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Página | 62 Revista Transdisciplinar Logos e Veritas, Vol. 02, nº 08, 2015, pp. 62-78, ISSN 2318-9614 Émile Durkheim: o fato social e a consciência coletiva, elementos de Sociologia Gianriccardo Grassia Pastore Wellington Trotta Resumo: O artigo procura abordar, de forma sucinta, a obra de Émile Durkheim, suas influências, seus principais conceitos e método, tais como: fato social, consciência social, solidariedade orgânica e mecânica. Destaca-se que o pensamento durkheimiano é essencial para se compreender os fundamentos que sustentam as ciências sociais, por isso, ao lado de Marx e Weber, é um clássico. Palavras chaves: Durkheim. Sociologia. Fato social. Consciência coletiva. Solidariedade. Abstract: The article addresses, briefly, the Emile Durkheim´s production, his influences, his main concepts and methods, such as: social fact, social conscience, organic and mechanical solidarity. It is noteworthy that the Durkheimian thought is essential to understand the fundamentals that underpin the social sciences, so, along with Marx and Weber, it is a classic. Keywords: Durkheim, Sociology. Social fact. Collective consciousness. Solidarity. Introdução Não obstante poderem-se encontrar raízes do pensamento sociológico em Platão e Aristóteles, a Sociologia, enquanto disciplina, é filha do Iluminismo, da Revolução Francesa e da Revolução Industrial. Da Filosofia da História de Saint-Simon, que tanto viria influenciar August Comte, vem à ideia de desenvolvimento e progresso e a concepção de que a sociedade iria além do sentido de Estado. Outro fator relevante é a adoção dos métodos das ciências naturais para aquilo que viria a ser conhecido como Física Social. Aliado a isto estão as preocupações com os resultados advindos da Revolução Industrial, notadamente o aumento da população europeia e o seu empobrecimento. Pela primeira vez, os fenômenos deixavam de ser encarados como fruto da providência ou castigos divinos ou tampouco seriam algo natural, eram sim fruto de uma outra realidade que, por si só, era merecedora de um outro modo de ser estudada. Segundo Thomas Bottomore, a pré-história da Sociologia pode ser identificada entre os anos de 1750 e 1850, mais precisamente com a publicação do livro de Charles-Louis de Secondat, ou simplesmente Montesquieu, na sua famosa obra O espírito das leis, indo até os primeiros escritos de August Comte, Spencer e Marx (BOTTMORE, 1975, p. 20). De início, espelharam-se na Física e, posteriormente, na Biologia, já no século XIX. A sociedade, dessa forma, era vista como um todo orgânico.

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Revista Transdisciplinar Logos e Veritas, Vol. 02, nº 08, 2015, pp. 62-78, ISSN 2318-9614

Émile Durkheim: o fato social e a consciência coletiva, elementos de Sociologia

Gianriccardo Grassia Pastore

Wellington Trotta

Resumo: O artigo procura abordar, de forma sucinta, a obra de Émile Durkheim, suas

influências, seus principais conceitos e método, tais como: fato social, consciência social,

solidariedade orgânica e mecânica. Destaca-se que o pensamento durkheimiano é essencial

para se compreender os fundamentos que sustentam as ciências sociais, por isso, ao lado de

Marx e Weber, é um clássico.

Palavras chaves: Durkheim. Sociologia. Fato social. Consciência coletiva. Solidariedade.

Abstract: The article addresses, briefly, the Emile Durkheim´s production, his influences, his

main concepts and methods, such as: social fact, social conscience, organic and mechanical

solidarity. It is noteworthy that the Durkheimian thought is essential to understand the

fundamentals that underpin the social sciences, so, along with Marx and Weber, it is a classic.

Keywords: Durkheim, Sociology. Social fact. Collective consciousness. Solidarity.

Introdução

Não obstante poderem-se encontrar raízes do pensamento sociológico em Platão e

Aristóteles, a Sociologia, enquanto disciplina, é filha do Iluminismo, da Revolução Francesa e

da Revolução Industrial. Da Filosofia da História de Saint-Simon, que tanto viria influenciar

August Comte, vem à ideia de desenvolvimento e progresso e a concepção de que a sociedade

iria além do sentido de Estado. Outro fator relevante é a adoção dos métodos das ciências

naturais para aquilo que viria a ser conhecido como Física Social. Aliado a isto estão as

preocupações com os resultados advindos da Revolução Industrial, notadamente o aumento da

população europeia e o seu empobrecimento. Pela primeira vez, os fenômenos deixavam de ser

encarados como fruto da providência ou castigos divinos ou tampouco seriam algo natural,

eram sim fruto de uma outra realidade que, por si só, era merecedora de um outro modo de ser

estudada.

Segundo Thomas Bottomore, a pré-história da Sociologia pode ser identificada entre os

anos de 1750 e 1850, mais precisamente com a publicação do livro de Charles-Louis de

Secondat, ou simplesmente Montesquieu, na sua famosa obra O espírito das leis, indo até os

primeiros escritos de August Comte, Spencer e Marx (BOTTMORE, 1975, p. 20). De início,

espelharam-se na Física e, posteriormente, na Biologia, já no século XIX. A sociedade, dessa

forma, era vista como um todo orgânico.

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Da relativa paz que a Europa vivia e com o progresso material que a II Revolução

Industrial trazia – apesar das mazelas sociais –, urgiam análises que fossem mais concretas que

as abstrações da Filosofia. Durkheim, fortemente influenciado pelo positivismo, cria viver no

topo da chamada civilização. Os conflitos existentes eram vistos como necessários para o

progresso e para a ciência.

Considerado um dos pais da Sociologia, Émile Durkheim procura o objeto que seria

próprio da desta área, tentando afirmá-la através da negação das ciências que até então vinha

se espelhando, por isso encontra nos fatos sociais o objeto de estudo da Sociologia. Fortemente

influenciado por Spencer, é marca de seus primeiros trabalhos a influência de modelos

biológicos. De Espinas, retira aquilo que mais tarde seria conhecido como “consciência

coletiva”, é dele, também, a influência de que o social não se reduz ao psicológico. Era

preciso tratar do objeto da Sociologia não o reduzindo ao psicologismo ou biologismo, como

acontece, por exemplo, em um de seus mais famosos estudos, no qual o suicídio é tratado

como objeto da Sociologia, para além de seus componentes biológicos e psicológicos1.

Ressalta-se que essa separação feita por Durkheim é meramente para efeitos de estudos e que,

de forma alguma, o autor considerava que isso acontecesse de fato em sociedade.

1 - Elementos históricos

Émile Durkheim, sociólogo francês, viveu entre 1858 a 1917. Nasceu em Epinai, na

Alsácia. Descendendo de uma família de rabinos, iniciou seus estudos filosóficos na Escola

Normal Superior de Paris, transferindo-se depois para a Alemanha. Lecionou Sociologia em

Bordéus, primeira cátedra dessa ciência na França. Transferiu-se, em 1902, à Sorbone, para

onde levou inúmeros cientistas, entre eles seu sobrinho, Marcel Mauss, formando um grupo

que ficou conhecido como Escola sociológica francesa. Suas principais obras são: Da divisão

do trabalho social, As regras do método sociológico, O suicídio, Formas elementares da vida

religiosa, Educação e sociologia, Sociologia e filosofia e Lições de sociologia (obra póstuma).

Embora Comte possa ser considerado o primeiro formulador da Sociologia, Durkheim

é apontado como um dos primeiros grandes teóricos a emancipá-la da filosofia e a colocá-la

como disciplina científica rigorosa, uma vez que criou as condições para a consolidação da

Sociologia como ciência empírica e como disciplina acadêmica. O pensamento durkheimiano

1Ainda que trate a Sociologia como disciplina independente da biologia e da psicologia, a influência destas é

nítida com termos que perpassam toda sua obra, tais como: órgão, função, reino, organismo, morfologia, dentre

outros.

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foi fortemente influenciado pelos efeitos das revoluções Industrial e Francesa, bem como

pelas construções teóricas de Saint-Simon e Comte, além de ter clara influência do

racionalismo de Kant, do darwinismo, do organicismo alemão e do socialismo de cátedra.

Como legítimo representante da atmosfera filosófica do séc. XIX, Durkheim acreditava no

avanço gradual da humanidade para um estágio melhor de convivência, sustentando que a

sociedade industrial emergente exigia um novo sistema científico e moral, tendo a Sociologia

como “[...] a ciência das instituições, da sua gênese e do seu funcionamento”, ou seja, de

“toda a crença, todo o comportamento instituído pela coletividade”. Sua preocupação foi

definir com precisão o objeto, o método e as aplicações desta nova ciência. Em uma das suas

obras fundamentais, As regras do método sociológico, publicada em 1895, formulou com

clareza o tipo de acontecimento sobre o qual o sociólogo deveria se debruçar: o fato social

(objeto) como acontecimento registrado no interior da sociedade e que não depende da

vontade do indivíduo.

Durkheim buscou descobrir um método estritamente sociológico para estudar a

sociedade sob a ótica científica. A busca pela objetividade inspirou-se no procedimento

adotado pelas ciências naturais. Os cientistas sociais, na sua concepção, deveriam investigar

as relações de causalidade e regularidades com o fim de desvelar leis ou regras de ação para o

futuro. Esse procedimento segue rigorosamente certas limitações importantes, considerando

que: o cientista deve observar os fatos sociais percebendo-os como coisas, isso no sentido de

afastar sistematicamente as prenoções; deve também definir antecipadamente as coisas a

partir de características comuns e, em seguida, separar o seu objeto das manifestações

individuais. Analisar os fatos sociais como coisa significa observá-los como uma realidade

externa.

2 – Definição de fato social:

É um fato social toda a maneira de agir fixa ou não, suscetível de exercer

sobre o indivíduo uma coerção exterior; ou então ainda, que é geral na

extensão de uma sociedade dada, apresentando uma existência própria,

independente das suas manifestações individuais que possa ter

(DURKHEIM, 1974, p. 11).

Para Durkheim, o fato social é objeto da Sociologia assim como o corpo o é para a

medicina, e o movimento é para a Física. O fato social deve ser coisificado, isto é,

transformado em coisa, algo objetivo, suscetível de ser analisado, apreciado, medido,

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quantificado2 e observado. O fato social deve ser desprovido de interioridade, não pertencendo

ao mundo subjetivo, mas sim ao mundo objetivo social. Nesse sentido, afirma-se que o fato

social é sempre anterior e exterior ao indivíduo, reconhecido pelo seu poder de coerção externa

que exerce ou é suscetível de exercer sobre os indivíduos. Não podemos, no entanto, esquecer

que a coerção do fato social sobre os indivíduos se dá na totalidade de um determinado

agrupamento humano.

Segundo Durkheim, internaliza-se o processo de socialização como uma ilusão, pois

não “educamos nossos filhos como queremos. Somos forçados a seguir regras estabelecidas

no meio social em que vivemos.” (DURKHEIM, 1955, p. 47). As maneiras de agir são

transmitidas por meio da aprendizagem, por isso que os valores, crenças e modos de ser

possuem uma realidade objetiva, independente dos sentimentos ou da importância que alguém

possa lhes conferir. Por isso,

O devoto, ao nascer, encontra prontas as crenças e as práticas da vida

religiosa; existindo antes dele, é porque existem fora dele. O sistema de

sinais de que me sirvo para exprimir pensamentos, o sistema de moedas que

emprego para pagar as dívidas, os instrumentos de crédito que utilizo nas

minhas relações comerciais, as práticas seguidas na profissão, etc.

funcionam independentemente do uso que delas faço. (DURKHEIM 1974, p.

04),

Existem fatos pertencentes ao âmbito da consciência individual denominados de

fenômenos psíquicos, não partilhados por uma cultura, mas por uma só pessoa em

consonância com as circunstâncias objetivas em que está colocada. Exercem coação interna e

diferem do que Durkheim chamou de consciência coletiva, que pressupõe crenças e práticas

constituídas que procedem de uma organização social definida, chegando a cada um de nós

exteriormente e sendo suscetíveis de nos arrastar, mesmo que não se perceba o seu conteúdo

concreto. A consciência social é comum a todos os membros da sociedade ou, pelo menos, à

maior parte deles. A sociedade não é um somatório de indivíduos, mas uma síntese que só

adquire sentido no todo e não nas partes.

A coação que o fato social exerce é mais fácil de constatar quando há uma reação

externa direta da sociedade, como é o caso do direito, da moral, das crenças, dos usos e até da

moda. A coação nem sempre é tão evidente, poderá ser indireta, como a que exerce uma

2 É importante observar que, mesmo valendo-se da Estatística, Émile Durkheim jamais se subordinou a esta em

seus estudos.

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organização econômica. A generalidade configura a exterioridade da consciência individual; é

geral por ser coletiva e mais ou menos obrigatória. É um estado do grupo e se encontra em

cada parte porque, em geral, “recebemo-las e adotamo-las porque, sendo ao mesmo tempo

uma obra coletiva e uma obra secular, estão investidas de uma particular autoridade que a

educação nos ensinou a reconhecer e a respeitar” (DURKHEIM, 1973, p. 393). A

consciência comum ou coletiva significa o conjunto de crenças e dos sentimentos comuns à

média dos membros de uma mesma sociedade, formando um sistema determinado que tenha

vida própria.

Durkheim procura mostrar que a mentalidade do grupo não é a mesma que a

dos indivíduos; que os estados de consciência coletiva são distintos dos

estados de consciência individual. (...) os fenômenos que constituem a

sociedade têm sua sede na coletividade e não em cada um dos seus

membros. É nela que se devem buscar as explicações para os fatos sociais e

não nas unidades que a compõem (QUINTANEIRO, 1995, p. 18).

Durkheim ressalta que é importante a Sociologia estudar os fatos sociais para desvelar

sua causa e, sobretudo, revelar a função que desempenham, ou seja, a correspondência entre o

fato considerado e as necessidades gerais do organismo social. Os fatos sociais são

representações coletivas, o modo como a sociedade vê a si mesma e o mundo que a rodeia,

lançando mão de suas lendas, mitos, concepções religiosas e morais. As representações

coletivas são as bases de onde se originam os conceitos, traduzidos no vocabulário da

sociedade. Portanto, é fato social toda maneira de agir, fixa ou não, suscetível de exercer

sobre o indivíduo uma coerção exterior, que é geral na extensão de determinada sociedade,

apresentando uma existência própria, independente das manifestações individuais que possa

ter.

1.a - Características do fato social:

São três as características que Durkheim distingue nos fatos sociais. A primeira delas

é a coerção social (coercitividade), ou seja, a força que os fatos exercem sobre os indivíduos,

levando-os a se conformarem com as regras da sociedade em que vivem, independentemente

de suas vontades e escolhas. Essa força se manifesta quando o indivíduo adota um

determinado idioma, quando se submete a um determinado tipo de formação familiar ou

quando está subordinado a determinado código de leis.

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O grau de coerção dos fatos sociais se torna evidente pelas sanções a que o indivíduo

está sujeito quando contra eles tenta se rebelar. As sanções podem ser legais ou espontâneas.

Legais são as sanções prescritas pela sociedade, sob a forma de leis, nas quais se identifica a

infração e a penalidade subsequente. Espontâneas seriam as que aflorariam na decorrência de

uma conduta não adaptada à estrutura do grupo ou da sociedade a qual o indivíduo pertence.

Durkheim exemplifica esse último tipo de sanção: “se sou industrial nada me proíbe de

trabalhar utilizando processos e técnicas do século passado: mas, se o fizer, terei a ruína

como resultado inevitável” (DURKHEIM, 1974, p.3). A educação desempenha, segundo

Durkheim, uma importante tarefa nessa conformação dos indivíduos à sociedade em que

vivem, a ponto de, após algum tempo, as regras estarem internalizadas e transformadas em

hábitos.

A segunda característica do fato social é que ele existe e atua sobre os indivíduos

independentemente de sua vontade ou de sua adesão consciente, ou seja, ele é exterior aos

indivíduos (exterioridade). As regras sociais, os costumes, as leis já existem antes do

nascimento dos indivíduos; são a eles impostos por mecanismos de coerção social, como a

educação. Portanto, os fatos sociais são ao mesmo tempo coercitivos e dotados de existência

exterior aos indivíduos.

A terceira característica apontada por Durkheim é a generalidade. É social todo fato

que é geral, que se repete em todos os indivíduos ou, pelo menos, na maioria deles. Desse

modo, os fatos sociais manifestam sua natureza coletiva ou um estado comum ao grupo, como

as formas de habitação, de comunicação, além dos sentimentos e da moral.

É preciso, então, que o sociólogo, no momento em que determina o

objeto de suas pesquisas ou no decorrer de suas demonstrações, proíba

resolutamente a si próprio o emprego de conceitos exteriormente à ciência e

para fins que nada têm de científico (Idem, p, 28).

Uma vez identificados e caracterizados os fatos sociais, a preocupação de Durkheim

dirigiu-se para a conduta necessária do cientista a fim de que seu estudo tivesse realmente

base científica. Para Durkheim, como para todos os positivistas, não haveria explicação

científica se o pesquisador não mantivesse certa distância e neutralidade em relação aos fatos,

resguardando a objetividade de sua análise. É preciso que o sociólogo deixe de lado suas

prenoções, isto é, seus valores e sentimentos pessoais em relação ao acontecimento a ser

estudado, pois eles nada têm de científico e podem distorcer a realidade dos fatos. Dessa

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forma, procura Durkheim garantir à Sociologia um método tão eficiente como o desenvolvido

pelas ciências naturais, garantindo às pesquisas sociológicas um estatuto de ciência

radicalmente contrário às formulações eivadas de opiniões, juízos de valor individuais, que

podem servir de indicadores dos fatos sociais, mas que mascaram as leis de organização

social cuja racionalidade só é acessível ao cientista. Para se apoderar dos fatos sociais, o

cientista deve identificar, dentre os acontecimentos gerais e repetitivos, aqueles que

apresentam características exteriores comuns. Assim, por exemplo, o conjunto de atos que

suscitam na sociedade reações concretas classificadas como penalidades constituem os fatos

sociais ditos como crime.

2.2 – Fato Social e Consciência Coletiva

Vê-se que os fenômenos devem ser sempre considerados em suas manifestações

coletivas, distinguindo-se dos acontecimentos individuais ou acidentais. A generalidade

distingue o essencial do fortuito e especifica a natureza sociológica dos fenômenos. Toda

teoria sociológica de Durkheim pretende demonstrar que os fatos sociais têm existência

própria e independem daquilo que pensa e faz cada indivíduo em particular. Embora todos

possuam suas consciências individuais, seus modos próprios de se comportar e interpretar a

vida, notam-se, no interior de qualquer grupo ou sociedade, formas padronizadas de conduta e

pensamento. Essa constatação está na base do que Durkheim chamou de “consciência

coletiva”.

Enquanto conceito, consciência coletiva designa um todo de crenças, de sentimentos,

de ideias e de valores próprios de uma sociedade. Durkheim postula consciência coletiva como

organização das representações coletivas sob a forma de síntese, de acordo com as suas

manifestações nas relações sociais e históricas. Grosso modo, pode-se ponderar que

consciência coletiva é o conjunto de crenças e de sentimentos comuns à média dos membros

de uma mesma sociedade; o tipo psíquico da sociedade, a forma moral vigente na sociedade. É

a consciência coletiva que define o que, em uma sociedade, é considerado reprovável ou

criminoso.

A definição de consciência coletiva aparece pela primeira vez na obra Da divisão do

trabalho social: trata-se do “conjunto das crenças e dos sentimentos comuns à média dos

membros de uma mesma sociedade [que] forma um sistema determinado com vida própria”

(DURKHEIM, 1973, p. 342). A consciência coletiva não se baseia na consciência dos

indivíduos singulares ou de grupos específicos, mas está espalhada por toda a sociedade. Ela

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revelaria o “tipo psíquico da sociedade”, que não seria apenas o produto das consciências

individuais, mas algo diferente, que se imporia aos indivíduos e perduraria através das

gerações. A consciência coletiva é, em certo sentido, a forma moral vigente na sociedade. Ela

aparece como regras fortes e estabelecidas que delimitam o valor atribuído aos atos

individuais. Ela define o que numa sociedade é considerado “imoral”, “reprovável” ou

“criminoso”.

3 – Regras de Estudo do Fato Social

Durkheim deslocou a análise do fato social para um terreno estritamente formal em

que pudesse ser estabelecida uma ciência da observação, dando conta da realidade em geral,

destacando o dado empírico a partir de uma suposição teórica constituída. Essa observação

deveria ser acompanhada de um conjunto de regras, cujo fim seria proporcionar ao

pesquisador o maior grau de neutralidade científica. Os sociólogos se beneficiariam das

teorias à medida que a investigação sociológica progredisse até lá, e mesmo depois, devendo

saber proceder a descrições exatas, a observações bem feitas e, em particular, aprender a

extrair, da complexa realidade social, os fatos que interessam precisamente à Sociologia. Para

atingir esses fins, não se necessita de uma teoria sociológica propriamente dita, mas de uma

espécie de teoria da investigação sociológica, o que é outra coisa e presumivelmente algo

exequível e legítimo. Nesse sentido, a Sociologia poderia aproveitar a lição e a experiência

das ciências mais maduras, transferindo para o seu campo o procedimento científico usado

nas ciências empírico-indutivas, de observação-experimentação. Isso seria fácil, desde que a

ambição inicial se restringisse à formulação de um conjunto de regras simples e precisas,

aplicáveis à investigação sociológica dos fenômenos sociais.

Do exposto, conclui-se que Durkheim se propôs à tarefa de realizar uma teoria da

investigação sociológica. De fato, ele empreendeu tal odisseia, sendo o primeiro sociólogo a

atingir semelhante objetivo, em condições difíceis e com um êxito que só pode ser contestado

quando se toma uma posição diferente em face das condições, limites e ideais de explicação

científica na Sociologia. Portanto, considerando que a preocupação de Durkheim é marcar um

limite entre opinião e conhecimento científico, o autor apresenta um sistema metodológico

destinado a legitimar o papel do sociólogo como observador privilegiado, levando em conta

instrumentos de análise diferentes daqueles até então usados pelos pensadores sociais, ainda

presos a observações e conclusões metafísicas.

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Destarte, Durkheim apresenta a primeira regra que se destina a observação dos fatos

sociais: a boa observação dos fatos sociais recomenda tratá-los como coisas, procurando, com

isso, o afastamento de prenoções e o agrupamento dos fatos segundo seus caracteres

exteriores, que devem ser objetivos. A segunda consiste na distinção do normal e do

patológico, que procura enunciar a identificação entre o normal e a média, e aplicar as regras a

alguns casos como o crime, por exemplo, concluindo que este é um fenômeno normal do ponto

de vista social. A terceira regra se relaciona à constituição dos tipos sociais, responsável em

prescrever a classificação das sociedades da mais simples à mais complexa, buscando em cada

uma o segmento original. A quarta regra diz respeito à explicação dos fatos, consistindo-se em

pesquisar separadamente a causa eficiente que produz e a função que preenche; recomenda que

a causa determinante de um fato social seja buscada nos fatos sociais que o antecederam e não

entre os estados de consciência individual. A quinta e última regra se relaciona à

administração de provas, que procura estabelecer o método comparativo ou das variações

concomitantes como o método próprio da Sociologia, a classificação.

Segundo Durkheim, a adoção das regras confere à Sociologia seu caráter de ciência

independente, sua objetividade e seu dado específico. A regra fundamental da objetividade

científica é: separação entre sujeito e objeto, pois nesse caso o “sociólogo empreende a

exploração de uma ordem qualquer de fatos sociais, deve se esforçar por considerá-los

naquele aspecto em que se apresentam isolados de suas manifestações individuais”

(DURKHEIM, 1974, p. 39).

4 – A Divisão do trabalho social: a solidariedade social

Durkheim atribui à divisão social do trabalho o papel de condição necessária para o

desenvolvimento intelectual e material das sociedades, constituindo a fonte da civilização.

Mas, apresenta outra finalidade igualmente importante e que, portanto, permite perceber seu

caráter moral. Durkheim observa a variação entre o nível de moralidade e o progresso da

civilização, concluindo que a influência que a civilização possui sobre a moral é muito fraca.

Os elementos constitutivos da civilização são desprovidos de todo caráter moral. Nos grandes

centros industriais, há numerosos crimes e suicídios e, nesse sentido, ele observa que as

atividades industriais existem porque correspondem às necessidades, mas estas necessidades

não são morais. Durkheim entende por moral o mínimo indispensável sem o qual a sociedade

não poderia viver ou, segundo suas palavras: “o resultado dos esforços feitos pelo homem

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para encontrar um objetivo duradouro a que possa se prender e para experimentar uma

felicidade que não seja transitória.” (DURKHEIM, 2003, p. 98)

Dessa forma, o domínio da ética compreende as regras de ação que se impõem

imperativamente à conduta. E essa moral pode ser dada pela ciência. A ciência, para

Durkheim, apresenta certo caráter moral porque desenvolve a inteligência do indivíduo,

assimilando as verdades científicas que são estabelecidas. A ciência é a consciência levada ao

seu mais alto grau, ao seu ponto máximo de claridade. Essa consciência se adapta às

mudanças guiadas pela ciência. Preocupado com a questão da coesão social, Durkheim

elaborou o conceito de solidariedade social como importante para a coesão social. Ressaltou

que a mais importante função da divisão do trabalho social seria a de criar um sentimento de

solidariedade:

O mais notável efeito da divisão do trabalho não é que aumenta o

rendimento das funções divididas, mas que as torna solidárias (...). É

possível que a utilidade econômica da divisão do trabalho valha para alguma

coisa neste resultado, mas em todo caso, ele ultrapassa infinitamente a esfera

dos interesses puramente econômicos, pois ele consiste no estabelecimento

de uma ordem social e moral sui generis. Indivíduos estão ligados uns aos

outros que, sem aquilo, seriam independentes; ao invés de se desenvolverem

separadamente, eles conjugam seus esforços; são solidários e de uma

solidariedade que não age apenas nos curtos instantes em que os serviços se

trocam, mas que se estende bem além (DURKHEIM, 1973, 332).

A simples troca supõe indivíduos que dependam uns dos outros, e a imagem daquele

que completa o outro torna-se inseparável a todos, como complementação. No caso da divisão

do trabalho, as pessoas estão ligadas porque são distintas, logo sua função é integrar o corpo

social, assegurando unidade porque a divisão do trabalho é a fonte da solidariedade social, já

apontada por Comte segundo Durkheim (DURKHEIM, 1973, p. 332). Por ter essa nobre

função ligada à existência da sociedade, pode receber o caráter moral, visto que a necessidade

de ordem, harmonia e solidariedade social geralmente passam por valores morais.

Sendo a solidariedade social um fenômeno moral, o direito é um fato que ajuda

analisar esse fenômeno por ser um símbolo visível. A vida geral da sociedade não pode se

desenvolver num ponto sem que a vida jurídica se estenda ao mesmo tempo e na mesma

proporção. Estão refletidas no direito todas as variedades essenciais da solidariedade social. O

direito reflete uma parte da vida social na qual os costumes corrigem os rigores, pois

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exprimem um tipo de solidariedade diferente da do direito. O direito, para Durkheim,

reproduz as formas principais da solidariedade social. É necessário classificar as diferentes

espécies de Direito para buscar, em seguida, a identificação das diferentes espécies de

solidariedade social que a elas correspondem. A divisão das normas jurídicas em repressivas,

por um lado, porque procuram atingir o agente em sua honra, vida ou liberdade e, por outro,

em restitutivas, porque implicam o restabelecimento das relações perturbadas sob sua forma

normal, corresponde a dois tipos de solidariedade. No direito repressivo, os crimes são atos

definidos por castigos específicos através de regras penais. Os sentimentos coletivos aos quais

correspondem estão gravados em todas as consciências. São emoções e tendências fortemente

enraizadas em nós. Um crime causa uma aproximação entre as consciências, causa uma

indignação pública.

Segundo Durkheim, solidariedade é aquela estrutura de relação e de vínculos

recíprocos quando “cada sociedade estabelece um padrão de comportamentos que

corresponde à sua consciência coletiva” (Idem, p. 334). Nesse sentido, o sociólogo francês

estabeleceu dois tipos específicos de solidariedade: a mecânica e a orgânica. A solidariedade

mecânica é aquela que predominava nas sociedades pré-capitalistas, em que os indivíduos se

identificavam através da família, da religião, da tradição e dos costumes, permanecendo, em

geral, independentes e autônomos em relação à divisão do trabalho social. A consciência

coletiva aqui exerce todo o seu poder de coerção sobre os indivíduos. Já a solidariedade

orgânica é aquela típica das sociedades capitalistas, em que, através da acelerada divisão do

trabalho social, os indivíduos se tornam interdependentes. Essa interdependência garante a

união social em lugar dos costumes, das tradições ou das relações sociais estreitas. Nas

sociedades capitalistas, a consciência coletiva se afrouxa. Assim, ao mesmo tempo em que os

indivíduos são mutuamente dependentes, cada qual se especializa numa atividade e tende a

desenvolver maior autonomia pessoal.

A Sociologia, para Durkheim, deveria ter ainda por objetivo comparar as diversas

sociedades, constituindo, dessa forma, o campo da morfologia social, ou seja, a classificação

das espécies sociais. Durkheim compreendeu que todas as sociedades evoluiram a partir da

horda, a forma social mais simples, igualitária e reduzida a um único segmento em que os

indivíduos se assemelhavam aos átomos, isto é, se apresentavam justapostos e iguais. Desse

ponto de partida, foi possível uma série de combinações, das quais se originaram outras

espécies sociais identificáveis no passado e no presente, tais como os clãs e as tribos.

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Durkheim considerou que o trabalho de classificação das sociedades – como tudo o

mais – deve ser efetuado com base em apurada observação experimental. Guiado por esse

procedimento, ele estabeleceu a passagem da solidariedade mecânica para a solidariedade

orgânica como o motor de transformação de toda e qualquer sociedade. Dado o fato de que as

sociedades variam de estágio, apresentando formas diferentes de organização social que torna

possível defini-las como “inferiores” ou “superiores”, como o cientista define os fatos

normais e anormais em cada sociedade? Para Durkheim, a normalidade só pode ser entendida

em função do estágio da sociedade em questão. Nesse sentido, o autor esclarece que: “do

ponto de vista puramente biológico, o que é normal para o selvagem não o é sempre para o

civilizado, e vice-versa [...] Um fato social não pode, pois, ser acoimado de normal para uma

espécie social determinada senão em relação com uma fase, igualmente determinada, de seu

desenvolvimento” (DURKHEIM, 1974, p. 49).

4.1 - Sociedade Simples

As sociedades simples são aquelas em que não há desempenho de funções

especializadas, isto é, todos podem executar as mesmas funções, visto que não há divisão de

trabalho. A solidariedade mecânica está localizada nas sociedades pré-capitalistas

(basicamente as antigas), baseadas na semelhança. Os valores sociais decorrem da tradição e

da religião, e o grupo se organiza como uma verdadeira comunidade, havendo informalidade

de comportamentos. O agressor é considerado inimigo do grupo, punido por um direito

extremamente repressivo. Esse direito repressivo não é especializado e, ao mesmo tempo, nega

o caráter da individualidade da pena. Nas sociedades em que a solidariedade era mecânica, não

havia a presença da individualidade, os indivíduos não existiam por si só. As existências

individuais somente são possíveis no coletivo, na comunidade; é por isso que o direito se

fundamenta na repressão, visto que uma ofensa pessoal é ofensa coletiva.

O crime fere o indivíduo e a força coletiva e, em virtude disso, a sociedade penaliza o

agressor com a finalidade de defender-se. A dor que inflige o agente é apenas um instrumento

metódico de proteção a fim de que o temor atinja as más vontades (direito repressivo). Assim,

a pena possui dupla finalidade: a vingança como satisfação da paixão de reparação, e a

repressão como ação de contenção. A pena vingativa é o instinto de conservação exasperado

pelo perigo, portanto, para Durkheim, a pena permaneceu como vingança porque é uma

expiação, e o direito penal simboliza uma espécie de solidariedade comum ou coletiva. Essa

solidariedade é mecânica porque seu produto de similitudes protege a unidade do corpo social

impondo o respeito e, como tal, esse tipo de solidariedade serve a dois propósitos, a saber:

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manter intacta a coesão social sustentando a vitalidade da consciência comum; corrigir o

culpado ou intimidar seus possíveis imitadores. Durkheim utiliza o termo mecânica por

analogia como a coesão que une entre si os elementos dos corpos brutos, em oposição àquela

que faz a unidade dos corpos vivos, ou seja, o elo que une indivíduo e sociedade é análogo ao

que liga a coisa à pessoa. A consciência individual, considerada sob este aspecto, é uma

simples dependência do tipo coletivo.

4.b – Sociedade Complexa

A sociedade complexa é aquela em que há desempenho de funções especializadas não

comuns a todos, só é possível em grandes comunidades como as atuais sociedades industriais.

Nas sociedades complexas, em que há divisão de funções em virtude da educação, aptidões,

individualizaçãos das relações, a solidariedade é orgânica. As sociedades modernas estão

fundadas na divisão do trabalho segundo o princípio da especialização, criando, através de

redes de relacionamento, solidariedade entre grupos e indivíduos, em que cada um aceita a

obrigação assumida: o direito é restitutivo e as sanções são reparativas.

Com a fragilidade da solidariedade orgânica, isto é, com a fragilidade do organismo,

percebe-se, na verdade, uma instabilidade no sistema de relações necessárias à unidade do

corpo, à existência social. A fragilidade das instituições sociais enseja uma condição de

esgotamento da própria sociedade enquanto ordenadora de valores, enfraquecendo e

desorganizando mecanismos próprios ao desenvolvimento da vida social. O antagonismo entre

capital e trabalho, tipo clássico de anomia, corresponde à própria fragilidade da sociedade

industrial, suspendendo o caráter da divisão do trabalho e afetando consideravelmente a

solidariedade orgânica. A anomia fragiliza o conjunto social, visto que, em qualquer

sociedade, os homens se agrupam sob uma determinada orientação, um determinado costume,

uma determinada norma de convivência.

O direito restitutivo é de outra natureza; suas regras são estranhas à consciência

comum; as relações que elas determinam se realizam entre as partes restritas para restituição

sob condição. Neste âmbito, Durkheim enfatiza duas formas de solidariedade: a solidariedade

real ou negativa, que vincula diretamente as coisas às pessoas, mas não as pessoas entre si. A

parte do direito restitutório a qual corresponde esta solidariedade é o conjunto dos direito

reais. Como é somente por intermédio de pessoas que as coisas são integradas na sociedade, a

solidariedade que resulta desta integração é negativa. Evita-se o conflito, mas não há o

consenso. Tal solidariedade não faz dos elementos que ela aproxima um todo capaz de agir

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como um conjunto; não contribui em nada para a unidade do corpo social. Apenas se

estabelece para reparar ou prevenir uma lesão. A solidariedade positiva resulta da divisão do

trabalho social ou da atração do semelhante pelo semelhante. O contrato é, por excelência, a

expressão jurídica da cooperação. Cooperar é dividir uma tarefa comum. Se esta é dividida

em tarefas qualitativamente similares, embora indispensáveis umas às outras, há divisão do

trabalho simples ou do primeiro grau. Se as tarefas são de natureza diferente, há divisão do

trabalho composta, especialização propriamente dita.

SOLIDARIEDADE MECÂNICA SOLIDARIEDADE ORGÂNICA

Sociedades arcaicas Sociedades modernas

Solidariedade por semelhança ou similitude Solidariedade por diferenciação

Sentimentos coletivos fortes Sentimentos coletivos fracos

Consciência coletiva forte Consciência individual forte

A sociedade é orientada por imperativos e proibições Liberdade de interpretação dos imperativos sociais

Direito repressivo = manifesta a força dos sentimentos

comuns, o crime é proibido pela consciência coletiva

Direito restitutivo = restabelece o estado das coisas

como deve ser segundo a justiça

O castigo é reparação feita à consciência coletiva. O contrato possui valor importante.

5 - Anomia e Regulamentação Social

Anomia é uma palavra de origem grega, que vem de “anomos”; “a” representa

ausência, inexistência, privação; “nomos”, lei, norma. Em sua estrita significação, está

relacionada à falta de lei ou de norma de conduta. Durkheim utilizou este termo buscando

uma explicação para certos fenômenos socioeconômicos na obra intitulada “Da divisão do

trabalho social”. Depois de firmar a divisão social do trabalho como fenômeno normal,

assinalou as formas patológicas derivadas desse fenômeno, ressaltando que, desde que a

divisão social do trabalho supera certo grau de desenvolvimento, o indivíduo, debruçado

sobre suas tarefas cotidianas, se isola em sua atividade especial, não sentindo mais a presença

dos colaboradores que trabalham ao seu lado, não concebendo, portanto, a ideia de uma obra

comum. Tornando-se uma fonte de desintegração, essa divisão se afigura como dispersão. Na

medida em que há perda da visão de conjunto, há também o esmaecimento 3 das normas que

3Perda de vigor, desbotamento.

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refletem a solidariedade grupal. O enfraquecimento da interação impede o progressivo

desenvolvimento do sistema de regras comuns e consenso.

Durkheim acreditava que os conflitos e desordens eram sintomas desse esmaecimento

das regras morais e jurídicas. A vida econômica havia alcançado certo grau de progresso sem,

no entanto, ser acompanhada pelo desenvolvimento das instituições morais capazes de

regulamentar os interesses individuais e estabelecer os seus limites. Nesse contexto, há um

rompimento dos laços solidários que garantem a coesão social. O mundo contemporâneo

começava a enfrentar esse novo desafio de resgatar o valor social das instituições integradoras

como a religião, o Estado e a família, uma vez que os indivíduos passavam a se organizar

conforme suas atividades profissionais. Nesse caso, houve um enfraquecimento da família,

uma perda da eficácia das religiões em virtude da diversidade de profissões, que assumiram

papel fundamental na substituição dessas instituições integradoras. Foi nesse sentido que

Durkheim buscou reconstruir o social a partir da esfera do trabalho, visando resgatar a

solidariedade e a moralidade integradoras, combatendo o egoísmo individual, que

compromete o sentimento de solidariedade, permitindo que a lei do mais forte impere

brutalmente nas relações sociais.

Segundo o sociólogo francês, a anomia pode ter três significados diferentes, a saber: a -

perda da identificação pessoal com as normas, valores, objetivos definidos pela sociedade,

desorganização pessoal do tipo que resulta em uma personalidade desorientada e sem lei; b -

situação social em que as normas estão em conflito, provocando desvios de comportamento

socialmente significativos quando o indivíduo tem dificuldade em conformar-se às suas

exigências contraditórias; c - ausência de normas; uma situação social que, no caso limite, não

contém qualquer norma e é consequentemente o oposto de sociedade. Portanto, o sentido

sociológico de anomia, introduzido por Durkheim como ausência relativa de valores comuns

na sociedade, tem seu reflexo em sentimentos de angústia, isolamento e perda de objetivos

entre os elementos da sociedade. Assim, anomia é uma expressão utilizada para caracterizar

uma situação do indivíduo perante a vida social, quando ele fica absolutamente desorientado

pela inexistência de padrão, perdendo a visão; nesse caso, a perda de solidariedade grupal.

Para Durkheim, a Sociologia tem por finalidade não só explicar a sociedade como

também encontrar remédios para a vida social. A sociedade, como todo organismo, apresenta

estados normais e patológicos, isto é, saudáveis e doentios. Durkheim considera um fato

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social como normal quando se encontra generalizado pela sociedade ou quando desempenha

alguma função importante para sua adaptação ou sua evolução. Assim, o crime, por exemplo,

é normal não só por ser encontrado em todas as sociedades de qualquer época, mas por

representar, de alguma forma, a importância dos valores sociais que repudiam determinadas

condutas como ilegais e as condenam através de penalidades. A generalidade de um fato

social, isto é, sua unanimidade, é garantia de normalidade na medida em que representa o

consenso social, a vontade coletiva, ou o acordo de um grupo a respeito de uma determinada

questão. Pondera Durkheim:

Para saber se o estado econômico atual dos povos europeus, com

sua característica ausência de organização, é normal ou não, procurar-se-á

no passado o que lhe deu origem. Se estas condições são ainda aquelas em

que atualmente se encontra nossa sociedade, é porque a situação é normal, a

despeito dos protestos que desencadeia (DURKHEIM, 1974, p. 53).

Partindo do princípio de que o objetivo máximo da vida social é promover a harmonia,

e que essa harmonia é conseguida através do consenso social, a “saúde” do organismo social se

confunde com a generalidade dos acontecimentos e com a função destes na preservação dessa

harmonia. É desse acordo coletivo, que se expressa sob a forma de sanções sociais, o quadro

do direito em sociedade. Quando um fato põe em risco a harmonia ou o consenso da

sociedade, verifica-se um acontecimento de caráter mórbido numa sociedade doente; logo,

normal é o fato que não extrapola os limites dos acontecimentos mais gerais de uma

determinada sociedade e que reflete os valores e as condutas aceitas pela maior parte da

população. Por outro lado, patológico é aquele que se encontra fora dos limites permitidos pela

ordem social e pela moral vigente. Os fatos patológicos, como as doenças, são considerados

transitórios e excepcionais.

Considerações Finais

Durkheim se distingue dos demais positivistas porque suas ideias ultrapassaram a

simples reflexão filosófica, chegando a constituir um todo organizado e sistemático de

pressupostos teórico-metodológicos sobre a sociedade. O empiricismo positivista, que pusera

os filósofos diante de uma realidade social a ser especulada, transformou-se, em Durkheim,

numa real postura científica, centrada naqueles fatos que poderiam ser observados,

mensurados e relacionados através de dados coletados diretamente pelo cientista. Durkheim

procurou estabelecer os limites e as diferenças entre as particularidades e a natureza dos

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acontecimentos filosóficos, históricos, psicológicos e sociológicos. Elaborou um conjunto

coordenado de conceitos e de técnicas de pesquisa que, embora norteado por princípios das

ciências naturais, guiava o cientista para o discernimento de um objeto de estudo próprio e

dos meios adequados para interpretá-lo.

Embora preocupado com as leis gerais capazes de explicar a evolução das sociedades

humanas, Durkheim ateve-se também às particularidades da sociedade em que vivia e aos

mecanismos de coesão dos pequenos grupos, e à formação de sentimentos comuns resultantes

da convivência social. Distinguiu diferentes instâncias da vida social e seu papel na

organização social, como a educação, a família e a religião. Pode-se dizer que, com

Durkheim, já se delineia uma apreensão da Sociologia na qual se relacionava harmonicamente

o geral e o particular numa busca, ainda que não expressa, da noção de totalidade. Essa noção

foi desenvolvida particularmente por seu sobrinho e colaborador Marcel Mauss em seus

estudos antropológicos. Em vista de todos esses aspectos tão relevantes e inéditos, os limites

antes impostos pela filosofia darwinista (positivista) perderam sua importância, fazendo dos

estudos de Durkheim um constante objeto de interesse da Sociologia Contemporânea.

Referências Bibliográficas

BOTTOMORE, T. Introdução á Sociologia. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro, Zahar Editores,

1975.

DURKHEIM, Émile. Educação e Sociologia. Tradução Lourenço Filho. São Paulo: Melhoramentos, 1955.

__________. Da divisão do trabalho social.. Tradução de José Arthur Giannotti. In: Os pensadores. São Paulo:

Abril, 1973.

__________. As regras do método sociológico. Tradução de Maria Isaura Pereira de queirozSão Paulo: Editora

Nacional, 1974.

QUINTANEIRO, T, et alii. Um toque de Clássicos. Durkheim, Marx e Weber. Belo Horizonte: UFMG, 1995,

p. 27.

Gianriccardo Grassia Pastore é Graduado em História pela UFF e Ciências Sociais pela UERJ,

além de Mestre em História e Filosofia da Ciência pela Universidade de Lisboa.

Wellington Trotta tem Doutorado em Filosofia IFFCS-UFRJ. Leciona Filosofia no Curso de

Direito da UNESA, coordena o Núcleo de Pesquisa de Ciências Jurídicas e Sociais, além de

ser editor da Revista Logos e Veritas, ambos na Unidade de Cabo Frio.