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–PAULOFREIRE
AÇÃOCULTURALPARAALIBERDADEEOUTROSESCRITOS
PAZETERRA
11-0397
Copyright©HerdeirosPauloFreire
DireitosdeediçãodaobraemlínguaportuguesaadquiridospelaEditoraPazeTerra.Todososdireitosreservados.Nenhumapartedestaobrapodeserapropriadaeestocadaemsistemadebancodedadosouprocesso similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação etc., sem apermissãododetentordocopirraite.
EDITORAPAZETERRALTDARuadoTriunfo,177—StaIfigênia—SãoPauloTel:(011)3337-8399—Fax:(011)3223-6290http://www.pazeterra.com.br
TextorevistopelonovoAcordoOrtográficodaLínguaPortuguesa.
DADOSINTERNACIONAISDECATALOGAÇÃONAPUBLICAÇÃO(CIP)(CÂMARABRASILEIRADOLIVRO,SP,BRASIL)
Freire,Paulo,1921-1997
Açãoculturalparaaliberdadeeoutrosescritos/PauloFreire.14.ed.rev.atual.—RiodeJaneiro:PazeTerra,2011.
Formato:ePubRequisitosdosistema:AdobeDigitalEditionsMododeacesso:WorldWideWeb
ISBN978-85-7753-213-1(recursoeletrônico)
1.Alfabetizaçço2.Educação3.Educaçãodeadultos4.Educação—Aspectospolíticos5.Educação—Aspectossocioculturais6.PedagogiacríticaI.Título.
CDD-370.1
Índicesparacatálogosistemático:
1.Freire,Paulo:Pedagogia:
Açãocultural:Educação370.1
http://www.pazeterra.com.br
SumárioBREVEEXPLICAÇÃO
Consideraçõesemtornodoatodeestudar
Aalfabetizaçãodeadultos:críticadesuavisãoingênua,compreensãodesuavisãocrítica
Oscamponeseseseustextosdeleitura
Açãoculturalereformaagrária
Opapeldotrabalhadorsocialnoprocessodemudança
AÇÃOCULTURALPARAALIBERTAÇÃO
PARTE1
Oprocessodealfabetizaçãodeadultoscomoaçãoculturalparaalibertação
PARTE2
Açãoculturaleconscientização
Oprocessodealfabetizaçãopolítica:Umaintrodução
Algumasnotassobrehumanizaçãoesuasimplicaçõespedagógicas
OpapeleducativodasIgrejasnaAméricaLatina
PrefácioàediçãoargentinadeABlackTheologyofLiberation,deJamesCone
Conscientizaçãoelibertação:UmaconversacomPauloFreire
Algumasnotassobreconscientização
BREVEEXPLICAÇÃODEPOISDEUMLONGOPERÍODOdehesitação,resolvi,afinal,juntarnestevolumealgunsdostextosqueescrevientre1968e1974.Textosentreosquaissomenteuns poucos têm sido mais amplamente divulgados, sobretudo em inglês eespanhol.
Tendo sido, com raras exceções, preparados para seminários, a intençãobásica ao redigi-los era a de provocar uma discussão em cujo processo seaprofundasseaanálisedealgunsdeseusaspectosprincipais.
JuntamentecomExtensãooucomunicação?,publicadonoBrasilem1970pela Paz e Terra, alguns deles talvez aclarem certos possíveis vazios entreEducaçãocomopráticadaliberdadeePedagogiadooprimido.
Pretendendo preservá-los como os escrevi, não me furtei, contudo, aalterarumououtro,naformacomonoconteúdo.
Espero, finalmente,queo fatodeestarconstantementevoltandoacertosnúcleostemáticos,nãosóemtrabalhosdiferentes,mastambémnummesmotexto, não chegue a cansar demasiado o leitor. Esta é, em última análise, aminhamaneiradeescreversobreoquepensoedepensarsobreoquefaço.
PauloFreireGenebra
Outonode1975
CONSIDERAÇÕESEMTORNODOATODEESTUDAR1
TODA BIBLIOGRAFIA DEVE REFLETIR uma intenção fundamental de quem aelabora:adeatenderouadedespertarodesejodeaprofundarconhecimentosnaquelesounaquelasaqueméproposta.Sefalta,nosquearecebem,oânimode usá-la, ou se a bibliografia, em simesma, não é capaz de desafiá-los, sefrustra,então,aintençãofundamentalreferida.
Abibliografiasetornaumpapel inútil,entreoutros,perdidonasgavetasdasescrivaninhas.
Estaintençãofundamentaldequemfazabibliografialheexigeumtriplorespeito:aquemelasedirige,aosautorescitadoseasimesmos.Umarelaçãobibliográficanãopodeserumasimplescópiadetítulos,feitaaoacasoouporouvirdizer.Quemasugeredevesaberoqueestásugerindoeporqueofaz.Quemarecebe,porsuavez,deveternela,nãoumaprescriçãodogmáticadeleituras,masumdesafio.Desafioquesefarámaisconcretonamedidaemquecomeceaestudaroslivroscitadosenãoalê-losporalto,comoseosfolheasseapenas.
Estudaré,realmente,umtrabalhodifícil.Exigedequemofazumaposturacrítica, sistemática.Exigeumadisciplina intelectualquenão se ganhaanãoserpraticando-a.
Isto é, precisamente, o que a “educação bancária”2 não estimula. Pelocontrário, sua tônica reside fundamentalmente em matar nos educandos acuriosidade, o espírito investigador, a criatividade. Sua “disciplina” é adisciplina para a ingenuidade em face do texto, não para a indispensávelcriticidade.
Esteprocedimento ingênuoaoqualoeducandoé submetido,ao ladodeoutrosfatores,podeexplicarasfugasaotexto,quefazemosestudantes,cujaleiturasetornapuramentemecânicaenquanto,pelaimaginação,sedeslocampara outras situações. O que se lhes pede, afinal, não é a compreensão doconteúdo,massuamemorização.Emlugardeserotextoesuacompreensão,odesafiopassaaseramemorizaçãodomesmo.Seoestudanteconseguefazê-lo,terárespondidoaodesafio.
Numavisão crítica, as coisas sepassamdiferentemente.Oque estuda sesentedesafiadopelo textoemsuatotalidadeeseuobjetivoéapropriar-sedesuasignificaçãoprofunda.
Estaposturacrítica,fundamental,indispensávelaoatodeestudar,requerdequemaelesededica:
A)QUEASSUMAOPAPELDESUJEITODESTEATO.Istosignificaqueéimpossívelumestudosérioseoqueestudasepõeemfacedo texto como se estivesse magnetizado pela palavra do autor, à qualemprestasse uma força mágica. Se se comporta passivamente,“domesticadamente”,procurandoapenasmemorizarasafirmaçõesdoautor.Sesedeixa“invadir”peloqueafirmaoautor.Sesetransformanuma“vasilha”quedeveserenchidapelosconteúdosqueeleretiradotextoparapôrdentrodesimesmo.
Estudar seriamente um texto é estudar o estudo de quem, estudando, oescreveu. É perceber o condicionamento histórico-sociológico doconhecimento. É buscar as relações entre o conteúdo em estudo e outrasdimensões afins do conhecimento. Estudar é uma forma de reinventar, derecriar,dereescrever—tarefadesujeitoenãodeobjeto.Destamaneira,nãoépossívelaquemestuda,numatalperspectiva,alienar-seaotexto,renunciandoassimsuaatitudecríticaemfacedele.
A atitude crítica no estudo é a mesma que deve ser tomada diante domundo,darealidade,daexistência.Umaatitudedeadentramentocomaqualseváalcançandoarazãodeserdosfatoscadavezmaislucidamente.
Umtextoestarátãomaisbemestudadoquanto,namedidaemquedelesetenhaumavisãoglobal,aelesevolte,delimitandosuasdimensõesparciais.Oretornoaolivroparaestadelimitaçãoaclaraasignificaçãodesuaglobalidade.
Ao exercitar o ato de delimitar os núcleos centrais do texto que, eminteração,constituemsuaunidade,oleitorcríticoirásurpreendendotodoumconjuntotemático,nemsempreexplicitadonoíndicedaobra.Ademarcaçãodestes temas deve atender também ao quadro referencial de interesse dosujeitoleitor.
Assiméque,diantedeumlivro,estesujeitoleitorpodeserdespertadoporumtrechoquelheprovocaumasériedereflexõesemtornodeumatemáticaqueopreocupaequenãoénecessariamenteadequetrataolivroemapreço.Suspeitadaapossívelrelaçãoentreotrecholidoesuapreocupação,éocaso,então,defixar-senaanálisedotexto,buscandoonexoentreseuconteúdoeoobjeto de estudo sobre que se encontra trabalhando. Impõe-se-lhe umaexigência:analisaroconteúdodotrechoemquestão,emsuarelaçãocomosprecedentesecomosqueaeleseseguem,evitando,assim,trairopensamentodoautoremsuatotalidade.
Constatada a relação entre o trecho em estudo e sua preocupação, devesepará-lodeseuconjunto,transcrevendo-oemumafichacomumtítuloqueoidentifiquecomoobjetoespecíficodeseuestudo.Nestascircunstâncias,orapodedeter-se,imediatamente,emreflexõesapropósitodaspossibilidadesqueo trecho lheoferece,orapodeseguira leiturageraldo texto, fixandooutrostrechosquelhepossamaportarnovasmeditações.
Emúltimaanálise,oestudosériodeumlivrocomodeumartigoderevistaimplica não somente uma penetração crítica em seu conteúdo básico, mastambémnumasensibilidadeaguda,numapermanenteinquietaçãointelectual,numestadodepredisposiçãoàbusca.
B)QUEOATODEESTUDAR,NOFUNDO,ÉUMAATITUDEEMFRENTEAOMUNDO.Estaéarazãopelaqualoatodeestudarnãosereduzàrelaçãoleitor-livro,ouleitor-texto.
Os livros em verdade refletem o enfrentamento de seus autores com omundo.Expressamesseenfrentamento.Eaindaquandoosautoresfujamdarealidadeconcreta,estarãoexpressandoasuamaneiradeformadadeenfrentá-la. Estudar é também, e sobretudo, pensar a prática, e pensar a prática é amelhormaneiradepensarcerto.Destaforma,quemestudanãodeveperdernenhumaoportunidade,emsuasrelaçõescomosoutros,comarealidade,deassumirumapostura curiosa.Adequempergunta, adequem indaga, adequembusca.
Oexercíciodestaposturacuriosaterminaportorná-laágil,doqueresultaumaproveitamentomaiordacuriosidademesma.
Assim é que se impõe o registro constante das observações realizadasdurante uma certa prática; durante as simples conversações. O registro dasideias que se têm e pelas quais se é “assaltado”, não raras vezes, quando secaminha só por uma rua. Registros que passam a constituir o queWrightMillschamade“fichasdeideias”.3
Essasideiaseessasobservações,devidamentefichadas,passamaconstituirdesafiosquedevemserrespondidosporquemasregistra.
Quasesempre,aosetransformaremnaincidênciadareflexãodosqueasanotam, estas ideias os remetem a leituras de textos com que podeminstrumentar-separaseguiremsuareflexão.
C)QUEOESTUDODEUMTEMAESPECÍFICOEXIGEDOESTUDANTEQUESEPONHA,TANTOQUANTOPOSSÍVEL,APARDABIBLIOGRAFIAQUESEREFEREAOTEMAOUAO
OBJETODESUAINQUIETUDE.
D)QUEOATODEESTUDARÉASSUMIRUMARELAÇÃODEDIÁLOGOCOMOAUTORDOTEXTO,CUJAMEDIAÇÃOSEENCONTRANOSTEMASDEQUEELETRATA.ESTARELAÇÃODIALÓGICAIMPLICAAPERCEPÇÃODOCONDICIONAMENTOHISTÓRICO-
SOCIOLÓGICOEIDEOLÓGICODOAUTOR,NEMSEMPREOMESMODOLEITOR.
E)QUEOATODEESTUDARDEMANDAHUMILDADE.Seoqueestudaassumerealmenteumaposiçãohumilde,coerentecoma
atitude crítica, não se sente diminuído se encontra dificuldades, às vezesgrandes, para penetrar na significação mais profunda do texto. Humilde ecrítico, sabe que o texto, na razãomesma emque é umdesafio, pode estarmais além de sua capacidade de resposta. Nem sempre o texto se dáfacilmenteaoleitor.
Neste caso, o que deve fazer é reconhecer a necessidade de melhorinstrumentar-separavoltaraotextoemcondiçõesdeentendê-lo.Nãoadiantapassarapáginadeumlivrosesuacompreensãonãofoialcançada.Impõe-se,pelocontrário,ainsistêncianabuscadeseudesvelamento.Acompreensãodeum texto não é algo que se recebe de presente. Exige trabalho paciente dequemporelesesenteproblematizado.
Nãosemedeoestudopelonúmerodepáginas lidasnumanoiteoupelaquantidadedelivroslidosnumsemestre.
Estudarnãoéumatodeconsumirideias,masdecriá-laserecriá-las.
Notas1 Escritoem1968,noChile,estetextoserviudeintroduçãoàrelaçãobibliográficaquefoipropostaaosparticipantesdeumseminárionacionalsobreeducaçãoereformaagrária.
2 Sobre“educaçãobancária”,cf.PauloFreire,Pedagogiadooprimido.RiodeJaneiro:PazeTerra,1977,4aedição[48aedição,SãoPaulo:PazeTerra,2011].[N.E.]
3 WrightMills,TheSociologicalImagination.Oxford:OxfordUniversityPress,1959.
AALFABETIZAÇÃODEADULTOS:CRÍTICADESUAVISÃOINGÊNUA,COMPREENSÃODESUAVISÃOCRÍTICAACONCEPÇÃO,NAMELHORDASHIPÓTESES,ingênua4doanalfabetismooencaraora comouma “erva daninha”—daí a expressão corrente: “erradicação doanalfabetismo”—, ora como uma “enfermidade” que passa de um a outro,quaseporcontágio,oracomouma“chaga”deprimenteaser“curada”ecujosíndices,estampadosnasestatísticasdeorganismosinternacionais,dizemmaldosníveisde “civilização”decertas sociedades.Maisainda,oanalfabetismoaparece também, nesta visão ingênua ou astuta, como a manifestação da“incapacidade” do povo de sua “pouca inteligência”, de sua “proverbialpreguiça”.
Limitadanacompreensãodoproblema,cujacomplexidadenãocaptaouesconde,suasrespostasaelesãodecarátermecanicista.
Aalfabetização,assim,sereduzaoatomecânicode“depositar”palavras,sílabas e letras nos alfabetizandos. Este “depósito” é suficiente para que osalfabetizandoscomecema“afirmarse”,umavezque,emtalvisão,seemprestaàpalavraumsentidomágico.
Escrita e lida, a palavra é como se fosse um amuleto, algo justaposto aohomemquenãoadiz,massimplesmentearepete.Palavraquasesempresemrelaçãocomomundoecomascoisasquenomeia.
Daí que, para esta concepção distorcida da palavra, a alfabetização setransformeemumatopeloqualo chamadoalfabetizadorvai “enchendo”oalfabetizandocomsuaspalavras.Asignificaçãomágicaemprestadaàpalavrasealonganoutraingenuidade:adomessianismo.Oanalfabetoéum“homemperdido”.Épreciso,então,“salvá-lo”esua“salvação”estáemqueconsintaemir sendo “enchido” por estas palavras, meros sons milagrosos, que lhe sãopresenteadas ou impostas pelo alfabetizador que, às vezes, é um agenteinconscientedosresponsáveispelapolíticadacampanha.
As cartilhas, por boas que sejam, do ponto de vista metodológico ousociológico,nãopodemescapar,porém,àumaespéciede“pecadooriginal”,
enquantosãooinstrumentoatravésdoqualsevão“depositando”aspalavrasdoeducador,comotambémseustextos,nosalfabetizandos.Eporlimitar-lhesopoderdeexpressão,decriatividade,sãoinstrumentosdomesticadores.
De modo geral, elaboradas de acordo com a concepção mecanicista emágico-messiânica da “palavra depósito”, da “palavra som”, seu objetivomáximoé realmente fazerumaespéciede“transfusão”naqualapalavradoeducadoréo“sanguesalvador”do“analfabetoenfermo”.Eaindaquandoaspalavras das cartilhas, os textos com elas elaborados — e isso raras vezesocorre — coincidem com a realidade existencial dos alfabetizandos, dequalquer maneira, são palavras e textos presenteados, como clichês, e nãocriadosporaquelesquedeveriamfazê-lo.5
Emgeral,porém,tantoaspalavrasquantoostextosdascartilhasnadatêmquevercomaexperiênciaexistencialdosalfabetizandos.Equandootêm,seesgotaesta relaçãoaoserexpressadademaneirapaternalista,doqueresultaseremtratadososadultosdeumaformaquenãoousamossequerchamardeinfantil.
Esse modo de tratar os adultos analfabetos implicita uma deformadamaneiradevê-los—comose eles fossem totalmentediferentesdosdemais.Não se lhes reconhece a experiência existencial bem como o acúmulo deconhecimentosqueestaexperiêncialhesdeuecontinuadando.
Como seres passivos e dóceis, pois que assim são vistos e assim sãotratados,osalfabetizandosdevemirrecebendoaquela“transfusão”alienanteda qual, por isso mesmo, não pode resultar em nenhuma contribuição aoprocessodetransformaçãodarealidade.
Quesignificaçãopodeterparaalguémumtextoque,alémdecolocarumaquestão absurda, dáuma respostanãomenos absurda: “Adadeuodedo aourubu?Duvido,respondeoautordapergunta,Adadeuodedoàave!”
Emprimeirolugar,nãosabemosdaexistênciadenenhumlugarnomundoemquealguémconvideourubuapousaremseudedo.Emsegundolugar,aoresponder o autor à sua estranha pergunta, duvidando de que Ada tivessedadoseudedoaourubu,poisqueodeuàave,afirmaqueurubunãoéave.
Que significação, na verdade, podem ter, para homens e mulheres,camponesesouurbanos,quepassamumdiadurodetrabalhoou,maisduro
ainda,semtrabalho,textoscomoesses,quedevemsermemorizados:“Aasaédaave”;“Evaviuauva”;“Joãojásabeler.Vejamaalegriaemsuaface.Joãoagoravaiconseguirumemprego!”
Textos,demodogeral,ilustrados—casinhassimpáticas,acolhedoras,bemdecoradas; casais risonhos, de faces delicadas, às vezes ou quase semprebrancos e louros; crianças bemnutridas, bolsinha a tiracolo, dizendo adeusaospapaisparairàescola,depoisdeumsuculentocafédamanhã…
Quepodemumtrabalhadorcamponêsouumtrabalhadorurbanoretirardepositivopara seuquefazernomundo,para compreender, criticamente, asituação concreta de opressão emque se acham, através de um trabalho dealfabetizaçãoemqueselhesdiz,adocicadamente,quea“asaédaave”ouque“Evaviuauva”?
Reforçandoo“silêncio”emqueseachamasmassaspopularesdominadaspelaprescriçãodeumapalavraveiculadoradeumaideologiadaacomodação,nãopodejamaisumtaltrabalhoconstituir-secomouminstrumentoauxiliardatransformaçãodarealidade.
Mas,poroutro lado,namedidaemque,emsimesma,estaalfabetizaçãonão tema forçanecessáriapara concretizarpelomenosalgumasdas ilusõesque veicula, como por exemplo a de que o “analfabeto que aprende a lerconsegue um emprego”, cedo ou tarde termina por funcionar contra osobjetivosamaciadoresdoprópriosistema,cujaideologiaelareproduz.
Naproporçãoemqueosex-analfabetos,queforam“treinados”naleiturade textos sem a análise de sua vinculação com o contexto social, já agoralendo,mesmomecanicamente,procuramoempregoouomelhorempregoenãoosencontram,percebemafaláciadaquelaafirmaçãoirresponsável.
Ofeitiço,então,maisumavez,caisobreofeiticeiro…
Paraaconcepçãocrítica,oanalfabetismoneméuma“chaga”,nemuma“ervadaninha”asererradicada,nemtampoucoumaenfermidade,masumadasexpressõesconcretasdeumarealidadesocialinjusta.Nãoéumproblemaestritamente linguísticonemexclusivamentepedagógico,metodológico,maspolítico, como a alfabetização por meio da qual se pretende superá-lo.Proclamarsuaneutralidade,ingênuaouastutamente,nãoafetaemnadaasuapoliticidadeintrínseca.
Porestarazãoéque,paraaconcepçãocríticadaalfabetização,nãoseráapartir da mera repetição mecânica de pa-pe-pi-po-pu, la-le-li-lo-lu, quepermitem formar pula, pelo, lá, li, pulo, lapa, lapela, pílula etc., que sedesenvolveránosalfabetizandosaconsciênciadeseusdireitosesuainserçãocríticanarealidade.Pelocontrário,aalfabetizaçãonestaperspectiva,quenãopodeseradasclassesdominantes,seinstauracomoumprocessodebusca,decriação, em que os alfabetizandos são desafiados a perceber a significaçãoprofundadalinguagemedapalavra.Palavraque,nasituaçãoconcretaemqueseencontram,lhesestásendonegada.Nofundo,negarapalavraimplicaalgomais. Implica negar o direito de “pronunciar omundo”.6 Por isto, “dizer apalavra”nãoérepetirumapalavraqualquer.Nistoconsisteumdossofismasdapráticareacionáriadaalfabetização.
Oaprendizadodaleituraedaescritanãopodeserfeitocomoalgoparaleloou quase paralelo à realidade concreta dos alfabetizandos. Aqueleaprendizado, por isso mesmo, demanda a compreensão da significaçãoprofundadapalavra,aqueantesfizemosreferência.
Maisqueescreverelerquea“asaédaave”,osalfabetizandosnecessitamperceberanecessidadedeumoutroaprendizado:ode“escrever”asuavida,ode“ler”asuarealidade,oquenãoserápossívelsenãotomamahistórianasmãospara,fazendo-a,porelaseremfeitoserefeitos.
Daíque,nestaperspectivacrítica,sefaçatãoimportantedesenvolver,noseducandoscomonoeducador,umpensarcertosobrearealidade.Eistonãosefazpormeiodeblábláblá,masdorespeitoàunidadeentrepráticaeteoria.
Énecessário,realmente,libertarateoriadoequívocodequeécomumentevítima, não apenas na América Latina, segundo o qual é identificada comverbalismo,comblábláblá,comperdadetempo.
Isto é o que explica expressões tão repetidas entre nós, como: “Se aeducaçãolatino-americananãofosseteórica,masprática,outrosseriamseusresultados”,ou“énecessáriodiminuirasclassesteóricas”.Explicatambémadivisãoque se faz entrehomens emulheres teóricos epráticos, tomando-seaqueles e aquelas à margem da ação, enquanto os segundos a realizam. Aseparação,contudo,deveriaserfeitaentreteóricoseverbalistas.Nestecaso,osprimeirosseriamnecessariamentepráticostambém.
Oque sedeveoporàpráticanãoéa teoria,dequeé inseparável,masobláblábláouofalsopensar.
Assimcomonãoépossívelidentificarteoriacomverbalismo,tampoucooéidentificarpráticacomativismo.Aoverbalismofaltaaação;aoativismo,areflexãocríticasobreaação.
Nãoé estranho,portanto,queosverbalistas se isolememsuas torresdemarfimeconsideremdesprezíveisosquesedãoàação,enquantoosativistasconsiderem os que pensam sobre a ação e para ela “intelectuais nocivos”,“teóricos”e“filósofos”quenadafazemsenãoobstaculizarsuaatividade.
Paramim,quemesituoentreosquenãoaceitamaseparaçãoimpossívelentrepráticaeteoria,todapráticaeducativaimplicaumateoriaeducativa.
Por issoéque,aofalaragoradeantagônicasconcepçõesdaalfabetizaçãode adultos, não poderei deixar de, simultaneamente, fazer referência aaspectosdesuasrespectivaspráticas.
A fundamentação teórica da minha prática, por exemplo, se explica aomesmo tempo nela, não como algo acabado, mas como um movimentodinâmicoemqueambas,práticaeteoria,sefazemeserefazem.
Desta forma, muita coisa que hoje ainda me parece válida, não só naprática realizada e realizando-se, mas na interpretação teórica que fiz dela,poderávirasersuperadaamanhã,nãosópormim,masporoutros.
Acondiçãofundamentalparaisso,quantoamim,équeesteja,deumlado,constantementeabertoàscríticasquemefaçam;deoutro,quesejacapazdemantersemprevivaacuriosidade,dispostosemprearetificar-me,emfunçãodosprópriosachadosdeminhasfuturaspráticasedapráticadosdemais.
Quanto aos outros, os que põem em prática a minha prática, que seesforcem por recriá-la, repensando tambémmeu pensamento. E ao fazê-lo,quetenhamemmentequenenhumapráticaeducativasedánoar,masnumcontexto concreto, histórico, social, cultural, econômico, político, nãonecessariamenteidênticoaoutrocontexto.
AcompreensãocríticademinhapráticanoBrasil,atémarçode1964,porexemplo, exige a compreensão daquele contexto. Minha prática, enquanto
social,nãomepertencia.Daíquenãosejapossívelentenderapráticaquetive,emtodaasuaextensão,semainteligênciadoclimahistóricoemquesedeu.
Esteesforço,queseexigedemimedosdemais,salienta,maisumavez,aunidadedapráticaedateoria.
Mas a compreensão da unidade da prática e da teoria, no domínio daeducação, demanda a compreensão, também, da unidade entre a teoria e apráticasocialquesedánumasociedade.Assim,ateoriaquedeveinformarapráticageraldasclassesdominantes,dequeaeducativaéumadimensão,nãopode ser a mesma que deve dar suporte às reivindicações das classesdominadas,nasuaprática.
Daíaimpossibilidadedeneutralidadedapráticaeducativacomodateoriaqueaelacorresponde.
Uma coisa, pois, é a unidade entre prática e teoria numa educaçãoorientadanosentidodalibertação,outraéamesmaunidadenumaformadeeducaçãoparaa“domesticação”.
Asclassesdominantesnãotêmporquetemer,porexemplo,aunidadedapráticaedateoria,nacapacitação—parafalarsónesta—dachamadamãodeobraqualificada,desde,porém,quenessaunidade,ateoriadequesefalesejaa“teorianeutra”deuma“técnicatambémneutra”.
Aalfabetizaçãodeadultosnãopodeescaparaessaalternativa.
A primeira exigência prática que a concepção crítica da alfabetização seimpõeéqueaspalavrasgeradoras,comasquaisosalfabetizandoscomeçamsuaalfabetizaçãocomosujeitosdoprocesso,sejambuscadasemseu“universovocabularmínimo”,queenvolvesuatemáticasignificativa.
Somenteapartirdainvestigaçãodesteuniversovocabularmínimoéqueoeducador pode organizar o programa que, desta forma, vem dosalfabetizandos para a eles voltar, não como dissertação mas comoproblematização.7
Naprática criticada, pelo contrário, o educador, arbitrariamente—pelomenosdopontodevistasociocultural—,elege,emsuabiblioteca,aspalavrasgeradoras com as quais fabrica sua cartilha à qual, não raro, se reconhecevalidadeaoníveldetodoopaís.
Paraavisãocrítica,advertidacomrelaçãoaosníveisdalinguagem,entreeles o pragmático, de importância fundamental para a eleição das palavrasgeradoras,estasnãopodemserselecionadasà luzdeumcritériopuramentefonético.Umapalavrapodeterumaforçaespecialemumaáreaenãotê-laemoutra,àsvezesdentrodeumamesmacidade.
Nalinhadestasreflexões,observemosalgomais.Enquanto,naconcepçãoenapráticamecanicistadaalfabetizaçãooautordacartilhaelegeaspalavras,asdecompõenaetapadaanáliseecompõe,nasíntese,outraspalavrascomassílabasencontradaspara,emseguida,comaspalavrascriadas, redigir textoscomooscitados,napráticaquedefendemosaspalavrasgeradoras—palavrasdopovo—sãopostasemsituaçõesproblema(codificações),8 comodesafiosqueexigemrespostadosalfabetizandos.Problematizarapalavraqueveiodopovo significa problematizar a temática a ela referida, o que envolvenecessariamenteaanálisedarealidade,quesevaidesvelandocomasuperaçãodoconhecimentopuramentesensíveldosfatospelarazãodeserdosmesmos.Assim, a pouco e pouco, os alfabetizandos vão percebendo que o fato de,comosereshumanos,falaremnãosignificaaindaque“dizemsuapalavra”.
Énecessário,naverdade,reconhecerqueoanalfabetismonãoéemsiumfreiooriginal.Resultadeumfreioanteriorepassaatornar-sefreio.Ninguéméanalfabetoporeleição,mascomoconsequênciadascondiçõesobjetivasemqueseencontra.Emcertascircunstâncias,“oanalfabetoéohomemquenãonecessita ler,9 emoutras, éaqueleouaquelaaquemfoinegadoodireitodeler”.
Em ambos os casos, não há eleição.O primeiro vive numa cultura cujacomunicação e cuja memória são auditivas, se não em termos totais, emtermos preponderantes. Neste caso, a palavra escrita não tem significação.Paraqueseintroduzisseapalavraescritae,comela,aalfabetização,emumarealidadecomoesta,comêxito, serianecessárioque,concomitantemente, seoperasse uma transformação capaz de mudar qualitativamente a situação.Muitos casos de analfabetismo regressivo terão aí sua explicação. São oresultado de campanhas de alfabetização messiânica ou ingenuamenteconcebidasparaáreascujamemóriaépreponderanteoutotalmenteoral.
Nas várias oportunidades em que tenho conversado com camponeseschilenos,sobretudoemáreasemqueseexperimentaramconflitivamenteem
defesada reformaagrária, tenho escutado expressões comoestas: “Antesdareforma agrária não precisávamos das letras. Primeiro, porque nãopensávamos. Nosso pensamento era o do patrão. Segundo, porque nãotínhamosoquefazercomasletras.Agora,acoisaédiferente.”
Nosegundocaso,oanalfabetoéaqueleouaquelaque,“participando”deumaculturaletrada,nãoteveaoportunidadedealfabetizar-se.
Nunca me esqueço da análise feita por um camponês do nordestebrasileiro,nomomentoemquediscutiaduascodificaçõesqueapresentavam,a primeira, um índio caçando, com seu arco e sua flecha; a segunda, umcamponêscomoele,caçandotambém,comumaespingarda.
“Entre esses dois caçadores, disse, somente o segundo pode ser que sejaanalfabeto.Oprimeiro,não.”
“Porquê?”,lheperguntei.Rindoumrisodequemseespantavacomomeuporquê,respondeu:“Nãosepodedizerqueoíndioéanalfabetoporquevivenumaculturaquenãoconheceasletras.Praseranalfabetoéprecisovivernomeiodasletrasenãoconhecerelas.”
Na verdade, somente na medida em que aos alfabetizandos seproblematiza o próprio analfabetismo é que é possível entendê-lo em suaexplicaçãomaisprofunda.
Não será com “Eva viu a uva”, a “Asa é da ave”, comperguntar-lhes se“Adadeuodedoaourubu”queselogratalobjetivo.
Assim, reinsistamos, enquanto na prática reacionária os alfabetizandosnãodesenvolvemnempodemdesenvolverumavisãolúcidadesuarealidade,na prática aqui defendida eles vãopercebendo-a comouma totalidade.Vãosuperando,destaforma,oquechamamosvisãofocalistadarealidade,segundoaqualasparcialidadesdeumatotalidadesãovistasnãointegradasentresi,nacomposiçãodotodo.
Namedidaemqueosalfabetizandosvãoorganizandoumaformacadavezmais justa de pensar, através da problematização de seumundo, da análisecríticadesuaprática,poderãoatuarcadavezmaisseguramentenomundo.
A alfabetização se faz, então, um quefazer global, que envolve osalfabetizandosemsuasrelaçõescomomundoecomosoutros.Mas,aofazer-
se esse quefazer global, fundado na prática social dos alfabetizandos,contribui-se para que estes se assumam como seres do quefazer da práxis.Valedizer,comoseresque,transformandoomundocomseutrabalho,criamo seu mundo. Este mundo, criado pela transformação do mundo que nãocriaramequeconstituiseudomínio,éomundodaculturaquesealonganomundodahistória.
Desta forma, ao perceberem o significado criador e recriador de seutrabalho transformador, descobrem um sentido novo em sua ação, porexemplo,decortarumaárvore,dedividi-laempedaços,detratá-losdeacordocomumplanopreviamenteestabelecidoeque,aoserconcretizado,dálugaraalgoquejánãoéaárvore.Percebem,finalmente,queestealgo,produtodeseuesforço,éumobjetocultural.
Dedescobertaemdescoberta,alcançamofundamental:
a)queosfreiosaseudireitode“dizersuapalavra”estãoemrelaçãodiretacomanãoapropriaçãoporelesdosprodutosdeseutrabalho;
b)queo fatode trabalhar lhesproporcionaumcertoconhecimento,nãoimportasesãoanalfabetos;
c) que, finalmente, entre os seres humanos não há absolutização daignorâncianemdosaber.Ninguémsabetudo;ninguémignoratudo.
Nas experiências de que participei ontem no Brasil, como nas de queparticipohojenoChile,sempreforamconfirmadasessasafirmações.
“Agoraseiquesouculto”,disse,certavez,umvelhocamponêschilenoaodiscutir, através de codificações, a significação do trabalho. E ao se lheperguntar por que se sabia culto, respondeu seguro: “Porque trabalho etrabalhandotransformoomundo.”
Estaafirmação,muitocomumtambémnoBrasil, revelaa superaçãoquevãofazendodoconhecimento,aonívelpreponderantementesensível,desuapresença no mundo, pela assunção crítica desta presença, o que implica oreconhecimentodenãoapenasestaremnomundo,mascomomundo.
Saber que é culto porque trabalha e trabalhando transforma o mundo,mesmo que entre o momento do reconhecimento deste fato e a real
transformaçãodasociedadehajamuitoaindaoquefazeréalgo,porém,quenãosecomparacomamonótonarepetiçãodosba-be-bi-bo-bu.
“Agrada-me discutir sobre isto, disse uma mulher, também chilena,apontandoparaacodificaçãodeumasituaçãoexistencialdesuaárea,porquevivo assim. Mas, continuou, enquanto vivo, não vejo. Agora, sim, observocomovivo”.
Desafiada por sua própria situação existencial, representada nacodificação,amulherfoicapaz,numaespéciede“emersão”desuaformadeexistir, de “admirá-la” e percebê-la como até então não o fizera. Terpresentificadaàsuaconsciênciasuamaneiradeexistir,descrevê-la,analisá-la,significa,emúltimaanálise,desvelararealidade,mesmoquenãosignifique,ainda,umengajamentopolíticoparaasuatransformação.
Afirmaçãosimilartivemosoportunidadedeouvir,noanopassado,1967,de um homem em Nova York, durante a discussão de uma fotografia detrechodeumaruadasredondezasdeseubairro.
Olhando silenciosamente a foto em seus pormenores — latas de lixo,poucahigiene,aspectostípicosdeumaáreadiscriminada—,disse,derepente:“Vivoaqui.Andodiariamentenessasruas.Nãopossodizerquejamaistivessevistoisso.Agora,porém,perceboquenãopercebia.”10
No fundo, aquele homem de Nova York percebia, naquela noite, a suapercepçãoanterior,cujadeformaçãoelepôderetificarao tomardistânciadesuarealidade,atravésdarepresentaçãodamesma.
Éverdade,também,quenemsempreestaretificaçãodapercepçãoanteriorse dá facilmente. É que a relação entre o sujeito e o objeto é tal que odesvelamentodaobjetividadeafetaigualmenteasubjetividadee,àsvezes,deformaintensamentedramáticaemesmodolorosa.
Em certas circunstâncias, numa espécie de “manha da consciência”,“prefere-se” à aceitação do real, como é, a sua ocultação ficando-se com oilusório,quesetransformaemreal.
Na mesma experiência de Nova York, tive oportunidade de constatarigualmenteeste fato.Discutia-senoutrogrupoumafotomontagem,bastantebem-feita, deum trechoda cidadeque apresentavadiferentesníveis sociais,caracterizadospelosprópriosedifícios.
Ogrupoquedebatia estava, indubitavelmente, situadonumdosúltimosescalões.Convidadososparticipantesaanalisarafotomontagemeasituarsuaárea entre os diversos níveis, o fizeram, colocando, porém, sua área numafaixaintermediária.11
Estamesmaresistênciaaaceitaro real—uma formadedefesa—tenhoencontradotambémentretrabalhadorescamponesesetrabalhadoresurbanosnaAméricaLatina.NãotêmsidorarosnoChileosque,ao ladodosmuitosquevãodecifrandosuarealidadeemtermoscríticos,expressam,nodebateemtornodesuanovaexperiêncianoasentamiento,umacertanostalgiadoantigopatrão.
Condicionados pela ideologia dominante, não apenas obliteram suacapacidade de percepção do real, mas também, às vezes, se “entregam”,docilmente,aosmitosdaquelaideologia.
A alfabetização de adultos, tal qual a entendemos, como a post-alfabetização,temaíumdospontoscruciaisaenfrentar.
“Descubro agora”, disse outro camponês chileno, ao se lheproblematizarem as relações homem-mundo, “que não há homem semmundo”. E, ao perguntar-lhe o educador, em nova problematização:admitindo-se que todos os seres humanos morressem, mas ficassem asárvores,ospássaros,osanimais,osmares,os rios, aCordilheiradosAndes,seriaistomundo?“Não!”,respondeudecidido:“Faltariaquemdissesse:istoémundo.”
Com esta resposta, o filósofo camponês, que a concepção elitistaclassificaria de “ignorante absoluto”, colocou a questão dialética dasubjetividade-objetividade.
“Quandoéramos‘inquilinos’”,disseoutrocamponês,depoisdedoismesesdeparticipaçãonasatividadesdeumCírculodeCulturanumasentamiento,“eopatrãonoschamavadeingênuos,dizíamos:‘Obrigado,patrão.’Paranós,aquilo era um elogio. Agora que estamos ficando críticos, sabemos o quequeriadizercomingênuos.Chamava-nosdebobos”.“Equeésercrítico?”,lheperguntamos.“Épensarcerto.Éverarealidadecomoelaé”,respondeu.
Háalgo finalmentequegostariadeconsiderar.Éque todasestas reaçõesoraisquesevãodandoduranteasdiscussõesnosCírculosdeCulturadevem
ser transformadasem textosque, entreguesaosalfabetizandos,passama serporelesdiscutidos.
Issonãotemnadaquever,realmente,comapráticacriticada,emqueosalfabetizandosrepetemduas,trêsvezes,paramemorizar,quea“asaédaave”.
Assim, somente a alfabetização que, fundando-se na prática social dosalfabetizandos, associa a aprendizagemda leitura eda escrita, comoumatocriador, ao exercício da compreensão crítica daquela prática, sem ter,contudo,ailusãodeserumaalavancadalibertação,ofereceumacontribuiçãoaesteprocesso.
Daíquenãopossaseresseumquefazerdasclassesdominantes.
Santiago,1968
Notas4 Quandodigo“concepção,namelhordashipóteses,ingênua”,éporquemuitosdosquepoderiamserconsideradosingênuos,aoexpressá-la,são,naverdade,astutos.Sabemmuitobemoquefazemeaondequerem ir quando, em campanhas de alfabetização, “alimentam” os alfabetizandos de “slogans”alienadores,emnome,ainda,daneutralidadedaeducação.Objetivamente,porém,seidentificamambos—ingênuoseastutos.
5 Pequenos textos de leitura podem e devem ser elaborados pelos educadores, desde que I)correspondamà realidadeconcretadosalfabetizandos; II) sejamusadosnãona forma tradicionaldaschamadas“classesdeleitura”,masemverdadeirossemináriosdetextos;III)funcionemcomoelementosmotivadoresaosalfabetizandosparaquecomecemelesmesmosaredigirtambémseustextos.
6 Aestepropósito,cf.ErnaniMariaFiori,prefácioaPedagogiadooprimido.E,nomesmolivro,tambémotextodePauloFreire.[N.E.]
7 Arespeito,querdizer,dopontodevistadaalfabetização,cf.PauloFreire,Educaçãocomopráticadaliberdade.RiodeJaneiro:PazeTerra,1975[33aedição,SãoPaulo:PazeTerra,2011].Dopontodevistadapost-alfabetização,cf.Id.,Pedagogiadooprimido.
8 Apropósitodecodificação,cf.Id.,ibid.
9 ÁlvaroVieiraPinto,Consciênciaerealidadenacional.RiodeJaneiro:ISEB,1960.
10 Este trabalho é realizado por uma Instituição chamada Full Circle, dirigida por Roberto Fox, umsacerdotecatólico,atuandoaoníveldapost-alfabetização.HáalgodesimilarentreoquerealizamseuseducadoreseoquefizemosnoBrasiletentamosnoChile.Nuncahouve,porém,nenhumainfluênciadenossapartesobresuaconcepçãodaeducação.Conhecemo-nosquandoosvisiteiporsugestãodeIvanIllich.
11 EmPedagogiadooprimido,oautorserefereaoutraobservaçãofeitanamesmaexperiênciadeNovaYork.[N.E.]
OSCAMPONESESESEUSTEXTOSDELEITURA12
TRANSFORMAROMUNDOPORMEIOdeseutrabalho,“dizer”omundo,expressá-loeexpressar-sesãooprópriodossereshumanos.
A educação, qualquer que seja o nível em que se dê, se fará tão maisverdadeiraquantomaisestimuleodesenvolvimentodestanecessidaderadicaldossereshumanos,adesuaexpressividade.
É exatamente isso o que não faz a educação que costumo chamar de“bancária”, em que o educador substitui a expressividade pela doação deexpressões que o educando deve ir “capitalizando”. Quanto maiseficientementeofaça,tantomelhoreducandoseráconsiderado.
Na alfabetização de adultos, como na post-alfabetização, o domínio dalinguagem oral e escrita constitui uma das dimensões do processo daexpressividade.O aprendizado da leitura e da escrita, por issomesmo, nãoterá significado real se se faz através da repetição puramente mecânica desílabas. Este aprendizado só é válido quando, simultaneamente com odomíniodomecanismodaformaçãovocabular,oeducandovaipercebendooprofundosentidodalinguagem.Quandovaipercebendoasolidariedadequehá entre a linguagem-pensamento e realidade, cuja transformação, ao exigirnovasformasdecompreensão,colocatambémanecessidadedenovasformasdeexpressão.
Taléocasodareformaagrária.Transformadaaestruturadolatifúndio,deque resultou a do asentamiento, não seria possível deixar de esperar novasformasdeexpressãoedepensamento-linguagem.
Na estrutura do asentamiento, palavras e expressões que constituíamconstelações culturais e envolviam uma compreensão do mundo, típica daestruturalatifundista,tendemairesvaziando-sedesuaantigaforça.13
“Patrão.Sim,patrão.Quepossofazersesouumcamponês.Fale,quenósseguimos.Seopatrãodisse,éverdade.Sabecomquemestáfalando?”etc.sãoalgumas destas palavras e expressões incompatíveis com a estrutura doasentamiento,enquantoestaéumaestruturaquesedemocratiza.
Agorabem,seaoladodestastransformaçõessedesenvolveumaeducaçãocapaz de ajudar a compreensão crítica damudança operada— que atingiuigualmente a maneira de trabalhar —, esta educação ajudará também ainstauraçãodeumnovopensamento-linguagem.
Basta sublinhar este aspecto das relações pensamento-linguagem eestrutura social para que a alfabetização de adultos e a post-alfabetizaçãotenhamumsignificadodistinto.
Advertidos destas relações, os educadores darão omáximode atenção àescolha das palavras geradoras, bem como à redação dos textos de leitura.Estes devem levar em conta homens e mulheres em seu contexto emtransformação. Não podem ser meras narrações da nova realidade, nemtampoucorevestir-sedesentidopaternalista.
Seuconteúdo,suaforma,suaextensão,suacomplexidadecrescentedevemserseriamenteconsideradosquandodesuaelaboração.
Seu objetivo não é fazer a descrição de algo a ser memorizado. Pelocontrário, é problematizar situações.Énecessárioqueos textos sejamem siumdesafioecomotalsejamtomadospeloseducandosepeloeducadorparaque,dialogicamente, penetremem sua compreensão.Daí que jamaisdevamconverter-seem“cantigasdeninar”que,emlugardedespertaraconsciênciacrítica, a adormecem. “As classesde leitura”, em lugarde seguirema rotinanormal que as caracteriza, devem ser verdadeiros seminários de leitura.Haverá sempre oportunidade, nesses seminários, para se estabelecerem asrelaçõesentreumtrechodotextoemdiscussãoeaspectosváriosdarealidadedoasentamiento.
Uma palavra, uma afirmação contida no texto que se analisa, podemviabilizaradiscussãoemtornodaproduçãodoasentamiento,deumatécnicamaisadequadaàsnovascondições,apropósitodeumproblemadesaúde,emtornodanecessidadedeumapermanenteformaçãocomqueserespondaaosnovosdesafios.
Tudoissoimplicanãoapenasumarigorosacapacitaçãodoseducadoresdebase,mastambémnumapermanenteavaliaçãodeseutrabalho.
Avaliação e não inspeção. Nesta, seriammeros objetos da vigilância daEquipeCentral.Naquela,sãotãosujeitosquantoaEquipeCentralnoatode,
tomandodistânciadotrabalhoemrealização,fazerasuacrítica.
Entendidaassim,aavaliaçãonãoéoatopeloqualAavaliaB.Éoatopormeio do qual A e B avaliam juntos uma prática, seu desenvolvimento, osobstáculosencontradosouoserroseequívocosporventuracometidos.Daíoseucaráterdialógico.
“Tomandodistância”daaçãorealizadaourealizando-se,osavaliadoresaexaminam.Destaforma,muitacoisaqueantes(duranteotempodaação)nãoerapercebida,agoraaparecedeformadestacadadiantedosavaliadores.
Nestesentido,emlugardeseruminstrumentodefiscalização,aavaliaçãoéaproblematizaçãodaprópriaação.
É preciso que os membros da Equipe Central se convençam,humildemente,dequetêmmuitooqueaprendercomoseducadoresqueseachamdiretamenteligadosàsbasespopulares,comoestescomasbases.
Sem esta humildade, jamais admitirá a Equipe Central qualquerinadequabilidadeentresuavisãodarealidadeeesta.Assim,sealgonãoandabem, a causa deve estar na incapacidade dos educadores de base, nunca nainsuficiênciateóricadaEquipeCentral.Pensandopossuiraverdade,decretaasuainfalibilidade.Daíque,emtalhipótese,avaliarseja,paraela,inspecionar.
Assim,quantomaisburocráticasejaumaEquipeCentral,nãosódopontodevistaadministrativo,massobretudomental,tantomaisestreitaeinspetoraserá. Ao contrário, tanto mais seja ela aberta e disponível à criatividade,antidogmática,quantomaisavaliadora,nosentidoaquidescrito,será.
Alémdestes textos elaboradospelaEquipeCentral, se faz absolutamenteindispensável o aproveitamentodos redigidospelos camponeses.Apouco epouco estes devem ir multiplicando-se, o que não significa dever a EquipeCentralpararoseuesforçoderedaçãooudeaproveitamentodeumououtrotexto não redigido por ela (por um especialista, por exemplo, no campodaeconomiarural,dasaúdeetc.),quandonecessário.
Neste sentido, os educadores devem aproveitar toda oportunidade paraestimular os camponeses a que exponham suas observações, suas dúvidas,suascríticas.
Durante a discussão de uma situação problemática— codificação— oseducadores devem solicitar aos camponeses que redijam, primeiramente noquadro-negro,depois,numafolhadepapel,suasobservações—umasimplesfrase,nãoimporta.
Essesdoismomentosdaredaçãotêmobjetivosdistintos.Oprimeirotemporfinalidadeproporaogrupoadiscussãodoconteúdodotextoredigidoporumdeseuscompanheiros.Namedidaemqueaexperiênciaseváafirmando,é importante que caiba ao autor do texto a coordenação da discussão emtornodesuacompreensão.
Osegundo,noqualoeducandoredigeseupequenotextonumafolhadepapel,temcomofimseuaproveitamentoposteriornumaespéciedeantologiade textos camponeses a ser organizada pela Equipe Central, com aparticipação de educadores de base e, também, de alguns camponeses.AntologianãosomentedetextosdosparticipantesdoCentrodeEducaçãodeum asentamiento, mas dos participantes dos Centros de todos osasentamientosdeumazona.
Selecionadosostextoseclassificadosemfunçãodesuatemática,aEquipeCentralredigirácomentáriosemformasimples,decaráterproblematizador,apropósitodecadaum.
Outramaneiraderecolherodiscursocamponês,convertendo-oemtextosdeleitura,seriaadegravarasdiscussõesnosCentrosdeEducaçãoouCírculosdeCultura.
Pensemos, por exemplo, numa área em que haja três ou quatroasentamientos e em cada um dos quais existam “n” Círculos de Culturafuncionandoaindanaetapadealfabetização.
Comosabemos, a codificaçãoqueos camponeses têmdiantede sinãoéuma simples ajuda visual de que o educador se serve para “dar” uma aulamelhor. A codificação, pelo contrário, é um objeto de conhecimento que,mediatizandoeducadoreeducandos,sedáaseudesvelamento.
Representando um aspecto da realidade concreta dos camponeses, acodificaçãotemescritaemsiapalavrageradoraaelareferidaouaalgumdeseuselementos.
Ao descodificarem a codificação, com a participação do educador, oscamponesesanalisamsuarealidadeeexpressam,emseudiscurso,osníveisdepercepção de si mesmos em suas relações com a objetividade. Revelam oscondicionamentosideológicosaqueestiveramsubmetidosemsuaexperiênciana“culturadosilêncio”,nasestruturasdolatifúndio.
A prática nos tem demonstrado, a todos os que temos participado detrabalhoscomoeste,aimportânciaeariquezadodiscursodosalfabetizandos,aoanalisarsuarealidaderepresentadanacodificação.Importânciaeriqueza,qualquerquesejaoânguloemqueasencaremos—sejaodaforma,sejaodoconteúdo,queenvolveaanálise linguística,aqual,porsuavez,sealonganaideológicaepolítica.
A existência deste material abre à Equipe Central uma série depossibilidades que não podem ser desprezadas. As sugestões que farei emtorno de tais possibilidades desafiarão, certamente, a Equipe Central aperceberoutrasquemetenhampassadodespercebidas.
Um primeiro emprego deste material, antes mesmo de transcritos osdebatesemtornodascodificações,poderiaserodarealizaçãodesemináriosde avaliação em que os educadores de uma área, escutando as gravações,discutiriamentresi,comrepresentantesdaEquipeCentral,seuprocedimentodurante o processo da descodificação. Neste momento, no contexto doseminário de avaliação, os educadores estariam tomando distância de suapráticaanterior,percebendo,assim,seusacertoseseusequívocos.Namesmalinha desses seminários de avaliação, seria fundamental que educadores,trabalhandonaárea“A”,escutassemasgravaçõesdosdebatesrealizadosnosCírculosdeCulturadaárea“B”evice-versa.
Esforçoidênticopoderiaserfeitoaoníveldosalfabetizandos.Destaforma,camponeses da área “A” escutariam e debateriam as gravações dasdescodificações realizadas por companheiros da área “B”, em torno dasmesmascodificaçõesqueelestambémhaviamdescodificadoevice-versa.
Um empenho como esse ajudaria alfabetizandos e alfabetizadores a irsuperando o que costumo chamar de visão focalista da realidade e irganhandoacompreensãodatotalidade.
Parece-me igualmente indispensável que a Equipe Central motive osespecialistas — agrônomos, técnicos agrícolas, educadoras domésticas,sanitaristas, cooperativistas, veterinários — envolvidos nas diferentesatividades do asentamiento, para que, em seminários também, analisem odiscurso dos camponeses em que, repitamos, expressam a forma como seveememsuasrelaçõescomomundo.
Éprecisoqueessestécnicossuperemavisãodeformadadaespecialidade,aque transforma a especialização em especialismo, escravizando-os a umapercepçãoestreitadosproblemas.
Agrônomos, técnicos agrícolas, sanitaristas, cooperativistas,alfabetizadores,todosnóstemosmuitooqueaprendercomoscamponeseseseaissonosrecusamos,nadaaelespodemosensinar.
Procurar compreender o discurso camponês será um passo decisivo nasuperaçãodaquelapercepçãoestreitadosproblemasaquemereferiacima.
Outra possibilidade de aproveitamento da gravação das descodificaçõespoderiaserade,discutindoascomospróprioscamponeses,motivá-losaquefizessemmontagensdedramatizaçõesemtornodefatosporelesvividoseporelesnarradosemseusdebates.
Apalavraluta,porexemplo,têmsuscitadoemváriosCírculosdeCulturade diferentes asentamientos, discussões bem vivas em que os camponesesfalamdoquesignificouparaelesaconquistadeum“fundo”,alutaparaobterodireitoàterra.Sãodiscussõesemquecontamumpoucodesuahistória,quenãoseencontranoscompêndiosconvencionais.
Dramatizar estes fatos é não apenas uma forma de estimular aexpressividade dos camponeses, mas também de desenvolver a suaconsciênciapolítica.
Poroutrolado,nomomentoemqueestasgravaçõescomeçassemacobrirtodasasáreasdereformaagráriadopaís,podemosimaginaroalcancepolíticopedagógico que o intercâmbio do discurso camponês poderia ter. EsseintercâmbiopoderiaserestimuladotambématravésdoprogramaradiofônicosobaresponsabilidadedoInstitutodeDesarrolloAgropecuario,quepoderiacomeçaratransmitiralgunsdosdebatesgravados,seguidosporcomentários,emlinguagemsimples,feitospelaEquipeCentral.
Há algo mais que a análise deste discurso pode proporcionar: oreconhecimentodeumasériedepreocupaçõesdascomunidadescamponesasque, em última análise, revelam uma temática a ser tratadainterdisciplinarmenteenaqualsepoderiabasearaorganizaçãodoconteúdoprogramáticoparaapost-alfabetização.
Por que, ao pensar-se no que deve vir depois da alfabetização, se pensasemprenoprogramadaescolaprimária,nasuaseriaçãotradicional?Écomose a alfabetização dos adultos, mais rápida ou menos rápida, fosse um“tratamento”necessárioqueselhesaplicasseparaquedepoisatravessassemamonotoniadaescolaprimáriaconvencional.
Uma alfabetização de adultos que rompe com os esquemas tradicionaisnãopode,porissomesmo,prolongar-senumapost-alfabetizaçãoqueanegue.
Tão ligada ao esforço de produção quanto a alfabetização, a post-alfabetizarão nos asentamientos há de ser, como aquela, um ato deconhecimento e não de transferência deste. Seu conteúdo programático,partindo da realidade concreta dos camponeses, deve oferecer-lhes apossibilidadede ir superandooconhecimentoaonívelpreponderantemente“sensível”dascoisasedosfatospela“razãodeser”dosmesmos.
Daí que, apoiada na prática dos camponeses, a post-alfabetização nosasentamientos deva oferecer-lhes, em níveis que se vão ampliando, umconhecimentocadavezmaiscientíficodeseuquefazeredesuarealidade.
Aanálisedasdescodificaçõesgravadasproporcionaaapreensãodetemasbásicos,capazesdeserdesdobradosemunidadesdeaprendizagemnosmaisvariados campos.Noda agricultura, no da saúde, no damatemática, no daecologia,nodageografia,nodahistória,nodaeconomiaetc.Oimportanteéquetodosestesestudossefaçamsempreemfunçãodarealidadeconcretadoscamponesesedesuapráticanela.
Finalmente,transcritasasgravaçõesdasdescodificações,aEquipeCentral,assessoradaporeducadoresdebaseelíderescamponeses,organizarialivrosdetextos—asantologiascamponesas.Livrosquepoderiamseracrescidosdeumououtrotextoredigidopelaequipe,comosugerimosnaprimeirapartedestetrabalho.
Damesma formacomoasgravações,os livros seriam intercambiadosdeáreaaárea.
Aoestudarseuprópriotextoouotextodecompanheirosdeoutraárea,oscamponeses estariamestudandoodiscursoquebrotoudadescodificaçãodeumatemática.
Aodiscutir,enãoapenasaolerodiscursoanterior,fariamacríticadestediscurso,comumnovo,asergravadotambém.Odiscursosobreodiscursoanterior,queimplicaoconhecimentodoconhecimentoanterior,darialugaraumnovolivro,umsegundolivrodeleitura,cadavezmaisrico,maiscrítico,maispluralemsuatemática.
Desta maneira, se estaria tentando um esforço sério no sentido dodesenvolvimento da expressividade dos camponeses que se iriam inserindocriticamentenarealidadedoasentamiento.Inserçãocríticapormeiodaqualiriam ganhando mais rapidamente a clara compreensão de que à novaestruturadoasentamientocorrespondeumnovopensamento-linguagem.
Santiago,1968
Notas12 Este texto,comooutrosque fazempartedestevolume, foiescritoparaumsemináriorealizadoporumadasEquipesCentraisquecoordenavam trabalhosdealfabetizaçãodeadultos emáreas ruraisdoChile.
13 Analisando asmudanças de linguagem, em sociedades emprocesso de democratização, dizBarbu:“Novas significações são dadas a velhas palavras e novas palavras são cunhadas para designar velhascoisas.” Zevedei Barbu,Democracy and Dictatorship: Their Psychology and Patterns of Life. Londres:RoutledgeandKeganPaul,1956.
AÇÃOCULTURALEREFORMAAGRÁRIAINCIDINDO SOBRE A ESTRUTURA do latifúndio, transformando-a noutra,transitória,adoasentamiento,areformaagráriaexigeumpermanentepensarcríticoemtornodaaçãotransformadoramesmaedosresultadosquedelaseobtenham.
Qualquer postura ingênua em face deste processo, da qual resultemquefazeresigualmenteingênuos,podeconduziraerroseaequívocosfunestos.
Um desses equívocos, por exemplo, pode ser o de reduzir a açãotransformadoraaumatomecânico,atravésdoqualaestruturadolatifúndiocederia seu lugaràdoasentamiento, comoquandoalguém,mecanicamente,substituiumacadeiraporoutra,ouadeslocadeumlugaraoutro.
Oequívocofundamentalaqueestavisão,namelhordashipótesesacrítica,pode levar está em que se pretenda operar no domínio histórico-cultural,especificamente humano, em que se dá a reforma agrária, como quem secomportanodomíniodascoisas.
Mecanicismo, tecnicismo, economicismo são dimensões de umamesmapercepção acrítica do processo da reforma agrária. Implicam todas elas aminimizaçãodoscamponeses,comopurosobjetosdatransformação.Daíque,numa tal perspectiva, de caráter reformista, o importante seja fazer asmudançaspara esobre os camponeses, comoobjetos, enão com eles, comosujeitos,também,datransformação.
Se é indispensável que os camponeses adotem novos procedimentostécnicosparaoaumentodaprodução,entãonãoháoutracoisaafazersenão“estender” a eles as técnicas dos especialistas, com as quais se pretendesubstituirseusprocedimentosempíricos.
Destaforma,seesquecedequeastécnicas,osabercientífico,assimcomoo procedimento empírico dos camponeses se encontram condicionadoshistórico-culturalmente. Neste sentido são manifestações culturais tanto astécnicasdosespecialistasquantoocomportamentoempíricodoscamponeses.
Subestimaracapacidadecriadoraerecriadoradoscamponeses,desprezarseusconhecimentos,nãoimportaonívelemqueseachem,tentar“enchê-los”
comoqueaostécnicoslhesparececertosãoexpressões,emúltimaanálise,daideologiadominante.
Não queremos, contudo, com isso dizer que os camponeses devampermanecernoestadoemqueseencontramcomrelaçãoaseuenfrentamentocom o mundo natural e à sua posição em face da vida política do país.Queremos afirmar que eles não devem ser considerados como “vasilhas”vaziasnasquaissevádepositandooconhecimentodosespecialistas,mas,pelocontrário, sujeitos, também, do processo de sua capacitação. Capacitaçãoindispensável ao aumento da produção, cuja necessidade, demasiado óbvia,nãonecessita ser discutida.Oque, porém,não apenas se podemas se devediscutiréaformadecompreenderedebuscaroaumentodaprodução.
A visão ingênua que, em sua percepção focalista da realidade,economicista, desconhece que não há produção fora das relações homem-mundo termina por transformar os camponeses emmeros instrumentos deprodução.
Assim,namedidaemquedesprezaofatodequenãoháproduçãoforadasrelaçõeshomem-mundo,nãopodepercebersuaimportância.
Daíquenãopossacompreendere,quandocompreende,nãodêadevidaimportância ao fato de que, transformando a realidade natural com seutrabalho,oshomenscriamoseumundo.Mundodaculturaedahistóriaque,criadoporeles, sobreeles sevolta, condicionando-os. Istoéoqueexplicaaculturacomoproduto,capazaomesmotempodecondicionarseucriador.
O que nos parece dever ficar claro é que o indispensável aumento daproduçãoagrícolanãopodeservistocomoalgoseparadodouniversoculturalemquesedá.
Os obstáculos ao aumento da produção, com os quais se defrontam ostécnicosnoprocessodareformaagrária, são,emgrandemedida,obstáculosdecarátercultural.Aresistênciadoscamponesesaestaouàquelaformamaiseficaz de trabalho, que implicaria umamaior produtividade, é de naturezacultural.14
Os camponeses desenvolvem sua maneira de pensar e de visualizar omundo de acordo com pautas culturais que, obviamente, se encontrammarcadas pela ideologia dos grupos dominantes da sociedade global de que
fazemparte. Suamaneira de pensar, condicionada por seu atuar aomesmotempo em que a este condiciona, de há muito e não de hoje, se vemconstituindo, cristalizando. E semuitas destas formas de pensar e de atuarpersistemhoje,mesmoemáreasemqueoscamponesesseexperimentamemconflitosnadefesadeseusdireitos,commaisrazãopermanecemnaquelasemque não tiveram uma tal experiência. Naquelas em que a reforma agráriasimplesmenteaconteceu.
Estaéarazãoqueexplicaamanutençãodegrandepartedasmanifestaçõesculturais do latifúndio na estrutura transitória do asentamiento. Só ummecanicista terá dificuldades em entender que a supraestrutura não setransformaautomaticamentecomamudançadainfraestrutura.
Atransformaçãodeumasociedadeserá,porissomesmo,tãomaisradicalquantosejaumprocessoinfraestruturalquetoma,assim,aestruturacomoadialetização entre a infra e a supraestrutura.Muito da negatividade do quecostumamos chamar “cultura do silêncio”, típica das estruturas fechadascomoadolatifúndio,penetra,comseussinaisvisíveis,nanovaestruturadoasentamiento.
Esta“culturadosilêncio”,geradanascondiçõesobjetivasdeumarealidadeopressora, não somente condiciona a formade estar sendodos camponesesenquanto se acha vigente a infraestrutura que a cria, mas continuacondicionando-os, por largo tempo, ainda quando sua infraestrutura tenhasidomodificada.
Searelaçãoquehaviaantesentreaestruturadominadoraeasformasdeperceberarealidadeedeatuarnelaestádesaparecendo,istonãosignificaqueas negatividades da “cultura do silêncio” hajam perdido sua forçacondicionante com a instalação do asentamiento. Seu poder inibidorpermanece,nãocomoreminiscênciainconsequente,mascomoalgoconcreto,interferindonoquefazernovoqueanovaestruturademandadoscamponeses.Para que se esgote este poder inibidor é necessário que as novas relaçõeshumanas, características da estrutura recém-instaurada e baseadas numarealidade material diferente, sejam capazes de criar um estilo de vidaradicalmenteopostoaoanterior.E,aindaassim,a“culturadosilêncio”pode,de vez em quando, em função de certas condições favoráveis, “reativar-se”,reaparecendoemsuasmanifestaçõestípicas.
Sóatravésda “dialéticada sobredeterminação”15 épossível compreenderestapermanênciaque,naverdade,criaproblemasedificuldadesatémesmoàstransformaçõesrevolucionárias.
Somentearmadosdesteinstrumentometodológicopoderemosentendereexplicar as reações de caráter fatalista dos camponeses em facedosdesafiosqueanovarealidadelhesfaz.Comotambémcompreenderqueelestenham,nãorarasvezes,nomodelodominadordopatrãolatifundista,oexemploquedevem seguir. Ou que, já enquanto “assentados”, lhes pareça normal dizer,referindo-seaoantigopatrão,“overdadeiropatrãomoramaisacima”,16nãopercebendo que, ao considerar o antigo patrão como o verdadeiro, estãoquestionandoavalidademesmade seuestadode “assentados”,na realidadenovadoasentamiento, emquedevemsuperaraposiçãoanteriordeobjetos,assumindoade sujeitos.Ouainda, quemuitos vejamnaCorporaciónde laReformaAgráriaseunovopatrão.
Estas reações não podem ser entendidas pelos mecanicistas que,ingenuamente convencidos da transformação automática da supraestruturacom a mudança da infra, tendem a explicá-las anticientificamente,considerando os camponeses como “preguiçosos e incapazes” e, às vezestambém,“ingratos”.
Daí que se inclinem a formas de ação vertical, paternalista, em lugar deestimularatomadadedecisãodoscamponeses.Destamaneira,reativandoa“culturado silêncio” emantendoos camponesesno estadodedependência,nãocontribuememnadaparaasuperaçãodesuapercepçãofatalistaemfacedas situações limite; superação desta percepção fatalista por outra, crítica,capaz de divisar mais além destas situações, o que chamamos de “inéditoviável”.17
Daí que, frente a estas, fatalistamente, esta modalidade de consciênciabusquesuasrazõesforadassituaçõesmesmas,encontrando-as,quasesempre,nodestinoounocastigodivino.18Aestenível,nãoépossível,realmente,umapercepçãoestruturaldosproblemasdeque resultaria sua inserçãocríticanoprocessodetransformação.
Isto só é possível quando, através de uma permanente mobilização doscamponeses,desuaparticipaçãoativanumapráticapolítica,nadefesadeseusinteressesenacompreensãodequeestesnãodevemserantagônicosaosde
seuscompanheiros, trabalhadoresurbanos,conseguemsuperaroestadoqueGoldmann chama de “consciência real” pelo “máximo de consciênciapossível”.19
Imobilizar os camponeses exercendo ainda sobre eles uma práticaassistencialista, não pode constituir-se no caminho para tal superação. Poresse caminho, os camponeses poderão ser, nomáximo, incorporados comoobjetos ao processo da reforma agrária, jamais a ele incorporados comosujeitosdele.Podemser incorporados àprodução, como instrumentosdela,jamaisincorporar-seaelacomosujeitos.
Impõe-se, pelo contrário, uma modalidade de ação através da qual,culturalmente, se enfrente a “culturado silêncio” e seopere a extrojeçãodeseusmitos.
Nesta modalidade de ação, a realidade que mediatiza seus sujeitos se“entrega” à “admiração” destes, constituindo-se como objeto deconhecimentodeambos:educadores-educandos,educandos-educadores.
Tudo isso demanda que o asentamiento, enquanto uma unidade deprodução, seja entendido também como unidade cultural. Desta forma, acapacitação técnica dos camponeses jamais se reduziria à transferência dereceitastecnicistasesefariaumaatividaderealmentecriadora.
Ao capacitar-se em novas técnicas, deveriam discutir a maneira comoestiveramsendo,“silenciosamente”,naestruturaopressivadolatifúndio.
Enquantoaformadeaçãoassistencialista,vertical,manipuladora,envolve,necessariamente, a “invasão cultural”, a que defendemos propõe a “síntesecultural”.20
Paraqueestasedêénecessárioque,desdeomomentoemqueestaaçãocomeça,jásejadialógica.
Agrônomos, técnicos agrícolas, alfabetizadores, cooperativistas,sanitaristasdevemencontrar-secomoscamponeses,dialogicamente,tendoarealidademesmadoasentamientocomomediadora.
Desta forma, o caráter de agentes da ação, que têm os que tomam ainiciativa desta, deixa de pertencer-lhes, na síntese, em cujo momento oscamponesesassumemopapeltambémdeagentesdaação.
A ação cultural que se orienta no sentido da síntese tem seu ponto departidanainvestigaçãotemáticaoudostemasgeradores,pormeiodaqualoscamponeses iniciam uma reflexão crítica sobre si mesmos, percebendo-secomoestãosendo.
Ao apresentar-se aos camponeses, durante a investigação temática, suarealidadeobjetiva,naqualecomaqualestão,comoumproblema,atravésdesituaçõescodificadas,refazemsuapercepçãoanteriordarealidade.
Alcançam,assim,oconhecimentodoconhecimentoanterior,queoslevaao reconhecimento de erros e equívocos no antigo conhecimento.21 Destaformaampliamomarcodoconhecer,percebendo,emsua“visãodefundo”,dimensões até então não percebidas e que, agora se lhes apresentam como“percebidosdestacadosemsi”.
Este tipo de ação cultural, reinsistamos, só tem sentido quando tentaconstituir-se como um momento de teorização da prática social de queparticipamoscamponeses.Sesealienadestaprática,seperde,esvaziada,numpuroblábláblá.
Finalmente, a ação cultural como a entendemos não pode, de um lado,sobrepor-seàvisãodomundodoscamponeseseinvadi-losculturalmente,deoutro,adaptar-seaela.Pelocontrário,atarefaqueelacolocaaoeducadoréade, partindo daquela visão, tomada como um problema, exercer, com oscamponeses,umavoltacríticasobreela,dequeresultesuainserção,cadavezmaislúcida,narealidadeemtransformação.
Santiago,1968
Notas14 Aestepropósito, cf.PauloFreire,Extensão ou comunicação? Rio de Janeiro: Paz eTerra, 1977, 3aedição[14aedição,SãoPaulo:PazeTerra,2011].[N.E.]
15 LouisAlthusser,PourMarx.Paris:FrançoisMaspéro,1967.
16 Afirmaçãofeitaporumlídercamponês,emconversacomoautor,numasentamiento.
17 PauloFreire,Pedagogiadooprimido.
18 “A seca atual é vingança de São Pedro, por seu dia já não ser feriado santo”, disse-nos um lídercamponêsnumdosasentamientos.
19 LucienGoldmann,Lascienciashumanasylafilosofia.BuenosAires:EdicionesNuevaVisión,1972.
20 Apropósitode“invasãocultural”e“síntesecultural”,cf.PauloFreire,op.cit.[N.E.]
21 Cf.Id.,ibid.[N.E.]
OPAPELDOTRABALHADORSOCIALNOPROCESSODEMUDANÇAESTE ENCONTRO DO QUAL PARTICIPAMOS é uma oportunidade que asinstituições governamentais aqui representadas oferecem a alguns de seusgruposde técnicosparapensaremcomum.Pensaremcomumemtornodeproblemas objetivos que envolvem sua atuação em seus vários campos detrabalho.
Nossacontribuiçãosecentranadiscussãodotemaquenosfoiproposto:opapeldotrabalhadorsocialnoprocessodemudança.
Para fazê-lo, devemos começar por exercer uma reflexão sobre a frasemesmaqueenvolveonossotema.
Avantagemdeassimprocederestáemqueafrasepropostasedesvelaantenósemsuacompreensãototal.Oadentramentoquefaçamosnela,desdeumpontodevistacrítico,nospossibilitaráperceberainteraçãodeseustermosnaconstituição de um pensamento estruturado, que contém um temasignificativo.
Esteadentramentocríticonafraseproposta,quenoslevaàapreensãomaisprofundadeseusignificado,superaapercepçãoingênua,quesendosimplista,nosdeixasemprenaperiferiadetudooquetratamos.
Para o pontode vista crítico que aqui defendemos, a operaçãodemirarimplicaoutra—ade“ad-mirar”.Admiramoseaoadentrar-nosnoadmiradoomiramosdedentroedesdedentro,oquenosfazver.
Na ingenuidade,queéumaforma“desarmada”deenfrentamentocomarealidade,miramosapenase,porquenãoadmiramos,nãopodemosmiraromirado em sua intimidade, o que não nos leva a ver o que foi puramentemirado.
Porisso,énecessárioqueadmiremosafrasepropostapara,mirando-adedentro, reconhecerquenãodeve ser tomadacomoummeroclichê.A fraseemdiscussãonãoéumrótulo.Elaé,emsi,umproblema,umdesafio.
Enquanto apenas miremos a frase, ficando assim na sua periferia,provavelmente não faremos outra coisa, ao falar do tema que ela envolve,
senãoumdiscursode“frasesfeitas”.
A operação referida de adentramento crítico na frase proposta nospossibilitaoutraoperação—adesuacisãoemsuaspartesconstitutivas.Estacisão da totalidade, em suas partes nos permite retornar a ela (totalidade)alcançandodestaformaumacompreensãomaisverticaldesuasignificação.
Ad-mirar,mirardesdedentro,cindirparavoltaramirarotodoadmirado,quesãoumiratéotodoeumvoltardeleatésuaspartes,sãooperaçõesquesóse dividem pela necessidade que tem o espírito de abstrair para alcançar oconcreto.Nofundo,sãooperaçõesqueseimplicammutuamente.
Aoad-mirarafrasequeenvolveumtemadesafiador,aocindi-laemseuselementos, constatamos que o termo papel se acha modificado por umaexpressãorestritiva,quedelimitasua“extensão”:dotrabalhadorsocial.Nesta,poroutrolado,háumqualificativo:social,queincidesobrea“compreensão”dotermotrabalhador.
Estasubunidadedaestruturageral—papeldotrabalhadorsocial—seligaàsegunda—processodemudança—,querepresenta,segundoacompreensãodafrase,“onde”opapelsecumpre,atravésdoconectivoem.
Naverdade,porém,opapeldotrabalhadorsocialnãosedánoprocessodamudança,comoainteligênciapuramentegramaticaldafrasenossugere.
Opapeldotrabalhadorsocialsedesenvolvenumdomíniomaisamplo,noqualamudançaéumdosaspectos.Otrabalhadorsocialatua,comoutros,naestruturasocial.
Daí que senos imponha compreendê-la em sua complexidade. Senão aentendemos como algo que, para ser, temde estar sendo, não teremosdelauma visão crítica. O que, de fato, caracteriza a estrutura social não é amudança nem a permanência tomadas em si mesmas, mas a “duração” dacontradiçãoentreambas,emqueumadelaspodeserpreponderantesobreaoutra.
Naestruturasocial,enquantodialetizaçãoentreainfraeasupraestrutura,não há permanência da permanência nem mudança da mudança, mas oempenho de sua preservação em contradição com o esforço por suatransformação. Daí que não possa ser o trabalhador social, como educadorque é, um técnico friamente neutro. Silenciar sua opção, escondê-la no
emaranhado de suas técnicas ou disfarçá-la com a proclamação de suaneutralidadenãosignificanaverdadeserneutromas,aocontrário,trabalharpelapreservaçãodostatusquo.
Daíanecessidadequetemdeclarificarsuaopção,queépolítica,atravésdesua prática, também política. Sua opção determina seu papel, como seusmétodosdeação.
Éumaingenuidadepensarnumpapelabstrato,numconjuntodemétodosedetécnicasneutrosparaumaaçãoquesedáemumarealidadequetambémnãoéneutra.
Assim, se a opção do trabalhador social é reacionária, sua ação e osmétodos adotados se orientarão no sentido de frear as transformações. Emlugardedesenvolverumtrabalhoatravésdoqualarealidadesevádesvelandoaeleeaoscomquemtrabalha,emumesforçocríticocomum,sepreocupará,pelocontrário,emmitificara realidade.Em lugarde ternestaumasituaçãoproblemática que o desafia e aos homens com quem deveria estar emcomunicação,suatendênciaéinclinar-seasoluçõesdecaráterassistencialista.O que o move, em última análise, através de ações e reações, é ajudar a“normalização”da “ordemestabelecida”que serve aos interessesda elite dopoder.
O trabalhador social que faz essa opção pode, e quase sempre tenta,disfarçá-la, aparentando sua adesão à mudança, ficando, porém, nas meiasmudanças,quesãoumaformadenãomudar.
Um dos sinais da opção reacionária do trabalhador social são suasinquietaçõesemfacedasconsequênciasdamudança,seureceioaonovo,seumedo,àsvezesimpossíveldeserescondido,deperderseu“statussocial”.Daíque, em seusmétodos de ação, não haja lugar para a comunicação, para areflexão crítica, para a criatividade, para a colaboração, mas para amanipulaçãoostensivaounão.
Otrabalhadorsocialreacionárionãopoderealmenteinteressar-seporqueosindivíduosdesenvolvamumapercepçãocríticadesuarealidade.Nãopodeinteressar-se por que exercitem uma reflexão, enquanto atuam, sobre aprópriapercepçãoqueestãotendodarealidade.Nãolheinteressaestavoltadapercepçãosobreapercepção,condicionadapelarealidadeemqueseacham.
É que, no momento em que os indivíduos, atuando e refletindo, sãocapazesdepercebero condicionamentode suapercepçãopela estrutura emqueseencontram,suapercepçãocomeçaamudar,emboraissonãosignifiqueainda amudança da estrutura. É algo importante perceber que a realidadesocial é transformável; que feita pelos homens, pelos homens pode sermudada; que não é algo intocável, um fado, uma sina, diante de que sóhouvesse um caminho: a acomodação a ela. É algo importante que apercepçãoingênuadarealidadevácedendoseulugaraumapercepçãoqueécapaz de perceber-se; que o fatalismo vá sendo substituído por uma críticaesperançaquepodemoverosindivíduosaumacadavezmaisconcretaaçãoemfavordamudançaradicaldasociedade.Aotrabalhadorsocialreacionárionadadissointeressa.
Poderá dizer-se que a mudança da percepção não é possível antes damudançadaestrutura,narazãomesmadoseucondicionamentoporesta.Talafirmação,setomadadeumpontodevistaextremado,podenosconduzirainterpretaçõesmecanicistasdasrelaçõespercepção-realidade.
Poroutro lado,paraevitarqualquerconfusãoentrenossaposiçãoeumaposturaidealista,énecessárioquedigamosalgomaissobreesteprocesso.
A mudança da percepção da realidade pode dar-se “antes” datransformação desta, se não se empresta ao termo antes a significação dedimensão estagnada do tempo, com que lhe pode conotar a consciênciaingênua.
Asignificaçãodoantes,aqui,nãoédosentidocomum.Oantesaquinãosignifica um momento anterior que estivesse separado do outro por umafronteira rígida. O antes, pelo contrário, faz parte do processo detransformaçãoestrutural.
Desta forma, a percepção da realidade, distorcida pela ideologiadominante, pode sermudada,namedida emque,no “hoje” emque se estáverificandooantagonismoentremudançaepermanência, esteantagonismocomeçaasefazerumdesafio.
Esta mudança de percepção, que se dá na problematização de umarealidadeconflitiva,implicaumnovoenfrentamentodosindivíduoscomsua
realidade.Implicauma“apropriação”docontexto,numainserçãonele,numjánãoficar“aderido”aele;numjánãoestarquasesobotempo,masnele.
Se este esforço não pode ser desenvolvido pelo trabalhador socialreacionário,deveserumapreocupaçãoconstantedoquesecomprometecomamudança.Daíqueseupapelsejadiferenteequeseusmétodosdeaçãonãopossamconfundir-secomaquelesrecém-referidos,característicosdaposiçãoreacionária.
Se o primeiro, proclamando a inexistente neutralidade de seu quefazer,entretém os indivíduos, os grupos e as comunidades com formas de açãopuramente anestésicas, oqueoptapelamudança se empenha emdesvelar arealidade. Trabalha com, jamais sobre, os indivíduos, a quem considerasujeitosenãoobjetos,incidênciasdesuaação.Porissomesmoéque,humildee crítico, não pode aceitar a ingenuidade contida na “frase feita” e tãogeneralizada em que ele aparece como o “agente damudança”. Essa não étarefadealguns,masdetodososquecomelarealmentesecomprometem.
O trabalhador social que opta pelamudança não teme a liberdade, nãoprescreve,nãomanipula.Mas,rejeitandoaprescriçãoeamanipulação,rejeitaigualmenteoespontaneísmo.
É que ele sabe que todo empenho de transformação radical de umasociedadeimplicaaorganizaçãoconscientedasmassaspopularesoprimidasequeessaorganizaçãodemandaaexistênciadeumavanguardalúcida.Seesta,deumlado,nãopodesera“proprietária”daquelas,nãopode,deoutro,deixá-lasentreguesasimesmas.
Seria, porém, uma ilusão pensar que o trabalhador social, numa linhacomo esta, pudesse agir livremente, como se os grupos dominantes nãoestivessem necessariamente despertos para a defesa de seus interesses. Emfunção destes é que são admitidas certas mudanças, de caráter obviamentereformistase,mesmoassim,comadevidacautela.
Daíanecessidadequetemotrabalhadorsocialdeconhecerarealidadeemque atua, o sistema de forças que enfrenta, para conhecer também o seu“viávelhistórico”.Emoutraspalavras,paraconheceroquepodeserfeito,emummomentodado,poisquesefazoquesepodeenãooquesegostariadefazer.
Isso significa ter uma compreensão clara das relações entre tática eestratégia,nemsempre,infelizmente,seriamenteconsideradas.
Santiago,1968
AÇÃOCULTURALPARAALIBERTAÇÃO22
Nota22 Escritoem finsde1969, emCambridge,EstadosUnidos, este trabalho foipublicado,pelaprimeiravez,naHarvardEducationalReview,em1970.
PARTE1
OPROCESSODEALFABETIZAÇÃODEADULTOSCOMOAÇÃOCULTURALPARAALIBERTAÇÃO
A)TODAPRÁTICAEDUCATIVAIMPLICAUMACONCEPÇÃODOSSERESHUMANOSEDOMUNDO
A EXPERIÊNCIA NOS ENSINA que nem todo óbvio é tão óbvio quanto parece.Assim, é com uma obviedade que começamos este trabalho: toda práticaeducativaenvolveumapostura teóricaporpartedoeducador.Essapostura,emsimesma,implica—àsvezesmais,àsvezesmenosexplicitamente—umaconcepçãodossereshumanosedomundo.Enãopoderiadeixardeserassim.É que o processo de orientação dos seres humanos nomundo envolve nãoapenas a associação de imagens sensoriais, como entre os animais, mas,sobretudo, pensamento-linguagem; envolve desejo, trabalho-açãotransformadora sobre omundo, de que resulta o conhecimento domundotransformado.Esteprocessodeorientaçãodossereshumanosnomundonãopode ser compreendido, de um lado, de um ponto de vista puramentesubjetivista;deoutro,deumânguloobjetivistamecanicista.Naverdade,estaorientação no mundo só pode ser realmente compreendida na unidadedialéticaentresubjetividadeeobjetividade.Assimentendida,aorientaçãonomundopõeaquestãodasfinalidadesdaaçãoaoníveldapercepçãocríticadarealidade.
Imersos no tempo, em seu mover-se no mundo, os animais não seassumemcomopresençasnele;nãooptam,nosentidorigorosodaexpressão,nemvaloram.Sereshistóricos,inseridosnotempoenãoimersosnele,ossereshumanossemovemnomundo,capazesdeoptar,dedecidir,devalorar.Têmo sentido do projeto, em contraste com os outros animais,mesmo quandoestesvãomaisalémdeumarotinapuramenteinstintiva.
Daíqueaaçãohumana,ingênuaoucrítica,envolvafinalidades,semoquenão seria práxis, ainda que fosse orientaçãonomundo. E não sendopráxisseriaaçãoqueignorariaseupróprioprocessoeseusobjetivos.
Arelaçãoentreaconsciênciadoprojetopropostoeoprocessonoqualsebuscasuaconcretizaçãoéabasedaaçãoplanificadadossereshumanos,que
implicamétodos,objetivoseopçõesdevalor.
Aalfabetizaçãodeadultosdeveservista,analisadaecompreendidadestaforma.O analista crítico descobrirá nosmétodos e nos textos usados peloseducadoresopçõesvalorativasquerevelamumafilosofiadoserhumano,bemoumal esboçada, coerente ou incoerente, assim como uma opção política,explícita ou disfarçada. Somente uma mentalidade mecanicista, que Marxchamariade“grosseiramentematerialista”,poderiareduziraalfabetizaçãodeadultos a uma ação puramente técnica. Estamentalidade ingênua não seriacapaz, por outro lado, de perceber que a técnica, em si mesma, comoinstrumento de que se servem os seres humanos em sua orientação nomundo,nãoéneutra.
Mais de uma vez temos dedicado nossa atenção, através da análise detextos e procedimentos usados em campanhas de alfabetização, parademonstrarasafirmaçõesqueestamosfazendo.Façamosumexercíciosimilaragora.
Tomemos como hipótese de trabalho duas cartilhas empregadas comotextos básicos, no esforço de alfabetização. Uma que, do ponto de vista dogênero,poderíamosconsiderarmáeoutraque,domesmoângulo,seriaboa.Suponhamos que o autor da “boa” cartilha fez a seleção de suas palavrasgeradorasdandoprioridadeàquelasquetêmmaiorsignificaçãoparaumcertogrupodealfabetizandos(práticanãomuitocomum,masdequeháexemplos).
Indubitavelmente tal autor terá idomuitomais longe do que seu colegaque preparou sua cartilha com palavras geradoras escolhidas em suabiblioteca, exclusivamente preocupado com a gradação das dificuldadesfonéticas.Ambososautores,porém,seidentificamnumpontofundamental.Emcadacaso,elesmesmossãoosque,decompondoaspalavrasgeradorasemsílabas, criam, com estas, novas palavras com as quais formam frases esentençase,poucoapouco,pequenasestórias,asassimchamadas“liçõesdeleitura”.
Digamosmesmo que o autor da segunda cartilha, indo um poucomaislonge, sugere aos alfabetizadores que discutam com os alfabetizandos sobreumaououtrapalavrageradora,bemcomosobreumououtrodospequenostextosdeleituradesuacartilha.
Considerando qualquer um dos dois exemplos aqui tratados, podemosconcluir,legitimamente,queháimplícita,noconteúdoemétododascartilhas,uma certa visão dos seres humanos, não importa se os autores estãoconscientesdissoounão.Estavisãopodeserconstruídadesdeváriosângulos.Comecemospelofato,inerenteàideiamesmadecartilha,dequeéoseuautorouautorao/aqueescolheaspalavrasgeradorase,atravésdosalfabetizadores,as propõe ou impõe aos alfabetizandos. Na medida em que, através damediaçãodacartilha,osalfabetizadoresvão“depositando”nosalfabetizandosaspalavras geradoras,pode-se facilmentedetectarumaprimeira importantedimensãoda imagemde serhumanoquecomeçaa emergirdestaanálise.Éumperfildeserhumanocujaconsciência,“especializada”e“vazia”,deveser“enchida”paraquepossaconhecer.Éamesmaconcepçãoque levouSartre,criticandoanoçãodeque“conhecerécomer”,aexclamaremSituationsI:Oh!philosophiealimentaire!
Esta concepção “digestiva” do conhecimento, tão comum na práticaeducacionalcorrente,seencontraclaramentenascartilhas.23
Os analfabetos são considerados “subnutridos”, não no sentido real emquemuitososão,masporquelhesfaltao“pãodoespírito”.Acompreensãodoanalfabetismocomo“ervadaninha”quedeveser“erradicada”temquevercomavisãodoconhecimentocomoalgoasercomido.Énecessárioerradicaroanalfabetismoe,parafazê-lo,urgequeosalfabetizandosse“alimentem”depalavras.
Destaforma,esvaziadadeseucaráterdesignolinguístico,constitutivodopensamento-linguagem dos seres humanos, a palavra é transformada emmero “depósito vocabular” — o “pão do espírito”, que os alfabetizandosdevemcomeredigerir.
Esta visão “nutricionista” do conhecimento talvez explique também ocaráterhumanitaristadecertascampanhaslatino-americanasdealfabetização.Se milhões de homens e mulheres estão analfabetos, “famintos de letras”,“sedentosdepalavras”,apalavradeveserlevadaaeleseelasparamatarasua“fome”esua“sede”.Palavraque,deacordocomaconcepção“especializada”emecânicadaconsciência, implícitanascartilhas,deveser“depositada”enãonascidadoesforçocriadordosalfabetizandos.
Numa tal concepção é evidentequeos alfabetizandos sejamvistos comopurosobjetosdoprocessodeaprendizagemdaleituraedaescrita,enãocomoseussujeitos.Enquantoobjetos,suatarefaé“estudar”,querdizer,memorizaras assim chamadas lições de leitura, de caráter alienante, com pouquíssimoquever,quandotêm,comasuarealidadesociocultural.
Seria, na verdade, um trabalho interessante analisar cartilhas e textos deleitura usados em campanhas ou movimentos de alfabetização de adultos,oficiaisounão,emáreasruraisouurbanas,daAméricaLatina.Facilmentesesurpreenderia o caráter ideológico desses textos, mascarado de umaneutralidade que de fato não existe. Em uma análise como esta, semdificuldade, se encontrariam frases e pequenas estórias como as que seseguem:
Aasaédaave.
Evaviuauva.
Ogalocanta.
Ocachorroladra.
Mariagostadosanimais.
Joãocuidadasárvores.
OpaideCarlinhossechamaAntônio.
Carlinhoséummeninobom,bem-comportadoeestudioso.
Se você trabalha commartelo e prego, tenha cuidado para não furar odedo.24
Pedronãosabialer.Pedroviviaenvergonhado.Umdia,Pedrofoiàescolae sematriculou num curso noturno.A professora de Pedro eramuito boa.Pedroagorajásabeler,porisso,estáfeliz.
VejamacaradePedro.Pedroestásorrindo.
Játemumbomemprego.Todosdevemseguiroseuexemplo.
Ao afirmar-se que Pedro está sorrindo porque já sabe ler e que é felizporque temagoraumbomempregoequeéumexemploa ser seguidoportodos,seestabelecenotextocitadoumarelação,naverdadeinexistente,entre
ofatodesimplesmentesaberlereobterumbomemprego.Estaingenuidade— quando se trata realmente de ingenuidade — revela a incapacidade depercepção do analfabetismo em suas implicações políticas e sociais, de queresulta a sua redução a algo estritamente linguístico. Daí que, numa talperspectiva, não se apreendam as relações entre o analfabetismo e asestruturasdasociedade.Écomoseoanalfabetismofosseumfenômenoaparteda realidade concreta ou a expressão da inferioridade intrínseca de certasclassesougrupossociais.
Incapazdeapreenderoanalfabetismocontemporâneodiretamenteligadoàrealidadedadependência,esteenfoquenãopodedarumarespostacríticaaodesafioqueelecoloca.
Ameraaprendizagemdaleituraedaescritanãofazmilagres.
Nãoéela,emsimesma,aquecriaempregos.
Umdessesmanuais25apresentaemsuas“liçõesdeleitura”doistextos,empáginasconsecutivas,massemnenhumareferênciaexplícitaaoconteúdodosmesmos.Numapáginasefalado1odemaio,enfatizando-seocaráterdediaferiadoqueeletem.Toca-se,deleve,nascomemoraçõesemqueeleimplica,masnãosemencionaanaturezadoconflitoquegerouessacelebração.
Otemacentralda“lição”seguinteéferiado.Entreoutrascoisassedizque,em dias feriados, as pessoas devem ir à praia para nadar e bronzear-se…Portanto,seo1odemaioéumdiaferiadoesenosdiasferiadosopovodeveiràpraiaparanadarebronzear-se,aconclusãoinsinuadanotextoéadequeostrabalhadores,noDiadoTrabalho,devemirnadarequeimar-seaosol…
Aanálisedestestextosrevela,nãoimportaseseusautoressãoingênuosouastutos,a ideologiadaclassedominanteque tem,naeducaçãoporelapostaemprática,uminstrumentoeficienteparasuareprodução.
Aasaédaave.Evaviuauva,ogalocanta,ocachorroladra,sãocontextoslinguísticosque,mecanicamentememorizadoserepetidos,esvaziadosdeseuconteúdo enquanto pensamento-linguagem referido ao mundo, setransformamemmerosclichês.
Seusautores,refletindosuaposiçãodeclasse,nãopodemreconhecer,nasclasses dominadas, a capacidade de conhecer, de criar seus próprios textos,comqueexpressariamseupensamento-linguagem.Repetemcomostextoso
quefazemcomaspalavras,depositando-osnaconsciênciadosalfabetizandos,comoseestafosseumespaçovazio.Umavezmais,aconcepçãonutricionistadoconhecimento.
Háalgoaindaimplícitonaideologiadasclassesdominantesequeaanálisede cartilhas e livros de leitura revela—o perfil dos analfabetos como seresmarginais. Aqueles que consideram os analfabetos como seres marginaisdevem, porém, reconhecer a existência de uma realidade de que eles seencontrammarginalizados— realidade que não é apenas um espaço físico,maseconômico,histórico,social,cultural.Destamaneira,osanalfabetostêmdeserreconhecidoscomoseres“forade”ou“marginaisa”algumacoisa,poisque seria impossível estaremmarginais a nada.Mas estar “fora de” implicaque,quemseencontra“forade”fezummovimentodocentroondeseachavapara a periferia. Admitindo a existência de homens e mulheres “fora de”,marginaisàestruturadasociedade,parecelegítimoperguntar:queméoautordestemovimento?Seráqueoschamadosmarginais,entreelesosanalfabetos,tomam a decisão demover-se até a “periferia” da sociedade? Se assim é, amarginalidade é uma opção, com tudo o que ela envolve: fome, doença,raquitismo, baixos índices de expectativa de vida, crime, promiscuidade,morteemvida,impossibilidadedeser,desesperança.
De fato, porém, é difícil aceitar que 40% da população brasileira, quase90%dadoHaiti,60%dadeBolívia,emtornode40%dadoPeru,maisde30%dadoMéxicoedaVenezuelaeaoredorde70%dadeGuatemala,tivessefeitoatrágicaescolhadesuamarginalidade,comoanalfabeta.26
Seentãoamarginalidadenãoéumaopção,oschamadosmarginaisforamexpulsos,objetos,portanto,deumaviolência.Naverdade,violentados,nãoseacham porém “fora de”. Encontram-se dentro da realidade social, comogrupos ou classes dominadas, em relação de dependência com a classedominante.
Emumaperspectivamenosrigorosa,simplista,menoscrítica,tecnicista,sediriaqueéumaperdadetemporefletirsobreestespontoseseacrescentariaque a discussão em torno do conceito de marginalidade é um exercícioacadêmico desnecessário. Na verdade, não é assim. Aceitando-se osanalfabetos como homens e mulheres à margem da sociedade, semcompreendê-los como classe dominada, termina-se por tomá-los como
homensemulheres“enfermos”paraquemo“remédio”seriaaalfabetização,que permitiria seu regresso à estrutura “saudável” de que se encontramseparados.
Oseducadores,porsuavez,serãovistoscomoconselheiroshumanitários,infatigáveis nas suas andanças pelos arredores da cidade, convencendo ospertinazesanalfabetosdequedevemvoltaraoseiodafelicidadeabandonada,depossedapalavraqueoseducadoreslhes“presenteiam”.
Analfabetos ou não, os oprimidos, enquanto classe, não superarão suasituaçãodeexploradosanãosercomatransformaçãoradical,revolucionária,dasociedadedeclassesemqueseencontramexplorados.
Deste ponto de vista, já não são tomados como homens e mulheresmarginais,mascomoclassedominadaemrelaçãoantagônica,naintimidademesma da sociedade, com a classe dominante que os reduz a quase coisas.Assim,também,oensinodaleituraedaescritajánãoéarepetiçãomecânicadeba-be-bi-bo-bunemamemorizaçãodeumapalavraalienada,masadifícilaprendizagemde“nomear”omundo.
Naprimeirahipótese,oprocessodealfabetizaçãoreforçaamitificaçãodarealidade, fazendo-a opaca e embotando a consciência dos educandos compalavrasefrasesalienadas.
Nosegundocaso,pelocontrário,oprocessodealfabetização,comoaçãocultural para a libertação, é um atode conhecimento emque os educandosassumemopapeldesujeitoscognoscentesemdiálogocomoeducador,sujeitocognoscentetambém.Porisso,éumatentativacorajosadedesmitologizaçãodarealidade,umesforçoatravésdoqual,numpermanentetomardistânciadarealidadeemqueseencontrammaisoumenosimersos,osalfabetizandosdelaemergemparanelainserirem-secriticamente.
Tãopolíticaquantoaaçãodesenvolvidanaprimeirahipótese,asegundasedistinguedaprimeiraporquesuapolíticaéadaclassedominada,enquantoadaquelaéadaclassedominante.Daíque,noprimeirocaso,tudosefaçaparaevitarqueosalfab