8
15 Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 Einstein e as Conferências Pugwash A carta enviada por Einstein para Russell, em 11 de abril de 1955, concordando com os termos do Manifesto, contêm sua última assinatura em um documento público. Sua morte em 18 de abril, sete dias após, de certa maneira preci- pitou a divulgação do Manifesto e contribuiu para seu impacto imediato. A divulgação do Manifesto por Ber- trand Russell para a imprensa interna- cional foi presidida por Joseph Rotblat, o mais jovem cientista entre os onze assinantes. A época do Mani- festo foi caracterizada pela perspectiva do desenvolvimento de arsenais das bombas de hidrogênio, bem mais po- derosas do que as bombas atômicas que destruíram Hiroshima e Nagasa- ki. Foi a era da Guerra Fria, que dividia o mundo em duas partes. Esses fatores dificultaram a preparação de um en- contro como proposto no Manifesto, e uma reunião entre cientistas dos “dois lados” foi realizado somente dois anos após, em um remoto vilarejo canadense denomi- nado Pugwash. Posteriormente, a atuação de Joseph Rotblat foi funda- mental para a con- tinuidade dessas conferências, cujo propósitos são: (1) alertar sobre o peri- go dos arsenais nucleares e (2) propor caminhos alternativos para conflitos entre nações que levem ao desarma- mento universal. A série iniciada em 1957 é reconhecida atualmente como as “Conferências Pugwash”. Rotblat e a organização Pugwash Conferences on Science and World Affairs receberam o Premio Nobel da Paz de 1995. Alguns aspectos especiais, que serão abordados a seguir, são relevan- tes para a história do Manifesto: (1) Por que Russell teve que apelar para Joseph Rotblat, na época um jovem cientista excluído da ciência “oficial” inglesa, para presidir a divulgação do Manifesto? (2) Quais os atores origi- nais da proposta da conferência inter- nacional que aparece no primeiro parágrafo do Manifesto? (3) Por que Niels Bohr não assinou o Manifesto? (4) Por que Otto Hahn, que há muito tempo vinha se opondo ao uso militar da energia nuclear, além de não assi- nar o Manifesto liderou a preparação de outra declaração, a Declaração de Mainau? O momento do Manifesto Embora o Manifesto Russell- Einstein tenha sido um documento que marcou o movimento contra ar- mas atômicas na década de 1950, vá- rias iniciativas ocorreram após a 2 a Guerra Mundial pa- ra despertar a opi- nião pública inter- nacional sobre a necessidade de um sistema internacio- nal de controle das armas nucleares. Era evidente, para os cientistas que assumiam essas iniciativas, a inca- pacidade das lideranças políticas da época de compreenderem a magnitude devastadora de um conflito nuclear com bombas de hidrogênio 2 . A significativa participação de cientistas dos dois lados do Atlântico no projeto original de produção da Fernando de Souza Barros Instituto de Física/UFRJ 1 e-mail: [email protected] A última assinatura de Einstein em um documento público está na carta enviada a Bertrand Russell, em 11 de abril de 1995. Seu apoio tornou o Manifesto Russell-Einstein um marco na luta pela paz mundial O manifesto Russell-Einstein foi lançado em 1955, em plena Guerra Fria. Na época, as duas superpotências, os Estados Unidos e a União Soviética, acumulavam e testavam seus arsenais de bombas atômicas para uma eventual guerra nuclear. Os cientistas já previam o enorme poder de destruição dos arsenais nucleares, principal- mente das bombas de Hidrogênio, algo desco- nhecido para as populações e seus dirigentes. Era previsível também a possibilidade de lança- mento acidental de mísseis com ogivas nucleares. O manifesto Pugwash contribuiu para alertar a opinião pública sobre a grande ameaça que pairava sobre o mundo civilizado. Seu efeito foi certamente construtivo, como evidenciado mais tarde, durante a confrontação de 1962, iniciada com a tentativa de instalação de mísseis sovié- ticos em Cuba. O autor agradece as informações detalhadas fornecidas graciosamente por Sandra Ionno Butcher, responsável pelo projeto “História do Movimento Pugwash” da organi- zação Pugwash Conferences on Science and World Affairs”.

O Manifesto Russell-Einstein e as Conferências Pugwash

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: O Manifesto Russell-Einstein e as Conferências Pugwash

15Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 Einstein e as Conferências Pugwash

Acarta enviada por Einstein paraRussell, em 11 de abril de1955, concordando com os

termos do Manifesto, contêm suaúltima assinatura em um documentopúblico. Sua morte em 18 de abril,sete dias após, de certa maneira preci-pitou a divulgação do Manifesto econtribuiu para seu impacto imediato.A divulgação do Manifesto por Ber-trand Russell para a imprensa interna-cional foi presidida por JosephRotblat, o mais jovem cientista entreos onze assinantes. A época do Mani-festo foi caracterizada pela perspectivado desenvolvimento de arsenais dasbombas de hidrogênio, bem mais po-derosas do que as bombas atômicasque destruíram Hiroshima e Nagasa-ki. Foi a era da Guerra Fria, que dividiao mundo em duas partes. Esses fatoresdificultaram a preparação de um en-contro como proposto no Manifesto,e uma reunião entre cientistas dos“dois lados” foi realizado somente doisanos após, em um remoto vilarejocanadense denomi-nado Pugwash.Posteriormente, aatuação de JosephRotblat foi funda-mental para a con-tinuidade dessasconferências, cujopropósitos são: (1)alertar sobre o peri-go dos arsenais nucleares e (2) proporcaminhos alternativos para conflitosentre nações que levem ao desarma-mento universal. A série iniciada em1957 é reconhecida atualmente comoas “Conferências Pugwash”. Rotblate a organização Pugwash Conferenceson Science and World Affairs receberam

o Premio Nobel da Paz de 1995.Alguns aspectos especiais, que

serão abordados a seguir, são relevan-tes para a história do Manifesto: (1)Por que Russell teve que apelar paraJoseph Rotblat, na época um jovemcientista excluído da ciência “oficial”inglesa, para presidir a divulgação doManifesto? (2) Quais os atores origi-nais da proposta da conferência inter-nacional que aparece no primeiroparágrafo do Manifesto? (3) Por queNiels Bohr não assinou o Manifesto?(4) Por que Otto Hahn, que há muitotempo vinha se opondo ao uso militarda energia nuclear, além de não assi-nar o Manifesto liderou a preparaçãode outra declaração, a Declaração deMainau?

O momento do ManifestoEmbora o Manifesto Russell-

Einstein tenha sido um documentoque marcou o movimento contra ar-mas atômicas na década de 1950, vá-rias iniciativas ocorreram após a 2a

Guerra Mundial pa-ra despertar a opi-nião pública inter-nacional sobre anecessidade de umsistema internacio-nal de controle dasarmas nucleares.Era evidente, paraos cientistas que

assumiam essas iniciativas, a inca-pacidade das lideranças políticas daépoca de compreenderem a magnitudedevastadora de um conflito nuclearcom bombas de hidrogênio2.

A significativa participação decientistas dos dois lados do Atlânticono projeto original de produção da

Fernando de Souza BarrosInstituto de Física/UFRJ1

e-mail: [email protected]

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

A última assinatura deEinstein em um documento

público está na cartaenviada a Bertrand Russell,em 11 de abril de 1995. Seu

apoio tornou o ManifestoRussell-Einstein um marcona luta pela paz mundial

O manifesto Russell-Einstein foi lançado em1955, em plena Guerra Fria. Na época, as duassuperpotências, os Estados Unidos e a UniãoSoviética, acumulavam e testavam seus arsenaisde bombas atômicas para uma eventual guerranuclear. Os cientistas já previam o enorme poderde destruição dos arsenais nucleares, principal-mente das bombas de Hidrogênio, algo desco-nhecido para as populações e seus dirigentes.Era previsível também a possibilidade de lança-mento acidental de mísseis com ogivas nucleares.O manifesto Pugwash contribuiu para alertara opinião pública sobre a grande ameaça quepairava sobre o mundo civilizado. Seu efeito foicertamente construtivo, como evidenciado maistarde, durante a confrontação de 1962, iniciadacom a tentativa de instalação de mísseis sovié-ticos em Cuba. O autor agradece as informaçõesdetalhadas fornecidas graciosamente porSandra Ionno Butcher, responsável pelo projeto“História do Movimento Pugwash” da organi-zação Pugwash Conferences on Science and WorldAffairs”.

Page 2: O Manifesto Russell-Einstein e as Conferências Pugwash

16 Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005

bomba atômica foi conseqüência doreconhecimento de que o estágio emque se encontrava a ciência alemã pos-sibilitaria um empreendimento simi-lar na Alemanha de Hitler. Após averificação de que o programa alemãohavia fracassado, outros motivos apa-receram para justificar o ProjetoManhattan. Um dos mais importan-tes, a evidência do poder de destruiçãoda arma atômica, obtida com os lan-çamentos de duas bombas sobre cida-des do Japão, pode ser apontada comoo marco inicial da carreira armamen-tista da Guerra Fria, entre os EstadosUnidos e a União Soviética.

Foi nesse ambiente que um peque-no grupo de cientistas, convencidosde que os desenvolvimentos em cursoproduziriam novas gerações de armasnucleares e novos recursos técnicospara enviá-las a qualquer parte doplaneta, ganharam notoriedade porpromoverem campanhas contra ostestes nucleares. No final da décadade 1950, bombas de hidrogênio, 1000vezes mais potentes que as bombaslançadas no Japão, estavam sendotestadas na atmosfera. Fora das esfe-ras oficiais, o impacto ambiental damédia anual de 16 testes nucleares daépoca, era somente do conhecimentode cientistas que trabalhavam empartes distantes do planeta e quedetectavam o aumento da radioativi-dade ambiental devido aos testes. Emmarço de 1954 ocorreu o primeiroteste da bomba de hidrogênio norte-americana: o TesteBravo no Atol de Bi-kini. A nuvem ra-dioativa desta bom-ba atingiu um bar-co de pesca japonês,o Dragão Feliz, in-capacitando mem-bros de sua tripu-lação e causandouma morte. Estaocorrência circulou na imprensaocidental da época, motivando o queseria o primeiro debate publico envol-vendo cientistas que exigiam infor-mações mais detalhadas sobre a ra-dioatividade liberada pela explosão.Foi nesta ocasião que Bertrand Russellconheceu Joseph Rotblat.

Bertrand Russell era reconhecido

nos meios científicosda época como filó-sofo e matemático,mas seus ensaios ecampanhas pacifistasjá causavam impactona Inglaterra desde ofinal da 2a GuerraMundial. Seu primei-ro ensaio, publicadotrês dias após a bom-ba na cidade de Hiro-shima, em 15 deagosto de 1945, jácontinha elementosque aparecem no tex-to do futuro Manifes-to: Esta sombria pers-pectiva da raça huma-na está além de qual-quer precedente. A hu-manidade encontra-seperante uma clara es-colha: ou adquirimosum pouco de sensatez,ou iremos todos perecer.Uma reviravolta dopensamento políticoterá que acontecer paraque seja evitado o de-sastre final4.

Embora não sen-do físico, BertrandRussell tinha conhecimento dos desen-volvimentos na área nuclear e, já em1945, alertava a Câmara dos Lordesinglesa sobre bombas de fusão: É con-cebível um novo dispositivo que guarda-

ria certa semelhançaàs atuais bombasatômicas, mas quepoderia ser utilizadopara explosões bemmais violentas, e quedecorreria da síntesede elementos mais pe-sados a partir do hi-drogênio. Isso serápossível se nossa

civilização tecnológica seguir em frentesem se destruir: mas tudo indica queacontecerá5.

Joseph Rotblat foi o único cien-tista que saiu do Projeto Manhattanpor questões morais. Isso ocorreuquando tomou conhecimento, no fi-nal da 2a Guerra Mundial, que a Ale-manha nazista já não tinha condições

de fabricar bombas atômicas. Enfren-tando a reação oficial contrária a suadecisão, Rotblat retornou a Inglaterra,onde havia trabalhado antes do inícioda guerra, e iniciou sua campanhacontra as armas atômicas, fundandoa Associação dos Cientistas Atômicos(ASA em inglês). Os propósitos dessaassociação, assim como aqueles dasua similar norte-americana, a Fede-ração dos Cientistas Atômicos (FASem inglês), eram, e continuam sendo,o de expor projetos nucleares militaresem elaboração pelo mundo, e decontribuir para o conhecimento públi-co das questões das armas de destrui-ção maciça.

Em 13 de abril de 1954, logo apóso teste norte-americano da bomba dehidrogênio no Atol de Bikini, e conse-qüente contaminação dos tripulantesdo navio pesqueiro japonês DragãoFeliz, a BBC convidou Russell e Rotblatpara explicarem para o público o queera a bomba de hidrogênio. Rotblat

Einstein e as Conferências Pugwash

Seqüência de fotos do Teste Bravo: a primeira logo no inícioda explosão e acima, quando o cogumelo começa a se formar.Note o tamanho dos navios de guerra colocados próximos aoponto zero para se avaliar o efeito da explosão sobre umafrota.

Joseph Rotblat foi o únicocientista que saiu do Projeto

Manhattan por questõesmorais. Isso ocorreu quando

tomou conhecimento, nofinal da 2a Guerra Mundial,que a Alemanha nazista já

não tinha condições defabricar bombas atômicas

Page 3: O Manifesto Russell-Einstein e as Conferências Pugwash

17Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005

abordou os aspectos técnicos e Russell,os éticos e morais. O programa teveuma enorme audiência e provocouum extenso debate na comunidadecientífica, nos dois lados do oceanoAtlântico. O debate técnico estavarelacionado com a informação queprevalecia nos meios científicos de quea bomba de hidrogênio não geravaradioatividade. Entretanto, com basenos dados japoneses sobre o efeito dabomba de hidrogênio na tripulação donavio de pesca japonês, Rotblatpostulou que a bomba de hidrogêniopossuía um estágio final do tipo “fis-são”, o que seria a razão da contami-nação radioativa daqueles tripulan-tes6.

Foram esses os eventos que leva-ram Bertrand Russell à idéia de orga-nizar um programa de radio na Ingla-terra, com o propósito de atingir ogrande público com informaçõessobre bombas atômicas. O programa“A Humanidade em Perigo” foi umgrande sucesso, tendo atingido umaaudiência entre 5 a 6 milhões, sendodecisivo para a montagem de um no-vo evento: o Manifesto Russell-Eins-tein.

Os autores do ManifestoO físico Max Born, que recebeu

em 1954 o prêmio Nobel de Física porseus trabalhos teóricos sobre a mecâ-nica quântica, foi um dos primeiroscientistas que contatou Bertrand Rus-sell logo após a divulgação do progra-ma “A Humanidade em Perigo”, emcarta datada de 21 de janeiro de 1955.De acordo com Nicholas Griffin7: Bornjá estava pensando em um apelo aosgovernos das potências militares da épo-ca, que seria assinado por laureados doPrêmio Nobel, mas estava inseguro sobrea melhor maneira de implementá-lo.Max Born solicitou o apoio de Russell àproposta, o que foi aceito de imediato8.

Em um depoimento apresentadopor Nicholas Griffin (editor da TheSelected Letters of Bertrand Russell: ThePublic Years, 1914-1970 (New York,Routledge, 2001) é dito: Born nãotinha condições para o empreendimento:sua saúde era precária e não possuíaexperiência em atividades de caráter pú-blico. A tarefa da organização do apeloficou então para Russell.

Born estava alimentando estaidéia há algum tempo, tendo escritopara Einstein em 28 de novembro de1954 sobre a possibilidade de engajarcientistas laureados com o prêmioNobel nessa empreitada: Li recentemen-te em um jornal a seguinte afirmaçãoatribuída a você: “Se eu tivesse que nas-cer de novo, eu não seria um físico, masum artesão”. Essas palavras muito meconfortaram pois tenho tido pensamen-tos similares, face aos males que a nossabela ciência tem trazido ao mundo...Venho considerando o emprego da minhanotoriedade [devido ao prêmio Nobel]...na tentativa de despertar a consciênciade nossos pares ao desenvolvimento detão terríveis bombas9.

Born acompanhou as providên-cias tomadas por Russell, apresentan-do um relato a Einstein sobre a decisãode Russell em carta de 29 de janeirode 195510. Nesta carta, Born tambéminforma que sua correspondência comYukawa, sobre o lançamento de bom-bas atômicas no Japão, seria publi-cada em um periódico japonês.Yukawa, prêmio Nobel de Física em1949 por seus estudos em partículareselementares, foi um dos signatáriosdo Manifesto.

Logo após o programa “A Huma-nidade em Perigo”, Joliot-Curie, prê-mio Nobel de Química de 1935, comcontribuições científicas que levaramà “era nuclear”, iniciou sua partici-pação ao Manifesto. Joliot havia par-ticipado ativa-mente da campa-nha contra as ar-mas nucleares quefoi iniciada emum encontro doCouncil of Parti-sans for Peace, nacidade de Estocol-mo, em 1950.Desta iniciativanasceu o Apelo deEstocolmo, querecebeu eventual-mente o apoio de500 mil de assina-turas11. Em 1951,Juliot-Curie haviaproposto comLeopold Infeld(outro assinante

do Manifesto), uma Conferência paraa Paz Mundial com uma temáticamais ampla possível, a fim de atrairum grande número de cientistas deprojeção internacional. Ao tomarconhecimento do programa “A Hu-manidade em Perigo”, Joliot-Curieescreveu para Russell que ...o apoio deuma personalidade do seu porte ao em-preendimento ajudaria a realização daconferência12. Russell acatou pronta-mente a sugestão de Joliot-Curie,enfatizando entretanto a necessidadede que o Manifesto precedesse à con-ferência. Foi assim estabelecida a tro-ca de mensagens entre esses atores damontagem do Manifesto. Em carta de11 de fevereiro 1955 para Einstein,Russell menciona a proposta de Joliot-Curie da conferência internacional:Joliot-Curie aparentemente está conven-cido da importância de uma grande con-ferência de homens de ciência13. Em 20de abril de 1955 Russell visitou Joliot-Curie em Paris. De acordo com Golds-mith [11], Russell teria iniciado esteencontro com o comentário Eu souanticomunista, mas é o fato de você sercomunista que me induz a trabalharcom você14. Os termos do Manifesto,refletindo a proposta original de MaxBorn, foram certamente elaboradospor Russell, mas como conseqüênciadeste encontro com Joliot-Curie, aconvocação de cientistas para umaconferência internacional sobre asconseqüências desastrosas de uma

Einstein e as Conferências Pugwash

Fotografia de Leo Szilard, à direita, com Einstein. A foto foi tiradaem Princeton, nos Estados Unidos, e supostamente representa ohistórico pedido de Szilard para que Einstein escrevesse ao presi-dente Roosevelt alertando-o sobre a viabilidade das bombas atô-micas e que os aliados deveriam construir artefatos nuclearespara conter a expansão da Alemanha nazista.

Page 4: O Manifesto Russell-Einstein e as Conferências Pugwash

18 Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005

guerra nuclear foi colocada no primei-ro parágrafo do Manifesto.

A estatura científica e moral deAlbert Einstein foi determinante parao sucesso do Manifesto. No percursoda sua carreira, Einstein sempre atuouem questões políticas sensíveis. Hávárias iniciativasque bem caracteri-zam essa posturade Einstein. Em ou-tubro de 1914,noventa e dois cien-tistas alemães assi-naram o ManifestoFulda, que procla-mava o dever da ci-ência alemã de estara serviço da pátriae de suas forças ar-madas. Logo após,Einstein assinouum contra-manifesto, organizado porG.F. Nicolai, que promovia o interna-cionalismo e a paz15. Einstein partici-pou também do Emergency Committeeof Atomic Scientists, uma iniciativapioneira de informação ao grande pú-blico sobre questões nucleares e paralevantar recursos destinados a campa-nhas contra o uso militar da energianuclear16. Ainda em 1944, AlbertEinstein promovia o internaciona-lismo como alternativa pós-2a GuerraMundial, reconhecendo a importânciade consultas entre “os cientistas maisdestacados” dos países aliados, que naépoca incluíam a União Soviética, pa-ra congregar a influência desses cientis-tas junto aos respectivos governos, paraque sejam criados força militar e governosupranacionais17.

A contribuição de Einstein para opróprio texto do Manifesto transpa-rece no seu telegrama de 24 de maiode 1946, em nome do Committee ofAtomic Scientists: A conquista da ener-gia atômica mudou tudo exceto a nossamaneira de pensar, e, assim, seguimos aderiva rumo a uma catástrofe sem limi-tes. Nós, os cientistas que liberaram essaimensa fonte de energia, temos umatremenda responsabilidade nessa dispu-ta mundial de vida-ou-morte, a fim deque a conquista do átomo seja para obenefício de toda a humanidade e nãopara sua destruição18.

Em 11 de fevereiro de 1955, Ber-

trand Russell enviou uma carta a Eins-tein, expondo eloqüentemente a ne-cessidade do Manifesto: Como qualquerpessoa capaz de refletir, estou profun-damente chocado com a corrida paraaquisição de armas nucleares. Você eminúmeras ocasiões expôs seus sentimen-

tos e opiniões com osquais concordo intei-ramente. Acredito quecientistas eminentesdeveriam realizar al-gum ato dramáticopara sensibilizar aopinião publica e go-vernantes de que de-sastres podem ocorrer.Você acredita ser pos-sível reunir talvezseis indivíduos damais alta reputaçãocientífica e, sob sua

liderança, preparar um pronunciamentosolene sobre a necessidade imperativa dese evitar o conflito armado? Esses indi-víduos deveriam possuir posições polí-ticas tão diversas que qualquer declara-ção com suas assinaturas estaria livredo viés pró ou anticomunista... Atribuoespecial importância aos seguintes pon-tos. Primeiro: seria absolutamente fútillutar por um acordo que proíba a bombaH. Tal acordo não teria valor após a con-flagração de uma guerra; cada lado par-tiria para a produção do maior númerode bombas possível. Segundo: é essencialnão considerar alternativas para o usopacífico da energia nuclear... Terceiro:deve prevalecer rigorosa neutralidade emqualquer sugestão ou proposta paraevitar a guerra atômica... Tudo que seráafirmado o será em nome da humani-dade, não deste ou daquele grupo.Quarto: deve ser en-fatizado que a guer-ra poderá significar odesaparecimento davida no planeta...Quinto: embora abomba H seja atual-mente o ponto cen-tral, ela não exaurea capacidade da ciência de proporcionarnovas alternativas, sendo provável queos perigos advindos de material bélicobacteriológico sejam, em pouco tempo,da mesma magnitude. Isso reforçaria aconstatação fundamental de que a guer-

ra e a ciência já não podem coexistir19.Esta carta de Russell recebeu o ple-

no reconhecimento de Einstein20. Em16 de fevereiro Einstein respondia aRussell: Concordo com cada palavra dasua carta de 11 de fevereiro. Algo deveser feito nesta circunstância, algo queimpressione o público em geral e as lide-ranças políticas. Isso poderia ser alcan-çado em uma declaração pública, assi-nada por um número pequeno de pessoas- por exemplo, doze indivíduos cujas con-tribuições científicas (científicas no sen-tido pleno) lhes deram estatura interna-cional e cujas declarações não perderão

efetividade face àsrespectivas afiliaçõespolíticas. Poderíamosincluir pessoas comoJoliot, que são iden-tificadas politica-mente, desde queconsigamos contra-balançá-las por ou-

tras do campo oposto. Sugiro que o textoque será apresentado para as assinatu-ras seja preparado por duas ou trêspessoas - realmente, seria preferível quefosse apenas você - mas de um modo queassegure antecipadamente que haverá

Einstein e as Conferências Pugwash

Eugene Rabinovich foi o cientista norte-americano que participou ativamente daorganização da primeira conferênciaPugwash em 1957. Rabinowich era entãopresidente da Federação dos CientistasAmericanos, uma organização que inicioua campanha contra armas nucleares nosEstados Unidos após a 2ª Guerra Mundial.Rabinowich é reconhecido como um dosfundadores da biofísica.

Embora a bomba H sejaatualmente o ponto central,ela não exaure a capacidadeda ciência de proporcionarnovas alternativas, sendoprovável que os perigos

advindos de material bélicobacteriológico sejam, empouco tempo, da mesma

magnitude. Isso reforçaria aconstatação fundamental deque a guerra e a ciência já

não podem coexistirB. Russell para Einstein

Concordo com cada palavrasua. Algo deve ser feitonesta circunstância, algo

que impressione o públicoem geral e as lideranças

políticasEinstein para B. Russell

Page 5: O Manifesto Russell-Einstein e as Conferências Pugwash

19Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005

total acordo por parte, ou pelo menos,de alguns dos signatários21...

Na carta de 16 de fevereiro, Eins-tein também prometia solicitar oapoio ao Manifesto a cientistas nosEstados Unidos e propunha nomes decolegas na Europa. Entre esses, estavaLeopold Infeld22,que era sugeridopara ajudar noscontatos com cien-tistas russos. Eins-tein também enfa-tizava a partici-pação de Niels Bohr.Em mensagem pos-terior Russellinformou a Einsteinsobre um encontroque tivera com Nehru, então PrimeiroMinistro indú, sobre a possibilidadeda Índia liderar uma iniciativa deapoio ao Manifesto, após sua divul-gação. Einstein respondeu recomen-dando que Albert Schweitzer, prêmioNobel da Paz em 1952, tivesse conhe-cimento do Manifesto e propõe queRussell se responsabilize pela feituradefinitiva do texto e dos planos parasua divulgação (ver no Apêndice, otexto final do Manifesto).

Em carta de 5 de abril, Russellapresentou a versão final do Mani-festo a Einstein e relacionou aquelesque iriam assiná-lo. Einstein respon-deu para Russell em 11 de abril. Estaúltima carta de Einstein contém ape-nas três linhas: Agradeço sua carta de5 de abril. Desejo com satisfação assinarsua excelente declaração. Também con-cordo com sua seleção de possíveis signa-tários23.

A notícia da morte de Einstein, em18 de abril de 1955, chegou a Russellantes da carta de 11 de abril, quandoele voava de Roma para Paris. Foi ummomento duro para Russell, que re-conhecia a importância fundamentaldo endosso de Einstein para o sucessodo Manifesto. Ao chegar no seu ho-tel, em Paris, Russell verificou comemoção que a carta resposta de Eins-tein estava a sua espera24.

As assinaturas ausentesComo mencionado acima, Eins-

tein e Russell reconheciam a impor-tância da participação de Niels Bohr

para o sucesso do Manifesto. Tal en-dosso era fundamental face a projeçãointernacional das contribuições cien-tíficas de Bohr, que tinha pleno co-nhecimento da capacidade de destrui-ção destas novas armas. Bohr eratambém reconhecido por sua campa-

nha para a impedira “corrida nuclear”da Guerra Fria.Einstein enviou car-ta a Bohr em 2 demarço de 1955, in-cluindo cópia dacarta de Russell quedescrevia o projetodo Manifesto. Nacarta, Einstein es-crevia: Bertrand

Russell tem conhecimento [desta carta],tendo pedido que eu escrevesse para você.Evidentemente, ele sabe muito bem quevocê poderia dar uma grande ajuda aoprojeto devido à sua influência, experiên-cia e relações pessoais com pessoas bri-lhantes; realmente, ele se apercebeu deque sua assessoria e participação ativasão virtualmente indispensáveis para osucesso do projeto... Será um grande pas-so se você e Bertrand Russell fizerem umacordo sobre seus pontos principais25.

Na sua autobiografia, Russell in-forma que enviou repetidas cartas etelegramas para Bohr26. Nesta auto-biografia, a resposta com a decisão fi-nal de Bohr, de 23 de março, de nãoassinar o Manifesto, tem a seguinteapreciação: Bohr não acreditou que adeclaração teria o efeito desejado, princi-palmente pela possibilidade de não seconseguir o acesso à informações críticas,considerado como essencial para ele. Eletambém temia que a declaração criasseum impasse para a conferência progra-mada nas Nações Unidas, mas afirmouque consideraria a declaração com muitaatenção, esperando chegar a uma con-clusão mais satisfatória27.

Bohr não assinou o Manifestonem participou da organização dareunião que eventualmente aconteceuno povoado de Pugwash, priorizandoa promoção da conferência das NaçõesUnidas.

Vários cientistas que não assina-ram o Manifesto participaram de umadeclaração paralela, reconhecida pos-teriormente como a Declaração de

Mainau. A proposta desta declaraçãofoi liderada por Otto Hahn, cientistaalemão que também se opunha ao usomilitar da energia nuclear28. Ao tomarconhecimento do Manifesto concebidopor Russell, Otto Hahn já se sentiacomprometido com a preparação dadeclaração que seria assinada por cien-tistas que participariam de reuniãocientífica anual, na Alemanha Ociden-tal. Esta declaração foi divulgada em15 de julho de 1955, seis dias após àdo Manifesto Russell-Einstein29. Em-bora a declaração liderada por Hahntenha conseguido eventualmente oapoio de cinqüenta e um cientistas,ela não repercutiu fora dos ciclos cien-tíficos. Esse fato é reconhecido comodevido a atuação reservada de seusmentores. Russell, ao contrário, optoupelo apoio da mídia desde o primeiromomento da preparação da divulga-ção do Manifesto, o que garantiu suaenorme repercussão. Ainda permane-cem sem respostas os motivos porqueHahn não se somou à iniciativa deEinstein e Russell, pois os textos e pro-pósitos dessas duas declarações guar-dam similaridade, como pode serapreciado nos seguintes fragmentosda Declaração de Mainau: Em uma

Einstein e as Conferências Pugwash

A notícia da morte de Einsteinchegou a Russell antes da

carta de 11 de abril, quandoele voava de Roma para

Paris. Foi um momento duropara Russell, mas chegar no

seu hotel, em Paris, eleverificou com emoção que acarta resposta de Einstein

estava a sua espera

Sir Joseph Rotblat é presidente emérito doPugwash. Presidente de 1988 a 1997, foiagraciado em 1995 com o Prêmio Nobelda Paz em reconhecimento a seu trabalho,através do Pugwash, a favor do desarma-mento nuclear. É Professor Emérito de Físicana Universidade de Londres e único signa-tário vivo do manifesto (foto gentilmentecedida pelo comitê Pugwash).

Page 6: O Manifesto Russell-Einstein e as Conferências Pugwash

20 Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005Einstein e as Conferências Pugwash

O manifesto Russell-Einstein

Na situação na qual se encontra a hu-manidade, acreditamos que os cientistasdevam realizar uma conferência sobre osperigos que surgiram com o desenvolvi-mento de armas de destruição maciça, como propósito de considerarem uma resolu-ção, cujo escopo é proposto em anexo.

Falamos nessa ocasião não comomembros dessa ou daquela nação, conti-nente ou crença, mas como membros daespécie biológica dos Homens, cuja sobre-vivência é duvidosa. O Mundo está repletode conflitos; mas, sobrepondo-se a todos,paira a tremenda confrontação entre comu-nismo e anticomunismo.

Quase todos que são politicamente cons-cientes têm fortes sentimentos sobre estaquestão central e suas conseqüências; masé nosso apelo que ponham de lado essessentimentos e que todos se consideremapenas como membros de uma espéciebiológica com uma história espetacular ecujo desaparecimento nenhum de nós po-deria desejar.

É nosso propósito não emitir qualquerconceito cujo sentido tenda mais para umgrupo do que para o outro. Todos, igual-mente, estão em perigo, mas, se o perigofor compreendido, existe a esperança deque, juntos, possamos evitá-lo.

Teremos que aprender a pensar de mododiferente. Não deveremos perguntar sobrequais os meios nos levariam a uma vitóriamilitar, qualquer que seja o lado que pre-ferimos, porque esses recursos não existemmais; a questão que deveremos fazer paranós mesmos é: como poderemos evitar oconflito militar cuja conseqüência seria odesastre para todos?

O público em geral, mesmo pessoas emposições de autoridade, não dominam osignificado da participação de uma guerracom bombas atômicas. Elas ainda pensamque cidades poderiam ser devastadas e reco-nhecem que as novas bombas são mais po-derosas. Assim, se a bomba atômica pôdedevastar Hiroshima, a bomba H poderiaser capaz de arrasar cidades maiores comoLondres, Nova Iorque e Moscou.

Não é posto em dúvida que em umaguerra com bombas de hidrogênio, grandescidades seriam arrasadas. Mas essa seriauma das suas menores conseqüências. Setodos que vivem em Londres, Nova Iorquee Moscou são exterminados, o mundopoderia, em alguns séculos, ser recuperadodo golpe. Mas sabemos agora, especialmen-te desde o teste nuclear de Bikini, de que osefeitos dessas novas bombas nucleares atin-girão, gradualmente, áreas bem maiores doque as previamente supostas.

Afirmamos que as bombas que estãosendo produzidas agora são 2.500 vezes

mais poderosas do que aquela que arrasouHiroshima.

Uma bomba de tal porte, explodindo per-to do solo ou d’água, envia partículas radioa-tivas para a parte superior da atmosfera.Essas partículas se depositarão vagarosa-mente, caindo na superfície terrestre sob aforma de poeira ou de chuva mortíferas. Foiessa deposição que infectou os pescadores ja-poneses e sua pesca.

Ninguém conhece qual o alcance da difu-são dessas partículas, mas as autoridadesmais competentes concordam unanimemen-te que uma guerra com bombas H poderiaser o fim da espécie humana. Existe o temorde que haveria aniquilação global se muitasbombas H fossem utilizadas; a morte seriarápida apenas para uma minoria; para amaioria, seria uma lenta agonia de enfermi-dades e de decaimento físico.

São muitos os pronunciamentos de cau-tela de cientistas eminentes e de autoridadesem estratégia militar. Nenhum deles afirmaque o pior cenário acontecerá. O que é dito éque são conseqüências possíveis, e que nin-guém tem certeza do que ocorreria. Nãoconstatamos que as expectivas desses espe-cialistas dependam, em qualquer grau deintensidade, de ideologias ou preconceitos,sendo resultantes do conhecimento específicosobre essas armas. Verificamos que quantomaior é o conhecimento científico da pessoa,maior é o seu pessimismo.

Eis aí, portanto, o dilema que apresen-tamos sem nuanças, inquietante e inesca-pável: vamos acabar com a espécie humana,ou vamos renunciar à guerra1? Mas não seenfrenta este dilema por ser tão difícil abolira guerra.

Eliminar a guerra implica em durasimposições à soberania nacional2. Mas o quetalvez impeça muito mais essa superação éque a palavra “humanidade” soa distante eabstrata. As pessoas dificilmente concebemque o perigo alcançaria elas próprias, filhose netos, mas apenas uma difusa e longínquahumanidade. Elas dificilmente concebem arealidade do perigo iminente como indiví-duos, assim como também para aqueles quemais prezam, de perecerem de forma tãoterrível. Assim, apenas se espera que, talvez,a guerra possa continuar existindo se essasarmas são proibidas.

Essa esperança é ilusória. Qualquer acor-do estabelecido em tempo de paz, contrárioao usa das bombas H, não seria respeitadoassim que o conflito fosse deflagrado. Os doiscampos iniciariam a construção dessas bom-bas, porque a violação unilateral levariainevitavelmente à vitória.

Se o acordo do uso de armas nuclearesfor parte da redução geral de armamentos3,não seria alcançada a solução derradeira, mascertamente contribuiria para propósitos im-portantes.

Primeiro, porque qualquer acordo Leste-Oeste estaria na direção desejável de aliviara tensão atual. Segundo, a eliminação dasarmas termonucleares, na eventualidade decada lado acreditar que o outro está atuan-do com sinceridade, reduziria o medo deataque súbito no estilo Pearl Habour, expec-tativa que tem contribuído para o estadogeral de apreensão dos dois lados. Devemos,portanto, manifestar que tal acordo seriabenvindo, embora sendo apenas o primeiropasso.

Como maioria dos signatários, fica aquiexpresso o sentimento de neutralidade, e, nacondição de seres humanos, se declara quese as questões entre o Leste e o Oeste foremdecididas de modo a conseguir o reconhe-cimento satisfatório de qualquer cidadão,seja comunista ou anticomunista, europeuou asiático, branco ou negro, haveria umasolução sem a guerra. Deseja-se que isso sejaplenamente entendido nos dois lados.

Perante nós, se assim optamos, haveriacomo contribuir para o progresso e afelicidade, o conhecimento e a sabedoria.Deveríamos, ao contrário, optar pela mor-te, porque não podemos esquecer nossasdisputas? Apelamos como seres humanosa seres humanos: Lembrem-se de sua hu-manidade e esqueçam o resto. Se assim forfeito, teremos aberto o caminho do Paraíso;se isso não for possível, nada restará a nãoser o risco da aniquilação total.

Resolução: Convidamos esse Congresso,e, em seu nome, a todos os cientistas e aopúblico em geral, a endossarem a seguinteresolução:

Cientes da constatação de que em umaeventual guerra mundial armas nuclearesserão certamente utilizadas, ameaçando aexistência da humanidade, conclamamosos governos que aceitem, e que reconheçampublicamente, que os interesses de estadosnão podem ser alcançados militarmente;instamos, conseqüentemente, que bus-quem meios pacíficos para a negociação dasquestões em pauta.

Max Born, Percy W. Bridgman, AlbertEinstein, Leopold Infeld, Frederic Joliot-Cu-rie, Herman J. Muller, Linus Pauling, CecilF. Powell, Joseph Rotblat, Bertrand Russell,Hideki Yukawa

Notas de roda-pé:1. O professor Joliot-Curie deseja acres-

centar as seguintes palavras: “como possi-bilidades para eliminar diferenças entreEstados”

2. O professor Joliot-Curie deseja acres-centar que essas limitações devem ser acei-tas por todas as partes e que sejam do inte-resse de todos.

3. O professor Muller faz a observaçãocautelar de que isso seja interpretado como“uma concomitante e balanceada reduçãode todas as armas.”

Page 7: O Manifesto Russell-Einstein e as Conferências Pugwash

21Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 Einstein e as Conferências Pugwash

guerra total, a Terra pode se tornar tãoradioativa que nações inteiras poderãoser destruídas. Muitos homens e mulhe-res de países neutros morrerão... As na-ções independentes, congregadas, deve-riam considerar a renúncia voluntáriada força como último recurso político.Se elas não estão preparadas para isso,elas deixarão de existir.

Finalmente, devem ser registradosa inexistência de qualquer assinaturade cientistas soviéticos no Manifestoe o número pequeno de norte-ameri-canos. Contribuíram certamente paraisso as tensões da Guerra Fria naUnião Soviética e a campanha anti-comunista do senador JosephMcCarthy, nos Estados Unidos.

A divulgação do ManifestoNa sua autobiografia, Russell

demonstra a atenção que dispensou àdivulgação do Manifesto: Para mim,deveria ser feita uma cobertura dramáti-ca para focalizar a atenção sobre o que adeclaração pretendia informar e sobre aestatura daqueles queiriam endossá-la.Após descartar váriaspropostas, decidi re-correr a assessoresprofissionais. Eu ti-nha tido a oportu-nidade de conhecer oeditor do Observer, esenti que ele tinhauma posição liberal eacolhedora. Ele demonstrou possuir maisque esses dois atributos, tomando ainiciativa de convocar colegas paraapreciar a proposta30. Eles concordaramque algo especial deveria ser tentado alémde simplesmente publicar que a declaraçãotinha assinaturas de eminentes cientistasde várias ideologias. Foram eles quesugeriram o encontro com a imprensainternacional para levar o Manifesto aogrande público. Esses profissionais forammais além. Eles se organizaram paraconseguir recursos para o encontro com amídia, sob a condição de isso fossedivulgado após o evento. Foi finalmentedecidido que a conferência com a imprensaseria no dia 9 de julho (de 1955). Umasala foi reservada no Caxton Hall umasemana antes. Convites foram enviadospara editores de todos jornais britânicose corresponsais de rádio e televisão

estrangeiros, além da TV de Londres. Oconvite apenas informava que algo muitoimportante e de interesse mundial seriadeclarado. As aceitações foram em tãogrande número que houve necessidade dese mudar o encontro da sala para umauditório. A semana após a conferênciafoi horrível. O telefone tocava todo o tempoe a sineta da porta também. Eram pessoasda imprensa e editores querendo maisinformações exclusivas... Tudo isso caiunos braços da minha esposa e de nossaempregada. Eu tinha sido aconselhado anão dar declarações e só atender telefo-nemas de familiares. Ninguém deveria sairde casa. Tentei ler e trabalhar sem su-cesso durante toda a semana, sentado emuma cadeira. Mais tarde me informaramque eu repetia freqüentemente a seguintefrase: Isso será um foguete que falhou31.

No encontro com a mídia, Russellnecessitava da presença de alguém comconhecimentos técnicos necessáriospara esclarecimentos sobre a bomba Hque certamente viriam da audiência.Russell decidiu que esta pessoa também

deveria presidir o atoda divulgação. Nãofoi fácil encontrarum físico nucleardisposto a aparecerperante uma platéiade personalidades damídia. Finalmente,Russell decidiu-sepor consultarRotblat, na época

um físico jovem, mas o único assinantedo Manifesto que tinha trabalhado noProjeto Manhattan. Rotblat aceitou apresidência do evento. Em depoimentorecente, Rotblat registrou que esta suaatuação lhe permitiu testemunhar aimediata cobertura do Manifesto pelaimprensa mundial. Reações contráriasforam superadas em número pelasfavoráveis ao espírito do Manifesto, amaioria solicitando mais informaçõessobre as novas armas32.

A primeira ConferênciaPugwash

Um aspecto que diferencia o Ma-nifesto da Declaração de Mainau é queo primeiro proponha uma ação espe-cial: a de congregar cientistas dos doislados da “cortina de ferro”, em plenaGuerra Fria. É importante registrar que

Russell necessitava dapresença de alguém com

conhecimentos técnicos paraesclarecimentos sobre a

bomba H, e assim decidiu-se por consultar Rotblat, naépoca um físico jovem, maso único assinante do mani-festo que tinha trabalhado

no Projeto Manhattan

encontros desta natureza estavamsendo propostos na época33. Em 1954,Jawaharlal Nehru, então Primeiro Mi-nistro da Índia, propunha que cientis-tas organizassem uma comissão coma missão de esclarecer a opinião públi-ca mundial sobre as conseqüências deuma guerra nuclear28. Joseph Rotblat,representando a ASA e EugeneRabinowitch34, pela FAS, reconheceramo mérito da proposta de Nehru e ini-ciaram uma longa colaboração, ini-cialmente para organizar encontros detrabalho, com cientistas franceses. Oprimeiro encontro ocorreu em Londres,algumas semanas após a divulgação doManifesto, durante os dias 3 a 5 deagosto de 1955. Foi uma reunião pe-quena, mas que deu a Rabinovich e aRotblat a oportunidade de conheceremo acadêmico Alexander Topchiev35. Ahistória da organização da ConferênciaPugwash é longa. Como mencionadona introdução, o encontro entre cien-tistas dos “dois lados” foi realizadosomente em julho de 1957, em umremoto vilarejo canadense denomina-do Pugwash, graças ao apoio finan-ceiro de doadores anônimos e, princi-palmente, de Cyrus Eaton, um mag-nata de petróleo que tinha nascido emPugwash e que ofereceu suporte lo-gístico e sua residência de verão pararealização da conferência36.

A conferência em Pugwash reu-niu 22 participantes de dez países, dis-tribuídos entre os dois lados da “cor-tina de ferro”. A decisão de aceitar oconvite para participar desta confe-rência não deve ter sido fácil paramuitos. Em plena “era MaCarthy”, aaceitação poderia trazer péssimas con-seqüências profissionais para cientis-tas norte-americanos. Do lado sovié-tico, a “licença” foi dada a um grupopequeno, do qual participavam dois“tradutores” que anotavam todas asdiscussões37.

Em 2003, a 53a Conferência Pug-wash ocorreu próximo ao povoado dePugwash, na cidade de Halifax, Cana-dá. Ela foi bem maior do que a primeira,com 172 participantes de 39 países. Osdilemas fundamentais, infelizmente,continuam os mesmos e bem maiscomplexos. A confrontação comunis-mo versus anticomunismo está sendosubstituída pela disputa dos recursos

Page 8: O Manifesto Russell-Einstein e as Conferências Pugwash

22 Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005Einstein e as Conferências Pugwash

Notas1O autor agradece as informações detalhadas

fornecidas graciosamente por SandraIonno Butcher, responsável pelo projeto“História do Movimento Pugwash” daorganização Pugwash Conferences on Sci-ence and World Affairs.

2A bomba de hidrogênio, bomba H, difere fun-damentalmente das duas bombas atô-micas jogadas no Japão. Nessas últimas,a energia liberada é conseqüência da que-bra (fissão) de núcleos atômicos pesados,enquanto que a liberação da energia deuma bomba de hidrogênio decorre dafusão de núcleos atômicos leves. O poderexplosivo das bombas lançadas no Japãoé expresso em kilotons (equivalente a1000 toneladas do explosivo químicoTNT), enquanto que aquele das bombasde hidrogênio é dado em megatons(1.000.000 toneladas de TNT).

3A carta de 15 de agosto de 1939 para o Presi-dente Roosevelt dos Estados Unidos con-tinha um memorandum do cientista LeoSzilard, onde pode ser lido o seguinte co-mentário: “... O poder de destruição dessasbombas é apenas estimado grosseiramente,mas não existe qualquer dúvida de que serábem acima de qualquer projeção militarconvencional”. Ver: Heisenberg and the NaziAtomic Bomb Project, editado por PaulLawrence Rose (University of CaliforniaPress, Los Angeles, 1996), p. 81-105.

4Bertrand Russell, The Bomb and Civilization.The Glasgow Forward 3939393939:33 (1945). In:Bertrand Russell: His Works. Volume 22:Civilization and the Bomb, 1944-47 (Ken-neth Blackwell, in progress).

5J. Rotblat, Science and World Affairs: Hystoryof the Pugwash Conferences (Dawsons ofPall Mall, London, 1962), p. 72.

6Joseph Rotblat conhecia o projeto da bombade hidrogênio, tendo participado de dis-cussões, durante sua participação do Pro-jeto Manhattan, em Los Alamos, commembros da equipe de Edward Teller,cientista que atuou decididamente para aprodução dessas bombas. Rotblat publi-cou um artigo sobre sua hipótese de quea bomba de hidrogênio tinha um estágiofinal do tipo “fissão” em 1955: The Hy-drogen-Uranium Bomb, Bulletin of theAtomic Scientists 1111111111, 171-2, 177 (1955).

7Nicholas Griffin, ed., The Selected Letters ofBertrand Russell: The Public Years, 1914-1970 (Routledge, New York, 2001),p. 489.

8Carta de Bertrand Russell para Max Born de25 de janeiro de 1955. Referida porNicholas Griffin, ed., The Selected Lettersof Bertrand Russell: The Public Years, 1914-1970 (Routledge, New York, 2001), p.489.

9Max Born para Albert Einstein, 28 de novem-bro de 1954. Mencionado em Max Born,

The Born-Einstein Letters: Correspondencebetween Albert Einstein and Max and HedwigBorn from 1916 to 1955 with commentariesby Max Born, traduzido para o inglês porIrene Born (Walker and Company, NewYork, 1971), p. 229-230. Born não sabiaque o comentário de Einstein não se referiaao uso indevido da Ciência. Em carta de17 de janeiro de 1955, Einstein informoua Born que aquele comentário se referiaàs contingências do trabalho científico.

10Max Born para Albert Einstein, 28 de novem-bro de 1954. Mencionado em Max Born,The Born-Einstein Letters: Correspondencebetween Albert Einstein and Max and HedwigBorn from 1916 to 1955 with commentariesby Max Born, traduzido para o inglês porIrene Born (Walker and Company, NewYork, 1971), p. 234.

11Maurice Goldsmith, Frédéric Joliot-Curie: A Bi-ography (Lawrence and Wishart, London,1976), p. 189-190.

12Maurice Goldsmith, Frédéric Joliot-Curie: A Bi-ography (Lawrence and Wishart, London,1976), p. 193.

13Carta de Bertrand Russell para Max Born de25 de janeiro de 1955. Referida por Nicho-las Griffin, ed. The Selected Letters of Ber-trand Russell: The Public Years, 1914-1970(Routledge, New York, 2001), p. 489.

14Bertrand Russell, mencionado por MauriceGoldsmith, Frédéric Joliot-Curie: A Biogra-phy (Lawrence and Wishart, London,1976), p. 193-194.

15John Cornwell, Hitler’s Scientists: Science, Warand the Devil’s Pact (Viking, New York,2003), p. 32-33, 57-58, 69.

16Na sua fase inicial, o influente periódico Bulle-tin of the Atomic Scientists recebeu apoiofinanceiro deste comitê.

17Otto Nathan and Heinz Norton, eds., Einsteinon Peace (New York: Avenel Books, 1981),p. 303.

18Otto Nathan e Heinz Norton, eds., Einstein onPeace (Avenel Books, New York, 1981), p.376.

19Bertrand Russell para Albert Einstein, Febru-ary 11, 1955. Mencionada in Otto Na-than and Heinz Norden, eds., Einstein onPeace (Avenel Books, New York, 1981)p. 623-625.

20Ronald W. Clark, Einstein: The Life and Times(Avon Books, New York, 1984), p. 759.

21Albert Einstein para Bertrand Russell, Febru-ary 16, 1955. Mencionada in Otto Na-than and Heinz Norden, eds., Einstein onPeace (Avenel Books, New York, 1981), p.625-626.

22Leopold Infeld, físico, escreveu textos sobre arelatividade e de divulgação da ciência comEinstein.

23“Thank you for your letter of April 5. I am gladlywilling to sign your excellent statement. I alsoagree with your choice of the prospective sig-natories.” Albert Einstein para BertrandRussell, February 16, 1955. Mencionada

in Otto Nathan and Heinz Norden, eds.,Einstein on Peace (Avenel Books, NewYork, 1981), p. 631.

24Bertrand Russell, The Autobiography ofBertrand Russell, 1944-1969, (Simon &Shuster, New York, 1969), p. 94.

25Albert Einstein para Niels Bohr, March 2,1955. Referido em Nathan and Norton,p. 629-630.

26Bertrand Russell, The Autobiography ofBertrand Russell: 1944-1969 (Simon andSchuster, New York, 1969), p. 94.

27Nathan & Norton, roda-pé 8, p. 680.28Otto Hahn, recebeu o Prêmio Nobel de Quí-

mica, em 1944. Sua contribuição im-portante foi a descoberta da fissão dosnúcleos dos elementos Urânio e Tório,em 1939.

29A Declaração de Mainau é referida no textoeditado por Otto Nathan e Heinz Nor-den, Einstein on Peace, (Avenel Books,New York, 1981) p. 681.

30Num depoimento durante a conferênciaPugwash de 2003, da qual participou oautor desta contribuição, Joseph Rotblatobservou que conheceu Kenneth Harris,o editor do Observer que tanto ajudou aRussell e que Harris escreveu uma paginasobre sua atuação junto ao Projeto Man-hattan, após o programa BBC Panoramade abril de 1954. Esta matéria de Harrisfoi uma contribuição importante para osucesso de Rotblat na sua iniciativa pos-terior de dar continuidade à conferênciaproposta no Manifesto.

31Bertrand Russell, The Autobiography ofBertrand Russell, 1944-1969 (Simon &Schuster, New York, 1969), p. 96-97.

32Joseph Rotblat, Science and World Affairs: His-tory of the Pugwash Conferences (Dawsonsof Pall Mall, London, 1962), p. 7.

33Entre as principais propostas, são reconhe-cidas as de Frédéric Joliot-Curie e Leo-pold Infeld (em reunião da WorldFedderation of Scientific Workers, (WFSW),de 1951, da Federation of American Scien-tists (FAS) e da British Atomic ScientistsAssociation (ASA).

34Eugene Rabinowitch, cientísta norte-ameri-cano pioneiro aas aplicações dos princí-pios da física em processos biológicos,foi fundador e editor do Bulletin of theAtomic Scientists.

35Professor Alexander Topchiev, foi presidenteda Academia de Ciências Soviética.

36Cyrus Eaton, empresário bem sucedido nosEstados Unidos, defendia o diálogo coma União Soviética. No mesmo ano, Eatonfoi reconhecido como Empresário do Anonos Estados Unidos e agraciado com oPrêmio Lenin da Paz da União Soviética.

37Joseph Rotblat, Reunion in Pugwash.Pugwash News Letter, 4040404040:2 (2003).

38Antoine Dauchin, Infection of Society. Eu-ropean Molecular Biology OrganizationReports 44444: 333 (2003).

naturais do planeta. O relacionamentoentre as nações sofre as conseqüênciasdo predomínio exarcebado de interesses

financeiros sobre todos os demais. Seusefeitos se refletem até na capacidade daespécie humana de se defender das

enfermidades infecciosas, em umsurpreendente regresso aos tempos dasgrandes epidemias38.