante restritiva que recebe esbarram, como vimos, em certo nmero de dificuldades inerentes

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notoriedade da fbula trgica. Elas so da ordem da aporia; tal acontecimento deve ser representado, sem o que a ao perderia toda credibilidade. Mas no pode ser representado sem suscitar incredulidade e reao de rechao. Essa representao impossvel rene duas categorias de acontecimentos: 1. Aqueles que no levantariam dificuldades do ponto de vista da verossimilhana, mas que as condies materiais do palco no permitem reproduzir de maneira satisfatria (exemplo: o combate do Cid contra os mouros); 2. Aqueles que o teatro poderia materialmente mostrar de maneira a provocar sua iluso, mas que, por uma razo ou outra, suscitariam a incredulidade. o caso, particularmente, de tudo o que deriva da verossimilhana extraordinria, ou de tudo o que pertence ao campo do horrvel Media estrangulando seus filhos, por exemplo. Este ltimo exemplo revelador: considerando o que se sabe acerca da informao do pblico, seria inconcebvel levar ao palco a histria de Media suprimindo esse episdio. A representao se tornaria praticamente inverossmil. O teatro da poca dispe dos recursos para visualizar esse infanticdio. Mas o publico no conseguir assisti-lo sem uma reao de horror que o levar a rejeitar toda a tragdia. para resolver dificuldades anlogas que os tericos pem em ao uma engenhosa dialtica do visvel e do invisvel, do "representado" e do "contado". Essa dialtica repousa em uma definio do tempo e do espao trgicos fundada na heterogeneidade: h o espao vista do espectador e h um espao perifrico, prximo ou distante, invisvel, mas utilizvel pelo dramaturgo: Agripina e Jnia esperam em "um quarto do palcio de Nero" a reconciliao deste ltimo com Britnico (espera e "quarto" expostos por Racine) enquanto no "apartamento" do mesmo Nero se consuma o envenenamento, que escapa viso do espectador. Do mesmo modo, as condies materiais da representao a obrigao de se assoar ou de substituir as velas que iluminam o tablado fazem com que o tempo da representao seja escandido por interrupes (os entreatos) durante as quais a verossimilhana exige que a ao no se interrompa. Portanto, no total, o dramaturgo dispe de quatro possibilidades de combinao espaotemporal:

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1. O acontecimento se passa no palco durante um ato da pea. portanto representado e visto pelo espectador. Exemplo: Fedra, no auge do delrio, se apodera da espada de Hiplito {Fedra, II, 5). 2. O acontecimento se passa fora do palco durante um ato da pea. No portanto representado, mas se desenrola em simultaneidade com um acontecimento representado (por razes evidentes, o palco no poderia ficar vazio durante a representao). Exemplo: Bajazet estrangulado pelos mudos do Serralho no momento que Atalida oferece sua vida a Roxana para salv-lo {Bajazet, V, 6). 3. O acontecimento se passa no palco durante o entreato. No portanto representado. Exemplo: Enona calunia Hiplito junto a Teseu. Quando a representao da cena entre esses dois personagens comea, o intervalo j comeou antes de o pano subir {Fedra, IV, 1). 4. O acontecimento se passa fora do palco durante o entreato. No portanto representado. Exemplo: Rodrigo combate vitoriosamente contra os mouros (O Cid, Ill/iv). (Para simplificar, consideraremos entreato o tempo que precede o incio da representao do primeiro ato. Sua extenso pode ser considervel, como testemunha a longa "exposio" de Rodogune.) Essas quatro possibilidade salientam um paradoxo da esttica teatral clssica: uma nica dessas combinaes, a primeira, autoriza a representao. As outras trs a impedem! Eis a razo pela qual o "representado" se torna indissocivel do "contado". Esta ltima possibilidade, esclareamos, excede o relato na forma: no conheceremos a calnia de Enona seno pelas diversas aluses que lhe faro os personagens concernidos. A explorao desses recursos permite resolver elegantemente certas dificuldades por ns referidas. Desde logo tudo indica efetivamente que a narrao oferece duas vantagens sobre a representao: 1. Ela no tributria das coeres do palco. Um relato pode mobilizar massas de guerreiros (o combate de Rodrigo contra os mouros), um monstro marinho, uma divindade furiosa, cavalos galopando (a morte de Hiplito); 2. Ela permite um efeito de atenuao que tornar suportvel ouvir "contado" o que no se toleraria ver "representado", por exemplo o "amvel" Hiplito horrivelmente dilacerado pelos rochedos da praia.

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Essa substituio da representao pela narrao era alis recomendada por Aristteles para resolver a dificuldade levantada pela representao do horrvel ou do "verdadeiro-inverossmil". A primeira gerao clssica que, no fundo, descobriu e amou o teatro atravs das representaes "irregulares" no raro prdigas em episdios sangrentos e cruis sem dvida se intimida menos diante do horrvel do que a gerao dos anos 1670. La Mesnardire, por exemplo, admite que seria mais fcil, para o dramaturgo, "extrair da piedade uma grande efuso de sangue e provocar o terror pela exibio dos culpados supliciados do que excitar os sentimentos exclusivamente pelo relato dos males que acabassem de sofrer" {Potica). O que se ope a tais representaes, aos olhos de La Mesnardire, menos o tato que recomendaria poupar a sensibilidade dos espectadores do que os limites tecnolgicos do teatro. Por causa deles, a representao descambaria para o inverossmil: ser que eu acreditaria, mesmo vendo, que Enona est se afogando no "profundo mar"? Que Media est estrangulando seus filhos diante de meus olhos? La Mesnardire no parece pretender uma soluo ilusionista. Segundo ele, s se poderia representar o crime de Media mostrando o estrangulamento de crianas que desempenhassem os filhos da feiticeira! Soluo satisfatria do ponto de vista do verossmil, mas audaciosa no plano da moral e da ordem pblica... Espetculos assim no podem ser encenados, observa o terico, "sem que signifique perigo para as personas teatrais". Pode-se imaginar! A esse respeito, notvel que o aristotelismo, para superar essas dificuldades, tenha considerado todas as solues, salvo aquela que acabar por prevalecer nos sculos seguintes ou em gneros por ele no controlados: a aceitao da conveno. O aristotelismo incapaz de pensar a articulao entre conveno e iluso. No lhe parece concebvel que um espectador possa acreditar naquilo que se ope manifestamente a qualquer credulidade, seja porque se trata de um acontecimento irracional, "maravilhoso" (uma metamorfose, por exemplo), seja porque sua representao no seria nada mais que um "fingimento" (a simulao do assassinato dos filhos de Media). Essa incapacidade tanto mais espantosa pelo fato de que o aristotelismo se mostrar, alm disso, capaz de integrar todo tipo de convenes ligadas preocupao com o embelezamento e a magni-

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ficncia da representao: dilogos versificados, figurinos empenachados e empetecados de ornamentos, rostos "empoados" etc. Por outro lado, os repetidos triunfos dos gneros que exploravam o veio do maravilhoso, "tragdias em msica e mquinas" (as peras), mais do que comprovam que o pblico da poca est totalmente pronto para jogar o jogo da conveno e se deixar deliciosamente abusar pelos processos ilusionistas dos tcnicos de palco. A incredulidade que os "doutos" lhe atribuem no no fundo seno a projeo do senso crtico, da ironia de espectadores "profissionais" (os "eruditos"...).

7. A regra unitria O hbito do teatro aliado obsesso da perfeita verossimilhana permite fazer algumas constataes empricas: a capacidade de ateno e de assimilao do espectador limitada. Por conseguinte, confrontado a um novelo complicado de acontecimentos, mesmo que estes sejam atestados pela Lenda ou pela Histria, ele recua rapidamente; no verossmil que em um nico e mesmo lugar (o teatro), que evidentemente no se multiplica durante a representao, se possam mostrar diversos lugares diferentes ao sabor das exigncias da ao; no verossmil que uma representao cuja durao real de algumas horas possa "imitar" um conjunto de acontecimentos que, para se realizarem, requerem vrios dias, semanas, meses ou anos. A doutrina unitria vai nascer a partir dessas consideraes, regulando os trs elementos estruturantes da pea de teatro: a ao, o espao e o tempo.

A unidade de ao Aristteles j era bem explcito a propsito da ao. Enfatizava que no poderia haver obra representativa sem unidade. Que essa unidade no resulta do fato, em se tratando do teatro, de que ela representa as

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aes de um nico heri. A pea representao de uma fbula, isto , de uma ao, e essa ao que deve ser "unificada" para fundar a unidade da obra: A fbula, que representao de ao, deve s-lo de uma ao unida e que forme um todo; e as partes que constituem os fatos devem ser ordenadas de maneira que, se uma delas for deslocada ou suprimida, o todo seja deslocado e abalado. (Potica 51 a 16 & 30) portanto claro, desde Aristteles, que a unidade de ao no se define tanto pela unicidade, mas pela coerncia orgnica. Os acontecimentos representados ou relatados podem ser numerosos. Devem ser ligados uns aos outros por um elo de necessidade e, explicitamente, concorrer para o desenlace da ao, ou seja, para a "catstrofe" (o termo designa ento o desfecho). Todo episdio que no cumprir essas duas condies dever ser eliminado. O sculo XVII explorar esse ponto. Fica especificado que uma ao principal deve se distinguir claramente das aes secundrias. Que estas devem contribuir para aquela segundo uma relao de subordinao lgica. Se alguns nostlgicos do exagero da cena barroca mostram reticncias acerca desses pontos, elas logo sero varridas, e a partir dos anos 1640, o consenso ser geral. A unidade de tempo Essa unanimidade contrasta com o clima de controvrsia que cerca a elaborao da unidade de tempo. Primeira dificuldade: Aristteles, sobre essa questo, se mostra bem menos explcito do que a respeito da unidade de ao. No fixa uma norma, mas sugere uma justa medida: A tragdia tenta o mximo possvel se manter em uma revoluo do sol ou no se afastar muito disso. (Potica, 49 b 9) Isso provavelmente exclua as aes maneira de Shakespeare, que no hesita em nos fazer reencontrar j adulta, depois do entreato, uma criana que tnhamos visto nascer um pouco antes (Conto de inverno)]

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Porm, isso posto, o que ao certo uma "revoluo do sol"? Os comentadores vo explorar a perder de vista esse problema, no entanto secundrio. A expresso pode ser entendida como definindo: seja o lapso de tempo correspondente ao que se chamava ento o "dia natural", ou seja, vinte e quatro horas, seja uma durao assimilvel do "dia artificial", isto , as doze horas que separam aproximadamente o nascer do sol de seu ocaso. O que estava em jogo no debate no era, no entanto, puramente escolstico. Segundo alguns, a verossimilhana exige que se excluam as doze horas que correspondem noite, uma vez que nada acontece nesse perodo reservado ao sono. Outros tentaro em vo retorquir que um bom nmero de acontecimentos se realiza precisamente quando a maior parte dos mortais est dormindo! Mas a base do problema a clara defasagem que existe entre a durao da ao e a da representao. Uma estrita verossimilhana suporia que as duas duraes coincidem exatamente. A prtica do teatro mostrou experimentalmente a dificuldade de atingir esse ideal. Quantas vezes a faanha de Racine que fazia isso com Berenice quase naturalmente... no foi saudada? Adota-se ento um meiotermo: a coincidncia perfeita ser dada como um ideal a ser atingido e o poeta se esforar por aproximar, o mximo possvel, as duas temporalidades, sem necessariamente consegui-lo. Tambm nesse caso o aristotelismo se mostra impotente para pensar a conveno temporal com a qual o teatro joga livremente. Da mesma maneira, recusa-se a admitir que o espectador possa se entregar ingenuamente a esse jogo e acreditar, ao longo da durao da representao, na durao da fico, uma vez que a defasagem entre ambas era considervel. Pouco a pouco, um ponto pelo menos foi ganhando unanimidade nesses debates e polmicas. Qualquer que seja a interpretao que se faa da frmula de Aristteles, o "dia natural" (as "vinte e quatro horas") traa um limite que o dramaturgo preocupado com a verossimilhana evitar transpor. Chapelain, em carta a Godeau de 30 de novembro de 1630, mostra-se coerente consigo mesmo. Fiel a seu ideal de coincidncia perfeita entre a representao e a coisa representada, prega a homologia exata das duas temporalidades. Ao mesmo tempo, est bem cons-

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ciente de que Aristteles no to radical e que, na prtica, essa homologia praticamente irrealizvel. Assim, vincula-se doutrina do "dia artificial", isto , "um pouco mais ou um pouco menos que a metade das vinte e quatro horas". Quanto ao "dia natural", deveria ser considerado uma extenso mxima da durao da ao. Chapelain tambm recomenda a utilizao dos entreatos para atenuar a distncia entre as duas temporalidades: suponha que a representao dura quatro horas e a ao tenha necessidade de doze horas. O dramaturgo dever fazer de maneira que as oito horas de diferena sejam distribudas entre os quatro entreatos. A sugesto mais engenhosa que convincente. No se v por que um espectador refratrio a qualquer tipo de conveno aceitaria que um tempo morto de aproximadamente meia hora correspondesse a umas duas horas de ao. Ou ento, caso admita, no se v por que poderia fazer a mesma coisa no que diz respeito ao tempo da representao. Estranhamente alis, Chapelain parece visar essa hiptese: Fazendo acontecer no espao de trs horas tantas coisas que podem acontecer razoavelmente no espao de vinte e quatro, o esprito se deixa facilmente convencer, pelo menos durante a representao, de que o que se passou durou aproximadamente esse tempo. Porm, prisioneiro da doutrina que defende, ele no quer enxergar a conseqncia lgica de semelhante afirmao, que na verdade diz que no fundo o espectador est disposto a acreditar em tudo que se queira, de modo que a obrigao das vinte e quatro horas no teria mais razo de ser. E que para Chapelain a imaginao do espectador bombardeada por seus sentidos. Estes no cessariam de remet-lo materialidade da representao e portanto desmentiriam as propostas da fico: posso certamente imaginar que essa ao dura h vinte e quatro horas, vejo claramente que no estou no teatro h mais de trs horas! A nica soluo, para que essa tenso no arruine completamente a iluso, que o lapso permanea moderado entre aquilo de que minha imaginao se persuade e o que minha conscincia e meus sentidos captam. E em torno dessa questo que ir girar, em 1637, a Querela do Cid. Aos olhos de Scudry, a condensao em vinte e quatro horas de

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acontecimentos que se passaram ao longo de vrios anos torna a pea de Corneille inverossmil, "defeituosa": Pois enfim, no curto espao de um dia natural, um prncipe de Castela eleito governador; h uma discusso e um combate entre Dom Diego e o Conde, outro combate entre Rodrigo e o Conde, outro de Rodrigo contra os mouros, outro contra Dom Sancho; e realiza-se o casamento entre Rodrigo e Ximena. {Observaes sobre o Cid) Chapelain apoia a argumentao de Scudry. A polmica permite esclarecer a doutrina: se o "dia artificial" constitui a durao desejvel e o "dia natural" um mximo a no ser ultrapassado, trata-se a de condies necessrias, mas insuficientes. Em outros termos, a unidade de tempo no uma norma autnoma. No se poderia consider-la independentemente da unidade de ao. No basta conceber uma ao que caiba nas vinte e quatro horas, preciso tambm que sua estruturao permanea conforme aos imperativos do verossmil. Isso era condenar o teatro barroco, que, como observava ironicamente Sarasin, amontoa todo tipo de peripcias, "os amores, os cimes, os duelos, os disfarces, as prises e os naufrgios" [Discurso sobre a tragdia, 1639). A segunda gerao clssica concordar a respeito das vinte e quatro horas tomadas como norma (Corneille chegar a trinta horas em seu Discurso sobre as trs unidades), ao mesmo tempo porque essa posio parece mais conforme ao pensamento de Aristteles e porque ameniza sensivelmente a coero imposta ao dramaturgo. Mas a discusso sobre a unidade de tempo dupla. Embora oponha partidrios e adversrios do "dia natural" ou do "dia artificial" que, pelo menos, esto de acordo sobre o princpio em si da unificao, mais amplamente divide adeptos e inimigos desse mesmo princpio. A tradio pr-clssica no se impunha nenhuma outra coero referente temporalidade alm daquelas que decorriam da organizao do enredo. Este, frtil em peripcias, podia se estendei por vrios meses, vrios anos, sem que o pblico se melindrasse em nada pelo lapso que se abria entre as duraes respectivas da ao e da representao a ponto de certas peas batrocas serem representadas em

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vrias "jornadas" sucessivas. Duas com mais freqncia, mas Teageno e Cariclia, de Hardy (1623), exigiam... oito. Por que ento, perguntavam os defensores desse teatro, romper com uma frmula que permite ao dramaturgo total liberdade de manobra e que, alm disso, deu prova de sua eficcia com respeito adeso do espectador? Rejeitando a exigncia do tempo unificado, voltam astuciosamente contra seus adversrios o argumento da verossimilhana: se inverossmil "representar" em algumas horas uma ao que, manifestamente, precisa se estender por vrios meses ou anos, no o tambm querer encaixar em doze ou vinte e quatro horas acontecimentos que requerem, claramente, mais tempo para se realizar ou se encadear uns aos outros? A unidade de tempo tambm criticada por impedir os "belos efeitos", aquelas surpresas espetaculares que deixavam louco o pblico dos anos 1630, alis mais do que indulgente para com sua extravagncia ou inverossimilhana. Como vemos, a problemtica da unidade de tempo deve ser considerada de um duplo ponto de vista: o da verossimilhana e o da ao. Para os aristotlicos, a primeira deve primar sobre o andamento da segunda. Para seus adversrios, naturalmente o contrrio. Corneille vai se esforar por submeter a maior parte de suas tramas exigncia unitria depois da Querela do Cid. Sua posio, no fundo, pode ser assim resumida: decerto a unidade de tempo deve ser dada como "regra". Mas apenas na medida em que pode beneficiar a iluso teatral, no devendo ser erigida como absoluta nem prevalecer contra as exigncias antagnicas de um "belo tema": Creio que devemos sempre fazer o possvel em favor da unidade de tempo, at forar um pouco os acontecimentos que tratamos para a ela se adequarem; mas caso no conseguisse atingir isso, eu a desprezaria sem escrpulos e no gostaria de perder um belo tema por no conseguir reduzi-lo a ela. (Segunda advertncia Antologia de 1657) A unidade de lugar Em sua Potica, Aristteles no leva em considerao a questo do lugar e de sua unificao. Os primeiros comentadores italianos tampouco abordam o problema, uma vez que Aristteles no o coloca.

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A questo vai ser inicialmente considerada a partir do duplo parmetro da verossimilhana e da durao. Impe-se a idia de que o espao da fico deveria ser definido por referncia ao espao real que um personagem pudesse percorrer ao longo da durao da representao. Alguns exegetas como Castelvetro chegam porm formulao que ir se tornar a da unidade de lugar. Seu raciocnio idntico queles que aplicavam temporalidade. Apia-se na identificao do "representado" e do real. Castelvetro: A tragdia deve ter como tema uma ao que se passou em um pequeno espao de lugar e em um pequeno espao de tempo, ou seja, no lugar e na poca em que os atores esto ocupados em atuar. (Poticad'Aristotele vulgarizzata, 1570)

Na Frana, a fora da tradio pr-clssica que repousava na multiplicidade dos lugares, somando-se ao silncio de Aristteles, explica claramente por que a regra da unificao se impe sorrateiramente. Chapelain no se interessa por ela, mesmo sendo certo que, nos anos 1630, os doutos debatiam a questo. Mas, da mesma maneira que a coincidncia perfeita das duas temporalidades considerada antes um ideal do que uma obrigao, a princpio a idia de uma homologia exata entre o espao cnico e o da ao no se impe. Todos se limitam a observar que o lapso entre os dois deveria ser moderado, sob pena de provocar uma reao de rejeio em nome do verossmil. Assim, seria melhor que a cena representasse uma regio limitada em vez de diversas regies, uma cidade em vez de uma provncia, um palcio em vez de uma cidade. A norma poderia ser determinada com relao ao tempo. Seria considerado "verossmil" o espao que um personagem, em condies reais, poderia percorrer em vinte e quatro horas, mesmo que fosse uma cidade e sua periferia. E s com a Querela do Cid que a regra de um lugar nico vai se impor e que a tradio barroca ser condenada. Quer a ao se desenrole em vrios lugares figurados simultaneamente (cenrio simultneo) ou sucessivamente (mudana de cenrios durante os entreatos), tais opes so denunciadas como inverossmeis. Pois como um mesmo lugar real poderia representar vrios? E, alm disso, a multiplicao dos lugares fonte de confuso para o espectador.

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cTAubignac quem far a exposio mais clara e mais sistemtica da nova regra. Em primeiro lugar, baseia-a no princpio de verossimilhana. Um nico espao, o do palco, no seria capaz, desse ponto de vista, de representar dois, "por exemplo a Frana e a Dinamarca, a galeria do Palcio e as Tulherias". No admite portanto nem mesmo a extenso do espao da ao rea geogrfica que um indivduo pode percorrer em um dia. No admite mais as "mudanas de faces" (de cenrios), das quais no entanto o pblico se mostra vido e que permitiam situar cada ato em um lugar diferente. inverossmil, a seu ver, que um nico espao possa representar vrios, qualquer que seja a modalidade adotada (simultaneidade ou sucessividade). Portanto: O lugar onde supostamente se encontra o primeiro ator que faz a abertura da pea deve ser o mesmo no final, e esse lugar, no podendo sofrer nenhuma mudana em sua natureza, tambm no admite nenhuma na representao. (A prtica do teatro) Entretanto ele est perfeitamente ciente das inclinaes do pblico. Assim, empenha-se em reduzir as conseqncias de seu dogmatismo sem ceder em seus princpios. Pode-se muito bem admitir, diz ele, as mudanas de cenrios contanto que o lugar representado seja sempre o mesmo. O que isso quer dizer? Um palcio abandonado situado em uma praia marinha poderia inicialmente servir de asilo para indigentes. Caso um prncipe venha a encalhar nessa praia em conseqncia de um naufrgio, ele pode se instalar no palcio e lhe devolver seu antigo lustro. Uma peripcia qualquer poderia depois fazer com que ardesse em chamas. Finalmente, em suas runas calcinadas, uma batalha poderia ser travada!10 D'Aubignac admite tambm as transformaes "plausveis" do lugar, isto , todas aquelas que no tragam prejuzo sua unicidade, at mesmo metamorfoses provocadas por um mgico! V-se claramente que um raciocnio to ardiloso tem por objetivo no desvincular o aristotelismo dos hbitos e gostos do pblico e das prticas correntes dos teatros. Mas acaba por intensificar a confuso entre o real e o representado. Pois o espao da ao deve ser homlogo a seu modelo no apenas por sua fixidez, mas por sua

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aptido transformao (pelo tempo e pela eroso, pela arte dos homens, pelo fogo ou pela gua, at mesmo pelo poder de um encantamento...). Vemos mais uma vez que a conveno teatral definida como um contrato de jogo passado entre o teatro e o pblico recusada. Seja uma batalha nas runas de um palcio queimado. Segundo d'Aubignac, o espectador s ser capaz de acreditar nisso se o palcio for o mesmo onde se desenrolavam os precedentes episdios da ao, e no um outro, e se lhe explicam como esse monumento passou do esplendor runa! D'Aubignac, enfim, se dedica a integrar ordem da verossimilhana a conveno das convenes, aquela que impe a abertura do espao cnico diante do pblico: ainda preciso que o espao seja pressuposto aberto para a realidade das coisas, como aparece na representao. {A prtica do teatro) Tal exigncia no , ningum duvida, de fcil cumprimento e d'Aubignac est bem consciente disso. Assim, recomenda a utilizao de espaos naturalmente "abertos", a fachada de um palcio para a tragdia, ou a famosa "praa pblica" que se tornar o lugar paradigmtico da comdia clssica. Os dramaturgos se resignaro com mais ou menos bom grado a esse ltimo requisito. As indicaes preliminares das peas publicadas permanecem na moda. Remetem ao clebre "palcio ao gosto", o de Flix em Melitene (Polieuto), de Ptolomeu em Alexandria (A morte de Pompeu) etc. Corneille, manifestamente, entrega tudo para o "fingidor" (o cengrafo). Cabe a ele encontrar uma soluo compatvel tanto com a ao quanto com as regras. Um pouco mais tarde, Racine vai oscilar entre dois partidos. s vezes especifica que o lugar da ao um espao fechado. A "abertura" exigida por d'Aubignac ento sacrificada no altar da verossimilhana interna. Andrmaca se passa "em uma sala do palcio de Pirro". E como, com efeito, explicar que uma negociao que envolve o embaixador de todos os gregos e o rei de piro se desenrola diante da "fachada do palcio" aberta a todos os ouvidos indiscretos? Mesma coisa para Britnico, situado "em um quarto do palcio de Nero". De fato no cai bem que Agripina lembre a seu ingrato filho todos os

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crimes que ela cometeu por ele "na frente do palcio"! Mas, quando possvel, Racine no despreza essa busca de uma verossimilhana forada. Em Mitridate, a indicao preliminar geogrfica. Mas comporta uma especificao que torna possvel um cenrio "aberto": A cena em Ninfia, porto martimo no Bsforo Cimrio. O mesmo para Ifignia supostamente passada "em Aulis, na tenda de Agamenon". No caso, o prprio dilogo que legitima a "abertura" do lugar: Que glria, Senhor, que triunfos igualam O espetculo pomposo que essas margens vos exibem? J Molire nitidamente mais independente. Ao sabor de suas intrigas, utiliza espaos "abertos" de tipo "praa pblica" {A escola de mulheres, As artimanhas de Escarpin) ou "fechadas" de tipo "quarto" (salo) (O misantropo, As mulheres eruditas, O doente imaginrio). Em todo caso, ele no parece nada preocupado em justificar a abertura convencional do palco. Seus cenrios so antes de tudo "encruzilhadas" que permitem os encontros necessrios progresso da ao; alm disso seus textos so bastante avarentos em indicaes explcitas. Nesse domnio, o aristotelismo criticava no apenas a liberdade de criao dos autores, mas, alm disso, interesses econmicos: os dos diretores de companhias preocupados com boas receitas, portanto sucesso, que tentavam lisonjear o gosto do pblico com todas as formas de espetacularidade, em particular com a variedade dos cenrios, e dos "fingidores" e o de todos os artesos, que forneciam o material cenogrfico para o teatro. Podemos conceber que a resistncia ao magistrio aristotlico tenha sido, nesse plano, especialmente viva, e veementes os ataques lanados pelos "doutos" contra esse laxismo barroco que no hesitava em "colocar a Frana em um lado do teatro, a Turquia no outro e a Espanha no meio" (d'Aubignac)! Contrariamente ao que a tradio escolstica fazia crer, no certo que o aristotelismo tenha vencido essa batalha. claro que o domnio da regra unitria ir se impor aos gneros considerados

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eruditos (tragdia, tragicomdia, grande comdia etc). Mas unicamente a eles! A exuberncia barroca permanecer florescente em outros gneros mais preocupados com proezas cenogrficas do que com verossimilhana bale de corte, pera, pera-bal etc. Os "doutos", que em vo iro fustigar e ridicularizar esses gneros rebeldes sua autoridade, no conseguiro que o pblico se desvie deles, longe disso! E, no meio desse pblico, era preciso contar o Rei e toda a Corte... Os melhores autores, alis, mantm um p na tradio barroquizante por gosto e obrigao ao mesmo tempo. Molire concorre ativamente para a realizao das festas e divertimentos da Corte, que, ningum duvida, no liga a mnima para a unidade de lugar. E, quando escreve como catstrofe uma pea que deve substituir Tartufo, proibida, e abarrotar a bilheteria da companhia, escolhe a histria de Dom Juan e evita concentrar em um nico lugar uma ao movimentada. Corneille contribui, ao lado de Quinault e Molire, para a tragdia-bal Psique. Escreve uma Andrmeda>. , admite sem se fazer de rogado, uma pea "que no seno para os olhos". Ela deve permitir o reaproveitamento das mquinas aperfeioadas por Torelli para o Orfeu de Rossi, que conhecera o sucesso em 1647 e supunha a confeco de seis cenrios sucessivos (a pea comporta um prlogo e cinco atos). Quinault, enfim, se dedica no apenas a uma obra dramtica pessoal, mas tambm redao de libretos para as faustosas peras de Lully... Esse contexto esclarece a ideologia que subjaz ao aristotelismo francs. Se por um lado desvaloriza to obstinadamente o espetacular, porque se trata de um campo da prtica teatral que no se dobra facilmente aos decretos dos "doutos" e que apoiado por um pblico pouco sensvel aos encantos da verossimilhana ou ao gnio de Aristteles. Assim, os "doutos" fazem de tudo para desacreditar esse pblico, para tornar sua opinio ilegtima. Pois, por mais "ignorante das regras" que seja, mesmo assim trata-se do pblico que enche as salas e alimenta as receitas. O nico pblico "legtimo aos olhos dos doutos" esses "conhecedores" que sabem as regras ou essa "gente honesta" que tem opinies acerca de tudo constitua mais um pblico leitor do que o verdadeiro pblico dos teatros.

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8. Digresso sobre o decoro A noo de decoro no pertence ao corpus aristotlico. Contudo subjaz esttica clssica. Nenhuma tragdia conseguiria receber a aprovao dos "doutos" se no se curvasse s obrigaes da decorrentes. O decoro indissocivel da busca da verossimilhana. Mas no se confunde com ela. Define um sistema de coeres que derivam no da economia interna da fbula ou dos dados comprovados pela Lenda ou pela Histria, mas de uma vulgata da qual o espectador seria o detentor. O dramaturgo deve portanto evitar qualquer descompasso entre essa vulgata e sua pea. Isso significa que, nesse sistema, a singularidade histrica no tem lugar. Seja um rei: pouco importa que pertena Lenda (Pirro, Teseu etc), Histria (Augusto, Nero, Tito etc). Pouco importa que seja grego, romano ou otomano. Deve em primeiro lugar adequar-se imagem que o pblico faz da realeza (ou talvez imagem que se pretende que ele faa). Mais genericamente, o decoro afirma uma "natureza"