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4 A NATUREZA JURÍDICA DA UNIÃO EUROPÉIA 4.1 Velhas Lentes para um Novo Fenômeno: Distinção entre a União Européia e Outras Formas de Organização Política A União Européia é, sem dúvida, o mais bem desenvolvido modelo de integração regional da atualidade. Como afirma Amaral Júnior, “a Europa realizou, até agora, a mais ampla e bem sucedida experiência de integração” 1 . A experiência européia de integração comunitária vem desafiando os esquemas de racionalização e os métodos de trabalho que vêm há muito sendo utilizados pelos cultores do direito internacional e pelos cientistas políticos. Tais esquemas, é certo, vem se revelando inadequados para compreensão desse novo fenômeno, vez que preparados para fatos diametralmente distintos em sua essência. Parafraseando a Bíblia, é como se se colocasse vinho novo em odres velhos 2 . João Mota de Campos e João Luiz Mota de Campos bem revelam a inquietação que o fenômeno europeu está causando àqueles que se dedicam à sua compreensão: Continua a discutir-se acaloradamente sobre a verdadeira natureza das Comunidades Europeias (da União Europeia), cujos caracteres não permitem inclui-las em nenhumas das categorias preestabelecidas – situados, como elas parecem achar-se, a meio caminho entre as organizações de simples cooperação e os sistemas federais. 3 1 AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Manual do Candidato: Direito Internacional. 2ª ed. Brasília: FUNAG, 2005. 2 Evangelho escrito por Lucas, 5:33. 3 CAMPOS, João Mota de; CAMPOS, João Luiz Mota de. Manual de Direito

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4 A NATUREZA JURÍDICA DA UNIÃO EUROPÉIA

4.1 Velhas Lentes para um Novo Fenômeno: Distinção entre a União Européia e Outras

Formas de Organização Política

A União Européia é, sem dúvida, o mais bem desenvolvido modelo de integração

regional da atualidade. Como afirma Amaral Júnior, “a Europa realizou, até agora, a mais ampla e

bem sucedida experiência de integração”1.

A experiência européia de integração comunitária vem desafiando os esquemas de

racionalização e os métodos de trabalho que vêm há muito sendo utilizados pelos cultores do direito

internacional e pelos cientistas políticos. Tais esquemas, é certo, vem se revelando inadequados para

compreensão desse novo fenômeno, vez que preparados para fatos diametralmente distintos em sua

essência.

Parafraseando a Bíblia, é como se se colocasse vinho novo em odres velhos2.

João Mota de Campos e João Luiz Mota de Campos bem revelam a inquietação

que o fenômeno europeu está causando àqueles que se dedicam à sua compreensão:

Continua a discutir-se acaloradamente sobre a verdadeira natureza das Comunidades Europeias (da União Europeia), cujos caracteres não permitem inclui-las em nenhumas das categorias preestabelecidas – situados, como elas parecem achar-se, a meio caminho entre as organizações de simples cooperação e os sistemas federais.3

Explica Borchardt:

As características da CE e da UE deixam claro os seus pontos comuns e as suas diferenças em relação às organizações internacionais tradicionais e às estruturas federais. A UE não é uma estrutura acabada, mas antes um sistema em construção cujos contornos finais não estão ainda definidos.4

Como exposto pelos autores supramencionados, a União Européia apresenta

traços singulares que a situam em algum ponto do caminho que se trilha entre as organizações de

cooperação e os sistemas federais; contudo, é certo que não há plena identificação da União

Européia com tais esquemas de organização política, haja vista sua já apregoada natureza de

organização internacional sui generis.

1 AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Manual do Candidato: Direito Internacional. 2ª ed. Brasília: FUNAG, 2005.2 Evangelho escrito por Lucas, 5:33.3 CAMPOS, João Mota de; CAMPOS, João Luiz Mota de. Manual de Direito Comunitário. 4.ed. Lisboa: Fundação

Calouste Gulbenkian, 2004. p.257.4 BORCHARDT, Klaus-Dieter. O ABC do Direito Comunitário. 5. ed. Luxemburgo: Serviço das Publicações

Oficiais das Comunidades Europeias, 2000. p. 25.

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Propõe-se, então, para melhor percepção da natureza jurídica única da União

Européia, uma análise das aproximações e dos afastamentos existentes entre esta organização e os

esquemas político-jurídicos tradicionalmente utilizados em seu estudo.

Assim, as tentativas de compreensão da experiência européia pelas lentes do

Federalismo, do Confederalismo, ou, ainda, como Organização de Integração, revelam-se como

instrumentos profícuos no delineamento dos traços singulares da União Européia.

4.2 As Teses Federal e Confederal. Organização de Integração Internacional

A origem do Federalismo como movimento político remonta aos Estados Unidos

do século XVIII, tendo sido ensaiado em diversos países como solução normal para a reunião, em

uma potência mais forte, de Estados que dificilmente poderiam sustentar sua real independência,

mas cujos povos não desejam abdicar das tradições, leis e características nacionais próprias5.6

Em valiosa lição, ensina Pinto Ferreira que "o Estado Federal é uma organização

formada sob a base de uma repartição de competências entre o governo nacional e os governos

Estaduais, de sorte que a União tenha supremacia sobre os Estados-Membros e estes sejam

entidades dotadas de autonomia constitucional perante a mesma União"7.

Os estados federais caracterizam-se pela repartição, mais ou menos equilibrada,

de competências entre os diversos entes federados; como enuncia James Bryce8, “o que caracteriza

o Estado Federal é justamente o fato de, sobre um mesmo território e sobre as mesmas pessoas, se

exercer, harmônica e simultaneamente, a ação política de dois governos distintos”.

Essa duplicidade de governos que agem sobre o mesmo território deve ser

analisada sob o ângulo do direito interno. Isso porque, de acordo com o direito internacional, o

Estado Federal é o único Estado que subsiste e pode manter relações internacionais.

5 CAETANO, Marcelo. Direito Constitucional. v.1. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1977. p. 173. Contudo, assevera o professor que em muitos casos, o Federalismo foi adotado apenas como fórmula artificial destinada a facilitar o governo de um território muito vasto ou a satisfazer a aspirações locais.

6 Para interessante visão do Estado Federal como forma de estado em que se reúnem interesses, potencialidades e características diferenciadas, vide LIMA, Diogo Diniz; RAMOS, Paulo Roberto Barbosa. Estado Federal: Aglutinador de Pluralidades sob a Égide de uma Constituição. in: O Direito no Século XXI: Estudos em Homenagem ao Professor Edson Vidigal. Florianópolis: Editora Obra Jurídica, 2008.

7 FERREIRA, Pinto. Curso de Direito Constitucional. 7ª Ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1995 p. 262.8 Citado por MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gonet. Curso de Direito

Constitucional. 3.ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 800.

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Augusto Zimmermann explica que

Consoante com a aparição do primeiro estado federal, o aspecto da descentralização política e a tendência pluralista despontam como as duas mais importantes vantangens comparativas deste modelo político-institucional. A soberania, por sua vez, é pertencente ao Estado como um todo, mas podendo sê-la de igual forma considerada meramente constitucional, representante que é a Carta Magna do pacto federativo9.

O Estado Federal, como ensina Burdeau, deve ser analisado como uma

combinação de dois princípios: a) o princípio da participação, segundo o qual os Estados-Membros

participam na formação das decisões do Estado Federal. b) o princípio da autonomia, que pugna que

os Estados-Membros estabelecem sua própria constituição, adotam suas próprias leis, executam-

nas, designam seus governantes e dispõem de um aparelho judiciário10.

Em face das características assinaladas, como sua evolução histórica (com a

reunião de uma pluralidade de povos em torno de um único “Estado federal”), e a atribuição, ao

ente central, de competências que antigamente eram dos próprios Estados-Nações, diversos

estudiosos enxergam uma aproximação da União Européia com o modelo federal. Ressaltam, ainda,

que a regra de deliberação das comunidades é a regra da maioria e não a unanimidade, e que o

Conselho Europeu foi pensado como órgão federal.

P. H. TEIGTEN, citado por João Mota de Campos e João Luiz Mota de Campos,

sintetiza algumas das razões pelas quais se reputa um “espírito federalista” à União Européia:

Os Tratados de Roma, à semelhança de uma “Carta Federal', foram concluídos por tempo ilimitado e não prevêem em nenhum caso o direito de secessão; Tais tratados estabelecem, tal como as cartas federais, a transferência de competências dos Estados-Membros para as Instituições Comunitárias; O sistema institucional das Comunidades comporta elaborados processos de decisão por maioria; A revisão dos tratados comunitários deve ser levada a cabo não através de instrumentos de carácter intergovenamental negociados no âmbito de conferências diplomáticas de tipo clássico mas, antes, segundo um processo que, se exige a intervenção dos Estados-Membros, comporta também a participação das próprias Instituições da União Europeia; À semelhança do que sucede em sistema federal, as Instituições Comunitárias dispõem de um verdadeiro poder legislativo que lhes permite adoptar regras gerais abstractas, directa e imediatamente aplicáveis nos Estados-membros independemente de qualquer processo de recepção na ordem jurídica interna; Os tratados organizam, em termos precisos e firmes, a subordinação dos Estados-Membros à regra do direito comum, atribuindo ao Tribunal das Comunidades competências que lhe permitem impor um certo “federalismo jurídico”, traduzido não só na aplicabilidade directa do direito comunitário como também na sua primazia sobre o direito interno dos Estados-Membros e na sua sujeição a mecanismos adequados a assegurar-lhe uma interpretação uniforme; Os tratados comunitários e mais ainda o direito deles derivado e que uma

9 ZIMMERMANN, Augusto. Teoria Geral do Federalismo Democrático. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 1999.p. 98-99.

10 BURDEAU, Georges; HAMON, Francis; TROPER, Michel. Direito Constitucional. 27ª ed. Barueri: São Paulo, 2005. p. 78.

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criação das próprias comunidades comportam uma espécie de “fiscalidade federal” no âmbito de um sistema de recursos próprios;

Foi instituída, no âmbito da União Europeia, uma União Económica e Monetária servida por uma moeda única.11

Por fim, arremata ainda o Professor TEIGTEN, defendendo que

com “tal conjunto de caracteres inerentes ao regime federal é legítimo concluir que os nossos

tratados consagram um certo federalismo funcional e pretender, por conseguinte, interpretá-los com

referência aos princípios fundamentais do federalismo”12.

Ao lado dessa corrente, merece destaque a ideia de que a União Européia seria

uma confederação de estados.

Trata-se esta de comunidade organizada de vários Estados, que se agrupam por

meio de um tratado internacional. Os Estados-partes nesse tratado são os membros da confederação.

A maior parte das decisões é tomada de forma unânime, sendo que podem ser tomadas por maioria

quando não disserem respeito a questão essencial. A soberania não reside na confederação, mas nos

Estados-membros.

Os defensores da tese da confederação sustentam que, assim como uma

confederação, a associação de Estados que compõe a União Européia é determinada por tratado de

que vai resultar a criação de órgãos comuns, que vão prosseguir até o estabelecimento de

determinadas competências internacionais.

Todavia, em que pesem as opiniões favoráveis às teses em comento, nenhuma das

duas parece efetivamente adequada.

Nesse sentido, quanto à tese federal, observe-se a posição de Burdeau sobre a

configuração da União Européia:

Falta-lhe, entretanto, para ser um Estado federal, uma característica essencial: ela não é de forma alguma um Estado. O fundamento de seus poderes não reside em uma constituição, mas nos tratados interancionais, que ela não pode modificar e que só podem ser revisados pelos Estados que o ratificaram. Ela não é soberana, na medida em que ela não tem competência para determinar sua própria competência, nem a dos Estados em que ela pode somente exercer os poderes que lhe são tranferidos pelos Estados.13

É de se ressaltar que, ao contrário do percebido em um Estado federal, os Estados

que integram a União Européia permanecem soberanos. De fato, os poderes dos Estados-

11 CAMPOS, João Mota de; CAMPOS, João Luiz Mota de. Manual de Direito Comunitário. 4.ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004. p.257-258.

12 Citado por CAMPOS, João Mota de; CAMPOS, João Luiz Mota de. Manual de Direito Comunitário. 4.ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004. p.258.

13 BURDEAU, Georges; HAMON, Francis; TROPER, Michel. Direito Constitucional. 27ª ed. Barueri: São Paulo, 2005. p. 80.

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Membros não são oriundos de repartição de competências operada pela União Européia; pelo

contrário, é em virtude de sua soberania é que puderam transferir competências à União, e

que podem retomá-los ao denunciar os tratados.

Com Borchardt, conclui-se que

A renúncia por parte dos Estados-Membros a uma parte da respectiva soberania em favor da CE constitui um dos elementos que permitiram concluir que a estrutura da UE se identificava com a de um Estado federal. Todavia, esta concepção não atende ao facto de as competências das instituições da UE estarem circunscritas à realização dos objectivos consagrados pelos tratados e a certos domínios. Estas instituições não podem fixar livremente os respectivos objectivos nem responder a todos os desafios que a um Estado moderno hoje se colocam. À UE falta a plenitude de competências que caracteriza um Estado e a faculdade de instituir novas competências (a chamada competência das competências)14.

Demais disso, é certo que também não merece prosperar a tese confederal, como

bem define Burdeau:

No entanto, a União também não é uma confederação. Provavelmente ela está, como uma confederação, fundamentada em tratados e dispõe somente das competências que lhe foram atribuídas; provavelmente, os Estados permanecem soberanos do ponto de vista do direito internacional, mas eles aprovaram limitações de competência muito importantes, incompatíveis com as disposições de suas constituições15.

Merece destaque, por fim, a tese que, considerando a originalidade e as

finalidades, simultaneamente econômicas e políticas, do processo de integração européia (de que os

tratados comunitários são o motor), entenderam ser possível qualificar a União Européia como

organização de integração, em oposição à mera cooperação intergovernamental.

Contudo, tal ideia não condiz com o atual estágio de desenvolvimento da União

Européia, como ensina Borchardt:

O único ponto comum entre as organizações internacionais tradicionais e a UE reside no facto que a UE também nasceu de um tratado internacional. Todavia, a integração da CE na estrutura organizativa da UE afastou consideravelmente esta última das suas raízes internacionais. Com efeito, os actos fundadores da CE, que assentam também em tratados internacionais, levaram à criação de comunidades autónomas dotadas de direitos soberanos e competências próprias. Os Estados-Membros renunciaram a uma parte da respectiva soberania,em favor das Comunidades. Acresce que as tarefas confiadas à CE distinguem-se claramente das que incumbem às outras organizações internacionais. Ao passo que estas últimas assumem essencialmente missões de carácter técnico bem determinadas, o campo de acção da CE incide, na sua globalidade, em aspectos essenciais dos Estados16.

14 BORCHARDT, Klaus-Dieter. O ABC do Direito Comunitário. 5. ed. Luxemburgo: Serviço das Publicações Oficiais das Comunidades Europeias, 2000. p. 25.

15 BURDEAU, Georges; HAMON, Francis; TROPER, Michel. Direito Constitucional. 27ª ed. Barueri: São Paulo, 2005. p. 80.

16 BORCHARDT, Klaus-Dieter. O ABC do Direito Comunitário. 5. ed. Luxemburgo: Serviço das Publicações Oficiais das Comunidades Europeias, 2000. p. 25.

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Antes, análise mais cuidadosa da natureza dos institutos jurídicos utilizados para

compreender a União Européia revela claramente a sua inadequação para atingir tais escopos. Nessa

senda, colacione-se a lição de João Mota de Campos e João Luiz Mota de Campos:

Na realidade, as concepções e qualificações referidas não são muito úteis: antes de mais nada, elas estão demasiado ligadas à concepção ideológica a que se adira sobre os objectivos das Comunidades e até ao juízo que se faça sobre as intenções que teriam presidido à sua criação; por outro lado, impõe-se reconhecer que nenhuma é aceita pelo conjunto da doutrina; finalmente as qualificações possíveis não contribuem de modo algum para facilitar a compreensão do sistema complexo de relações – e particularmente de partilha de competências – entre a Comunidade e os seus Estados-membros.

A compreensão da experiência européia demanda aparato teórico distinto e

especializado, forjado a partir de suas especificidades e distinções, a partir de conceitos como

supranacionalidade e soberania comunitária, típicos dessa organização atípica.

4.3 Novas Lentes, Novo Vocabulário: Sintomas De Uma Nova Europa

Como exposto acima, a mudança no paradigma de organização da geopolítica

européia trouxe consigo a necessidade de construção de um novo arcabouço teórico, capaz de fazer

frente às necessidades desse novo projeto europeu.

Reflexo desse novo paradigma é a criação de um vocabulário diferenciado, apto a

expressar adequadamente os significados dessa nova construção teórica. Destaque-se, por sua

relevância, os seguintes termos, que trazem em seu bojo lastro ideológico forjado pela singularidade

da União Européia: Supremacia Comunitária, Supranacionalidade, Nova Ordem Jurídica.

A concepção de Supremacia Comunitária, ou Supremacia do Ordenamento

Comunitário sobre o Nacional surgiu a partir do caso Costa vs. ENEEL (1964). Uma de suas

interpretações seria de que a lei comunitária teria posição hierárquica mais alta até do que as

Constituições nacionais. O primado da lei comunitária representaria a autonomia do ordenamento

jurídico europeu diante das leis nacionais, e de certo, com aplicabilidade incondicionada pelos

órgãos nacionais.

Essa supremacia seria possível porque, no âmbito do Direito Comunitário, os

Estados-membros abrem mão de parte da sua soberania e passam a aceitar decisões dos órgãos

supranacionais automaticamente, atribuindo competências legislativas sobre alguns assuntos

diretamente à entidade supranacional – como segurança, meio ambiente, direitos humanos, etc. -,

que passa a legislar sobre essas temáticas de forma exclusiva ou concorrente.

A idéia de Supranacionalidade da União Européia está relacionada à noção de

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Supremacia Comunitária, implicando a independência do órgão supranacional face aos Estados e o

caráter obrigatório de suas decisões.

Na prática, a Supranacionalidade seria caracterizada por basicamente dois

critérios: a autonomia dos órgãos da União Européia em relação aos Estados-membros e o

imediatismo dos poderes exercidos, no sentido de que a norma ou injunção concreta (decisão)

emanada desses órgãos autônomos é diretamente aplicável e plenamente eficaz na ordem jurídica

dos Estados, independemente de qualquer ato interno destinado à sua recepção17.

Por fim, o conceito de Nova Ordem Jurídica, vigente no âmbito da União

Européia, traz consigo a concepção de um ordenamento jurídico autônomo, não somente por ser

distinto tanto da ordem jurídica interna quanto da ordem jurídica internacional e por não ser

tributário das ordens jurídicas dos Estados-membros, mas ainda porque as suas relações com tais

ordens são definidas segundo regras do próprio direito comunitário18.

Esse conceito jurídico é predominante na jurisprudência do Tribunal de Justiça da

União Européia, como se pode observar do julgamento do caso Costa/ENEL:

Resulta do conjunto destes elementos que ao direito emergente do Tratado, emanado de uma fonte autónoma, em virtude da sua natureza originária específica, não pode ser oposto em juízo um texto interno, qualquer que seja, sem que perca a sua natureza comunitária e sem que sejam postos em causa os fundamentos jurídicos da própria Comunidade. A transferência efectuada pelos Estados, da sua ordem jurídica interna em benefício da ordem jurídica comunitária, dos direitos e obrigações correspondentes às disposições do Tratado implica, pois, uma limitação definitiva dos seus direitos soberanos, sobre a qual não pode prevalecer um acto unilateral ulterior incompatível com o conceito de Comunidade.

A partir de tais conceitos, Borchardt observa os elementos que delineam as

características da natureza específica da experiência européia:

• a estrutura institucional, que garante que o processo de elaboração das decisões na CE é também influenciado pelo interesse geral da Europa, isto é, os interesses comunitários que emergem dos objectivos;• a transferência de competências para as instituições comunitárias num grau mais importante do que para as outras organizações internacionais e que abrange domínios nos quais os Estados--Membros geralmente conservam a respectiva soberania;• a criação de uma ordem jurídica própria, independente da dos Estados-Membros;• a aplicabilidade directa do direito comunitário, que garante que as regras do direito comunitário devem desenvolver a plenitude do seu efeito de uma forma completa e uniforme em todos os Estados-Membros e que tais disposições são fonte de direitos e de obrigações quer para os Estados-Membros, quer para os respectivos cidadãos;• o primado do direito comunitário, que impede qualquer revogação ou al teração da legislação comunitária pelo direito nacional e garante o primado do direito

17 CAMPOS, João Mota de; CAMPOS, João Luiz Mota de. Manual de Direito Comunitário. 4.ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004. p.263.

18 CAMPOS, João Mota de; CAMPOS, João Luiz Mota de. Manual de Direito Comunitário. 4.ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004. p.265.

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comunitário em caso de conflito com o direito nacional.19

João Mota de Campos e João Luiz Mota de Campos, no entanto, chegam a

conclusão de que as Comunidades Européias não devem ser consideradas como comunidades

soberanas, mas apenas como

meras organizações interestaduais em proveito das quais os Estados operaram não a transferência de uma parcela da soberania nacional mas, mais singelamente, uma simples delegação do exercício de competências estaduais, limitada a certos domínios específicos; delegação esta a que todo o tempo poderá ser retirada, embora com o alto custo que representaria, para um Estado-membro, a sua inevitável separação da Comunidade Européia20.

Em que pese o entendimento desses professores, considerando o atual estágio da

Uniãao Européia, parece mais acertado considerar que conceitos como Supremacia Comunitária,

Supranacionalidade, Nova Ordem Jurídica possuem seu lugar no atual delineamento da União

Européia.

Defende-se aqui a validade e a pertinência de tais conceitos enquanto o Estado-

membro integrar regularmente a União, aplicando-se todas as regras e princípios inerentes a tal

regime ao Estado que se submeter ao ordenamento jurídico “sui generis” comunitário.

Bibliografia

AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Manual do Candidato: Direito Internacional. 2ª ed. Brasília:

FUNAG, 2005.

CAMPOS, João Mota de; CAMPOS, João Luiz Mota de. Manual de Direito Comunitário. 4.ed.

Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004.

BORCHARDT, Klaus-Dieter. O ABC do Direito Comunitário. 5. ed. Luxemburgo: Serviço das

Publicações Oficiais das Comunidades Europeias, 2000.

CAETANO, Marcelo. Direito Constitucional. v.1. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1977.

BURDEAU, Georges; HAMON, Francis; TROPER, Michel. Direito Constitucional. 27ª ed.

Barueri: São Paulo, 2005.

ZIMMERMANN, Augusto. Teoria Geral do Federalismo Democrático. Rio de Janeiro: Editora

Lumen Juris, 1999.

19 BORCHARDT, Klaus-Dieter. O ABC do Direito Comunitário. 5. ed. Luxemburgo: Serviço das Publicações Oficiais das Comunidades Europeias, 2000. p. 25.

20 CAMPOS, João Mota de; CAMPOS, João Luiz Mota de. Manual de Direito Comunitário. 4.ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004. p.267.

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FERREIRA, Pinto. Curso de Direito Constitucional. 7ª Ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1995.

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gonet. Curso de

Direito Constitucional. 3.ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008.