Manfredo Araújo de Oliveira - Filosofia Política - De Hobbes a Marx

Embed Size (px)

DESCRIPTION

x

Citation preview

  • Sntese N9 33 (1985) - Pg. 37-60

    FILOSOFIA P O L T I C A : DE HOBBES A M A R X *

    Manfredo Arajo de Oliveira

    I N T R O D U O

    A r e f l e x o p o l t i c a , elaborada no Ocidente na modernidade, emergiu numa sociedade em profunda t r a n s f o r m a o . Era um mundo novo, que surgia, isto , estava emergindo uma nova objetividade enquanto c o n f i g u r a o e s p e c f i c a da m e d i a o entre o homem e a alteridade, ou seja, entre o homem e a natureza a t r a v s da p r o d u o , entre o ho-mem i n d i v d u o e os outros homens a t r a v s do conjunto de r e l a e s intersubjetivas vigentes nas comunidades h i s t r i c a s concretas, produ- o e i n t e r - a o que, em l t i m a a n l i s e , se radicam na a c e i t a o im-p l c i t a de uma certa i n t e r p r e t a o do sentido da totalidade da expe-r i n c i a humana. A r e f l e x o p o l t i c a moderna emerge, portanto, de uma nova c o n f i g u r a o da realidade humana e a partir deste seu "contexto" que podemos entender a t r a n s f o r m a o profunda que ela significou em r e l a o ao pensamento p o l t i c o c l s s i c o , como t a m b m as q u e s t e s que dela p r o v m para nossa r e f l e x o hoje(1). Enquanto r e f l e x o , ela se situa no n v e l da i n t e r p r e t a o de sentido, que no no-vo contexto se faz a partir de novas matrizes, isto , a partir de um horizonte novo de saber que constitui um sistema categorial interpre-tativo diferente a partir de onde a nova realidade p o l t i c a elevada ao n v e l do conceito. Em que consistiu esta m u d a n a no horizonte do pensamento p o l t i c o ? Qual propriamente a novidade do saber po-l t i c o moderno e p s - m o d e r n o , que ele gerou?

    I

    a) E m e r g n c i a da subjetividade e da h i s t r i a

    Partimos da c o m p r e e n s o do homem como um s u j e i t o - n o - m u n -

    * Trabalho apresentado no Seminrio A questo do poder. Faculdade de Filosofia de Forta-leza (Inst. de Oncias Religiosas), outubrade 1984.

    37

  • do, fundamentalmente inserido numa objetividade, numa comu-nidade h i s t r i c a , que o condiciona e por ele condicionada, homem que unidade de teoria e p r x i s . O conhecimento se revela, neste contexto, como um modo de ser do homem no mundo, como um momento do processo a t r a v s do qual o homem, criando o mundo, gera a si mesmo como sujeito h i s t r i c o . Como o homem, o conheci-mento n o pura passividade, mas um ato de^um sujeito que situa dados dentro de um contexto de sentido do todo de sua realidade. Conhecer , portanto, o ato a t r a v s do qual o sujeito eleva o dado ao n v e l do sentido, a partir de onde tudo o que conhecido recebe sua d e t e r m i n a o . O sentido de cada realidade particular emerge assim num campo de r e f e r n c i a a partir de onde ela manifesta sua significa- o . A realidade singular conhecida na medida em que recebe uma d e t e r m i n a o a partir de um todo de sentido, que normalmente est i m p l c i t o . Ora, a tarefa da f i losofia , em primeiro lugar, tematizar o todo de sentido a partir de onde ocorre a d e t e r m i n a o .

    A passagern do pensamento c l s s i c o para o pensamento moderno sig-nifica, em primeiro lugar, uma t r a n s f o r m a o do horizonte de pensa-mento, ou seja, do todo de sentido a partir de onde os diferentes objetos.de conhecimento recebem sua d e t e r m i n a o . A passagem do pensamento c l s s i c o , grego e medieval, para o pensamento moderno significa a passagem de um horizonte c o s m o c n t r i c o - o b j e t a l para um horizonte a n t r o p o c n t r i c o - s u b j e t a l , e a partir desta passagem que poderemos compreender as t r a n s f o r m a e s de fundo na r e f l e x o po-l t i c a moderna.

    Quando afirmamos que o pensamento c l s s i c o se situa num horizonte c o s m o c n t r i c o - o b j e t a l pretendemos dizer que o centro de gravidade deste pensamento, o modelo de ser a partir de onde tudo recebe seu sentido a ordem imutvel do t o d o entendido como "cosmos"(2). O grego, no p r i n c p i o de nossa cultura, interpreta o real como "kos-mos", isto , como ura t o d o ordenado, como ordem, em contraposi- o desordem, i n d e t e r m i n a o , ao caos, o que significa que as coi-sas n o so disparatadas, mas se encontram num relacionamento uni-t r i o e a tarefa do pensamento consiste em tematizar esta ordem, que fundamento da a o e do conhecimento do homem. A "fisiologia", como primeira etapa do pensamento ocidental, f o i o empenho de te-m a t i z a o deste Todo, o qual recebeu diferentes d e n o m i n a e s , que foram tentativas de dar uma imagem s e n s v e l da totalidade. A f isiolo-gia pergunta apenas pelo Todo e n o ainda pelas r e g i e s dos diferen-tes entes em sua estrutura regional dentro do Todo. Esta pergunta pe-los diferentes entes em sua estrutura vai ser a tarefa da m e t a f s i c a .

    38

  • que f o i precedida pela crise levantada pela sofistica. No pensamento f i s i o l g i c o , h uma primazia do todo em r e l a o ao i n d i v d u o , pois ele s a t r a v s do Todo. Sobre este Todo o i n d i v d u o n o tem d o m -nio, mas antes a ele pertence. A sofistica significou a r e a o do indi-v d u o contra esta primazia do Todo: para a sofistica s o singular que existe e seu sentido dado pelo i n d i v d u o . O Todo desaparece no pensamento. O Fundamento, pois, do conhecer e do agir humanos o p r p r i o a r b t r i o do i n d i v d u o . A m e t a f s i c a vai significar um enor-me e s f o r o para salvar a normatividade do conhecer e do agir huma-nos, o que ela vai fazer a t r a v s do levantamento da q u e s t o da e s s n -cia(3).

    Que a e s s n c i a ? a c o n f i g u r a o permanente de uma coisa, que se se conserva a t r a v s de todas as m u d a n a s . Conhecer algo conhecer sua e s s n c i a , isto , n o o m u t v e l , n o o passageiro, mas a determi-n a o permanente que indica o lugar que ela ocupa no Todo i m u t -vel da realidade. Ora, as e s s n c i a s so os paradigmas das coisas, onde se pode medir se um existente realmente a r e a l i z a o desta e s s n c i a . Assim, existe uma e s s n c i a do Estado, a partir de onde so a v a l i v e i s as diversas e x p e r i n c i a s p o l t i c a s . Isto significa que o pensamento c l s s i c o interpreta o real a partir de uma d i f e r e n a fundamental, que com M. M l l e r ( 4 ) , podemos denominar a diferena eidtica, ou seja, a d i f e r e n a entre normatividade e facticidade, entre e s s n c i a e fato. Existe, por exemplo, uma e s s n c i a do homem que somos capazes de conhecer pela r a z o e a qual para n s se revela como uma norma do ser que, conscientemente, temos de ser. A e s s n c i a indica o lugar que um ente ocupa no todo da realidade. Neste sentido, o agir humano normado por este todo e ele significa o processo a t r a v s do qual o ho-mem assume, por sua d e c i s o , o lugar que lhe compete neste todo. O homem, como ser racional e livre, deve constituir, no seu n v e l de ser, a ordem do todo e reconstituir esta ordem onde ela f o i d e s t r u d a . N o h para o homem r e a l i z a o p o s s v e l de seu ser fora desta ordem i m u t v e l que, uma vez para sempre, determina o lugar que ele deve ocupar no todo do ser. Todo agir do homem encontra, na ordem c s -mica, seu fundamento derradeiro. Assim se revela o horizonte l t i m o do pensamento p o l t i c o c l s s i c o : o e s f o r o para explicitar o funda-mento racional da o r g a n i z a o da c o n v i v n c i a humana, a qual en-tendida como o lugar onde o homem se faz homem. A ordem da po-lis vai se exprimir como lei, mas esta por sua vez se radica no cosmos, enquanto ordem i m u t v e l . por isto que o tema central da f i losofia p o l t i c a c lss ica a Justia, ou seja, a maneira racional da o r g a n i z a o da c o n v i v n c i a humana. A lei humana, ou seja, a ordem humana, de-ve conformar-se Ordem c s m i c a . Este ato h i s t r i c o dos gregos f o i

    39

  • um ato de c o n s t i t u i o do pensamento social e p o l t i c o do ocidente. A partir de e n t o este pensamento ser a busca da norma racional, que permite ao homem ultrapassar a v i o l n c i a f t i c a e constituir uma c o n v i v n c i a que seja a e x p r e s s o da ordem c s m i c a universal. A tema-t i z a o da norma enquanto universal era c o n d i o de possibilidade de s u p e r a o de todo e qualquer individualismo e subjetivismo e, por-t a n t o , c o n d i o de possibilidade do estabelecimento de uma comuni-dade humana, que expressa o ser do homem enquanto ta l . Neste sen-t i d o , o pensamento p o l t i c o c l s s i c o pretendia superar a arbitrarieda-de da individualidade e descobrir u m e s p a o intersubjetivo que legiti-mava a o r g a n i z a o da vida humana. Vida digna do homem, para este pensamento, s i n n i m o de p r x i s segundo a r a z o , isto , vida funda-da numa normatividade intersubjetiva, que, por sua vez, a articula- o , na ordem do humano, da ordem universal do cosmos. s quan-do o homem se orienta de acordo com esta normatividade que ele atinge a a t u a l i z a o das suas possibilidade e, assim, chega salvao, entendida como atividade justa e totalmente harmonizada do homem em r e l a o ao mundo e a si mesmo. Isto p r e s s u p e que o homem j n o est sempre em seu ser, mas deve chegar a t ele, ou seja, a exis-t n c i a do homem n o imediata, mas sempre m e d i a o . O homem deve g r a r - s e e A r i s t t e l e s ( 5 ) conhece dois t ipos de atividades a t r a v s das quais o homem efetiva a m e d i a o do seu ser: a) atividades instru-mentais so todas aquelas atividades que n o existem em f u n o de si mesmas, mas em f u n o daquilo que executam para o homem em sua luta pela vida, em sua r e s i s t n c i a natureza, ou seja, numa pala-vra, pelo contr ibuto que elas podem dar obra de t r a n s f o r m a o e d o m i n a o da natureza pelo homem; b) atividades aufaV^v/cas so todas aquelas que existem em f u n o de si mesmas, que t m um f i m em si mesmas, a t r a v s das quais o homem um ser a u t r q u i c o . Entre todas estas obras, ocupa lugar central, para A r i s t t e l e s , a atividade p o l t i c a , que a c o n s t r u o da vida c o m u n i t r i a enquanto comunida-de de c i d a d o s livres. A polis n o existe em f u n o de algo fora de si, mas em f u n o de si mesma, ou seja, ela a a u t o - r e a l i z a o do ho-mem enquanto tal e este o seu sentido. A r i s t t e l e s entende a p r x i s do homem como o processo a t r a v s do qual o homem em p o t n c i a se torna homem em ato, portanto, a t u a l i z a o da natureza, que o con-junto de possibilidades e d i s p o s i e s de um ente. Ora, o e s p e c f i c o da vida p o l t i c a , precisamente, a a t u a l i z a o da natureza do homem. O homem aquele ente que s na cidade encontra seu ser, na medida em que a r a z o de ser da polis a a t u a l i z a o da liberdade do ho-mem. O f i m da polis ser a r e a l i z a o da comunidade de homens l i -vres. H aqui uma c o n c e p o n o instrumental do estado, mas o p o l -t i c o o p r p r i o homem em sua a t u a l i z a o { 6 ) . O Estado entendido

    4 0

  • como ser do homem, e n r g u e i a , a t u a l i z a o suprema das possibilida-des do homem. Este modelo de pensamento p o l t i c o constitui b f u n -do a partir de onde, durante s c u l o s , o ocidente elaborou suas refle-x e s p o l t i c a s . A modernidade significa, e n t o , o longo processo de t r a n s f o r m a o deste horizonte de pensamento que, a partir de muitas r a z e s , se elaborou no ocidente desde o f i m da Idade M d i a , tornan-do-se a t e n d n c i a imanente de todo o pensamento dos s c u l o s subse-q e n t e s a t encontrar e x p l i c i t a o plena no pensamento de Kant.

    Trata-se, portanto, da passagem de um horizonte c o s m o c n t r i c o - o b j e -tal para um horizonte a n t r o p o c n t r i c o - s u b j e t a l . isto significa, em pri-meiro lugar, uma m u d a n a no centro de gravidade do pensamento: de agora em diante, o modelo de ser a partir de onde t u d o p e n s v e l n o mais o"kosmos" i m u t v e l , mas o p r p r i o homem enquanto subjeti-vidade. Muda-se aqui radicalmente o quadro b s i c o de r e f e r n c i a de pensamento: o homem n o se sente mais simplesmente como uma parte no grande Todo do "kosmos", entendido como ordem acabada, definida, mas se revela como algo radicalmente diferente de tudo mais, ou seja, se revela como subjetividade, como sujeito de seu co-nhecimento e de sua a o no mundo. Isto n o significa que o n i c o problema f i l o s f i c o do homem seja o homem, mas antes que aqui se pensa e se age no horizonte de uma c o n c e p o a n t r o p o c n t r i c a do real: o homem, enquanto subjetividade, a fonte de sentido para t u -do. No pensamento anterior, o homem entendia seu ser a partir de uma i n s e r o na ordem objetiva, que c o n s t i t u a o real. Agora se parte de uma ruptura radical entre homem e mundo, e s p r i t o e realidade, sujeito e objeto, enquanto que na m e t a f s i c a c l s s i c a , a pergunta cen-tral era pela e s s n c i a das coisas, dos entes, aqui a pergunta central vai ser pelo homem que pensa, determina, d sentido a tudo que ele encontra. O Homem, neste caso, se transforma em fundamento, pre-cisamente em sujeito de t u d o , em modelo, em horizonte a p r i r i c o , dentro do qual ou luz de que se faz a d e t e r m i n a o de t u d o . A sub-jetividade passa a constituir o ponto de r e f e r n c i a i m p l c i t o do agir t e r i c o e p r t i c o do homem. Trata-se de uma c o m p r e e n s o do Todo, enquanto todo para o homem. O eixo da r e f l e x o f i l o s f i c a vai trans-ferir-se: n o mais a ordem objetiva, que objeto da r e f l e x o f i l o s -fica, mas a subjetividade, a estrutura da subjetividade f i n i t a como constituidora da ordem. S existe ordem de agora em diante a partir do homem, ou antes, o homem que confere uma ordem ao caos de sua e x p e r i n c i a fenomenal. Neste sentido, o homem, enquanto sujei-t o , a base para a c o n s i d e r a o de toda a realidade. O pensamento moderno se caracteriza assim como a t e m a t i z a o da r e f e r n c i a de t u -do ao homem e sua t e n d n c i a considerar i n g n u o o pensamento

    41

  • c l s s i c o em virtude de ele n o ter sido capaz de tematizar esta expe-riencialidade fundamental. Esta reviravolta a n t r o p o c n t r i c a vai pro-vocar uma atitude radicalmente diferente do homem em r e l a o aos cosmos: ele vai revelar-se agora como mundo do homem, isto , n o mais ser visto como v e s t g i o do divino, mas ser reduzido a material da teoria e da a o manipuladora do homem que, de agora em diante, se sente "senhor do mundo". O homem se revela como sujeito do mundo, isto , como ser que se possui a si mesmo e ao mundo, como a u t o n o m i a . a partir deste novo "fundamento", ou seja, do homem enquanto sujeito, que se vai pensar a realidade p o l t i c a dos tempos modernos. Para os antigos, o p o l t i c o algo de o n t o l g i c o , natural do homem: a polis a p r p r i a a u t o - r e a l i z a o do homem como ser racio-nal. O p o l t i c o visto como um t i p o de ser dentro da ordem c s m i c a universal. De agora em diante, o p o l t i c o n o um ser natural, mas um ser "produzido" pelo homem sujeito. O homem, o novo e n i c o sujeito do mundo, t a m b m o n i c o e decisivo sujeito do p o l t i c o ( 7 ) .

    O t r a o fundamental do pensamento p o l t i c o que se gerou na moder-nidade e que perpassa todas as suas tentativas, embora n o no mesmo grau, que as c o n c e i t u a e s e f ins do p o l t i c o , como suas concretiza- e s ern i n s t i t u i e s , so essencialmente referidas n o mais ordem c s m i c a , mas ao homem enquanto n i c o sujeito do mundo. Trata-se, portanto, na modernidade, de uma " a n t r o p o l o g i z a o " radical de to-do pensar, t a m b m do pensar p o l t i c o , que vai encontrar na tematiza- o da pergunta transcendental na f i losofia de Kant sua maior expli-c i t a o . D a porque Kant vai poder dizer, com r a z o , que todas as perguntas da f i losofia se reduzem pergunta: que o homem?(8).

    O pensamento p o l t i c o moderno significa, portanto, a e m e r g n c i a da subjetividade como centro de gravidade a partir de onde o p o l t i c o pensado. No entanto, a p r p r i a d i s t i n o entre o natural e o produzi-do, o c o n s t r u d o , vai durante t o d o o pensamento p o l t i c o moderno chamar a a t e n o para certos elementos que c o n d u z i r o , no f i m do p e r o d o que examinemos, a uma nova ruptura de horizonte de pensa-mento: vai-se passar de um horizonte a n t r o p o c n t r i c o - s u b j e t a l para um horizonte h i s t o r i o c n t r i c o - r e l a c i o n a l , o que se vai explicitar com toda clareza a partir de Hegel(9). O horizonte h i s t o r i o c n t r i c o vai emergir de uma c r t i c a parcialidade de ambos os horizontes anterio-res: de entrada, reconhece-se na reviravolta a n t r o p o c n t r i c a um passo n e c e s s r i o , embora insuficiente do pensamento, uma vez que o antro-pocentrismo n o capaz de atingir a verdadeira d i m e n s o da vida hu-mana, ou seja, o p r p r i o processo de a u t o - g e s t o , portanto, a h i s t -ria. A q u i emerge uma nova t i c a de c o n s i d e r a o da totalidade: n o

    42

  • mais a totalidade enquanto cosmos, nem t a m b m simplesmente a t o -talidade enquanto totalidade para a subjetividade, mas totalidade en-tendida enquanto processo h i s t r i c o , a partir de onde a p r p r i a subje-tividade deve ser pensada. A partir de Hegel, o pensamento ocidental efetua aquilo que p o d e r a m o s chamar a "reviravolta historiocentrica" do pensamento ocidental, nela que, de uma maneira definit iva, o eixo da r e f l e x o f i l o s f i c a passa da subjetividade para a h i s t r i a , en-quanto r e l a o entre subjetividade e objetividade. Se para o pensa-mento c o s m o c n t r i c o , o sentido se determina a partir da ordem c s -mica e no pensamento a n t r o p o c n t r i c o , a subjetividade a i n s t n c i a doadora de sentido a t u d o , na perspectiva historiocentrica a h i s t r i a a fonte de d e t e r m i n a o do sentido: ela n o , portanto, o outro da r a z o , como no pensamento m e t a f s i c o c l s s i c o , mas a r e v e l a o e a e f e t i v a o da r a z o , do sentido. E n t o , a h i s t r i a se vai transformar no horizonte a partir de onde tudo pensado: homem, sociedade, cultura, p o l t i c a . Deus, etc. Neste sentido, a r e f l e x o p o l t i c a vai ex-perimentar t a m b m uma nova reviravolta: n o mais a subjetividade f in i ta o centro a partir de onde tudo pensado no p o l t i c o , mas a p r p r i a h i s t r i a enquanto r e v e l a o e e f e t i v a o da racionalidade. Pa-ra o pensamento grego, o agir p o l t i c o encontrava sua norma na or-dem c s m i c a , na modernidade na autonomia do sujeito, na p s - m o -dernidade na racionalidade imanente ao p r p r i o processo h i s t r i c o . O p o l t i c o , pois, de agora em diante, pensando no momento do pro-cesso h i s t r i c o enquanto r e v e l a o (polo subjetivo) e e f e t i v a o (polo objetivo) de um sentido fundamental.

    b) E m e r g n c i a de um novo t i p o de saber

    A m e t a f s i c a c lssica se constitui em P l a t o , a t r a v s da d i s t i n o en-tre o conhecimento s e n s v e l e o conhecimento racional. O conheci-mento s e n s v e l capta o singular, o f t i c o , o casual, o m u t v e l . A t r a v s do "nous" o homem se ergue acima deste caos e capta o universal, o s u p r a s e n s v e l , o normativo, a c o n f i g u r a o permanente, ou seja, nu-ma palavra, o "eidos", a e s s n c i a . Captar a e s s n c i a significa situar o ente no t o d o ; e n t o , a e s s n c i a indica o lugar fundamental, a p o s i o , a s i t u a o de algo no todo da realidade, entendida enquanto ordem c s m i c a . O e s p e c f i c o da r a z o situar qualquer realidade no seio da totalidade. Nesta v i s o vai consistir a suprema r e a l i z a o do ser hu-mano, pois a c o m p r e e n s o , segundo os gregos, a forma e s p e c f i c a da r e a l i z a o da vida humana, a t r a v s de que o homem se distingue radicalmente dos outros seres. A c a p t a o do sentido, a verdade a forma de p r x i s especificamente humana, isto , o interpretar o real

    43

  • tence ao ser do homem enquanto tal . Contudo, nem sempre est em jogo, expressamente, o humano enquanto tal . Isto ocorre, sobre-t u d o , no saber a respeito da totalidade e de sua e s t r u t u r a o , quando o homem tematiza o t o d o , onde j sempre se encontra enraizado. Neste saber a n i c a finalidade o p r p r i o saber, a verdade em si mes-ma. A c o n t e m p l a o da verdade emerge, assim, como a suprema reali-z a o do homem. O saber , eminentemente, contemplativo, situacio-nal. nele que o homem se situa no todo e por ele encontra sua au-t o - r e a l i z a o . Pensar , portanto, aqui, participar no Todo a t r a v s de sua v i s o , de sua c o n t e m p l a o e tal saber a u t r q u i c o , isto , ele tem um f i m em si mesmo, que se justif ica por si mesmo. um saber a t r a v s do qual o homem, ultrapassando sua p r p r i a c o n t i n g n c i a e particularidade, coincide com a raiz de t u d o ; neste sentido que a teoria, no sentido a r i s t o t l i c o da palavra, aquela atividade a t r a v s do qual o homem atinge uma vida livre, soberana, plena de sentido.

    A reviravolta a n t r o p o c n t r i c a da modernidade vai fazer emergir, no ocidente, uma nova c o n c e p o de saber, na medida em que vai cons-t i t u i r , em c o n t r a p o s i o a esta racionalidade contemplativa da tradi- o , uma nova racionalidade, a racionalidade instrumental(IO). Nesta nova perspectiva, o saber tem uma outra s i g n i f i c a o na vida do ho-mem, como t a m b m uma e s t r u t u r a o nova. Numa perspectiva cos-m o c n t r i c a , o saber subordinado ao ser; o e s p r i t o humano, que tematiza a ordem c s m i c a , e s t ele mesmo inserido, situado no Todo do Ser e dele recebe seu sentido. Com a reviravolta a n t r o p o c n t r i c a , o pensamento, o saber, a c o n s c i n c i a se destaca e se c o n t r a p e ao To-do das coisas: emerge a radical s e p a r a o entre sujeito e objeto, e pouco a pouco a subjetividade emerge como lugar de d e t e r m i n a o do sentido de tudo. Sendo assim, o saber se vai entender cada vez mais como ato a t r a v s do qual a subjetividade se i m p e sobre o mun-do objet ivo: n o se trata mais agora de contemplar as coisas em sua i n s e r o na ordem c s m i c a , mas antes de possibilitar o senhorio da subjetividade sobre as coisas. D a porque este saber n o conhece mais propriamente coisas, isto , entes cujo sentido se esclarece a partir de uma s i t u a o no t o d o , mas justamente transforma os entes do pensa-mento c l s s i c o em objetos, isto , em algo para a subjetividade, sobre o que ela pode dispor. O saber deixa de ser a r e v e l a o do ser dos en-tes para se transformar num projeto de sua p o s s v e l m a n i p u l a o . Is-to muda, por completo, a s i g n i f i c a o do saber na vida humana: antes o saber era uma atividade a u t r q u i c a , que tinha valor em si mesma, cujo sentido n o estava em algo fora dela mesma, mas se justificava por si mesma e por ela o homem atingia, em sua suprema forma, a au-

    44

  • tarquia, a vida soberana. Agora, o saber adquire um c a r t e r eminente-mente instrumental, o p e r a t r i o : ele n o tem sentido em si mesmo, mas est em f u n o do processo de i m p o s i o do sujeito sobre o mundo. Neste sentido, ele se encontra intimamente ligado q u i l o que chamamos de t rabalho( l 1), ou seja, o saber se liga agora ao que pode-r a m o s chamar a d i m e n s o natural do homem. O homem se sabe en-volvido no mundo da alteridade, no mundo do n o - s u j e i t o , no mun-do da natureza. Como ser universal, ele se revela dependente da natu-reza o portador de necessidades naturais que precisam ser satisfeitas a t r a v s de objetos naturais. E n t o , como todo ser vivo natural, ele trabalha para conservar a vida, ele i n t e r v m no mundo das coisas na-turais para se apropriar delas. No entanto, o trabalho do homem al-go de novo no mundo dos vivos, pois o homem se posiciona diante da natureza como sujeito e a trabalha para t r a n s f o r m - l a em algo ade-quado a seus fins. Pelo trabalho, o homem i m p e seus f ins natureza e a faz, neste sentido, profundamente marcada por ele. O novo saber se compreende a si mesmo m e d i a o neste processo de t r a n s f o r m a o dos objetos naturais em f u n o do homem. Neste sentido, e l e uma atividade instrumental: ele se justifica pela c o n t r i b u i o que pode dar ao projeto manipulador do homem sobre a natureza. A c i n c i a que surge na modernidade tem como objetivo conseguir i n f o r m a e s que permitam ao homem alargar seu controle sobre a natureza. Trata-se, aqui, de um saber de c a r t e r t e c n o l g i c o , ou seja, um saber marcado e estruturado a partir do interesse t c n i c o da d o m i n a o e da mani-p u l a o do n o - h u m a n o ( 1 2 ) . Esta perspectiva constitui para o saber moderno um novo quadro de r e f e r n c i a a partir de onde a realidade interpretada: ele constitui uma t i c a nova, um novo contexto de sen-t i d o a partir de onde tudo visto, pensado, determinado em sua sig-n i f i c a o . Poder-se-ia dizer que e s t em jogo aqui um processo de ins-t r u m e n t a l i z a o universal na medida em que tudo determinado em sua s i g n i f i c a o a partir do "apriori instrumental", t e c n o l g i c o . Isto vai ter c o n s e q n c i a s importantes tanto para a e s t r u t u r a o do saber p o l t i c o , como para a p r p r i a c o n c e i t u a l i z a o do que seja o p o l t i c o .

    O modelo moderno de saber, elaborado e experimentado, em primei-ro lugar, no m b i t o das c i n c i a s da natureza, a p a r e c e r durante toda a p o c a moderna, como paradigma a ser realizado t a m b m no campo das c i n c i a s do homem. N o se pode reduzir o pensamento p o l t i c o moderno a uma c i n c i a e m p r i c a , que tenta aplicar ao n v e l do p o l t i -co a estrutura do saber c i e n t f i c o - e x p e r i m e n t a l , articulado no m b i t o da c i n c i a da natureza. Estamos, neste p e r o d o , ainda em fase de t r a n s i o , em que se faz f i losofia p o l t i c a a partir de um horizonte novo, o a n t r o p o c n t r i c o , como t a m b m j se tenta elaborar o saber

    45

  • p o l t i c o a partir de um novo estatuto, o da racionalidade instrumen-tal . Esta racionalidade faz aparecer o p o l t i c o numa t i c a inteiramen-te diversa da tradicional: a polis para os gregos era algo o n t o l g i c o , isto , o p r p r i o ser do homem em sua suprema r e a l i z a o . O p o l t i -co, neste sentido, se revela como uma c o n f i g u r a o da vida c o m u n i t - , ria, que tem sentido em si mesma e, assim, atinge sua realidade e sua verdade. O p o l t i c o era visto como uma estrutura fundamental do ser humano e o saber p o l t i c o o considerava na medida em que ele era uma c o n t r i b u i o para a h u m a n i z a o do homem.

    Trata-se, portanto, de uma c o n s i d e r a o do p o l t i c o a partir de uma "racionalidade significativa": a tarefa era tematizar o sentido imanen-te realidade p o l t i c a , enquanto c o n d i o da humanidade do ho-mem. Na t i c a da nova c i n c i a do p o l t i c o , seu sentido o u t r o : o po-l t i c o n o revela mais um sentido absoluto, em si mesmo, mas um sentido funcional: ele se revela ocmo um aparato ou instrumento de um grupo ou de uma determinada sociedade em f u n o da r e g u l a o e o r d e n a o da vida social. Neste sentido, o p o l t i c o deixa de ser uma atividade a u t r q u i c a que possui sentido em si mesma, enquanto me-d i a o de humanidade e se torna uma atividade instrumental em fun- o de'um f i m que est a l m dela mesma(13). Numa palavra, ela ten-de a perder sua autonomia, seu sentido e s p e c f i c o e a ser reduzida a outras d i m e n s e s do homem. H qui um deslocamento fundamental das perguntas do saber p o l t i c o : enquanto no saber tradiconal, a per-gunta se dirigia ao sentido da p r p r i a c o n f i g u r a o da vida em co-m u m , na perspectiva da m e d i a o da humanidade do homem, agora a pergunta de ordem instrumental: que f u n o exerce o p o l t i c o na o r g a n i z a o da vida em sociedade, como a p e r f e i o a r a e x e c u o desta f u n o , ou seja, agora n o se trata s de explicar o funcionamento da realidade social, mas como t o r n - l a d i s p o n v e l i n t e r v e n o humana. A pergunta pela s i g n i f i c a o s u b s t i t u d a pela pergunta pelos meios. A partir de todas estas t r a n s f o r m a e s , que marcaram profundamen-te o pensamento p o l t i c o moderno, duas q u e s t e s que e s t o ligadas entre si se manifestam como centrais para este pensamento: a q u e s t o da soberania e a q u e s t o da liberdade. Teceremos algumas r p i d a s c o n s i d e r a e s a respeito.

    II

    a) A q u e s t o da natureza do poder o problema da soberania

    Os tempos modernos s o tempo das rupturas entre sujeito e objeto,

    46

  • homem e mundo, homem e Deus, etc. A modernidade se caracteriza pela e m e r g n c i a da subjetividade; o homem se volta sobre si e pensa tudo a partir de si. Liberdade significa aqui, em primeiro lugar, inde-p e n d n c i a de uma ordem c s m i c a , que determina o ser e o agir do homem. O n i c o fundamento do homem agora ele mesmo, que se descobre em sua absoluta individualidade e dignidade. Se assim, en-t o n o h uma ordem p o l t i c a natural p r v i a , que seja a suprema rea-l i z a o do homem, mas antes a q u e s t o do p o l t i c o surge ao homem moderno como aquela i n s t n c i a que c o n d i o de possibilidade da p r p r i a sociabilidade da subjetividade! 14). Portanto, a comunidade deixa de ser algo natural, para se tornar algo produzido pelo homem e a primeira pergunta neste contexto a das c o n d i e s de possibilida-de da comunidade enquanto tal e esta , precisamente, a pergunta pe-la soberania, que constitui tema central em toda a fi losofia p o l t i c a moderna. O p o l t i c o aparece agora como aquela i n s t n c i a que trans-forma uma m u l t i d o de i n d i v d u o s isolados num corpo, numa comu-nidade. A soberania vista como c o n d i o de possibilidade da uni f i -c a o dos i n d i v d u o s , sem o que nfo se pode falar de comunidade. O soberano , e n t o , esta e s p c i e de d e p o s i t r i o c o m u m , para onde con-f luem as vontades de todos os i n d i v d u o s . Tal v i s o a respeito da na-tureza do poder emerge a partir da nova objetalidade c o n s t r u d a pela modernidade: n o h mais simplesmente, como na a n t i g i d a d e grega, a passagem entre a vida familiar privada e a vida p b l i c a entendida como p a r t i c i p a o na c o n s t r u o da vida c o m u m . A atividade p o l t i -ca, na a n t i g i d a d e c l s s i c a , f o i entendida como o zelo pelo funciona-mento do Todo. Neste sentido, o homem moderno perdeu sua "pol i-t icidade" original e se entende, em primeiro lugar, como ser inserido na sociedade, isto , num contexto onde impera o a r b t r i o do i n d i v -duo em busca da s a t i s f a o de suas necessidades.

    O primeiro problema posto aqui de como superar o isolamento do i n d i v d u o que sozinho n o consegue satisfazer suas necessidades e, portanto, como l e v - l o a uma a s s o c i a o que lhe garanta s e g u r a n a e comodidade. N o existindo mais sociabilidade natural, a a s s o c i a o pactuai surge como modelo p o l t i c o por e x c e l n c i a : i n d i v d u o s , que buscam essencialmente seus p r p r i o s f ins, s o , a t r a v s do pacto, inse-ridos numa totalidade que tem como finalidade sua p r e s e r v a o e a garantia da igualdade e da dignidade de t o d o homem. Isto significa a e m e r g n c i a do i n d i v d u o enquanto tal na esfera do p o l t i c o , pois o p o l t i c o pensado a partir do i n d i v d u o como aquela i n s t n c i a que capaz de garantir a individualidade do i n d i v d u o , suprindo ao mesmo tempo suas d e f i c i n c i a s pela c o n s t i t u i o do corpo intersubjetivo. D a a a f i r m a o de Hegel(15) de que o p r i n c p i o do estado moderno

    47

  • o p r i n c p i o da liberdade subjetiva, do querer individual. Sua neces-sidade deduzida, em l t i m a a n l i s e , de um direito do i n d i v d u o : o direito de conservar-se a si mesmo, que uma c o n s e q n c i a da p r -pria c o n c e p o do homem como subjetividade, isto , auto-posse. A s a d a de uma tal subjetividade de si mesma e a c o n s t i t u i o de uma comunidade de subjetividades mediada pela s u b m i s s o de todas as subjetividades a uma vontade c o m u m : neste sentido, o problema cen-tral do pensamento p o l t i c o moderno o problema da p r p r i a consti-t u i o da sociabilidade humana; portanto, n o o problema da confi-g u r a o da cidade, que a r e a l i z a o natural do homem, mas o pro-blema da p r p r i a c o n s t i t u i o da cidade, como a s s o c i a o de subjeti-vidades. O poder emerge, assim, como c o n d i o de possibilidade da sociabilidade e politicidade humanas. De agora em diante, n o se po-de mais falar em sociedade e em comunidade sem r e f e r n c i a ao po-der, soberania como sua c o n d i o de possibilidade. , precisamen-te, neste contexto que a partir de Hobbes so elaboradas as diferentes v e r s e s da teoria do pacto de a s s o c i a o .

    b) A q u e s t o da liberdade

    A modernidade significou o retorno do homem a si mesmo e sua po-sio como ser radicalmente diferente de tudo mais. Em que consiste fundamentalmente esta d i f e r e n a ? Precisamente nisto, que o homem n o se encontra completamente atrelado a uma ordem c s m i c a uni-versal, que determina previamente seu ser e seu agir, mas um ser que se possui a si mesmo. Neste sentido, a liberdade se tornou o pro-grama fundamental da humanidade na modernidade. J em 1670, no primeiro grande escrito da liberdade dos tempos modernos, Espinosa se empenha na defesa da l i b e r a o da s u p e r s t i o e da o p r e s s o p o l -tica, mostrando que a liberdade n o estorva nem o estado, nem a reli-g i o , mas pelo c o n t r r i o , o reconhecimento da liberdade que possi-bil i ta a verdade de ambas. Desde e n t o , a liberdade se vai tornar tema central da fi losofia p o l t i c a e Espinosa p e o problema da liberdade em n t i m a r e l a o com o problema da soberania! 16).

    T a m b m sua r e f l e x o se faz a respeito da i n s t a u r a o do corpo p o l t i -co, que para ele n o se realiza a t r a v s de um pacto, mas a t r a v s de uma d i s t r i b u i o proporcional de poder individual na busca da cons-t i t u i o do poder coletivo, portanto, da soberania. Ora, precisamente o que distingue uma f o r a p o l t i c a de outra a proporcionalidade es-tabelecida entre o poder soberano e os poderes individuais. Trata-se, aqui, acima de t u d o , na c l a s s i f i c a o das f o r a s p o l t i c a s , de detectar

    4 8

  • quando uma fora poltica mais livre do que outra. O critrio fun-damental para isto a transcendncia do poder soberano em relao aos poderes individuais, ou seja, uma cidade tanto mais livre quanto menos o poder possa ser ocupado por um cidado ou grupo de cida-dos. Aqui se manifesta com clareza a reviravolta do pensamento po-ltico em relao tradio clssica: o tema fundamental no , como na tradio, simplesmente a justia, mas a liberdade, que a causa l-tima da instaurao do poltico e, portanto, origem da atividade pol-tica. A liberdade se torna, assim, o horizonte a partir de onde se vai realizar a reflexo poltica dos tempos modernos. Examinaremos, ra-pidamente, sob este ponto de vista, a posio de trs pensadores que ainda hoje exercem enorme influncia em nossa reflexo poltica: Kant, Hegel e Marx.

    1. KANT

    A filosofia de Kant levou explicitao plena a revoluo antropo-centrica do pensamento moderno. A tarefa da filosofia, para ele, con-siste no retorno transcendental subjetividade finita como funda-mento de possibilitao de todo conhecimento e de todo agir huma-nos. O homem aparece, aqui, como a instncia doadora de sentido a tudo. Que o homem, ento, para Kant?

    Em primeiro lugar, ser terico, isto , subjetividade, que transforma os estmulos do mundo em objetos do conhecimento, articulando as-sim o sentido do mundo. Deste modo, as potncias cognoscitivas do homem dependem dos estmulos do mundo e sua funo consiste em oferecer o horizonte de determinao destes dados. Enquanto tal, es-to a servio do dado, fora de si mesmas. Nem o entendimento nem a razo, na ordem da teoria, esto em si mesmos, pois fundamental-mente dependentes do outro de si. Por outro lado, a prxis, para Kant, significa o retorno da razo a si mesma, na medida em que o movimento circular entre racionalidade e sensibilidade, que caracteri-zou o nvel da teoria, substitudo por um movimento linear da sen-sibilidade para a racionalidade. o nvel de prxis moral, que se rea-liza a libertao do homem para aquilo que lhe prprio, ou seja, a liberdade entendida como autonomia. A caracterstica fundamental da razo pura prtica que ela se determina unicamente a partir de si mesma, ou seja, independente dos impulsos da sensibilidade. Liberda-de , portanto, para Kant, essencialmente, auto-determinao, pura posse da razo por si mesma. justamente nesta dimenso que emer-ge a dignidade do ser humano: enquanto ser racional e livre, ele um

    49

  • ser que se possui a si mesmo, por isto no pode nunca ser completa-mente possudo por outros, tratado como simples meio, massempre fim em si mesmo. Sua vontade lei para si mesmo, e por isto inde-pendncia de tudo que no seja ele mesmo, autonomia pura. Nesta perspectiva, aparece o valor absoluto do homem como ser moral, isto , como pessoa. O homem pertence ao reino da natureza e, neste sen-tido, um ser condicionado, inserido num contexto de determinao universal. Mas tambm um ser pertencente ao mundo noumenal, ao mundo da liberdade e da razo. possvel uma mediao entre na-tureza e liberdade, entre teoria e prxis? Esta a questo fundamen-tal da filosofia da histria de Kant, que vai levantar a questo se possvel ver um sentido no curso histrico! 17). A questo fundamen-tal de Kant saber se o homem conquista sua humanidade, ou seja, razo e liberdade e neste contexto da histria enquanto mediao entre natureza e liberdade que vai emergir o sentido do poltico para Kant, enquanto contribuio para a humanizao do horpem. Kant parte da natureza e nela encontra um fio condutor para a considera-o da questo central da vida humana: sua realizao como ser livre. Este fio condutor a finalidade da natureza enquanto tal, sem a qual ela no pode ser pensada. Para Kant, a matria, enquanto organizada, implica necessariamente o conceito de fim natural, assim que a natu-reza inteira um sistema seguindo as regras dos fins. Ora, o fim lti-mo da natureza o homem enquanto ser racional, isto , enquanto ser dotado de uma causalidade teleolgica, enquanto ser moral. O ho-mem assim o fim supremo da natureza, sem o qual seria impossvel pensar a natureza como o sistema de fins subordinados uns aos ou-tros. Aqui est o cerne da filosofia da histria em Kant: a histria o processo teleolgico atravs do qual a lei moral, como pura exigncia inteligvel, toma posse, pouco a pouco, do homem como ser empri-co. A histria emerge como um processo de moralizao da realidade emprica da vida humana, atravs do qual o homem atinge razo e li-berdade. Qual a contribuio especfica do poltico neste processo? A poltica para Kant no a moralizao da existncia humana, mas sua tarefa consiste em criar as condies de possibilidade da realiza-o do homem como ser racional e livre. Cabe ao poltico constituir o meio que tornar possvel a efetivao da liberdade do homem. A meta da vida humana a racionalizao, ou seja, a efetivao da liber-dade e isto o fim supremo da natureza. Como a natureza leva o ho-mem a seu fim supremo?

    A natureza se serve do prprio antogonismo de foras, que caracteri-za a existncia humana. O homem, enquanto subjetividade, marca-do por uma dupla tendncia: a tendncia a socializar-se, pois s em

    50

  • comum ele pode realizar suas disposies e a tendncia a afirmar-se a si mesmo na auto-suficincia de sua subjetividade. Esta tendncia provoca de tal modo a violncia universal que ela acaba forando os homens a superar este estado de liberdade selvagem em troca de uma liberdade baseada no direito. A grande tarefa da espcie humana, ou seja, a humanizao do homem passa pelo estabelecimento de uma sociedade jurdico-civil, que administre o direito de modo universal, portanto, pelo estabelecimento de uma autoridade aceita por todos e que promova e garanta a vida em comum. A grande tarefa, portanto, da sociedade civil, ou do Btado, garantir, atravs da autoridade, a liberdade do homem, tanto no nvel interno das naes, como no n-vel externo das relaes internacionais. A natureza s tem condies de desenvolver as disposies do homem vida livre atravs do esta-belecimento de uma constituio poltica. A conflitividade da exis-tncia utilizada pela natureza para o estabelecimento de uma legali-dade que deve abrir o verdadeiro espao para a realizao do homem, isto , o espao da moralizao. Portanto, tambm em Kant, esto in-timamente ligadas a questo da soberania e a questo da liberdade. Tendo situado o problema do poltico na perspectiva da histria en-quanto mediao da humanidade do homem, Kant vai abrir espao para a reviravolta historiocntrica do pensamento explicitamente rea-lizada na filosofia hegeliana.

    2. HEGEL

    Hegel compreendeu que a grande tarefa da filosofia em seu tempo pa-ra pensar como unidade o que tinha constitudo o centro de conside-raes de duas grandes pocas do pensamento ocidental: a razo que foi o cerne da reflexo da metafsica clssica e a liberdade, como o princpio da filosofia nos tempos modernos. Da a sua definio da filosofia, que uma considerao racional de tudo, como a cincia da liberdade(18). Para fazer isto, Hegel vai ter que romper com o pressu-posto bsico de todo o pensamento ocidental, isto , o da contraposi-o entre razo e histria. A histria no mais vista aqui como o ou-tro da razo e por isto como um acontecer interminvel de fatos. No h mais o pressuposto bsico do pensamento grego, que marcou todo o ocidente, ou seja, ser = imutabilidade, eternidade. Pelo contrrio, o nico pressuposto, diz Hegel, que o filsofo traz considerao da histria o pensamento da razo, ou seja, que a razo domina o mun-do, que a histria mundial no simplesmente um amontoado dispa-ratado de ocorrncias, mas habitada por sentido, por razo, por um rumo que estrutura toda a histria e permite razo subjetiva de-

    51

  • tectar nos acontecimentos um sentido radical em efetivao(19). He-gel procura superar dialeticamente as posturas cosmocntrica e antro-pocentrica a partir de uma crtica de sua parcialidade. Ele louva a re-viravolta antropocentrica dos tempos modernos, por ela ter feito emergir a subjetividade finita como mediao de sentido. Mas, para Hegel, a considerao que a filosofia moderna faz da subjetividade parcial, pois no existe subjetividade pura, enquanto pura identidade consigo mesma. O homem no posse direta e imediata de si, mas um feixe de relaes e um processo atravs do qual ele conquista sua humanidade. A subjetividade se auto-gera gerando, com outras objeti-vidades, um mundo objetivo, ou seja, a subjetividade chega a si mes-ma atravs das mediaes, atravs do caminho indireto da construo do mundo intersubjetivo. A histria o imenso processo atravs do qual o homem se faz a si mesmo, atravs da construo de obras e da tomada de conscincia de si enquanto compreenso das obras como suas realizaes. Que est em jogo neste processo? Qual a significao da histria? Para Hegel, a partir da reviravolta historiocntrica, o sen-tido da histria no est para alm da histria, mas verdade da pr-pria histria, que nela emerge. Nas lies sobre a filosofia da Histria, Hegel define a histria, ento, como o "progresso na conscincia da liberdade"(20). O homem no tem histria, ele histria, ou seja, ele se faz na histria e compreende o que faz; nesta perspectiva, a hist-ria a revelao de um sentido, que se faz sempre mais claro, da o progresso. Este sentido s oode ser pensado como a efetivao daqui-lo a partir de onde se torna possvel pensar a prpria existncia do homem como superando o plano do puramente natural, ou seja, co-mo liberdade. O sentido deixa de ser algo puramente formal, subjeti-vo; o prprio movimento relacionai entre sujeito e objeto, que cons-tui o processo histrico, dotado de uma fora diretriz, de uma fora interna, que se revela como liberdade. A filosofia emerge, aqui, como a memria da prpria histria, sua auto-conscincia: tarefa do fil-sofo detectar a racionalidade radical da histria. A filosofia aparece, deste modo, como a radicalizao de um momento essencial da hist-ria, que a conscincia, a reflexo atravs da qual explicitada para o homem a significao, o sentido presente em seu agir histrico(21).

    Hegel v na liberdade a determinao do sentido radical do processo histrico, que o movimento atravs do qual pela exteriorizao, pe-la construo de um mundo objetivo, o homem medeia seu ser, pre-cisamente quando nesta exteriorizao, o homem chega a si, identifi-cando-se com estas obras, vendo nelas obras suas, e no poderes estra-nhos, que o dominam. neste sentido que a liberdade o "Bei-sich-selbst-sein" (o estar junto a si) do homem, enquanto ser espiritual.

    52

  • Ora, se a histria se transformou no centro de gravidade do pensa-mento, a partir da histria que Hegel vai pensar o poltico, elevai considerar as realizaes econmicas, sociais e polticas luz da ra-cionalidade fundamental que perpassa a histria, ou seja, luz da problemtica da efetivao da liberdade. Hegel pensa o poltico no contexto da problemtica do Direito, que para ele a liberdade reali-zada(22). Neste sentido, o tema da filosofia do Direito o da realiza-o da liberdade nas diferentes esferas da vida humana. A partir da estrutura fundamental do pensamento dialtico, Hegel pensa a reali-zao da liberdade em trs nveis: a) no plano da universalidade abs-trata do homem que, pela instituio jurdica reconhecido como proprietrio. Trata-se aqui do homem enquanto indivduo livre. Te-mos, para Hegel, neste nvel, o plano mais primitivo da efetivao da liberdade objetiva, ou seja, a efetivao da liberdade atravs do direi-to da propriedade e neste nvel que se situa, para Hegel, a teoria do direito natural moderno; b) mas o homem no se relaciona apenas com as coisas exteriores: ele sujeito, isto , relao a si enquanto ser moral. Este o campo da efetivao da liberdade enquanto liberdade subjetiva, que o grande princpio da filosofia de Kant; este o nvel da particularidade, que se caracteriza pela separao entre a liberdade subjetiva e o mundo exterior; c) por fim, atinge-se o contexto no qual o homem desde sempre est inserido em busca de sua realizao: o nvel da universalidade concreta, da totalidade concreta da vida comunitria. Esta vida comunitria se desdobra em trs momentos fundamentais; so estes trs momentos totalidades, porm, integra-dos na totalidade maior, ou seja, famlia, sociedade civil e estado, o qual se revela, ento, como a suprema efetivao da razo e da liber-dade. Hegel define o estado como a "realidade da idia tica". A idia tica nada mais do que a unidade dos dois momentos funda-mentais: a existncia imediata, objetiva, no ethos, no mundo dos cos-tumes e das instituies e a existncia mediata, subjetiva, na auto-conscincia dos indivduos. Este dois momentos constituem a realida-de da idia tica. Qual a substncia da eticidade? Para Hegel, como j vimos, a liberdade. Tanto na ordem externa do mundo objetivo e natural criado pelo homem, como no mundo subjetivo de sua cons-cincia; trata-se acima de tudo, da efetivao da liberdade. Ento, nesta perspectiva, o estado emerge como aquela realidade na qual o indivduo particular supera o mundo dos interesses particulares e se eleva a uma universalide que, por sua vez, se tornou efetiva nas estru-turas objetivas, isto , nas leis e nas instituies.

    Esta ltima concretizao da liberdade, para Hegel, s possvel quando ocorre aquilo que para ele comeou a acontecer no estado

    53

  • moderno: a) de um lado, o extremo desenvolvimento do princpio da subjetividade. Trata-se aqui do reconhecimento do direito dos in-divduos e de seus interesses particulares. A liberdade s se pode rea-lizar plenamente naquele contexto onde a pessoa, em sua absoluta singularidade, respeitada e levada a um pleno desenvolvimento de si mesma; b) por outro lado, a pessoa deve superar sua particularidade e se reintegrada na substncia universal. O especfico do estado, para Hegel, enquanto efetivao da liberdade, esta unificao entre o particular e o universal, entre subjetividade da pessoa e objetividade das instituies e das leis, numa palavra, entre liberdade subjetiva e li-berdade objetiva, entre indivduo e comunidade(23). Enquanto tal, o estado no um ideal subjetivo a ser realizado, ele no se situa na or-dem do dever-se, mas do ser, porm no enquanto realidade empri-ca, observvel, mas enquanto entelqueia, ou seja, enquanto sentido, que suporta a histria humana. O que Hegel pretende, pensando o es-tado, decifrar, na oportunidade do curso histrico, uma fora plena de sentido, de razo, que se efetiva. Como diz B. Quelquejeu, o esta-dp hegeliano nada mais do que "a captao profunda do vetor sen-sato da histria"(24).

    3. MARX

    Marx se situa no mesmo horizonte historiocntrico aberto por Hegel, sendo contudo, seu grande crtico. O primeiro problema que se pe ao considerarmos o pensamento de Marx a questo de como situ-lo. Pode-se dizer que, de certo modo, Marx questiona no s a filoso-fia poltica de Hegel, mas todo o pensamento ocidental, quando fala do poltico. Onde se situa o discurso poltico de Marx?

    Para poder situ-lo com relao tradio, retornamos a Hegel. Quan-do Hegel fala do poltico, ele de certo modo, retorna s origens do pensamento ocidental, vendo no poltico a presena de sentido, de razo. O poltico visto, assim, como uma realizao histrica e so-cial do homem, atravs da qual o homem medeia seu ser. Qual , para Hegel, a contribuio especfica do poltico para a auto-realizao do homem enquanto tal? Como vimos, o que, em princpio, est em jo-go no poltico enquanto tal a busca da unidade entre o particular e o universal, ou seja, entre a liberdade subjetiva do indivduo, com seu saber individual e seus fins particulares, com a liberdade objetiva ou substancial na linguagem de Hegel, assim que o estado para ele a realidade do querer substancial, ou seja, aquela conciliao enquan-to liberdade do indivduo e da comunidade, de tal modo que por um

    54

  • lado o indivduo plenamente respeitado em sua singularidade into-cvel, mas por ouro lado, ele atinge sua objetividade, sua verdade, sua destinao na medida em que leva uma vida universal, isto , se empe-nha, com outros sujeitos, na construo comum de um mundo que torne possvel o mtuo reconhecimento da dignidade da liberdade. neste sentido, enquanto conciliao do indivduo e da comunidade, como concretizao da liberdade, que o estado se revela como a su-prema sociabilidade humana e assim como o fim ltimo da vida hist-rica dos homens. Neste sentido, para Hegel, construir a histria construir o estado, enquanto construo de um espao de reconheci-mento universal. Se isto constitui a politicidade como dimenso, es-trutura fundamental da vida humana, no entanto ela se faz realidade, se faz existncia atravs de mediaes, ou seja, atravs de uma insti-tuio cuja finalidade especfica a relizao do fim da vida poltica. isto o que Hegel chama de o "estado poltico" propriamente dito, que enquanto tal uma instituio entre outras, portanto, algo parti-cular, instrumental, cuja funo a execuo d politicidade origi-nal(25). A respeito do Estado poltico levanta-se a questo: realiza ele seu fim, ou seja, ele instrumento da universalidade, ou antes, mascaramento de interesses particulares, que se apresentam como universais?

    Aqui se situa, propriamente, a reflexo de Marx: seu grande mrito , embora no tendo elaborado plenamente uma teoria do estado(26), ter conseguido mostrar que o estado de modo algum realizao dos interesses universais, mas antes o instrumento da classe dominante para impor os seus interesses a toda a sociedade na aparncia da uni-versalidade. Marx situa suas consideraes do poltico na tica de sua anlise econmica das formaes sociais: o estado no o universal que se distingue da sociedade civil, mas ele reflete em si mesmo o es-tado das relaes sociais, que se determinam a partir da base econ-mica. E neste sentido, ele emerge como um aparelho da classe domi-nante precisamente com a finalidade de reproduzir seu domnio. O cerne da doutrina poltica de Marx consiste em ver o poder poltico como o poder de uma classe organizada para oprimir outra classe. En-quanto que para Kant, o poltico condio de auto-realizao do humano como ser livre, para Hegel, a efetivao da liberdade, para Marx, o poltico negao da liberdade do homem enquanto instru-mento de opresso, que tem suas razes nas relaes de produo.

    As foras polticas concretas podem ser empiricamente bastante va-riadas, o poltico, no entanto, sempre o mesmo: ditadura da classe dominante, pois o estado sempre ditadura de classe. Marxistas e no

    55

  • marxistas esto, em geral, de acordo na afirmao da falta, no pensa-mento de Marx, de uma teoria acabada do poltico(27). Isto pode ser entendido de diferentes modos: o primeiro deles seria afirmar que as consideraes feitas por Marx sobre o poltico precisam de uma ela-borao maior uma vez que Marx apenas esboou afirmaes sobre o poltico ou mesmo talvez apenas ps os fundamentos a partir de on-de deveria elaborar uma teoria do poltico. Outros vo muito mais longe: Marx teria perdido, atravs de suas justas anlises sobre o pol-tico como instrumento, o sentido do poltico enquanto tal. Ele teria reduzido o poltico a uma fase no processo histrico de auto-gnese do homem, destinado a desaparecer quando fosse eliminada a causa radical da alienao humana. O poltico no seria mais uma estrutura fundamental da existncia, mas algo destinado a desaparecer quando o homem tivesse condies de assumir em suas mos seu destino. Es-tas afirmaes levantam questes graves no s em relao ao pensa-mento de Marx, mas reflexo poltica enquanto tal. Que significa perder o sentido do poltico enquanto tal, enquanto estrutura da existncia humana? No implicaria esta perspectiva um retroceder a uma iluso, que Marx desmascarou? A interpretao dada por K. Hartmann filosofia de Hegel nos ajuda a explicitar o sentido latente nestas objees(28).

    Para Hartmann, toda a filosofia poltica de Hegel tenta responder a uma nica pergunta: pode a liberdade ser objetiva? Ou ela algo ex-clsivamente subjetivo, ligado ao mundo do sujeito, do indivduo? A crtica que Hegel faz filosofia transcendental de Kant e Fichte , precisamente, por eles terem reduzido a liberdade a algo puramente formal, subjetivo. Pode-se dizer que a liberdade no algo subjetivo, mas que a comunho de liberdades individuais constitui algo ontol-gico especificamente novo em relao s individualidades? possvel pensar liberdade como sociabilidade plural? Todo o problema de He-gel est aqui, independentemente da soluo que ele possa ter apre-sentado. Sua inteno propor, dentro da tica historiocntrica, uma teoria ontolgica do social, isto , uma teoria que se recusa a pensar o social simplesmente a partir do indivduo singular como o nico real, mas que reconhece o carter da realidade sociabilidade enquanto tal, o que Hegel chamou de "Universal concreto". Isto muda comple-tamente a perspectiva de pensar o problema da liberdade. Assim, por exemplo, Kant entendia a liberdade como autonomia, como auto-de-terminao do indivduo, a partir da lei moral. A sociabilidade, para ele, no constitui uma esfera ontolgica prpria, mas apenas um instrumento: ela se concretiza enquanto constituio jurdico-social, que institui uma comunho entre liberdades singulares atravs da res-

    56

  • trio de seu campo de atuao l onde elas se chocam. A sociabilida-de pensada aqui apenas negativamente, enquanto limitao d liber-dade individual. Ela no tem uma realidade em si mesma, no se pode falar ainda de um "Status" positivo da liberdade social.

    No fundo, a crtica de Hegel teoria moderna do pacto de associao se situa tambm aqui: ela no fala propriamente da natureza do esta-do, mas de sua gnese; o pacto apenas reproduz o interesse do indiv-duo, portanto no atinge o verdadeiro Universal. Ou seja, com estas teorias, no se pode, em princpio fazer nenhuma afirmao positiva do social. O social no , em si, uma realidade prpria, mas ele pen-sado a partir do indivduo,

  • ou seja, da instituio que tem como tarefa executar os fins da politi-cidade humana. A teoria marxiana do poltico reduz-se a um nomina-lismo do social, ou possvel tambm ler em Marx uma ontologia do social?

    Contudo, mesmo que se afirme ter Marx uma viso ontolgica do es-trutural, no pensa ele o estrutural reducionisticamente, ou seja, co-mo diz Habermas, ele no reduz o pripriamente social ao econmico na medida em que pensa a interao humana a partir do padro da produo enquanto relao homem-natureza?(29).

    A tradio moderna e ps-moderna do pensamento poltico nos pe ainda hoje diante de questes fundamentais, para quem quer elevar seu prprio tempo ao nvel do conceito, para falar com Hegel. Sem dvida, em circunstncias diferentes, as grandes questes levantadas por este pensamento ainda so, embora de modo diferente, as nossas questes: a questo da soberania, a questo da liberdade, a questo da tica historiocntrica e, por fim, a questo da articulao de uma reflexo sobre a sociabilidade poltica enquanto estrutura humana fundamental com a anlise da funo do estado em nosssas socieda-des.

    N O T A S

    ( 1 ) Veja a respeito desta transformao: E. Voegelin, Order andHistory, 3 vol., Lousiana, 1957; A nova cincia da poltica, Brasl ia, 1979. J. Habermas, "Die Klassische Lehre von der Polltik in ihrem Verhaeltnis zur Sozialphilo-sophie" em: Theorie und Praxis, Neuwied am Rhein e Berlin, 1969, pg. 13 e ss. H.C. de Lima Vaz, Antropologia e Direitos humanos em: Ene. com A Civ. Bra. 1 (1978) 33-64.

    ( 2 ) Vj.: J. P. Vernant, Mytheetsocieten Grceancienne. Paris, 1974;/4sor/-gens do pensamento grego, So Paulo 1972. W. Hennis, Politik und prak-tische Philosophie, Neuwied, 1963. J. RitXer, Zur Grundiegung der prak-tischen Philosophie, vol. II, Freiburg, 1974, pg. 479 e ss. V. Ehrenberg, Der Staat der Griechen, Zuerich-Stuttgart, 1965.

    { 3 ) Vj.: M. Heidegger, Einfehrung in die Metaphysik, Tuebingen, 1966.

    ( 4 ) Vj.: M. Mueller, Existenzphilosophie im geistigen Leben der Gegenwart, Heideiberg, 1964, sobretudo pg. 18 e ss.

    58

  • ( 5 ) Vj.: Ritter, Die Lehre vom Ursprung und Sinn der Theorie bei Aristteles em: Metaphysik und Politik. Studien zu Aristteles und Hegel, Frartkfurt am Main, 1969, pg. 9 e ss. G. Bien, Die Grundiegung der politischen Phi-losophie bei Aristteles, Freiburg-Muenchen, 1973.

    ( 6 ) Vj. a respeito: M. Mueller, Philosophische Grundiagen der Politik em: Er-fahrung und Geschichte. Grundzuege einer Philosophie der Freiheit ais transzendentale Erfahrung, Freiburg-Muenchen, 1971, pg. 323-343.

    ( 7 ) Macpherson procurou mostrar como a concepo moderna do sujeito se li-ga a uma concepo individualista. Vj. a respeito: C. B. Macpherson, A teo-ria poltica do individualismo possessivo de Hobbesa Locke, Rio de Janei-ro 1979.

    ( 8 ) I.Kant,Z.os./ 24,25, 26, 27.

    ( 9 ) A respeito do pensamento de Hegel, como o lugar onde se realiza a revira-volta historiocntrica v].: H. C. de Lima Vaz, Por que ler Hegel hoje? em: Boletim Seaf 1 (1982) 61-76, Belo Horizonte.

    (10) A respeito da "racionalidade instrumental" ocmo a racionalidade, que ain-da marca nosso contexto histrico vj: M. Horkheimer, Zur Kritik der ins-trumentellen Vernunft. Ausden Vortragen und Aufzeichnungen seit Krieg-sende, Frankfurt am Main, 1974. J. Habermas, Erkenntnis und Interesse em: Technik und Wissenschaft ais "Ideologie", Frankfurt am Main, 1969, pg. 146 e ss. J. Ladrire, Os desafiosda racionalidade cientfica. O desafio da cincia e da tecnologia s culturas, Petrpolis, 1979; Filosofia e prxis cientfica. Rio de Janeiro, 1978.

    (11) Vj.: J. Habermas, Arbeit und Interaktion. Bemerkungen zu Hegels Jenenser "Philosophie des Geistes"em: op. cit. pg. 9-47.

    (12) Vj.: H. Marcuse, Der eindimensionale Mensch. Studien zur Ideologie der fortgeschrittenen Industriegeselischaft, Neuwied e Berlin, 1967, sobretudo pg. 139e ss.

    (13) Vj.: J. Habermas, Verwissenschaftliche Politik und oeffentiiche Meinung em: op. cit. pg. 120e ss. M. Riedel, Herrschaftund Geselischaft. Zum Le-gitimationsproblem des Politischen in der Philosophie em: Rehabilitierung der praktischen Philosophie, vol. II, Freiburg, 1974, pg. 235 e ss. W. Roed, Rationalistisches Naturrecht und praktische Philosophie der Neuzeit em: ibid. vol. I, Freiburg, 1972, pg. 269 e ss.

    (14) Vj. a respeito: B. de Jouvenel, As origens do estado moderno. Rio de Janei-ro;G. Lebrun, O qrue^opoyer, col. Primeiros Passos, So Paulo, 1981.

    (15) G. W. F. Hegel, Grundlinien der Philosophie des Rechts, 258, ed. J. Hoff-meister, Hamburg, 1955.

    59

  • (16) Vj.: M. Chau , Matemtica, experincia e poltica em: Almanaque (1979) e 30 e ss; Poltica e profecia em: Discurso 10 (1979) 111-159.

    (17) Vj.: G. Lebrun, Une Eschatologie pour Ia Morale em: Manuscrito 2 vol. II (1979) 43-65. Fco. J. Herrero, Religin e histria ert Kant, Mdrid 1975. J. A. Glanotti, Kant e o espao da histria universal em: Discurso 10 (1979) 7-48.

    (18) G. W. F. Hegel, Enzyklopaedie der philosophischen Wisseschaften 1830, e. F. Nicolin e O. Poeggeler, Hamburg 1959, 384 A.

    (19) Vj.: H. C. de Lima \laz, Por que ler Hegel hoje? op. cit. pg. 64.

    (20) G. W. F. Hegel, Vorlesungen ueber die Philosophie der Weltgeschichte, vol. I, Die Vernunft in der Geschichte, pag. 63 (ed. J. Hoffmeister, Hamburg 1955): "Die Weltgeschichte ist der Fortschritt im Bewusstsein der Freiheit-ein Forstschritt, den wir in seiner Notwendigkeit zu erkennen haben".

    (21) G. W. F. Hegel, op. cit. pg. 28 e ss.

    (22) Vj.: S. Avineri, Hegel's Theory of modern state, Cambridge, 1972. K. H. Ilting, Hegel diverso: le Filosofie dei diritto dei 1818 ai 1831, Bari, 1977. M. Riedel, Materialien zu Hegels Rechtsphilosophie (ed.) 2 vol., Frankfurt am Main, 1975. B. Quelquejeu, La volont dans Ia philosophie de Hegel, Parjs, 1972. H. Ottmann, Individuum un Gemeinschaft bei Hegel, Band I: Hegel im Spiegel der Interpretationen, Berlin-New York, 1977. D. L. Ro-senfield. Poltica e Liberdade em Hegel, So Paulo 1983.

    (23) g. W. F. Hegel, Grundlinien op. cit. 257 e ss.

    (24) B. Quelquejeu, op. cit. pg. 309.

    (25) A respeito desta fundamental distino, no levada s ltimas conseqn-cias no pensamento hegeliano vj.: G. W. F. Hegel, op. cit. 257 e ss., 267, 269. K. Hartmann, Politische Philosophie, Freiburg-Muenchen, 1981, pg. 61 e ss.

    (26) Vj.: N. Bobbio, Existe uma doutrina marxista do Estado? em: O marxismo e o estado. Rio de Janeiro, 1979, pg. 13 e ss. Na mesma obra: E. Cerroni, Existe uma cincia poltica marxista?, pg. 55 e ss. L. Gruppi, Tudo come-ou com Maquiavel. As concepes de Estado em Marx, Engels e Gramsci, Porto Alegre 1980.

    (27) Vj.: M. Chau , Democracia e socialismo:participando do debate em: Cultu-ra e democracia. O discurso competente e outras falas, So Paulo 1980, pg. 1 n e ss.

    (28) Vj.: K. Hartmann, Die Marxsche Theorie. Eine philosophische Untersu-chung zu den Hauptschriften, Berlin, 1970; Die ontologische Option. Stu-dien zu Hegels Propaedeutik, Scheilings Hegelkritik und Hegels Phaenome-nologie des Geistes, Berlin 1976; Politische Philosophie, op. cit.

    60