14

Click here to load reader

Marco Azevedo IPA

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Marco Azevedo IPA

O PAPEL DA FILOSOFIA JUNTO À BIOÉTICA

Marco Antonio Oliveira de Azevedo*

[email protected]

A filosofia moral é usualmente dividida em metaética, teoria moral e

ética prática ou aplicada. Destas, a metaética é considerada a parte

filosófica por excelência. Stephen Darwall, em sua comunicação ao XX

Congresso Mundial de Filosofia, realizado em Boston, em 1988, refletiu

sobre a seguinte questão: se a Metaética é a parte especificamente

filosófica da Ética, por que (ao menos assim ocorre nos Estados Unidos)

a Ética ainda é alocada junto a Departamentos de Filosofia (Darwall,

1999)? Considere-se o caso da Física. Filósofos não estudam (ao menos

não como filósofos) Física, e sim “Filosofia da Física”. A física teórica é

uma disciplina distinta e independente da filosofia. Ora, em sentido

análogo, apenas a Metaética é a “Filosofia da Ética”. Por que, então,

deveríamos assumir que a Ética, entendida aqui como “teoria ética”,

“ética teórica” ou mesmo como “teoria ética normativa”, assim como a

parte hoje conhecida por “ética aplicada”, seria ou deveria ser

considerada uma parte (não independente, portanto) da Filosofia?

A conclusão de Darwall foi de que, ao contrário das ciências naturais e

sociais, a Ética não gira fora da filosofia, e nem deveria! A razão seria

que questões normativas não são inteiramente independentes de

questões filosóficas sobre a natureza do valor e da obrigação.i Assim, a

ética, em sentido geral, precisa integrar questões de ética normativa e

questões metaéticas.ii Questões de ética normativa não são, portanto,

inteiramente independentes de considerações metafísicas sobre a ética.

* Centro Universitário Metodista – IPA. Telefone para contato: (51) 33325498 - Endereço: Rua Cel. Paulino Teixeira 338 apto 202, Bairro Rio Branco, Porto Alegre (RS), Cep. 90420-160.

Page 2: Marco Azevedo IPA

Sabemos, porém, que houve um tempo em que a filosofia compreendia

o conjunto do conhecimento humano. Assim era durante a antiguidade e

boa parte da idade média. Contudo, na medida em que as várias

ciências passaram a desenvolver sua própria metodologia, e na medida

igualmente em que o método experimental tornou-se o padrão

metodológico no âmbito especialmente das ciências naturais e, em boa

parte, também no âmbito das ciências humanas e sociais (como a

psicologia, e ciências sociais como a antropologia e a ciência política, por

exemplo), essas ciências tornaram-se, em maior ou menor grau,

independentes da filosofia. Atualmente ninguém discordaria de que é

plenamente possível fazer física teórica sem ocupar-se com temas de

filosofia da física. E por quê? Ora, ao menos uma das razões é que

discordâncias em filosofia das ciências não chegam a afetar a confiança

no método experimental empregado por tais disciplinas (de fato, esta é

a explicação dada por Darwall). Isso parece evidente no caso de ciências

como a Física. Há inúmeros outros casos em que isso também ocorre de

modo paradigmático. Considere-se o caso das Ciências Médicas. Não há

dúvidas de que há vários temas e alguns até mesmo bastante

controversos em filosofia das ciências médicas. (Isso é verdadeiro

mesmo se seguirmos Edmund Pellegrino e concordarmos com ele de que

há uma diferença entre o que deveríamos chamar de “filosofia da

medicina” e o que, por outro lado, deveríamos caracterizar como

“filosofia das ciências médicas”. No caso da “filosofia da medicina”, a

controvérsia é ainda maior do que em filosofia das ciências médicas.iii)

Porém, tais considerações epistemológicas ou metodológicas, e mesmo

considerações sobre os fundamentos éticos da atividade profissional

médica, não chegam a afetar a confiabilidade nos fundamentos

metodológicos da pesquisa clínica ou epidemiológica em medicina. De

fato, no caso da medicina, não chegam sequer a afetar a confiabilidade

na ética profissional médica. A visão de Darwall, enfim, é de que o

Page 3: Marco Azevedo IPA

método científico pode continuar sendo empregado independentemente

dessas disputas filosóficas sobre sua lógica e fundamento geral. Ou seja,

ainda que existam disputas sobre se certa teoria científica deva ser

interpretada em termos realistas, isto é, se a função das explicações

científicas é fornecer melhores explicações aos fatos ou resultados de

experimentos, ou em termos meramente instrumentais, como o melhor

instrumento ou meio para predizê-los, tem pouca relevância para a

prática científica (Darwall, 1999, p. 20).iv

Ocorre que em ética não há consensos metodológicos, muito menos

teóricos. Há diferentes propostas teóricas e metodológicas em ética.

Como decidir corretamente? Considere-se o caso da Medicina. Como

realizar um bom estudo clínico? Não há grandes divergências sobre isso

atualmente. De fato, em Medicina, há cada vez mais consensos

metodológicos sobre como realizar bons estudos clínicos.v No entanto,

em ética, não há consensos análogos. Há, é verdade, um grupo de

teorias morais influentes (dentre elas, o contratualismo inspirado

especialmente em Hobbes, o deontologismo moral kantiano e as éticas

baseadas em direitos, as teorias utilitaristas, entre uma variedade de

outras). Tais teorias procuram responder questões sobre como as

pessoas devem agir, ou desejar, sentir, ou mesmo, ser (tal como é

explorado pelas várias éticas das virtudes) (Darwall, 1999, p. 21).

Porém, há dissensos radicais entre tais teorias. Deontologistas morais

kantianos (ou inspirados em Kant) divergem radicalmente de

conseqüencialistas e, especialmente, de utilitaristas, e vice-versa (com a

exceção, talvez, de Richard Hare e outros que acreditam haver uma

simbiose entre o utilitarismo e as teses de grandes filósofos como Kant

e Mill). Eticistas da virtude questionam as teorias modernas e

contemporâneas, recomendando um retorno a considerações clássicas

sobre que tipo de vida é um exemplo de vida boa ou bem realizada

(Anscombe, 1958). Defensores de visões baseadas em “direitos”

Page 4: Marco Azevedo IPA

também são críticos aos utilitaristas (aliando-se, nesse aspecto, aos

kantianos), porém criticam a ênfase em princípios e normas imperativas

não ancoradas em direitos (usualmente interpretados por esses não

como imperativos, mas como enunciados assertóricos) (Azevedo, 2006).

Mesmo teorias ecléticas como a teoria principialista, muito respeitada

em bioética, são questionadas. O conceito, por exemplo, de “deveres

prima facie” é visto por alguns filósofos como vago, ou mesmo equívoco,

por confundir obrigações atuais e reais com obrigações apenas

potenciais (dizer que posso estar obrigado a respeitar alguém não é o

mesmo que dizer que estou de fato obrigado).vi Assim, não é de se

surpreender que nos temas mais polêmicos existam divergências

radicais. Temas como o aborto, a eutanásia, o suicídio, o uso de

embriões em pesquisa, a ética aplicada aos animais, ainda são temas

polêmicos, sobre os quais não há consenso e nem previsão de consenso.

Em outras palavras, onde se esperaria que a teoria moral pudesse

auxiliar a resolver impasses, a existência de várias teorias rivais de fato

dificulta mais do que auxilia.vii Consensos práticos somente existem

quando há grandes consensos científicos embasando rotinas já tornadas

tradicionais. Questões de ética com animais não impedem os cientistas

de usar animais em seus experimentos. A ética que lhes serve de base

não é propriamente a teoria ética, e sim algo bem mais rotineiro e

despretensioso. A lei e certos códigos ou regras de biossegurança é que

regulam tais procedimentos.

Darwall não chega a fazer essa distinção que aqui faço entre a prática

científica e o respeito a certas normas amplamente admitidas como

válidas ou corretas e a teoria moral propriamente dita. Mas certamente

o que estou sugerido está de acordo como o que ele propõe. Isto é, o

que chamamos teoria ética ou teoria moral certamente não se reduz ao

estudo das leis, normas e códigos que orientam a prática profissional e

científica. Por isso, vale a analogia com a Física teórica. Assim, por que

Page 5: Marco Azevedo IPA

a Ética não conforma uma disciplina autônoma? Por que a Ética ainda é

considerada uma disciplina ou área filosófica por excelência?

Vamos admitir, até para fins de argumento, que Darwall tem toda a

razão. Não há como, ao menos não atualmente, separar o estudo da

ética normativa da filosofia. Questões de teoria normativa envolvem

considerações metaéticas substantivas. Fazer teoria normativa sem

filosofia (isto é, sem fazer metaética, metafísica e, em boa medida,

epistemologia) não é fazer boa teoria normativa. Divergências em ética

normativa são divergências teóricas profundas. Questões sobre como

devemos viver se associam a considerações filosóficas sobre o que é o

bem (se há algo que se possa chamar de “bem”, em geral, ou se

somente há “bem” sob certos modos, ou ainda se o bem não é nada

além de uma projeção de nossos desejos). Se há o bem, devemos

também considerar se podemos efetivamente conhecê-lo ou não, e,

nesse aspecto, qual o papel das virtudes. Sobre o que são virtudes, é

preciso entender se virtudes são qualidades do caráter e se podemos ou

não explicar efetivamente condutas humanas por elas. Afinal, será que

não estamos enganados ao atribuir virtudes a pessoas, e se isso for

verdade, ao avaliarmos nossas condutas, não estaríamos empregando

noções e termos sem correspondência real, isto é, noções simplesmente

falsas? Nesse caso, seria preciso desenvolver, junto com Mackie (1977),

uma boa “teoria do erro”. Do contrário, é preciso adentrar em terrenos

metafísicos, já o que entendemos por “bem” e por “virtude”

corresponderiam a aspectos objetivos, sendo que essa objetividade

poderia consistir em fatos ou aspectos do mundo, ou ainda, tal como

sustentou Hume, em fatos acerca de nós mesmos. Além disso, se faz

sentido falar em “deveres morais”, afinal, o que queremos dizer quando

afirmamos que alguém está “obrigado a fazer algo” (estaríamos

afirmando algo ou estaríamos simplesmente emitindo uma ordem, um

imperativo)? Não estaríamos, em termos correlatos, dizendo que

Page 6: Marco Azevedo IPA

alguém tem um direito a que algo seja (ou não seja) feito? Nesse caso,

qual a diferença entre um “dever estrito” e um “dever moral”, ou

“prático”? E ao falarmos em justiça, estaríamos nos referindo a uma

virtude social? Nesse caso, deveríamos poder imaginar arranjos

distributivos em conformidade com o que é justo. Mas poderiam tais

arranjos sociais pretensamente justos poderiam contrariar exigências

individuais por justiça corretiva ou comutativa. O que entendemos,

afinal, por justiça?

De fato, há uma grande variedade de questões metaéticas ligadas a

temas de teoria moral. Darwall parece ter razão, enfim, de que a teoria

moral não pode desenvolver-se adequadamente fora de um ambiente

filosófico. Em termos acadêmicos, faz sentido manter a Ética como área

própria da filosofia. De fato, faz sentido “mantê-la”, já que a ética

sempre foi uma área da filosofia. Mesmo que recentemente estudiosos

de áreas irmãs, como a sociologia e a ciência política, aleguem fazer

teoria ética e não meros estudos descritivos, é mais razoável que, como

disciplina, a ética teórica não se afaste de Departamentos ou de

graduação e pós-graduação em Filosofia.

Mas e quanto à Bioética? Darwall não considera em seu ensaio o caso

dessa recente “disciplina”. Faria sentido concluir que, assim como ocorre

com a Ética, que a Bioética também é uma área própria da filosofia?

Certamente, não. Mas é preciso entender isso, pois não são poucos os

que afirmam que a Bioética é uma parte da Ética. Darley Dall’Agnol, por

exemplo, entende a Bioética como parte da Ética Prática, e a Ética

Prática, como vimos, é certamente parte da Ética (Dall’Agnol, 2005, p.

9). Beauchamp e Childress tomaram (veja nota 2 acima) seu estudo

como um estudo em ética normativa, e já que não há como separar

rigidamente a ética normativa da metaética, é razoável concluir que se

trata de um estudo, senão propriamente, ao menos principalmente

filosófico (ou, no sentido de Darwall, um tipo de estudo em ética prática

Page 7: Marco Azevedo IPA

ou aplicada que somente frutifica caso orientado pela filosofia). Se

considerarmos a visão de Peter Singer (1993), a Ética Prática e com ela

o que se chama Bioética (Peter Singer já foi duas vezes presidente da

Associação Internacional de Bioética) são, sim, partes da Ética, e, logo,

da Filosofia.viii Porém, não é verdade que o que hoje é chamado de

Bioética, especialmente em nosso país, seja parte inseparável da

Filosofia.

A Bioética é certamente uma nova disciplina, mas, ao passo que a Ética

é certamente uma disciplina historicamente ligada à Filosofia, e, como

disciplina, ainda atualmente ministrada e pesquisada

predominantemente em Departamentos ou Cursos de Filosofia, a

Bioética não surgiu dentro dos Departamentos de Filosofia. A Bioética,

como disciplina, ainda que inicialmente bastante estimulada e praticada

por filósofos, nasceu fora do meio acadêmico filosófico.

Isso não significa dizer que filósofos não tratavam de temas de ética

aplicada ou mesmo exatamente dos temas que hoje são compreendidos

como temas típicos de Bioética. Elizabeth Anscombe, Philippa Foot e

Judith Jarvis Thomson, por exemplo, já debateram e escreveram sobre

temas espinhosos de “bioética”, como a eutanásia e o aborto, bem como

sobre temas teóricos correlatos, como o Princípio do Duplo Efeito.ix

Ronald Dworkin já escreveu um livro sobre os mesmos temas,

intitulados inclusive como temas do “domínio da vida” (1993). Nenhum

deles, porém, apresentou-se a seus leitores como “bioeticista” e sim

como filósofo. Mary Warnock, hoje Baronesa Warnock, foi seguramente

uma das figuras mais importantes na história dos eventos associados à

Bioética no Reino Unido (dada sua eminente função de Presidente do

Comitê que produziu o famoso Relatório que orientou a posição do

governo britânico sobre a pesquisa com embriões humanos e fertilização

assistida, na década de 80) (Warnock, 1985). Mary Warnock, em 1992,

também publicou um belo livro intitulado “Os usos da filosofia” sobre

Page 8: Marco Azevedo IPA

temas hoje classificados como temas de “bioética”, muito embora ela

não tenha empregado esta palavra em suas páginas (Warnock, 1994).

Isso sem falar nos clássicos. Questões de ética normativa aplicadas ao

tema da vida humana e animal são questões filosóficas desde a

antiguidade. Na era moderna, muitos filósofos trataram de temas

“bioéticos” (Hume, por exemplo, tratou diretamente do suicídio em um

famoso ensaio; Kant abordou o mesmo tema sob um ponto de vista

oposto em sua Metafísica da Moral). Mas isso não faz da bioética uma

área da filosofia. Por quê? Ora, porque justamente o que esses filósofos

fizeram foi ética filosófica, e de forma freqüentemente integrada

(questões de ética normativa e de ética prática, permeadas de reflexões

metaéticas, metafísicas e epistemológicas).

Beauchamp e Childress assinalaram inclusive que, até a década de 70,

trabalhos em “bioética” consistiam basicamente de ensaios ou artigos.

Vários temas eram tratados, tais como aborto, eutanásia e alocação de

recursos. Porém, não havia ainda nenhuma abordagem sistemática e as

discussões giravam em torno de seus temas específicos (Beauchamp &

Childress, 1994, p. 42, nota 26). Provavelmente, Beauchamp e Childress

referem-se aqui não somente a artigos escritos por intelectuais

envolvidos com a responsabilidade de decidir ou emitir conselhos

normativos solicitados por órgãos governamentais ou entidades

privadas. Creio que ele também estava se referindo aos trabalhos de

filósofos em ambiente estritamente acadêmico. Filósofos, portanto, já

tratavam de temas hoje classificados como temas de bioética, porém

dentro de ambientes acadêmicos e dirigindo-se a um auditório formado

por colegas filósofos; apenas ocasionalmente, artigos filosóficos eram

voltados a um público mais amplos. Não havia uma disciplina que

pudesse ser chamada de “bioética”. Ao que eu saiba, é justamente a

obra de Beauchamp e Childress que inaugura uma nova forma de

abordagem teórica sobre a ética aplicada, pois o que esses autores

Page 9: Marco Azevedo IPA

pretenderam foi produzir uma teoria normativa sistemática aplicada à

área das ciências e atividades profissionais que lidam diretamente com a

vida. Seu objetivo foi, segundo suas próprias palavras, “mostrar como a

teoria ética pode iluminar problemas em cuidados em saúde e pode

ajudar a resolver algumas limitações das formulações anteriores sobre

responsabilidade ética” (no caso, as limitações das abordagens

históricas ou sobre a ética exclusivamente profissional) (Beauchamp &

Childress, 1994, p. 3). Penso que a Bioética, como disciplina teórica,

somente surgiu a partir das discussões que se seguiram desse sucesso,

já da primeira edição, do livro Principles of Biomedical Ethics de

Beauchamp e Childress, em 1979, embora o que hoje é chamado de

Bioética tenha certamente surgido, como um movimento cultural, algo

antes da publicação desta obra seminal.

Mas há algo curioso nisso, pois o livro de Beauchamp e Childress é um

livro filosoficamente denso. Apesar disso, sua obra além de ter

estimulado, além de críticas teóricas, debates multidisciplinares,

estimulou também a busca por novos métodos para a orientar processos

de tomada de decisão, especialmente em medicina clínica. A Bioética,

com isso, tornou-se uma área de interesse tipicamente multidisciplinar e

prática. Além disso, o que passou a ser chamado de “Bioética” é bem

mais que uma mera disciplina acadêmica. Há, hoje, no mundo inteiro

uma “prática bioética”, algo notório dada a multiplicação de iniciativas

como os Comitês de Ética em Pesquisa e os Comitês de Bioética,

organizados de modo independente tanto dos espaços acadêmicos como

também das tradicionais comissões e organizações de defesa da ética

profissional.

O avanço do interesse em bioética fez com que filósofos passassem a

migrar também para departamentos ligados a escolas de medicina. Esse

foi o caso de Albert Jonsen, um dos mais importantes pensadores da

área até hoje. Jonsen tornou-se, apesar de originalmente professor de

Page 10: Marco Azevedo IPA

Teologia e Filosofia, professor da disciplina de “Ética Médica” na

prestigiada Faculdade de Medicina da Universidade do Estado de

Washington.x

A bioética, como atividade de reflexão normativa sobre a vida, surgiu

como disciplina a partir de demandas externas à filosofia. Embora nos

Estados Unidos, na Inglaterra, na Austrália, entre outros e muitos

lugares, existam muitos filósofos lidando com o tema, em nosso país há

um número muito pequeno, proporcionalmente, de filósofos tratando de

temas ligados à bioética. É possível que isso se explique pelo fato de

que a Bioética, como disciplina, tenha se tornado uma área tipicamente

multidisciplinar. Ora, não há muita tradição de inserção da filosofia

brasileira em áreas multidisciplinares. Filósofos acadêmicos mantêm

ainda a tendência de evitar confundir temas e questões filosóficas com

temas e questões não-filosóficas. Além disso, em nosso país, a Bioética

assemelha-se muito mais a um movimento político e cultural com pouca

ou fraca inserção acadêmica, o que também parece não interessar os

pesquisadores e professores de filosofia. A bioética, assim, parece não

se afigurar como uma área interessante para se fazer filosofia. Temas

metafísicos e metaéticos são temas áridos, e filósofos usualmente não

têm paciência para lidar com outras abordagens e com auditórios

plurais, os quais, do ponto-de-vista da filosofia acadêmica, são tidos

como leigos.

Deveríamos, contudo, nos perguntar se a afirmação de Darwall sobre a

necessária integração, junto à filosofia, entre metaética e ética

normativa, incluindo a ética aplicada ou prática, não faria sentido

também para o caso da Bioética. Em outras palavras, será que a

Bioética não se ressente de seu atual distanciamento relativamente à

filosofia?

Efetivamente, não faz sentido reivindicar para a Filosofia o monopólio ou

mesmo o domínio da disciplina de Bioética. Afinal, o surgimento de uma

Page 11: Marco Azevedo IPA

disciplina não advém dos planos engenhosos de qualquer mente

acadêmica criadora. A bioética, tendo nascido fora da filosofia,

dificilmente poderia vir a se tornar uma disciplina especificamente

filosófica. Contudo, penso que nem deveria! Embora faça sentido

reivindicar a ética para o berço da filosofia, com a bioética ocorre o

contrário. De fato, penso que a existência da bioética representa uma

rara oportunidade para que a filosofia possa promover-se fora de seus

domínios restritos. Trata-se de uma oportunidade concreta para que a

filosofia volte a ser, além de uma disciplina, uma atividade teórica

visceralmente voltada a questões práticas, como o clássico e

fundamental questionamento sobre o sentido e finalidade de nossa

própria existência (ou, no sentido que se tornou clássico desde os

gregos, acerca de questões sobre como devemos viver e que tipo de

vida exemplifica uma vida plena e realizada). Mas há outra razão para

que a filosofia aproxime-se mais da Bioética que não é, digamos, uma

razão especificamente prática.

Ocorre que as próprias discussões em Bioética não podem prescindir da

Filosofia também por razões teóricas. Se for verdade que há razões

epistêmicas para que a teoria ética não se afaste da filosofia, o mesmo

também vale para a Bioética, isto é, a bioética também não deve

afastar-se da teoria ética. Ora, como em teoria ética não há consensos,

e dificilmente eles ocorrerão em curto prazo (aliás, a depender da visão

metaética adotada, consensos em ética normativa jamais serão

alcançados), não há nem poderia haver consensos também em Bioética.

Assim, filósofos são imprescindíveis em Bioética. Além disso, falta boa

metafísica à Bioética. Temas difíceis como o aborto, a eutanásia, e

temas sobre a justiça na alocação de recursos em saúde não podem

prescindir de questionamentos de fundo, inclusive no árido terreno da

metafísica.

Page 12: Marco Azevedo IPA

Penso que a ausência da filosofia nos debates “bioéticos” atuais tende a

favorecer a consolidação de dogmas. E dogmas onde não há consensos

práticos são particularmente perigosos. Além disso, sem filosofia, a

Bioética, como disciplina, tende a reduzir-se a meros estudos

descritivos, onde questões pretensamente filosóficas são apresentadas

de forma lamentavelmente simplificada. Também, sem a filosofia, a

Bioética corre o risco de reduzir-se ao estudo e ensino de “guias

normativos”, espécies de “guidelines for ethical decisions”. Não penso

que haja problemas em se formular códigos e guias para tomadas de

decisão (eu mesmo já escrevi sobre isso). Porém, não se pode dizer que

essa atividade, assim mantida, possa ser corretamente caracterizada

como uma atividade “reflexiva”, “conceitual”, muito menos “filosófica”.

Assim, embora Bioética e Ética sejam disciplinas separadas, não

cabendo tratar a primeira como uma sub-área da segunda, o

distanciamento entre ambas é teoricamente prejudicial para a primeira,

além de penoso para a segunda.

BIBLIOGRAFIA

ANSCOMBE, G. E. M. Modern moral philosophy. Philosophy 1958 (53): 1-19.AZEVEDO, M. A. O. Bioética fundamental. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2002.AZEVEDO, M. A. O. Uma teoria moral baseada em direitos. In: SCHÜLER, FL & BARCELLOS, M. Fronteiras: arte e pensamento na época do multiculturalismo. Porto Alegre: Sulina, 2006, pp. 91-118.BEAUCHAMP, T. L. & CHILDRESS, J. Principles of biomedical ethics. 4a Edição, Oxford University Press, 1994.BRINK, D. Moral realism and the foundations of ethics. Cambridge University Press, 1989.CAPLAN, A. Does the philosophy of medicine exist? Theoretical Medicine 1992; 13(1): 67–77.DALL’AGNOL, D. Bioética. Jorge Zahar, 2005.DARWALL, Stephen. Why ethics is part of philosophy? The Proceedings of the Twentieth World Congress of Philosophy, Philosophy Documentation Center, Bowling Green University, 1999, pp. 19-28.

Page 13: Marco Azevedo IPA

DWORKIN, R. Life’s dominion: an argument about abortion, euthanasia, and individual freedom. Knopf, 1993.FOOT, Philippa. Virtues and vices: and other essay in moral philosophy. Oxford Press, 2003. GEACH, M. & GORMALLY, L. Human life, action and ethics: essays by GEM Anscombe. St. Andrews Studies in Philosophy and Public Affairs. Imprint Academic, 2005.JONSEN, A. R. & TOULMIN, S. The abuse of casuistry: a history of moral reasoning. Berkeley: University of California Press, 1988.JONSEN, A. R. The birth of bioethics. Oxford University Press, 2003.MACKIE, J. L. Ethics: inventing right and wrong. Penguin Books, 1977.PELLEGRINO, E. Theoretical Medicine and Bioethics 1998; 19: 315–336.SHARPE, Virginia A. & FADEN, Alan I. Medical harm: historical, conceptual and ethical dimentions of iatrogenic illness. Cambridge University Press, 1998.SINGER, P. Practical ethics. Cambridge University Press, 1993.THOMSON, J. J. Uma defesa do aborto. Filosofia Política, Nova Série, L &PM, 1988 (2): 106-123.WARNOCK, M. Os usos da filosofia. Papirus, 1994.WARNOCK, M. Question of Life: The Warnock Report on Human Fertilization and Embryology. Blackwell, 1985.

Page 14: Marco Azevedo IPA

i Para outra visão semelhante a de Darwall, veja-se David Brink (1989).ii Beauchamp e Childress afirmaram que “Ética” é um termo geral para os vários modos de compreensão e exame da vida moral. Assim, estudos puramente descritivos também fariam parte da Ética, além dos estudos propriamente normativos (a ética normativa e a ética prática). E o que dizer da ética filosófica, isto é, da metaética? Ora, em seu prestigiado livro, Beauchamp e Childress não deixam de examinar alguns temas metaéticos, bem como temas epistemológicos. Segundo esses autores, a metaética “envolve a análise da linguagem, conceitos e métodos de raciocínio em ética”. A metaética, porém, assim como os diversos estudos descritivos da moral (antropologia moral, sociologia moral, psicologia moral e história da moral, por exemplo), não é uma disciplina normativa. Estudos descritivos descrevem o que é o caso; estudos metaéticos descrevem o que é conceitualmente o caso (Beauchamp & Childress, 1994, p. 5). Porém, dizem também, “a ética normativa assenta-se pesadamente sobre a metaética” (idem), e assim como nenhuma distinção precisa poderia ser feita entre a ética prática e a ética normativa, também nenhuma linha clara pode ser traçada para distinguir a ética normativa da metaética. Assim, não somente não há, para Beauchamp e Childress, uma clara delimitação entre a ética normativa e a metaética, como, tal como assim sustenta Darwall, não poderia nem deveria haver. Suas opiniões são, enfim, bastante semelhantes. E como para Beauchamp e Childress, seu estudo sobre os princípios da ética biomédica deveria ser classificado como um estudo em ética normativa, pode-se inferir disso que, para ambos, trata-se igualmente de um genuinamente estudo filosófico.iii Para Edmund Pellegrino, a propósito, a filosofia da medicina inclui o estudo da ética da medicina, já que “medicina” aqui não é “ciência médica”, e sim uma profissão (Pellegrino, 1998). Sobre o tema, veja-se também Caplan (1992).iv Veja-se o caso da Biologia. Há vários e interessantes questionamentos em filosofia da biologia. Considere-se o caso da teoria da evolução. Há uma série de discussões sobre as implicações metafísicas da teoria da evolução. Dentre as alegadas implicações, algumas dizem respeito a temas chaves em filosofia da religião, por exemplo (veja-se o caso do conflito entre a teoria criacionista e o evolucionismo). Contudo, mesmo um biólogo que acredite piamente na doutrina criacionista, por exemplo, não precisa deixar de lado suas crenças para sentir-se à vontade ao estudar a evolução natural de uma espécie. A metodologia de estudo, compartilhada em comum com a maioria de seus colegas contemporâneos, pode ser empregada independentemente de quaisquer disputar filosóficas ou metafísicas.v Isso independentemente de ser verdadeiro que existam concepções metodológicas rivais em Medicina. Penso que este é o caso da Homeopatia e sua crítica à medicina clínica “alopática”. Todavia, a medicina clínica “alopática”, isto é, o modelo de medicina baseada em evidências clínico-epidemiológicas (também chamada de “medicina baseada em evidências”) é hoje largamente a prática científica e clínica dominante (Sharpe & Faden, 1998, pp. 214ss). Essa metodologia é usualmente admitida como modelo de cientificidade, e mesmo muitos homeopatas buscam comprovar suas hipóteses através de estudos orientados por modelos epidemiológicos clínicos.vi A propósito, veja-se a crítica de Searle a Ross, explorada no capítulo 1 de meu livro, Bioética fundamental (2002).vii Jonsen e Toulmin (1988) consideraram paradoxal o fato de haver mais consensos na prática que em matéria teórica. Sua visão é que teorias normativas não favorecem a prática da solução de dilemas morais concretos, que acabam sendo de algum modo solucionados por meio de discussões entre múltiplos especialistas, orientadas pela comparação de casos reais com casos paradigmáticos. Porém, para explicar esse fenômeno, Jonsen e Toulmin não deixam de formular uma teoria. Sua crítica ao modelo baseado em princípios e regras em favor do modelo casuístico não deixa de ser igualmente uma teoria moral normativa, igualmente controversa. De minha parte, devo ressaltar que o fato de que os Comitês consigam chegar mais facilmente a consensos caso não se envolvam em disputas teóricas não serve de evidência em favor da tese de que há poucas divergências práticas na ética, e de que a teoria somente serve para atrapalhar. É possível, todavia, que Jonsen e Toulmin tenham razão em que a existência desses consensos práticos indique algo de substancial sobre o modo como efetivamente racionamos em ética. O que nos leva ao domínio metaético da epistemologia moral, em favor justamente da tese de Darwall de que filosofia e prática normativa não podem ser atividades totalmente independentes.viii Na primeira seção do Capítulo 1 do livro Ética Prática, Peter Singer deixa-nos clara sua visão de que a Ética Prática trata de questões normativas e é uma aplicação da ética ou da moralidade.ix São muitos os artigos e trabalhos feitos por essas autoras sobre temas de ética prática. Muitos dos trabalhos de Anscombe foram reunidos em um belo livro editado por sua filha Mary Geach e por Like Gormally (2005), dentre estes: “Were you a zygote?”, “Embrios and final causes” e “Action, intention and ‘double-effect’” (para citar apenas alguns). O artigo de Philippa Foot, “Euthanasia”, de 1977, um clássico de ética aplicada, encontra-se publicado em Foot (2002), juntamente com outro não menos famoso, “The problem of abortion and the doctrine of the double effect”, de 1967. Judith Thomson escreveu nada menos do que um dos mais importantes artigos sobre o tema do aborto, “A deffence of abortion”, de 1971. Isso mostra que mesmo antes de se falar em “bioética”, grandes filósofos contemporâneos já estavam envolvidos em debates dessa natureza, e sem afastar-se da filosofia.x Jonsen conta esses detalhes em seu conhecido livro “The birth of bioethics” (2003). Neste livro, Jonsen relata um conjunto de eventos que acabaram por culminar no aparecimento da chamada “bioética”. Note-se que, como ministrante e agente dessa nova disciplina, a atividade de Jonsen deu-se substancialmente fora de Departamentos de Filosofia.