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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP João Roberto Gorini Gamba A insuficiência das justificações do Estado moderno: contratualismo e procedimentalismo na inflexão da modernidade Doutorado em Direito São Paulo 2018

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP João ...£o...e Jean-Jacques Rousseau, verificando a importância destas teorias para a configuração do Estado moderno. Em

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC-SP

João Roberto Gorini Gamba

A insuficiência das justificações do Estado moderno: contratualismo e

procedimentalismo na inflexão da modernidade

Doutorado em Direito

São Paulo

2018

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João Roberto Gorini Gamba

A insuficiência das justificações do Estado moderno: contratualismo e

procedimentalismo na inflexão da modernidade

Tese apresentada à Banca Examinadora da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,

como exigência parcial para obtenção do título

de Doutor em Direito (Filosofia do Direito), sob

orientação do Prof. LD. Márcio Pugliesi.

São Paulo

2018

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BANCA EXAMINADORA

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Os cacos da vida, colados, formam uma estranha xícara.

Sem uso,

Ela nos espia do aparador.

(Carlos Drummond de Andrade)

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RESUMO

Esta tese trabalha com o conceito de justificação do Estado, diferenciando-o da legitimidade

(aspecto empírico) e da legalidade (aspecto normativo) e busca verificar o cumprimento da

função justificadora dos modelos contratualistas e procedimentalistas no âmbito da

modernidade e da modernidade tardia, respectivamente. Para tanto, vale-se de uma abordagem

histórico-evolutiva do problema da justificação. Assim sendo, verifica a insuficiência das

justificações contratualistas e procedimentalistas, mas não sem antes realizar uma reconstrução

histórica do problema, apresentando a teoria aristotélica, na antiguidade, e as teológico-

religiosas, típicas do medievo, anotando a necessidade de uma justificação racionalmente

estruturada para a ordem política e jurídica na modernidade. Neste contexto, as teorias

contratualistas serão apresentadas para cumprir com esta função e são aqui analisadas a partir

de suas diferentes formulações, de Thomas Hobbes a Immanuel Kant, passando por John Locke

e Jean-Jacques Rousseau, verificando a importância destas teorias para a configuração do

Estado moderno. Em seguida, analisa o consenso por sobreposição de John Rawls, a

legitimação pelo procedimento de Niklas Luhmann e a teoria procedimental da democracia

deliberativa de Jürgen Habermas, na medida em que contribuem para problema da justificação

do Estado e buscam dar fôlego adicional ao projeto moderno. Ao final, conclui pela

insuficiência dos modelos contratualistas e procedimentalistas na sua tarefa de justificação do

Estado moderno, o que abala a efetividade de sua ordem jurídica, especialmente com o advento

do capitalismo tardio, em que o problema da justificação se agrava com o avanço da ciência e

da técnica não só nos modelos produtivos, mas especialmente na política com a chamada

tecnocracia, de tal modo a afetar constructos fundantes da modernidade, notadamente ao reduzir

a participação do indivíduo no sistema produtivo e no processo democrático, forçando-nos a

repensar as formas tipicamente modernas do Estado e do direito em um momento de possível

inflexão da modernidade.

Palavras-Chave: Justificação. Estado Moderno. Contratualismo. Procedimentalismo.

Efetividade do Direito.

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ABSTRACT

This thesis works with the concept of justification of the State, differentiating it from the

legitimacy (empirical aspect) and legality (normative aspect) and seeks to verify the fulfillment

of the justifying function of contractarianism and proceduralism models in the context of

modernity and late modernity, respectively. To do that, it uses a historical-evolutionary

approach to the problem of justification. Therefore, it verifies the insufficiency of

contractarianism and proceduralism justifications, but not without first realizing a historical

reconstruction of the problem, presenting the Aristotelian theory in antiquity, and the

theological-religious, typical of the Middle Age, noting the need for a rationally structured

justification for the political and legal order in modernity. In this context, contractarianism

theories will be presented to fulfill this function and are analyzed here from their different

formulations, from Thomas Hobbes to Immanuel Kant, through John Locke and Jean-Jacques

Rousseau, verifying the importance of these theories for the configuration of Modern state.

Then, it analyzes the overlapping consensus by John Rawls, the legitimation by procedure by

Niklas Luhmann, and procedural theory of deliberative democracy by Jürgen Habermas, as they

contribute to the problem of State justification and seek to give additional breath to the modern

project. In the end, it concludes by the insufficiency of contractarianism and proceduralism

models in their task of justifying the Modern State, which undermines the effectiveness of its

legal system, especially with the advent of late capitalism, in which the problem of justification

is aggravated by the advance of science and technique not only in productive models, but

especially in politics with the denominated technocracy, in such a way as to affect the founding

constructs of modernity, notably by reducing the participation of the individual in the

productive system and in the democratic process, forcing us to rethink the typically modern

forms of State and law in a moment of a possible inflection of modernity.

Keywords: Justification. Modern State. Contractarianism. Proceduralism. Effectiveness of the

law.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 9

1 QUESTÕES INTRODUTÓRIAS ACERCA DO PROBLEMA DA JUSTIFICAÇÃO

DO ESTADO .................................................................................................................... 12

1.1 Introito etimológico-conceitual ................................................................................ 12

1.2 Contexto da descoberta e contexto da justificação .................................................. 14

1.3 O problema da justificação do Estado e sua relação com a legitimidade e a

legalidade..................................................................................................................18

1.3.1 O aspecto ético-filosófico da justificação do Estado ................................... 18

1.3.2 Aspectos normativo (legalidade) e empírico (legitimidade) ........................ 22

2 A POSIÇÃO HISTÓRICA DO PROBLEMA E A NECESSIDADE DE UMA NOVA

JUSTIFICAÇÃO PARA O ESTADO NA MODERNIDADE .................................... 30

2.1 A justificação aristotélica do Estado ........................................................................ 30

2.1.1 A formação da cidade ................................................................................... 30

2.1.2 A natureza política do humano .................................................................... 33

2.1.3 Autoridade pré-política e liberdade .............................................................. 38

2.1.4 O organicismo a partir da predominância da cidade sobre o indivíduo ....... 40

2.2 A justificação do Estado no medievo ....................................................................... 46

2.2.1 Notas acerca das justificações teológico-religiosas ..................................... 46

2.2.2 As doutrinas contratualistas no medievo ...................................................... 53

2.3 Contexto de ruptura e o surgimento da necessidade de uma nova justificação do

Estado na modernidade ............................................................................................ 56

3 AS TEORIAS CONTRATUALISTAS MODERNAS .................................................. 60

3.1 Thomas Hobbes e as bases do contratualismo moderno .......................................... 60

3.1.1 Aspectos metodológicos e ruptura com a física aristotélica ........................ 60

3.1.2 A estrutura do argumento contratualista hobbesiano ................................... 63

3.1.3 A inadequação do modelo absolutista hobbesiano ....................................... 72

3.2 John Locke e os fundamentos do Estado liberal ...................................................... 76

3.2.1 O conceito lockeano de propriedade ............................................................ 79

3.2.2 A limitação para a acumulação de propriedades .......................................... 84

3.2.3 Argumentos lockeanos para a acumulação ilimitada ................................... 85

3.2.3.1 A utilização da moeda .................................................................................. 85

3.2.3.2 O aumento da produtividade pela apropriação ............................................. 87

3.2.3.3 A limitação de ordem física e o trabalho assalariado como condição

natural...........................................................................................................88

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3.2.4 A essencialidade do liberalismo lockeano para sua época ........................... 91

3.2.5 A desigualdade como condição natural ........................................................ 93

3.2.6 Liberdade contratual e contratualismo ......................................................... 96

3.3 Jean-Jacques Rousseau e o contrato social ............................................................ 102

3.3.1 Estado de natureza e as relações de propriedade em seu limite ................. 104

3.3.2 O fundamento da autoridade decorrente do contrato social ....................... 114

3.4 Immanuel Kant e a síntese do contratualismo moderno ........................................ 120

3.5 O resultado do projeto: o Estado moderno ............................................................ 125

4 AS CARACTERÍSTICAS DO CONTRATUALISMO MODERNO EM

PERSPECTIVA CRÍTICA........................................................................................... 130

4.1 Construção teórica individualista ........................................................................... 130

4.2 Das consequências da submissão ou associação .................................................... 135

4.3 O apriorismo do pacto ............................................................................................ 138

4.4 Crítica à vontade geral como fundamento do poder político e da normatividade

jurídica ................................................................................................................... 144

5 AS TEORIAS CONTEMPORÂNEAS DE JUSTIFICAÇÃO DO ESTADO E DO

DIREITO ........................................................................................................................ 153

5.1 Breves notas sobre a modernidade como projeto em execução ............................. 153

5.2 A justificação neocontratualista e a reutilização do contrato como instrumento

metodológico em John Rawls ................................................................................ 161

5.3 A (auto)legitimação pelo procedimento na teoria dos sistemas de Niklas

Luhmann.................................................................................................................171

5.4 A continuidade do projeto moderno a partir da teoria procedimental da democracia

deliberativa de Jürgen Habermas ........................................................................... 178

5.4.1 Notas sobre as bases da teoria da democracia deliberativa: racionalidade

comunicativa e consenso ............................................................................ 178

5.4.2 A Legitimidade “a partir de baixo” do capitalismo liberal ........................ 182

5.4.3 A repolitização da legitimação e seu fundamento comunicativo ............... 185

6 A INSUFICIÊNCIA DOS MODELOS PROCEDIMENTALISTAS DE

JUSTIFICAÇÃO DO ESTADO E DO DIREITO ...................................................... 194

6.1 Capitalismo tardio e tecnocracia ............................................................................ 194

6.2 A iminente supressão do sujeito ............................................................................ 200

CONCLUSÃO ....................................................................................................................... 205

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 213

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INTRODUÇÃO

Se as explicações se referem ao passado e as justificações ao presente e futuro, não é

suficiente explicar a existência do Estado e de suas instituições com base em argumentos de

ordem prática que buscam evidenciar sua necessidade histórica por meio de sua função social

que, via de regra, resume-se na busca pelo – por vezes inefável – bem-comum. É necessário

que sua justificação seja, portanto, de ordem ético-moral, não necessariamente explícita. Se

assim se aceita, é forçoso que se estabeleça algo acima do Estado e de seu direito posto, bem

como das possibilidades de uso da força que vinculam o indivíduo ao efetivo cumprimento de

ordens emanadas do poder.

Presume-se, portanto, que não é possível justificar o Estado apresentando-o como

decorrente de uma necessidade histórica ou apelando exclusivamente ao aspecto coercitivo do

direito; afinal, se é sempre uma minoria numérica que efetivamente exerce o poder, a força

justificadora deste se apresenta muito mais relevante do que sua possibilidade do uso da força.

Assim, um fundamento filosófico qualquer sempre será necessário para justificar a ordem

política e jurídica vigente, sendo certo que as características e teorias utilizadas para tanto

oscilarão em detrimento dos modos pelos quais cada sociedade, em cada momento histórico,

tende a compreender a ideia de justiça política.

Destacamos, por oportuno, que o conceito de justificação aqui apresentado se distingue

daquele de legitimidade, tal como usualmente trabalhada em termos weberianos. Para fins de

nosso estudo, compreendemos a legitimidade como a aceitação fática e, portanto, um aspecto

empírico do fenômeno aqui estudado, na medida em que reflete a crença em tradições, pessoas

ou regulamentos, vinculando ao cumprimento efetivo das regras emanadas por um determinado

poder. Também iremos traçar breves apontamentos no sentido de diferenciar a justificação do

Estado do aspecto normativo da dominação, encarnado na modernidade pelo positivismo

jurídico, inobstante as tentativas contemporâneas de redução do fenômeno da justificação ao da

legalidade.

Vale ressaltar, ainda sobre nomenclaturas, que a questão da justificação que aqui

buscamos trabalhar é referida em obras de filosofia e teoria do Estado como estando englobada

na ideia de legitimidade, apresentando-se por vezes como legitimidade política ou aspecto

político-filosófico da legitimidade. De toda sorte, a apresentação de uma nomenclatura distinta

da tradicionalmente utilizada não deve de qualquer modo afetar a tese central do presente

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trabalho, conquanto o leitor atente-se que a ideia de justificação do Estado e da ordem jurídica

aqui referida situa-se para além dos aspectos fático e normativo do fenômeno do poder.

Posto isto, a problemática que se segue deste conceito é: as diferentes justificações das

ordens política e jurídica do Estado moderno obtiveram êxito em sua função justificadora?

Dentro desta questão, abordaremos as teorias contratualistas modernas e as teorias

procedimentalistas contemporâneas, anotando as principais críticas a tais modelos, de tal modo

a apontá-los como insuficientes para a tarefa a que se propuseram.

No que concerne aos aspectos metodológicos, consideramos nossa tese alinhada a uma

abordagem histórico-evolutiva do problema, isto é, verificamos a insuficiência dos modelos

teóricos de justificação do Estado na modernidade e na modernidade tardia, mas não sem antes

realizar uma reconstrução histórica do problema, apresentando as principais teorias antigas e

medievais voltadas a esta questão. Diante desta abordagem, transparecerá nossa leitura possível

da história, demonstrando, ainda, a ideia de que os institutos sociais, bem como as ideias que

os suportam, são fruto de um longo processo histórico de formação, sendo a análise deste

processo fundamental para a compreensão atual de tais institutos ou ao menos fator de

substantiva importância em sua compreensão.

Para tanto, analisaremos a visão aristotélica da questão, pela qual o homem é

apresentado como animal político e, portanto, naturalmente gregário, sendo a sociedade política

vista como necessidade natural decorrente de formações menores, já dotadas de autoridade e

subordinação, estabelecendo assim uma desigualdade natural dos homens. Ainda na

compreensão de formas pré-modernas de justificação, debruçamo-nos também sobre as

justificações teológico-religiosas, de notável importância no medievo, para então

compreendermos a desconstrução da representação aristotélico-medieval do mundo e a

decomposição do Antigo Regime, contexto em que se engendra a transição da sociedade feudal-

medieval para a sociedade moderna e que faz emergir a necessidade de uma justificação

racionalmente estruturada para a ordem política e jurídica nascente do chamado Estado

moderno.

Apresentaremos então as teorias contratualistas modernas, atentando-se para as

particularidades de cada formulação teórica, de Hobbes a Kant, anotando a importância destas

teorias, que buscaram responder à questão elementar da aurora da modernidade: como

estruturar um corpo social harmônio em que convivem interesses conflitantes de indivíduos

racionais e autointeressados?

Na sequência, veremos as visões procedimentalistas típicas do século XX e que

adentram ao século XXI buscando dar o devido suporte às instituições democráticas e ao direito,

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numa tentativa de dar fôlego adicional ao projeto moderno. Ambas teorias – contratualistas e

procedimentalistas –, em nossa leitura, não preencheram satisfatoriamente o vazio teórico

deixado pela queda das justificações tradicionais, demonstrando-se insuficientes para

justificação da ordem jurídica e política instaurada após a queda do Antigo Regime. Dentre

outros fatores que serão abordados, o contratualismo moderno ignorou as relações fáticas ao

imputar ao indivíduo concreto o ônus de um contrato aprioristicamente celebrado por

indivíduos abstratos, justificando a ordem política e jurídica a partir de uma autolegislação

meramente formal, noção que permeará todas as demais formas de justificação posteriormente

verificadas, incluindo aquelas contemporâneas de viés procedimentalistas.

Por fim, veremos como o advento do chamado capitalismo tardio e a chamada terceira

revolução tecnológica colocaram a questão da justificação sob novas perspectivas, ainda sob

investigação. Neste sentido, o fim do capitalismo industrial e o consequente avanço da técnica

e, politicamente, da tecnocracia afetaram constructos basilares do projeto moderno,

notadamente tolhendo a participação do indivíduo não só no processo produtivo, mas também

naquele democrático, forçando-nos a repensar a questão da justificação do Estado e do direito,

bem como a questionar se a supressão de conceitos fundantes da modernidade não a coloca nos

trilhos de uma iminente ruptura.

Nosso escopo, portanto, limita-se em demonstrar a insuficiência dos modelos de

justificação do Estado moderno e os fatores que em nossa leitura inflexionam o projeto

moderno, sem, contudo, pretender apresentar conjecturas sobre os modelos que estão sendo

germinados para justificar a ordem política e jurídica decorrente da chamada quarta revolução

tecnológica, cuja falta de distanciamento inviabiliza uma avaliação adequada.

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1 QUESTÕES INTRODUTÓRIAS ACERCA DO PROBLEMA DA

JUSTIFICAÇÃO DO ESTADO

1.1 Introito etimológico-conceitual

Antes de delinearmos o problema da justificação ético-filosófica do Estado, cumpre-nos

apresentar os motivos que nos levaram a escolher a expressão justificação, em detrimento de

tantas outras que possuem conotação similar ou que são usualmente empregadas em filosofia

política e jurídica para fazer referência ao problema dos fundamentos éticos e filosóficos que

justificaram e justificam a existência e manutenção do Estado e de sua ordem jurídica, bem

como a outros aspectos afetos ao fenômeno do poder político.

Para cumprir com este objetivo, cabe estabelecer algumas ressalvas típicas do campo

epistemológico, buscando compreender melhor expressões que se assemelham àquela aqui

empregada, mas que com ela não se confundem. A explicação, por exemplo, consiste em

palavra de maior utilização em nosso cotidiano e que, em diversos contextos, possui conotação

semelhante ao termo justificação, notadamente quando aquela pretende apresentar os motivos

e os fundamentos da ocorrência ou da existência de algo, muito embora não carregue consigo

a carga semântica do termo justiça, ou do “provar-se justo”, tal como contém a expressão

justificação. Daí dizermos, por vezes, que algo é explicável (vez que é possível (re)estabelecer

a relação causal de sua ocorrência), mas não é justificável (não se sustenta do ponto de vista de

uma avalição axiológica qualquer).

Conforme Popper, “oferecer uma explicação causal de certo acontecimento significa

deduzir um enunciado que o descreva, utilizando, como premissas da dedução, uma ou mais

leis universais, combinadas com certos enunciados singulares, as condições iniciais.” 1 Essas

consistem na descrição daquilo que é imputado como causa do evento em questão, sendo o

princípio da causalidade a afirmação de que todo evento pode ser causalmente explicado, o que

referido autor irá rejeitar. Sem entrarmos com maior afinco nesta discussão, destacamos que a

noção de explicação traz a possibilidade – ou ao menos a pretensão – de descrição da realidade

objetiva a partir da ideia de causalidade típica das ciências da natureza e que, via de regra, são

apontadas como inaplicáveis às ciências humanas (e, por vezes, às próprias ciências da

natureza).

1 POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica. Trad. Leonidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mora. São

Paulo: Cultrix, 2006, p. 62.

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Posto isto, cumpre esclarecer que não nos propomos aqui estabelecer meras

significações de proposições mediante processos supostamente assépticos de verificabilidade,

de tal sorte que não buscaremos neste trabalho apresentar qualquer explicação ou qualquer

espécie de relação causal necessária que descreva as condições iniciais, a causa ou a predição

dos eventos sociais, econômicos e políticos que, num intricado jogo social permeado por

inúmeros outros fatores que nos fogem, resultaram no constructo moderno do Estado.

A partir destes breves apontamentos, cumpre apontar ainda quanto aos termos em

análise, que em nossa visão a expressão explicação refere-se ao passado, enquanto a

justificação aponta para o presente e também para o futuro, ponto que voltaremos a analisar à

frente.

Retornando às acepções possíveis da expressão justificação, para assim podermos

compreender melhor seu emprego, identificamos que ela não possui uma ampla utilização na

língua portuguesa. A expressão, contudo, aparece em alguns manuais de Teoria Geral do

Estado2, referindo-se aos fundamentos éticos que justificam o Estado como tal, tratando-se de

abordagem semelhante, porém não integralmente equivalente, à que iremos realizar neste

trabalho.

Adicionalmente, o uso de tal expressão é bastante difundido no estudo da teologia. Neste

tocante, no que se refere à teologia cristã, que possui notável influência em nossa cultura e, por

conseguinte, na construção de nossa língua, o termo justificação refere-se à “transformação

global, ordenada por Deus, que transporta a pessoa do estado de pecado-inimizade com ele para

o de santidade e de filiação adotiva divina, apta à destinação sobrenatural”. 3

Ressalte-se que o conceito teológico de justificação foi um dos pontos centrais da

contradição histórica verificada no período da Reforma, na medida em que no conceito luterano

de justificação os pecados não são cancelados, mas apenas cobertos ou não imputados, enquanto

que para os católicos haveria o verdadeiro cancelamento. Assim, na visão luterana não há uma

renovação interior do homem que dependa de sua resposta pessoal e, portanto, não há méritos

no mero ato externo de Deus. Já na visão católica, ocorre uma renovação a partir da liberação

do pecado e o renascimento para uma nova existência, já que o homem é sobrenaturalmente

santificado e renovado. 4

2 Por exemplo, em: JELLINEK, Georg. Teoría general del Estado. Trad. Fernando de los Ríos. México: FCE,

2000; HELLER, Hermann. Teoría del Estado. Trad.: Luis Tobio. México, Fondo de Cultura Económica, 2000; e

ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. Trad.: Karin Praefke-Aires Coutinho e J.J. Gomes Canotilho.

Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. 3 LEXICON. Dicionário Teológico Enciclopédico. São Paulo: Loyola, 2003, p. 424. 4 FRIES, Heinrich. Dicionário de Teologia: conceitos fundamentais da teologia atual. Vol. III. 2ª Ed. São Paulo:

Loyola, 1987, p. 105.

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Esta brevíssima análise do conceito teológico de justificação nos fornece algumas

informações importantes para aprimorar nossa compreensão acerca desta palavra. Afinal, no

contexto em comento, justificação significa a transformação da pessoa, a partir de um ato

salvífico de Deus por Jesus Cristo, que elimina o pecado, transportando o homem para uma

nova e justa relação consigo mesmo. Livrando-o do pecado, justificando-o (neste caso, sem

qualquer relação com a explicação causal vista acima). Neste contexto, a expressão carrega

consigo um conteúdo intrínseco de justiça, de tornar-se justo, de modo que se identifica com o

conceito empregado nas questões éticas relativas à justificação do Estado. Afinal, a justificação

do Estado, apontando-o como justo, apresenta-o como revestido de justiça, de tal modo a livrar

os responsáveis por sua instauração dos pecados cometidos antes ou durante o momento

revolucionário (ou a este equivalente) de sua criação, ato este que será apresentado como

necessário para o resguardo de direitos ou interesses daqueles que o aprovarão tácita ou

expressamente, conforme os fundamentos de sua justificação.

1.2 Contexto da descoberta e contexto da justificação

Adicionalmente às informações apresentadas acima, que possuem a intenção de

aproximar o leitor ao conceito de justificação, ressaltamos que sua utilização é também

recorrente em discussões epistemológicas acerca dos chamados contextos de descoberta e

justificação, embora com conotação distinta, conforme mencionaremos.

A distinção entre tais conceitos foi formulada, nestes termos, por Hans Reichenbach

(1891-1953), notadamente em sua obra Experience and Prediction: An Analysis of the

Foundations and the Structure of Knowledge,5 em que Reichenbach procura compreender a

questão da reconstrução racional do conhecimento, aproximando-nos da forma como o

processo de (re)construção do pensamento é transmitido ao público, bem como da forma como

ele foi de fato subjetivamente construído. Para tanto, nos apresenta, respectivamente, os

conceitos contexto da justificação (context of justification) e de contexto da descoberta (context

of discovery).

Inicialmente, Reinchenbach aponta o conhecimento como um fato sociológico dado,

cujas bases disponíveis para filósofos, sociólogos ou psicólogos não difere. Assim,

reconhecendo o conhecimento como algo concreto na sociedade, incorporado a livros, falas,

ações humanas etc, concluirá que a análise do conhecimento significa a análise de um fenômeno

5 REICHENBACH, Hans. Experience and Prediction: An Analysis of the Foundations and the Structure of

Knowledge. Chicago: The University of Chicago Press, 1961.

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social. Diante disso, aponta três tarefas da epistemologia: descritiva, crítica e orientadora.

Focaremos apenas na primeira, que nos interessa. Nela, nos apresenta a existência de relações

internas que pertencem ao conteúdo do conhecimento; e externas, as quais combinam questões

do conhecimento com outros tipos de questões que não se referem ao conteúdo do

conhecimento. Diante disso, afirma que a tarefa da epistemologia consiste na análise das

relações internas, enquanto a sociologia tende a se ocupar parcialmente com relações internas,

misturando-as com relações externas.6 Inobstante esta demarcação, a epistemologia não nos dá

a descrição completa dos processos de pensamento. Há, em Reichenbach, uma grande diferença

entre o sistema de conexões lógicas do pensamento e a maneira pela qual tal pensamento é de

fato formado, na medida em que os processos psicológicos do pensamento são vagos e

flutuantes. A real forma de ocorrência dos processos de pensamento consiste em campo de

estudo da psicologia, enquanto à epistemologia ficaria a tarefa de (re)construir os processos de

pensamento da maneira como eles deveriam ocorrer se eles estivessem alinhados num sistema

consistente, construindo, assim, um jogo justificável de operações.7 O termo mais adequado

para sintetizar esta questão é certamente o de reconstrução racional. Neste sentido, são

emblemáticas as palavras do autor em comento:

Apesar de ser realizada em uma construção fictícia, devemos reter a noção de

tarefa descritiva da epistemologia. A construção a ser dada não é arbitrária;

está ligado ao pensamento real pelo postulado da correspondência. É até, em

certo sentido, uma maneira melhor de pensar do que o pensamento real. Ao

sermos colocados diante da reconstrução racional, temos o sentimento de que

só agora entendemos o que pensamos; e admitimos que a reconstrução

racional expressa o que queremos dizer, propriamente falando. 8

A partir desta perspectiva, o autor irá nos apresentar os conceitos evidenciados neste

capítulo, quais sejam, o de contexto da descoberta e contexto da justificação, para demonstrar

a diferença entre os processos que de fato resultaram na produção intelectual daqueles que

posteriormente reconstroem o pensamento a partir dos ditames da razão científica:

6 REICHENBACH, Hans. Experience and Prediction: An Analysis of the Foundations and the Structure of

Knowledge. Chicago: The University of Chicago Press, 1961, p. 5. 7 REICHENBACH, Hans. Experience and Prediction: An Analysis of the Foundations and the Structure of

Knowledge. Chicago: The University of Chicago Press, 1961, p. 5. 8 “In spite of its being performed on a fictive construction, we must retain the notion of the descriptive task of

epistemology. The construction to be given is not arbitrary; it is bound to actual thinking by the postulate of

correspondence. It is even, in a certain sense, a better way of thinking than actual thinking. In being set before the

rational reconstruction, we have the feeling that only now do we understand what we think; and we admit that the

rational reconstruction express what we mean, properly speaking.” (REICHENBACH, Hans. Experience and

Prediction: An Analysis of the Foundations and the Structure of Knowledge. Chicago: The University of Chicago

Press, 1961, p. 6. Tradução livre).

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O modo, por exemplo, no qual um matemático publica uma nova

demonstração, ou um físico seu raciocínio lógico na fundação de uma nova

teoria, quase corresponderia ao nosso conceito de reconstrução racional; e a

conhecida diferença entre a maneira do pensador de encontrar esse teorema e

sua maneira de apresentá-lo diante de um público pode ilustrar a diferença em

questão. Irei introduzir os termos contexto de descoberta e contexto de

justificação para marcar esta distinção. Então, temos que dizer que a

epistemologia está apenas ocupada com a construção do contexto da

justificação. 9

Curioso notar, nesta abordagem, é que a reconstrução racional, elaborada a partir da

concatenação racional dos elementos da pesquisa pode surgir, não raro, de um contexto de

descoberta permeado por irracionalidade ou, pelo menos, de movimentos não necessariamente

racionais de organização de ideias, fatos e dados. Desta forma, há uma devida e esquecida

importância do contexto da descoberta e dos aspectos criativos no âmbito de uma produção

científica.

Em suma, a análise que aqui se faz envolve a distinção entre a gênese fática do

conhecimento e sua respectiva validação. Neste sentido, no contexto da descoberta, os

caminhos para se adquirir conhecimento são os mais variados e por vezes irracionais. Já no

contexto da justificação procura-se partir de bases firmes se deduzir consequências de maneira

rigorosa; trata-se da forma pela qual os cientistas apresentam seus trabalhos ao público de

acordo com os cânones da metodologia científica, ainda que seus resultados tenham sido

decorrentes de apostas especulativas.

Referida distinção é absolutamente relevante nas ciências naturais, sobretudo pelo

caráter absoluto e impessoal que frequentemente é dado às teorias científicas, ignorando assim

as circunstâncias fáticas que levaram à construção do conhecimento, cuja apresentação formal

se dá apenas por meio de uma reconstrução racional. Nas ciências humanas, percebemos que o

contexto da descoberta costuma receber maiores atenções, vez que não pode ser ignorado.

Assim, a notável influência da morte de Sócrates para a construção da República platônica e o

belicoso ambiente em que vivia Hobbes antes da formulação de seu Leviatã nunca foram

9 “The way, for instance, in which a mathematician publishes a new demonstration, or a physicist his logical

reasoning in the foundation of a new theory, would almost correspond to our concept of rational reconstruction;

and the well-known difference between the thinker's way of finding this theorem and his way of presenting it

before a public may illustrate the difference in question. I shall introduce the terms context of discovery and context

of justification to mark this distinction. Then we have to say that epistemology is only occupied in constructing

the context of justification.” (REICHENBACH, Hans. Experience and Prediction: An Analysis of the

Foundations and the Structure of Knowledge. Chicago: The University of Chicago Press, 1961, p. 6-7. Tradução

livre).

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17

ignorados pelos cientistas sociais e filósofos estudiosos dos referidos assuntos. Embora sejam

fatos externos à mente que pensou, é notável que interferiram o processo racional de formulação

das teorias, ou seja, tem-se a ideia de que não seriam pensadas da mesma forma se as situações

fossem outras. Rejeita-se, assim, a pretensão de conhecimento verdadeiro no âmbito das

ciências culturais (sem entramos na discussão se o mesmo não se aplica às naturais), não

havendo nelas uma predominância de análise apenas do contexto da justificação. Se assim é, “a

história das ideias só pode alcançar seu objetivo, que é dar conta do processo inteiro da histórica

intelectual de uma forma sistemática, se for suplementada por uma análise estrutural histórica

dos vários centros de sistematização que se sucederam de forma dinâmica”. 10

Para aquilo que nos afeta, identificamos que na justificação do Estado que aqui nos

propomos a esmiuçar, não há uma mesma necessidade científica de se verificar a reconstrução

racional dos eventos fáticos responsáveis direta ou indiretamente pelo surgimento do Estado,

tal como se este fosse resultado de relações causais concatenadas, o que seria, em verdade,

explicá-lo, conforme distinção já feita acima. Neste sentido, destacamos que as nuances do

processo histórico de formação fática do Estado moderno pressupõem um necessário recorte e

a aplicação de métodos e visões para a formulação de uma justificação. Este aspecto histórico,

englobado no contexto da descoberta, não será por nós ignorado, na medida em que as teorias

que justificaram racional e filosoficamente a fundação do Estado moderno, bem como sua

manutenção, não são de qualquer forma impessoais ou neutras do ponto de vista político e

histórico, e nem poderiam, de modo que a noção de contexto da descoberta será aqui

devidamente evidenciada a partir dos acontecimentos históricos que circundavam os

pensadores responsáveis pela construção da teoria contratualista e das demais que serão

apresentadas (ainda que não nos seja possível trabalhar os aspectos psicológicos das

formulações das teorias). Assim, daremos a devida importância ao contexto que envolveu os

responsáveis por formular as ideias que posteriormente (ou simultânea e dialeticamente) foram

absorvidas pelas estruturas formais do Estado moderno.

Posto isto, buscaremos apresentar as justificações do Estado moderno, sem ignorar que

se trata de uma reconstrução racional da forma pela qual a filosofia e a teoria da ciência dos

setecentos tratava de considerar a forma como o conhecimento válido deveria ser apresentado,

até mesmo no campo das humanidades. Buscando uma explicação, ou seja, uma reconstrução

racional da formação – ainda que hipotética – do Estado, intentavam justificá-lo sobre o ponto

de vista ético, vez que cumprindo os preceitos básicos da ciência moderna então nascente.

10 MANNHEIM, Karl; MERTON, Robert K.; WRITH MILLS, C. Sociologia do conhecimento. Rio de Janeiro:

Zahar Editores, 1967, p. 69.

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Tratou-se, portanto, de se reconstruir uma hipótese racional que fundamentasse o Estado em

bases que tratariam de torná-lo justo à luz de quem as analisassem; sendo certo que o mesmo

ocorrerá, de forma diversa, com as teorias procedimentalistas que sucederam aquelas

contratualistas.

1.3 O problema da justificação do Estado e sua relação com a legitimidade e a

legalidade

1.3.1 O aspecto ético-filosófico da justificação do Estado

Se as explicações se referem ao passado e as justificações ao presente e futuro, a mera

explicação da existência do Estado enquanto tal ou argumentos que apontem para a necessidade

fática de um poder com monopólio da força não é suficiente, sendo necessário buscarmos um

fundamento justo para a ordem política e jurídica.

Para uma perspectiva mais simplista daquilo que buscamos demonstrar, Heller aponta

para a facticidade das ordens jurídica e política como suficientes para sua justificação perante

a maioria da população:

Certamente, no seio do povo do Estado há sempre uma pequena minoria para

a qual o ser e o modo de ser do Estado constantemente levam a uma decisão

de dever ser, uma minoria que participa, pois, com atividade consciente na

conservação e formação do Estado. Mas a grande massa, na medida em que é

impelida a agir de acordo com o estatal por algo mais que a dominação e as

necessidades elementares, concebe a realidade normal ou eficaz como um

dever ser; para essa massa, a normatividade ou, mais exatamente, a

habitualidade apenas consciente do fático, significa uma base de justificação

suficiente do Estado. 11

Diante disso, irá apontar que para tal minoria influente, a questão da justificação do

Estado se converte na questão da existência do Estado, ou melhor, na manutenção do atual

estado de coisas, cuja conservação é centralizada na figura do Estado. Já para a grande massa,

a questão que aqui buscamos trabalhar acaba por se reduzir ao aspecto prático, isto é, à mera

11 “Ciertamente que em el seno del Pueblo del Estado hay siempre uma reducida minoría para la que el ser y modo

de ser del estado desembocan constantemente en uma decisión de deber ser, minoría que participa, pues, com

actividad consciente, em la conservación y formación del Estado. Pero la gran masa, em cuanto es impulsada a um

obrar concorde com lo estatal por algo más que la dominación y las necesidades elementales, concibe la realidade

normal o eficaz como un deber ser; para esa masa la normatividade o, más exactamente, la habitualidad apenas

consciente de lo fáctico, significa uma base de justificación suficiente del Estado.” (HELLER, Hermann. Teoría

del Estado. Trad.: Luis Tobio. México, Fondo de Cultura Económica, 2000, p. 277. Tradução livre).

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19

coercibilidade ligada à legalidade. Assim, ambos possuem interesse na obediência, mas por

motivos imediatos de ordem distinta. Verificaremos, adiante, que para além de tais vinculações

imediatas pode haver um motivo precípuo pelo qual se obedece ao Estado, sendo certo que a

perda da fé nos princípios que justificam o Estado pode ocasionar sua instabilidade e, no limite,

seu fim. Com isso, assume-se que não basta apenas sua atuação como poder técnico-jurídico; é

necessário, além disso, obrigar moralmente para manter-se como uma “necessidade

psicológica”. 12

Com estes mesmos argumentos é que se refutam as teorias que consideram ser o Estado

justificado pela força (ou necessidade física). Tais teorias concebem o Estado como sendo

resultado do domínio de grupos fortes sobre fracos, explicando uma tendência natural. Neste

mesmo sentido, Jellinek nos brinda com uma importante afirmação, ao dizer que “os partidários

dessas teorias desconhecem que este poder de dominação é predominantemente de natureza

psicológica e não física, o que explica perfeitamente que seja uma minoria em vez de uma

maioria que frequentemente mande.”13 E conclui o referido publicista que:

A partir dessas doutrinas, deduziram-se consequências anarquistas, a partir

das quais se encontra a proposição de que o Estado se baseia no poder e na

força, e que, portanto, é alheio a ele uma forma moral superior. E assim como

por meio dessa teoria aparece justificada, por um lado, uma negação, por outro

lado também aparece justificada a tendência de produzir revoluções que

transformam fundamentalmente tudo o que existe. 14

Argumenta, assim, que a teoria da força não justifica o Estado, mas ao contrário aponta

para sua destruição, na medida em que aparece como uma incitação à luta permanente.

Diante de tais apontamentos iniciais, destacamos que para apontar a justificação do

Estado não basta remontar à sua gênese histórica. Afinal, trata-se de um conceito ético e, por

vezes, teológico. Desta forma, bem pontua Zippelius15 que o tema da justificação do Estado não

pode ser tratado como ciência avalorativa, na medida em que as doutrinas éticas da justificação

12 HELLER, Hermann. Teoría del Estado. Trad.: Luis Tobio. México, Fondo de Cultura Económica, 2000, p.

277. 13 “Los partidarios de esta doctrina desconocen que este poder de dominación es predominantemente de naturaliza

psicológica y no física, lo cual explica perfectamente que sea una minoría em vez de uma mayoría la que

frequentemente mande.” (JELLINEK, Georg. Teoría general del Estado. Trad. Fernando de los Ríos. México:

FCE, 2000, p. 205-6. Tradução livre). 14 “De estas doctrinas se han deducido consecuencias anarquistas, al frente de las cuales se encuentra la proposición

de que el Estado descansa en el poder y la fuerza, y que es, por consiguiente, ajeno a él una forma superior moral.

Y así como mediante esta teoría aparece justificada de una parte una negación, también aparece justificada, de

otra, la tendencia a producir revoluciones que transformen fundamentamente todo lo existente.” (JELLINEK,

Georg. Teoría general del Estado. Trad. Fernando de los Ríos. México: FCE, 2000, p. 206. Tradução livre). 15 ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. Trad.: Karin Praefke-Aires Coutinho e J.J. Gomes Canotilho.

Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 149.

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acabam por demonstrar que determinados fins somente podem ser atingidos por meio da

existência do Estado. A natureza desta referida obrigação de viés ético-moral, contudo, possui

direta relação com os motivos fáticos da existência do Estado como instituição e das teorias

políticas e sociais suscetíveis de aceitação de determinado momento e local.

Assim sendo, embora aqui trataremos de trabalhar as questões principiológicas acerca

do existência e manutenção desta forma específica de instituição política detentora do poder,

que é o Estado moderno, não poderemos olvidar do contexto político e social no qual ele nasce,

sob pena de considerá-lo fato universal e natural16, como foi visto durante largo período

histórico, notadamente lastreado nos ensinamentos aristotélicos, que veremos à frente. Nesta

linha, cumpre destacar a importante lição de Jellinek:

Se é possível uma justificação científica do Estado, seria um erro concluir a

partir daí que existe uma certa forma de Estado ou uma divisão de seus poderes

que podem ser derivados de princípios gerais como a única justa. Precisamente

porque em todos os períodos os partidos políticos e sociais e seus partidários

teóricos foram inclinados a cair nessas doutrinas, razão pela qual toda ciência

séria deve remover essas tendências de si mesma. Um tipo ideal de Estado

com valor universal só pode ser encontrado com base em princípios com

fundamento metafísico, sobre os quais precisamente nunca existe

conformidade. Todo Estado particular em sua forma concreta é o trabalho das

forças históricas cujos efeitos podem ser compreendidos, mas que não podem

ser representados na sua totalidade porque não são absolutamente racionais.

A política prática e os desejos dos partidos conservam o direito de mudar o

que foi dado, e a pesquisa científica da política pode e deve abrir o caminho

para que sejam feitas melhorias; mas uma ciência que desse valor especial às

demandas dos partidos e racionalizasse qualquer tipo empírico de estudo da

cadeia íntima das teorias políticas em sua evolução histórica, compreenderia

que qualquer apoteose de uma situação concreta do Estado imediatamente

provoca críticas apaixonadas e a racionalização de outra oposta. 17

16 “La consecuencia verdadera de una doctrina como ésta sería rechazar para el futuro toda exigencia práctica

respecto a la voluntad, porque si la historia es independiente de toda decisión individual y está governada por una

necesidad que queda más allá del bien y del mal, entonces esta necesidad se afirma por sí misma y no necessita

reconocimiento por parte del individuo” (JELLINEK, Georg. Teoría general del Estado. Trad. Fernando de los

Ríos. México: FCE, 2000, p. 232). Em tradução livre: “A consequência verdadeira de uma doutrina como esta

seria rejeitar para o futuro toda exigência prática a respeito da vontade, porque se a história é independente de

qualquer decisão individual e está governada por uma necessidade que está além do bem e do mal, então essa

necessidade se afirma por si mesma e não requer reconhecimento por parte do indivíduo.” 17 “Si es posible una justificación científica del Estado, sería un error concluir de aquí que existe una determinada

forma del Estado o una divisíon de sus poderes que pueda ser derivada de principios generales como la única justa.

Precisamente porque en todas las épocas los partidos políticos y sociales y sus partidarios teóricos se han inclinado

a caer em estas doctrinas, es por lo que toda ciencia seria debe apartar de sí tales tendencias. Un tipo ideal de

Estado con valor universal sólo puede encontrarse partiendo de principios con fundamento metafísico, acerca de

los cuales precisamente jamás existe conformidade. Todo Estado particular en su forma concreta es la obra de

fuerzas históricas cuyos efectos se pueden compreender, pero que no non susceptibles de ser representadas en su

totalidad por no ser absolutamente racionales. La política práctica y los deseos de los partidos conservan su derecho

a cambiar lo dado, y la investigación científica de la política puede y debe abrir caminho para que se realicen

mejoras; pero uma ciencia que concediera un valor especial a la exigencia de los partidos y racionalizase cualquier

tipo empírico de estudiar el encadenamiento íntimo de las teorias políticas en su evolución histórica, comprenden

que toda apoteosis de uma situación concreta del Estado provoca inmediatamente la crítica apasionada y la

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Nesta linha, apontamos a noção habermasiana de que “a realidade com a qual

confrontamos nossas proposições não é uma realidade ‘nu’, mas já, ela própria, impregnada

pela linguagem. A experiência pela qual controlamos nossas suposições é linguisticamente

estruturada e se encontra engastada os contextos da ação.” 18 Posto isto, consideramos essencial

nesta parte introdutória do trabalho destacar que verificamos a justificação como uma prática

discursiva e, portanto, devemos analisá-la como fenômeno comunicacional e, conforme

veremos ao longo do trabalho, também metacomunicacional, constituindo fonte de sustentação

do poder simbólico do qual se reveste o Estado. Diante disso, as visões aqui expostas e relativas

à justificação ética do Estado não possuem qualquer pretensão de expor a verdade política, ou

qualquer espécie de real fundamento justificador da existência e manutenção do Estado ou do

poder político por qualquer forma estabelecido, mas tão somente colocar em discussão as teses

que, em nossa visão histórica acerca do problema, tiveram grande poder de se justificarem

argumentativamente no contexto político em que se situavam. Afinal, se não há acesso direto

às condições da verdade, que não sejam filtradas pelo discurso, a argumentação permanece

como único meio disponível para a certificação da verdade. 19

De forma clara, Jellinek sintetiza este ponto, ao evidenciar que as formas de justificação

do Estado dependem da possibilidade de aderência à consciência de cada geração:

A resposta às questões críticas aqui indicadas não deve fornecer um

conhecimento histórico, mas princípios para as ações. As instituições

necessitam para subsistir serem justificadas racionalmente ante à consciência

de cada geração. 20

Desta forma, acabamos por desvincular as justificações do Estado de quaisquer

perspectivas universais possíveis e a apresentamos como uma prática argumentativa perante

determinado auditório que, de geração em geração, por vezes conserva suas mesmas premissas

de pensamento necessárias para a recepção de tais teorias discursivamente colocadas como

corretas ou necessárias à manutenção dos princípios tidos como essenciais em cada época.

racionalización de outra opuesta.” (JELLINEK, Georg. Teoría general del Estado. Trad. Fernando de los Ríos.

México: FCE, 2000, p. 231-232. Tradução livre). 18 HABERMAS, Jürgen. Verdade e justificação: Ensaios filosóficos. Trad. Milton Camargo Mota. São Paulo:

Loyola, 2004, p. 45. 19 HABERMAS, Jürgen. Verdade e justificação: Ensaios filosóficos. Trad. Milton Camargo Mota. São Paulo:

Loyola, 2004, p. 49. 20 “La respuesta a las cuestiones críticas señaladas aqui debe suministrarnos no un conocimiento histórico, sino

principios para las acciones. Las instituiciones necesitan para substir poder ser justificadas racionalmente ante la

conciencia de cada generación.” (JELLINEK, Georg. Teoría general del Estado. Trad. Fernando de los Ríos.

México: FCE, 2000, p. 197. Tradução livre).

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22

1.3.2 Aspectos normativo (legalidade) e empírico (legitimidade)

O estudo do poder e da forma de seu exercício nas sociedades políticas nos leva a

questionamentos de suma importância para a compreensão do atual modelo de Estado e os

motivos precípuos pelos quais devemos obediência a seus preceitos, notadamente ao direito

posto. A análise deste tema nos coloca inevitavelmente diante de abordagens sociológicas, tais

como as tradicionais análises acerca da legitimidade – em Weber –, bem como, por outro lado,

diante de noções de claro teor positivista, que tendem a reduzir o fenômeno da justificação à

ideia de legalidade e obediência às normas jurídicas, notoriamente em virtude da coercibilidade,

ou, ainda, de perspectivas procedimentalistas, baseadas na obediência ao procedimento

formado – supostamente – em bases consensuais juridicamente estruturadas.

Destaque-se, desde já, que a análise da justificação do Estado objeto de estudo deste

trabalho não se confunde com tais conceitos, mas com eles necessariamente se relaciona.

Assim, a justificação do Estado não se confunde com (i) a legitimidade (em sentido

sociológico), ou seja, à aceitação fática – mediante obediência efetiva – de um poder específico,

afeta ao aspecto empírico do problema da justificação; e (ii) a legitimação normativa, ou seja,

a aceitação do poder do Estado como decorrente de uma ordem jurídica, o que denota um dever

de obediência às estruturas jurídicas postas, nos conduzindo à ideia da simples legalidade do

poder, ou, ainda, ao aspecto normativo da justificação do Estado.

Tal distinção é especialmente necessária diante da forte influência que o positivismo

jurídico teve em nossa cultura política e jurídica, de modo a realizar uma substancial redução

da questão da justificação à obediência ao direito posto, apresentando o aspecto normativo

como suficiente para justificar o Estado. Nesta linha, Hermann Heller21 aponta que a partir do

positivismo e do historicismo passou-se a cometer o erro de identificar a resolver a questão do

valor do Estado considerando seu sentido compreensível. Na visão do publicista, a confusão de

sentido e valor consiste num dos principais erros do pensamento contemporâneo. Desta forma,

pontua que a questão da justificação do Estado não pode ser resolvida pela simples consideração

de sua função compreensível, como aqui também buscaremos sustentar.

Neste ponto, são necessários alguns apontamentos no sentido de aproximar e diferenciar

a questão da legalidade (aspecto normativo) com os aspectos ético-filosóficos que cuidam de

dar a necessária justificação ao Estado. A legalidade, por evidente, alinha-se com uma teoria

21 HELLER, Hermann. Teoría del Estado. Trad.: Luis Tobio. México, Fondo de Cultura Económica, 2000, p.

276.

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23

jurídica da justificação do Estado, na medida em que considera este como produto do Direito.

Aqui estamos diante da justificação jurídico-positiva kelseneana, que pretendeu consolidar os

anseios científicos modernos na seara jurídica. Quanto a ela, é sabido que norma fundamental

kelseneana acata todas as variações de conteúdo normativo e nos remete ao arbítrio do primeiro

constituinte histórico, restando por identificar força e direito.

Neste sentido, ressaltamos que a conformidade dos atos estatais com o direito constitui

a base de sua legalidade, porém nunca de sua legitimidade justificadora22, de modo que a

legalidade do Estado não significa sua justificação; no máximo, ela contribui para a sustentação

desta na medida em que vincula a conduta dos governados por meio da coerção e, na linha da

sociológica clássica, implementa uma forma de legitimidade racional-legal.

Diante disso, a justificação ético-filosófica que aqui buscamos trabalhar encontra-se

acima do Estado constituído nos termos de um mero sistema jurídico. Afinal, não podemos

justificar o Estado com base apenas no sentido vinculativo derivado da coercibilidade das

normas jurídicas que ele mesmo coloca e que, ainda, trataram de o criar. A legalidade, como

problema da justificação, não se sustenta pelo simples fato de que as normas jurídicas extrairiam

sua fundamentação ética do próprio ordenamento jurídico de que fazem parte, recaindo assim

num grave problema de autorreferência.

Já a questão da legitimidade (aspecto empírico), nos conduz inevitavelmente aos estudos

de Max Weber, que possui famosa exposição acerca dos principais motivos para o acatamento

de ordens. Há, evidentemente, conexões entre o aspecto fático da aceitação, trabalhado pela

sociológica, e a justificação ético-filosófica que aqui buscaremos compreender. Neste rumo, é

essencial iniciar pelo que Weber entende por “dominação”, sendo esta “a probabilidade de

encontrar obediência para ordens específicas (ou todas) dentro de determinado grupo de

pessoas”. 23 Acrescente-se a isso que:

Todas as áreas da ação social, sem exceção, mostram-se profundamente

influenciadas por complexos de dominação. Num número

extraordinariamente grande de casos, a dominação e a forma como ela é

22 HELLER, Hermann. Teoría del Estado. Trad.: Luis Tobio. México, Fondo de Cultura Económica, 2000, p.

282. 23 WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Vol. I. Trad. Regis Barbosa

e Karen Elsabe Barbosa. Brasília: UnB; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999, p. 139. E

ainda: “Por “dominação” compreendemos, então, aqui, uma situação de fato, em que uma vontade manifesta

(“mandado”) do “dominador” ou dos “dominadores” quer influenciar as ações de outras pessoas (do “dominado”

ou dos “dominadores”), e de fato as influencia de tal modo que estas ações, num grau socialmente relevante, se

realizam como se os dominados tivessem feito do próprio conteúdo do mandado a máxima de suas ações

(“obediência”).” (WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Vol. 2. Trad.

Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. Brasília: UnB; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999,

p. 191).

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24

exercida são o que faz nascer, de uma ação social amorfa, uma relação

associativa racional, e noutros casos, em que não ocorre isto, são, não

obstante, a estrutura da dominação e seu desenvolvimento que moldam a ação

social e, sobretudo, constituem o primeiro impulso, a determinar,

inequivocamente, sua orientação para um “objetivo”. 24

Referido conceito inclui hábitos racionais, bem como inconscientes, sendo evidente que

a natureza do motivo pelo qual se obedece determina em larga medida o grau de dominação

exercido. A tais fatores se junta a crença na legitimidade, sendo esta de diversas naturezas,

ensejando assim tipos de obediência, bem como quadros administrativos distintos para cada

modelo. Ingressa-se aí na tradicional divisão da legitimidade em três tipos distintos de vigência,

quais sejam, a de caráter racional (dominação legal); a de caráter tradicional (dominação

tradicional); e a de caráter carismático (dominação carismática), sobre as quais

transcorreremos breves notas, apenas para que possamos delinear o tema da legitimidade em

sentido sociológico e, com isso, delimitar nossa análise da justificação do Estado em termos

filosóficos, sem que com isso haja qualquer confusão entre os conceitos. Neste sentido, é válido

transcrever um breve resumo feito pelo próprio Weber:

No caso da dominação baseada em estatutos, obedece-se à ordem impessoal,

objetiva e legalmente estatuída e aos superiores por ela determinados, em

virtude da legalidade formal de suas disposições e dentro do âmbito de

vigência destas. No caso da dominação tradicional, obedece-se à pessoa do

senhor nomeada pela tradição e vinculada a esta (dentro do âmbito de vigência

desta), em virtude de devoção aos hábitos costumeiros. No caso da dominação

carismática, obedece-se ao líder carismaticamente qualificado como tal, em

virtude de confiança pessoal em revelação, heroísmo ou exemplaridade dentro

do âmbito da crença nesse seu carisma. 25

A primeira – legal – é tipicamente a forma moderna de dominação e baseia-se na ideia

de regras jurídicas – o direito – como forma de determinar o superior a quem se deve obediência

e atuação deste, de tal sorte que a obediência aparece como mera obediência à regra, sendo,

portanto, dotada de manifesta impessoalidade. Trata-se da chamada autoridade institucional,

exercida conforme regras, com sua manifestação mais evidente e pura no quadro administrativo

burocrático, caracterizando como aquela que possui maior calculabilidade, posto que

decorrente de uma aplicabilidade formalmente universal. É que claro que estamos a falar aqui

de todas as organizações típicas da modernidade (ou que alteraram sua forma de organização –

24 WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Vol. 2. Trad. Regis Barbosa

e Karen Elsabe Barbosa. Brasília: UnB; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999, p. 187. 25 WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Vol. I. Trad. Regis Barbosa

e Karen Elsabe Barbosa. Brasília: UnB; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999, p. 141.

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25

dominação – com o advento da racionalidade moderna), quais sejam, a Igreja, o exército, a

empresa capitalista, associações e, é claro, o Estado.

A dominação tradicional, por sua vez, consiste naquela em que “a legitimidade repousa

na crença na santidade de ordens e poderes senhoriais tradicionais (‘existentes desde

sempre’)”.26 Neste modelo não se obedece a estatutos, mas à pessoa indicada pela tradição, ou

melhor, à dignidade pessoal do senhor atribuída conforme a tradição. Ademais, é relevante

apontar que as ordens são legitimas pela crença na tradição e pela liberdade concedida por esta

ao senhor.

Por fim, a dominação carismática é aquela decorrente do carisma pessoal do líder

(profetas, sábios, curandeiros, heróis de guerra etc). Trata-se, por evidente, de dominação

personalíssima ao líder e de grande valia em momentos de miséria ou entusiasmo.

Tais formas previstas por Weber são essenciais para a discussão do tema em comento e

não podem ser olvidadas em qualquer estudo sobre a questão dos motivos pelos quais se

obedece ordens de um dado poder. Neste sentido, apresenta-se a questão da legitimidade como

diferentes maneiras pelas quais diferentes povos obedecem ordens de determinados poderes. O

tema, portanto, nos leva a compreender melhor a aceitação de determinado poder, bem como

seu grau de aceitação e estabilidade.

Assim, implicitamente se afirma que há algo além da mera possibilidade de coerção ou

violência; há, portanto, elementos internos que vinculam à efetiva obediência. Neste sentido,

destaca-se que a questão da legitimidade se funda sempre em uma crença que os dominados

têm na figura do dominador ou dos dominadores, por quaisquer dos motivos acima expostos;

entretanto, não se trata de verificar historicamente manifestações puras desses modelos, já que

raramente a crença será inequívoca neste sentido; pelo contrário, o próprio Weber27 afirma que

a dominação legal, por exemplo, nunca é puramente legal, trata-se de um hábito (o de observar

leis) e que repousa, portanto, numa dada tradição, cujo rompimento é capaz de aniquilar a

obediência devia às leis.

Aí consta, talvez, o ponto de conexão entre a teoria da legitimidade – sociológica – e o

que aqui buscaremos evidenciar como justificação filosófica do Estado e da ordem jurídica;

afinal, com a consolidação do processo de desencantamento do mundo e a solidificação da

dominação do tipo racional-legal nos Estados ocidentais, a questão da legitimidade tenderá à

26 WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Vol. I. Trad. Regis Barbosa

e Karen Elsabe Barbosa. Brasília: UnB; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999, p. 148. 27 WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Vol. I. Trad. Regis Barbosa

e Karen Elsabe Barbosa. Brasília: UnB; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999, p. 173.

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redução à legalidade (especialmente dos oitocentos à ascensão do positivismo jurídico), e,

recentemente, ao procedimentalismo, tal como aqueles de Luhmann e Habermas, que serão

objeto de nossa crítica derradeira. Neste contexto, reafirmamos, na linha defendida por Weber,

que a mera crença nos estatutos – ou seja, nas leis – repousa, mesmo ela, numa tradição, ainda

que seja o hábito consolidado de respeito à lei ou, kantianamente, ao entendimento de que a lei

é a forma de compatibilizar as liberdades. De toda sorte, ao afirmar que além do respeito à

comunicação via norma escrita – obedecida de acordo com a weberiana legitimidade racional

ou, em termos positivistas, pela coerção – há algo mais que num plano supralegal acaba por

vincular, estamos aqui diante de um fenômeno de suma importância para a compreensão

conglobante do tema da justificação do Estado e dos motivos precípuos pelos quais suas ordens

são obedecidas.

De toda sorte, destacamos que a análise dos aspectos sociológicos, muito embora

caminhem ao lado do tema por nós trabalhado, extrapola os lindes estabelecidos pela presente

pesquisa, o que não nos permite que adentremos com afinco no estudo da sociologia e na

questão da obediência. Afinal, a sociologia, por tratar-se de ciência com notável viés empírico,

apreende a ideia da legitimidade em seu momento fático, destacando não só a possibilidade de

determinar conduta de terceiros conforme vontade própria – a prática do poder –, mas

especialmente o seu efetivo cumprimento. Trata-se, portanto, de – racional ou irracionalmente

– efetivamente comportar-se como determina a ordem emanada do poder.

Neste sentido, nos parece que a ideia de legitimidade, por estar atrelada à observância

dos comandos do poder – incluindo do direito – estaria ligada ao fator social de obediência a

determinado governo específico ou, ainda, a determinada forma historicamente verificada de se

apontar o(s) responsável(is) pelo exercício do poder em determinada sociedade. Assim, a ideia

de legitimidade, longe de representar o fundamento justo da ideia de Estado latu sensu,

apresenta-se como fundamento da obediência a regras, governos ou formas de governo

específicos, com localidade e temporalidade limitados, quando comparados à ideia de

justificação que aqui buscamos apresentar.

Destaque, ainda, que a obediência fática aos comandos do poder, embora não seja centro

de nossa análise, consistirá em consequência última (posto que de verificabilidade palpável)

das formas de justificação do Estado que o sustentam. Afinal, caso haja uma dada justificação

ético-filosófica do Estado atuante e, no plano fático, não houver a efetiva obediência, estaremos

diante de um abalo (de diferentes graus possíveis) da estrutura de dominação desta sociedade,

cujo diagnóstico pode apontar uma fragilidade em diferentes pontos da complexa estrutura de

dominação.

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Feitos os delineamentos gerais sobre a questão da legalidade (aspecto normativo) e

legitimidade (aspecto empírico), cumpre-nos destacar que para além de tais aspectos, ou seja,

para além do aspecto fático-social e do fator coercitivo das normas jurídicas, a discussão acerca

da obediência levanta também questionamentos filosóficos, reconhecendo que a justificação do

Estado se encontra para além do direito posto e da possibilidade da coerção, havendo, portanto,

um enlace supralegal de toda estrutura de dominação. Se assim se assume, o poder político não

se justifica apenas no poder de fato. Com efeito, as classes dominantes sempre buscaram dar ao

seu poder uma base moral ou filosófica, fazendo-o derivar como consequência necessária e

justa de doutrinas ou crenças. Assim sendo, os motivos da obediência remontam às justificações

filosóficas do Estado, sem as quais este não se mantém.

Assim sendo, cumpre-nos apontar, desde esse início, algumas noções estruturantes que

permeiam a elaboração deste estudo, especialmente quanto à relação existente entre as

diferentes frentes de análise do problema da justificação do Estado e dos motivos precípuos e

palpáveis pelos quais se verifica o acatamento das ordens contidas nos dispositivos normativos.

Para tanto, ressaltamos a intrincada relação existente entre a justificação que fundamenta em

bases ético-filosóficas a existência de uma ordem normativa que, por sua vez, se autojustifica

a partir dos preceitos típicos do positivismo jurídico e, ao fim, o aspecto empírico, qual seja, a

legitimidade ou, em termos weberianos, os motivos pelos quais as ordens de determinado poder

são de fato acatadas. Esquematicamente, temos a seguinte visão acerca da relação escalonada

de tais aspectos:

Justificação (aspecto ético-filosófico)

Legalidade (aspecto normativo)

Legitimidade (aspecto empírico)

Há, inevitavelmente, uma necessária vinculação entre os três níveis apontados acima,

bem como uma necessária confusão de tais níveis, a depender da visão e das teóricas que são

possíveis de serem utilizadas para a análise deste tema. Via de regra, as questões éticas e

filosóficas tratam de justificar o aspecto normativo e este, por sua vez, vincula a obediência

fática, ou seja, justifica legal e racionalmente o poder, legitimando-o em bases sociológicas. No

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caso do Estado moderno, a obediência fática (aspecto empírico) será decorrente da dominação

racional-legal trabalhada por Weber, relacionando-se umbilicalmente com a legalidade em

sentido positivista e, no plano filosófico, ancorou-se no contratualismo dos setecentos e,

contemporaneamente, no procedimentalismo, teorias sobre as quais nos debruçaremos com

maior cuidado.

Complementarmente às noções aqui apresentadas sobre justificação do Estado e do

direito, cumpre destacar uma visão teórica similar:

Para além dos requisitos jurídicos para a legitimidade (formal/material) de

uma norma – validade, justiça e eficácia –, pensa-se aqui em legitimidade

política que supõe sejam as normas aceitas e cumpridas com o mínimo de

coerção do aparato de estado. Isto é, não basta a legitimidade formal

relacionada com o procedimento dos órgãos estatais em conformidade com o

estabelecido pelo sistema normativo, mas – e principalmente – aprovação

popular às normas existentes por sua conformidade com o projeto da

sociedade (cultura) e com a atuação governamental para sua

aplicação/concretização (civilização). 28

O conceito acima referido de legitimidade política assemelha-se ao que aqui

denominamos justificação e envolve uma redução da necessidade de utilização da coerção como

meio de vincular ao cumprimento das normas. É este o cenário conceitual no qual trabalharemos

a questão da justificação.

Assim sendo, tratou-se neste item apenas de balizar os conceitos essenciais para a

compreensão de nosso estudo, de modo algum buscando o exaurimento do tema da legitimidade

e da legalidade, que, por si só, poderiam ser objeto de estudo próprio e longo.

Feitos os apontamentos iniciais necessários para compreendermos o conceito central de

nossa tese, qual seja, o da justificação do Estado, verificaremos nos capítulos seguintes as

principais teorias adotadas historicamente para cumprir com tal tarefa. Conforme já exposto

acima, convém assinalar que esta empreitada não se confunde com aquela que busca, com base

em fundamentos históricos e antropológicos, apresentar conjecturas a respeito da formação das

sociedades políticas. Afinal, não se podem converter os modos de formação ou

desenvolvimento histórico, só por si, numa justificação do Estado, a não ser que se pretenda

28 VALVERDE, Antonio José Romera, BRAGA, Luiz Carlos Montans, PUGLIESI, Márcio. Filosofia política e

direito. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André

Luiz Freire (coords.). Tomo: Teoria Geral e Filosofia do Direito. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo

Gonzaga, André Luiz Freire (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,

2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/136/edicao-1/filosofia-politica-e-direito

(acesso em 11/11/2017).

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29

seguir a hipótese – não comprovada – do direito natural de que já na própria realidade encontra

expressão um sentido racional. 29

29 ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. Trad.: Karin Praefke-Aires Coutinho e J.J. Gomes Canotilho.

Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 140.

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30

2 A POSIÇÃO HISTÓRICA DO PROBLEMA E A NECESSIDADE DE UMA

NOVA JUSTIFICAÇÃO PARA O ESTADO NA MODERNIDADE

2.1 A justificação aristotélica do Estado

2.1.1 A formação da cidade

As instituições humanas, dentre elas o Estado, diferenciam-se dos fatos naturais

principalmente porque sua origem e desenvolvimento se devem a um processo de vontade. 30

Referida afirmação guarda sentido apenas na perspectiva moderna acerca das instituições

sociais; na Antiguidade, notadamente no pensamento aristotélico, ela encontraria resistência na

visão segundo a qual a sociedade política aparece como decorrência necessária da natureza

gregária do ser humano. Neste sentido, cumpre-nos expor o pensamento de Aristóteles, na

medida em que será a visão adotada por séculos no que tange aos fundamentos da justificação

da sociedade política (no caso grego, da chamada Cidade-Estado).

Conforme veremos, a linhagem filosófica encabeçada por Aristóteles irá apontar a

natureza social do ser humano e a sociedade política como ontologicamente natural. Ao ver o

instinto de sociabilidade e a necessidade da pólis, Aristóteles nos apresenta uma visão acerca

da justificação das sociedades políticas que será questionada pelos pressupostos da filosofia

moderna – de norte racional –, especialmente pelos pensadores contratualistas. Note-se, ainda

em tom introdutório, que a vida política do homem, na perspectiva que vamos apresentar neste

capítulo, não consiste em um meio para a realização de qualquer concepção de bem, mas a

própria finalidade do homem enquanto tal, uma vez que a concepção de bem, ela mesma, é

social, concluindo-se pela excelência da comunidade para a realização da essência humana.

No sentido de explicar o início da reconstrução histórica da justificação do Estado tão

somente na Grécia antiga, destacamos que a convivência em sociedade, por evidente, não se

inicia no séc. V a.C.; entretanto, o pensamento acerca desta convivência, ou seja, o pensamento

político, inicia-se notadamente com Aristóteles. Conforme ensina Francis Wolff:

Sem dúvida, antes do aparecimento da política, já existiam sociedades, e os

homens se acomodavam a elas, bem ou mal, para viverem juntos. Mas,

enquanto não pensaram aquilo que viviam como algo que pertencia a um

domínio que chamamos de político, isto é, como algo que dependia deles, eles

não poderiam, especificamente falando, fazer política (e a recíproca, a fortiori,

30 JELLINEK, Georg. Teoría general del Estado. Trad. Fernando de los Ríos. México: FCE, 2000, p. 197.

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é verdadeira): submetiam-se a um poder como a um destino, contra o qual

nada se pode fazer, uma vez que não existe enquanto tal, tão próximo está

daquilo que se é; um poder, frágil ou todo-poderoso, mas sempre vindo do

alto, no qual mal se distinguem a autoridade do chefe, a irrecusabilidade da

tradição e o temor aos deuses. 31

Assim sendo, este capítulo, cujo propósito é verificar a posição histórica acerca do

problema do fundamento da existência das sociedades políticas, deve iniciar na Grécia antiga,

local e momento em que se verifica a primeira consciência e reflexão acerca do fenômeno

político; ou seja, se coloca a origem e organização da pólis como objeto de estudo, distanciando-

a do observador. Naquilo que nos afeta, será Aristóteles, portanto, o primeiro a questionar sobre

o fundamento da associação política.

Passemos, então, a realizar uma análise da obra aristotélica de notória importância para

nossa tese, qual seja, A Política. O texto, como se sabe, muito além de tratar da relação do

indivíduo com a pólis, traz também relações entre escravo e senhor, moeda e riqueza, formas

de governo ideais, bem como sobre eudaimonía coletiva e educação. Tais temas, por evidente,

não serão objeto de nossa análise, senão naquilo que contribuírem ao cerne do que aqui se busca

entender: a visão aristotélica acerca da natureza gregária do ser humano e a relação deste com

a sociedade política vista como ontologicamente necessária.

O estagirita Aristóteles, embora jamais tenha se envolvido com a política prática,

realizou valiosos estudos a partir de análises históricas e também por meio da observação a ele

possível. Em A Política, inicia dizendo que “É para a mútua conservação que a natureza deu a

um o comando e impôs a submissão ao outro”32 Diante desta visão natural acerca da submissão,

irá pontar a família como a principal sociedade natural, sendo formada pela “dupla reunião do

homem e da mulher, do senhor e do escravo”.33 Sobre a questão específica da autoridade natural

e as consequências disso votaremos a tratar à frente.

Dando continuidade ao seu pensamento, aponta que a sociedade que se forma “em

seguida” à família, com várias casas, chama-se Aldeia, na qual haveria famílias dispersas

vivendo conjuntamente, porém sob o governo do mais velho. 34 Como se sabe, a sociedade que

se formou da reunião das várias aldeias é a Cidade: “A sociedade que e formou da reunião de

várias aldeias constitui a Cidade, que tem a faculdade de se bastar a si mesma, sendo organizada

não apenas para conservar a existência, mas também para buscar o bem-estar. Esta sociedade,

31 WOLFF, Francis. Aristóteles e a política. Trad. Thereza Christina Ferreira Stummer, Lygia Araujo Watanabe.

2ª Ed. São Paulo: Discurso Editorial, 2001, p. 8. 32 ARISTÓTELES. A Política. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 2. 33 ARISTÓTELES. A Política. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 2. 34 ARISTÓTELES. A Política. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 3.

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32

portanto, também está nos desígnios da natureza, como todas as outras que são seus elementos”.

35

Encontra-se aí o esquema básico traçado por sua obra: a partir da natureza é que

decorrem posições de comando e submissão necessárias à conservação, já que as pessoas não

podem viver umas sem as outras (natureza gregária do ser humano). A principal sociedade

natural, a família, forma-se pela união do homem e da mulher, do senhor e do escravo (num

esquema claro de submissão natural voltada à conservação) e, a partir da reunião de famílias

surge a Aldeia. A próxima etapa é a Cidade que, como dito, basta a si mesma – como meta

padrão de tudo o que está na natureza.

Ademais, referido postulado nos faz chegar às mesmas conclusões de Francis Wolff,

quando este diz que:

...a cidade não é apenas posta como “soberana entre todas”; é também aquela

que “inclui todas as outras”. Esta relação de extensão significa que a cidade é

a maior das comunidades, o que implica duas coisas; de um lado, que toda

comunidade diferente é um “subconjunto” da cidade; de outro lado, que aquilo

que é maior do que a cidade (por exemplo, a “nação” helena, ou as

confederações de cidades estabelecidas por tratados etc.) não é

verdadeiramente uma comunidade. 36

Aqui Wolff apreende ponto significativamente importante para nossa tese, qual seja,

aquele entendimento aristotélico de que a comunidade incluí todas as outras e, portanto, a forma

mais perfeita de convívio social, estando ainda nos desígnios da natureza humana. Difere-se,

portanto, de todas as outras “maiores”, tal como aquelas confederações estabelecidas entre as

Cidade-Estado helênicas com propósitos outros que não o viver bem, tal como a união para

vencer inimigos de guerra e quaisquer outros motivos – não naturais – que implicam afirmar

que tais confederações são formadas a partir de convenções que visam interesses. Sendo este o

motivo da união, não poderão tais confederações serem chamadas, em termos aristotélicos, de

comunidades, vez que carecem do organicismo típico das perspectivas aristotélicas e da

característica essencial à compreensão de sua teoria acerca da comunidade: o desenvolvimento

natural (e não mediante convenções).

Em uma síntese parcial, podemos dizer que a pólis se funda na não-autonomia do ser

humano, cuja natureza é associativa, e a partir de uma formação gradual (família – aldeia –

35 ARISTÓTELES. A Política. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 3-4. 36 WOLFF, Francis. Aristóteles e a política. Trad. Thereza Christina Ferreira Stummer, Lygia Araujo Watanabe.

2ª Ed. São Paulo: Discurso Editorial, 2001, p. 45.

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33

cidade), sendo que a Cidade basta a si mesma e, portanto, possui os elementos necessários para

o perfazimento da essência humana (o bem viver).

2.1.2 A natureza política do humano

Cumpre lembrar, oportunamente, que a visão aristotélica acerca da natureza é aquela

segundo a qual esta apresenta uma tendência para o desenvolvimento e conservação da vida,

fazendo com que as criaturas vivas se conservem e se multipliquem, daí apontar que nada que

seja contrário à natureza pode ser bom ou vantajoso. Diante disso, irá concluir que “Bastar-se

a si mesma é uma meta a que tende toda a produção da natureza e é também o mais perfeito

estado. E, portanto, é evidente que toda Cidade está na natureza e que o homem é naturalmente

feito para a sociedade política.” 37 Esta afirmação acaba por decorrer da teleologia típica do

pensamento aristotélico, ao preconizar que “a natureza de alguma coisa é precisamente seu fim”

38 e “bastar-se a si mesma é uma meta a que tende toda a produção da natureza e é também o

mais perfeito estado” 39 Com efeito, a família é aquela comunidade formada para satisfazer

carências cotidianas, já a aldeia aparece como forma mais elevada, no sentido de satisfazer

carências mais elevadas. Daí resulta, obviamente, o passo seguinte: a cidade, que engloba todas

as demais e é a comunidade mais elevada satisfaz as necessidades humanas e, ainda, possibilita

as condições necessárias para o desenvolvimento da boa vida.

A partir deste raciocínio irá pontuar sua célebre afirmação de que o homem é um animal

político (politikòn zwon), distinguindo-se substancialmente da visão dos modernos

contratualistas que veremos à frente, para os quais a natureza humana remete-nos a uma

condição natural de solidão. Esta, para Aristóteles, é recriminada, já que “aquele que, por sua

natureza e não por obra do acaso, existisse sem nenhuma pátria seria um indivíduo detestável,

muito acima ou muito abaixo do homem.” 40 Desta forma, o homem é naturalmente gregário e

com impulso político, isto é, uma potência inata não racional de associação com os demais.

Não é por escolha, portanto, que os homens se unem e compartilham tarefas (prover alimentos,

proteger-se contra ataques, construir habitações), mas pelo fato de que alguns animais, dentre

37 ARISTÓTELES. A Política. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 4. 38 ARISTÓTELES. A Política. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 4. 39 ARISTÓTELES. A Política. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 4. 40 ARISTÓTELES. A Política. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 4.

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34

eles o homem, possuem uma conformação natural para agir em grupo visando a satisfação de

finalidades próprias à sua natureza, que inclui o lógos. 41

A discussão sobre a naturalidade da formação da pólis em contraposição à

convencionalidade das formações políticas modernas é ponto central de discussão do

pensamento político aristotélico e de suma importância para nossa tese. Taylor, neste sentido,

aponta a discussão:

Podemos notar, de passagem, que a noção de “natural” aqui em jogo não é

inteiramente sem problemas. Se “natural” é entendido como “tal que

inevitavelmente acontecerá salvo se impedido por interferência externa”,

então Aristóteles é certamente injustificado ao afirmar que a família e a aldeia,

como ele as entende, são naturais nesse sentido. Claramente, as necessidades

humanas básicas de reprodução e sobrevivência podem ser satisfeitas em

vários tipos de organização (e.g., a tribo nômade) para além das que ele

identificou. Mais uma vez, não está claro até que ponto “natural” (ou, de forma

equivalente, “por natureza”) opõe-se a “convencional” ou “artificial”. 42

Para reforçar seus argumentos, Taylor levanta a questão da relação senhor-escravo que,

mesmo considerada por Aristóteles como natural, é convencional na medida em que um escravo

é, por definição, propriedade do senhor e, portanto, a existência desta relação pressupõe

convenções constitutivas do direito de propriedade. Em conclusão, teríamos que “Aristóteles

construiu em sua conta do que é natural um elemento considerável de descrição dos

fundamentos da sociedade grega antiga”.43 Trata-se aqui de um questionamento de suma

importância para a compreensão da teoria aristotélica em comento, amiúde posta em termos de

uma origem natural do Estado.

No que tange a tal discussão, Höffe possui importantes contribuições:

Como um apelo teórico-legitimador à natureza, o pensamento moderno tem,

antes de tudo, dificuldade porque no curso da modernidade se impõe um

conceito de natureza descritivo e ainda por cima estático. Para Aristóteles a

natureza é um conceito complexo, que no caso da natureza da pólis contém

41 LOPES, Marisa. O animal político: estudos sobre justiça e virtude em Aristóteles. São Paulo: Singular, Esfera

Pública, 2008, p. 47. 42 “We might note in passing that the notion of “natural” in play here is not entirely unproblematic. If “natural” is

understood as “such as will inevitably come about unless prevented by external interference”, then Aristotle is

surely unjustified in claiming that the household and the village, as he understands them, are natural in that sense.

Plainly, the basic human needs of reproduction and survival may be satisfied in numerous kinds of organization

(e.g. the nomadic tribe) other than those which he has identified. Again, it is unclear to what extent “natural” (or,

equivalently, “by nature”) is opposed to “conventional” or “artificial”.” (TAYLOR, C.C.W. Politics. In: BARNES,

Jonathan. The Cambridge Companion to Aristotle. Cambridge: Cambridge UP, 1995, p. 236. Tradução livre). 43 “Aristotle has built into his account of what is natural a considerable element of description of the fundamentals

of ancient Greek society” (TAYLOR, C.C.W. Politics. In: BARNES, Jonathan. The Cambridge Companion to

Aristotle. Cambridge: Cambridge UP, 1995, p. 236. Tradução livre).

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em si elementos descritivos e normativos, e que, além disso, deve ser

compreendido de modo dinâmico. Se desmembrarmos o conceito complexo e

se diferenciarmos “natureza” nos diversos elementos, então a tese de

Aristóteles não parecerá tão escandalosa, mas até moderna. 44

Esta mencionada complexidade decorre da análise aristotélica feita em duas séries de

argumentação. A primeira considera o homem em seu contexto com a natureza, sendo este um

argumento de necessidade (ou carência). A segunda o analisa a partir de sua posição única

enquanto ser racional. Há, portanto, elementos naturais, não necessariamente específicos dos

seres humanos, mas também uma argumentação apoiada no lógos, no dom da linguagem e da

razão característicos dos homens e que, neste sentido, nos leva à pólis. Aí estão características

diferenciadoras dos seres humanos, que nos permite distinguir o bem do mal, o útil do nocivo

e o justo do injusto. Já os demais animais, possuidores apenas do instinto, não formam

sociedades políticas, mas meros agrupamentos. Conforme anota Höffe, aqueles que entendem

a primeira análise de Aristóteles conclusiva e bastante por si só acabam por imputar a ele uma

legitimação naturalista que recai no erro ser-dever-ser. Vistos, porém, de maneira completar,

os argumentos de ordem natural e racional somam-se em um modelo legitimador: “antropologia

mais ética”. 45

Aí consta uma típica discussão da filosofia grega antiga, qual seja, a diferença entre

physis e nomos, ou melhor, aquilo que é pela natureza (physis) e o que é feito pelo homem, por

convenção (nomos). Em uma perspectiva convencionalista, a palavra nomos alinha-se à ideia

de lei (norma), em contraposição ao que é natural. Neste sentido, a lei e a justiça, como

construções, serviriam no sentido de limitar os desígnios da natureza humana. Esta premissa,

sabemos, é rejeitada por Aristóteles, assim como por Platão, posto que a lei e a justiça, tal como

o Estado, aparecem como necessários para o desenvolvimento da natureza humana.

Importante destacar, desde já, uma importante consequência desta visão, já visualizando

sua confrontação com as perspectivas modernas acerca da natureza livre do humano, pois para

Aristóteles, essa tendência para associar-se representa a impossibilidade de um fim alternativo:

Tal tendência para se associar, para procriar ou para preservar a vida obedece

a uma finalidade natural que exclui a possibilidade de um fim alternativo, ao

contrário do que ocorre em relação aos fins realizáveis pela ação humana, os

quais (fim e ação ou meio) sempre poderiam ser diferentes do que são. Esse

44 HÖFFE, Otfried. Justiça política: fundamentação de uma filosofia crítica do direito e do Estado. Trad.: Ernildo

Stein. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 231. 45 HÖFFE, Otfried. Justiça política: fundamentação de uma filosofia crítica do direito e do Estado. Trad.: Ernildo

Stein. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 231-2.

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impulso, ao contrário, deve ser atribuído exclusivamente à natureza, a quem o

homem deve sua essência de animal político. 46

Desta forma, o processo de formação da cidade tem como motor, ou melhor, como

causa, a natureza política do animal homem que, em virtude do lógos que lhe é específico,

forma uma comunidade a ser organizada segundo princípios de justiça – eticamente –, de tal

sorte a extrair a potencialidade do lógos. Ainda Höffe:

Neste processo de crescimento e de desenvolvimento, o termo “natureza”

possui três significados que se completam reciprocamente. Physis significa,

primeiro, o começo que é ao mesmo tempo o princípio do movimento: o germe

ou impulso pelo qual o crescimento surge – de dentro, espontâneo,

impulsionado –; ela denomina, em segundo lugar, o processo de crescimento

e, em terceiro lugar, sua completude: o desdobramento, que chegou à

plenitude das possibilidades plantadas na origem. Nas três perspectivas,

Aristóteles considera o político como natural no homem. 47

Em continuidade a esta temática, Höffe expõe sua visão acerca do risco de se verificar

em Aristóteles uma noção de desenvolvimento da pólis meramente biológica:

O modelo de processos de natureza se aplica ao desenvolvimento de plantas e

animais. Por isso, subsiste o perigo de um mal-entendido organológico,

segundo o qual no homem se forma, do mesmo modo, a comunidade política,

assim como de uma semente, em circunstâncias favoráveis, se forma primeiro

o broto, depois uma plantinha e no fim uma árvore adulta. Ao contrário dos

processos puramente biológicos, o desenvolvimento da pólis não depende,

porém, apenas de um impulso interno dos indivíduos e de influências

exteriores. A pólis não é uma forma de vida que, sem o saber e a contribuição

do homem, se forma às suas custas. Para a instalação de uma entidade de

direito e do Estado, o homem é co-responsável; ele não é apenas objeto, mas

também sujeito do desenvolvimento da pólis. 48

Neste ponto, o viés teleológico dos estudos aristotélicos nos leva a compreender a

existência da pólis a partir da busca de sua finalidade. Evidente que a finalidade das sociedades

políticas não pode ser reduzida a um bem concreto, vez que os homens possuem interesses

distintos. Assim, irá apontar – na linha platônica – uma finalidade de ordem genérica, que

defende o princípio da facilitação da vida e uma existência humana bem-sucedida e feliz. A

46 LOPES, Marisa. O animal político: estudos sobre justiça e virtude em Aristóteles. São Paulo: Singular, Esfera

Pública, 2008, p. 47. 47 HÖFFE, Otfried. Justiça política: fundamentação de uma filosofia crítica do direito e do Estado. Trad.: Ernildo

Stein. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 236. 48 HÖFFE, Otfried. Justiça política: fundamentação de uma filosofia crítica do direito e do Estado. Trad.: Ernildo

Stein. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 237.

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partir desta abordagem (já vista acima, da reunião para viver bem), o conceito de natural

adquire o seguinte sentido:

“Natural” no sentido do objetivo mínimo, é, segundo Aristóteles, o fato de o

homem como tal conviver com seus semelhantes, mais exatamente: o fato de

o convívio receber a forma de uma comunidade familiar doméstica; “natural”,

no sentido de objeto ótimo, é o fato de convívio assumir o nível de uma

comunidade como a pólis. Em suma: o homem é um ser social por natureza

porque ele quer viver, mas um ser político porque quer viver bem. 49

Em síntese, buscando alcançar a eudanimonia50, fim maior para a humanidade (do ponto

de vista moral) e das cidades (do ponto de vista político), os homens se reúnem em sociedades

políticas. Sintetizando a discussão, nos parece ponderada a posição de William David Ross:

Representando o Estado como algo natural, Aristóteles não pretende torná-lo

independente da vontade humana. É através da vontade humana que foi

formado e se mantém, e é pela vontade humana que pode ser moldado de modo

“mais consistente com o desejo do coração”. Mas ele diz que é natural no

sentido de que tem suas raízes na natureza das coisas e não no capricho do

homem. 51

Uma análise similar é feita por Marisa Lopes, ao trabalhar o aspecto natural e não-

necessário da cidade:

Afirmar a naturalidade da cidade não redunda, portanto, na aceitação da

cidade como um ser natural, tal como o é um homem, um cavalo ou uma

árvore. A cidade não é uma substância: o seu vir-a-ser não obedece a leis

internas e determinadas pelas quais a natureza opera naquilo que, por si

mesmo e não por acidente, a possui como princípio. Tanto é assim que, sendo

excluída da definição de ser natural, ela não é objeto da Física, mas da Ética

e/ou da Política, ciências que dizem respeito ao domínio da ação propriamente

humana, ao âmbito de uma esfera da realidade em que a existência ou

inexistência de algo depende do homem. 52

49 HÖFFE, Otfried. Justiça política: fundamentação de uma filosofia crítica do direito e do Estado. Trad.: Ernildo

Stein. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 233. 50 O termo costuma ser definido por “felicidade”, embora sempre seja pontuada a desconformidade dos termos. 51 “En représentant l'état comme une chose naturelle, Aristote n'entend pas le rendre indépendant de la volonté

humaine. C'est par la volonté humaine qu'il a été formé et qu'il se maintient, et c'est par la volonté humaine qu'il

peut être façonné de manière “plus conforme au désir du coeur”. Mais il affirme qu'il est naturel en ce sens qu'il a

ses racines dans la nature des choses et non dans le caprice de l'homme.” (ROSS, William David. Aristote. París:

Payot, 1930, p. 329-330. Tradução livre). 52 LOPES, Marisa. O animal político: estudos sobre justiça e virtude em Aristóteles. São Paulo: Singular, Esfera

Pública, 2008, p. 57.

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38

Em resumo, temos que a posição sustentada por Aristóteles quanto à origem das

sociedades políticas pode ser vista a partir de diversos ângulos, embora nenhuma análise ignore

a importância por ele dada à natureza no processo de constituição das sociedades políticas.

Ressalta-se, neste ponto, a importância da questão ética da obra aristotélica para realizar a

devida análise acerca da natureza da cidade, já que “embora a natureza seja a causa necessária

que impulsiona o homem para a vida gregária, ela não garante, por si só, um certo modo de vida

(o virtuoso) que o homem é autônomo para escolher ou não.”53

Inobstante as discussões acima levantadas sobre a natureza da cidade, as afirmações

feitas logo no início de sua obra são, de certa forma, hialinas:

É preciso, inicialmente, reunir as pessoas que não podem passar umas sem as

outras, como o macho e a fêmea para a geração. Esta maneira de se perpetuar

não é arbitrária e não pode, na espécie humana assim como entre os animais e

as plantas, efetuar-se senão naturalmente. 54

Some-se a estas afirmações o já mencionado desenvolvimento família-aldeia-cidade e

teremos delineada de forma clara a ideia aristotélica quanto à formação das sociedades políticas

e, em última análise, do Estado como decorrência de mandamentos naturais (um fim perseguido

pela natureza) e, portanto, necessários. Estas assertivas possuem consequências mais

importantes do que sua simples colocação pode sugerir; afinal, apontar o Estado e a autoridade

de uns sobre os outros como decorrência de uma ordem natural (notadamente do senhor sobre

o escravo e do homem sobre a mulher e os filhos), ou seja, de um mandamento necessário da

natureza, é apontar tais relações como inevitáveis caso não haja qualquer interferência, assim

como qualquer lei da natureza, vista em termos deterministas. Assim, a sociedade política com

autoridade de uns sobre outros aparece como produto inevitável às associações humanas.

2.1.3 Autoridade pré-política e liberdade

Outro ponto de divergência com os modernos refere-se à situação anterior ao

surgimento da sociedade política; afinal, a visão aristotélica pressupõe formações menores

anteriores, já dotadas de autoridade e subordinação, tal como a família sob a autoridade do

homem. Aí consta, portanto, diferença substantiva com relação às teorias modernas que irão

apontar o homem não só como livre, mas naturalmente igual aos seus semelhantes:

53 LOPES, Marisa. O animal político: estudos sobre justiça e virtude em Aristóteles. São Paulo: Singular, Esfera

Pública, 2008, p. 58. 54 ARISTÓTELES. A Política. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 2.

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39

E enquanto para os modernos essa situação original supostamente revelaria,

entre os homens, uma perfeita igualdade, anterior à ordem política que

subordina artificialmente os governados ao(s) governante(s), para Aristóteles,

pelo contrário, essa situação supostamente revelaria que entre eles há a maior

desigualdade, que provoca por necessidade, mas naturalmente, a subordinação

do escravo ao senhor em uma associação de trabalho, totalmente diferente da

associação política. 55

Com este entendimento, o referido autor pretende demonstrar que a ideia da cidade

natural e do homem como ser naturalmente político significa não a naturalidade de uma

subordinação política, mas a ideia de que o homem foi feito para exercer uma autoridade

política e instituir uma ordem que responde ao fim último de toda associação. Daí a gradual

formação do Estado a partir de organizações (com autoridade) menores. Afinal, “é para a mútua

conservação que a natureza deu a um o comando e impôs a submissão ao outro.” 56 Para

Aristóteles, portanto, “a natureza, que faz todos nós seres racionais, não nos torna, por causa

disso, igualmente livres. Pelo contrário, a liberdade é tão fracamente natural que o escravo,

segundo Aristóteles, é precisamente aquele que permanece de algum modo no estado de

natureza.”57

Diante disso, temos uma clara diferença do pensamento aristotélico para aquele

moderno que iremos analisar à frente, para o qual todos são iguais num pressuposto estágio

anterior à ordem política. Quanto a este aspecto, é importante não confundir a autoridade natural

trabalhada por Aristóteles com a noção do Estado como autoridade responsável pela

manutenção da ordem, conceito este de norte nitidamente moderno. Neste tocante:

A questão da autoridade política, central para a filosofia política mais

moderna, é, portanto, ausente da pauta de Aristóteles. Essa questão, que pode

ser formulada como ‘Quais são os motivos, e quais são os limites, da

obrigação do indivíduo de obedecer ao Estado?’, pressupõe uma formação de

pensamento em que o conceito central é o de obrigação e no qual o Estado é

visto como algo externo ao indivíduo, um agente coercitivo cujo poder de

interferir e limitar repousa na necessidade de justificação. Os pressupostos de

Aristóteles são bastante diferentes. Seu conceito fundamental não é o da

obrigação, mas o de bem humano; enquanto que em sua opinião o papel do

Estado, longe de limitar a liberdade de ação do indivíduo com o objectivo de

assegurar um bem comum, é justamente o de permitir que o indivíduo realize

seu potencial para alcançar o seu bem individual, um feito impossível a não

ser no contexto do Estado. [...]. Para o teórico moderno o problema central é

55 BODÉÜS, Richard. Aristóteles. A justiça e a cidade. Trad. Nicolás Nyimi Campanário. São Paulo: Loyola,

2007, p. 49.50. 56 ARISTÓTELES. A Política. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 2. 57 BODÉÜS, Richard. Aristóteles. A justiça e a cidade. Trad. Nicolás Nyimi Campanário. São Paulo: Loyola,

2007, p. 40.

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40

por que o indivíduo deve aceitar a autoridade do Estado, Aristóteles, por sua

vez, reforça a alegação de que o bem individual é irrealizável a não ser para

um participante ativo em uma comunidade política. 58

O Estado, portanto, terá papel central na obra de Aristóteles enquanto único ambiente

possível para que o indivíduo se realize em sua plenitude, ao contrário dos modernos que nele

enxergarão uma entidade que, mediante coerção, busca limitar a convivência das liberdades

individuais com vistas a, desta forma, assegurar o bem comum.

2.1.4 O organicismo a partir da predominância da cidade sobre o indivíduo

Destaque-se que a anterioridade de outras formações (família e aldeia) prevista por

Aristóteles e descrita acima deve ser analisada em conjunto com seu entendimento segundo o

qual a pólis, sendo a formação social última da natureza humana, é anterior e superior às partes

que a compõe. A anterioridade prevista nesta afirmação não é, obviamente, a cronológica, mas

a noção extraída do organicismo típico da filosofia aristotélica, segundo o qual o indivíduo não

existe plenamente sem a pólis, o que a filosofia moderna irá veementemente negar. Assim

sendo, o homem deixa de ser homem se separado da pólis, assim como uma mão deixa de ser

uma mão quando separada do corpo. Referida diferença acaba por nos remeter à compreensão

moderna acerca da utilidade da sociedade política – num viés típico do mecanicismo moderno

–, em contraponto à existência plena pensada pelos gregos, atrelada ao organicismo. Neste

tocante, cumpre estabelecer a diferença entre o viver (zen) e a existência bem-sucedida e feliz

(eu zen), para então apontar uma diferença notável das visões e instituições antigas e modernas

que aqui buscamos contrapor:

Além disso, não se deve esquecer a grande diferença entre a pólis grega e um

Estado moderno. Se em Aristóteles vemos a pólis comprometida com o eu

zen, então se deve pensar apenas na separação que não existe de Estado e

sociedade ou mesmo temer até uma moralização da política. Como um lugar

58 “The question of political authority, central to most modern political philosophy, is, then, absent from Aristotle’s

agenda. That question, which may be phrased as “What are the grounds, and what are the limits, of the individual’s

obligation to obey the state?”, presupposes a background of thought in which the central concept is that of

obligation and in which the state is seen as something external to the individual, a coercive agency whose power

to interfere and to limit stands in need of justification. Aristotle’s presuppositions are quite different. His

fundamental concept is not that of obligation, but of human good; while in his view the role of the state, so far

from limiting the individual’s freedom of action with the aim of securing a common good, is precisely that of

enabling the individual to realize his or her potential to achieve his or her individual good, an achievement

impossible unless in the context of the state. (…) For the modern theorist the central problem is why the individual

should accept the authority of the state, Aristotle has rather to make good the claim that individual good is

unattainable except to an active participant in a political community.” (TAYLOR, C.C.W. Politics. In: BARNES,

Jonathan. The Cambridge Companion to Aristotle. Cambridge: Cambridge UP, 1995, p. 233-4. Tradução livre).

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que se pode abranger com os olhos, com uma topografia e com a cidadania

familiares, uma coletividade do tamanho da pólis não é apenas uma

associação, mas também pátria e oferece, já por isso, muito mais chances de

humanidade diretas que o Estado contemporâneo com seu caráter de sistema. 59

Neste ponto reside uma questão essencial para a compreensão do antagonismo

estabelecido entre o pensamento moderno e o aristotélico. Enquanto a noção grega de pólis

envolve o indivíduo num contexto orgânico de desenvolvimento para o bem viver, a noção

moderna e mecanicista aponta-o como um átomo social, com direitos e garantias que devem

ser fornecidos por um Estado, grande sistema, cujos subsistemas a ele integrados (jurídico,

econômico etc.) são responsáveis por conduzir a fruição destes direitos, conforme

convencionalmente estabelecidos em diplomas jurídicos.

Com efeito, há em Aristóteles um claro elemento orgânico no que tange à composição

social, de tal sorte que a predominância da Cidade sobre o indivíduo figura como elementar no

pensamento político de Aristóteles que, como dito acima, irá ter uma visão absolutamente

crítica daqueles que, pela natureza, vivessem sem se associar aos demais. Referida

predominância aparece claramente em sua obra:

O Estado, ou sociedade política, é até mesmo o primeiro objeto a que se propôs

a natureza. O todo existe necessariamente antes da parte. As sociedades

domésticas e os indivíduos não são senão as partes integrantes da Cidade,

todas subordinadas ao corpo inteiro, todas distintas por seus poderes e suas

funções, e todas inúteis quando desarticuladas, semelhantes às mãos e aos pés

que, uma vez separados do corpo, só conservam o nome e a aparência, sem a

realidade, como uma mão de pedra. O mesmo ocorre com os membros da

Cidade: nenhum pode bastar-se a si mesmo. Aquele que não precisa dos

outros, ou não pode resolver-se a ficar com eles, ou é um deus, ou um bruto.

Assim, a inclinação natural leva os homens a este gênero de sociedade. 60

Esta linha de raciocínio não é propriamente inaugurada com Aristóteles, podendo ser

verificada, por exemplo, no seguinte diálogo platônico:

Sócrates – O que dá origem ao Estado é, ao meu parecer, a impossibilidade

de cada indivíduo bastar-se a si mesmo e a necessidade, que tem, de uma

multidão de coisas. A não ser assim, a que outra causa atribuís a sua origem?

Adimanto – A nenhuma outra.

Sócrates – Assim, pois, havendo a necessidade de uma coisa levado o

indivíduo a unir-se a outro, nova necessidade à nova união com outro,

múltiplas necessidades reuniram, enfim, no mesmo lugar muitos homens com

59 HÖFFE, Otfried. Justiça política: fundamentação de uma filosofia crítica do direito e do Estado. Trad.: Ernildo

Stein. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 235. 60 ARISTÓTELES. A Política. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 4-5.

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propósito de se valerem uns aos outros; e a esta associação demos o nome de

Estado. Não é assim?

Adimanto – Sim.

Sócrates – Mas não se dá a outrem nem com outrem se troca o que se tem,

senão quando nisto se julga haver vantagem.

Adimanto – Claro. 61

Assim, há de fato um reconhecimento, já em Platão, de que o homem tende a associar-

se politicamente para viver, embora aí com o conceito de vantagem que, nos termos da análise

aqui feita, pode divergir da noção aristotélica de necessidade, segundo a qual é apenas na cidade

que o homem pode bastar-se a si mesmo, sendo plenamente humano. Sem adentrar nas

congruências e divergências dos referidos pensadores gregos, para não transbordar os lindes

estabelecidos para esta pesquisa, cumpre destacar que, no plano fático, “não viver numa cidade

é, para um grego da época clássica, não viver politicamente (isto é, de maneira civilizada)”. 62

Destaque-se, ainda, que o conceito de Cidade, aqui utilizado por Aristóteles, corresponde de

modo mais preciso ao que hoje denominados Estado63, palavras que acabaremos por usar

indistintamente neste trabalho ao nos referirmos às noções aristotélicas em contraponto com

aquelas modernas, feitas a partir do surgimento do Estado propriamente dito.

De toda sorte, fica então evidente a visão organicista da política aristotélica; ou seja, a

predominância e antecedência do todo sobre as partes; noção obviamente atrelada aos estudos

de biologia realizados pelo pensador. Sobre esta questão, consideramos importante destacar a

lição de Sir. Ernest Barker, de que:

O que quer que se diga sobre o “sacrifício” do indivíduo ao Estado na política

ou na teoria gregas, o fato é que na Grécia o homem estava menos sujeito a

este sacrifício do que em qualquer outra parte do mundo antigo. Os gregos não

se cansavam de repetir que, enquanto no seu país cada um contava pelo que

61 PLATÃO. A República. Trad. Albertino Pinheiro. Bauru, SP: EDIPRO, 2001, p. 66. 62 WOLFF, Francis. Aristóteles e a política. Trad. Thereza Christina Ferreira Stummer, Lygia Araujo Watanabe.

2ª Ed. São Paulo: Discurso Editorial, 2001, p. 9. 63 “Com efeito, o Estado na Antiguidade é a Cidade, condensação de todos os poderes. Da Cidade se irradiam as

dominações, as formas expansivas de poder e força. [...] Nínive, Babilônia, Tebas, Persépolis, Esparta, Atenas,

Roma, e tantas outras, são a imagem eloquente do Estado Antigo com sua geografia política urbana, sua

concentração personificada de poder, sua forma de autoridade secular e divina expressa na vontade de um titular

único – o faraó, o rei, o imperador –, de quem cada ente humano, cada súdito, é tributário.” (BONAVIDES, Paulo.

Teoria Geral do Estado. 9ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 34). Ainda neste sentido, é importante destacar a

noção de Cidade-Estado grega como qualitativamente distinta da nossa: “Num outro sentido ainda, pode-se afirmar

que a cidade-estado não era uma cidade. Para os gregos, “pólis” significava sempre uma comunidade, e não uma

área territorial. Eles pensavam em termos de pessoas enquanto nós – expressando inconscientemente uma

concepção feudal que ainda vive em nossa mente – tendemos a pensar em termos de hectares. Daí a pergunta: qual

a ideia em nome da qual essas pessoas se reuniam, e se estruturavam numa sociedade? Há duas respostas possíveis:

a contiguidade e as relações de parentesco. Se adotarmos a primeira resposta, estaremos autorizados a falar da

comunidade grega como uma cidade-estado (“Stadtstaat”); se dermos a segunda, seremos obrigados a falar em

estado-tribal (“Stammstaat”). (BARKER, Sir Ernest. Teoria política grega: Platão e seus predecessores. Trad.

Sérgio Fernando Guarischi Bath. Brasília: UNB, 1978, p. 48).

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valia, e todos podiam exercer alguma influência na vida da comunidade, nos

estados despóticos do oriente só tinha importância a vontade do déspota, e não

havia propriamente “interesse comum”. 64

Ademais, a ideia de que o Estado é o primeiro objeto a que se propôs a natureza ressalta

o caráter necessário e relevante que a organização política possui no pensamento aristotélico.

Sua função é clara em seu pensamento: “não é apenas para viver juntos, mas sim para bem viver

juntos que se fez o Estado.” 65 Assim, apenas a vida em sociedade oferece a oportunidade do

homem construir seu caráter por meio da prática das virtudes. Neste sentido, Aristóteles deixa

claro sua recusa à formação mecânica do todo social ao dizer que:

Suponhamos, até, alguns homens: um carpinteiro, outro lavrador, outro

sapateiro, um quarto de alguma outra profissão. Suponhamos, se se quiser, dez

mil deles, residindo separadamente, mas não a uma distância tão grande que

não se possam comunicar. Eles fizeram um pacto de não agressão no que toca

a seus comércios e até prometeram tomar armas para sua mútua defesa, mas

não têm outra comunicação a não ser o comércio e seus tratados. Mais uma

vez, esta não será uma sociedade civil.

(...)

A Cidade, portanto, não é precisamente uma comunidade de lugar, nem foi

instituída simplesmente para defender contra as injustiças de outrem ou para

estabelecer comércio. Tudo isso deve existir antes da formação do Estado, mas

não basta para constituí-lo. 66

Para então concluir que “a Cidade é uma sociedade estabelecida, com casas e famílias,

para viver bem, isto é, para se levar uma vida perfeita e que se basta a si mesma.” 67 Desta

forma, o pensador grego recusa veementemente qualquer formação mecânica – como será vista

a sociedade industrial moderna – como forma de associação apta a constituir uma Cidade, já

que esta – inerente à condição humana – precede as partes que contém, perfazendo um invólucro

social apto ao bem viver humano; sendo, ainda, único ambiente possível para que o homem

exerça as virtudes para a formação de seu caráter.

Sobre esta contraposição com relação ao pensamento moderno, Wolff possui importante

lição para compreender a natureza do político para os gregos da época clássica:

É preciso inverter a ideia moderna segundo a qual o público e o privado posto

em comum, ou a política do singular quando colocado no plural. A cidade não

é uma soma de indivíduos, é antes o indivíduo privado que a priori é pensado

64 BARKER, Sir Ernest. Teoria política grega: Platão e seus predecessores. Trad. Sérgio Fernando Guarischi

Bath. Brasília: UNB, 1978, p. 22. 65 ARISTÓTELES. A Política. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 45. 66 ARISTÓTELES. A Política. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 46-7. 67 ARISTÓTELES. A Política. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 47.

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como “redobramento sobre si mesmo” do público. A política não passa da

realização de si, uma vez que o “si” é relação com o outro. 68

Com efeito, a sociedade política figura-se em sua obra como primeiro objeto da

natureza, tendo existido o todo (a sociedade) antes das partes (seus indivíduos) que, portanto,

estão subordinados ao corpo de que fazem parte. Consta aí a base do organicismo69

característico da Antiguidade, em que o indivíduo existe em função do Estado e não este em

função daquele, tal como veio a prevalecer, posteriormente, no pensamento moderno

eminentemente mecanicista. 70

Feitas as colocações que consideramos necessárias sobre o pensamento aristotélico no

que tange ao assunto por nós estudado, cabe apresentar uma síntese do pensamento aristotélico,

conforme feita por Eduardo Bittar, em seu Curso de Filosofia Aristotélica:

Deste conjunto de reflexões se extrai que: a) tudo está ordenado para um fim,

inclusive a conformação política; b) o fim há de ser algo que é o melhor; c) a

pólis é fim, por sua auto-suficiência, e o é para as comunidades que a

antecederam no tempo. Tem-se, então, que a pólis é uma das coisas que existe

por natureza (ek toútwn oûn phaneròn óti twn phísei he pólis estí), e por

68 WOLFF, Francis. Aristóteles e a política. Trad. Thereza Christina Ferreira Stummer, Lygia Araujo Watanabe.

2ª Ed. São Paulo: Discurso Editorial, 2001, p. 14. 69 “The analogy commits Aristotle to holding that what makes any of us human is our capacity for polis

membership, just as what makes this quantity of organic matter a hand is its capacity to play a particular role in a

functioning human body. The political implications of this analogy are momentous, since the parts of an organism

have no interests independent of the interests of the organism as a whole. Rather, the good of the parts is its such

as to make its proper contribution to the good of the organism.” (TAYLOR, C.C.W. Politics. In: BARNES,

Jonathan. The Cambridge Companion to Aristotle. Cambridge: Cambridge UP, 1995, p. 239-240). Em tradução

livre: “A analogia confirma que Aristóteles considera que o que faz qualquer um de nós humano é a nossa

capacidade para a adesão à polis, da mesma forma que o que faz com que essa quantidade de matéria orgânica seja

uma mão é a sua capacidade para desempenhar um papel específico em um corpo humano em funcionamento. As

implicações políticas dessa analogia são de grande importância, uma vez que as partes de um organismo não têm

interesses independentes dos interesses do organismo como um todo. Pelo contrário, o bem das partes é fazer sua

contribuição adequada para o bem do organismo.” 70 A análise comparativa entre as diferentes formas de organização social na antiguidade e na modernidade

consiste, como não poderia ser diferente, de uma análise a partir da ótica e dos parâmetros hodiernamente

estabelecidos para tanto. Desta forma, com vistas a modelar imagens coletivamente eficazes do ser humano,

Sloterdijk nos lembra de que humanistas, teólogos, sociólogos e politólogos sempre se valem da teoria segundo a

qual a humanidade começa com a grande civilização. Trata-se, aqui, de apontar um equívoco comum que consiste

em projetar o homem moderno no homem da Antiguidade. Em suas palavras: “A ideologia oficial das grandes

civilizações, em todas as suas variedades, quer nos fazer acreditar que a história real e digna de menção não teria

mais do que quatro a cinco mil anos, e que a espécie essencial, na qual tendemos a nos incluir, surgiu da névoa

justamente àquela época no Egito, Mesopotâmia, China e Índia. Naquele tempo apareceram escrevinhadores e

escultores que pela primeira vez nos mostraram o que era o homem. Ecce Pharao, eccce homo – o homem não é

mais antigo do que a grande civilização, a verdadeira humanidade começando no seu apogeu. [...] A apologia atual

da grande civilização abrevia a história da humanidade em mais de 95%, talvez até em 98% de sua duração real, a

fim de ter liberdade para uma doutrinação ideológica e antropológica em alto grau – a doutrina, entendida como

clássica e moderna, do homem como um “ser político”. Seu sentido é apresentar o homem a priori como um animal

burguês que, para sua realização essencial, precisa de capitais, bibliotecas, catedrais, academias e representações

diplomáticas.” (SLOTERDIJK, Peter. No mesmo barco: ensaio sobre a hiperpolítica. Trad.: Claudia Cavalcanti.

2ª Ed. São Paulo: Estação Liberdade, 1999, p. 18-19).

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consequência, que o homem é um animal político por natureza (kaì óti ho

ánthrwpos physei politikòn zwon). 71

A partir desta síntese, podemos absorver aquilo que precisamos para contrapor o

pensamento aristotélico aos estudos modernos acerca do fenômeno político, notadamente

quanto às alegações feitas pelo pensador grego em comento, qual seja, a natureza gregária do

ser humano e a cidade como ontologicamente natural e autárquica, no sentido acima exposto.

Neste tocante, Aristóteles inaugura uma linhagem filosófica72 que verá o instinto de

sociabilidade como inato aos seres humanos e a sociedade política como necessária73,

apontando, portanto, que a vida política do homem não consiste em um meio para a realização

de qualquer concepção de bem, mas a própria finalidade do homem, uma vez que a concepção

de bem é, ela mesma, social e, desta forma, a vida em comunidade é o lugar por excelência para

a realização da essência natural humana.

É esta visão que iremos contrapor no capítulo terceiro à frente, ao apontar a visão

moderna do mesmo problema, encabeçada por Samuel Pufendorf e Hugo Grotius, e

sistematizada por Thomas Hobbes e, posteriormente, por John Locke e Jean-Jacques Rousseau,

delineando a abordagem moderna do problema, pela qual veremos que o politikòn zwon cederá

para o homem selvagem, cujo impulso natural não consiste naquele gregário, mas sim no de

conservação de si mesmo e, portanto, volta-se para benefícios próprios a partir de uma

racionalidade natural. Diante disso, cairá por terra a concepção organicista do pensamento

político grego e prevalecerá uma noção mecanicista, típica do pensamento moderno, de tal sorte

que deixarão de existir causas finais (perspectiva teleológica de Aristóteles), sendo a busca pela

comunidade uma questão instrumental decorrente do impulso natural pela busca do benefício

71 BITTAR, Eduardo C. B. Curso de filosofia aristotélica: leitura e interpretação do pensamento aristotélico.

Barueri, SP: Manole, 2003, p. 1180. 72 Sem prejuízo das demais referências feitas nesta tese a tal linhagem e levando-se em consideração os lindes

estabelecidos para esta pesquisa, ressaltamos, ainda na Idade Antiga, a posição de Cícero: “XXV. – É, pois, –

começou o Africano – a República coisa do povo, considerando tal, não todos os homens de qualquer modo

congregados, mas a reunião que tem seu fundamento no consentimento jurídico e na utilidade comum. Pois bem:

a primeira causa dessa agregação de uns homens a outros é menos a sua debilidade do que um certo instinto de

sociabilidade em todos inato; a espécie humana não nasceu para o isolamento e para a vida errante, mas com uma

disposição que, mesmo na abundância de todos os bens, a leva a procurar o apoio comum. XXVI. – Assim, não

deve o homem atribuir-se, como virtude, sua sociabilidade, que é nele intuitiva. Formadas assim naturalmente,

essas associações, como expus, estabeleceram domicílio, antes de mais nada, num lugar determinado; depois, esse

domicílio comum, conjunto de templos, praças e vivendas, fortificado, já pela sua situação natural, já pelos

homens, tomou o nome de cidade ou fortaleza.” (CÍCERO, Marco Túlio. Da República. Trad.: Amador Cisneiros.

4ª Ed. São Paulo: Atena, 1956, p.34-5).” 73 Neste ponto, cumpre-nos apontar a crítica de Sloterdijk: “A inesquecível tese da zoologia platônico-aristotélica

tem como objetivo fazer com que de antemão surjam do Estado, em pequenos rebanhos, seres vivos, tais quais

produtos de um único regaço político que produz reis e artesãos na mesma ninhada. Portanto, será possível o

homem como politikós?” (SLOTERDIJK, Peter. No mesmo barco: ensaio sobre a hiperpolítica. Trad.: Claudia

Cavalcanti. 2ª Ed. São Paulo: Estação Liberdade, 1999, p. 39).

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próprio. A concepção contraposta à de Aristóteles será, portanto, de viés claro: a sociedade é

fruto de uma escolha humana e, portanto, não decorre de causas naturais, como apontada pelo

filósofo grego.

2.2 A justificação do Estado no medievo

2.2.1 Notas acerca das justificações teológico-religiosas

Como visto acima, o pensamento de Aristóteles sintetizou o pensamento político grego

apontando o Estado como anterior e superior às partes que o compõe; noção esta que, como

sabemos – e veremos à frente – será rechaçada veementemente pelos modernos. Com isto,

influiu de maneira significativa o pensamento político medieval, especialmente após suas

traduções no séc. XIII e, ainda atualmente, possui indiscutível importância, vez que o

pensamento político contemporâneo continua a se alimentar de sua obra que, não raro, desponta

nas teorias contrárias às perspectivas individualistas e consequencialistas da filosofia moderna.

Ressalve-se, inicialmente, que em se tratando de uma abordagem acerca da justificação

filosófica do Estado, nossa tese centrar-se-á, por evidente, no tratamento dado ao problema da

justificação a partir da filosofia política, de tal sorte que os inúmeros eventos medievais de

relevo para a compreensão totalizante do tema serão obviamente olvidados em virtude da

necessidade de se traçar um corte neste sentido. De toda sorte, conforme já exposto no capítulo

primeiro desta tese, levaremos em conta alguns eventos fundamentais, tão somente na medida

em que forem necessários para compreender as perspectivas filosóficas trabalhadas; o que não

traz qualquer diminutivo aos eventos eventualmente não abordados. Trata-se, apenas, de dar

uma leitura ao que aqui se pode e se pretende apresentar.

No que tange ao pensamento político medieval, cumpre inicialmente colocar algumas

palavras acerca da noção de justificação teológico-religiosa do Estado74, as quais tornam-se

necessárias para a compreensão das perspectivas medievais acerca do assunto aqui em

discussão. Neste sentido, destacamos que nos tempos primitivos a consciência político-jurídica

não se estendia além da própria comunidade, estando sancionada pela divindade do grupo, de

74 “Tanto quanto posso ver, Marsílio de Pádua foi o um dos primeiros, senão o primeiro, que em seu escrito

Defensor pacis (1341) criticou, seguindo Aristóteles, a teoria da translatio imperii e, com isso, toda justificação

teológica. Essa controvérsia seguiu até o século XIX, quando teóricos como de Bonal e de Maistre tentaram

fundamentar religiosamente mais uma vez os poderes tradicionais da igreja, da monarquia e da sociedade

estamental.” (HABERMAS, Jürgen. Para a reconstrução do materialismo histórico. Trad. Rúrion Melo. São

Paulo: Unesp, 2016, p. 401).

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modo que o escopo do grupo e de seu “direito” coincidem e residem nesta divindade que o

justifica. Na Índia e na Pérsia, por exemplo, os soberanos eram delegados de Deus, vez que se

acreditava que haviam recebido o poder diretamente por manifestação de uma vontade divina.

No Egito, os Faraós eram tidos como descendentes das divindades. Já o Imperador da China

possuía um mandato do céu. 75 Em suma, cada grupo apresentava justificações que legitimavam

a autoridade soberana por meio de um desígnio divino qualquer.

Tais pretensões não foram abraçadas nos primeiros séculos do cristianismo. Afinal, a

doutrina cristã tendia a apontar como herética a postura de considerar um humano a

personificação de Deus ou algo que a isso valha. Para os cristãos, todo o poder vem de Deus de

maneira providencial, ou seja, por meio dos homens. 76 O clássico ensinamento cristão “dai a

César o que é de César e a Deus o que é de Deus” traça a divisa do poder terreno, que governa

as coisas da terra, e do poder espiritual, que cuida da alma. Jellinek77 vai além ao lembrar-se da

oposição de civitas Dei e civitas terrena de Santo Agostinho, apontando o Estado como

consequência necessária de nossa queda no pecado. 78

Ainda na ideia agostiniana acerca do poder político, destaque-se a síntese de Landrey

Bernard:

Reis e imperadores comandam em nome de Deus, eles estão, portanto,

submetidos ao representante direto de Deus na terra. O papa é superior a todo

poder humano, ele é um deus terrestre, dirá Robert Bacon. Ele não é apenas o

chefe espiritual da humanidade, mas também seu chefe temporal. Ele possui

dois gládios; ele se manipula apenas um deles, e se confia o gládio temporal

ao imperador, é porque ele quer consagrar-se inteiramente à sua função

religiosa; mas, em certas circunstâncias, ele pretende retomar o gládio

imperial. Ele depõe os imperadores e os reis quando estes se tornam

criminosos e ele confia a outros mais dignos a tarefa de presidir aos destinos

terrestres do povo cristão. Assim como, no firmamento, o sol é a fonte de toda

luz, o papa é, na sociedade humana, a fonte de toda autoridade; dele emanam,

como tantos regatos, os poderes dos bispos em suas dioceses, a jurisdição do

75 MALUF, Sahid. Teoria geral do Estado. 26ª ed. Atual. Migulel Alfredo Malufe Neto. São Paulo: Saraiva,

2003, p. 60. 76 Ressalta-se, ainda, a teoria do direito divino providencial como uma das espécies de justificação teológico-

religiosa: “Deus dirige providencialmente o mundo, guiando a vida dos povos e determinando os acontecimentos

históricos. Dessa direção suprema resulta a formação do Estado; o poder bem de Deus, mas não por manifestação

visível e concreta da sua vontade. O poder vem de Deus através do povo – per populum –, como doutrinou Santo

Tomás de Aquino. Em outras palavras: todo poder vem de Deus, in abstracto, não in concreto.” (MALUF, Sahid.

Teoria geral do Estado. 26ª ed. Atual. Miguel Alfredo Malufe Neto. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 62). 77 JELLINEK, Georg. Teoría General del Estado. Trad.: Fernando de los Ríos. México: FCE, 2000, p. 198. 78 “Como todo lo que deriva del pecado, sirve él también para mostrar claramente la gracia divina que promete a

los elegidos la salvación; triunfará la gracia cuando el Estado divino se sobreponha al Estado terreno y la eternidade

haya consumido el tempo.” (JELLINEK, Georg. Teoría General del Estado. Trad.: Fernando de los Ríos.

México: FCE, 2000, p. 200). Em tradução livre: “Como tudo o que deriva do pecado, ele serve também para

mostrar claramente a graça divina que promete salvação aos eleitos; triunfará a graça quando o Estado divino se

sobrepor ao Estado terreno e a eternidade tenha consumido o tempo.”

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imperador sobre o gênero humano e a dos reis em seus reinos. “Cabe à

potência espiritual dar existência à potência terrestre e julgá-la se ela se torna

culpável”. Essa palavra de Hugues de Saint-Victor foi repetida pelos maiores

pensadores agostinianos do século XIII... Aos olhos da Idade Média, a Igreja

representava Deus, isto é, a verdade, a bondade, a justiça; fazer decorrer do

vigário de Jesus Cristo a autoridade dos príncipes e dos reis era afirmar que o

homem só deve obedecer a Deus. 79

A partir deste trecho, fica evidente a origem do poder político, na linha defendida por

São Paulo, notoriamente em Romanos, XIII, I (Non est potestas nisi a Deo), de tal sorte a derivar

todo poder de Deus, passando-o, em contextos terrenos, pelo papa.

Também Walter Ullmann80, ao tratar das realezas teocráticas medievais, nos lembra que

a ideia da Dei Gratia como justificação do poder aparece no oriente desde o séc. V e é utilizada

posteriormente tanto para justificar o poder religioso, como também o poder secular. Tal

princípio parece fundar-se em São Paulo, ao expor o Gratia Dei sum id quod sum (pela graça

de Deus sou o que sou)81, dando a ideia de que aquilo que somos não depende de nossos méritos,

mas da graça de Deus.

De tal conceito deriva o princípio da concessão, segundo o qual Deus concedia o poder

ao Rei e este, por sua vez, concedia direitos ao povo. Este princípio, embora de fácil

compreensão, possui fatores intrínsecos de suma importância; em especial, vale ressaltar que

“a noção de concessão excluía a ideia de direito à coisa concedida”. 82 Assim sendo, o poder

provinha de cima, num exemplo clássico de forma descendente de justificação do poder

político, mediante concessão divina. O rei, por sua vez, fazia novo ato de concessão ao conceder

direitos ao povo que, de acordo com a noção aqui apresentada, não detinha efetivamente tais

direitos.

Destaque-se ainda, a recepção das teorias aristotélicas dentro do contexto político-

ideológico medieval, notadamente influenciado pelo cristianismo. Neste tocante, Ullmann nos

ajuda a estabelecer a diferença substancial do pensamento político aristotélico e daquele cristão,

no que se refere ao fundamento do Estado:

O estado aristotélico cresce; está constituído organicamente; está sujeito aos

princípios da evolução natural e leva em consideração as diferenças,

79 LANDRY, Bernard. L’idée de chrétienté chez les scolastiques du XIIIe siècle. Paris: 1929, p. 5-6 apud

DERATHÉ, Robert. Jean-Jacques Rousseau e a ciência política de seu tempo. Trad. Natalia Maruyama. São

Paulo: Barcarolla, 2009, p. 74. 80 ULLMANN, Walter. Principios de gobierno y politica en la Edad Media. Trad. Graciela Soriano. Madrid:

Revista de Occidente, 1971, p. 121. 81 Coríntios, XV, 10. 82 ULLMANN, Walter. Principios de gobierno y politica en la Edad Media. Trad. Graciela Soriano. Madrid:

Revista de Occidente, 1971, p. 124.

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divergências e variações do desenvolvimento humano de forma que possamos

classificar como realista. Em todos os seus aspectos essenciais, a posição

cristocêntrica é precisamente o seu oposto, já que o “Estado”, isto é, a Igreja,

como união de todos os cristãos, clérigos e leigos, parte de uma fundação: foi

estabelecida por um ato consciente e deliberado de Cristo; segue as leis de seu

fundador e as implementa em sua extra-naturalidade. Em suma, o Estado

aristotélico é uma entidade natural que deriva sua essência, seu ser e seu

desenvolvimento a partir de suas próprias forças naturais; a Igreja é extra-

natural e deriva sua essência, ser e desenvolvimento a partir de sua própria

fundação divina. 83

De toda sorte, do profundo conhecimento da obra aristotélica por São Tomás resultou a

conciliação dos ensinamentos do pensador grego com os postulados cristãos. Com efeito:

Indubitavelmente, e sem a menor intenção de subestimar qualquer um de seus

contemporâneos, devemos afirmar que Tomás foi o único escritor que não só

entendeu perfeitamente o filósofo [Aristóteles], mas também, e precisamente

por isso, percebeu as potencialidades que possuía sua doutrina. Fazer que

Aristóteles fosse aceito dentro da cosmologia cristã pode ter parecido aos

profanos do tempo uma tarefa pouco menos que impossível, mas em virtude

de uma penetração nunca antes vista nos pensamentos aristotélicos e cristãos,

bem como o desdobramento de todas potencialidades que lhe deram o método

escolástico dialético, Tomás foi capaz, sem dúvida, de realizá-lo. Se trata de

uma tarefa que possui poucos paralelos na história do pensamento. 84

Tal fez com que fosse possível qualificar o tomismo de aristotelismo cristão, sendo os

entendimentos aristotélicos acerca da natureza e, no que nos afeta, da política, incorporados à

filosofia política predominante no medievo a partir do século XIII, exercendo forte influência

em virtude do aparente enquadramento dos ensinamentos aristotélicos à cosmologia cristã.

Afinal, o conceito de natureza, de expressiva importância na obra de Aristóteles, foi em larga

83 “El Estado aristotélico crece; está constituido orgánicamente; está sujeto a los principios de la evolución natural

y toma en cuenta las diferencias, divergencias y variaciones del desarollo humano de una manera que podríamos

calificar de realista. En todos sus aspectos esenciales la posición cristocéntrica es precisamente su contraria, ya

que el “Estado”, es decir, la Iglesia, en tanto que unión de todos los cristianos, clérigos y laicos, parte de una

fundación: fue estabelecida por un acto consciente y deliberado de Cristo; sigue las leyes de su fundador y las

implementa en su extranaturalidad. En resumen, el Estado aristotélico es una entidad natural que deriva su esencia,

ser y desarollo de las propias fuerzas naturales; la Iglesia es extranatural y deriva su esencia, ser y desarollo de su

propia fundación divina.” (ULLMANN, Walter. Principios de gobierno y politica en la Edad Media. Trad.

Graciela Soriano. Madrid: Revista de Occidente, 1971, p. 239. Tradução livre). 84 Indudablemente, y sin la más mínima intención de subestimar a ninguno de sus contemporáneos, hay que afirmar

que Tomás fue el único escritor que no solo comprendió perfectamente al filósofo [Aristóteles], sino que además,

y precisamente por ello, percibió las potencialidades que encerraba su doctrina. Hacer que Aristóteles duera

aceptado dentro de la cosmologia cristiana pudo haber parecido a los profanos del tempo uma tarea poco menos

que imposible, pero en virtude de una penetración nunca vista hasta entonces dentro de los pensamientos

aristotélico y Cristiano, así como del despliegue de todas las potencialidades que le brindaba el método escolástico

dialético, Tomás fue capaz, indudablemente, de llevarla a cabo. Se trata de uma tarea de la cual hay pocos paralelos

en historia del pensamiento.” (ULLMANN, Walter. Principios de gobierno y politica en la Edad Media. Trad.

Graciela Soriano. Madrid: Revista de Occidente, 1971, p. 244. Tradução livre).

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medida utilizado por São Tomás, fazendo com que fosse possível distinguir entre secundum,

contra, preter y supra naturam, bem como valer-se de tais conceitos para classificações.

Naquilo que nos afeta, Tomás absorve o entendimento aristotélico quanto à natureza

gregária do ser humano, o que pode ser evidenciado em diversas passagens da Suma

Teológica85 e, neste sentido, apresenta uma continuação do pensamento aristotélico,

conciliando-o com uma visão teocêntrica de mundo e apontando o Estado como corpo político

e moral, que não foi fundado ou criado artificialmente, mas surge a partir do instinto gregário

natural dos seres humanos.

Além das disposições da Suma Teológica, que evidenciam a natureza gregária do ser

humano, em Comentário à Política de Aristóteles, obra póstuma de São Tomás, o pensador

logo no Prólogo já estabelece que:

A cidade é o principal dentro daquilo que pode se constituir pela razão

humana, pois a ela se referem todas as comunidades humanas. Ademais, nas

artes mecânicas, os todos constituídos pelas coisas que vêm ao uso do homem

se ordenam a este como seu fim. Logo, se a ciência principal se refere ao mais

digno e perfeito, é necessário que entre todas as ciências práticas a política

seja a principal arquitetura de todas as outras, pois considera o bem último e

perfeito nos assuntos humanos. 86

No que se refere à natureza social e política do humano, em linha com o pensamento

aristotélico, tal obra não agrega grandes comentários, tratando apenas de explicar os já feitos

por Aristóteles, os quais expomos no item anterior.

Destaque-se, quanto ao pensamento político do medievo no que tange à questão em

análise, que a visão tomista acerca da natureza e do Estado, que trata de conciliar o pensamento

85 Como na I-II Parte, questão 61, art. 5: “E como o homem é, por natureza, animal político, as virtudes cardeais,

enquanto nele existentes segundo as condições próprias da sua natureza, se chama políticas, ou seja, praticando-

as o homem procede corretamente na gestão das coisas humanas. E é nesse sentido que temos tratado delas até

aqui.” (AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. Vol. 4. I Seção da II Parte. Questões 49-114. São Paulo: Loyola,

2005, p. 170). Ademais, na I-II Parte, questão 71, art. 4: “Acima foi dito que o pecado é um ato desordenado. De

haver no homem uma tríplice ordem. Primeiro, em relação à razão, cuja regra deve servir de medida para todas as

nossas ações e paixões. Depois, em relação à lei divina, cuja regra deve também dirigi-lo em tudo. E, se fosse feito

para viver só, lhe bastariam essas duas ordens. Mas, ele é naturalmente político e social, como se prova no livro I

da Política, por isso lhe é preciso uma terceira ordem pela qual se ordene aos outros homens com os quais deve

conviver.” (idem, p. 310). 86 “La ciudad es lo principal entre lo que puede constituirse por la razón humana, pues a ella se refieren todas las

comunidades humanas. Además, en las artes mecânicas, los todos constituidos por las cosas que llegan al uso del

hombre, se ordenam a éste como a su fin. Luego, si la ciencia principal se refiere a lo más digno y perfecto, es

necesario que entre todas las ciencias prácticas la política sea la principal arquitectónica de todas las otras, pues

considera el bien último y perfecto em los asuntos humanos.” (AQUINO, Tomás de; ALVERNIA, Pedro de.

Comentario a la Política de Aristóteles. Trad. Ana Mallea. Pamplona: EUNSA – Universidad de Navarra, 2001,

p. 35. Tradução livre).

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aristotélico com uma visão teocêntrica87, faz emergir no final da Idade Média um entendimento

adequado ao seu tempo, delineando o surgimento do Estado como nação, bem como evidencia

o distanciamento desta instituição com a Igreja. Neste sentido, cumpre-nos apontar a seguinte

síntese feita por Ullmann:

Portanto, o Estado não tem nenhuma relação com outro elemento que não seja

a natureza mesma. Mas, por outro lado, devemos lembrar, primeiro: que não

se origina em nenhum pacto humano; não foi criado artificialmente, nem nas

suas Origens nem no seu funcionamento atual tem algo a ver com o papado

ou qualquer outro organismo eclesiástico. Em segundo lugar: o Estado está

orientado para objetivos derivados da sua essência natural, com a qual a

teologia da natureza encontra sua plena realização, “já que sustentamos, com

o filósofo, que a natureza de uma coisa é seu fim”. Esse fim ou objetivo do

Estado é seu bem-estar (bem viver), sua autossuficiência, sua independência,

já que somente com esta orientação pode obter-se a “felicidade” do Estado e,

obviamente, de seus cidadãos. Em suma, o Estado é autônomo, independente.

Terceiro - e talvez o mais importante: o Estado constitui uma associação

humana; não se trata de uma coisa abstrata (ainda), mas de uma realidade viva,

de um ser por direito próprio, com suas próprias leis, finalidades, propósitos e

órgãos. Portanto, não pode nos surpreender que o conceito de nação seja

também um instrumento de trabalho dentro do sistema tomista: existem

nationes hominum e o direito eclesiástico dos ritos “per diversas nationes

diffunditur”. Natio, igual de natureza, sustenta Tomás, é derivado

etimologicamente de nasci, e é a partir desse momento em que o conceito

começa a adquirir um significado preciso. Se trata de um conceito que, ao

longo do tempo, expressará a identidade natural de um povo que, com base

em sua ascendência comum, língua, instituições, etc., constitui ou aspira a

constituir uma unidade natural. 88

87 Ainda que em determinadas passagens Tomás de Aquino apresente a ideia de pacto como fundamento da

legitimidade da autoridade política. Neste sentido: “Se compete ao direito de uma dada multidão [ad ius

multitudinis] se dar a si própria um rei, não é injusto [non iniuste] que o rei seja deposto ou tenha seu poder

restringido por essa mesma multidão quando, tornando-se um tirano, ele abusa de seu poder real. Não se deve

pensar que essa multidão esteja agindo de modo desleal [infideliter agere] ao depor o tirano, embora ela tenha

previamente se sujeitado a ele perpetuamente, pois ele próprio merece que o pacto com seus súditos [pactum a

subditis] não seja mantido, uma vez que, ao governar sobre a multidão, ele não agiu de modo leal como o dever

de um rei exige. (AQUINO, Tomás de. Escritos políticos de Santo Tomás de Aquino. Trad. Francisco Benjamin

de Souza Neto. Pretrópolis: Vozes, 1997, p. 140). 88 “Por tanto, el Estado no tiene ninguna relación con outro elemento que no se ala naturaliza misma. Pero, por

otra parte, debemos recordar, primero: que no se origina en ningún pacto humano; no há sido creado articialmente,

y ni en sus Orígenes ni em su funcionamento actual tiene nada que ver con el papado o con cualquier otro

organismo eclesiástico. Segundo: el Estado se orienta hacia objetivos derivados de su esencia natural, con lo que

la teologia de la naturaleza encuentra su realización plena, “ya que sostenemos, con el filósofo, que la naturaleza

de una cosa es su fin”. Ese fin u objetivo del Estado es su bienestar (bene vivere), su autosuficiencia, su

independencia, ya que solo con esta orientación puede obtenerse la “felicidad” del Estado y, por supuesto, de sus

ciudadanos. En suma, el Estado es autónomo, independiente. Tercero – y quizá lo más importante –: el Estado

constituye una asociación humana; no se trata de una cosa abstracta (todavía), sino de una realidad viviente, de un

ser en su propio derecho, con sus propias leyes, fines, propósitos y órganos. Por tanto, no puede sorprendernos que

el concepto de nación sea también un instrumento de trabajo dentro del sistema tomista: existen las nationes

hominum y el derecho eclesiástico de ritos “per diversas nationes diffunditur”. Natio, igual de naturaliza, sostiene

Tomás, se deriva etimologicamente de nasci, y es desde este momento cuando el concepto comienza a adquirir un

significado preciso. Se trata de um concepto que con el correr del tiempo llegará a expresar la identidad natural de

un Pueblo que, en base a su común ascendencia, lengua, instituciones, etc., constituye o aspira a constituir una

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Além de evidenciar o pensamento tomista como umbilicalmente ligado ao de

Aristóteles, referido excerto é bastante adequado ao tema que aqui nos propomos a trabalhar,

na medida em que trata de apontar o Estado visto por Tomás como distinto daquele que o

sobreviria – o Estado Moderno –, afastando-o da ideia de um ente artificial (como o colocará

Hobbes). Ademais, perfaz um distanciando do Estado e do papado, bem como de quaisquer

organizações eclesiásticas, iniciando um caminho de profanação do Estado, ponto que será de

suma importante no âmbito da filosofia iluminista. Neste sentido, referido dualismo aponta o

Estado como natural e a Igreja como sobrenatural, de modo que tal divisão cuida de apontar

ambos como esferas distintas, sujeitas a leis próprias. Ademais, trata de ventilar o conceito de

nação como derivado do termo nasci, apontando seu significado como atrelado à cultura dos

povos, ou melhor, à identidade nacional, traço marcante dos Estados nacionais mercantilistas,

politicamente baseados no chamado Absolutismo monárquico, que trata de evidenciar a origem

e suporte religioso/divino do poder político.

De toda sorte, cumpre destacar que as justificações de ordem teológico-religiosas

voltam com todo vigor durante o Absolutismo, em especial na figura de Luiz XIV, ao afirmar

que “a autoridade em que os reis são investidos é uma delegação de Deus. Está em Deus e não

no povo a fonte de todo poder e somente a Deus é que os reis têm de dar contas do poder que

lhes foi confiado”. 89 Esta visão ganhou relevo na era absolutista após O Patriarca ou o poder

natural dos reis de Robert Filmer, onde este defende a ideia de que Adão seria o rei do gênero

humano e que todos os monarcas seriam seus sucessores, exercendo sobre os súditos uma

espécie de poder paterno. Esta doutrina, portanto, não chega a justificar o Estado, mas apenas

uma forma específica deste, a saber, a monarquia absolutista. 90 Conforme veremos, John Locke

irá dedicar seu Primeiro Tratado sobre o Governo para rebater esta ideia, bem como dedicar

seu Segundo Tratado à apresentação de sua teoria sobre o fundamento do poder político, na

linha contratualista.

Com efeito, as justificações de ordem teológico-religiosas, de elevada pretensão e

recorrente posição histórica, minguariam à luz dos escritos do Aulfklärung (Esclarecimento),

mas teriam sua pretensão universal apropriada, ou melhor, secularizada na Idade Moderna. É o

unidad natural” (ULLMANN, Walter. Principios de gobierno y politica en la Edad Media. Trad. Graciela

Soriano. Madrid: Revista de Occidente, 1971, p. 250. Tradução livre). 89 MALUF, Sahid. Teoria geral do Estado. 26ª ed. Atual. Miguel Alfredo Malufe Neto. São Paulo: Saraiva, 2003,

p. 60-1. 90 JELLINEK, Georg. Teoría General del Estado. Trad.: Fernando de los Ríos. México: FCE, 2000, p. 207 e ss.

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que nos ensina Heller, ao concluir que durante dois mil anos se justificou, se não o Estado, ao

menos o poder político, pela necessidade de assegurar um direito natural suprapositivo.

Vejamos:

Este tão amplo sentimento jurídico do homem ocidental se seculariza na Idade

Moderna, o direito natural cristão se laiciza, mas nem o direito natural

dogmático nem o racional renunciam à pretensão de validade universal. A

mesma doutrina do Estado de Fichte em 1813, quando pretende conceber a

cristandade como o evangelho da liberdade e da igualdade, tanto em sentido

metafísico como civil, não encontra outra justificação para o esperado reino

alemão, pois entende este como ‘um verdadeiro reino do direito’ como nunca

havia existido no mundo, ou seja, ‘para a liberdade fundada na igualdade de

todos que tenham rosto humano’. Durante dois mil anos se justificou, se não

o Estado, ao menos o poder político, pela necessidade de assegurar o direito

natural suprapositivo. 91

Se assim se aceita, o poder político centralizado e personificado no Estado reveste-se de

pretensão universal a partir de um direito natural – ou racional – suprapositivo, embora cada

momento histórico tenha a ele concedido roupagens diversas. De toda sorte, as justificações

teológico-religiosas fundamentaram – não ignorando que ainda hoje fundamentem o poder

político nas remanescentes monarquias absolutistas – a existência do Estado, revestindo os

governos com a respectiva santidade. Dentro deste diapasão, o motivo do cumprimento das

ordens emanadas deste poder decorre, em última análise, da crença em referidas santidades,

seus mandamentos, códigos e leis, se mostrando, em virtude da rigidez deste vínculo, uma

justificação extremamente sólida e dificilmente questionável. Contudo, estas justificações

perderiam força no ambiente sócio-político ocidental a partir da solidificação dos paradigmas

iluministas.

2.2.2 As doutrinas contratualistas no medievo

Adentrando às relações entre as perspectivas medievais acerca do fundamento da

existência do Estado, pontua Jellinek que a visão contratualista para sustentação do Estado foi

91 “Este tan amplio sentimiento jurídico del hombre occidental se seculariza en la Edad Moderna, el derecho natural

cristiano se laiciza, pero ni el derecho natural dogmático ni el racional renuncian a la pretensión de validez

universal. La misma doctrina del Estado de Fichte em 1813, cuando pretende concebir la cristiandad como el

evangelio de la libertad y de la igualdad, tanto en sentido metafísico como civil, no encuentra outra justificación

para el ansiado reino de los alemanes, pues entende a éste como ‘un verdadeiro reino del derecho’ como nunca ha

existido en el mundo, es decir, ‘para la libertad fundada en la igualdad de todo lo que tiene rostro humano’. Durante

dos mil años se justificó, si no el Estado, al menos el poder político, por la necesidad de assegurar el derecho

natural suprapositivo.” (HELLER, Hermann. Teoría del Estado. Trad.: Luis Tobio. México, Fondo de Cultura

Económica, 2000, p. 280. Tradução livre).

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utilizada por algumas vezes na história, antes de receber uma importância significativa na Idade

Moderna, conforme veremos à frente. Na Idade Média, destaca a sua função de legitimar a força

política de modo independente do poder religioso. Vejamos:

Desde os seus primórdios, esta doutrina foi proposta para certos objetivos

políticos que precisavam ser alcançados pelo contrato. Primeiramente

encontramos a doutrina das origens contratuais do poder na época de Gregório

VII. Os gregorianos defenderam-na para mostrar que a origem do império não

era de caráter divino, e os antigregorianos, para provar a independência do

imperador em relação ao poder pontífice. Na luta das cidades contra os

príncipes, afirma-se, por parte de ambos, o caráter contratual de suas relações,

e aquela Concepção vem desempenhar um grande papel na Inglaterra do

século XII e, posteriormente, nos Estados continentais, que antes tinham suas

cortes. Mas durante a Idade Média não era o fundamento da instituição do

Estado que eles se propuseram provar, pela doutrina do contrato, mas o poder

concreto do mesmo. 92

Assim sendo, durante o início do período medieval já identificamos aplicações práticas

de visões contratualistas como forma de justificar o poder concreto do Estado, ainda que,

conforme dito, não tinham a função de justificar a instituição Estado em sentido amplo. Para

que tal teoria se desenvolvesse no sentido de se tornar base de sustentação filosófica da

instituição Estado de forma genérica e aplicável universalmente, era necessária uma teoria que

apresentasse a união contratual para fins de criação do Estado como decorrente da própria

condição humana, ou seja, inerente à natureza humana e, portanto, proveniente de uma noção

qualquer de direito natural. Como sabemos, a visão humana acerca do direito natural passou

por inúmeras formulações, até que no período moderno adquirisse a roupagem racional,

necessária para sua construção no período em comento.

Conforme o mesmo autor, existem dois fatores fundamentais que impedem a teoria

contratualista de figurar como fundamento do Estado durante a Idade Média. O primeiro deles

é a própria Igreja, que considera o fundamento do Estado condicionado por um ato de vontade

supra-humana; de onde resulta o pouco espaço para doutrinas que apresentem o Estado como

proveniente de um ato de vontade humana coletiva. O outro é a autoridade incontestável do

92 “Desde sus comienzos, esta doctrina se propuso determinados fines políticos que habían de ser alcanzados por

el contrato. Primeramente hallamos la doctrina de los orígenes contractuales del poder em la época de Gregorio

VII. Defendíanla los gregorianos para mostrar que el origen del império no era de carácter divino, y los

antigregorianos, para probar la independencia del emperador respecto del poder potificio. En la lucha de las

ciudades contra los príncipes, se afirma, por parte de ambos, el carácter contractual de sus relaciones, y aquella

Concepción llega a desempeñar un gran papel en la Inglaterra del siglo XII y posteriormente en los Estados

continentales que de antiguo tenían sus Cortes. Mas durante la Edad Media no era el fundamento de la instituición

Estado el que se propoonían probar, mediante la doctrina del contrato, sino el poder concreto del mismo.”

(JELLINEK, Georg. Teoría general del Estado. Trad. Fernando de los Ríos. México: FCE, 2000, p. 212.

Tradução livre).

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pensamento de Aristóteles no medievo, conforme a teoria da origem natural da sociedade

política. Desta forma, afirmará Jellinek com precisão que “a doutrina do contrato da Idade

Média não é a doutrina da criação primária dos Estados, mas a inserção de poder de mando nos

Estados; não é o populus que nasce mediante contrato, mas a rex”. 93

Assim sendo, será apenas a teoria contratualista de Hobbes que irá demarcar o início de

uma linhagem filosófica decorrente de uma construção racional adequada para justificar a

instituição Estado como ficção resultante da união de indivíduos, o que futuramente garantirá

ao Estado soberano a subjetividade jurídica necessária para figurar como sujeito de direito nas

relações jurídicas firmadas interna e externamente. A partir de sua teoria, bem como dos

desdobramentos que a ela sucederam, notadamente as obras de Jonh Locke e Jean-Jacques

Rousseau, tomará forma o contratualismo moderno como fonte racionalmente adequada para

justificar universalmente a instituição Estado – e não meramente o poder fático deste –, vez que

o aponta como decorrência necessária, por um ou outro motivo, para a resolução de problemas

verificados no estado de natureza, constructo mental – gerado pela supressão hipotética do

Estado –, e necessário para que as conclusões de tais teorias sejam aceitas. De toda sorte,

revestir-se-ão de caráter universal e necessário, valendo-se de preceitos de direito natural de

viés racional, típicos do início do período moderno, apontando o Estado como instituição apta

a resolver os problemas inerentes à associação voluntária de humanos.

Ademais, é certo que a roupagem moderna dada à teoria contratualista, ao constituir-se

como base do que viria ser a soberania popular, aponta o indivíduo como soberano e fonte de

toda organização política. Esta ideia, ressaltamos, não teria cabimento no ambiente político-

ideológico do medievo, em que seria apontada como herética.

Postos estes delineamentos conceituais acerca da teoria contratualista e de sua

inaplicabilidade nos períodos anteriores ao moderno, passemos agora a verificar as condições

político-filosóficas que fizeram imergir na modernidade uma necessidade de justificar o Estado

em bases racionais.

93 “la doctrina del contrato de la Edad Media no es la doctrina de la creación primaria de los Estados, sino la

inserción del poder de mando em los Estados; no es el populus quien nace mediante el contrato, sino el rex.”

(JELLINEK, Georg. Teoría general del Estado. Trad. Fernando de los Ríos. México: FCE, 2000, p. 213.

Tradução livre).

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2.3 Contexto de ruptura e o surgimento da necessidade de uma nova justificação do

Estado na modernidade

Para que seja possível compreender o surgimento de novas teorias tendentes a justificar

o poder político e jurídico no contexto da modernidade, é importante ter em conta os principais

fatores de ordem política, econômica e social que foram sendo alterados num processo – no

mínimo centenário – de germinação da cultura político-jurídica moderna. Já realizamos esta

tarefa em outro trabalho94, em que tivemos a oportunidade de expor todo o contexto de

surgimento e consolidação do modelo feudal a partir da queda do Império Romano ocidental,

bem como o processo de formação e ascensão das cidades e da burguesia dentro do sistema

feudal. Ao longo deste processo, a racionalidade do modelo produtivo das cidades prevaleceu

frente ao modelo feudal e deu escala a excedentes de produção, essenciais para a consolidação

da lógica mercante típica das cidades, a qual se expandiu de modo a ocasionar o

aburguesamento dos estamentos privilegiados, alcançando inclusive o poder central, resultando

no modelo mercantilista, que já engendrava as discussões típicas para o surgimento do

capitalismo, isto é, a busca pelo lucro por meio da ação racional e a questão da liberdade

econômica.

Considerando todo o contexto sócio-político mencionado acima, bem como o ambiente

filosófico que se formou desde a Antiguidade sobre o fundamento do poder político e da própria

existência e atuação do Estado, emerge na chamada Modernidade95 a necessidade de prover

outra justificação teórica para esta realidade recém-criada denominada Estado, tendo em vista

a nova configuração político-social em formação a partir do tensionamento da forma estamental

de organização social e da descrença nos modelos de justificação do Antigo Regime.

Com efeito, até aqui nossa análise da justificação do ponto de vista histórico centrou-se

nas figuras de Aristóteles e Santo Tomás de Aquino, o que se justifica pelo fato de ambos serem

os principais expoentes da teoria que postula a natureza social e política do ser humano e,

consequentemente, a ideia da sociedade política como necessária. Entretanto, é importante

ressaltar que Aristóteles tem em mente a Cidade-Estado grega da sua época e, do mesmo modo,

94 GAMBA, João Roberto Gorini. O processo de consolidação da propriedade como centro do ordenamento

jurídico moderno: uma leitura. [Dissertação de Mestrado]. São Paulo: PUC-SP, 2014, p. 48-81. 95 “A modernidade começa quando os homens desenvolvem o sentimento de sua própria competência, quando

começam a pensar primeiro que podem compreender a natureza e a sociedade e depois que podem controlar a

natureza e a sociedade para atingir seus próprios objetivos. Acima de tudo, a modernização implica a crença na

capacidade do homem de, através de uma ação racional, mudar seu meio ambiente físico e social. Significa a

rejeição dos obstáculos externos aos homens, sua libertação de Prometeu dos deuses, da fatalidade e do destino.”

(HUNTINGTON, Samuel P. A ordem política nas sociedades em mudança. Trad. Pinheiro de Lemos. Rio de

Janeiro: Forense-Universitária; São Paulo: Ed. USP, 1975, p. 112).

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Santo Tomás faz suas reflexões diante da sociedade medieval de sua época. Ambos, portanto,

não tiveram contato com aquilo que propriamente denominados por Estado, fenômeno

eminentemente moderno. Assim, é importante ter isto em mente para que não sejam estendidas

a ambos afirmações que sequer poderiam cunhar sem possuir qualquer compreensão acerca do

fenômeno estatal; estaríamos, neste caso, incorrendo em perigoso anacronismo.

Feitas estas ressalvas, cumpre-nos estabelecer alguns comentários quanto à

transformação do pensamento aristotélico no que tange ao fenômeno político. Assim, antes de

abordarmos o contratualismo como a doutrina moderna que cumpre esta função de justificar o

Estado em bases racionais e em perspectiva diversa daquela aristotélica, cabe estabelecer

algumas palavras sobre o contexto de seu surgimento, de tal sorte que nos seja possível sua

compreensão de forma mais adequada.

Neste sentido, temos que a partir da quebra do paradigma teocêntrico, o Antigo Regime

via-se em clara decomposição. Dentre outros fatores, como aqueles de ordem econômica e

social que levaram a este desfecho, as justificações de ordem teológico-religiosas para a

aquisição e manutenção do poder político utilizadas por este modelo já não mais lograriam êxito

em conquistar os modernos, cujo ceticismo fora exacerbado em virtude da desconstrução da

representação aristotélico-medieval do mundo, ocasionada, em especial, pelo fim do

geocentrismo, pela ruptura com a evidência sensível e pela afirmação da infinidade do universo.

Neste tocante:

O sistema heliocêntrico roubava ao homem a sua posição privilegiada.

Tornou-se como que um exilado no universo infinito. O cisma dentro da Igreja

punha em perigo e minava os alicerces do dogma cristão. Nem o mundo

religioso nem o mundo ético pareciam possuir um centro fixo. Durante o

século XVII, teólogos e filósofos acalentaram a esperança de encontrar

novamente esse centro. 96

Com efeito, as teorias teológico-religiosas justificaram – e, em menor escala, ainda

justificam – a existência do Estado, revestindo os governos com o atributo da sacralidade.

Tratou-se de uma espécie de justificação de amplo relevo histórico e base sólida, ante à natureza

do vínculo que propõe. Entretanto, desde a solidificação dos paradigmas iluministas no

ambiente sócio-político ocidental, esta justificação não surte mais efeitos.

Neste cenário, a tarefa que ficou a cargo dos filósofos políticos modernos consistia em

prover uma nova justificação teórica para a realidade política e social nascente e

96 CASSIER, Ernst. O mito do Estado. Trad.: Álvaro Cabral. São Paulo: Córdex, 2003, p. 203.

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substancialmente diferente daquela que sustentou o modelo feudal-medieval; justificando, desta

forma, o poder político em novas bases, diversas daquela do Antigo Regime em iminente

desconstrução.

O modelo contratualista é o que, neste cenário, sugeriu uma alteração do entendimento

anterior segundo o qual a sociedade política era vista como uma decorrência da natureza ou de

doutrinas religiosas e exaltou a participação do indivíduo como centro do ordenamento, e, por

consequência, como fonte do poder político. Dentro deste diapasão, abriu perspectivas e

estabeleceu com base na razão típica dos modernos uma justificação teórica para as instituições

que se mostravam mais interessantes à nova realidade, esta mesma em fase aguda de

transformação em virtude, em especial, do modelo produtivo em transição. 97

Conforme iremos demonstrar, os propagadores desta teoria consideraram o indivíduo

como anterior ao corpo social do qual faz parte, o que perfaz uma visão substancialmente

distinta daquela aristotélica vista anteriormente, ocasionando efeitos teóricos e práticos que

cuidaram de alterar significativamente a forma de convívio social e de organização social e

política das sociedades ocidentais modernas.

Reafirme-se a colocação do contratualismo, em nossa conjectura, como justificação do

Estado e não explicação de sua origem, como apontam alguns. Neste sentido, é clara a lição de

Ernst Cassier:

Essa visão racional não foi, de forma alguma, considerada uma visão histórica.

Somente uns poucos pensadores tiveram a ingenuidade de concluir que a

“origem” do Estado, como a explicavam as teorias do contrato social, nos dava

uma perspectiva dos seus começos. Não podemos, obviamente, assinalar o

momento exato da história em que pela primeira vez apareceu o Estado. Mas

essa falta de conhecimento histórico não interessa aos teóricos do Estado-

contrato. O problema deles é analítico, e não histórico. Eles compreendem o

termo “origem” num sentido lógico, e não cronológico. O que eles procuram

não é o começo, mas o “princípio” do Estado – a sua raison d’être. 98

Tais palavras alinham-se com o já dito neste trabalho, no sentido de apontar o

contratualismo como princípio filosófico do Estado moderno e, portanto, nada se relaciona com

sua origem fática. Destaque-se, neste assunto, a visão de Nietzsche quanto ao argumento

contratualista para o “surgimento” do Estado:

Utilizei a palavra “Estado”: está claro a que me refiro – algum bando de bestas

louras, uma raça de conquistadores e senhores, que, organizada guerreiramente

97 Referimo-nos à transição do feudalismo ao capitalismo. 98 CASSIER, Ernst. O mito do Estado. Trad.: Álvaro Cabral. São Paulo: Córdex, 2003, p. 206-207

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e com força para organizar, sem hesitação lança suas garras terríveis sobre uma

população talvez imensamente superior em número, mas ainda informe e

nômade. Deste modo começa a existir o “Estado” na terra: penso haver-se

acabado aquele sentimentalismo que o fazia começar com um “contrato”. Quem

pode dar ordens, quem por natureza é “senhor”, quem é violento em atos e

gestos – que tem a ver com contratos! 99

De toda forma, a teoria da força, posta nestes termos por Nietzsche, é talvez de grande

valia para a explicação do Estado em termos fáticos, mas não para sua justificação filosófica, a

qual nos dedicamos.

Para que desde já se justifique o recorte realizado, é necessário apontar que a teoria da

origem da sociedade humana como convencional remonta às especulações filosóficas dos

sofistas. Quanto à Idade Média, Jellinek ressalta que a teoria da origem contratual – tal como

foi abordada pelos modernos – ao apontar o indivíduo como soberano e fonte de todo poder

seria certamente taxada como herética durante o medievo, conforme os apontamentos feitos

acima. No período subsequente, pensadores100 buscaram justificar o Estado a partir de uma

origem convencional. De toda sorte, embora não se possa ignorar a possível influência de tais

escolas e pensadores, a teoria só ganharia relevo a partir de Hobbes, primeiro sistematizador do

modelo.

Assim sendo, tendo feito nos capítulos anteriores uma breve exposição acerca das

construções teóricas que circundaram e antecederam o surgimento do contratualismo moderno,

trataremos no capítulo seguinte de abordar de forma analítica os principais representantes do

contratualismo moderno, para podermos compreender as minúcias de suas construções teóricas,

bem como os pontos comuns e divergentes entre tais pensadores, podendo assim verificar quais

teorias foram incorporadas às formas de vida e aos diplomas jurídicos do período moderno,

sendo-nos possível ainda observar aqueles institutos que, inobstante o ambiente que

circunscrevia seu surgimento ser outro, persistem sólidos e operantes até o presente, norteando

a conduta e a construção de conceitos jurídico-políticos contemporâneos.

99 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da moral: uma polêmica. Trad.: Paulo César de Souza. São

Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 68. 100 Jellinek nos aponta Richard Hooker, Johannes Althusius e Hugo Grocio, embora afirme que a histórica

científica da teoria contratualista começa em Hobbes. (JELLINEK, Georg. Teoría General del Estado. Trad.:

Fernando de los Ríos. México: FCE, 2000, p. 213-214).

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3 AS TEORIAS CONTRATUALISTAS MODERNAS

3.1 Thomas Hobbes e as bases do contratualismo moderno

3.1.1 Aspectos metodológicos e ruptura com a física aristotélica

Buscaremos neste item expor o contratualismo de Thomas Hobbes (1588-1679), o qual

tratou de apresentar os paradigmas para a abordagem do fenômeno político na modernidade,

inobstante o fato da associação voluntária como formadora do corpo social já aparecer na

tradição medieval tardia, notadamente em Hugo Grotius. 101 Entretanto, será Hobbes o primeiro

sistematizador do contratualismo moderno, sendo inclusive apontado por Bobbio102 como

primeiro jusnaturalista moderno, em virtude das características de sua filosofia. Neste sentido,

centramos nossa análise nas questões políticas e morais da obra hobbesiana naquilo que afeta a

justificação filosófica da sociedade política, de tal sorte que iremos, por óbvio, deixar de

analisar pormenorizadamente todas as questões da obra do pensador que não afetam

diretamente o entendimento de sua visão acerca dos fundamentos políticos e morais da

sociedade política. Ao final, buscaremos evidenciar os motivos pelos quais o modelo político

hobbesiano não serviu para a formulação das bases da democracia liberal em ascensão.

Hobbes escreve Elements of law (1640) e De Cive (1642), notadamente em busca de

romper com o principal postulado dos ensinamentos políticos aristotélicos, que apontava para

a natureza gregária do ser humano e necessária da sociedade política, conforme analisamos

acima. Nesta linha, Hobbes estabelece, logo no Prefácio de De Cive, aspectos metodológicos

relevantes para compreender seu rompimento com perspectivas aristotélicas e para a

compreensão de sua filosofia:

Quanto ao método que empreguei, entendi que não basta utilizar um estilo

claro e evidente no assunto que tenho a tratar, mas que é preciso – também –

principar pelo assunto mesmo do governo civil, e daí remontar até sua geração,

e à forma que assume, e ao primeiro início da justiça; pois tudo se compreende

melhor através de suas causas constitutivas. Pois, assim como um relógio, ou

em outro pequeno autômato da mesma espécie, a figura e o movimento das

rodas não podem ser bem compreendidos, a não ser que o desmontemos e

101 Destaca-se a visão de Grotius sobre o direito natural: “id quod Gentium omnium aut multaum voluntate vim

obligandi accpit (o que por vontade de todas ou de muitas gentes assume força de obrigação)” (GROTIUS, Hugo.

De iure belli ac pacis, Livro I, cap. I, § XIV, 1, p. 30 apud FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno:

nascimento e crise do Estado nacional. Trad. Carlo Coccioli, Márcio Lauria Filho. São Paulo: Martins Fontes,

2002, p. 17-18). 102 BOBBIO, Norberto. Thomas Hobbes. Trad.: Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1991, p. 134-

137.

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consideramos cada parte em separado – da mesma forma, para fazer uma

investigação mais aprofundada sobre os direitos dos Estados e os deveres dos

súditos, faz-se necessário – não, não chego a falar em desmontá-los, mas, pelo

menos, que sejam considerados como se estivessem dissolvidos, ou seja: que

nós compreendamos corretamente o que é a qualidade da natureza humana, e

em que matérias ela é e em quais não é adequada para estabelecer um governo

civil; e como devem dispor-se entre si os homens que pretendem formar um

Estado sobre bons alicerces. 103

Tais palavras nos remetem invariavelmente à visão mecanicista acerca da sociedade,

paradigma filosófico essencial para compreensão das questões políticas na modernidade e que

amiúde se vale do exemplo do relógio para compreender a relação do todo com as partes ou,

em termos políticos, do indivíduo com a sociedade. No mesmo sentido vão as colocações

iniciais do Leviatã:

Pois vendo que a vida não é mais do que um movimento dos membros, cujo

início ocorre em alguma parte principal interna, por que não poderíamos dizer

que todos os autômatos (máquinas que se movem a si mesmas por meio de

molas, tal como um relógio) possuem uma vida artificial? Pois o que é o

coração, senão uma mola, e os nervos, senão outras tantas cordas; e as juntas,

senão outras tantas todas, imprimindo movimento ao corpo inteiro, tal como

foi projetado pelo Artífice? E a arte vai mais longe ainda, imitando aquela

criatura racional, a mais excelente obra da natureza, o Homem. Porque pela

arte é criado aquele grande Leviatã a que se chama Estado, ou Cidade (em

latim Civitas), que não é senão um homem artificial, embora de maior estatura

e força do que o homem natural, para cuja proteção e defesa foi projetado. E

no qual a soberania é uma alma artificial, pois dá vida e movimento ao corpo

inteiro; (...) Por último, os pactos e convenções mediante os quais as partes

deste Corpo Político foram criadas, reunias e unificadas assemelham-se

àquele Fiat, ao Façamos o homem proferido por Deus na Criação. 104

Anote-se daí a importância da questão do movimento dos corpos para a filosofia

hobbesiana a partir de outra ruptura com a visão de Aristóteles; afinal, a física aristotélica vê

no movimento a atualização daquilo que já é em potência, alinhando-se com a concepção

teleológica do pensador grego, pois verifica-se um movimento com um telos intrínseco

representando, assim, a passagem da potência ao ato. Aqui, em Hobbes, a natureza é mecânica,

já que este entende movimento como mudança de lugar (“privação de um lugar e aquisição de

outro”105). Neste sentido, cumpre destacar as afirmações contidas no Capítulo II de Leviatã:

103 HOBBES, Thomas. Do cidadão. Trad. Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 15-6. 104 HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad.: João Paulo

Monteiro e Maria Beatriz da Silva. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores), 1979, p. 5. 105 HOBBES, Thomas. Os elementos da lei natural e política. Trad. Bruno Simões. São Paulo: WMF Martins

Fontes, 2010, p. 203.

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Quando um corpo está em movimento, move-se eternamente (a menos que

algo o impeça), e seja o que for que o faça, não o pode extinguir totalmente

num só instante, mas apenas com o tempo e gradualmente, como vemos que

acontece com a água, pois, muito embora o vento deixe de soprar, as ondas

continuam a rolar durante muito tempo ainda. 106

Trata-se, assim, de uma outra visão acerca da natureza, de viés mecânico, em que a

questão da causa diferenciará substancialmente daquela visão aristotélica. Para o pensador

grego, embora a causa eficiente seja necessária, a principal causa do movimento é a causa final

(decorrência da visão teleológica manifesta em sua filosofia), já para Hobbes, o que causa o

movimento de um corpo é outro corpo – a partir da ideia da inércia –, de tal sorte que a causa

eficiente é suficiente para explicar seu movimento. Neste sentido:

...as causas das coisas universais (daquelas, pelo menos, que têm uma causa)

são manifestas por si mesmas ou, como se diz, conhecidas por natureza; de

modo que não necessitam de nenhum método, já que todas elas possuem

apenas uma só causa universal, qual seja, o movimento. 107

A suplantação de uma natureza teleológica por uma mecânica retira-lhe causas finais e

a deixa, em certo sentido, vazia. Há aqui, conforme brevemente exposto ao final do capítulo

anterior, a desconstrução da representação aristotélico-medieval do mundo, de relevante

impacto para as formulações filosóficas do período. Apenas a título de contextualização, em

1637, Descartes publica seu Discurso do Método e, em 1641, as Meditações, com as Objeções

de Hobbes.

Destaque-se, ainda, a utilização, em matéria de política, do chamado método galilaico,

consistente em resolver o objeto dado em seus elementos constitutivos para o compor

novamente em sua complexidade, já que “é necessário conhecer as coisas a serem compostas

antes que possamos conhecer o todo composto”. 108 Neste tocante, em De Corpore, apresenta-

nos as questões metodológicas aplicáveis à filosofia109, estabelecendo as noções de método

compositivo (ou sintético) e método resolutivo (ou analítico), com vistas a dar cientificidade à

106 HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad.: João Paulo

Monteiro e Maria Beatriz da Silva. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores), 1979, p. 11. 107 HOBBES, Thomas. Os elementos da lei natural e política. Trad. Bruno Simões. São Paulo: WMF Martins

Fontes, 2010, p. 202. 108 HOBBES, Thomas. Os elementos da lei natural e política. Trad. Bruno Simões. São Paulo: WMF Martins

Fontes, 2010, p. 200. 109 “Filosofia é o conhecimento que adquirimos, por reto raciocínio, das aparências, ou dos efeitos aparentes, a

partir do conhecimento que temos de alguma possível produção ou geração das aparências; e de tal produção real

ou possível a partir do conhecimento que temos dos efeitos. No estudo da filosofia, portanto, o método é o caminho

mais curto para a descoberta dos efeitos por meio de suas causas conhecidas, ou para a descoberta das causas por

meio de seus efeitos conhecidos.” (HOBBES, Thomas. Os elementos da lei natural e política. Trad. Bruno

Simões. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 198).

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política. Neste tocante, concede maior importância ao método sintético, o qual requer que a

investigação sobre filosofia moral passe antes pela própria física110, vez que a vê como

movimentos da mente.

3.1.2 A estrutura do argumento contratualista hobbesiano

Já mesmo no Prefácio de De Cive, Hobbes irá expor de forma simples e resumida a

estrutura básica para a compreensão de seu sistema filosófico:

Tendo assim deitado esses alicerces, demonstro em primeiro lugar que a

condição dos homens fora da sociedade civil (condição esta que podemos

adequadamente chamar de estado de natureza) nada mais é que uma simples

guerra de todos contra todos, na qual todos os homens têm igual direito a todas

as coisas; e, a seguir, que todos os homens, tão cedo chegam a compreender

essa odiosa condição, desejam (até porque a natureza a tanto os compele)

libertar-se de tal miséria. Mas isso não se pode conseguir a não ser que,

mediante um pacto, eles abdiquem daquele direito que têm a todas as coisas.

Ademais, declaro que confirmo em que consiste a natureza dos pactos, como

e por que meios o direito de um pode ser transferido a outro a fim de validar

os pactos; e que direitos, e a quem devem necessariamente ser concedidos para

se estabelecer a paz. 111

Aí consta a estrutura básica de compreensão do contratualismo hobbesiano, o qual vê a

natureza humana como belicosa (guerra de todos contra todos); a igualdade de direitos entre os

indivíduos no chamado estado de natureza; e a superveniência de um pacto abdicatório de sua

condição natural para o estabelecimento da paz. Adentrando nos aspectos específicos desta

formulação, cumpre-nos destacar a ideia de igualdade como pressuposto de sua teoria. Neste

sentido, em Leviatã, afirma que “a natureza fez os homens tão iguais, quanto às faculdades do

corpo e do espírito”; apontando, com isso, a igualdade natural dos seres humanos como

pressuposto de sua construção teórica. Neste sentido, no excerto abaixo estabelece com clareza

110 No mesmo Prefácio, Hobbes explica que, inicialmente, dividia seus estudos em três partes, conforme o grau,

da seguinte forma: “...na primeira trataria do corpo, e de suas propriedades gerais; na segunda, do homem e de

suas faculdades e afecções especiais; na terceira, do governo civil e dos deveres dos súditos. De modo que a

primeira parte conteria a filosofia primeira, e certos elementos de física; nela consideraríamos as razões de tempo,

lugar, causa, poder, relação, proporção, quantidade, figura e movimento. Na segunda discutiríamos a imaginação,

a memória, o intelecto, o raciocínio, o apetite, a vontade, o bem e o mal, o que é honesto ou desonesto, e coisas

parecidas. O que a última parte aborda é o que acabo de vos expor.” (HOBBES, Thomas. Do cidadão. Trad.

Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 20). Neste sentido, aponta a primeira parte de seus

estudos como dedicados a questões físicas, algo que determinou a forma como Hobbes verificou ser a relação entre

indivíduos e destes com o corpo político. Cumpre destacar que tal ordem deixou de ser aplicada em virtude da

conjuntura político-social do momento em que escrevia, que o fez colocar as questões sociais – inicialmente em

terceiro lugar – em primeiro plano. 111 HOBBES, Thomas. Do cidadão. Trad. Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 18.

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sua crítica ferrenha aos escritos políticos de Aristóteles que, como vimos, fixam-se sobre uma

ideia da desigualdade natural:

A questão de saber quem é o melhor só pode ser determinada no estado da

sociedade civil e política, embora seja erroneamente considerada uma questão

de natureza, não apenas pelos ignorantes, que pensam que o sangue de um é

por natureza melhor do que o de outro, mas também ele (Aristóteles), cujas

opiniões têm até hoje nestas regiões mais autoridade do que os escritos de

qualquer outro homem. Pois ele imputa tamanha diferença natural entre os

poderes dos homens, que não hesita em estabelecer, como fundamento de toda

a sua política, que alguns homens são por natureza dignos de governar,

enquanto outros deveriam por natureza servir. 112

Solidifica, com isso, a igualdade como condição natural dos humanos. 113 Referida

situação de igualdade é verificada no estado de natureza humano, sendo este aquele em que “os

homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a todos em respeito” e, durante este

período, “eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de

todos os homens contra todos os homens.” 114 O impulso do egoísmo produziria o do temor e

este, por sua vez, faria nascer o desejo pela paz. Esta paz, como se sabe, somente poderia ser

alcançada mediante uma união via contrato, cujo conteúdo seria a submissão de todos à vontade

de um homem ou de uma assembleia de homens. 115

O estado de natureza mencionado é aquele que se caracteriza pela ausência do Estado e,

segundo a concepção hobbesiana, também da justiça; afinal “onde não há Estado nada pode ser

injusto. De modo que a natureza da justiça consiste no cumprimento de pactos válidos, mas a

validade dos pactos só começa com a instituição de um poder civil suficiente para obrigar os

112 HOBBES, Thomas. Os elementos da lei natural e política. Trad. Bruno Simões. São Paulo: WMF Martins

Fontes, 2010, p. 84. 113 Outra passagem sobre igualdade pode ser apontada: “Primeiro, se considerarmos como são pequenas as

diferenças de força ou de conhecimento entre os homens maduros e como é muito fácil para aquele que é mais

fraco, em força ou inteligência, ou em ambas, destruir inteiramente o poder do mais forte – uma vez que se

necessita de pouca força para tirar a vida de um homem –, podemos concluir que os homens, considerados na mera

natureza, deveriam reconhecer-se em situação de igualdade. (HOBBES, Thomas. Os elementos da lei natural e

política. Trad. Bruno Simões. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 67-8) 114 HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad.: João Paulo

Monteiro e Maria Beatriz da Silva. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores), 1979, p. 75. 115 Referindo-se à existência social de outras criaturas vivas, como abelhas e formigas, em contraposição à

experiência humana, Hobbes elenca inúmeros fatores diferenciadores para, ao final, atestar que “o acordo vigente

entre essas criaturas é natural, ao passo que o dos homens surge apenas através de um pacto, isto é, artificialmente.

Portanto, não é de admirar que seja necessária alguma coisa mais, além de um pacto, para tornar constante e

duradouro seu acordo: ou seja, um poder comum que os mantenha em respeito, e que dirija suas ações no sentido

do bem comum.” (HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil.

Trad.: João Paulo Monteiro e Maria Beatriz da Silva. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores), 1979, p.

105).

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homens a cumpri-los.” 116 Neste ponto, Hobbes estabelece não só os fundamentos para a teoria

contratualista moderna, mas também delineia o modelo liberal dele decorrente, uma vez que

reduz a função do Estado ao poder coercitivo voltado ao cumprimento dos pactos válidos.

Neste sentido, estabelecerá em De Cive que “a origem de todas as grandes e duradouras

sociedades não provém da boa vontade recíproca que os homens tivessem uns para com os

outros, mas do medo recíproco que uns tinham dos outros”. 117 Este medo, segundo o próprio

Hobbes, deriva da própria condição de igualdade natural dos homens, bem como da “mútua

vontade de se ferirem”. 118

Neste sentido, no que concerne à relação das teorias hobbesianas com aquela de

Aristóteles já apresentada, podemos concluir que há substancial diferença, em especial naquilo

que nos afeta, ou seja, no problema do fundamento da sociabilidade humana. Para Aristóteles,

o homem só pode alcançar aquilo que possui em potencial e ser verdadeiramente humano na

pólis que, conforme sua teoria, é um fim em si mesma e figura como autárquica. Para Hobbes,

a sociedade política parece como mero meio para viabilizar a autoconservação. Desta tese surge

a ideia de que o indivíduo é anterior e formador da sociedade política que resulta de um pacto

associativo. Neste sentido, o ser humano aparece como tal antes e independentemente da

sociedade política, o que Aristóteles não pode aceitar.

Em contrapartida, Hobbes identifica o desejo primário, ou o impulso natural,

à obtenção de benefícios próprios, sem fazer coincidir por necessidade natural

o bem próprio com o bem comum ou com a vida na comunidade política. Há

uma relação instrumental entre a busca do benefício próprio e a vida em

sociedade. Isso lhe permite afirmar que a cidade é artificial, e não natural,

porque ela é uma opção, entre outras, para que se realize o desejo primário.

(...) Isso porque o desejo primário ou o impulso natural dos homens não visa

à vida social, mas à obtenção de benefícios individuais que, em princípio,

dependendo das circunstâncias e dos agentes envolvidos podem ser obtidos

por meio da constituição da cidade, da dominação ou até mesmo da guerra. 119

O argumento hobbesiano, desta forma, tenderá a relacionar a formação da sociedade

política com o acaso:

o que ocorre por natureza (procurar o benefício próprio) não é objeto de

escolha e independe das circunstâncias, ao passo que aquilo que ocorre por

116 HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad.: João Paulo

Monteiro e Maria Beatriz da Silva. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores), 1979, p. 86. 117 HOBBES, Thomas. Do cidadão. Trad. Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 32. 118 HOBBES, Thomas. Do cidadão. Trad. Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 33. 119 FRATESCHI, YARA. A física da política: Hobbes contra Aristóteles. Campinas-SP: UNICAMP, 2008, p. 30-

31.

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acaso (a reunião com outros ou a associação civil) é objeto de uma escolha

feita no contexto de determinadas circunstâncias tendo em vista algum

benefício. 120

E nas palavras do próprio Hobbes:

Pois aqueles que perscrutarem com maior precisão as causas pelas quais os

homens se reúnem, e se deleitam uns na companhia dos outros, facilmente hão

de notar que isto não acontece porque naturalmente não poderia suceder de

outro modo, mas por acidente. (...) Portanto, não procuramos companhia

naturalmente e só por si mesma, mas para dela recebermos alguma honra ou

proveito; estes nós desejamos primariamente, aquela só secundariamente. 121

Assim sendo, é o princípio do benefício próprio e as dadas circunstâncias que determina

se haverá a sociedade e civil ou não; sendo ela, portanto, resultante de um acaso e não de um

mandamento da natureza. Desta forma, Hobbes acaba por constatar que a sociedade política é

um meio para a autopreservação e não um fim em si mesma, como via Aristóteles.

Ademais, resta claro que a abordagem do problema da sociabilidade humana feita por

Hobbes coloca a cidade como uma consequência de um pacto firmado pelos homens em virtude

da fragilidade e da ameaça permanente do estado de natureza e, portanto, coloca a cidade como

produto humano, pressupondo assim a anterioridade do indivíduo. Trata-se, portanto, de uma

inversão da lógica aristotélica, para a qual a cidade é anterior ao homem.

Aristóteles, portanto, apresenta uma ideia teleológica segundo a qual tudo o que se move

o faz naturalmente rumo ao seu fim, sua essência natural. Assim sendo, os corpos quando caem

perfazem um movimento naturalmente necessário, tal como os homens a se unirem em

sociedade. Em Hobbes, a ideia é essencialmente outra, já que não há qualquer fim

predeterminado e inexiste qualquer essência em potencial. O movimento, portanto, é ao acaso

e determinado conforme os interesses dos homens se deem em cada momento e circunstância.

Mecanicamente, conforme já mencionado, o movimento se dá a partir de um movimento de

outro corpo, sem buscar, contudo, qualquer finalidade essencial. Não há, então, a “causa final”

aristotélica, mas tão somente causas eficientes que fazem o movimento do corpo. A transição

de uma lógica teleológica para uma lógica mecânica extingue a ideia de uma causa final e

esvazia axiologicamente a concepção da natureza humana, de que resulta uma das mais

importantes mudanças do ponto de vista da filosofia moral e política, posto que introduz a

incerteza gerada pelo movimento.

120 FRATESCHI, YARA. A física da política: Hobbes contra Aristóteles. Campinas-SP: UNICAMP, 2008, p. 34. 121 HOBBES, Thomas. Do cidadão. Trad. Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 29.

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De toda sorte, cumpre-nos apontar que o princípio hobbesiano de que o ser humano é

guiado pela ideia do benefício próprio decorre em sua visão, curiosamente, de um impulso

natural, “pois todo homem é desejoso do que é bom para ele, e foge do que é mau, mas acima

de tudo do maior dentre os males naturais, que é a morte; e isso ele faz por um certo impulso

da natureza, com tanta certeza como uma pedra cai”. 122 Desta forma, embora evidente as

distinções entre Hobbes e Aristóteles, é relevante compreender que Hobbes extrai de um

impulso natural o princípio da autopreservação, determinante para a celebração do pacto

fundador da sociedade política. Neste sentido, segue-se importante síntese sobre referido

princípio:

O que o homem deseja primariamente é a obtenção daquilo que julga benéfico

para si mesmo. Por natureza, não tende necessariamente a se reunir com os

outros, mas tão-somente a procurar o que julga ser-lhe benéfico. A aplicação

da teoria mecânica do movimento na investigação do comportamento humano

resulta no estabelecimento do princípio do benefício próprio e na negação do

princípio aristotélico do zoon politikon: 1) como mostra o estudo do

comportamento dos corpos em geral, todo movimento é inercial e tende a

persistir; 2) logo, uma vez que a vida humana é movimento, o homem tende a

persistir, isto é, a perpetuar-se em movimento, pois parar é morrer; 3) desse

modo, o que norteia seu comportamento é esse desejo de persistir; 4) de onde

se conclui que ele deseja primariamente a preservação da própria vida e a

realização de seus desejos, pois é nisso que consiste a continuidade de seu

movimento; 5) portanto, o que o homem deseja primariamente é a obtenção

daquilo que julga benéfico para si mesmo; 6) de onde se conclui, finalmente,

que, por natureza, o homem não tende a se reunir com outros, mas a procurar

o que julga ser bom para ele. 123

Assim sendo, em razão do princípio do benefício próprio, o objetivo humano primário

não é se associar aos demais, mas garantir sua sobrevivência e realizar seus desejos; ao perquiri-

los, poderá se associar ou não aos demais seres humanos, de modo a constituir uma sociedade

política; esta, na visão hobbesiana, e conforme já apontado acima, apresenta-se como um meio

artificialmente erigido para a satisfação daquilo que é realmente natural no ser humano, ou seja,

a busca por sobrevivência.

E na medida em que a necessidade da natureza faz os homens quererem e

desejarem o que é bom para si mesmos (bonum sibi) e evitarem o que é danoso

– sobretudo este terrível inimigo da natureza, a morte, de quem esperamos

tanto a perda de todo poder, como também as maiores dores corporais que

acompanham essa perda –, não é contra a razão que um homem faça tudo o

que puder para preservar a sua própria existência e o seu próprio corpo da

morte e da dor. (...) É, portanto, um direito de natureza que cada homem faça

122 HOBBES, Thomas. Do cidadão. Trad. Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 35. 123 FRATESCHI, YARA. A física da política: Hobbes contra Aristóteles. Campinas-SP: UNICAMP, 2008, p. 83.

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tudo o que puder para preservar a sua própria vida e os membros do seu corpo. 124

Destas afirmações seguem-se as já conhecidas consequências: sendo que a natureza deu

tudo a todos (Natura dedit omnia omnibus), todos têm direito a tudo e a ausência de uma

autoridade capaz de regular esta situação faz com que o estado de natureza de Hobbes seja um

estado de guerra. Diante disso, resulta-se um preceito da lei natural que é a privação dos direitos:

Portanto, um preceito da lei de natureza é que todo homem se prive do direito

que ele tem, por natureza, a todas as coisas. Pois quando vários homens têm

direito não só a todas as coisas, mas a outras pessoas, e põem isso em prática,

disso resulta, de uma parte, invasão, e, de outra, resistência, o que corresponde

à guerra; e por isso tal situação é contrária à lei de natureza, cujo cerne consiste

em fazer paz. 125

Outra formulação deste segundo preceito da natureza aparece em Leviatã com a seguinte

redação:

Que um homem concorde, quando outros também o façam, e na medida em

que tal considere necessário para a paz e para a defesa de si mesmo, em

renunciar a seu direito a todas as coisas, contentando-se, em relação aos outros

homens, com a mesma liberdade que aos outros homens permite em relação a

si mesmo. 126

Inobstante tal afirmação, Hobbes127 dirá que alguns direitos deverão ser preservados, tal

como o direito de defender o seu próprio corpo, bem como o de usar o fogo, a água, o ar livre

e a um lugar para viver, coisas que considera necessárias à vida. A partir deste preceito, outro

importante se estabelecerá com o seguinte conteúdo: “que todo homem está obrigado a manter

e cumprir os pactos que faz.” 128

124 HOBBES, Thomas. Os elementos da lei natural e política. Trad. Bruno Simões. São Paulo: WMF Martins

Fontes, 2010, p. 69. A afirmação mais completa e conhecida sobre tal direito em Hobbes encontra-se logo no início

do capítulo XIV do Leviatã: “O direito de natureza, a que os autores geralmente chama jus naturale, é a liberdade

que cada homem possui de usar seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação de sua própria

natureza, ou seja, de sua vida; e consequentemente de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe

indiquem como meios adequados a esse fim.” (HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um

estado eclesiástico e civil. Trad.: João Paulo Monteiro e Maria Beatriz da Silva. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural

(Os Pensadores), 1979, p. 78). 125 HOBBES, Thomas. Os elementos da lei natural e política. Trad. Bruno Simões. São Paulo: WMF Martins

Fontes, 2010, p. 72. 126 HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad.: João Paulo

Monteiro e Maria Beatriz da Silva. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores), 1979, p. 79. 127 HOBBES, Thomas. Os elementos da lei natural e política. Trad. Bruno Simões. São Paulo: WMF Martins

Fontes, 2010, p. 85. 128 HOBBES, Thomas. Os elementos da lei natural e política. Trad. Bruno Simões. São Paulo: WMF Martins

Fontes, 2010, p. 78. O mesmo argumento aparece em Leviatã, XV.

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À ruptura do pacto chamará injúria, a qual alinha-se à injustiça pelo não cumprimento

do pacto celebrado; também chamado por Hobbes de violação de fé129, vez que o pensador vê

a celebração do pacto como promessa de seu cumprimento futuro. De outro lado, com o

cumprimento do pacto, estabelece-se a situação de paz, na qual, destaque-se, as coisas que não

poderão ser divididas serão usadas em comum e no caso daquelas que não podem ser divididas

e nem usadas em comum, o critério será o de sorteio ou uso alternado. Destaque-se, ainda, que

a celebração do pacto se apresenta como ato voluntário do indivíduo e, tal como todos os atos

voluntários, possui como objetivo algum bem para o indivíduo. 130

Desta forma, em estrutura simplificada, a teoria hobbesiana coloca que 1) o direito de

natureza estabelece como regra fundamental que cada um preserve a sua vida; 2) todos os

homens têm direito a todas as coisas; 3) o homem deve se esforçar pela paz e por sua busca; 4)

para alcançar o objetivo estabelecido no item 3, os homens devem renunciar a seu direito a

todas as coisas (conforme item 2); e 5) que o contrato é o meio para operacionalizar a

transferência mútua de direitos e, portanto, efetivar a renúncia prevista no item 4 acima.

Diante desta estrutura de argumentação, apresentará no capítulo XIV de Leviatã131 sua

teoria dos contratos; esta, em apertada síntese, apresenta as seguintes características: 1) a

transferência de direitos via contrato se dá por ato voluntário; 2) todo ato voluntário objetiva o

bem do indivíduo que o faz; 3) o cumprimento do contrato chama-se observância da promessa

ou fé; 4) a falta de cumprimento (voluntária) do contrato chama-se violação de fé; 5) os sinais

do contrato são expressos ou por inferência; 6) as inferências apresentam-se pelo tempo verbal

das palavras, sendo aquelas no futuro relacionadas ao que chama promessa; 7) a promessa é

equivalente a um pacto e, portanto, é obrigatória; 8) quem cumpre sua parte do contrato merece

o cumprimento da outra parte, tendo-o como devido; 9) no estado de natureza, o cumprimento

de um contrato por um dos contratantes não garantirá o cumprimento pela outra parte, vez que

as palavras são frágeis ante à ambição e outras paixões humanas; 10) no estado civil, com o

estabelecimento de um poder, há autoridade para coagir aqueles que violaram sua fé e, portanto,

o cumprimento torna-se obrigatório; 11) é impossível fazer pactos com animais ou com Deus;

12) o objeto de um pacto é sempre sujeito à deliberação; 13) prometer o que sabe ser impossível

129 HOBBES, Thomas. Os elementos da lei natural e política. Trad. Bruno Simões. São Paulo: WMF Martins

Fontes, 2010, p. 80. 130 HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad.: João Paulo

Monteiro e Maria Beatriz da Silva. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores), 1979, p. 80. 131 HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad.: João Paulo

Monteiro e Maria Beatriz da Silva. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores), 1979, p. 78-85.

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não é um pacto; 14) a liberação do pacto ocorre em duas situações: cumprindo ou sendo

perdoado; 15) os pactos aceitos por medo, na condição de natureza, são obrigatórios; 16) a

causa do medo só torna inválido um contrato quando superveniente a este; 17) um pacto anterior

anula outro posterior, sendo portanto a última promessa nula; e 18) um pacto que o indivíduo

se compromete a não se defender da força pela força é nulo. Destaque-se, por fim, o preceito

natural de grande relevância exposto acima, qual seja, aquele segundo o qual os homens devem

cumprir os pactos que celebrarem.

Dentre tais características, destacamos a de número 15, que se apresenta como

necessária para que a ideia do pacto social fundador da sociedade tenha validade, bem como as

de número 9 e 10 que atestam pela superioridade do estado civil ante ao estado de natureza no

que tange à coação como forma de vincular o cumprimento dos contratos. Ademais, o

estabelecido nos itens 1 e 2 (aspecto voluntário do pacto) e 12 (todo objeto de pacto é

deliberado) apresentam-se como formas de legitimar as condições posteriores à celebração do

pacto, vez que decorrem de uma situação deliberada e voluntariamente acordada. Tal pacto,

ressalte-se, contempla os seguintes dizeres de um indivíduo para todos os outros: “Cedo e

transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta assembleia de

homens, com a condição de transferires a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante

todas as suas ações”132, formando assim o Estado, o grande Leviatã, cuja essência é: “Uma

pessoa de cujos atos uma grande multidão, mediante pactos recíprocos uns com os outros, foi

instituída por cada um como autora, de modo a ela poder usar a força e os recursos de todos, da

maneira que considerar conveniente para assegurar a paz e a defesa comum”. 133

Em suma, Hobbes irá apresentar a constituição da sociedade política (ou corpo político)

como sendo “uma multidão de homens reunida em uma só pessoa por meio de um poder

comum, para sua paz, defesa e benefício comuns” 134, sendo o homem ou o conselho a quem os

membros particulares deram o poder comum chamado de soberano e cada membro do corpo

político é chamado por sua vez de súdito. Neste contexto, estabelece as linhas mestras daquilo

que viria a ser o positivismo jurídico séculos depois:

E mais: considerando que não é menor, mas ao contrário, muito maior, a

necessidade de se prevenir da violência e da rapina, do que a de puni-las

quando são conhecidas, e que toda violência procede de controvérsias entre os

132 HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad.: João Paulo

Monteiro e Maria Beatriz da Silva. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores), 1979, p. 105. 133 HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad.: João Paulo

Monteiro e Maria Beatriz da Silva. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores), 1979, p. 106. 134 HOBBES, Thomas. Os elementos da lei natural e política. Trad. Bruno Simões. São Paulo: WMF Martins

Fontes, 2010, p. 100.

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homens, que tratam do meum e do tuum, do certo e do errado, do bom e do

mau, entre outros, coisas essas que os homens costumam avaliar de acordo

com o seu próprio juízo, segue-se que compete também ao juízo do poder

soberano estabelecer e tornar conhecida a medida comum a partir da qual cada

homem saiba o que é seu e o que é do outro, o que é bom e o que é mau, o que

deve e o que não deve ser feito, bem como lhe compete ordenar a observância

disso. E essas medidas das ações dos súditos são aquilo que os homens

chamam de leis políticas ou civis. 135

Concluirá que incumbe a quem detém o poder da espada estabelecê-las e aos súditos

observá-las. Neste sentido, cabe apontar a teoria hobbesiana sobre os fundamentos da soberania

decorrente do pacto, conforme já explicado. O capítulo XVIII do Leviatã (Dos direitos dos

soberanos por instituição) trata desta questão, ao dispor sobre os direitos conferidos a quem o

poder soberano é atribuído mediante o consentimento do povo reunido. Os doze pontos

trabalhados por Hobbes neste capítulo dizem, resumidamente, que: 1) os que pactuam pela

formação do Estado não estão vinculados por pacto anterior; 2) o pacto é celebrado entre os

indivíduos e não entre indivíduo e soberano, de modo que o soberano não pode descumprir o

pacto e nenhum súdito pode se liberar da sujeição; 3) se por consentimento a maioria escolher

um soberano, os que discordaram devem passar a consentir juntamente com o restante; 4)

considerando que todo súdito é por instituição autor de todos os atos e decisões do soberano,

nada do que este faça pode ser considerado injúria com os súditos e estes não podem acusá-lo

de injustiça; 5) não se pode castigar o soberano, pois isso equivaleria a castigar a si mesmo; 6)

compete ao soberano ser juiz de opiniões e doutrinas contrárias à paz; 7) compete ao soberano

estabelecer as relações de propriedade; 8) compete ao soberano a autoridade judicial; 9)

pertence ao soberano o direito de fazer a guerra e a paz com outras nações e Estados; 10) cabe

ao soberano a escolha de conselheiros, ministros, magistrados e funcionários, tanto na paz como

na guerra; 11) é direito do soberano compensar com riquezas e honras, bem como punir com

castigos, os seus súditos, com base em leis previamente estabelecidas; e 12) compete ao

soberano conceder títulos de honra.

Sendo estas as características do poder soberano na obra de Hobbes, destacamos, para

aquilo que nos afeta, especialmente os itens de número 1 a 5, que tratam da questão do pacto

propriamente dito, bem como das relações que se seguem a ele, sendo certo que a minoria não

anuente com o pacto deverá a ele se sujeitar e, ainda, juntamente com os demais súditos, deverá

obedecer às regras estabelecidas pelo soberano, bem como às ordens emanadas deste poder,

sem que seja possível atribuir-lhes qualquer aspecto de injustiça, vez que pela formação

135 HOBBES, Thomas. Os elementos da lei natural e política. Trad. Bruno Simões. São Paulo: WMF Martins

Fontes, 2010, p. 109.

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contratual originária se tratam de decorrência de sua própria deliberação. Destaca-se também o

item 2, pelo qual se aponta a característica diferenciadora do contratualismo hobbesiano dos

demais, qual seja, a de que o pacto é celebrado entre os súditos e não entre estes e o soberano,

ponto em que diferenciaria substancialmente do que pensava Pufendorf. Este, por sua vez,

insistia em seu Direito de natureza e dos povos, que o pacto constitutivo da sociedade política

é um pacto de submissão, o qual liga os súditos ao soberano, vez que nesta reciprocidade, nos

direitos e deveres de cada um segundo o pacto, é que reside a legitimidade da autoridade do

soberano. 136

Diante dos limites estabelecidos para esta pesquisa, não entraremos nas discussões sobre

a ideia de desejo, sensações, bem e mal, livre-arbítrio, religião e outros assuntos correlatos da

longa filosofia hobbesiana, os quais possuem importância apenas colateral para a questão

central de nossa tese. De toda forma, fica claro que o método empregado e as premissas

utilizadas por Hobbes minam os entendimentos aristotélicos, inclusive aqueles da ética da

virtude, apresentando-nos uma visão de mundo distinta, posto que mecânica e guiada pelo

interesse próprio; delineou, portanto, os rumos da filosofia – especialmente política – da

modernidade. Inobstante esta significativa constatação, uma visão retrospectiva da história nos

faz constatar que as ideias políticas de Hobbes, embora postas em termos racionais típicos da

modernidade, direcionavam-se à manutenção do modelo absolutista e eram, portanto,

inadequadas aos interesses em ascensão naquele momento histórico.

3.1.3 A inadequação do modelo absolutista hobbesiano

Muito embora forneça as bases que solidificaram o entendimento moderno acerca do

fenômeno político, cumpre destacar que Hobbes se difere substancialmente dos demais

contratualistas que analisaremos à frente na medida em que defendia um modelo absolutista137

de sociedade política, embora não o fizesse com base num direito divino – tal como Filmer e

Bossuet –, mas com base na razão, já na linha da filosofia moderna.

Conforme ensina Bobbio, Hobbes não está preocupado com o excesso de poder, mas

com sua escassez e com a possibilidade de anarquia ou da volta do homem ao estado de

136 DERATHÉ, Robert. Jean-Jacques Rousseau e a ciência política de seu tempo. Trad. Natalia Maruyama. São

Paulo: Barcarolla, 2009, p. 314. 137 Embora deixe claro em alguns trechos que seu conceito de soberano inclui monarca em monarquias, bem como

assembleias de democracias. Fato é que o soberano (qualquer desses que seja) não fica sujeito às leis civis.

(HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad.: João Paulo

Monteiro e Maria Beatriz da Silva. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores), 1979, p. 162).

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natureza, onde se verifica uma perigosa igualdade e onde não há a unidade do poder que defina

o justo e o injusto. Neste sentido, nos diz Bobbio:

O pensamento político de todos os tempos é dominado por duas grandes

antíteses: opressão-liberdade e anarquia-unidade. Hobbes pertence,

decisivamente, às fileiras dos que tiveram o pensamento político estimulado

pela segunda antítese. O ideal que defende não é a liberdade contra a opressão,

mas a unidade contra a anarquia. Hobbes é obcecado pela ideia da dissolução

da autoridade, pela desordem que resulta da liberdade de discordar sobre o

justo e o injusto, pela desagregação da unidade do poder, destinada a ocorrer

quando se começa a defender a ideia de que o poder deve ser limitado, ou,

numa palavra, obcecado pela anarquia que é o retorno do homem ao estado de

natureza. O mal que ele mais teme – e contra o qual se sente chamado a erigir

o supremo e insuperável dique de seu sistema filosófico – não é a opressão

que deriva do excesso de poder, mas a insegurança que resulta, ao contrário,

da escassez de poder. Insegurança, antes de mais nada, da vida, que é o

primum bonum, depois dos bens materiais e, finalmente, também daquela

pouca ou muita liberdade que a um homem vivendo em sociedade é

consentido desfrutas. 138

Assim sendo, se absorvermos a visão de Bobbio que aponta Hobbes como partidário da

segunda antítese (anarquia-unidade), concluiremos que Hobbes preocupa-se com a unidade do

poder139 e sua possível dissolução – e, neste caso, a eventual volta ao belicoso estado de

natureza. Distingue-se, portanto, dos pensadores iluministas que deram seguimento à tradição

contratualista e que analisaremos a seguir. Este é certamente um dos fatores que fez com que

as revoluções e independências verificadas nos séculos XVII e XVIII não utilizassem sua

doutrina, tampouco o poderoso governo decorrente do pacto hobbesiano (inclusive cumulando

aspectos temporais e espirituais). Como se sabe, os interesses sócio-políticos em discussão

nestes eventos pautavam-se muito mais na limitação do poder real e na desconstrução das

relações rígidas de poder, notadamente excluindo a estratificação social.

Adicionalmente, como vimos acima, o estado de natureza previsto pelo autor em

comento não poderia por si fornecer a existência dos conceitos de justo e do injusto ante à

ausência de um poder comum que trata de estabelecer os critérios para tais conceitos. Neste

sentido, no que tange à existência de um direito de propriedade (ponto que trabalharemos com

mais profundidade na análise da teoria lockeana), destacamos a seguinte passagem:

138 BOBBIO, Norberto. Thomas Hobbes. Trad.: Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1991, p. 26. 139 “Uma multidão de homens é transformada em uma pessoa quando é representada por um só homem ou pessoa,

de maneira a que tal seja feito com o consentimento de cada um dos que constituem essa multidão. Porque é a

unidade do representante, e não a unidade do representado, que faz que a pessoa seja uma. E é o representante o

portador da pessoa, e só de uma pessoa. Esta é a única maneira como é possível entender a unidade de uma

multidão. (HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad. João

Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores), 1979, p. 98).

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Outra consequência da mesma condição é que não há propriedade, nem

domínio, nem distinção entre o meu e o teu; só pertence a cada homem aquilo

que ele é capaz de conseguir, e apenas enquanto for capaz de conservá-lo. É

pois esta a miserável condição em que o homem realmente se encontra, por

obra da simples natureza. 140

Diante disso, fica clara a ideia hobbesiana de que a propriedade não consiste em um

direito natural, como apontará Locke e como ela será recepcionada pelos diplomas

constitucionais notórios dos séculos XVII, XVIII e em toda codificação ocidental dos

oitocentos. Com efeito, no capítulo XV de Leviatã expõe de maneira clara o que aqui se

pretende apontar:

Portanto, para que as palavras ‘justo’ e ‘injusto’ possam ter lugar, é necessária

alguma espécie de poder coercitivo, capaz de obrigar igualmente os homens

ao cumprimento de seus pactos, mediante o terror de algum castigo que seja

superior ao benefício que esperam tirar do rompimento do pacto, e capaz de

fortalecer aquela propriedade que os homens adquirem por contrato mútuo,

como recompensa do direito universal a que renunciaram. E não pode haver

tal poder antes de erigir-se o Estado. O mesmo pode deduzir-se também da

definição comum da justiça nas Escolas, pois nelas se diz que a justiça é a

vontade constante de dar a cada um o que é seu. Portanto, onde não há o seu,

isto é, não há propriedade, não pode haver injustiça. E onde não foi

estabelecido um poder coercitivo, isto é, onde não há Estado, não há

propriedade, pois todos os homens têm direito a todas as coisas. Portanto, onde

não há Estado nada pode ser injusto. De modo que a natureza da justiça

consiste no cumprimento dos pactos válidos, mas a validade dos pactos só

começa com a instituição de um poder civil suficiente para obrigar os homens

a cumpri-los, e é também só aí que começa a haver propriedade. 141

Neste excerto temos a clara a ideia de que para Hobbes a propriedade não consiste em

um direito natural, tal como Locke a coloca (conforme veremos abaixo), ao contrário, apenas

passa a existir quando há um Estado que então estabeleça o que é de cada um, pois sem o Estado,

sem um poder coercitivo, todos os homens têm, por natureza, direito a todas as coisas. Pois

onde não há Estado, há uma guerra perpétua entre os homens, na qual cada coisa é de quem a

apanha e conserva pela força, o que não se trata de propriedade, mas de incerteza. 142

Com o advento do Estado, cada súdito passa a ter propriedade, entretanto esta não se dá

de maneira absoluta, posto que não exclui o soberano de sua ingerência:

140 HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad. João Paulo

Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores), 1979, p. 77. 141 HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad. João Paulo

Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silv. a. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores), 1979, p. 86. 142 HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad. João Paulo

Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores), 1979, p. 150.

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75

De onde podemos concluir que a propriedade que um súdito tem em suas

terras consiste no direito de excluir todos os outros súditos do uso dessas

terras, mas não de excluir o soberano, quer este seja uma assembleia ou um

monarca. Dado que o soberano, quer dizer, o Estado (cuja pessoa ele

representa), se entende que nada faz que não seja em vista da paz e segurança

comuns, essa distribuição das terras deve ser entendida como realizada em

vista do mesmo. 143

Em face de tais apontamentos, nada nos parece mais estranho às aspirações políticas do

período do que uma propriedade que preveja possibilidade de uso pelo soberano e uma

distribuição de terras pelo Estado visando a paz e a segurança de todos. Aliás, no capítulo XXIX

de Leviatã, Hobbes nos fala sobre as coisas que levam à dissolução de um Estado, dentre elas

consta: “A quinta doutrina que tende para a dissolução do Estado é que todo indivíduo particular

tem propriedade absoluta de seus bens, a ponto de excluir o direito do soberano.” 144 Ou seja, a

ideia de uma propriedade particular absoluta consiste, para Hobbes, em uma causa possível de

dissolução de um Estado. Este ponto deixa nítido o que pretendemos demonstrar neste item: a

inadequação do modelo hobbesiano para os interesses em ascensão naquele momento.

Neste sentido, João Paulo Monteiro nos diz:

Parece-me insustentável que o Estado hobbesiano se deixe qualificar como

Estado burguês. (...) Pelo contrário, o Estado hobbesiano exigiria dos grupos

burgueses um certo tipo de submissão, tanto política como econômica, que

dificilmente poderia ser encarada como favorável a seus interesses – e creio

até que só poderia ser vista como contrária a esses interesses. 145

Desta forma, conforme consideramos devidamente demonstrado, seu modelo de

sociedade exigiria total dependência em relação à vontade do soberano e não recebeu, por este

motivo, a aderência naquele momento histórico. Neste contexto, o modelo político capaz de

servir aos interesses predominantes da época e à expansão do modelo capitalista foi – não só,

mas principalmente – o modelo antiabsolutista lockeano. 146

143 HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad. João Paulo

Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores), 1979, p. 151. 144 HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad. João Paulo

Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores), 1979, p. 194. 145 MONTEIRO, João Paulo. Ideologia e economia em Hobbes. In: MORAES, João Quartim de (org.). Filosofia

Política. Vol. 2. Campinas: UNICAMP, 1985, p. 128. 146 “A teoria lockeana, prescrevendo a entrega do poder soberano a um corpo de representantes, encarregado das

funções legislativas e também de indicar o detentor do poder executivo, o qual recebia apenas uma outorga

fiduciária e não uma soberania propriamente dita, apresentava um programa muito mais consentâneo com os

interesses dos grupos ‘burgueses’.” (MONTEIRO, João Paulo. Ideologia e economia em Hobbes. In: MORAES,

João Quartim de (org.). Filosofia Política. Vol. 2. Campinas: UNICAMP, 1985, p. 133).

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3.2 John Locke e os fundamentos do Estado liberal

Embora nas obras de sua juventude Locke tenha sustentado posições não-liberais147,

similares àquelas postuladas anteriormente por Hobbes, notadamente colocando a autoridade

do Estado sobre direitos de liberdade dos indivíduos, apontando-o ademais como absoluto e

ilimitado, será pela sua obra de maturidade, de teor nitidamente liberal, que Locke entrará para

a história como um dos responsáveis pelas formulações mestras daquilo que denominados

Estado moderno. Com efeito, a obra liberal de Locke exerceu enorme influência sobre diversos

diplomas constitucionais do final do século XVII, bem como sobre a codificação dos oitocentos,

pelos motivos que veremos abaixo. Neste sentido, iremos centrar nossa análise nos Dois

Tratados sobre o Governo, especialmente sobre o Segundo Tratado, sua obra de maior relevo

para a política e o direito, notadamente pela importância concedida ao consentimento e ao

direito de propriedade, bases de seu contratualismo.

Locke inicia a referida obra dissertando sobre o poder político, o que o remete a trabalhar

o conceito de estado de natureza, sendo este aquele em que os homens viviam antes da aparição

de qualquer poder político. Na visão lockeana, o estado de natureza é aquele em que não há

subordinação ou sujeição a qualquer autoridade, predominando a igualdade e a liberdade.

Vejamos:

Para bem compreender o poder político e derivá-lo de sua origem, devemos

considerar em que estado todos os homens se acham naturalmente, sendo este

um estado de perfeita liberdade para ordenar-lhes as ações e regular-lhes as

posses e as pessoas conforme acharem conveniente, dentro dos limites da lei

da natureza, sem pedir permissão ou depender da vontade de qualquer outro

homem.

Estado também de igualdade, no qual é recíproco qualquer poder e jurisdição,

ninguém tendo mais do que qualquer outro; nada havendo de mais evidente

que criaturas da mesma espécie e da mesma ordem, nascidas promiscuamente

a todas as mesmas vantagens da natureza e ao uso das mesmas faculdades,

terão também de ser iguais umas às outras sem subordinação ou sujeição. 148

Locke nos parece descrever o estado de natureza como desprovido de autoridade civil e

norteado pela liberdade e igualdade, no que se diferencia de Hobbes, que vê uma amoralidade

nesta condição; Locke, por sua vez, enxerga uma espécie de lei moral nos guiando neste estado,

estando a execução das leis da natureza nas mãos de todos os homens:

147 As referências às obras de John Locke com este teor são exploradas em BOBBIO, Norberto. Locke e o direito

natural. Trad. Sérgio Bath. Brasília: UNB, 1997, p. 93-99. 148 LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os

Pensadores), 1991, p. 217.

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E para impedir a todos os homens que invadam os direitos dos outros e que

mutuamente se molestem, e para que se observe a lei da natureza, que importa

na paz e na preservação de toda a Humanidade, põe-se, naquele estado, a

execução da lei da natureza nas mãos de todos os homens, mediante a qual

qualquer um tem o direito de castigar os transgressores dessa lei em tal grau

que lhe impeça a violação, pois a lei da natureza seria vã, como quaisquer

outras leis que digam respeito ao homem neste mundo, se não houvesse

alguém nesse estado de natureza que não tivesse poder para pôr em execução

aquela lei e, por esse modo, preservasse o inocente e restringisse os ofensores. 149

Assim sendo, para o referido pensador a lei natural é vista num sentido forte, provida de

eficácia, vez que em nome da Humanidade qualquer indivíduo ameaçado pode julgar o

transgressor da lei natural e fazer-se executor da sentença. Desta afirmação também é possível

extrair a condição de igualdade existente no estado de natureza, conforme a jurisdição e poderes

recíprocos dos indivíduos, bem como podemos extrair uma associação entre lei e sanção,

lembrando a lição de Leo Strauss no sentido de que, para ser lei, a lei da natureza deve ter

sanções. 150 Neste sentido, Locke parece apresentar um jusnaturalismo que preenche este

requisito, na medida em que deixa claro o poder de jurisdição de cada indivíduo no que tange

ao efetivo cumprimento das leis naturais.

Cumpre apresentar a visão de Chiappin e Leister sobre a incompletude do estado de

natureza lockeano: “Assim, podemos interpretar o estado de natureza lockeano como o estado

no qual vigora um contrato incompleto, que admite objetivamente o direito de justiça, mas

carece de um sistema de punição explicitamente reconhecido.” 151 Adicionam ainda que:

O advento do Estado Civil em Locke, uma vez posta a questão nos termos do

modelo das tragédias dos comuns, implica na adoção da solução envolvendo

a estatização da justiça (e não sua privatização), que é objetivada quando os

indivíduos renunciam mutuamente a seu direito de aplicá-la (mas apenas a

este direito) e o colocam nas mãos do governo instituindo um novo mecanismo

de solução de conflitos, um mecanismo centralizado. 152

149 LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os

Pensadores), 1991, p. 218. Sendo notável ainda a passagem: “a pessoa prejudicada tem o poder de apropriar-se

dos bens ou serviços do ofensor pelo direito de autopreservação, como qualquer um tem o poder de castigar o

crime para impedir-lhe a repetição, pelo direito que tem de preservar toda a Humanidade e de executar tudo quanto

seja razoável a favor desse objetivo.” (Idem, p. 219) 150 STRAUSS, Leo. Direito Natural e História. Trad. Bruno Costa Simões. São Paulo: WMF Martins Fontes,

2014, p. 269. 151 LEISTER, C.; CHIAPPIN, J. R. N. Experimento mental I: a concepção contratualista clássica, o modelo da

tragédia dos comuns e as condições de emergência e estabilidade da cooperação. Locke, Rousseau e Kant, 2007.

Disponível em: https://escholarship.org/uc/item/81m032w6. Acesso em 3 de janeiro de 2018, 9:08, p. 8. 152 LEISTER, C.; CHIAPPIN, J. R. N. Experimento mental I: a concepção contratualista clássica, o modelo da

tragédia dos comuns e as condições de emergência e estabilidade da cooperação. Locke, Rousseau e Kant, 2007.

Disponível em: https://escholarship.org/uc/item/81m032w6. Acesso em 3 de janeiro de 2018, 9:08, p. 9.

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Assim sendo, para sair de tal estado, os homens concordam mutuamente em formar uma

comunidade, fundando o corpo político. Entretanto, não é todo e qualquer pacto que possui esta

capacidade:

...porque não é qualquer pacto que faz cessar o estado de natureza entre os

homens, mas apenas o de concordar, mutuamente e em conjunto, em formar

uma comunidade, fundando um corpo político; outras promessas e pactos

podem os homens fazer entre si, conservando, entretanto, o estado de natureza. 153

Mas se para Locke os homens são livres no estado de natureza, qual a razão de se unirem

em comunidade para se sujeitarem ao domínio e controle de um poder? Os motivos são

evidenciados ao longo de diversos trechos154 do Segundo Tratado, inobstante sejam centrados

numa só ideia: a preservação daquilo que Locke denomina propriedade.

Ao que é óbvio responder que, embora no estado de natureza tenha tal direito

[liberdade], a fruição do mesmo é muito incerta e está constantemente exposta

à invasão de terceiros porque, sendo todos reis tanto quanto ele, todo homem

igual a ele, e na maior parte pouco observadores da equidade e da justiça, a

fruição da propriedade que possui nesse estado é muito insegura, muito

arriscada. Estas circunstâncias obrigam-no a abandonar uma condição que,

embora livre, está cheia de temores e perigos constantes; e não é sem razão

que procura de boa vontade juntar-se em sociedade com outros que estão já

unidos, ou pretendem unir-se, para a mútua conservação da vida, da liberdade

e dos bens a que chamo ‘propriedade’. 155

Trata-se de mais uma passagem onde Locke exalta o objetivo de unirem-se os homens

em sociedade, sendo tal objetivo a proteção da propriedade e sua fruição certa e segura. Por

conta disso, o quinto capítulo do Segundo Tratado, intitulado Da Propriedade, consiste sem

sombra de dúvida no cerne da referida obra. Desta forma, passamos agora à análise do conceito

lockeano de propriedade, sem o qual não é possível compreender seu contratualismo.

153 LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os

Pensadores), 1991, p. 221. 154 Vide em especial parágrafos 94; 124; 134; 136; 138 e 222. 155 LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os

Pensadores), 1991, p. 264. Adicionalmente: “A fim de evitar esses inconvenientes que perturbam as propriedades

dos homens no estado de natureza, estes se unem em sociedade para que disponham da força reunida da sociedade

inteira para garantir-lhes e assegurar-lhes a propriedade, e para que gozem de leis fixas que a limitem, por meio

das quais todos saibam o que lhes pertence. É para esse fim que os homens transferem todo poder natural que

possuem à sociedade para a qual entram, e a comunidade põe o poder legislativo nas mãos que julga mais

convenientes para esse encargo, a fim de que sejam governados por leis declaradas, senão ainda ficarão na mesma

incerteza a paz, a propriedade e a tranquilidade, como se encontravam no estado de natureza.” (Idem, p. 270).

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Antes desta análise, cabe desde já a ressalvar que Locke define propriedade em termos

amplos durante seu Segundo Tratado. No parágrafo 87 temos: “...preservar a propriedade – isto

é, a vida, a liberdade e os bens”, já no 123: “...para a mútua conservação da vida, da liberdade

e dos bens a que chamo de ‘propriedade’”, por fim no 173 temos: “Por propriedade devo

entender, aqui como em outros lugares, a que os homens têm tanto na própria pessoa como nos

bens”. 156 Neste sentido, Bobbio157 também apresenta seu entendimento acerca da

multiplicidade conceitual que o termo propriedade possui na obra de Locke, enxergando nele a

consolidação de todos os outros direitos naturais (vida, liberdade e bens), coisa que Locke

denomina como propriedade. Assim, a propriedade não é o único direito natural, mas é

revelador, para Bobbio, que Locke a utilize para resumir nela todos os outros direitos naturais.

3.2.1 O conceito lockeano de propriedade158

Locke, logo no princípio do capítulo V de seu Segundo Tratado nos diz: “é muito claro

que Deus, conforme diz o Rei Davi (SL 113, 24), ‘deu a terra aos filhos dos homens’,

concedendo-a em comum a todos os homens”. 159 A partir de tal pressuposto – de que a terra

foi dada em comum a todos os homens – Locke se lança no desafio de provar como podem os

homens estabelecer propriedade sobre aquilo que Deus deu em comum à Humanidade e isto

independentemente de qualquer pacto expresso entre os membros da comunidade.160 Locke

intenta, portanto, demonstrar como foi possível ao homem estabelecer propriedade individual

sobre o que até então era comum, independentemente de qualquer convenção humana ou

organização política neste sentido. Em outras palavras, pretende demonstrar a existência do

direito de propriedade num estado pré-político.

Inicia tal argumentação dizendo que tudo aquilo que foi dado aos homens em comum

deve ser usado para o sustento e conforto de sua existência. 161 Assim, embora todos os frutos

pertençam a todos, é necessário um meio de apropriação para que tal fruto possa ser utilizado

156 MACPHERSON, C. B. Teoria política do individualismo possessivo de Hobbes até Locke. Trad. Nelson

Dantas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 20. 157 BOBBIO, Norberto. Locke e o direito natural. Trad. Sérgio Bath. Brasília: UNB, 1997, p. 188-189. 158 A análise que se segue (itens 3.2.1 a 3.2.5) é uma revisão e ampliação de um estudo passado e pode ser

encontrada em GAMBA, João Roberto Gorini. O processo de consolidação da propriedade como centro do

ordenamento jurídico moderno: uma leitura. [Dissertação de Mestrado]. São Paulo: PUC-SP, 2014, p. 88-106. 159 LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os

Pensadores), 1991, p. 227. 160 LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os

Pensadores), 1991, p. 227. 161 LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os

Pensadores), 1991, p. 227.

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para seu propósito (alimentação e sustento) sem que qualquer outro possa alegar qualquer

direito a tal alimento, antes que este traga o benefício de sustentar-lhe a vida, caso contrário os

homens morreriam de fome mesmo havendo abundância de alimentos. Tal meio consiste no

trabalho, visto como algo que pertence à pessoa. Vejamos:

Embora a terra e todas as criaturas inferiores sejam comuns a todos os homens,

cada homem tem uma propriedade em sua própria pessoa; a esta ninguém tem

qualquer direito senão ele mesmo. O trabalho do seu corpo e a obra das suas

mãos, pode dizer-se, são propriamente dele. Seja o que for que ele retire do

estado que a natureza lhe forneceu e no qual o deixou, fica-lhe misturado ao

próprio trabalho, juntando-se-lhe algo que lhe pertence, e, por isso mesmo,

tornando-o propriedade dele. Retirando-o do estado comum em que a natureza

o colocou, anexou-lhe por esse trabalho algo que o exclui do direito comum

de outros homens. 162

A partir do trecho descrito, podemos inferir que Locke vê em cada homem um potencial

proprietário, pois por meio do trabalho, que a ele pertence, aqueles frutos da terra que até então

eram comuns se tornam propriedade individual. A partir daí podemos concluir que o consumo

dos frutos disponíveis se converte em apropriação legítima destes, pois Deus deu a terra aos

homens para seu sustento, de modo que a ideia de pertencimento fica associada à condição

natural de sobrevivência; e tal direito, evidentemente, não pode depender do consentimento dos

demais163, sendo a propriedade, portanto, não uma condição política, mas natural.

Desta forma, “Deus, mandando dominar, concedeu autoridade para a apropriação; e a

condição da vida humana, que exige trabalho e material com que trabalhar, necessariamente

introduziu a propriedade privada.” 164 Dentro deste diapasão, o trabalho, por si só, estabelece a

propriedade independente de pactos expressos entre os membros da comunidade. Não faltam

críticas sobre tal conjuntura; dentre elas, podemos apontar a de Proudhon165, para o qual o

trabalho por si não pode transformar a posse em propriedade, pois, se assim fosse, o homem

cessaria de ser proprietário quando deixasse de trabalhar.

Quanto ao pressuposto lockeano segundo o qual aquilo que foi dado ao homem em

comum deve ser usado para seu sustento e, portanto, deve haver um meio de apropriação,

Proudhon apresenta a seguinte argumentação: primeiramente, o pensador francês pontua que o

162 LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os

Pensadores), 1991, p. 227. 163 LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os

Pensadores), 1991, p. 228. 164 LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os

Pensadores), 1991, p. 230. 165 PROUDHON, Pierre-Joseph. O que é a Propriedade? ou Pesquisas sobre o Princípio do Direito e do Governo.

Trad. Gilson Cesar Cardoso de Souza e Edison Darci Heldt. 1ª ed. Martins Fontes: São Paulo, 1988, p. 97.

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homem tem o direito de ocupar pelo simples fato de existir, não podendo prescindir de uma

matéria de exploração e trabalho para manter-se vivo. Proudhon, então, ressalta a importância

da terra enquanto necessária para a sobrevivência humana, tal como a água, o ar e a luz.

Vejamos:

Um homem a quem fosse vedado transitar pelas estradas, parar no campo,

abrigar-se nas cavernas, acender fogo, colher frutos selvagens, apanhar ervas

e cozinhá-las numa panela de barro, esse homem não poderia viver. Assim a

terra, como a água, o ar e a luz, é um objeto de primeira necessidade do qual

todos devem poder usufruir livremente, sem com isso prejudicar os outros;

então por que a terra é apropriada? 166

Pretende com isso derrubar os argumentos de C. Comte, segundo o qual a terra é passível

de ser apropriada por ser um bem finito, diferentemente da água, do ar e da luz. O argumento

de C. Comte é facilmente rebatido por Proudhon, pois, ao nos apropriarmos de uma quantidade

qualquer de água, ar ou luz, disso não resulta mal a ninguém, já que sobrará o suficiente para

todos, mas, quanto ao solo, a situação altera-se, já que qualquer apropriação de um bem limitado

prejudica os demais por faltar-lhes o necessário a sua sobrevivência, conforme o trecho exposto

acima. Em resumo, na medida em que a terra consiste em algo necessário à nossa conservação

ela é, na visão de Proudhon, bem comum (tal como o ar), portanto algo não passível de

apropriação sem que cause prejuízo aos demais. 167

Proudhon ainda vai além: como o solo consiste em bem finito, encontrado em

quantidade muitíssimo menor que a água, o ar e a luz, seu uso deve ser regulamentado, para o

interesse de todos e não em benefício de uma minoria. Ora, se pretendemos uma igualdade de

direitos e se estamos diante de um bem limitado, tal igualdade só pode ser realizada pela

igualdade de posse168; e como o número de ocupantes varia conforme os nascimentos e óbitos,

a quota de matéria destinada a cada um varia conforme tal número de ocupantes; assim, a posse

nunca deve permanecer fixa, sendo impossível sua transformação em propriedade. Chega,

então, a seguinte máxima: “O direito de ocupar é igual para todos. Não estando a medida da

ocupação na vontade, mas nas condições variáveis do espaço e do número, a propriedade não

pode se formar.” 169 Ou seja, se se parte do pressuposto de que a terra foi dada em comum aos

166 PROUDHON, Pierre-Joseph. O que é a Propriedade? ou Pesquisas sobre o Princípio do Direito e do Governo.

Trad. Gilson Cesar Cardoso de Souza e Edison Darci Heldt. 1ª ed. Martins Fontes: São Paulo, 1988, p. 83. 167 PROUDHON, Pierre-Joseph. O que é a Propriedade? ou Pesquisas sobre o Princípio do Direito e do Governo.

Trad. Gilson Cesar Cardoso de Souza e Edison Darci Heldt. 1ª ed. Martins Fontes: São Paulo, 1988, p. 83. 168 PROUDHON, Pierre-Joseph. O que é a Propriedade? ou Pesquisas sobre o Princípio do Direito e do Governo.

Trad. Gilson Cesar Cardoso de Souza e Edison Darci Heldt. 1ª ed. Martins Fontes: São Paulo, 1988, p. 84. 169 PROUDHON, Pierre-Joseph. O que é a Propriedade? ou Pesquisas sobre o Princípio do Direito e do Governo.

Trad. Gilson Cesar Cardoso de Souza e Edison Darci Heldt. 1ªed. Martins Fontes: São Paulo, 1988, p. 76.

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homens – pressupondo igualdade de condições –, chega-se à conclusão que a quantidade de

bens destinados aos humanos para sua subsistência varia conforme o número destes altera-se

na terra, não podendo a propriedade se formar.

Feitas as devidas colocações críticas do pensamento de Proudhon em relação às

assertivas extraídas da obra de Locke, analisemos com a devida cautela uma pequena parte do

trecho transcrito acima constante do Segundo Tratado: “cada homem tem uma propriedade em

sua própria pessoa; a esta ninguém tem qualquer direito senão ele mesmo”. Tal afirmação se

torna claramente compreensível se a analisarmos a partir de uma situação de escravidão, pois

segundo a lógica do trecho em comento, havendo dois sujeitos em relação, é clara a ideia de

que um (o senhor) não pode estabelecer propriedade sobre o outro (escravo), afinal, apenas este

tem a propriedade sobre si mesmo e ninguém mais. Entretanto, Locke não nos parece pretender

este entendimento, já que sua frase é clara no sentido de dizer que cada homem tem propriedade

em sua própria pessoa, ou seja, nele mesmo. A, portanto, tem propriedade exclusiva em A, ele

mesmo. No entanto essa ideia de estrita reflexividade não se mantém:

Sendo a propriedade o direito exclusivo de dispor ou de controle, e se A

controla o mesmo A e ao mesmo tempo, então isso implica que A é um

governante enquanto está sendo governado ao mesmo tempo. Isto é violar o

princípio da não-contradição. Se eu interpreto ‘Eu me controlo’, no sentido de

estrita reflexividade, isto produz uma afirmação contraditória que afirma e

nega que eu sou um mestre ou vencedor em um e no mesmo sentido. O mesmo

pode ser dito sobre o conceito de propriedade. Precisamos distinguir um

sujeito de seu objeto se queremos torná-lo possível falar de uma relação de

propriedade ou controle. 170

Rejeitando a posição de estrita reflexividade, Kiyoshi Shimokawa nos apresenta sua

ideia de reflexividade moderada:

Quando digo ‘eu tenho propriedade em minha própria pessoa’, significa algo

como isto: eu, que existo agora, tenho o direito de pensar como eu vou ser no

futuro, para tomar uma decisão sobre o que fazer com minha pessoa, e de

dispor de minha pessoa com exclusividade durante um período de tempo no

futuro, de acordo com a minha decisão presente. Ou então, isso significa que

a minha parte racional tem o direito de dispor com exclusividade da parte

170 “For property is the exclusive right of disposal or control, and if A controls the same A at one and the same

time, then it implies that A is a ruler while he is being ruled at the same time. This is to violate the principle of

non-contradiction. If I interpret ‘I control myself’ in the strict reflexivity sense, this produces a contradictory

statement which affirms and negates that I am a master or winner in one and the same respect. The same can be

said of the concept of property. We need to distinguish a subject from its object if we are to make it possible to

speak of the relation of ownership or control.” (SHIMOKAWA, Kiyoshi. Locke’s Concept of Property. In:

ANSTEY, Peter (Org.). John Locke: Critical Assessments of Leading Philosophers, Series II. Londres,

Routledge, 2006, p. 205. Tradução livre).

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desejante da minha pessoa. Se nós trazemos na escala de tempo ou na distinção

entre a parte governante e a governada, então podemos evitar a contradição

lógica que vimos acima. Assim, podemos afirmar que é possível ter uma

reflexividade moderada. 171

Para Shimokawa, a reflexividade moderada consiste no correto entendimento acerca da

passagem de Locke em análise. Ademais, dando sequência à argumentação, Shimokawa nos

leva à ideia de que uma das interpretações possíveis para afirmação de que “cada homem tem

uma propriedade em sua própria pessoa” é colocá-la num dualismo mente/corpo, segundo o

qual a mente humana, com sua razão, seria a governante, tendo poder exclusivo de dispor e

controlar a parte não-mental, ou seja, o corpo humano, então governado. 172 Destaque-se, talvez

buscando compreender os conceitos lockeanos, que a tentativa foi de apontar a liberdade e a

vida como propriedades detidas pelo sujeito.

Por fim, temos outra característica importante no conceito de propriedade para Locke:

sua exclusividade. “Porquanto não terei verdadeiramente propriedade naquilo que outrem pode,

por direito tirar-me quando lhe aprouver”. 173 A propriedade, assim, deve revestir-se de caráter

exclusivo para ser considerada como tal, devendo afastar qualquer interferência de terceiros,

inclusive de grupos ou associações políticas, vez que a constituição da propriedade independe

destes e, portanto, tais grupos devem ser, também, excluídos de interferir arbitrariamente sobre

a propriedade constituída.

Adiante, à luz do conceito de propriedade construído por Locke e exposto neste item,

veremos como Locke estabelece, apenas num primeiro momento, uma limitação para que a

apropriação se dê; posteriormente, procurando manter a lógica de seus argumentos, Locke

descontrói esta ideia de limitação e estabelece uma ideia de apropriação ilimitada.

171 “When I say ‘I have a property in my own person’, it means something like this: I, who exist now, have a right

to think of what I will be like in the future, to make a decision on what to do with my person, and to dispose of my

person exclusively over a period of time in the future, in accordance with my present decision. Or else, it means

that my rational part has a right to dispose of the desiring part of my person exclusively. If we bring in the timescale

or the distinction between the ruling and the ruled part, then we can avoid the logical contradiction which we have

seen above. So we can affirm that it is possible to have moderate reflexivity.” (SHIMOKAWA, Kiyoshi. Locke’s

Concept of Property. In: ANSTEY, Peter (Org.). John Locke: Critical Assessments of Leading Philosophers,

Series II. Londres, Routledge, 2006, p. 204-205. Tradução livre). 172 SHIMOKAWA, Kiyoshi. Locke’s Concept of Property. In: ANSTEY, Peter (Org.). John Locke: Critical

Assessments of Leading Philosophers, Series II. Londres, Routledge, 2006, p. 205. 173 LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os

Pensadores), 1991, p. 271.

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3.2.2 A limitação para a acumulação de propriedades

Superada a análise do conceito de propriedade para Locke como direito pré-político,

conforme as disposições do Segundo Tratado, podemos identificar uma momentânea

preocupação em estabelecer limites para sua apropriação. Com efeito, Locke parece deixar claro

que toda apropriação depende da existência de quantidade suficiente para os demais homens e

que todo desperdício deve ser condenado. Assim, nos parágrafos 27 e 31 nos diz:

Desde que esse trabalho é propriedade exclusiva do trabalhador, nenhum outro

homem pode ter direito ao que se juntou, pelo menos quando houver bastante

e igualmente de boa qualidade em comum para terceiros. 174

A mesma lei da natureza que nos dá por esse meio a propriedade também a

limita igualmente. ‘Deus nos deu de tudo abundantemente’ (I Tim 6, 17) é a

voz da razão confirmada pela inspiração. Mas até que ponto no-lo deu? Para

usufruir. Tanto quanto qualquer um pode usar com qualquer vantagem para a

vida antes que se estrague, em tanto pode fixar uma propriedade pelo próprio

trabalho; o excedente ultrapassa a parte que lhe cabe e pertence a terceiros.

Deus nada fez para o homem estragar e destruir. 175

Conforme os trechos em destaque, podemos identificar em Locke uma preocupação no

sentido de que toda apropriação deve ser consciente, devendo, portanto, ser feita apenas na

medida em que haja bens igualmente suficientes e de boa qualidade para os demais homens,

sendo todo excedente, aquilo que o apropriador sequer consegue consumir, algo que ultrapassa

seu quinhão outorgado por Deus, cabendo não a ele, mas aos seus semelhantes. Vale ressaltar,

neste ponto, que Locke parte do pressuposto de que os bens existentes se encontram na natureza

de forma abundante e que, ainda, Deus nada fez para o homem estragar ou destruir. Tais

colocações certamente indicam uma preocupação do pensador em vedar qualquer apropriação

desnecessária que acarrete o perecimento dos frutos176, e nociva, que simplesmente destrua os

frutos sem dar-lhes o devido fim.

Cumpre destacar que tal limitação torna-se coerente com a noção de igualdade constante

da obra de Locke. Sendo os homens portadores de iguais direitos à vida e ao bem-estar, o direito

174 LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os

Pensadores), 1991, p. 227-228. 175 LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os

Pensadores), 1991, p. 229. 176 “Pois não é a ‘extensão’, daquilo que o homem se apropria pelo seu trabalho (ou pelas trocas dos produtos do

seu trabalho), mas ‘o perecimento de qualquer coisa que se encontre inutilmente sob sua posse’ que faz dele um

homem culpado de um crime contra a lei natural.” (STRAUSS, Leo. Direito Natural e História. Trad. Bruno

Costa Simões. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014, p. 288).

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de apropriação torna-se limitado de modo a garantir aos demais homens tais direitos, do

contrário a igualdade restaria prejudicada. Assim, a apropriação de uns não pode significar a

diminuição de tais direitos para outros.

3.2.3 Argumentos lockeanos para a acumulação ilimitada

Frente a tais limitações, Locke nos apresenta dois argumentos importantes para a

compreensão de sua teoria, de modo a contornar os argumentos utilizados anteriormente e

defender uma ideia de apropriação ilimitada. O primeiro consiste na possibilidade de

acumulação ilimitada (e sem perecimento) ocasionada pela utilização da moeda. Já o segundo

exalta a produtividade ocasionada pela apropriação, conforme o trabalho aplicado à terra.

Analisaremos à frente cada um desses argumentos apresentados por Locke para superar a então

aparente limitação e, adicionalmente, analisaremos a questão da limitação de ordem física e sua

relação com o trabalho assalariado. Todas estas questões importantíssimas para o modelo

capitalista em formação.

3.2.3.1 A utilização da moeda

Ao final do parágrafo 36 de seu Segundo Tratado, Locke faz uma importante afirmação,

contrariando os argumentos de limitação para a apropriação, conforme expostos acima.

Vejamos:

Mas, seja lá como for, ao que não quero dar importância, ouso afirmar

corajosamente o seguinte: – a mesma regra de propriedade, isto é, que todo

homem deve ter tanto quanto possa utilizar, valeria ainda no mundo sem

prejudicar a ninguém, desde que existisse terra bastante para o dobro dos

habitantes, se a invenção do dinheiro e o tácito acordo dos homens, atribuindo

um valor à terra, não tivessem introduzido – por consentimento – maiores

posses e o direito a elas. 177

Com este trecho, Locke nos parece iniciar sua argumentação contra a limitação para a

acumulação de propriedade, pois ela apenas subsistiria se a invenção do dinheiro não tivesse,

por consentimento, criado maiores posses e o direito a elas. Assim, o advento do dinheiro –

177 LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os

Pensadores), 1991, p. 230-231.

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feito por consentimento tácito – remove as anteriores limitações à apropriação, invalidando o

pré-requisito de que cada qual deveria ter tanta quanto pudesse utilizar. 178

De fato, a acumulação exacerbada de frutos faz com que estes pereçam antes do

consumo, o que, como vimos, é expressamente recriminado por Locke. Entretanto, tal situação

se altera completamente com o surgimento do dinheiro que, por convenção, torna todas as

propriedades mensuráveis e representáveis em um determinado valor em moeda, bem não

perecível e de fácil administração até mesmo para um homem só. Assim, com a invenção do

dinheiro passou a ser possível ao homem acumular ilimitadamente, não mais se prendendo às

limitações impostas pela natureza e não mais sujeitando os bens ao perecimento.

Locke ainda define o dinheiro como “algo duradouro que os homens pudessem guardar

sem estragar-se, e que por consentimento mútuo recebessem em troca de sustentáculo da vida,

verdadeiramente úteis mas perecíveis”. 179 Desta forma, o pensador exalta o caráter não

perecível do dinheiro, que faz com que ele possa representar uma enorme quantidade de

propriedades acumuladas de maneira a não desperdiçar tais bens. Tal ideia é claramente exposta

no parágrafo 50 do Segundo Tratado:

Mas como o ouro e a prata são de pouca utilidade para a vida humana em

comparação com o alimento, vestuário e transporte, tendo valor somente pelo

consenso dos homens, enquanto o trabalho dá em grande parte a medida, é

evidente que os homens concordam com a posse desigual e desproporcionada

da terra, tendo descoberto, mediante consentimento tácito e voluntário, a

maneira de um homem possuir licitamente mais terra do que aquela cujo

produto pode utilizar, recebendo em troca, pelo excesso, ouro e prata que

podem guardar sem causar dano a terceiros, uma vez que estes metais não se

estragam nas mãos de quem os possui. 180

A partir do trecho acima, temos que o dinheiro, sendo um bem não perecível, torna sua

acumulação permitida por não lesar terceiros, o que, como dito, ocorreria no caso de

acumulação de bens perecíveis. De fato, a acumulação de bens perecíveis subtrai sua circulação

e ocasiona seu perecimento, sendo, portanto, recriminável conforme a regra do não desperdício.

No caso da terra, temos que sua apropriação ilimitada se torna permitida ante ao uso da

moeda como meio de representar propriedades acumuladas. Desta forma, com a adoção do

dinheiro, todas as propriedades de um determinado território são desde logo apropriáveis por

178 MACPHERSON, C. B. Teoria política do individualismo possessivo de Hobbes até Locke. Trad. Nelson

Dantas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 215. 179 LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os

Pensadores), 1991, p. 235. 180 LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os

Pensadores), 1991, p. 235.

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uma só pessoa, permitindo que os demais homens permaneçam sem propriedades. Tal situação

será detalhadamente analisada abaixo quando tratarmos da relação entre propriedade e

desigualdade no pensamento lockeano.

3.2.3.2 O aumento da produtividade pela apropriação

Partindo do pressuposto adotado pelo pensador, de que os bens da natureza existem em

abundância, não encontramos problemas em sua teoria quanto aos frutos colhidos, vez que a

natureza os proporciona espontaneamente. Entretanto, o problema se agrava quando tratamos

do problema da terra e sua apropriação, pois ao cercar uma terra o indivíduo tira do domínio

comum não só os frutos e animais nela pertencentes, mas um pedaço da própria natureza. 181

Neste caso, a apropriação é justificada pelo esforço. Coerentemente com o restante de

sua teoria, ao empregar algo que é seu – o trabalho – à terra, esta se torna sua. Referida

apropriação para suprir as necessidades individuais não consiste em problema de grande

preocupação, mas sim a produção além de tal necessidade, aquela voltada à troca.

Em resposta, Locke182 argumenta que a apropriação da terra para tal produção não

consiste em subtração da natureza, mas, ao contrário, aumenta a quantidade de frutos

disponíveis para o sustento humano. Mediante o trabalho, o solo adequadamente utilizado por

aquele que dele se apropriou produz muito mais do que a natureza espontaneamente

proporcionaria. Assim, a atividade agrícola multiplica os bens necessários à conservação da

vida, de modo a tornar-se, nesta visão, legítima. Tal afirmação pressupõe, conforme nos ensina

Macpherson183, que o aumento da produtividade total será distribuído em benefício (ou pelo

menos sem prejuízo) daqueles que ficaram sem terras suficientes. Macpherson assim nos

resume tal argumento lockeano:

Portanto, quando os resultados da apropriação além do limite inicial são

medidos pelo teste fundamental (provimento das necessidades vitais, para

todos os outros), mais do que pelo teste instrumental (disponibilidade de terras

bastantes para que delas os outros tirem suas necessidades), a apropriação

além do limite assume uma virtude positiva.

(...)

181 “A extensão de terra que um homem lavra, planta, melhora, cultiva, cujos produtos usa, constitui a sua

propriedade. Pelo trabalho, por assim dizer, separa-a do comum.” (LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo.

Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os Pensadores), 1991, p. 229). 182 LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os

Pensadores), 1991, p. 231. 183 MACPHERSON, C. B. Teoria política do individualismo possessivo de Hobbes até Locke. Trad. Nelson

Dantas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 224.

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Em resumo, a apropriação de terras, em quantidade tal que não deixe tantas

nem tão boas para os outros é justificada, tanto pelo consentimento tácito dado

implicitamente às consequências inevitáveis da adoção do dinheiro, como pela

afirmativa de que os padrões dos que não têm terras, onde estas estão todas

apropriadas e utilizadas são mais elevados do que os padrões de quaisquer

outros, em qualquer lugar onde a terra não esteja generalizadamente

apropriada. 184

Desta forma, a partir de uma leitura crítica da obra de Locke, podemos chegar à seguinte

conclusão: caso a produção realizada pelo sujeito apropriador – mais eficaz que a produção

natural – seja revertida para o benefício dos homens que, por conta desta apropriação, tornaram-

se despossuídos, o argumento lockeano encontraria legitimidade.

3.2.3.3 A limitação de ordem física e o trabalho assalariado como condição natural

Locke inicia o já mencionado parágrafo 36 do Segundo Tratado constatando a limitação

imposta pela natureza para a acumulação concernente à capacidade humana de proteção e de

consumo de bens. Isso significa que a um homem isolado e seu intrínseco poder de trabalho é

possível apropriar-se tão somente de um determinado pedaço de terra, de certa quantidade de

bens e consumir certa quantidade de frutos.

Podemos constatar que tal limitação se caracteriza como sendo de ordem física. Afinal,

um homem isolado, com apenas seu trabalho, não pode apropriar-se de uma imensa quantidade

de frutos e terras, protegendo-os apropriadamente. Entretanto, ao analisar com a devida cautela

o Segundo Tratado, percebemos que tal limitação é implicitamente superada por Locke

conforme a ideia de trabalho assalariado seja pressuposta pelo autor como uma condição

natural. Vejamos:

Assim a grama que o meu cavalo pastou, a turfa que o criado cortou, o minério

que extraí em qualquer lugar onde a ele tenho direito em comum com outros,

tornam-se minha propriedade sem a adjudicação ou o consentimento de

qualquer outra pessoa. O trabalho que era meu, retirando-os do estado comum

em que se encontravam, fixou a minha propriedade sobre eles. 185

Com este trecho, Locke parece legitimar a apropriação do trabalho alheio – do criado –

como forma legítima de aumento de propriedade – do senhor – e, ainda, supor a relação salarial

184 MACPHERSON, C. B. Teoria política do individualismo possessivo de Hobbes até Locke. Trad. Nelson

Dantas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 224-225. 185 LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os

Pensadores), 1991, p. 228.

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também como condição natural. De fato, se analisarmos o argumento visto acima, onde Locke

nos fala sobre a apropriação de grandes porções de terra para o aumento da produção voltada à

troca, somos levados a crer que, de fato, estava supondo a validade da relação salarial, pela qual

um homem pode licitamente adquirir o trabalho de outro como meio de aumentar sua riqueza,

do contrário não nos falaria em hectares e mais hectares produtivos, algo que só é possível a

um homem mediante a aquisição de força de trabalho alheia. 186

Conforme a visão de James Tully187, endossada por Edgar José Jorge Filho188, a turfa

cortada pelo criado descrito por Locke consiste numa tarefa completa realizada por um servo,

com seus próprios instrumentos, e não um trabalho realizado com instrumentos de produção

pertencentes ao capitalista. 189 Nesta visão, o servo é livre para optar trabalhar ou não ao senhor,

diferente do escravo e do trabalhador assalariado que não possuem real opção entre trabalhar

ou não, visto que os meios de produção são açambarcados pelos capitalistas e, portanto, não lhe

pertencem. Em sua argumentação, Jorge Filho coloca que o produto do trabalho do servo se

acrescenta à propriedade do senhor, conforme o contrato firmado entre eles e que:

Enquanto, sob o governo doméstico do pai, a família produzir as necessidades

e conveniências para os cônjuges e filhos, o equivalente ao salário para o

servo, e a subsistência do escravo, não haverá invasão do que ainda pertence

em comum aos homens. Nesta medida, permanecem respeitados os limites

naturais da propriedade mesmo com o crescimento da família ou o maior

número de servos contratados. 190

Segundo esta visão, a relação descrita por Locke na referida passagem não consiste

numa relação capitalista-assalariada, mas sim numa relação firmada entre servo e senhor para

o acúmulo de propriedade deste mediante o trabalho e instrumentos daquele (sendo a

propriedade dos meios de produção o traço descaracterizador da relação capitalista-assalariada),

sobretudo por conta do pagamento em dinheiro, convencionalmente aceito entre os homens.

186 MACPHERSON, C. B. Teoria política do individualismo possessivo de Hobbes até Locke. Trad. Nelson

Dantas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 226. 187 TULLY, James. A Discourse on Property: John Locke and his adversaries. London: Cambridge University

Press, 1980, p. 135-145. 188 JORGE FILHO, Edgar José. Moral e história em John Locke. São Paulo: Loyola, 1992, p. 84. 189 “Therefore, in the light of Locke’s concept of the master-servant relation, and in terms of our historical

knowledge of the period, it is incorrect and anachronistic to impute the assumption of capitalist wage-labour to

Locke.” (TULLY, James. A Discourse on Property: John Locke and his adversaries. London: Cambridge

University Press, 1980, p. 142). Em tradução livre: “Portanto, à luz do conceito lockeano da relação senhor-servo,

e em termos do nosso conhecimento histórico do período, é incorreto e anacrônico imputar a assunção de trabalho

assalariado no sentido capitalista a Locke.” 190 JORGE FILHO, Edgar José. Moral e história em John Locke. São Paulo: Loyola, 1992, p. 84.

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Sobre esta discussão, entendemos que independente do criado descrito por Locke

possuir ou não os meios de produção para a execução do trabalho, o trecho em comento consiste

numa clara referência ao trabalho como fonte de moeda (esta convencionalmente aceita entre

os homens) e não como fonte dos meios de subsistências próprios daquele que o faz. Ou seja,

separa o trabalhador do produto de seu trabalho, que é vendido em troca de moeda. Esta, por

óbvio, será utilizada pelo criado para adquirir seus próprios meios de subsistência – e até outros

bens de consumo – num mercado que, nesta lógica, deve existir. Assim, permanece nosso

entendimento de que Locke advoga pelo comércio no sentido capitalista como decorrente da

condição natural humana e, ainda, pressupõe a venda da força de trabalho como legítima e,

portanto, em conformidade com a lei da natureza.

Vale a pena lembrar que “cada homem tem uma propriedade em sua própria pessoa; a

esta ninguém tem qualquer direito senão ele mesmo. O trabalho do seu corpo e a obra das suas

mãos, pode dizer-se, são propriamente dele” 191; de modo que a possibilidade de alienação da

força de trabalho permanece coerente com o restante de sua argumentação, vez que a vê como

uma propriedade e, portanto, alienável. Neste sentido, a justificativa jusnaturalista lockeana do

trabalho encontra neste não apenas o meio de tornar propriedade privada o que até então era

comum, mas ele mesmo se torna propriedade, alienável tal como qualquer outra. Torna-se,

portanto, mercadoria. Sobre este tema, Galvano Della Volpe nos apresenta importante lição:

É imediatamente claro que precisamente no conceito lockeano-jusnaturalista

da força de trabalho ou ‘atividade operante’ como propriedade-direito da

pessoa humana está a base filosófica, ou mais geral, da concepção económica

burguesa da força de trabalho como algo de privado, ocasião, portanto, de

relações de indivíduo a indivíduo, e numa palavra, objeto de troca,

mercadoria (e não apenas a base da propriedade privada da terra trabalhada,

segundo Locke). 192

Leia-se tal entendimento lockeano à luz do novo sistema produtivo e temos não apenas

uma separação entre propriedade e trabalho, mas uma relação onde este se reveste com as

características daquela – em especial a possibilidade de alienação. Nada mais oportuno num

sistema onde a acumulação de propriedade pode ocorrer à custa do trabalho alheio.

Nesta mesma linha segue Macpherson, para o qual o núcleo do individualismo de Locke

é a afirmativa de que todo homem é naturalmente o único proprietário de sua própria pessoa e

191 LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os

Pensadores), 1991, p. 227. 192 DELLA VOLPE, Galvano. Rousseau e Marx: a liberdade igualitária. Trad. António José Pinto Ribeiro.

Lisboa: Edições 70, 1982, p. 32.

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de suas próprias capacidades – especialmente sua capacidade de trabalho –, não devendo nada

à sociedade por isso. 193 Com efeito, a definição de sociedade de mercado possessivo em

Macpherson exalta exatamente este ponto:

Se se procura um critério único para a sociedade de mercado possessivo, ver-

se-á que o trabalho do indivíduo é uma mercadoria, ou seja, que a energia e a

destreza de uma pessoa são de sua propriedade, e no entanto não são levadas

em conta como integrantes de sua personalidade, mas como pertences, cujo

uso e aplicação ele tem liberdade para entregar aos outros por um preço. 194

Desta forma, a argumentação lockeana se coaduna oportunamente com as ideias típicas

do contexto inicial da modernidade, no que tange ao conceito de propriedade e da validade da

relação salarial como meio de aumento de propriedades, segundo a qual é lícito ao homem

vender aquilo que lhe pertence, no caso, sua força laboral, mediante um contrato livremente

firmado entre as partes que, neste novo sistema, são iguais. Dentro deste diapasão, o trabalho

então vendido torna-se propriedade de seu comprador que, conforme exposto, tem o direito de

se apropriar dos frutos deste trabalho para o aumento de suas propriedades. 195

3.2.4 A essencialidade do liberalismo lockeano para sua época

Com a construção teórica feita nos moldes expostos acima, Locke nos parece ser o

pensador chave para compreendermos o período de transição em que vivia. Com efeito, suas

ideias parecem legitimar o desenvolvimento do comércio no sentido capitalista196, vez que, sem

a ideia da troca, o indivíduo não teria razão para produzir mais do que o suficiente para si197; e,

como vimos acima, tal produção é amplamente defendida quando o pensador argumenta pela

maior produção ocasionada pela apropriação. Ainda, coerentemente com o advento do dinheiro,

193 MACPHERSON, C. B. Teoria política do individualismo possessivo de Hobbes até Locke. Trad. Nelson

Dantas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 227. 194 MACPHERSON, C. B. Teoria política do individualismo possessivo de Hobbes até Locke. Trad. Nelson

Dantas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 59. 195 MACPHERSON, C. B. Teoria política do individualismo possessivo de Hobbes até Locke. Trad. Nelson

Dantas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 227. 196 Cumpre ressaltar que Kiyoshi Shimokawa, mencionado alhures, rejeita a ideia de que o conceito de propriedade

em Locke consiste num conceito de propriedade burguesa. Refutando as ideias de Macpherson, Shimokawa nos

diz que antes de ser vista como um direito de alienar e dispor objetos, a propriedade para Locke é fruto do trabalho

do sujeito apropriador lockeano que se apropria dos bens primeiramente para seu consumo e sustento, antes mesmo

da ideia de troca e economia monetária se desenvolverem. (SHIMOKAWA, Kiyoshi. Locke’s Concept of Property

In: ANSTEY, Peter (Org.). John Locke: Critical Assessments of Leading Philosophers, Series II. Londres,

Routledge, 2006, p. 194). 197 KUNZ, Rolf. Locke, Liberdade, Igualdade e Propriedade. In: QUIRINO, Célia Galvão; VOUGA, Cláudio;

BRANDÃO, Gildo (orgs.). Clássicos do Pensamento Político. 2ª ed. São Paulo: USP, 2004, p. 117.

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temos que aquilo que se troca não se desperdiça, pois o excedente acaba, por conta do

intercambio realizado, servindo para suprir a necessidade de outro. Desta forma, a moeda

permite uma nova forma de acumulação e expansão da propriedade, de modo que os

industriosos e racionais podem se apropriar da terra para extrair dela seu máximo, enriquecendo

ilimitadamente sem violar ou prejudicar o direito dos demais. Estava legitimada a atividade de

apropriação em detrimento do trabalho como meio de acúmulo de propriedade:

Nessa altura passou a ser moralmente e convenientemente racional a

apropriação de terras em quantidades maiores do que as que poderiam ser

utilizadas para produzir um suprimento de bens de consumo para si próprio e

para sua família; ou seja, passou a ser racional apropriar terras para utilizá-las

como capital, o que implica na apropriação dos produtos excedentes do

trabalho de outrem, i. e., do trabalho dos que não têm terra própria. Em outras

palavras à altura em que trabalho e apropriação se tornaram separáveis, a plena

racionalidade pendeu mais para a apropriação do que para o trabalho. 198

Com efeito, a separação entre capital e trabalho marca uma etapa decisiva na transição

do feudalismo ao capitalismo. Aqui, algo semelhante ocorre. A ideia inicial de Locke,

desenvolvida no início do Segundo Tratado, deixava claro que o surgimento da propriedade

individual ocorre ao adicionarmos aos bens da natureza, comuns, algo próprio – o trabalho.

Agora, apresentados seus argumentos para a apropriação ilimitada, inclusive de terras, a

atividade de apropriação ganha força em detrimento do trabalho. Este, por sua vez, será

utilizado tão somente por aqueles que não possuem propriedade acumulada e, por esse exato

motivo, são obrigados a vender aquilo que lhes resta, a força de trabalho. 199

Neste contexto, é curioso notar que no estado de natureza, como vimos, o trabalho torna

propriedade particular aquilo que era então comum, já na sociedade civil o trabalho perde essa

característica:

198 MACPHERSON, C. B. Teoria política do individualismo possessivo de Hobbes até Locke. Trad. Nelson

Dantas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 246. 199 Macpherson reafirma a ideia de que Locke via a plena racionalidade na apropriação e não no trabalho: “A

inteira concepção de um estado de natureza monetária e comercial, que historicamente falando, é bobagem,

hipoteticamente é compreensível, mas só o é se atribuirmos à natureza humana, como fez Locke, a propensão

natural para acumular. Quer dizer, só é compreensível se se reinterpreta no estado de natureza um relacionamento

entre o ser humano e a natureza (ou seja, entre o homem e a terra enquanto fonte da subsistência humana) que é

tipicamente burguês, como o fez Locke na sua afirmativa de que a condição da vida humana insere inevitavelmente

a propriedade privada da terra e dos meios materiais para trabalhá-la. Foi porque Locke sempre supôs o

comportamento plenamente racional que pôde, à altura em que a lavra e a apropriação se separaram, descobrir que

a plena racionalidade residia na apropriação e não na lavra.” (MACPHERSON, C. B. Teoria política do

individualismo possessivo de Hobbes até Locke. Trad. Nelson Dantas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p.

247).

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Quase tudo na sociedade civil foi apropriado; em particular, a terra se tornou

escassa. O ouro e a prata não são apenas ‘valiosos a ponto de serem

entesourados’. Desse modo, seria de se esperar que a lei da natureza original

fosse substituída por regras que impusessem restrições muito mais severas

sobre a apropriação do que as que existiam no estado de natureza. Visto que

agora não há mais o suficiente para todos, a equidade deveria prescrever que

o direito natural do homem de se apropriar de quanto possa se servir se

restringisse ao direito de se apropriar de tanto quanto necessita, para que os

pobres não ‘vivam à míngua’. E visto que o ouro e a prata são agora muito

valiosos, a equidade deveria prescrever que o homem abrisse mão do direito

natural de acumular tanto dinheiro quanto lhe aprouver. Todavia, Locke

ensina exatamente o contrário: o direito de se apropriar é muito mais restrito

no estado de natureza do que na sociedade civil. O homem desfruta de um

privilégio no estado de natureza que de fato é negado na sociedade civil: o

trabalho não cria mais um título suficiente de propriedade. 200

A partir de tal análise, o uso da moeda permite que o homem possa acumular tanto

quanto consiga. Tal acumulação, entretanto, não mais se dá em virtude do seu trabalho

empregado à coisa, já que este, na sociedade civil, perde o valor intrínseco de transformar o

comum em privado. A isso que Leo Strauss chama “emancipação da aquisição” 201, Locke

justifica do único modo pelo qual é possível defendê-la: tal aquisição conduz ao bem comum,

à felicidade de todos e da sociedade. Isto, pois as restrições constantes do estado de natureza se

dão por conta da penúria desse estado, em contraposição à abundância que se verifica pela

produção gerada com a sociedade civil, afinal: “um rei de território grande e fértil lá [na

América], mora e veste-se pior que um trabalhador jornaleiro na Inglaterra.” 202 Ou seja, a tal

jornaleiro, o exercício dos direitos e privilégios do direito natural lhe daria menos riqueza do

que o salário que recebe pelo seu trabalho na sociedade civil. Desta forma, Locke inverte o jogo

e nos diz que a apropriação ilimitada e indiferente às necessidades dos outros é a verdadeira

caridade.

3.2.5 A desigualdade como condição natural

Conforme os argumentos apresentados no decorrer deste capítulo, vimos que Locke

consentia com a apropriação de mais terras do que um indivíduo isolado poderia utilizar para o

sustento de si e sua família. Isto, além de pressupor a relação salarial como meio de exploração

200 STRAUSS, Leo. Direito Natural e História. Trad. Bruno Costa Simões. São Paulo: WMF Martins Fontes,

2014, p. 291-292. 201 STRAUSS, Leo. Direito Natural e História. Trad. Bruno Costa Simões. São Paulo: WMF Martins Fontes,

2014, p. 291-294. 202 LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os

Pensadores), 1991, p. 232.

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destas terras por seus respectivos proprietários, ainda implica dizer que, com a apropriação

ilimitada não restariam terras boas e suficientes para os demais. Nem precisaria, pois a

produtividade das já apropriadas seria mais do que a natureza espontaneamente proveria e, com

o advento do uso do dinheiro, seus frutos poderiam ser acumulados em moeda, sem prejudicar

os demais.

Como consequência necessária desta teoria, uma parcela da população ficaria sem

propriedades, a não ser aquela intrínseca à sua pessoa, ou seja, sua força de trabalho que, na

visão liberal lockeana, é tratada como mercadoria tão alienável quanto as demais. Em resumo,

podemos inferir que a natureza humana, na visão de Locke, pressupõe a divisão da sociedade

em duas classes distintas: uma de proprietários e outra composta daqueles que, por não terem

propriedades para delas viverem, são obrigados a vender a única que lhes pertence, sua

capacidade de trabalho.

Macpherson ressalta que, ao tempo de Locke, os defensores da produção capitalista –

dentre eles o próprio Locke – ainda não tinham consciência acerca dos efeitos desumanizantes

de transformar o trabalho em mercadoria e, na ausência de tal consciência – que seria talvez

adquirida somente após os excessos da Revolução Industrial – não havia razão para não

acharem a relação salarial algo natural, como fez Locke. 203

Adicionalmente aos argumentos apresentados para demonstrar como Locke via a

relação salarial como natural, temos que o ingresso na sociedade civil, para o pensador, não cria

nenhum direito, mas apenas protege aqueles já existentes conforme a lei natural e, portanto, já

verificados no estado de natureza. Desta forma, o governo civil limita-se a fazer cumprir aqueles

preceitos da lei natural. É isso que nos parece dizer no parágrafo 135 do Segundo Tratado:

...porquanto, sendo ele [o poder legislativo] o poder em conjunto de todos os

membros da sociedade, cedido à pessoa ou grupo de pessoas que é o

legislador, não poderá ser mais do que essas pessoas tinham no estado de

natureza antes de entrarem em sociedade e o cederem à comunidade; porque

ninguém pode transferir a outrem mais poder do que possui, e ninguém tem

poder arbitrário absoluto sobre si mesmo ou sobre outrem, para destruir a

própria vida ou tirar a vida ou a propriedade de outrem. 204

A partir daí, nos é lícito inferir que Locke intentava demonstrar que o direito à

propriedade desigual é um direito constante do estado natural e que os homens apenas trazem

203 MACPHERSON, C. B. Teoria política do individualismo possessivo de Hobbes até Locke. Trad. Nelson

Dantas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 229-230. 204 LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os

Pensadores), 1991, p. 269.

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para a sociedade civil, sendo o consentimento individual no estado de natureza – e não a

instituição da sociedade civil – que justifica a propriedade que excede os limites naturais

iniciais. 205 Em resumo:

O postulado individualista é o postulado pelo qual Locke transforma a massa

dos indivíduos iguais (licitamente) em duas classes com direitos muito

diferentes, os que têm propriedade e os que não têm. Uma vez que todas as

terras estejam ocupadas, o direito fundamental de não ser sujeito à jurisdição

de outrem é tão desigual entre proprietários e não-proprietários, que difere em

espécie, não em grau: os que não têm propriedade são, reconhece Locke,

dependentes, para seu próprio sustento, dos que têm propriedades, e são

incapazes de alterar suas próprias contingências. A igualdade inicial de

direitos naturais, que consistia em indivíduo nenhum ter jurisdição sobre

outrem [parágrafo 4] não pode perdurar depois da diferenciação de

propriedades. Dito de outro modo, o indivíduo sem nenhuma posse de coisas

perde aquela plena condição de propriedade de sua própria pessoa que era a

base de sua igualdade de direitos naturais. E Locke insiste em que a

diferenciação da propriedade é natural, ou seja, que se verifica ‘fora dos

limites da sociedade, e sem pacto’ [parágrafo 50]. A sociedade civil é

instaurada para proteger posses desiguais, que já deram origem, no estado de

natureza, aos direitos desiguais. 206

Conforme tal sustentação, a doutrina lockeana pretenderia demonstrar que a

desigualdade – a divisão de classes entre proprietários e não proprietários – consiste em algo

inerente à natureza humana. A partir deste raciocínio podemos inferir que a doutrina medieval

do conformismo cristão recebe em Locke uma roupagem racional, legitimando a situação

desigual em que vivem os homens não mais com base no desejo divino, mas sim com base na

própria natureza humana, alcançada racionalmente. Uma e outra, assim, partem de diferentes

pressupostos para, ao fim, alcançarem a conclusão necessária para legitimar a desigualdade

verificada.

Desta forma, por conta do entendimento segundo o qual há um direito natural à

acumulação ilimitada, Locke pressupunha logicamente direitos de classes diferenciadas que

levavam à justificação de um estado de classes. 207 Ao entendermos tal colocação juntamente

com aquela segundo a qual os seres humanos são naturalmente iguais em capacidades,

chegamos a uma importante conclusão:

205 MACPHERSON, C. B. Teoria política do individualismo possessivo de Hobbes até Locke. Trad. Nelson

Dantas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 230. 206 MACPHERSON, C. B. Teoria política do individualismo possessivo de Hobbes até Locke. Trad. Nelson

Dantas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 243. 207 MACPHERSON, C. B. Teoria política do individualismo possessivo de Hobbes até Locke. Trad. Nelson

Dantas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 262.

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A suposição de que os homens naturalmente são por igual capazes de se

arranjarem por conta própria não foi inútil. Permitiu a Locke, em sã

consciência reconciliar as grandes desigualdades da sociedade observada com

a igualdade de direitos naturais, no sentido de igualmente capazes de cuidar

de si próprios, pode-se supor que os que ficarem para trás na corrida às

propriedades só podem pôr a culpa em si próprios. E somente na suposição de

que os indivíduos são, por igual, capazes de se arranjarem por conta própria é

que se pode achar equitativo deixar-se que se arranjem realmente, para que

defrontem no mercado sem as proteções que a velha doutrina da lei natural

defendia. A suposição de que todos os homens são por igual racionais quanto

à capacidade de se arranjarem por conta própria possibilita assim reconciliar

a justiça do mercado com as concepções tradicionais de justiça comutativa e

distributiva. 208

Frente a tal conclusão, não resta dúvida de que as colocações lockeanas vêm no sentido

de sustentar a meritocracia como meio de legitimação das desigualdades, já que estas, conforme

dito, não se baseiam na função desempenhada, como ocorria na Idade Média, mas sim conforme

a capacidade de lidar com as regras inerentes ao livre mercado.

3.2.6 Liberdade contratual e contratualismo

A partir das análises feitas acima, podemos concluir pela forte limitação de poderes

conferidos ao Estado, apresentando, portanto, uma noção bastante liberal, conforme

amplamente defendida nos séculos seguintes aos escritos de John Locke. Neste sentido, cabe

apontar as lições de Bobbio:

Ora, a teoria política de Locke é, nesse sentido, uma teoria objetivista da ética,

ao observar as inclinações e as necessidades naturais do homem – isto é, as

inclinações e necessidades que se manifestam no estado pré-social. Pretende

construir, sobre essa base, o castelo de todas as regras que pautam a

convivência social.

Quanto à função histórica do jusnaturalismo, insisto oportunamente sobretudo

em um ponto: o jusnaturalismo foi o caminho pelo qual passaram as várias

concepções que propuseram limites para o poder estatal. Ora, a construção

política de Locke obedece à ideia principal de que o bom governo é aquele

que nasce com limites que não podem ser ultrapassados, limites impostos pelo

fato de que as leis políticas veem depois das leis naturais, estando, por assim

dizer, a seu serviço. 209

Assim sendo, na visão lockeana a função do Estado, ou melhor, das leis políticas, é a de

proteger as leis naturais, manifestas no estado de natureza humano; em especial, aparece o

208 MACPHERSON, C. B. Teoria política do individualismo possessivo de Hobbes até Locke. Trad. Nelson

Dantas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 256. 209 BOBBIO, Norberto. Locke e o direito natural. Trad. Sérgio Bath. Brasília: UNB, 1997, p. 151.

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Estado como constructo humano necessário para a proteção da propriedade e da liberdade. Sua

visão se afasta, portanto, de qualquer visão paternalista ou absolutista de governo e centra-se

em conceitos que viriam a ser pontos essenciais de toda codificação de viés liberal: a

propriedade privada e a liberdade contratual.

Neste sentido, tendo sido explorada toda construção teórica lockeana no que tange à

propriedade, passemos agora à ideia de contrato. Neste tocante, Locke nos dirá sobre uma

vinculação contratual de ordem “privada” estabelecida neste estado pré-político:

As promessas e trocas para intercâmbio entre dois homens em uma ilha

deserta, mencionadas por Garcilaso de la Veja, na história do Peru, ou entre

um suíço e um índio nas florestas da América, os vinculam, embora estejam

perfeitamente em estado de natureza entre si; visto como a confiança e a

manutenção da palavra pertencem aos homens como homens e não como

membros da sociedade. 210

Estas afirmações são essências para compreender a ideia de formação do corpo político

como decorrente de um pacto associativo, cuja validade apenas se dá em virtude do mútuo

consentimento entre seus signatários, ressaltando a ideia de liberdade contratual como pré-

política, bem como evidenciando um fundamento sólido para a obediência do poder constituído

no momento posterior ao da celebração do pacto.

Ademais, no último excerto transcrito acima, fica evidente – como em outros pontos da

obra de Locke – seu entendimento acerca de uma moralidade natural do ser humano e da

formação de vínculos de natureza jurídica no estado natural humano. Não só a propriedade se

forma como direito de propriedade e isso independentemente de um poder político que institua

regras específicas e positivadas sobre seu domínio legítimo, mas também obrigações, tal como

a de intercâmbio de bens feito independentemente de um direito positivo disciplinando a

relação, também surge como vinculativo às partes que o celebram. Neste tocante, nos parece

que Locke parece sugerir como inerentes à natureza humana a própria ideia da autonomia

contratual, bem como dela extrair suas consequências, sendo a mais notável a própria

vinculação daquele que manifestou seu consentimento, conceito este central para a

compreensão de sua obra.

Fixadas as noções chaves para a compreensão de sua obra, notadamente a propriedade,

a liberdade contratual, bem como a força que possui em sua argumentação a ideia do

consentimento, cumpre-nos estabelecer as premissas abordadas por Locke para compreender o

210 LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os

Pensadores), 1991, p. 221.

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fundamento do poder político, ponto essencial de nossa pesquisa. Neste tocante, Locke

estabelece logo no início do Segundo Tratado as seguintes palavras:

...é impossível que os governantes ora existentes sobre a Terra colham

qualquer proveito ou derivem a menor sombra de autoridade daquilo que se

julga ser a fonte de todo poder: o domínio privado e a jurisdição paterna de

Adão; de sorte que aquele que não se inclina a supor seja qualquer governo no

mundo apenas produto da força e da violência, e que os homens somente

vivem juntos pelas mesmas regras dos animais, entre os quais o mais forte

leva a palma, estabelecendo por esse modo as bases para perpétua desordem

e discórdia, tumulto, sedição e rebelião – males contra os quais clamam tão

vivamente os seguidores dessa hipótese –, terá necessariamente de descobrir

outra origem para o governo, outra fonte do poder político e outra maneira de

escolher e conhecer as pessoas que o exercem diferente daquela que nos ensina

Sir Robert Filmer. 211

A partir deste trecho, fica claro o objeto de pesquisa de Locke, qual seja, verificar uma

fonte para o poder político, diversa do domínio privado e daquela de Robert Filmer, alvo de seu

Primeiro Tratado. Adiciona, em seguida, sua definição de poder político:

Considero, portanto, poder político o direito de fazer leis com pena de morte

e, consequentemente, todas as penalidades menores para regular e preservar a

propriedade, e de empregar a força da comunidade na execução de tais leis e

na defesa da comunidade de dano exterior; e tudo isso tão-só em prol do bem

público. 212

A partir destas premissas, Locke nos dirá que “para compreender o poder político e

derivá-lo de sua origem, devemos considerar em que estado todos os homens se acham

naturalmente” 213. Como vimos no início deste capítulo, tal estado é caracterizado por Locke

como sendo um estado de liberdade (inicialmente pensado de forma ideal e depois apresentado

em sua forma real), bem como de igualdade, na medida em que há entre os homens

reciprocidade de poder e jurisdição. A partir daí, Locke irá sugerir, em linha com a tradição

contratualista, a renúncia do direito natural de execução das leis da natureza em favor da criação

do corpo social, via pacto:

Contudo, como qualquer sociedade política não pode existir nem subsistir sem

ter em si o poder de preservar a propriedade e, para isso, castigar as ofensas

211 LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os

Pensadores), 1991, p. 215. 212 LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os

Pensadores), 1991, p. 216. 213 LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os

Pensadores), 1991, p. 217.

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de todos os membros dessa sociedade, haverá sociedade política somente

quando cada um dos membros renunciar ao próprio poder natural, passando-

o às mãos da comunidade em todos os casos que não lhe impeçam de recorrer

à proteção da lei por ela estabelecida. E assim, excluindo-se todo julgamento

privado de qualquer cidadão particular, a comunidade torna-se árbitro em

virtude das regras fixas estabelecidas, indiferentes e as mesmas para todas as

partes (...) Os que estão unidos em um corpo, tendo comum estabelecida e

judicatura – para a qual apelar – com autoridade para decidir que não têm essa

apelação em comum, quero dizer, sobre a Terra, ainda se encontram no estado

de natureza, sendo cada um, onde não há outro, juiz para si e executor, o que

constitui, conforme mostrei anteriormente, o estado perfeito de natureza. 214

Esta é, certamente, uma das passagens mais emblemáticas do Segundo Tratado. Nela

Locke nos apresenta a ideia central da formação do corpo social como sendo a preservação da

propriedade, bem como os meios para que isso ocorra na sociedade política, ou seja, a existência

de leis comuns (e aplicáveis a todos igualmente) e a ausência de julgamentos privados.

Ademais, deixa claro que a formação da sociedade política cria um corpo, com judicatura, no

sentido que gerar uma autoridade bastante para decidir sobre controvérsias. Está, assim,

delineada a estrutura do argumento contratualista de John Locke.

Neste sentido, a recusa ao entendimento de viés absolutista defendido por Hobbes e a

defesa de uma espécie de Estado de Direito, conceito chave para a compreensão da formulação

do Estado moderno, vem de forma expressa na obra lockeana, já que “é evidente que a

monarquia absoluta, que alguns consideram o único governo no mundo, é, de fato, incompatível

com a sociedade civil.” 215 Neste sentido, a existência de príncipes absolutos coloca-o num

estado de natureza no que tange aos seus súditos, posto que o governo absoluto não é compatível

com a ideia de sociedade política defendida por Locke. 216

Adicionalmente, o contexto posterior ao pacto, na obra de Locke, coaduna-se com sua

visão liberal e vinculada aos interesses sócio-políticos do período histórico em que escreveu

214 LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os

Pensadores), 1991, p. 249. 215 LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os

Pensadores), 1991, p. 250. 216 O pensador chega, inclusive, a apontar o estado de natureza como superior ao modelo absoluto: “...mas desejaria

que quem fizer essa objeção se lembre serem os monarcas absolutos somente homens, e se o governo tiver de ser

o recurso para os males que necessariamente decorrem de serem os homens juízes em causa própria, não sendo

por isso de suportar-se o estado de natureza, desejo saber que espécie de governo deverá ser este, e quão melhor

será do que o estado de natureza, em que um homem, governando uma multidão, tem a liberdade de ser juiz em

seu próprio caso, podendo fazer aos súditos tudo quanto lhe aprouver, sem que alguém tenham a liberdade de

formular perguntas aos que lhe executam as vontades ou de controla-los, devendo todos a ele submeter-se, seja lá

o que for que ele faça, levado pela razão, pelo erro ou pela paixão? Muito melhor será no estado de natureza, no

qual os homens não estão obrigados a submeter-se à vontade injusta de outrem; e se aquele que julga julgar

erroneamente no seu próprio caso ou no de terceiros; é responsável pelo julgamento perante o restante dos

homens.” (LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os

Pensadores), 1991, p. 220).

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suas obras217, notadamente quanto ao poder do parlamento em detrimento do poder absoluto,

discussão chave para compreender as disputas políticas da Inglaterra do século XVII. Inobstante

sua opção pelo parlamento, sua concepção de Poder Legislativo218 inclui limitações ao poder

constituído no sentido de resguardar os direitos naturais do indivíduo. Tais limitações podem

ser sintetizadas da seguinte forma: 1) o poder transmitido não pode exceder ao poder detido

antes do pacto e, portanto, o legislativo não poderá arbitrariamente ser exercido contra a vida e

os bens dos indivíduos, manifestando, assim, a tônica central de seu jusnaturalismo; 2) as leis

não podem se dar de forma extemporânea a arbitrária. Trata-se aqui de uma manifestação acerca

do princípio da legalidade, preocupado com a incerteza daquele estado de natureza, em que a

fruição da propriedade e da vida não se manifestavam de forma segura; 3) a terceira limitação

é de ordem econômica, já que “o poder supremo não pode tirar a qualquer homem parte da sua

propriedade sem consentimento dele” 219, questão que, como veremos, foi incluída na maioria

expressiva dos diplomas constitucionais fundantes da modernidade jurídica, notadamente na

Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789220e na Constituição

Americana de 1787221. Importante apontar, ainda, a referência expressa a impostos feita por

Locke ao expor tal limitação: “Se alguém pretender possuir o poder de lançar impostos sobre o

povo, pela autoridade própria sem estar por ele autorizado, invadirá a lei fundamental da

propriedade e subverterá o objetivo do governo”222; por fim 4) a quarta e última limitação

217 Destacamos, neste assunto, a Petition of Rights de 1628 e a Bill of Rights de 1689. 218 Destaque-se que, para Locke: “O grande objetivo da entrada do homem em sociedade consistindo na fruição

da propriedade em paz e segurança, e sendo o grande instrumento e meio disto as leis estabelecidas em paz e

segurança, a primeira lei positiva e fundamental de todas as comunidades consiste em estabelecer o poder

legislativo.” (LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural

(Os Pensadores), 1991, p. 268) 219 LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os

Pensadores), 1991, p. 270. 220 Destacam-se os artigos 2 e 17 do referido diploma: “Art. 2º. A finalidade de toda associação política é a

conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade a

segurança e a resistência à opressão.”

“Art. 17. Como a propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado, a não ser quando

a necessidade pública legalmente comprovada o exigir e sob condição de justa e prévia indenização.” 221 Neste sentido, a Constituição assinada em 17 de setembro de 1878 traz dois artigos importantes: “Artigo V:

Ninguém será chamado a responder por um crime capital, ou infamante, a menos que sob denúncia ou indiciamento

oriundo de um grande júri, exceto em casos que se apresentem nas forças terrestres e navais, ou na milícia, quando

chamadas a serviço ativo em tempo de guerra ou perigo público; ninguém poderá ser acusado duas vezes pelo

mesmo crime com risco de perder a vida ou parte do corpo; ninguém será obrigado, em qualquer caso criminal, a

testemunhar contra si mesmo, nem ser privado da vida, liberdade ou propriedade, sem o devido procedimento

legal; nenhuma propriedade privada será tomada para um uso público sem uma justa compensação.”

“Artigo XIV: Todos os indivíduos nascidos ou naturalizados nos Estados Unidos, e submetidos à sua jurisdição,

são cidadãos dos Estados Unidos e do Estado onde residem. Nenhum Estado fará ou aplicará qualquer lei que

restrinja os privilégios ou imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos; nenhum Estado privará qualquer pessoa

da vida, da liberdade ou da propriedade, sem o devido procedimento legal, nem negará a qualquer pessoa dentro

da sua jurisdição a proteção equitativa das leis.” 222 LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os

Pensadores), 1991, p. 270.

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estabelecida por Locke refere-se a indelegabilidade do poder atribuído, no sentido de que a

formação do poder legislativo se dá por instituição positiva e voluntária do povo para a função

de fazer leis.

Destaque-se, por derradeiro, que Locke difere dos demais contratualistas por não ver o

argumento do contrato social como mera hipótese teórica para o alcance dos direitos naturais

humanos e do fundamento do poder político, mas como possível realidade histórica, o que

transparece especialmente a partir de passagens do capítulo VIII do Segundo Tratado,

destacando-se o parágrafo 102, em que menciona a formação de Roma e Veneza por homens

livres; também o parágrafo 103, no que tange à formação de Esparta por livre assentimento; e,

por fim, o parágrafo 104, que manifesta o entendimento segundo o qual “os governos do mundo

começados em paz tiveram o princípio estabelecido nessa base, tendo sido formados mediante

o consentimento do povo”. 223

Em resumo, a partir de uma leitura atenta do Segundo Tratado, observamos que Locke

aponta a preservação da propriedade como o objetivo de se unirem os homens, ou seja, como

motivo essencial para a celebração do pacto social constitutivo da sociedade civil, ainda que

por vezes inclua neste conceito a vida e a liberdade. Com razão, Mario Losano afirma que

“Locke é talvez o único a dizer claramente que, para a sociedade na qual ele vive, o bem comum

consiste na garantia da propriedade privada.” 224 Como vimos, na referida obra John Locke

pretende demonstrar a existência do direito de propriedade num estado pré-político e, portanto,

como direito natural (ainda que alcançado racionalmente, na linha do jusnaturalismo moderno).

Para a proteção deste e dos demais direitos naturais, Locke apresenta a sociedade civil. As

condições que faltam no estado de natureza e devem manifestar-se no estado civil são, em

resumo, a falta de uma lei estabelecida e aceita por consentimento comum, a falta de um juiz

imparcial e um suporte à sentença quando justa. 225 A partir destes conceitos, Locke nos

223 LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os

Pensadores), 1991, p. 256. 224 LOSANO, Mario G. Os grandes sistemas jurídicos: introdução aos sistemas jurídicos europeus e extra-

europeus. Trad. Marcela Varejão. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 555. E, de fato, é o que se verifica no mundo

ocidental: “El estado mundo occidental de nuestros días, igual que el del pasado, es la consecuencia inevitable de

las diferencias económicas y tiene como finalidad suprema la defensa de la propiedad privada, mediante ejércitos

y cárceles o al través de un ordenamiento jurídico que otorgue un grado más o menos importante de libertad,

compatible con la estabilidad del sistema.” (CUEVA, Mario de la. La idea del estado. 5ª. Ed., México:

UNAM/Fondo de Cultura Económica, 1996, p. 414). Em tradução livre: “O estado do mundo ocidental de nossos

dias, como no passado, é a consequência inevitável das diferenças econômicas e tem como finalidade suprema a

defesa da propriedade privada, mediante exércitos e prisões ou através de um ordenamento jurídico que outorgue

um grau mais ou menos importante de liberdade, compatível com a estabilidade do sistema.” 225 LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os

Pensadores), 1991, p. 264.

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apresentará um estado civil protetor dos direitos naturais, bem como centrado no conceito de

consentimento, remetendo-nos, portanto, à ideia de uma democracia representativa.

3.3 Jean-Jacques Rousseau e o contrato social

Jean-Jacques Rousseau assumiu um papel singular no cenário filosófico e político de

sua época na medida em que, por um lado, combatia os paradigmas que fundamentavam o

Antigo Regime e, por outro, já apresentava uma postura crítica em relação às novas ideologias

emergentes naquele momento. À guisa de introito aos apontamentos que serão feitos à frente

sobre as teorias do pensador genebrino concernentes ao problema da sociabilidade humana e o

fundamento do poder político, cumpre reproduzir a lição de Félicien Robert Challaye226 quando

nos diz que é a ideia de volta à natureza que dá unidade à obra de Rousseau na medida em que

este conclui pela superioridade do estado de natureza sobre o estado de sociedade. Neste

sentido, temos que no Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os

Homens (doravante o Segundo Discurso) expõe a condição natural humana, bem como os

problemas verificados no limite de seu estado natural; no Contrato Social procurará restabelecer

na sociedade as vantagens do estado de natureza que o homem é constrangido a suportar; e em

Emílio se esforça na realização de uma volta à natureza por meio da educação.

Neste ponto ainda inicial, cabe direcionar nossa atenção ao aspecto metodológico do

pensamento de Rousseau, no sentido de apresentar suas ideias (especialmente acerca do estado

de natureza e sua transição para o estado civil) como meras conjecturas e não realidades

históricas:

Confesso que, como os acontecimentos que tenho de descrever podem ter

sucedido de várias maneiras, só por conjeturas posso determinar-me pela

escolha; mas, além de essas conjeturas se tornarem razões quando são as mais

prováveis que se possam tirar da natureza das coisas e os únicos meios com que

se possam contar para descobrir a verdade, as consequências que quero deduzir

das minhas nem por isso serão conjeturais, uma vez que, sobre os princípios que

acabo de estabelecer, seria impossível formar qualquer outro sistema que não

me fornecesse os mesmo resultados e do qual eu não pudesse tirar as mesmas

conclusões. 227

226 CHALLAYE, Félicien Robert. Pequena história das grandes filosofias. Trad. Luiz Damasco Penna e J.B.

Damasco Penna. São Paulo: Editora Nacional, 1966, p. 179. 227 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens:

precedido de discurso sobre as ciências e as artes. Trad. Maria Ernantina de Almeida Prado Galvão. 3ª ed. São

Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 200.

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103

Aponta, portanto, sua recusa aos fatos que podem cambiar, o que não acontece com

conjecturas racionalmente pensadas a partir de seu método, possibilitando-o, assim, chegar nos

princípios políticos que iremos apresentar ao longo deste capítulo, os quais, como consequência

do emprego de tal método, não serão meramente conjecturais. Assim, no Segundo Discurso,

“evitando ‘recorrer aos testemunhos incertos da História’, ele começa ‘por afastar todos os

fatos’”228, o que irá distanciá-lo substancialmente da metodologia empregada por Grotius. Esta

não seria, em verdade, a única diferença entre os dois pensadores. Embora Rousseau tenha

certamente se valido das lições de Grotius para a formulação de seus escritos, o que era

inevitável à época, Rousseau, como iremos apresentar neste capítulo, irá rejeitar a defesa do

poder real feita por Grotius, sobre qual irá deflagrar inúmeros ataques, especialmente em seu

Contrato Social229, apontando certa desonestidade intelectual de Grotius pela defesa do poder

real em detrimento do povo, visando agradar interesses. Embora Grotius tenha consciência de

que não é mais possível legitimar o poder real com base no direito divino, nem por isso deixa

de ser partidário da monarquia absolutista, de tal sorte que procura justificar seu poder

independente do direito divino que até então o fazia.

Superado este ponto, vejamos o Segundo Discurso, em que Rousseau nos diz claramente

que o mal não reside na natureza humana, mas sim nas estruturas sociais, sobretudo na

legitimação da propriedade. Com efeito, na obra em comento, Rousseau inicia por conjecturar

acerca da condição humana num estado pré-político, antes, portanto, do advento da sociedade

civil e a consequente formalização das relações de propriedade. Conforme já ressaltamos, a

ideia de natureza é um conceito central para compreender Rousseau, já que a crítica à sociedade

civil já corrompida – posto que fundada na desigualdade – só pode ser realizada a partir do

retorno à natureza para interrogá-la e conhecer sua influência sobre a alma humana e nos

mostrar quanto nos afastamos desse estado original. 230

É importante destacar que nesta tentativa de reconstruir a condição humana natural

Rousseau tinha em mente não confundir o homem selvagem com os homens de hoje, já

corrompidos pelo processo civilizatório, crítica esta imputada certeiramente a Hobbes. 231

228 DERATHÉ, Robert. Jean-Jacques Rousseau e a ciência política de seu tempo. Trad. Natalia Maruyama. São

Paulo: Barcarolla, 2009, p. 122. 229 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social ou Princípios do Direito Público. Trad. Lourdes Santos

Machado. São Paulo, Nova Cultural (Os pensadores), 1999, p. 88. 230 PISSARA, Maria Constança Peres. História e Ética no Pensamento de Jean-Jacques Rousseau. [Tese de

Doutorado]. São Paulo: PUC-SP, 1996, p.15. 231 Neste sentido: “Enfim, todos, falando incessantemente de necessidade, de avidez, de opressão, de desejos e de

orgulho, transportaram para o estado de natureza ideias que haviam tirado da sociedade: falavam do homem

selvagem e descreviam o homem civil.” (ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos

da desigualdade entre os homens: precedido de discurso sobre as ciências e as artes. Trad. Maria Ernantina de

Almeida Prado Galvão. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 161).

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3.3.1 Estado de natureza e as relações de propriedade em seu limite

Para compreender o contratualismo de Rousseau é importante atentarmos a um conceito

essencial que fará com que a liberdade natural humana seja desvirtuada, ensejando a propositura

do pacto: a propriedade. Rousseau trabalha na primeira parte de seu Segundo Discurso os

aspectos físicos e psicológicos do homem em seu estado natural. Já na Segunda Parte, irá nos

apresentar ao limite do estado de natureza, em que este transforma-se em estado de guerra; tal

se deve ao advento da propriedade. Como vimos acima, Locke apontava a propriedade como

um direito natural humano, de tal modo a existir independentemente de uma sociedade civil

que a estabeleça. Locke será, dentre os contratualistas aqui analisados, o único a sustentar tal

posição, muito embora tenha sido esta a posição adotada nos diplomas jurídicos fundantes do

modernismo jurídico. Como vimos, Hobbes entende ser o estado de natureza um estado

beligerante exatamente pela ausência de direitos e de autoridade para instituí-los, dando

destaque ao conceito de propriedade. Rousseau, neste assunto, seguirá a linha hobbesiana e,

como veremos, irá apontar o direito de propriedade como surgido apenas a partir do pacto. Com

isso em mente, já na primeira parte de seu Segundo Discurso pontua a ausência da ideia de

propriedade no homem natural (ou selvagem):

Com paixões tão pouco ativas e um freio tão salutar, os homens, antes

selvagens do que maus e mais preocupados em proteger-se do mal que podiam

receber do que tentados a fazê-lo a outrem, não estavam sujeitos a rixas muito

perigosas; como não tinham entre si nenhum tipo de relações e não conheciam,

consequentemente, nem a vaidade, nem a consideração, nem a estima, nem o

desprezo; como não tinham a menor noção do teu e do meu, nem nenhuma

verdadeira ideia de justiça...232

Desta forma, o homem selvagem não tendo ainda “inventando” a propriedade não

poderia, por conseguinte, entender qualquer relação de pertencimento pessoal com exclusão

dos demais; não tinha, portanto, a ideia de algo seu em contraposição a algo não seu, do outro.

Tal pensamento leva o pensador a estabelecer uma correlação entre esta condição de homens

que nada possuem e a possibilidade de dependência e sociabilidade entre eles. Vejamos:

Um homem bem poderá apoderar-se dos frutos que outro colheu, da caça que

matou, do antro que lhe servia de refúgio; mas como conseguirá ele fazer-se

232 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens:

precedido de discurso sobre as ciências e as artes. Trad. Maria Ernantina de Almeida Prado Galvão. 3ª ed. São

Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 193.

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105

obedecer, e quais poderão ser as cadeias da dependência entre homens que

nada possuem? Se me expulsam de uma árvore, o único inconveniente será ir

para outra; se me atormentam num lugar, o que me impedirá de ir para outro?

E se surgir um homem com uma força bastante superior à minha e, além do

mais, bastante depravado, preguiçoso e feroz para forçar-me a prover a sua

subsistência enquanto permanece ocioso? Ele terá de resolver-se a não me

perder de vista um só instante, a manter-me amarrado com muitíssimo cuidado

durante o sono, temendo que eu escape ou o mate, ou seja, será obrigado a

expor-se voluntariamente a um trabalho muito maior do que aquele que quer

evitar e do que aquele que me impõe. 233

Entende Rousseau, portanto, que neste estado de natureza em que não há ainda no

espírito humano qualquer noção de propriedade, não pode haver qualquer relação de

dependência entre os homens; afinal, se não há qualquer relação de propriedade firmada entre

os frutos da terra e os humanos que dele usufruem, tudo pertence igualmente a todos e há

alimentos suficientes para que todos possam saciar sua fome, de modo que qualquer briga por

território ou alimento perde seu sentido, conforme o trecho transcrito acima, visto que no estado

de natureza não há uma desigualdade que conceda ao mais forte qualquer autoridade sobre o

mais fraco. Como consequência, o homem selvagem situado neste estado preza apenas por suas

reais necessidades e pode saciá-las com os produtos da natureza, existentes em quantidade

suficiente para ele e seus semelhantes (conforme o pressuposto da abundância também previsto

em Locke).

Diante disso, temos que a ideia de um direito de propriedade encontrada por Locke já

no estado natural aparecerá em Rousseau apenas com o estabelecimento posterior da sociedade

civil, que tornará o direito precário e provisório do primeiro ocupante um direito legítimo e

reconhecido. O estabelecimento da sociedade, conforme a construção elaborada por Rousseau,

torna a usurpação um verdadeiro direito, apagando o vício de sua origem. 234

Em síntese, temos que embora partam de um pressuposto de abundância no estágio

humano primitivo, Rousseau e Locke divergem quanto à existência ou não de uma relação de

propriedade necessária para a apropriação e consumo dos frutos disponíveis no estado de

natureza. Para Locke, como vimos, a relação de propriedade deve se firmar com vistas a garantir

a apropriação individual do bem pelo indivíduo, garantindo sua sobrevivência sem a possível

interferência dos demais. Já para Rousseau, não há qualquer relação de propriedade que possa

ser reclamada sem a instituição da sociedade civil e, portanto, ao homem primitivo não cabe

233 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens:

precedido de discurso sobre as ciências e as artes. Trad. Maria Ernantina de Almeida Prado Galvão. 3ª ed. São

Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 199. 234 VIEIRA, Luiz Vicente. A democracia em Rousseau: a recusa dos pressupostos liberais. Porto Alegre:

EDIPUCRS, 1997, p. 81.

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estabelecê-la. Conforme este entendimento, a situação da humanidade no estado de natureza

altera-se drasticamente em seu limite, com o surgimento da noção de propriedade. Logo no

início da segunda parte de seu Segundo Discurso, Rousseau assim nos diz:

O primeiro que, tendo cercado um terreno, atreveu-se a dizer: Isto é meu, e

encontrou pessoas simples o suficiente para acreditar nele, foi o verdadeiro

fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, assassínios, quantas

misérias e horrores não teria poupado ao gênero humano aquele que,

arrancando as estacas ou enchendo o fosso, houvesse gritado aos seus

semelhantes: ‘Evitai ouvir esse impostor. Estareis perdidos se esquecerdes que

os frutos são de todos e que a terra não é de ninguém’. Porém, ao que tudo

indica, então as coisas já haviam chegado ao ponto de não mais poder

permanecer como eram, pois essa ideia de propriedade, dependente de muitas

ideias anteriores que só puderam nascer sucessivamente, não se formou de

uma só vez no espírito humano. Foi necessário fazer-se muitos progressos,

adquirir-se muito engenho e luzes, transmiti-los e aumentá-los de século em

século, antes de se chegar a esse derradeiro limite do estado de natureza. 235

Neste trecho, as consequências advindas do estabelecimento da propriedade são

claramente expostas por Rousseau: “Quantos crimes, guerras, assassínios, quantas misérias e

horrores não teria poupado...”. Em outra parte, Rousseau procura explicar a transformação do

homem primitivo e a introdução da propriedade, não deixando de evidenciar as terríveis

consequências que emergem desta condição:

Quanto mais se esclarecia o espírito, mais se aperfeiçoava o engenho. Logo,

deixando de adormecer embaixo da primeira árvore, ou de recolher-se a

cavernas, descobriram alguns tipos de machados e pedras duras e cortantes,

que serviram para cortar madeira, escavar a terra e fazer choupanas de

ramagens, que depois tiveram a ideia de revestir de argila. Essa foi a época de

uma primeira revolução que formou o estabelecimento e a distinção das

famílias e que introduziu uma espécie de propriedade, da qual nasceram talvez

muitas brigas e combates. No entanto, como os mais fortes foram

provavelmente os primeiros a fazer habitações que se sentiam capazes de

defender, é de se crer que os fracos julgaram mais rápido e mais seguro imitá-

los do que tentar desalojá-los; e, quanto àqueles que já possuíam cabanas,

nenhum deles deve ter procurado apropriar-se daquela do vizinho, não tanto

por ela não lhe pertencer, mas por lhe ser inútil e por não poder apoderar-se

dela sem expor-se a um combate violento com a família que a ocupava. 236

235 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens:

precedido de discurso sobre as ciências e as artes. Trad. Maria Ernantina de Almeida Prado Galvão. 3ª ed. São

Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 203. 236 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens:

precedido de discurso sobre as ciências e as artes. Trad. Maria Ernantina de Almeida Prado Galvão. 3ª ed. São

Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 207-208.

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107

O estado de guerra previsto por Rousseau, inicia-se, portanto, no extremo limite do

estado de natureza, com o advento da propriedade. A partir desta ideia, temos que a apropriação

de terras se encontra na raiz dos problemas da sociabilidade humana, na medida em que

circunscreve o domínio de um homem sobre um pedaço da natureza. Neste espaço, os demais

ficam sujeitos à tirania do proprietário. Olgária Matos nos ajuda a compreender os efeitos

decorrentes das apropriações:

Enquanto subsistiu a ‘floresta’, o homem pôde escapar à tirania das relações

sociais e a seus efeitos coercitivos. Quando o ‘reino da floresta’ findou, toda

a terra começou a ser cultivada, dominada pelo proprietário mais forte que

usurpou a terra aos ocupantes primitivos; os homens não encontraram mais

refúgio para sua liberdade, viram-se forçados ao estado de guerra, à alienação.

237

A partir da doutrina lockeana analisada acima, a apropriação de todas as terras é

considerada legítima, posto que, dentre outros fatores, a produtividade pelo cultivo excede a

produção espontânea da natureza. Como consequência, apontamos o estabelecimento de duas

classes distintas, a dos proprietários e a dos não proprietários. Aqui, à luz do pensamento de

Rousseau, temos que a apropriação de terras – até então comuns a todos os homens – por um

proprietário mais forte, sujeitará os demais homens à tirania das relações sociais e seus

consequentes efeitos coercitivos.

Adicionalmente, temos que para possuir algo é necessário proteger, de modo que,

quanto às terras, é necessário delimitar e defender; como consequência desta situação, os menos

hábeis ou menos violentos tornar-se-ão pobres. 238 Conforme tal situação é consolidada

mediante a apropriação de todas as terras, aos não proprietários não é mais possível o exercício

da liberdade que desfrutavam no estado natural. Como consequência, o homem se sujeita a

novas paixões que não aquelas inerentes à sua natureza e de possível exercício no estado natural,

o qual se transforma em estado de guerra. Em resumo, o homem, frente à consolidação da lei

da propriedade, aliena-se:

De onde provém esta ‘nefasta consequência’? A resposta está na ideia de

produção: quando os homens começam a produzir além de suas necessidades

reais, começam a disputar o supérfluo, não se quer mais desfrutar (jouir) mas

possuir, não se deseja mais os bens atuais mas os signos abstratos dos bens

possíveis (as apropriações futuras); o homem precisa satisfazer ‘uma

infinidade de paixões que são obra da sociedade’. 239

237 MATOS, Olgária C.F. Rousseau: uma arqueologia da desigualdade. São Paulo, M.G. Editores, 1978, p. 83-84. 238 MATOS, Olgária C.F. Rousseau: uma arqueologia da desigualdade. São Paulo, M.G. Editores, 1978, p. 84. 239 MATOS, Olgária C.F. Rousseau: uma arqueologia da desigualdade. São Paulo, M.G. Editores, 1978, p. 84.

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108

A partir da introdução da propriedade, portanto, passa a existir a ideia de meu, em

contraposição ao seu. Como consequência desta nova situação emerge o individualismo,

prezando mais pelo meu, do que pelo próprio eu. Tal posição agrava-se com a inclusão da ideia

de consideração:

Cada qual começou a olhar os outros e a querer ser olhado por sua vez, e a

estima pública teve um preço. Aquele que cantava e dançava melhor; o mais

belo, o mais forte, o mais hábil ou o mais eloquente passou a ser o mais

considerado, e foi esse o primeiro passo para a desigualdade e para o vício ao

mesmo tempo; dessas primeiras preferências nasceram, de um lado a vaidade

e o desprezo, do outro a vergonha e o desejo; e a fermentação causada por

esses novos germes produziu por fim compostos funestos à felicidade e à

inocência.

Assim que os homens começaram a apreciar-se mutuamente e lhes formou no

espírito a ideia de consideração, cada qual pretendeu ter direito a ela e não foi

mais possível privar ninguém dela impunemente. 240

Este trecho demonstra claramente a tomada de consciência do humano, ou seja, a

consciência de si, em contraposição ao outro. A partir daí, nas relações sociais, a satisfação

advém em função do outro241, o eu opõe-se e define-se diante do outro, necessita

reconhecimento. 242 Como consequência, ocorre a divisão entre ser e parecer e o homem, antes

livre, torna-se, por conta desta nova consciência e das novas necessidades, escravo do outro:

Por outro lado o homem, de livre e independente que era antes, passou a estar,

em virtude de uma profusão de novas necessidades, por assim dizer sujeito a

toda natureza, sobretudo aos seus semelhantes, de quem num sentido se torna

escravo, mesmo em se tornando seu senhor; rico, precisa de seus serviços;

pobre, precisa de seu auxílio, e a mediocridade não o coloca em situação de

viver sem eles. Logo, é necessário que incessantemente procure interessá-los

em sua sorte e fazê-los encontrar, real ou aparentemente, proveito em trabalhar

para o seu próprio; isso torna-o dissimulado e artificioso com uns, imperioso

e duro para com outros e torna-lhe imprescindível lograr todos aqueles de que

necessita, quando não pode fazer-se temer por eles e não acha de seu interesse

servi-los utilmente. Enfim, a ambição devoradora, a gana de aumentar sua

fortuna relativa, menos por verdadeira necessidade do que para ficar acima

240 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens:

precedido de discurso sobre as ciências e as artes. Trad. Maria Ernantina de Almeida Prado Galvão. 3ª ed. São

Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 210-211. 241 “Na filosofia da história exposta no segundo Discurso, a sociabilidade está fundada no princípio da separação:

a ‘festa primitiva’ fornece as condições para que os homens se comparem entre si, buscando distinguir-se dos

demais, levados pelo desejo da estima pública, quando então o amor-de-si terá se degenerado em amor-próprio. A

imaginação, influenciando de modo determinante as paixões, suscita no homem a expansão dos desejos. Na ânsia

de ser o centro das atenções e obter a consideração de todos, o homem passa a modelar o seu comportamento em

função da opinião alheia.” (FREITAS, Jacira de. Política e festa popular em Rousseau: a recusa da representação.

São Paulo: Humanitas, 2003, p. 54). 242 MATOS, Olgária C.F. Rousseau: uma arqueologia da desigualdade. São Paulo, M.G. Editores, 1978, p. 72.

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dos outros, inspiram a todos os homens uma nefanda inclinação para se

prejudicarem mutuamente, uma inveja secreta tanto mais perigosa quanto,

para aplicar seu golpe com maior segurança, frequentemente assume a

máscara da benevolência; em suma, concorrência e rivalidade de um lado,

oposição de interesses do outro e sempre o desejo oculto de tirar proveito à

custa de outrem; todos esses males constituem o primeiro efeito da

propriedade e o cortejo inseparável da desigualdade nascente. 243

Assim sendo, um dos principais efeitos do processo civilizatório consiste na

diferenciação do ser e do parecer. Os homens, conforme alterados por tal processo, passam a

aparentar superficialmente todas as virtudes sociais para, em verdade, alcançarem objetivos

puramente egoístas. A partir desse universo representativo e simbólico temos o afastamento da

natureza na medida em que tal oposição é consequência da contradição existente entre a vida

em sociedade e os impulsos naturais. 244 Como consequência desta dicotomia ser-parecer cada

homem se torna um ser duplo, vive em dois planos distintos simultaneamente: o do universo

interior e aquele onde predominam as imposições da vida social. 245

Neste ponto, a dependência humana, então inexistente no estado de natureza, torna-se

relevante e atinge as relações de trabalho, fazendo com que este perca sua integralidade e se

fragmente. Adicionalmente, para Rousseau246, o domínio e desenvolvimento da metalurgia

(ferro) e da agricultura (trigo) constituíram grande revolução e, se por um lado civilizaram o

homem, por outro ocasionaram a divisão do trabalho que, ao se desenvolver, tornou a atividade

humana cada vez mais parcializada, perdendo o trabalho sua integridade. Na medida em que

alguns passaram a se dedicar exclusivamente ao ferro, foi necessário que os outros homens

trabalhassem para suprir aqueles. Com o desiquilíbrio entre o emprego do ferro e o consumo de

alimentos, e com a situação instaurada onde ninguém mais podia viver sem a dependência dos

outros, aumenta-se a dificuldade de viver e, progressivamente, aumentam-se as desigualdades.

247 Neste tocante, cumpre destacar a relação entre trabalho e propriedade na obra de Rousseau:

243 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens:

precedido de discurso sobre as ciências e as artes. Trad. Maria Ernantina de Almeida Prado Galvão. 3ª ed. São

Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 217-218. 244 FORTES, Luiz Roberto Salinas. Rousseau: da teoria à prática. São Paulo, Ática, 1976, p. 51. 245 FREITAS, Jacira de. Política e festa popular em Rousseau: a recusa da representação. São Paulo: Humanitas,

2003, p.72. 246 “Mas, a partir do instante em que um homem necessitou do auxílio do outro, desde que percebeu que era útil a

um só ter provisões para dois, desapareceu a igualdade, introduziu-se a propriedade, o trabalho tornou-se

necessário e as vastas florestas se transformaram em campos risonhos que cumpria regar com suor dos homens e

nos quais logo se viu a escravidão e a miséria germinarem e medrarem com as searas. A metalurgia e a agricultura

foram as duas artes cuja invenção produziu essa grande revolução.” (ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre

a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens: precedido de discurso sobre as ciências e as artes.

Trad. Maria Ernantina de Almeida Prado Galvão. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 213). 247 VIEIRA, Luiz Vicente. A democracia em Rousseau: a recusa dos pressupostos liberais. Porto Alegre:

EDIPUCRS, 1997, p. 60.

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Da cultura das terras seguiu-se necessariamente sua partilha, e da propriedade,

uma vez reconhecida, as primeiras regras de justiça; pois, para dar a cada qual

o seu, cumpre que cada qual possa ter alguma coisa; ademais, começando os

homens a dirigirem suas vistas ao futuro e percebendo todos que tinham bens

passíveis de perda, não havia um que não tivesse de temer para si a represália

dos danos que poderia causar a outrem. Essa origem é tanto mais natural

quanto é impossível conceber a ideia de que a propriedade nascesse de algo

que não a mão-de-obra, pois não se vê o que, para apropriar-se das coisas que

não fez, o homem pode introduzir-lhe além do seu trabalho. É o trabalho

apenas que, dando ao lavrador o direito sobre o produto da terra que lavrou,

dá-lhe, consequentemente, o direito sobre o solo, pelo menos até a colheita, e

assim, de ano em ano, o que vinha a ser uma posse contínua se transforma

facilmente em propriedade. 248

Destarte, a divisão do trabalho alinha-se com a partilha das terras cultivadas, visto que

a posse contínua pelo trabalho passa a dar direito sobre a gleba. Não obstante este direito não

deva ser visto no sentido proposto por Locke, tal como um direito natural de propriedade

fundado pelo trabalho, mas sim como um direito precário, que se torna legítimo apenas com a

proteção concedida pela formação da sociedade civil:

Tal foi ou deve ter sido a origem da sociedade e das leis, que criaram novos

entraves para o fraco e novas forças para o rico, destruíram em definitivo a

liberdade natural, fixaram para sempre a lei da propriedade e da desigualdade,

de uma hábil usurpação fizeram um direito irrevogável e, para o lucro de

alguns ambiciosos, sujeitaram daí para frente todo o gênero humano ao

trabalho, à servidão e à miséria. 249

Neste ponto reside uma substancial diferença entre o pensamento de Rousseau e aquele

de Locke, já analisado. Como tivemos oportunidade de estudar, Locke constrói seus argumentos

no intuito de provar a existência da propriedade independente de qualquer pacto entre os

membros da comunidade250, ou seja, num estado pré-político, dotando-a, portanto, de caráter

natural, vez que ligada diretamente à condição de sobrevivência humana. Já aqui, Rousseau

deixa claro que é apenas a instituição da sociedade civil que torna o que até então era usurpação

248 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens:

precedido de discurso sobre as ciências e as artes. Trad. Maria Ernantina de Almeida Prado Galvão. 3ª ed. São

Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 215-216. 249 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens:

precedido de discurso sobre as ciências e as artes. Trad. Maria Ernantina de Almeida Prado Galvão. 3ª ed. São

Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 222. 250 LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Nova Cultural (Os

Pensadores), 1991, p. 227.

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um direito legítimo251 e, em suas palavras, irrevogável. O mesmo entendimento aparece no

Contrato Social: “O direito do primeiro ocupante, embora mais real do que o do mais forte, só

se torna um verdadeiro direito depois de estabelecido o de propriedade.” 252

Não obstante a transição para a sociedade civil e a consequente criação da propriedade

em substituição à antiga usurpação, Rousseau ressalta a condição dos proprietários dentro do

contexto social, do qual são membros:

Passando então os possuidores a serem considerados depositários do bem

público, estando respeitados seus direitos por todos os membros do Estado e

sustentados por todas as suas forças contra o estrangeiro, adquirem, por assim

dizer, tudo o que deram por uma cessão vantajosa ao público e mais ainda a

eles mesmos. (...)

De qualquer forma que se realize tal aquisição, o direito que cada particular

tem sobre seus próprios bens está sempre subordinado ao direito que a

comunidade tem sobre todos, sem o que não teria solidez o liame social, nem

a força verdadeira o exercício da soberania. 253

A partir deste trecho, podemos entender que a propriedade se vincula ao indivíduo

particular na medida em que este faz parte de uma coletividade, o corpo político, do qual é

partícipe. É esta a conclusão que chegamos a partir da expressão “depositário do bem público”

cunhada por Rousseau. Com efeito, tal expressão nos leva a crer, também, que há um limite

para a atuação do proprietário, já que é, sob esta ótica é visto como um mero depositário e não

como principal e único proprietário. A ideia torna-se clara em análise com o restante da obra,

pois ao alienar-se à comunidade o indivíduo transfere tudo que tem a ela e recebe, como troca,

apenas o título da propriedade. 254

A partir desta situação instaurada, Rousseau vê uma constante guerra, de todos contra

todos, não havendo mais segurança, nem na pobreza, nem na riqueza, inventando o humano

motivo para união: assegurar a cada qual a posse do que lhe pertence. O direito civil passa a

251 Em sua obra Do Contrato Social, aparece a expressão: “cambiando a usurpação por um direito verdadeiro”

(ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social ou Princípios do Direito Público. Trad. Lourdes Santos

Machado. São Paulo, Nova Cultural (Os pensadores), 1999, p. 81). 252 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social ou Princípios do Direito Público. Trad. Lourdes Santos

Machado. São Paulo, Nova Cultural (Os pensadores), 1999, p. 80. 253 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social ou Princípios do Direito Público. Trad. Lourdes Santos

Machado. São Paulo, Nova Cultural (Os pensadores), 1999, p. 81. 254 NASCIMENTO, Milton Meira do. Reivindicar Direitos Segundo Rousseau. São Paulo, IEA, p. 7. Disponível

em: http://www.iea.usp.br/publicacoes/textos/nascimentorousseau.pdf. Acesso em: 22 de novembro de 2017,

12:55.

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ser, como consequência desta situação, a regra comum dos povos, esvaindo-se o direito natural.

255

Em suma, a crítica de Rousseau vem contestar a sociedade conforme esta contraria a

ordem natural, suprimindo a natureza e com ela conflitando. O homem, corrompido pelo

desenvolvimento da ciência, das artes e do comércio e, em especial, pela instituição da

propriedade, nega os laços naturais com seus semelhantes e, como resultado, estabelece outros:

Ou seja, se a estima e a benevolência são os fatores que levam os homens a

imediatamente se ligarem, a interposição entre eles das coisas e dos interesses,

produzidos pelo progresso da ciência, das artes e do comércio, apagam este

relacionamento imediato, pois os homens, a partir de então, passam a se

relacionar mediatizados pelas coisas e os interesses delas decorrentes que

origem na instituição da propriedade. É daí que procedem os males e as

desgraças às quais os homens estão submetidos. A felicidade do homem passa

a depender dos objetos. Eis o caminho ao qual o homem foi arrastado pelo

processo da civilização. O homem não procura mais a felicidade em si, na sua

existência compartilhada com os seus semelhantes. Tornou-se escravo das

coisas. A crítica central de Rousseau será a denúncia desta alienação e a busca

do retorno e da conciliação do homem com a sua natureza. 256

Com isso temos que o surgimento da ideia de propriedade ocasionou mudanças

significativas no espírito humano e na forma deste se relacionar com o mundo e com seus

semelhantes, sobretudo pela aquisição desta consciência, que o torna dominante, senhor de

algo:

Por causa da propriedade, o eu coloca o outro como um perigo e a razão, ao

examinar a realidade, ao discernir o bem e o mal, o útil e o prejudicial,

estabelece-se, desde o início, como razão de dominação: o homem torna-se

sujeito consciente, a razão de dominação permanece soberana em si mesma,

recusa-se a alienar-se, a confundir-se com qualquer coisa que não seja ela

mesma. 257

Esta guinada, que torna a razão uma razão de dominação é, como vimos, fruto do

surgimento da propriedade e sua consequente atividade comparativa. “O homem compara pela

reflexão, entra em relação, descobre a diferença – a desigualdade é o outro nome da relação; a

primeira desigualdade que se exprime numa noção (maior ou menor habilidade no trabalho),

255 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens:

precedido de discurso sobre as ciências e as artes. Trad. Maria Ernantina de Almeida Prado Galvão. 3ª ed. São

Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 221. 256 VIEIRA, Luiz Vicente. A democracia em Rousseau: a recusa dos pressupostos liberais. Porto Alegre:

EDIPUCRS, 1997, p. 46-7. 257 MATOS, Olgária C.F. Rousseau: uma arqueologia da desigualdade. São Paulo, M.G. Editores, 1978, p. 74.

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113

materializa-se em seguida na propriedade e no dinheiro.” 258 Ou seja, a partir do surgimento da

propriedade, materializa-se o mundo externo, de onde emerge a desigualdade instaurada e que

se expressa mediante a acumulação de propriedade e dinheiro, resultado de maior ou menor

habilidade no trabalho. Neste tocante, temos que a história sempre esteve dividida pela

desigualdade, de um lado a pobreza desprotegida e de outro a riqueza apoiada no poder. Tal

divisão, para muitos (incluindo Locke) é natural, já para Rousseau, como vimos, a desigualdade

natural não legitima a desigualdade social. 259

De maneira hialina, Rousseau sintetiza o teor de seu Segundo Discurso apontando a

propriedade e as leis como responsáveis por tornar estável e legítima a desigualdade:

Conclui-se desta exposição que a desigualdade, sendo quase nula no estado de

natureza, extrai sua força e seu crescimento do desenvolvimento de nossas

faculdades e dos progressos do espírito humano e torna-se enfim estável e

legítima pelo estabelecimento da propriedade e das leis. 260

Sob este diapasão, o estabelecimento da propriedade e das leis não se presta a garantir

a liberdade e a igualdade, mas sim a legitimar a desigualdade, reforçando a relação de

dominação dos proprietários sob forma jurídica. A desigualdade, portanto, não é condição

natural261, como vimos ser defendido por Locke, mas uma criação262 das estruturas sociais,

encabeçadas pela propriedade.

Frente aos apontamentos realizados neste item, podemos concluir que enquanto Locke

vê na instituição da sociedade civil a solução para o problema da sociabilidade humana, posto

que garante a efetividade aos direitos naturais – ressalte-se a garantia da propriedade –,

Rousseau vê exatamente aí a consolidação e legitimação da desigualdade – inexistente no

estado natural –, de onde emergem misérias, horrores e injustiças.

258 MATOS, Olgária C.F. Rousseau: uma arqueologia da desigualdade. São Paulo, M.G. Editores, 1978, p. 77-8. 259 PISSARA, Maria Constança Peres. História e Ética no Pensamento de Jean-Jacques Rousseau. [Tese de

Doutorado]. São Paulo: PUC-SP, 1996, p. 3. 260 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens:

precedido de discurso sobre as ciências e as artes. Trad. Maria Ernantina de Almeida Prado Galvão. 3ª ed. São

Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 243. 261 Quanto à desigualdade, temos novamente uma concordância entre Rousseau e Hobbes, em oposição ao

defendido por Locke: “A questão de decidir quem é o melhor homem não tem lugar na condição de simples

natureza, na qual todos os homens são iguais. A desigualdade atualmente existente foi introduzida pelas leis civis.”

(HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad. João Paulo

Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores), 1979, p. 91). 262 “se seguirmos o progresso da desigualdade nessas diferentes revoluções, verificaremos que o estabelecimento

da lei e do direito de propriedade foi seu primeiro termo.” (ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem

e os fundamentos da desigualdade entre os homens: precedido de discurso sobre as ciências e as artes. Trad.

Maria Ernantina de Almeida Prado Galvão. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 235).

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114

3.3.2 O fundamento da autoridade decorrente do contrato social

Aponta-se, especialmente em Derathé263, que as teorias do contrato social remontam a

Grotius e Pufendorf, que embora absolutistas apresentam-se como formuladores de um direito

natural racional, tal como iria reconhecê-lo todo movimento político ideológico da

modernidade. Ainda sobre as bases do pensamento de Rousseau, ou melhor, suas influências,

anota também a importância de Althusius, o qual:

não parece ter sido somente o precursor de Rousseau, mas também seu mestre.

A cento e cinquenta anos de distância, Althusius e Rousseau sustentaram, um

e outro, a mesma luta pelo triunfo das ideias democráticas. É em nome do

mesmo ideal político que um mediu-se com Bodin e que o outro lutou contra

o absolutismo de Hobbes, Grotius e Pufendorf. 264

Importante destacar, ainda, que as doutrinas afetas ao direito natural, tal como o

contratualismo, apresentam conteúdo teórico conflituoso para o clérigo católico, o qual tratava

de apontá-las como alinhadas ao discurso da Reforma, por tratar de uma tentativa para

desalinhar o poder político do poder da Igreja.

De toda sorte, frente ao exposto ao longo deste capítulo, verificamos que o estado de

natureza inicial previsto por Rousseau apresenta o ser humano como naturalmente bom,

expondo um equívoco de seus antecessores ao verificar no homem selvagem as mazelas que

acometiam o homem da sociedade de seu tempo. Entretanto, o advento das relações de

propriedade e de divisão do trabalho alteram substancialmente o estado de natureza, tornando-

o conflituoso em seu limite. Com efeito, a partir do advento da agricultura e da metalurgia –

acumulação de novas “luzes” – brotam a divisão do trabalho e a propriedade, já que a partir do

momento em que são necessários homens para fundir o ferro, foram necessários outros homens

para nutrir aqueles; ou seja, para subsistir, os indivíduos passaram a depender necessariamente

do trabalho alheio. A partir desse contexto surge uma forma de troca baseada numa apropriação

exclusiva, a partir da qual se fortalecem as desigualdades, apoiadas nas diferentes ambientais e

naturais entre os proprietários, sendo que uns são mais capazes de acumular riqueza do que

outros. 265

263 DERATHÉ, Robert. Jean-Jacques Rousseau e a ciência política de seu tempo. Trad. Natalia Maruyama. São

Paulo: Barcarolla, 2009, p. 57 e ss. 264 DERATHÉ, Robert. Jean-Jacques Rousseau e a ciência política de seu tempo. Trad. Natalia Maruyama. São

Paulo: Barcarolla, 2009, p. 157. 265 FORTES, Luiz Roberto Salinas. Rousseau: o bom selvagem. São Paulo: FTD, 1989, p. 62-3.

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115

Com o intuito de pôr fim à guerra generalizada que se estabelece com o advento da

propriedade no limite do estado de natureza é que os homens têm a ideia de um acordo, um

pacto social que estabeleça regras que obriguem a todos igualmente. Neste contexto, o direito

civil passará a ser a regra comum dos povos, restando ao homem libertar-se dos prejuízos

trazidos pela sociabilidade historicamente inaugurada a partir da criação da propriedade

mediante o pacto social, cuja função torna-se, portanto, reparadora. 266 Na realidade, a

instituição desta ordem legal, na mesma medida em que promove a paz, legitima a propriedade,

dando respaldo às desigualdades.

Conforme vimos anteriormente, para Hobbes e Locke a sociedade política sobrevém ao

estado de natureza para solucionar a insegurança da vida e da propriedade, respectivamente, no

estado de natureza. Para Rousseau, diferentemente, o pacto decorre da situação de conflito

gerada no limite do estado de natureza, pelo advento da propriedade, de tal sorte que se chega

a imputar a Rousseau a ideia de que a sociedade decorrente do pacto é ilegítima267, como faz

pressupor sua linha de argumentação utilizada no Segundo Discurso, fazendo-nos analisar

agora seu Contrato Social, para verificar as questões afeta ao pacto social, suas características

e objetivos, bem como à sociedade política que dele segue.

“Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada

associado com toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedece contudo

a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes”. 268 É este, segundo Rousseau, o

problema fundamental a ser resolvido pelo contrato social. O qual, cumpre-nos dizer, é

apresentado na obra de Rousseau de maneira claramente teórica – e não como uma realidade

histórica possível –, o que fica evidente ao dizer que “embora talvez jamais enunciadas de

maneira formal, são as mesmas em toda parte, e tacitamente mantidas e reconhecidas em todos

os lugares”269, sendo certo que a alienação total de cada associado exprime a integralidade do

pacto, de tal sorte a constituir uma união perfeitamente organizada.

Rousseau deixa clara a troca efetuada quando da celebração do pacto: o homem perde a

liberdade natural e o direito ilimitado a tudo quanto possa alcançar (a mera posse), mas ganha

a liberdade civil (limitada pela vontade geral) e a propriedade (com título) de tudo que possui.

266 PISSARA, Maria Constança Peres. História e Ética no Pensamento de Jean-Jacques Rousseau. São Paulo:

PUC-SP [Tese de Doutorado], 1996, p. 38. 267 VIEIRA, Luiz Vicente. A democracia em Rousseau: a recusa dos pressupostos liberais. Porto Alegre:

EDIPUCRS, 1997, p. 67. 268 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social ou Princípios do Direito Público. Trad. Lourdes Santos

Machado. São Paulo, Nova Cultural (Os pensadores), 1999, p. 70. 269 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social ou Princípios do Direito Público. Trad. Lourdes Santos

Machado. São Paulo, Nova Cultural (Os pensadores), 1999, p. 70.

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Ademais, temos que a síntese da ideia do contrato reduz-se nas seguintes palavras:

“Cada um de nós põe em comum sua pessoa e todo o seu poder sob a direção suprema da

vontade geral, e recebemos, enquanto corpo, cada membro como parte indivisível do todo”. 270

Diante disso, verificamos em Rousseau a ideia de que, enquanto social (pós pacto), cada

membro – isto é, indivíduo –, só existe enquanto partícipe de uma sociedade, sendo, portanto,

parte indivisível do todo. Este todo verifica-se como um corpo moral e coletivo, resultante do

pacto, sobre o qual Rousseau imputa a ideia de pessoa pública, apresentando-nos, ainda, sua

verificação histórico-político como cidade, república ou corpo político, “o qual é chamado de

Estado quando passivo, soberano quando ativo, e potência quando comparado a seus

semelhantes.” 271

Cumpre-nos destacar que a ideia de pacto social, para Rousseau, encontra-se de maneira

mais claramente delineada em parte no seu Segundo Discurso e, é claro, no Contrato Social.

Neste sentido, voltemos ao Segundo Discurso para uma importante afirmação:

...atenho-me, seguindo a opinião geral, a considerar aqui o estabelecimento do

corpo político como um verdadeiro contrato entre o povo e os chefes por ele

escolhidos; contrato pelo qual as duas partes se obrigam à observância das leis

nele estipuladas e que formam os vínculos de sua união. 272

Tal entendimento é oposto ao de Hobbes, visto acima, no que concerne aos celebrantes

do pacto. Em Hobbes, o pacto é celebrado entre os indivíduos e não entre indivíduo e soberano,

de modo que o soberano não pode descumprir o pacto e nenhum súdito pode se liberar da

sujeição, já em Rousseau, o pacto é bilateral, obrigando ambas as partes à observância das leis

estipuladas para o convívio social.

No mesmo sentido, dirá Rousseau logo no início do capítulo VII do Contrato Social,

que o ato de associação compreende “um compromisso recíproco entre o público e os

particulares” 273, o qual, como vimos, possui o propósito de possibilitar a fruição da liberdade

natural do ser humano, ou pelo menos tentar rememorá-la. Não olvidemos, entretanto, que a

partir do advento das relações de propriedade no limite do estado de natureza, a situação natural

270 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social ou Princípios do Direito Público. Trad. Lourdes Santos

Machado. São Paulo, Nova Cultural (Os pensadores), 1999, p. 71. 271 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social ou Princípios do Direito Público. Trad. Lourdes Santos

Machado. São Paulo, Nova Cultural (Os pensadores), 1999, p. 71. 272 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens:

precedido de discurso sobre as ciências e as artes. Trad. Maria Ernantina de Almeida Prado Galvão. 3ª ed. São

Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 231. 273 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social ou Princípios do Direito Público. Trad. Lourdes Santos

Machado. São Paulo, Nova Cultural (Os pensadores), 1999, p. 73.

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117

humana torna-se, até mesmo para Rousseau, insustentável, de tal modo que se não mudasse, o

ser humano pereceria. 274 A partir daí, é a agregação das formas individuais num todo coletivo

a única saída para superação das dificuldades.

A partir deste ponto, cria-se o corpo coletivo, cujo princípio de regência é a vontade

geral, voltada ao bem comum. Esta não se confunde com a mera maioria numérica, mas

apresenta-se como a expressão comum das vontades particulares, o que Rousseau275 chama de

liame social, sem o qual não existiriam sociedades. Leister e Chiappin nos ajudam a

compreender este relevante conceito:

Com efeito, com base na proposta rousseauísta, a fórmula “ação coletiva é

igual à ação de um conjunto de indivíduos” parece mostrar-se errônea,

devendo ser substituída pela equação “ação coletiva é igual a indivíduos mais

a soma das interações entre eles”, que fornece subsídios para compreender a

formação de padrões coletivos não redutíveis ao comportamento individual.

A partir desses recursos de explicação verifica-se, ainda, que a vontade geral

é um conceito universal, de modo que, dado um determinado Estado Civil,

dele uma única vontade geral pode ser subsumida. A despeito desta

universalidade, seu conteúdo é específico aquele Estado Civil. 276

Desta forma, aparece a vontade geral vinculada à criação contratual do Estado Civil,

dando o fundamento necessário à soberania deste. Com efeito, dirá Rousseau:

Deve-se compreender, nesse sentido, que, menos do que o número de votos,

aquilo que generaliza a vontade é o interesse comum que os une, pois nessa

instituição cada um necessariamente se submete às condições que impõe aos

outros: admirável acordo entre o interesse e a justiça, que dá às deliberações

comuns um caráter de equidade que vimos desaparecer na discussão de

qualquer negócio particular, pela falta de um interesse comum que uma e

identifique a regra do juiz à da parte. 277

Neste sentido, a vontade particular tenderia às predileções, enquanto a vontade geral

tende à igualdade. A ideia de soberania, neste sentido, alinha-se ao mero exercício desta vontade

geral, sendo esta inalienável e também indivisível, posto que sempre geral e não particular ou

fracionada. O ato de soberania, para Rousseau, apresenta-se como uma convenção do corpo

274 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social ou Princípios do Direito Público. Trad. Lourdes Santos

Machado. São Paulo, Nova Cultural (Os pensadores), 1999, p. 69. 275 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social ou Princípios do Direito Público. Trad. Lourdes Santos

Machado. São Paulo, Nova Cultural (Os pensadores), 1999, p. 85. 276 LEISTER, Carolina; CHIAPPIN, José Raymundo Novaes. O programa de pesquisa contratualista da Teoria

Geral do Estado: o sistema teórico de Rousseau e a noção de vontade geral. In: Revista Brasileira de Estudos

Políticos. n. 109, pp. 259-307. Jul/dez 2014, p. 293. 277 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social ou Princípios do Direito Público. Trad. Lourdes Santos

Machado. São Paulo, Nova Cultural (Os pensadores), 1999, p. 97.

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118

com suas partes, sendo “convenção legítima por ter como base o contrato social, equitativa por

ser comum a todos, útil por não poder ter outro objetivo que não o bem geral, e sólida por ter

como garantia a força pública e o poder supremo.” 278

Neste ponto, Rousseau nos introduz aquilo que seja talvez o grande motivo pelo qual se

torna legítima a vontade geral decorrente do contrato social: a ideia da autolegislação:

Enquanto os súditos só estiverem submetidos a tais convenções, não

obedecem a ninguém, mas somente à própria vontade, e perguntar até onde se

estende os direitos respectivos do soberano e dos cidadãos é perguntar até que

ponto estes podem comprometer-se consigo mesmos, cada um perante todos

e todos perante cada um. 279

Assim sendo, Rousseau passa a analisar não mais o indivíduo isolado no estado de

natureza, mas o corpo social gerado pelo contrato, cuja atribuição passa a ser “a tarefa de

traduzir a vontade geral em termo de um sistema de leis”280, ou seja, viabilizar a expressão

desta vontade única emanada dos membros que compõem o Estado.

Diante disso, temos que o ato de alienação em Rousseau refere-se à toda coletividade (e

não a um homem ou a uma assembleia de homens, como quer Hobbes), sendo este um requisito

para a passagem do estado de natureza para o estado civil. O resultado é evidente, no modelo

hobbesiano, há um dever de obediência que demonstra um cidadão passivo; já em Rousseau, o

cidadão possui um papel participativo (ativo) na sociedade civil, posta, portanto, na forma de

república, de tal sorte a rejeitar os modelos aristocráticos e monárquicos.

As diferenças do modelo rousseauniano de contrato social com relação aos modelos

anteriores continua. Dirá Rousseau que “o mais forte nunca é suficientemente forte para ser

sempre o senhor, senão transformando sua força em direito e a obediência em dever”281,

evidenciando, assim, a predominância do poder simbólico sobre o poder físico ou concreto.

Neste sentido é que vai a ideia do fundamento do Estado como decorrente de um pacto

associativo hipotético, o contrato social, que não só constitui a sociedade política, mas a torna

justa, já que todo direito, na visão rousseaniana, decorre de convenções. Neste sentido, é

importante a assertiva feita no início do capítulo IV de seu Contrato Social: “Visto que homem

278 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social ou Princípios do Direito Público. Trad. Lourdes Santos

Machado. São Paulo, Nova Cultural (Os pensadores), 1999, p. 98. 279 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social ou Princípios do Direito Público. Trad. Lourdes Santos

Machado. São Paulo, Nova Cultural (Os pensadores), 1999, p. 98. 280 LEISTER, Carolina; CHIAPPIN, José Raymundo Novaes. O programa de pesquisa contratualista da Teoria

Geral do Estado: o sistema teórico de Rousseau e a noção de vontade geral. In: Revista Brasileira de Estudos

Políticos. n. 109, pp. 259-307. Jul/dez 2014, p. 293. 281 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social ou Princípios do Direito Público. Trad. Lourdes Santos

Machado. São Paulo, Nova Cultural (Os pensadores), 1999, p. 59.

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119

algum tem autoridade natural sobre seus semelhantes e que a força não produz nenhum direito,

só restam as convenções como base de toda a autoridade legítima existente entre os homens.”282

Colocar o fundamento da autoridade como decorrente de um pacto não é inovação de

Rousseau; entretanto, a natureza de seu pacto é o que o diferencia de seus antecessores, os quais

apontam ser este pacto um pacto de submissão, pelo qual se concedia autoridade a um soberano,

seja por coação, seja de forma voluntária. 283 Para Rousseau, um pacto desta natureza, que se

converte em benefício de apenas uma das partes, não pode ser considerado, a rigor, um contrato.

Para Rousseau, não há um contrato de governo, nos termos descritos acima, mas apenas

um pacto associativo, no qual consta um engajamento recíproco com relação ao corpo político

do qual farão parte. Assim sendo, Rousseau irá se diferenciar dos contratualistas de até então,

na medida em que a simples ideia do consentimento não basta para vincular. Neste sentido, irá

estabelecer a possível nulidade do pacto se este violar a equidade e as leis naturais,

especialmente no sentido de alienação da liberdade natural. Derathé nos ajuda a esclarecer este

ponto:

É o que Rousseau sempre se recusou a admitir e jamais cessou de protestar

contra tal concepção de contrato. Para ele, mesmo que quisessem, mesmo que

tivessem a covardia de consentir, nem o homem nem o povo tem o direito de

alienar sua liberdade e de livrar-se ao capricho de um senhor ou de um déspota.

Se as cláusulas de um contrato são manifestamente injustas e contrárias ao

direito natural, o consentimento daqueles que se engajam não impede que o

ato seja nulo. Assim, a validade do contrato não depende unicamente do

consentimento das partes contratantes. 284

Trata-se aí de situação similar à nulidade do contrato de escravidão, no sentido de

proibir, ainda que com consentimento, a alienação da liberdade. Neste rumo é que Rousseau

apresenta o contrato social como vinculado à conveniência humana e em linha com as leis

naturais (e não conflitante com estas), pois “não é mais permitido infringir as leis positivas

pelos contratos particulares do que é permitido infringir as leis positivas pelos contratos dos

particulares; e é somente por essas leis que existe a liberdade que dá força ao engajamento”. 285

282 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social ou Princípios do Direito Público. Trad. Lourdes Santos

Machado. São Paulo, Nova Cultural (Os pensadores), 1999, p. 61. 283 DERATHÉ, Robert. Jean-Jacques Rousseau e a ciência política de seu tempo. Trad. Natalia Maruyama. São

Paulo: Barcarolla, 2009, p. 272. 284 DERATHÉ, Robert. Jean-Jacques Rousseau e a ciência política de seu tempo. Trad. Natalia Maruyama. São

Paulo: Barcarolla, 2009, p. 361. 285 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Cartas escritas de Montanha. Carta VI. Pol. Writ., II, p. 200 apud DERATHÉ,

Robert. Jean-Jacques Rousseau e a ciência política de seu tempo. Trad. Natalia Maruyama. São Paulo:

Barcarolla, 2009, p. 362.

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3.4 Immanuel Kant e a síntese do contratualismo moderno

Há, como não poderia deixar de ser, uma absorção parcial de aspectos relacionados às

teorias pelos filósofos contratualistas posteriores a Hobbes, sendo tal acúmulo de conhecimento

inevitável no progresso das ciências e da filosofia. Neste sentido, ao avançarmos na história da

justificação filosófica do Estado no seio da modernidade, diminui-se progressivamente a

necessidade de maiores exposições. Isto, pois os filósofos aqui sob análise recusaram parte dos

entendimentos contratualistas anteriores, mas, em larga medida, absorveram e aceitaram parte

significativa das premissas de seus antecessores. 286 É o que ocorre com Kant, o qual sintetiza

as demandas modernas sob diversas perspectivas, notadamente no campo da gnosiologia, mas

também sob o aspecto da fundamentação do Estado e do direito como forma de compatibilizar

a coexistência das liberdades, livrando-nos das mazelas – quaisquer que sejam – do estado de

natureza. Em sua perspectiva, o contrato social aparece como aquele sobre o qual se assenta

uma constituição civil legitima, ou seja, o direito posto como forma de harmonizar a

coexistência das liberdades. Neste sentido, Höffe aponta que:

De Hobbes, ele [Kant] recebe o estado natural como fundamento racional para

a necessidade de um Estado, de Locke, a ideia dos direitos humanos

inalienáveis, de Locke e Montesquieu, a ideia da divisão dos poderes, e de

Rousseau, a tese de que somente a vontade geral (volonté générale) constitui

o princípio crítico-normativo supremo de toda legislação positiva. 287

Na mesma linha, irá apontar o Estado como uma instituição de segunda ordem, cujo

propósito é dar efetividade às instituições de primeira ordem, ou seja, a propriedade, os

286 Neste sentido, Leister e Chiappin identificam, a partir do aparato metodológico do programa de pesquisa

lakotosiano as propostas que se encaixam dentro da tradição contratualista clássica, pertencendo assim a um

mesmo programa de pesquisa que contém: “(i) um núcleo básico cuja estrutura é formada pelos componentes que

definem a abordagem contratualista; (ii) um conjunto de quatro teorias que formam a heurística positiva do

programa. Essas teorias são: (i) teoria T¹ como a teoria hobbesiana; (ii) teoria T² como sendo a teoria lockeana;

(iii) teoria T³ é a teoria rousseauísta; (iv) teoria T4 que corresponde à teoria kantiana. Essa sequência de teorias

caracteriza-se por proporcionar um refinamento da proposta original hobbesiana ensejando novas e mais

complexas construções do problema da emergência da cooperação entre indivíduos interagentes e solucionando

os novos problemas que surgem no interior do programa por meio do aumento da sofisticação dos instrumentos,

ferramentas e métodos disponibilizados em sua heurística positiva. Dessarte, se Hobbes visa resolver o problema

da paz por meio da instituição de um poder absoluto que garanta a cooperação entre indivíduos com interesses

particulares e conflitantes, Locke refina a solução hobbesiana granjeando, ainda, na solução construída por este

último, a garantia da liberdade individual por meio do estiolamento do poder coercitivo distribuindo-o através de

diferentes instâncias políticas. Novas restrições são, igualmente, introduzidas às teorias contratualistas que os

antecede, de Hobbes a Locke, promovendo, por aí, a sofisticação das soluções propostas dentro do programa

contratualista.” (LEISTER, Carolina; CHIAPPIN, José Raymundo Novaes. O programa de pesquisa contratualista

da Teoria Geral do Estado: o sistema teórico de Rousseau e a noção de vontade geral. In: Revista Brasileira de

Estudos Políticos. n. 109, pp. 259-307. Jul/dez 2014, p. 263). 287 HÖFFE, Otifried. Immanuel Kant. Trad. Christian Viktor Hamm e Valeio Rohden. São Paulo: Martins Fontes,

2005, p. 252-253.

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contratos, o matrimônio e a família, sendo certo que é a segurança jurídica o fundamento

racional do Estado288, vez que é o Direito – e não a felicidade ou algo que a ela equivalha – o

bem último do Estado, posto ser este o instrumento de viabilidade da comunidade das liberdades

externas.

Kant, neste tocante, irá apontar o Estado como pessoa moral, sobre a qual o mando e a

disposição residem sobre ela mesma. Deste modo, irá negar a possibilidade de uma

incorporação, com consequente anulação, pois “tal processo contradiz a ideia de contrato

originário, sem a qual não se pode conceder direito algum sobre um povo” 289 Apontando-o, é

claro, como decorrente da razão prática a priori, Kant o propõe como independente de toda

experiência.

Em Rumo à paz perpétua, reflete sobre a ideia de paz dentro dos paradigmas

característicos da doutrina contratualista moderna, notadamente da dicotomia entre estado de

natureza e estado civil. Neste sentido, Kant coloca sua ideia sobre estado de natureza ao dizer

que:

É a guerra, desgraçadamente, um meio necessário ao estado de natureza – no

qual não há tribunal que possa pronunciar uma decisão com força de direito,

para que cada um possa afirmar o seu direito pela força; nenhuma das duas

partes pode ser declarada inimigo ilegítimo: que suporia uma sentença

judicial, e o que decide de que lado está o direito é o êxito da luta: como os

chamados juízos de Deus. 290

A noção aparece também trabalhada em sua Doutrina do Direito, ao descrever o Estado

de ilegitimidade (não jurídico), caracterizado pela falta de segurança contra violência. 291 Diante

disso, parece a Kant que o primeiro princípio a ser decretado deve ser o seguinte:

É preciso sair do estado natural, no qual cada um age em função de seus

próprios caprichos, e convencionar com todos os demais (cujo comércio é

inevitável) em submeter-se a uma limitação exterior, publicamente acordada,

e por conseguinte entrar num estado em que tudo o que deve ser reconhecido

como o seu de cada qual é determinado pela lei e atribuído a cada um por um

poder suficiente, que não é o do indivíduo e sim um poder exterior. Em outros

termos, é preciso antes de tudo entrar num estado civil. 292

288 HÖFFE, Otifried. Immanuel Kant. Trad. Christian Viktor Hamm e Valeio Rohden. São Paulo: Martins Fontes,

2005, p. 251. 289 KANT, Immanuel. Rumo à paz perpétua. Trad. Heloísa Sarzana Pugliesi. São Paulo: Ícone, 2010, p. 23. 290 KANT, Immanuel. Rumo à paz perpétua. Trad. Heloísa Sarzana Pugliesi. São Paulo: Ícone, 2010, p. 31. 291 KANT, Immanuel. Doutrina do Direito. Trad. Edson Bini. 4ª Ed. São Paulo: Ícone, 2013, p. 152-153. 292 KANT, Immanuel. Doutrina do Direito. Trad. Edson Bini. 4ª Ed. São Paulo: Ícone, 2013, p. 153.

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122

Deste estado civil, onde paira a limitação exterior publicamente acordada, decorre a

cidade (ou coisa pública – res publica), que encerra em si os três poderes, “isto é, a vontade

universalmente conjunta numa pessoa tripla (trias politica): o poder soberano (soberania) na

pessoa do legislador, o poder executivo (segundo a lei) na pessoa do governo e o poder judicial

na pessoa do juiz (potestas legislatória, rectoria et judiciaria).

Apontando o estado de natureza como guerra, Kant irá verificar a paz como algo que

precisa ser instaurado para ocorrer, de modo que não basta a abstenção de hostilidades, é

necessário implementar a paz e “só pelo fato de ter ingressado no estado civil, cada um dá aos

demais as necessárias garantias; e é a autoridade soberana a que, tendo poder sobre todos, serve

de instrumento eficaz àquelas garantias.”293 Assim sendo, é o estado civil, detentor da

autoridade soberana, que torna eficaz as garantias reciprocamente concedidas para a

constituição do próprio estado civil; garantias estas não concedidas no estado de natureza, sendo

este de perpétua ameaça. Em oposição, aparece na sociedade civil o direito, “único fundamento

possível da paz perpétua”294, assinalando sua já conhecida concepção jurídica do Estado, cuja

função é a manutenção de um ordenamento jurídico necessário à coexistência de liberdades.

Este estado civil aparece delineado em sua Doutrina do Direito:

O conjunto de leis, as quais exigem uma promulgação geral para produzir um

estado jurídico, constitui o direito público. O direito público, portanto, é um

sistema de leis para um povo, isto é, para uma multidão de homens, ou para

uma multidão de povos que, constituídos de maneira tal a exercerem uns sobre

os outros uma mútua influência, têm a necessidade de um estado jurídico que

os reúna sob uma influência única; isto é, de uma constituição, a fim de serem

partícipes no direito. Este estado de relação mutua dos participantes reunidos

num povo chama-se estado civil (status civilis). 295

A constituição desta realidade decorre, como não poderia deixar de ser, de um contrato

primitivo:

O ato pelo qual o povo se constitui em uma cidade, e, propriamente, a simples

Ideia desse ato, segundo a qual se pode unicamente conceber a legitimidade

do próprio ato, é o contrato primitivo, segundo o qual todos (omnes et singuli)

se desprendem de sua liberdade exterior diante do povo para tornar a recobrá-

la no novo instante como membros de uma república, isto é, na qualidade de

membros de uma comunidade ou do povo como cidade. E não se pode dizer

que a cidade, que o homem em sociedade tenha sacrificado a um fim uma

parte de sua liberdade exterior natural; mas sim que deixou inteiramente sua

liberdade selvagem e sem freio para encontrar toda a sua liberdade na

293 KANT, Immanuel. Rumo à paz perpétua. Trad. Heloísa Sarzana Pugliesi. São Paulo: Ícone, 2010, p. 39. 294 KANT, Immanuel. Rumo à paz perpétua. Trad. Heloísa Sarzana Pugliesi. São Paulo: Ícone, 2010, p. 107. 295 KANT, Immanuel. Doutrina do Direito. Trad. Edson Bini. 4ª Ed. São Paulo: Ícone, 2013, p. 153.

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dependência legal, isto é, no estado jurídico; porque esta dependência é o fato

de sua vontade legislativa própria. 296

Constam aí as ideias centrais do contratualismo de viés kantiano. Inicialmente, destaca-

se a transformação da liberdade selvagem em liberdade civil, controlada pela lei, bem como a

característica autolegislativa desta lei, i.e., a ideia da vontade legislativa própria que envolve o

ato, em nítido sentido rousseauniano. Ademais, o imperativo categórico kantiano alinha-se à

ideia de autolegislação – no plano moral – remetendo-nos inevitavelmente ao contrato social

sob a perspectiva do direito público, vez que é na obediência a uma lei determinada por si

mesmo que reside a ideia de liberdade. 297

Conforme assevera Márcio Pugliesi, em nota às disposições contratualistas constantes

de Rumo à paz perpétua:

Observe-se: o contrato originário kantiano não constitui mero pacto de

associação, vez que não se trata de um povo pactuando com seu governante.

De fato há a busca de suprimir as noções de deveres e obrigações supostas na

lógica do contrato – o contrato originário não pode sucumbir a dúvidas ou

tergiversações: é imposto pela própria Natureza. O contrato fundante não é

um factum, mas leva todo legislador a promulgar suas leis como advenientes

da vontade de um povo. O fundamento do estado difere de sua origem, esta é

histórica, a fundamentação do estado pertence ao noumenal, ao plano eidético

e implícita que a revolução seja inadmissível e a constituição que, se exitosa,

elaborada deva ser cumprida como se legitimamente fosse estabelecida, a fim

de encerrar o conflito. 298

Aí consta uma síntese acerca da natureza do contratualismo kantiano. Em suas

características, destaca-se a ideia de não decorrer de uma melhora moral humana gradativa, mas

de um mecanismo da Natureza. Assim, não se apresenta como uma possibilidade histórica, tal

como vimos em Locke, mas como uma fundamentação pertencente ao noumenal, cujo propósito

é vincular o legislador na elaboração das leis do direito, tal como estas refletissem a vontade do

povo, advindo daí a necessidade de observância à constituição posta. Conforme o próprio Kant:

“O mecanismo da natureza, as inclinações egoístas que naturalmente se opõem umas às outras,

hostilizando-se exteriormente, são o meio de que pode valer-se a razão para conseguir o seu

296 KANT, Immanuel. Doutrina do Direito. Trad. Edson Bini. 4ª Ed. São Paulo: Ícone, 2013, p. 157. 297 “Ou seja, a relação universal governante-governado tem por base uma concepção contratualista da sociedade e

pressupõe uma equação teórica em que ser cidadão é igual a ser obediente.” (FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio.

Direito constitucional: liberdade de fumar, privacidade, Estado, direitos humanos e outros temas. Barueri:

Manole, 2007, p. 413). 298 KANT, Immanuel. Rumo à paz perpétua. Trad. Heloísa Sarzana Pugliesi. São Paulo: Ícone, 2010, p. 77.

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próprio fim, o preceito jurídico”299, de modo que “a natureza garante a paz perpétua, utilizando

em seu proveito o mecanismo das inclinações humanas.” 300

A síntese deste movimento encontra-se em Kersting, ao dizer que “o imperativo

categórico é a regra de operação do universalismo da moral; o contrato originário é a regra de

operação do universalismo do direito”. 301 Neste sentido, José N. Heck resume aquilo que

pretendemos demonstrar:

O fundamento independe das características internas de uma norma ou lei.

Decisivo para a sustentação argumentativa é o traçado externo que um

princípio de conduta instaura e executa, quando todos os afetados por

determinado comportamento o tomam por referência ou, no mínimo, o

poderiam ter tomado como tal para entenderem que procede, e que não há

como rejeitá-lo sem desrespeitar critérios de reciprocidade que possibilitam

pensar um convívio de homens livres e iguais. 302

A partir deste trecho, aponta-se a importância da sustentação argumentativa de viés

contratualista que envolve o direito, tornando-o vinculante, posto que a inobservância de seus

preceitos viola critérios de reciprocidade relativos à coexistência de liberdades. Desta forma, a

observância das balizas kantianas à ação com a consequente verificação da universalização da

conduta como parâmetro moral transforma a razão prática em contratual.

Tal movimento é realizado, ainda que gradativamente, pela influência da ideia da

autoridade legal e da legislação de si mesmo viabilizada pelo direito no estado civil pensado

por Kant. As associações persistem e ampliam-se à comunidade internacional, sendo necessária

uma constituição interna de um Estado, mas também um estatuto, ou tratado, que englobe

nações para resolução de conflitos internacionais, sendo a paz, portanto, decorrente desta

consciência moral humana, cujo resultado seria o chamado direito das gentes. 303

299 KANT, Immanuel. Rumo à paz perpétua. Trad. Heloísa Sarzana Pugliesi. São Paulo: Ícone, 2010, p. 77. 300 KANT, Immanuel. Rumo à paz perpétua. Trad. Heloísa Sarzana Pugliesi. São Paulo: Ícone, 2010, p. 81. 301 KERSTING, Wolfgang. Wohlgeordnete Freiheit. Immanuel Kants Rechts - und Staatsphilosophie. Frankfurt

a/Main: Suhrkamp, 1993, p. 32-33. Der kategorische Imperativ ist die Operationsregel des Universalimus der

Moral; der ursprüngliche Kontrakt ist die Operationsregel des Universalismus des Rechts” apud HECK, José N.

Contratualismo e sumo bem político: a paz perpétua. In: Kant e-Prints - Vol. 2, n. 6, 2003, p. 4. 302 HECK, José N. Contratualismo e sumo bem político: a paz perpétua. In: Kant e-Prints - Vol. 2, n. 6, 2003, p.

4. 303 “O sentido da História encontra-se na instituição de estados de direito e de uma convivência legal (justa) dos

Estados entre si, em constante progresso do direito de toda a humanidade, até que finalmente se tenha formado

nos limites de uma federação de povos, uma comunidade de paz que abarque o mundo todo. (…) A fundação de

estados de direito e a sua conveniência em uma comunidade mundial de paz é a suma tarefa, o fim terminal da

humanidade.” (HÖFFE, Otifried. Immanuel Kant. Trad. Christian Viktor Hamm e Valeio Rohden. São Paulo:

Martins Fontes, 2005, p. 274-275).

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3.5 O resultado do projeto: o Estado moderno

Conforme nos lembra Bobbio304, a democracia nasce de uma concepção individualista

da sociedade, pela qual qualquer sociedade é produto artificial da vontade dos indivíduos;

diverge, portanto, daquela concepção orgânica característica da idade antiga e da idade

medieval. O jurista italiano aponta, então, três eventos que, em sua visão, caracterizam a

filosofia social da idade moderna: a) o contratualismo dos seiscentos e setecentos; b) o

nascimento da economia política com o surgimento do homo oeconomicus; e c) a filosofia

utilitarista de Bentham a Mill, que estabelece um critério para resolver o problema do bem

comum a partir da soma dos bens particulares.

Nos parece evidente que os fatores apontados por Bobbio são, de fato, característicos da

filosofia política da modernidade e, em última análise, centrais para a compreender o Estado

moderno, bem como a democracia liberal típica da modernidade. De toda sorte, não é possível

imputar a determinados fatos históricos ou doutrinas a responsabilidade pela consolidação do

modelo democrático, restando, como sempre, outras abordagens possíveis deste fenômeno

político de tamanha relevância. Esta ressalva é importante, para que não seja a nós imputada

qualquer pretensão de totalidade que exclua fatores que, a partir de determinado enfoque

teórico, sejam essenciais à ideia dos contornos modernos do Estado305 e da democracia. 306

De toda sorte, nos parece que é a partir dos fundamentos filosóficos apontados acima

que se coloca a questão da justificação do Estado moderno, a qual repousa sobre a ideia do

contrato social, sendo no plano fático sua modelagem decorrente das lutas contra o Antigo

Regime. Neste sentido, considerar o Estado como fundado a partir de um contrato social, um

304 BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Trad. Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Paz e terra, 2000, p.

34. 305 “Entre Hobbes e Locke, a estrutura teórica do Estado moderno estava substancialmente completa.

Fundamentando-se na separação entre o governo público e a autoridade privada – diferença que escapara a Erasmo

e Maquiavel e cujo verdadeiro criador na Europa moderna fora Bodin –, configuram o Estado como uma entidade

abstrata separada do governante (o soberano) e dos governados (a sociedade civil), mas que continha os dois. Luís

XIV podia gabar-se que l’état (não, o que mais importante, a res publica, ou civitas, ou communitas, ou alguma

expressão semelhante), c’est moi; contudo, o próprio fato de que ele, ao contrário de quaisquer de seus

predecessores reais em qualquer outra época e lugar, pudesse fazer tal afirmação demonstra que os dois não eram

mais um só.” (VAN CREVELD, Martin. Ascensão e declínio do Estado. Trad. Jussara Simões. São Paulo: Martin

Fontes, 2004, p. 259). 306 “Jean-Luc Nancy também enfatiza que o sufixo “-cracia” (-cratie) que forma a palavra “democracia” remeteria

à ideia de força e de imposição violenta, ao contrário do que ocorre com o sufixo “-arquia” (-archie) que remeteria

à ideia de um poder fundado ou legitimado por um princípio. Assim, segundo sua análise, o termo democracia

pareceria colocar de lado a possibilidade de um princípio fundador. Segundo ele, não haveria “demarquia”

(“démarchie”), de modo que o povo não representa o princípio de fundamentação. (NANCY, Jean-Luc.

Démocratie finie et intinie. In: AGAMBEN, Giorgio et al. Démocratie, dans quell état? p. 84-85 apud VILLAS

BÔAS FILHO, Orlando. Democracia: a polissemia de um conceito político fundamental. In: Revista da

Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 108, p. 651-696, jan/dez. 2013, p. 657).

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ato coletivo amplo o suficiente para todos nele abarcarem, propõe uma forma de poder

ascendente – em contraposição ao poder descendente do Antigo Regime –, feito, portanto, de

baixo para cima. Fundamenta, em bases racionais, a justificação do Estado moderno,

vinculando-o à soberania popular:

Considerar o Estado como fundado sobre um contrato social, isto é, sobre um

acordo de todos os que estão destinados a ser nele sujeitos, significa defender

a causa do poder ascendente contraposto ao poder descendente, sustentar que

o poder sobe de baixo para cima e não desce de cima para baixo, significa, em

suma, fundar a democracia contra a autocracia. 307

Com efeito, o poder do legislativo extraído da obra de Locke e o governo pela vontade

geral de Rousseau constituem o que há de essencial na estrutura do Estado moderno, síntese

dos reclamos da modernidade e erigido à luz de princípios tais como o da liberdade (sobretudo

a contratual, cerne do direito privado); igualdade (decorrente da transcendentalidade do sujeito

kantiano e estabelecida, ainda que apenas formalmente, pelos diplomas legais); representação

política (e seu necessário vínculo com a ideia de autolegislação); e respeito e obediência às

instituições democraticamente estabelecidas.

Desta forma, o Estado moderno apresenta-se como um complexo artificialmente erigido

para a conveniência dos seus súditos, verdadeiros detentores do poder político segundo a teoria

da soberania popular, corolário da contratualista. Centra-se no conceito de Estado de Direito e,

portanto, no predomínio da ordem jurídica. Com efeito, a partir da ideia de um consenso prévio

entre indivíduos abstratos resultam as relações de subordinação estabelecidas pelo ordenamento

jurídico. Ademais, assenta-se sobre um traço que lhe é fundamental e, em especial, o diferencia

das demais formas institucionalizadas de poder que lhe antecederam: a soberania. Neste sentido,

é importante a lição de Paulo Bonavides:

Mas nunca deslembrar que foi a soberania, por sem dúvida, o grande princípio

que inaugurou o Estado Moderno, impossível de constituir-se se lhe falecesse

a sólida doutrina de um poder inabalável e inexpugnável, teorizado e

concretizado na qualidade superlativa de autoridade central, unitária,

monopolizadora de coerção.

Antes de se prender, pois, a uma instituição visível e manifesta mas

despersonalizada – a saber, o Estado propriamente dito –, aquela autoridade

se prendia à pessoa do governante, do monarca, do príncipe legibus solutus,

espécie de divindade temporal e terrena, a saber, príncipes, primus inter pares,

que dissolvera num lento processo a constelação de poderes desiguais e

privilegiados do sistema feudal até se transformar, em época posterior das

307 BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Trad. Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Paz e terra, 2000, p.

160.

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revoluções do poder, no monarca de direito divino, no soberano titular de

império incontrastável, no rei absoluto, donde se irradiavam todas as

competências e atribuições governativas, rei que se afigurava aos súditos a

cabeça, o penhor e a efígie das leis fundamentais do reino, agora repassadas

ao centro de uma governança absoluta, de que a soberania era o conceito, e o

Estado o órgão, ambos em dimensão abstrata. 308

Nesta perspectiva, o Estado moderno deixa de ser o Estado absoluto do Antigo Regime

e passa a ser o Estado constitucional, sob a égide da lei, conforme o constitucionalismo nascente

na transição do séc. XVIII para o séc. XIX. Trata-se aí de uma guinada histórica relevante: a

transição do poder das pessoas para o poder das leis.

Politicamente, temos Cromwell sendo proclamado Lorde Protetor da Inglaterra, Escócia

e Irlanda e ficando sujeito a uma constituição (o Instrumento de Governo), escrito por um

Conselho de Oficiais sob a direção de Lambert, em 1653. Outro ponto de inflexão se dará em

1689, com a aprovação da Declaração de Direitos (Bill of Rights) pelo Parlamento, limitando

as prerrogativas reais. Já em 1714, assume Jorge I, de Hannover, sem ter conhecimento da

língua inglesa e outorgando a chefia de governo para um gabinete, de onde se destacaria

oportunamente a figura do Primeiro-Ministro como chefe de governo, germinando o sistema de

governo parlamentarista.

De fato, o avanço promovido pelos ingleses no século XVII foi essencial para a

transformação das estruturas jurídicas medievais em um sistema parlamentar limitador do poder

real. Posteriormente, o modelo da tripartição dos poderes de Montesquieu seria implementado

na Constituição americana da Independência. Esta, por sua vez, trouxe consigo a importância

da constituição escrita, código sistemático de organização do Estado e de proteção de direitos,

viabilizando, em especial, o governo popular em contraposição à injusta tradição monárquica.

Ademais, outros avanços podem ser imputados aos americanos neste tocante, como o

federalismo e o sistema de governo presidencialista, este modelado com uma separação mais

rígida das funções executiva, legislativa e judiciária em contraposição ao modelo

parlamentarista, onde a relação executivo-legislativo não se reveste propriamente de

independência.

Tais eventos, por evidente, impulsionaram a Revolução Francesa e, considerados dentro

de um período histórico relativamente curto (da segunda metade do séc. XVII ao final do séc.

XVIII) forneceram as bases essenciais à formação do Estado constitucional moderno, além de

terem desencadeado as independências das colônias espanholas e portuguesas nas décadas

308 BONAVIDES, Paulo. Teoria geral do Estado. 9ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 35.

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seguintes. Destaque-se que o papel dos eventos revolucionários deste período é, conforme

Arendt309, algo substancialmente distinto das rebeliões e guerras da antiguidade, posto que

noção de revolução, para a referida pensadora, está associada à ideia de instauração da

liberdade, algo que não aparecia nas guerras antigas, mas é inerente aos movimentos

revolucionários do período moderno em comento.

Destaque-se, na referida pensadora, a apologia feita à Revolução Americana em

detrimento daquela Francesa, no que tange ao aspecto central dos movimentos revolucionários,

a constituição da liberdade (constitutio libertatis), concluindo, em apertada síntese, que a

Constituição americana nasceu “da confiança de ter descoberto um princípio de poder com

força suficiente para fundar uma união permanente”310, enquanto as efêmeras constituições

europeias do pós-guerra nasceram “da desconfiança frente ao poder em geral e [d]o medo frente

ao poder revolucionário do povo em particular”311. A partir desta substancial distinção, recusa

a possibilidade de que tais constituições pudessem instaurar a mesma forma de governo

implementada pela Constituição americana. Neste sentido, ressalta a ideia de que o ato

revolucionário é determinado pelo tipo de governo que derruba, já que a Revolução Americana

combateu uma monarquia limitada e a Francesa a Monarquia Absolutista. 312

Paralelamente e de forma sobreposta com tais acontecimentos políticos se dava “o

aumento da complexidade social e o aparecimento de subsistemas sociais de tal forma que

pouco a pouco assistimos, já no séc. XVIII, à diferenciação do chamado subsistema econômico

que passa a constituir algo de per se e, por isso, merecedor da atenção do governo”313. Também

a Revolução Industrial, por sua vez, traria as bases para a produção em massa, estabelecendo

uma sociedade técnica e industrial em contraposição àquela medieval (que neste contexto torna-

se pré-industrial), de forma a perfazer o processo de mudança do modo produtivo. Dentro deste

309 ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.

36. E ainda: “Existiam homens no Velho Mundo que sonhavam com a liberdade pública, existiam homens no

Novo Mundo que provaram a felicidade pública – são estes, em última análise, os fatos que determinaram que o

movimento de restauração, de recuperação dos antigos diretos e liberdades, evoluísse para uma revolução dos dois

lados do Atlântico. E, por mais que os acontecimentos e circunstâncias, no êxito e na derrota, viessem a separá-

los, os americanos ainda concordariam com Robespierre sobre o objetivo supremo da revolução, a fundação da

liberdade, e sobre a tarefa concreta do governo revolucionário, a instauração de uma república.” (ARENDT,

Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 188). 310 ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.

203. 311 ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.

203. 312 ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.

205. 313 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Direito constitucional: liberdade de fumar, privacidade, Estado, direitos

humanos e outros temas. Barueri: Manole, 2007, p. 424.

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quadro conceitual e fático se firmarão os preceitos centrais para a compreensão dos aspectos

sociais e políticos da sociedade moderna:

Num momento precedente, aquele das sociedades burguesas e capitalistas, foi

por intermédio de um discurso jurídico que se buscou estruturar as formas

sociais nascentes. Com os avanços dos exércitos da Revolução Francesa – na

visão de Hegel o Estado napoleônico – impõe-se na Europa o modelo jurídico

assente no conceito de Constituição, de Código Civil e de Direitos do Homem.

Sob o seu influxo desenvolve-se um novo conceito de cidadão e de civilidade

(a nova sociedade civil – modelo de todo Ocidente), mas também as trocas

comerciais, as relações de propriedade e de transmissão dos bens, e as relações

de trabalho, no campo e na fábrica, decorrentes das revoluções agrícolas e

industriais. 314

Neste sentido é que será erigido o Estado moderno, ente criado e regido por uma

constituição, fortemente balizado nos ditames da Declaração dos Direitos do Homem e do

Cidadão promulgada pela Assembleia Nacional francesa em 1789, a qual apontou, de maneira

expressa, que a finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e

imprescritíveis do homem; e no Código Civil napoleônico de 1804, que norteou os aspectos

centrais do direito civil moderno; ambos responsáveis pela racionalização jurídica das relações

sociais típicas da modernidade: relações de troca, relações de propriedade, transmissão de bens,

relações de trabalho e o conceito de cidadão e civilidade, com seus respectivos conteúdos

jurídicos.

314 PUGLIESI, Márcio. Sujeito: traços de um projeto burguês. [Tese de doutorado]. São Paulo: PUC-SP, 2008, p.

229.

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130

4 AS CARACTERÍSTICAS DO CONTRATUALISMO MODERNO EM

PERSPECTIVA CRÍTICA

4.1 Construção teórica individualista

Buscaremos, neste item, dar a devida clareza quanto ao que até aqui procuramos

demonstrar, ou seja, apresentar as características gerais em certa medida compartilhadas pelas

doutrinas contratualistas modernas expostas acima, bem como apresentar críticas a tais

características a partir das diferentes formulações dadas pelos pensadores analisados. Com isso,

nos propomos a esmiuçar as condições filosóficas que levaram à ideia de contrato ser elevada

ao fundamento do Estado na modernidade, bem como as consequências advindas das

construções ora apresentadas.

Assim sendo, para desde já tornar as características estruturantes das doutrinas

contratualistas modernas mais claras, vale apontar a organização dos elementos feita por Leister

e Chiappin:

Além do núcleo com suas teses básicas, o programa conta, igualmente, com

uma heurística positiva que consiste em vários modelos básicos cuja

combinação dependerá dos autores e de seus compromissos axiológicos. Esses

modelos básicos são: (i) Modelo I, o modelo do indivíduo; (ii) Modelo II, o

modelo de um conjunto de n indivíduos do modelo I que é o modelo do estado

de natureza, o qual inclui o conjunto dos indivíduos mais a interação entre

eles; (iii) Modelo III, o modelo do Estado de guerra; (iv) Modelo IV, o modelo

de transição que define o contrato social engendrado por indivíduos racionais

(o contrato explicita os elementos de transição entre o estado de natureza e a

sociedade); (v) Modelo V, o modelo do Estado civil; (vi) Modelo VI, os

modelos de governo: democracia, aristocracia, monarquia. A combinação que

cada autor faz desses modelos para fundamentar a passagem do modelo de

estado de natureza para o Estado civil junto com os próprios modelos define

o que chamamos de método de construção, que fornece um método capaz de

mostrar como se pode construir uma sociedade política. 315

Aí constam os vários pontos estruturantes do contratualismo moderno, sobre os quais

verificamos nas páginas anteriores as diferentes respostas apresentadas pelos pensadores que

compõem referida linhagem filosófica. Tais pontos se estruturam a partir das problemáticas

enfrentadas no contexto histórico-político de sua época, bem como a partir das soluções e

315 LEISTER, Ana Carolina Corrêa da Costa; CHIAPPIN, José Raymundo Novaes. O programa contratualista

clássico e o problema da cooperação: Hobbes e os fundamentos de um governo constitucional e de uma sociedade

justa. In: RBDC n. 20 – jul./dez. 2012, p. 59-60.

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problemas deixados pelos pensadores imediatamente anteriores. Neste sentido, os principais

temas trabalhados podem ser apresentados a partir do resumo abaixo:

A construção da solução do problema fundamental pelo subprograma

contratualista com o Estado de Direito coloca com hialina clareza os principais

temas a serem desenvolvidos, ao longo do programa da política e do direito

como ciências: (i) o problema da emergência da cooperação e da estabilidade;

(ii) que uma das soluções é o Estado; (iii) que o fundamento da política está

no indivíduo como agente racional e autointeressado; (iv) que o contrato é um

método de agregação; (v) que a solução do problema da cooperação envolve

o problema da relação entre um domínio das relações privadas, regulado pelo

princípio da autonomia da vontade, e de um domínio das relações públicas,

regulado pelo princípio da supremacia do interesse público; (vi) como

construir mecanismos institucionais, o Estado capaz de resolver o problema

da cooperação; (vii) a construção do indivíduo como pessoa detentora de

direitos e obrigações; (viii) a importância do problema da justificação teórica

para a obediência política e o consentimento. 316

Inobstante a importância de todas estas questões, que direta ou indiretamente já foram

objeto de nossa análise, nosso trabalho centra-se por evidente no último ponto, qual seja, na

questão da justificação teórica para obediência política e consentimento, questão em que, em

nossa leitura, teve grande impacto o contratualismo na modernidade.

Assim sendo, tendo sintetizado a problemática e a estrutura das respostas às questões

enfrentadas pelos teóricos contratualistas, cumpre-nos agora apresentar a relevância de suas

assertivas em consonância com as perspectivas científicas do período em que se deram, para

então compreendermos esta primeira problemática a que nos propomos, qual seja, a do

individualismo como pressuposto teórico inicial das doutrinas em comento:

Seguindo as reflexões anteriores, decorrentes do programa racionalista, a

reconstrução do programa de pesquisa da política, do direito e da economia

como ciência começou pelo estabelecimento de duas teses centrais e de um

modelo elaborado por Hobbes de transição de fase, entre uma fase

desordenada para uma fase ordenada semelhante a um modelo de Ising de uma

dimensão. A primeira das teses afirmou o individualismo ontológico e

metodológico que dominará esse programa. Essa tese reconhece o indivíduo

como a única entidade real do sistema político. Em razão dessa tese, todas as

demais entidades, incluindo família, mercado e Estado, são entidades

artificiais construídas a partir dos indivíduos e da interação entre eles, que é

descrita por certas leis comportamentais as quais motivam a ação privada. A

segunda tese sustenta exatamente o que se comentou, a saber, que o modelo

316 CHIAPPIN, José Raymundo Novaes; LEISTER, Carolina. Contratualismo, Utilitarismo, a emergência do

indivíduo e da cooperação I: os fundamentos metodológicos e metafísicos das instituições do Estado e do mercado.

Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, V. 109, p. 485-523, jan./dez. 2014, p. 494.

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132

que descreve o comportamento desse indivíduo é o modelo de escolha

racional. Ele é um indivíduo racional autointeressado. 317

Trata-se, portanto, de verificar a artificialidade do Estado como construído teórico, cujo

lastro é o conceito de indivíduo. Posto isto, verifica-se que todas as entidades artificiais, em

especial o Estado, decorrem da única entidade ontologicamente verificada pelos teóricos em

comento: o indivíduo. Perfaz-se, assim, a expressão moderna do que comumente se denomina

atomismo político. O problema posterior a ser encaminhado apresenta-se tão somente após

consolidada esta ideia da individualidade como pressuposto básico de toda filosofia da

modernidade. Tal problema será o da compatibilização das liberdades individuais, ou seja, da

relação de convivência destes indivíduos num mesmo contexto social, o qual prescinde da

unidade social fornecida pelas justificações tradicionais típicas do medievo.

Assim sendo, a questão da ação coletiva por indivíduos que embora verificados

isoladamente compartilham recursos comuns apresenta-se como problemática central do

contratualismo clássico, fazendo emergir a ideia de cooperação social e, em última análise, do

Estado como mecanismo capaz de gerar estabilidade entre indivíduos que autointeressados

tendem à destruição dos recursos comuns se não houver a implementação de alguma solução

supraindividual para este problema. Dentre diversas leituras possíveis, esta questão pode ser

enfrentada a partir da leitura da tragédia dos comuns:

....o problema da tragédia dos comuns consiste em como controlar e

racionalizar o uso do recurso comum de tal modo a evitar sua destruição e

garantir seu uso sustentável ao longo do tempo. Quatro possíveis alternativas

são aventadas como meios para solucionar esse problema: (i) controle central,

i.e., centralização da ação coletiva por meio de um agente exógeno, mas

instituído pela coletividade, que é o fiador da resolução estabelecida entre as

partes; (ii) privatização, transformando o recurso comum em privado, e por

este meio criando um incentivo para o controle individual do uso do recurso.

De modo que os indivíduos passariam a ter o interesse de preservá-la; (iii)

regulamentação pelos próprios interessados em uma forma de contrato ou

autogoverno; (iv) combinações possíveis das alternativas anteriores. 318

317 CHIAPPIN, José Raymundo Novaes; LEISTER, Carolina. Contratualismo, Utilitarismo, a emergência do

indivíduo e da cooperação I: os fundamentos metodológicos e metafísicos das instituições do Estado e do mercado.

Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, V. 109, p. 485-523, jan./dez. 2014, p. 508. 318 CHIAPPIN, J. R. N.; LEISTER, C. Experimento mental I: a concepção contratualista clássica, o modelo da

tragédia dos comuns e as condições de emergência e estabilidade da cooperação. Hobbes, 2007. Disponível em:

https://escholarship.org/uc/item/3n07b7zq. Acesso em 3 de janeiro de 2018, 9:08, p. 4. Questão similar é levantada

por Rawls em RAWLS, John. Uma teria da justiça. Trad. Jussara Simões. 4ª ed. rev. São Paulo: Martins Fontes,

2016, p. 335.

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133

Assim sendo, busca-se resolver o problema da tentativa de maximização dos benefícios,

característica de indivíduos autointeressados, manifesta a partir do uso irracional (ou até

racional), mas não sustentável de recursos, com a existência de recursos comuns finitos e da

necessária relação entre indivíduos no corpo social.

Destaque-se o entendimento dos autores no que tange à visão hobbesiana desta situação,

apresentando-nos duas facetas das propostas de Hobbes. Inicialmente, apresentam-nos a ideia

dos indivíduos como recurso comum, i.e., “a despeito de cada um se reconhecer a si próprios

com direito à vida, esses indivíduos não são capazes de reconhecer o outro como tendo igual

direito”. 319 Assim sendo, os indivíduos são tidos, pelos demais, como meio para sua

autoconservação (com direito de propriedade sobre sua própria vida, mas sem essa propriedade

reconhecida pelo outro ante à ausência de um poder que a estabeleça); dando-nos, portanto,

clareza às afirmações típicas do beligerante estado de natureza vislumbrado por Hobbes e aqui

já analisado. Em segundo lugar, Hobbes apresentará a solução para implementar a cooperação

entre indivíduos que se veem como fins, mas uns aos outros como meio, qual seja, a formação

de um agente central externo apto a viabilizar a cooperação social entre indivíduos em

interação: o Estado. 320 Com ele concede-se o direito à vida para cada indivíduo, sendo o Estado

o garantidor, com poder coercitivo para implementar tal garantia. No contexto da vigência do

Estado, passa-se a reconhecer a propriedade (o meu e o seu), incluindo aí sobre o próprio

indivíduo e, portanto, deixa-se de verificar o outro como meio e passa-se e verificá-lo como

fim, noção esta que norteará os demais contratualistas e será de especial valia para os filósofos

e juristas dos séculos seguintes.

Com efeito, com o contratualismo deixamos de falar em comunidade e passamos a falar

em sociedade. Este ponto requer especial atenção, posto que sintetiza a transição da sociedade

medieval para a sociedade moderna, vista como somatório de individualidades que, em

interação, geram o problema da sociabilidade que deve ser equacionado pelos filósofos

modernos. Desta forma, os pensadores contratualistas analisados perfazem uma linhagem

filosófica, cujas bases de sustentação remontam às construções teóricas hobbesianas que foram

gradativamente modificadas e retrabalhadas com distintas visões e interesses, mas mantendo-

319 CHIAPPIN, J. R. N.; LEISTER, C. Experimento mental I: a concepção contratualista clássica, o modelo da

tragédia dos comuns e as condições de emergência e estabilidade da cooperação. Hobbes, 2007. Disponível em:

https://escholarship.org/uc/item/3n07b7zq. Acesso em 3 de janeiro de 2018, 9:08, p. 7. 320 CHIAPPIN, J. R. N.; LEISTER, C. Experimento mental I: a concepção contratualista clássica, o modelo da

tragédia dos comuns e as condições de emergência e estabilidade da cooperação. Hobbes, 2007. Disponível em:

https://escholarship.org/uc/item/3n07b7zq. Acesso em 3 de janeiro de 2018, 9:08, p. 6.

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134

se sob núcleos de sustentação similares, em especial quanto ao papel do indivíduo como

formador do corpo social e ao Estado como solução para o problema da sociabilidade humana.

O contratualismo consistirá, portanto, em questão tendente a estruturar o horizonte de

possibilidade das interações dos indivíduos que convivem, ainda que com interesses

conflitantes, sobressaindo a ideia de um comportamento estratégico visando diminuir conflitos

e viabilizar a consecução de finalidades determináveis pelo próprio indivíduo dentro do

horizonte possível diante do contexto social em que se insere. Destaque-se, com relação às

lógicas sociais tradicionais e anteriores, que a visão acerca de deveres sociais ou de

contribuições para implementação de conquistas sociais a serem (com)partilhadas diminui

expressivamente e dá lugar a discussões acerca das possibilidades de pleitos, direitos e garantias

individuais, cujos efeitos podem ser antevistos a partir do modelo da tragédia dos comuns

verificado acima, bem como naquela do maximizador irrestrito de Gauthier. 321

A abordagem típica do início da modernidade filosófica reporta-se às perspectivas das

ciências exatas, que tratavam de substituir os entendimentos aristotélicos por aqueles da

mecânica moderna, conforme já trabalhamos em nossa análise de Hobbes, e buscarão apresentar

soluções artificialmente erigidas para solucionar os problemas abstratamente vislumbrados pela

razão humana. De toda sorte, cumpre destacar que:

Os contratualistas não fazem outra coisa na construção de explicações

políticas do que adotar uma concepção de um atomismo político, correlativo

com o atomismo mecânico, com fundamento no princípio do individualismo

metodológico e com a tese de que os agentes individuais são racionais e auto-

interessados. Todo fenômeno social e político deve ser explicado por meio da

interação desse modelo de indivíduos, racionais e auto-interessados. O

contrato é instrumento para transformar decisões individuais em decisões

coletivas e com isso resolver o problema da natureza do Estado. O

contratualismo, na sua elaboração do programa da política como ciência segue

o exemplo do paradigma da mecânica social. Os individuais racionais e auto-

interessados, em interação, explicam todos os fenômenos políticos e sociais

do mesmo modo como Galileu e Descartes, seguindo o modelo geométrico,

construíram as explicações mecânicas dos fenômenos físicos a partir dos

corpúsculos em movimento. 322

A noção aqui decorre de um conceito de sujeito como aquele racional e autointeressado,

bem como de uma visão acerca da ciência que busca o domínio da natureza física, sendo o

conhecimento das causas e consequências apresentado em proposições descritivas das leis e

321 Para esta questão, ver GAUTHIER, David. Morals by Agreement. Oxford: Oxford University Press, 1986. 322 CHIAPPIN, J. R. N.; LEISTER, Carolina. A concepção pragmatista/utilitarista e sua importância na relação

entre epistemologia e ciência na emergência da ciência contemporânea. In: COGNITTIO-ESTUDOS: Revista

Eletrônica de Filosofia. São Paulo, Volume 5, Número 2, julho-dezembro, 2008, p. 114-118.

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com propósito de solucionar problemas. Trata-se da tradicional intervenção humana na natureza

com o propósito de adaptá-la aos seus interesses. Com efeito, a partir das noções de movimento

dos corpos e da nova visão acerca da relação causa e efeito (em substituição aos entendimentos

aristotélicos de viés teleológico) passa a ser possível conhecer e replicar as leis da natureza

conforme interesses.

4.2 Das consequências da submissão ou associação

Embora as teorias contratualistas apresentem similaridades tais que nos permitam

enquadrá-las sob uma mesma escola filosófica, cabe-nos apontar distinções acerca das

consequências das diferentes formas de contrato sociais vislumbradas, notadamente dos

chamados contrato de submissão e contrato de associação.

Nesta linha, uma síntese bastante valiosa para a análise das teorias contratualistas como

fundamento filosófico do Estado pode ser encontrada em Derathé, quando este busca apontar a

distinção entre a origem e o exercício da soberania:

A soberania tem sempre sua origem no povo, mas no momento de concluir o

pacto social, pode poder, no que concerne ao próprio exercício da soberania,

escolher entre quadro eventualidades:

1º reservá-lo para si sem partilha (nesse caso, o povo é soberano e o governo,

democrático);

2º partilhá-lo com aqueles que o governarão (nesse caso, a soberania é

partilhada entre os governantes e a assembleia do povo);

3º aliená-lo sob condição (nesse caso, o soberano, isto é, o rei ou o Conselho

que governa, só dispõe de um poder limitado);

4º aliená-lo sem reservas (nesse caso, o monarca é o verdadeiro e único

soberano, isto é, o soberano absoluto). 323

Desta forma, temos que o contratualismo como teoria que sustenta a soberania pode

servir como fundamento teórico não só para modelos democráticos de sociedade política, como

para outros tipos, o que não é novidade, na medida em que, nas apresentações anteriores,

mostramos o próprio modelo hobbesiano como absolutista, inobstante o fato da fundação da

sociedade política apresentar-se como decorrente de um pacto. Neste sentido, também Grotius

e Pufendorf, todos comumente apontados como fundadores da teoria do contrato social,

apresentam-se como absolutistas.

323 DERATHÉ, Robert. Jean-Jacques Rousseau e a ciência política de seu tempo. Trad. Natalia Maruyama. São

Paulo: Barcarolla, 2009, p. 81.

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136

Assim, temos clara a noção trabalhada por Derathé, no sentido de que não é possível

confundir a origem da soberania com seu exercício. Assim sendo, todos os contratualistas

apontam como origem da soberania o povo, entretanto, como sabemos, seus primeiros

formuladores, apontados acima, apresenta-se como alinhados às ideias absolutistas no que tange

à forma de exercício desta soberania, ainda que originada no povo. Rousseau, conforme

trabalhado, desponta ao apresentar a ideia de que a soberania não só é originária do povo, como

também deve ser por este exercida, de tal modo que não é possível sua alienação a qualquer

homem ou assembleia de homens. Aí consta, em linhas gerais, uma distinção essencial entre os

pensadores contratualistas Hobbes e Rousseau. Para Hobbes, a necessidade do Estado decorre

da necessidade de sujeição, enquanto que, para Rousseau, a necessidade do Estado deriva da

necessidade de autonomia, de tal modo que um novo pacto é necessário, do qual decorra uma

nova forma de governo (Republicana) e um novo tipo de homem (cidadão virtuoso). 324

Com efeito, as origens do contratualismo, de fato, remontam aos escritos dos juriscultos

Grotius e Pufendorf325, que embora alinhados aos interesses absolutistas, contribuíram

significativamente para alavancar as noções de direito natural no início da modernidade,

apresentando-os de forma desligada da ideia de direito divino, notadamente naquilo que

concerne à origem e fundamento da soberania do Estado. Neste tocante, Pufendorf estabelece

que “a soberania não se encontra menos nas democracias do que nas monarquias”. 326

Em Hobbes, que primeiro sistematizou o modelo e, portanto, deu a ele a devida

importância e visibilidade, vê-se o entendimento de que “a lei da natureza manda todo homem

transferir certos direitos a outrem, como condição necessária para alcançar a paz, e que todas

as vezes que isso acontecer se terá firmado um contrato”327, destacando a importância da ideia

de contrato para compreensão da transição do chamado estado de natureza para a sociedade

política, sem apontar daí as questões afetas ao modelo de estado civil necessário para que a tal

paz seja efetivada.

324 SANTILLÁN, José F. Fernández. Hobbes y Rousseau: entre la autocracia y la democracia. México: Fondo de

Cultural Económica, 1996, p. 137. 325 Quanto à Rousseau, por exemplo, Derathé aponta que: “A fonte imediata onde Rousseau extraiu sua informação

em matéria de direito político seria, antes Pufendorf. Pois, com toda evidência, foi o tratado do Direito de natureza

e dos povos que Rousseau escolhera como manual. Rousseau utilizou constantemente a tradução e o comentário

de Barbeyrac. Foi Pufendorf que o fez conhecer a doutrina de Hobbes, e Barbeyrac, a de Locke.” (DERATHÉ,

Robert. Jean-Jacques Rousseau e a ciência política de seu tempo. Trad. Natalia Maruyama. São Paulo:

Barcarolla, 2009, p. 142). 326 PUFENDORF, Samuel. Le droit de la nature et des gens. Liv. VII, Cap. V, 5 (II, 334) apud DERATHÉ,

Robert. Jean-Jacques Rousseau e a ciência política de seu tempo. Trad. Natalia Maruyama. São Paulo:

Barcarolla, 2009, p. 136. 327 HOBBES, Thomas. Do cidadão. Trad. Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 61.

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O paradigma contratualista pelo qual se compreende o fenômeno político na

modernidade consiste, portanto, no firmamento de um contrato para performar a transição de

um estado de natureza para um estado civil, para que a implementação da paz seja possível,

inobstante o modelo de sociedade que decorre deste pacto.

Com efeito, Hobbes não parece estar preocupado com o abuso do poder, tônica que

guiaria Locke e Rousseau, mas com sua ausência. É por isso que “Hobbes só pintou um quadro

tão negro do estado de natureza para que os homens acreditassem que só poderiam viver em

paz sob a dominação de um senhor e para lhes mostrar que a servidão é ainda preferível a uma

guerra sem fim”328 A perda de liberdade, especialmente para Rousseau, e a fruição da

propriedade controlada por um tirano, para Locke, são pontos inaceitáveis sob a ótica de tais

pensadores.

De toda sorte, extraímos de tais pensadores uma ideia comum de suma importância para

a consolidação do Estado moderno e de seu principal atributo: a soberania; pois embora

Rousseau tenha rejeitado veementemente a concepção hobbesiana de estado de natureza, bem

como o absolutismo de Hobbes, concorda com este no que tange à ideia segundo a qual o Estado

deve ter uma só vontade comandando. É bem verdade que para Hobbes esta vontade poderia

estar a cargo de um homem ou uma assembleia de homens, enquanto para o pensador genebrino

é apenas o povo reunido em assembleia (a vontade do corpo do povo, como um todo) é que

pode constituir-se como vontade geral, ou melhor, soberana.

Neste sentido, destaque-se que a salvaguarda da liberdade, prevista em Locke, mas

também de forma clara em Rousseau, diminuem a possibilidade de interferência do Estado,

anotando os rascunhos de um Estado liberal que sobreviria. De toda forma, tal limitação não

compromete – nem em Locke, nem em Rousseau – a unidade do Estado, ponto que parece ter

sido herdado de Hobbes.

Outra síntese interessante para que possamos compreender melhor a doutrina moderna

do contrato social está em Arendt, no seu Sobre a Revolução. Lá, a pensadora nos apresenta

uma divisão clássica dos contratos sociais, sendo o primeiro tipo:

O Contrato mútuo pelo qual as pessoas se obrigam a unir para formar uma

comunidade está baseado na reciprocidade e pressupõe a igualdade; seu

conteúdo efetivo é uma promessa, e seu resultado é de fato uma “sociedade”

328 DERATHÉ, Robert. Jean-Jacques Rousseau e a ciência política de seu tempo. Trad. Natalia Maruyama. São

Paulo: Barcarolla, 2009, p. 166.

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ou “coassociação” na antiga acepção romana de societas, que significa

aliança. 329

Sendo tal contrato vinculativo a uma nova estrutura de poder em virtude de ser derivado

de promessas livres e sinceras. Já no segundo tipo:

No chamado contrato social entre uma determinada sociedade e seu

governante, por outro lado, estamos tratando de um ato fictício, primordial,

por parte de cada membro, em virtude do qual ele renuncia à sua força e seu

poder isolado para constituir um governo; longe de ganhar novo poder,

possivelmente maior do que o que possuía antes, ele renuncia a seu poder

enquanto tal e, longe de se vincular e se obrigar por promessas, simplesmente

expressa seu “consentimento” em ser governado pelo governo”. 330

Desta forma, o indivíduo parece ganhar poder no sistema de promessa mútua e perder

ao dar seu consentimento ao poder exercido pelo governante. Adicionalmente, a ideia de

consentimento aparece ligada ao isolamento do indivíduo e, portanto, a sanção externa

(religiosa) parece ser necessária, enquanto a ideia de mútua promessa é feita perante os demais

e, portanto, legitima-se aí mesmo, de modo que o corpo político resultante do ato de promessa

mútua é a própria fonte de seu poder, enquanto aquele decorrente do consentimento concede ao

governante o poder e, portanto, os governados ficam impotentes enquanto não recuperarem o

poder original para mudar o governo. 331

4.3 O apriorismo do pacto

O Estado, neste contexto, aparecerá como a tecnologia criada pela razão humana para

solucionar o problema da relação de indivíduos, sendo visto como:

...um artifício edificado e construído, pela razão, e por meio de uma decisão

voluntária, com um propósito de solucionar problemas de cooperação. (Ou

seja, para os contratualistas, o Estado é uma entidade artificial). Esta

tecnologia introduz e impõe uma racionalidade à interação humana,

eliminando, ou ao menos mitigando, as determinantes do conflito ao

institucionalizar as relações humanas legítimas ou admitidas sob termos

racionalizados. Ele é um mecanismo institucional construído para servir

329 ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.

222. 330 ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.

222-223. 331 ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.

223.

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139

inicialmente à composição dos conflitos de interesses entre os indivíduos

interagentes. 332

Além de apontar o Estado como uma tecnologia, um mecanismo institucional, o excerto

acima o aponta como entidade artificial e criada pela razão humana, de onde se extrai uma

característica fundamental do contratualismo moderno, qual seja, a da crença na racionalidade

plena do humano, a qual manifesta-se pela solução do Estado como forma de compatibilizar a

interação entre indivíduos, solução esta alcançada a partir da pressuposta natureza racional

humana e do hipotético estado de natureza no qual ela é colocada em relação com os demais

indivíduos, surgindo daí a solução racional do Estado regido pela ideia de promessa mútua. Há,

portanto, não só a crença na racionalidade plena do humano, mas em seu universalismo:

se eu posso esperar ordem, apoiando-me na possibilidade de que todos

compartilhem idêntica expectativa, posso considerar razoável supor que todos

de fato ajam e calculem conforme meus próprios cálculos, isto é, que todos

efetivamente compartilhem a nova expectativa, já que a todos ocorrerá a

mesma ideia ou a mesma conclusão (pois os outros compartilharão a nova

expectativa), sendo a razão idêntica-a-si e os sujeitos, no nível em que ora os

postulo, exclusivamente racionais, isto é, apaixonados apenas pela vida e não

situados (em relações específicas, particularizantes); meros agentes

celebrantes do pacto, artífices do Estado. 333

Tal pretensão de universalidade é sujeitas às mesmas críticas das demais assertivas

modernas que, tal como ela, recaem no vício da generalidade e na ausência de um indivíduo

histórico-empírico, remetendo-nos à tensão entre idealidade e empiria. Da universalidade da

razão surgirá o pacto fundante da sociedade política, o qual, por sua vez, decorre de um

consenso a priori entre os indivíduos, cuja essência se torna abstrata. Naturalmente livre que é,

o homem renuncia à vontade individual e submete-se à vontade geral. Ou seja, trata-se de a

partir de um contrato hipotético buscar a justificação e a obediência de normas reais a serem

implementadas por um poder também real.

Neste ponto reside o cerne da doutrina contratualista para efeitos de sua manutenção

enquanto teoria de justificação do Estado moderno: o indivíduo, ao obedecer a lei, obedece, em

última análise, a si mesmo, vez que toda consequência legislativa oriunda do pacto funda-se –

teoricamente – em sua própria liberdade. O confronto entre a natureza a priori do pacto e a

332 LEISTER, Carolina; CHIAPPIN, José Raymundo Novaes. O programa de pesquisa sobre a política e o direito

como ciência e o problema das condições de emergência e estabilidade da cooperação entre indivíduos

interagentes: a construção do Estado de Direito e o núcleo teórico do contratualismo. In: Revista do Instituto dos

Advogados de São Paulo. Nova Série. Ano 13, nº 25, RT, jan-jun/2010, p. 128-129. 333 SOARES, Luiz Eduardo. A estrutura do argumento contratualista: Thomas Hobbes e a gênese ética da reflexão

política moderna. In: Dados: Revista de Ciências Sociais v.36, n.1, p.39-61, 1993, p. 54.

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140

submissão decorrente da liberdade natural humana centra-se no conceito de sujeito abstrato,

pressuposto dos ordenamentos jurídicos modernos e pedra angular do modelo político

construído. Destaque, ainda, a força da vinculação que surge desta estruturação, na medida em

que o contrato é justamente aquele instrumento jurídico que pressupõe a manifestação do livre

consentimento das partes contratantes. Para Hume334, isso também não pode prosperar. Sem

entrar aqui nas tradicionais querelas entre as éticas deontológicas e consequencialistas, os

partidários destas últimas irão apontar a ideia de obediência como fundamento do Estado e não

da obrigação política, como querem os contratualistas. 335

Neste contexto, todo indivíduo – que passará a ser visto como cidadão – se torna agente

racional e, portanto, capaz de escolhas autônomas; e o Estado, por sua vez, apresenta-se como

aquele responsável por construir mecanismos institucionais necessários para garantir a vida de

seus membros e a estabilidades dos sistemas político, jurídico e econômico, sendo certo que,

para tanto, Política, Direito e Economia devem ser tratadas como ciências do tipo moderno,

assim como a física foi apresentada no excerto acima.

A partir desta visão é que surgirá a noção de indivíduo também sob o prisma jurídico,

bem como do Estado como ente artificialmente erigido para possibilitar e coordenar a relação

334 “Afirmam que todos os homens continuam nascendo iguais e não devem fidelidade a nenhum príncipe ou

governo, caso não estejam presos pela obrigação e sanção de uma promessa. E como nenhum homem iria

renunciar, sem em troca receber alguma coisa equivalente, às vantagens de sua liberdade natural, submetendo-se

à vontade de outro homem, essa promessa deve sempre ser atendida como condicional, sem lhe impor obrigação

alguma, a não ser que receba justiça e proteção de seu soberano. O soberano, em troca, promete-lhes estas

vantagens e, se acaso deixar de cumprir a promessa, terá violado, por seu lado as cláusulas do compromisso,

libertando assim seu súdito de qualquer obrigação de fidelidade. Tal é, segundo esses filósofos, o fundamento da

autoridade de todo e qualquer governo; e tal é o direito de resistência que pertence a todo e qualquer súdito.”

(HUME, David. Ensaios morais, políticos e literários. São Paulo: Abril Cultural (Col. Os Pensadores), 1973. p.

228). Sobre o impacto desta visão de Hume sobre a questão do direito de resistência vide LEISTER, Carolina;

CHIAPPIN, José Raymundo Novaes. O programa de pesquisa sobre a política e o direito como ciência e o

problema das condições de emergência e estabilidade da cooperação entre indivíduos interagentes: a construção

do Estado de Direito e o núcleo teórico do contratualismo. In: Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo.

Nova Série. Ano 13, nº 25, RT, jan-jun/2010, p. 128-129. 335 “Assim, podemos asseverar que a fonte da normatividade, para os contratualista, é o resultado de uma escolha

humana, i.e., de uma ação voluntária que a antecede. É por essa razão que, em última instância, toda justificativa

no racionalismo clássico, matriz epistemológica e metodológica heurística adotada e aplicada na construção das

teorias contratualista, envolve a possibilidade de encontrar os fundamentos ou a origem de uma ideia, sendo uma

decisão o fundamento da normatividade, de sorte que a decisão e a promessa dela decorrente, empreendida no

contrato, constroem artificiam e racionalmente a ação deontológica a qual, no sentido político do termo, é a

obrigação política. Por conseguinte, e referendado pelo voluntarismo nele inerente, pode-se afirmar que o

fundamento da obrigação política implica (mais do que isto, depende de) uma teoria da escolha racional, supondo-

se serem os agentes tomadores de decisão os indivíduos do contratualismo, entidades amorais, porém racionais.

Por outras palavras, é por serem racionais (e não pode serem morais) os indivíduos, que se funda a normatividade

e a ação moral. E, ainda mais, é porque é racional, e não porque é moral, que o indivíduo não quebra o contrato,

sua quebra sendo justificada para o caso do indivíduo ser tomado por suas paixões, que subvertem ou obscurecem

sua razão.” (CHIAPPIN, José Raymundo Novaes; LEISTER, Carolina. Contratualismo, Utilitarismo, a emergência

do indivíduo e da cooperação I: os fundamentos metodológicos e metafísicos das instituições do Estado e do

mercado. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, V. 109, p. 485-523, jan./dez. 2014,

p. 514).

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entre indivíduos e desses direitos, visando possível estabilidade sistêmica. Com efeito,

argumento contratualista volta-se à origem lógica – e não histórica – do Estado; propondo,

assim, a justificação da ordem social e jurídica com base em um consenso a priori decorrente

de um pacto associativo firmado por indivíduos abstratos. Ressalte-se, nesta temática, a

justificação contratual do Estado moderno na visão de Bobbio e sua relação com o sistema

jurídico:

Sejam os contraentes deste pacto o povo, de um lado, e o soberano, de outro

(e neste caso se trata de um contrato bilateral), ou os próprios indivíduos que

se acordam entre si para obedecer a um soberano (e neste caso se trata de um

contrato plurilateral ou, melhor ainda, de um ato coletivo), a figura do contrato

está na base de um sistema de convivência cuja fonte principal de direito, e

portanto de regulamentação das relações sociais, não será mais, uma vez

exaurida a função fundante do contrato originário, o contrato ou acordo entre

equivalentes, mas a lei que instaura relações de subordinação. O poder que faz

de um soberano um soberano, que faz o Estado – visto como unidade de

domínio e portanto, como totalidade – surgir da sociedade composta de partes

em mutáveis e efêmeras relações entre si, é o Poder Legislativo. 336

Da justificação contratualista do Estado moderno resultam as relações de subordinação

conforme postas pelo ordenamento jurídico, o qual gozará de aceitação, posto que decorrente

do consenso aprioristicamente firmado no contrato social originário da sociedade. Estabelece-

se, assim, a relação do contratualismo como forma de justificação do Estado moderno,

sobretudo no que tange à ideia de vontade geral e a questão da necessidade de uma ordem

suprapositiva para justificação do ordenamento jurídico. Ademais, frisamos novamente: trata-

se de um pacto fictício que cria regras reais.

Ademais, alinhado à ideia de concretização de uma forma faticamente possível de

implementar a soberania popular, o Poder Legislativo é o que, em última análise, nos confere a

possibilidade de solucionar conflitos. Com efeito, no âmbito social, a transição do governo dos

homens para o governo das leis produz este mesmo efeito, sendo a lei o fator determinante para

apontar os poderes do Estado e os direitos dos cidadãos. Ademais, é ela que, na sociedade

complexa desencantada, consiste em fator de unidade, posto que se assume – nos termos da

teoria contratualista – que sem a lei os indivíduos encontrar-se-iam em permanente conflito.

Neste sentido, buscando saber o que há por de trás daquilo que denomina legitimação,

Höffe nos apresenta de forma muito clara que “uma vez que todo estado requer poder coercitivo,

336 BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Trad.: Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Paz e Terra, 2000,

p. 145.

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estamos, aqui, perante a tarefa de legitimação”. 337 Com esta afirmação, Höffe aponta de

maneira precisa que o poder coercitivo do Estado consiste numa de suas características

fundamentais, ampliando, inclusive, a extensão desta problemática ao se questionar “por que,

entre os seres humanos, é lícito interferir na liberdade? Por que a coerção poder ser legítima?”

338

Ignorando a problemática kelseneana sobre este ponto, podemos apontar que o poder

coercitivo mostra-se justo, do ponto de vista pragmático, por estar a serviço da coletividade,

garantindo a segurança interna e externa e o bem-estar econômico, por exemplo.

Outro ponto de suma importância nesta análise consiste no volenti non fit iniuria (não

há ofensa a quem consente), de onde podemos extrair que a coerção assumida voluntariamente

é justa. Evidente que tal voluntariedade, para ser válida, dependeria de um individualismo, o

qual, ressaltamos, é assumido pelas doutrinas contratualistas, as quais cuidam de inaugurar não

o indivíduo, mas a participação deste como formador do corpo social, bem como a unidade que

este corpo representa, especialmente no que tange à manifestação de decisões de Estado, sempre

lastreadas no conceito de vontade geral ou opinião popular.

A partir destas construções, o universo político assume, na modernidade, as formas de

direito e de Estado, de tal sorte que a noção de justiça política designará a ideia de uma ética

jurídica e estatal, fazendo surgir formas legítimas de sua manifestação. Para Höffe, de toda

forma, o intermédio necessário que o direito faz entre Estado, instituições sociais e cidadão,

acarreta o desaparecimento da crítica suprapositiva:

Pois o poder que cobre nossas sociedades como normações de caráter

coercitivo, graças aos poderes estatais, se constitui de leis positivas (inclusive

artigos de constituição), que resultam de procedimentos positivos, a saber,

parlamentares, que são aplicados por instâncias positivas, o executivo, e

interpretados, no caso de conflitos, por outras instâncias, os tribunais. Assim,

a ordem jurídica e estatal se apresenta como uma trama complexa de regras,

instâncias e poderes exclusivamente positivos. Numa trama equiparada de

modo complexo, e contudo irrestritamente positiva, perdeu seu sentido o apelo

a uma instância crítica suprapositiva; a perspectiva da justiça, assim parece,

vive politicamente em terra de ninguém; para as sociedades da modernidade

ela se tornou utópica. 339

337 HÖFFE, Otfried. A democracia no mundo de hoje. Trad. Tito Lívio Cruz Romão. São Paulo: Martins Fontes,

2005, p. 39. 338 HÖFFE, Otfried. A democracia no mundo de hoje. Trad. Tito Lívio Cruz Romão. São Paulo: Martins Fontes,

2005, p. 39. 339 HÖFFE, Otfried. Justiça política: fundamentação de uma filosofia crítica do direito e do Estado. Trad. Ernildo

Stein. 3ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 7.

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Com isso, Höffe parece reduzir a questão da fundamentação do Estado e do Direito à

questão da legalidade aceita e do império da lei ou a questões de procedimento, conforme

veremos à frente. Entendemos, contudo, que embora haja forte prevalência do positivismo

jurídico no sentido de tornar inaplicável um apelo a qualquer instância suprapositiva, a própria

opção por uma sociedade controlada por leis positivas derivadas de um poder legislativo eleito,

supostamente refletindo a vontade geral, é uma opção política, operacionalizada por meio do

direito, cuja razão de existir funda-se inevitavelmente em perspectivas supraestatais,

notadamente na ideia de um contrato social hipotético e que, ainda que indiretamente, vincula

o comportamento em respeito às regras responsáveis pela possível coexistência das liberdades

– conforme o direito –, para falarmos em sentido bastante kantiano. Afinal, se a partir do

contrato hipotético vinculamo-nos supostamente ao cumprimento de ordenamentos jurídicos

reais, a pergunta que permanece é qual a validade do contrato, ou seja, qual regra pré-existente

a ele existia que vinculassem seus contratantes. Esta questão irá nos remeter inevitavelmente à

ideia de um mandamento da natureza pelo cumprimento de pactos, como quer Hobbes, ou as

análises fenomenológicas de Adolf Reinach340, que acabam por ultrapassar os lindes de nosso

trabalho.

Retomando, a teoria clássica de Bobbio a respeito do ordenamento jurídico busca

apresentar a justificação deste a partir da lógica kelseneana que vê o ordenamento como todo

hierarquicamente organizado de normas, sendo sua justificação decorrente deste escalonamento

normativo, já que “em cada ordenamento jurídico, o ponto de referência derradeiro de todas as

normas é o poder originário, isto é, o poder para além do qual não existe outro sobre o qual o

ordenamento jurídico possa encontrar justificação.” 341 Não nos compete ingressar nas

tradicionais críticas à norma fundamental kelseneana, mas apenas colocar em viés crítico as

consequências acima expostas sobre a formulação das teorias contratualistas e como estas

deram respaldo à criação do modelo jurídico moderno e este, paradoxalmente, tornou-se

autojustificável.

340 “Sólo formulamos la proposición simple, de que la promesa como tal crea una pretensión y uma obligación”

Em tradução livre: “Somente formulados a proposição simples de que a promessa como tal cria uma pretensão e

uma obrigação”. (REINACH, Adolfo. Los Fundamentos Apriorísticos del Derecho Civil. Trad. José Luis

Álvarez. Barcelona: Librería Bosch. 1934, p. 90). 341 BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Trad. Ari Marcelo Solon. São Paulo: EDRIPRO, 2011,

p. 55.

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4.4 Crítica à vontade geral como fundamento do poder político e da normatividade

jurídica

É balizado nos paradigmas teóricos apontados acima que se situa o cerne do projeto

político moderno, qual seja, a instauração do Estado de Direito e da democracia representativa

como forma de unificar a vontade de todos na suposta vontade geral de viés rousseauniano,

concedendo, por via da teoria da soberania popular, a necessária justificação filosófica do

Estado, tal como aparece delineado no início da modernidade. A análise contemporânea da

própria Revolução Francesa anota referida influência:

Em outros termos, Regbera ataca a Revolução por ela ter querido deduzir a

prática política a partir da teoria, ou seja, antes de mais nada, do Contrato

Social: como “sistema político unicamente deduzido das leis puras da razão”;

para ele a Revolução só podia ser deficitária em um “mundo real”, em

problemas concretos e afirmar-se impotente; além disso, ao colocar no poder

a vontade de todos, os revolucionários foram vítimas de uma confusão criada

pela teoria pura: a sutil distinção estabelecida por Rousseau entre vontade

geral (razão) e vontade de todos (resultante das paixões) só podia ser ignorada

por ocasião da passagem da teoria à práxis e provocar a instalação no poder

da vontade arbitrária de todos, dominada – eis a fraqueza dos homens – não

pela razão, mas pelas paixões cegas. 342

Desta complexa transformação de um conceito teórico – absolutamente central ao

argumento do contrato social – segue-se a inevitável imposição arbitrária de princípios jurídicos

e políticos sob o manto justificador da vontade geral, sendo a análise do Terror revolucionário

bastante ligada a tal estratégia teórica. Höffe343 tratará de apontar esta análise como decorrente

de uma interpretação equivocada e ligada à ideia de verificar no contrato social uma realidade

histórica, da qual decorre uma consequência política perigosa, vez que ele apresentou –

sobretudo em Kant – como um mero critério de justiça ou princípio racional que exige do Estado

que ele apresente seu ordenamento “tal como o faria a vontade comunitária de todos os

envolvidos”. Ainda com a utilização do “como se” (als ob), parece-nos inaceitavelmente vaga

as balizas colocadas por Höffe para que possa verificar o conteúdo decorrente deste mero

artifício metodológico do contrato social e do ordenamento conforme o “povo de razão”

kantiano, o que notamos no conteúdo que o próprio Kant imaginou, segregando serviçais e

342 FERRY, Luc. Kant: uma leitura das três “críticas”. Trad. Karina Jannini. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009, p. 173. 343 HÖFFE, Otifried. Immanuel Kant. Trad. Christian Viktor Hamm e Valeio Rohden. São Paulo: Martins Fontes,

2005, p. 256.

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mulheres do restante deste conceito de “povo”, no que tange às cidadanias ativas e passivas. 344

Trata-se, com efeito, de vício típico das universalidades e dos conceitos aprioristicamente

formulados pelas teorias de linhagem kantiana.

Dentro desta problemática, Bobbio lembra que a democracia moderna repousa na

soberania dos cidadãos (e não do povo):

A democracia moderna repousa na soberania não do povo, mas dos cidadãos. O

povo é uma abstração, que foi frequentemente utilizada para encobrir realidades

muito diversas. Foi dito que, depois do nazismo, a palavra Volk tornou-se

impronunciável. E quem não se lembra que o órgão oficial do regime fascista

se chama Il Popolo d’Italia? Não gostaria de ser mal-entendido, mas até mesmo

a palavra “peuple”, depois do abuso que dela se fez durante a Revolução

Francesa, tornou-se suspeita: o povo de Paris derruba a Bastilha, promove os

massacres de setembro, julga e executa o rei. 345

Assim, a soberania não se exerce pelo conceito universal de povo, mas pelos cidadãos

a partir do depósito de seus votos nas urnas e, em última análise, pela vontade expressa da

maioria, sendo isso aquilo que pragmaticamente se consegue fazer. Quanto a isso, nunca é

demais lembrar que a equivalência entre o pensado autonomamente pelo sujeito e seu voto, ou

qualquer espécie de influência no poder político não consiste em um mandamento democrático;

ao contrário, “o processo democrático não obriga os cidadãos a agirem sempre segundo a sua

consciência, mas permite-lhes decidir enquanto titulares de interesses.” 346

Hannah Arendt, nesta linha, diferencia substancialmente a Revolução Francesa da

Americana. Dentre outros fatores, aponta que o absolutismo prévio à Revolução Francesa

influenciou o ato revolucionário, de tal sorte que a noção de vontade geral de Rousseau

apresentou-se como o substituto teórico da vontade soberana de um monarca absoluto. Disto

resulta um grave efeito, já que

...quando os homens da Revolução Francesa colocaram o povo no lugar do

rei, era quase natural que viessem no povo, de acordo com a antiga teoria

romana e de pleno acordo com os princípios da Revolução Americana, não só

a fonte e o lócus de todo o poder, mas também a origem de todas as leis. 347

344 HÖFFE, Otifried. Immanuel Kant. Trad. Christian Viktor Hamm e Valeio Rohden. São Paulo: Martins Fontes,

2005, p. 257-258. 345 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 119-

120. 346 ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. Trad.: Karin Praefke-Aires Coutinho e J.J. Gomes Canotilho.

Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 153. 347 ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.

206.

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Assim, enquanto as revoluções europeias buscavam o substituto para o absoluto em

decadência, a Americana centrava-se na fundação da liberdade, via elaboração de uma

constituição de direitos. As revoluções deste período, em sua leitura, baseavam-se, em parte,

em um acontecimento em que “o verbo se tornou carne”, ou seja, na manifestação real do

absoluto como realidade terrena naquele tempo histórico. 348

Desta forma, a natureza terrena do absoluto permeia as revoluções. Já que cabe à

revolução instaurar nova autoridade, elas acabam por realçar o problema da fonte da lei e da

origem do poder, ou melhor, do fundamento da legalidade das leis e da justificação do poder.

Neste tocante, o problema do absoluto é inerente ao movimento revolucionário. Sobre isto:

A necessidade de um absoluto se manifestou de muitas maneiras diferentes,

assumiu diferentes feições e encontrou diferentes soluções. Mas sua função

dentro da esfera política sempre foi a mesma: ele era necessário para quebrar

dois círculos viciosos, um visivelmente intrínseco à criação humana de leis, o

outro inerente à petitio principii que acompanha todo início novo, ou seja, em

termos políticos, inerentes à própria tarefa de fundação. O primeiro deles, a

necessidade de todas as leis positivas feitas pelo homem de ter uma fonte

externa que lhes confira legalidade e transcenda como uma “lei superior” o

ato legislativo em si, é evidentemente muito conhecido e já tinha sido um fato

importante na formação da monarquia absoluta. 349

A partir destas noções, Arendt critica a forma como a vontade geral foi alocada na

Revolução Francesa e os efeitos de se apontar o povo não só como fonte do poder, mas também

das leis. Sieyès, neste tocante, irá propor a distinção entre pouvior constituant (poder

constituinte) e pouvoir constitué (poder constituído). Neste sentido, o problema da legalidade

das novas leis dependia de uma fonte suprema externa, posto que o poder constituinte não

poderia ser constitucional, na medida em que se apresenta anterior à própria constituição.

Assim, tanto poder quanto lei se apoiam na vontade da nação, a qual está situada acima dos

governos e das leis. 350

A partir daí, para Arendt, estava caracterizado o erro crasso da Revolução Francesa, qual

seja, de “acreditar de maneira acrítica e quase automática que o poder e a lei brotam da mesma

fonte”. 351 Isto, pois no caso americano – seu parâmetro de comparação –, a formação da

348 ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.

210. 349 ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.

212. 350 ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.

214. 351 ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.

216.

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autoridade geral advinda da Constituição a partir de autoridades subordinadas decorreu quase

que de forma natural em virtude da formação histórica das colônias, que já tinham delegados

cuja autoridade fora derivada de uma série de corpos subordinados. Ou seja, o poder se

apresentava anterior à revolução. Tal poder necessitava, entretanto, de um corpo político para

mantê-lo.

Para Arendt352, o poder não pode ser refreado pelas leis, já que o poder do governante

que é refreado num governo legal, não se trata de governo, mas de violência. Ademais, as leis

raramente saem vitoriosas num embate contra o poder. De toda sorte, afirma que os governos

democráticos devem fundar-se sobre a suposição de que a lei pode refrear o poder, entretanto

esta limitação resulta apenas num decréscimo da potência do poder.

Como é sabido, Arendt aponta a Revolução Americana como a constitutivo libertatis,

ou seja, a fundação da liberdade, diferenciando-se daquela francesa que, influenciada pelo

modelo de sociedade que precedeu a revolução, buscou apontar direitos fora e

independentemente do corpo político. 353 Nesta comparação:

Antes da filosofia americana comum sucumbisse aos conceitos rousseanianos

a esse respeito – o que só veio a acontecer no século XX –, a fé americana não

se baseava absolutamente numa confiança quase religiosa na natureza

humana, mas, ao contrário, na possibilidade de refrear a natureza humana em

sua singularidade graças a promessas mútuas e a obrigações comuns. 354

Trata-se aí de ponto chave para compreender o contratualismo como forma de justificar

um Estado que se propõe democrático e liberal, ao molde norte-americano, pois aponta a ideia

de frear a natureza humana – que supostamente não permite a convivência sem autoridade –

por meio de autoridade constituída por promessas mútuas e obrigações comuns. Aponta-se, com

isso, a natureza contratual das relações humanas, e a ideia de cumprimento a contratos bilaterais

como intrínseca à nossa natureza. Os americanos teriam verificado esta questão de forma

prática, a partir do Pacto de Mayflower355 e da formação histórica de sua federação. Sobre o

352 ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.

200. 353 ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.

197. 354 ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.

227. 355 Sobre este evento, cabe apontar que consiste num pacto redigido no navio e assinado no desembarque, diante

de homens num suposto estado de natureza de fato e da incerteza acerca da lei aplicável ao local de desembarque.

Aponta, portanto, a relevância da doutrina contratualista para a formação dos Estados Unidos, notadamente aquela

de Locke, dada a importância que este concede ao consentimento como forma de vincular homens livres e formar

uma sociedade política.

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processo histórico da independência americana, vale destacar a visão da pensadora no que tange

à ideia de ação:

A gramática da ação: a ação é a única faculdade humana que requer uma

pluralidade de homens; a sintaxe do poder: o poder é o único atributo humano

que se aplica exclusivamente ao entremeio mundano onde os homens se

relacionam entre si, unindo-se no ato de fundação em virtude de fazer e manter

promessas, o que, na esfera da política, é provavelmente a faculdade humana

suprema. 356

Esta construção é feita para que, em seguida, aponte o poder na América colonial como

decorrente da ação e sua manutenção como proveniente dos meios recém-descobertos da

promessa e do pacto. A comprovação desta teoria se daria pelo fato da guerra contra a Inglaterra

ter sido vencida pelas colônias.

Com isso, Arendt pretende apresentar a diferença – conhecida na prática pelos

americanos – entre o poder e a autoridade. Assim, a pensadora nos apresenta a noção segundo

a qual os homens da Revolução Francesa encaravam o poder como uma força natural pré-

política, força esta desencadeada pela revolução. Já os americanos, entendiam o poder como

nascente onde e quando o povo se reunia e se unia por meio de promessas, pactos e

compromissos mútuos. Logo, a visão acerca do poder real era de um poder espúrio e usurpado,

já que não derivava da reciprocidade. 357 Daí consta o erro francês e o estabelecimento de uma

ideia de absoluto. Neste sentido, Arendt irá apontar outra diferença substancial entre as referidas

revoluções. Sendo

a única razão pela qual essa necessidade [do absoluto] não levou os homens

da Revolução Americana aos mesmos absurdos a que levou os homens da

Revolução Francesa, em particular o próprio Robespierre, foi que aqueles

distinguiram claramente, sem qualquer equívoco, entre a origem do poder, que

brota debaixo, das “bases” do povo, e a fonte da lei, cuja sede fica “acima”,

em alguma região mais elevada e transcendente. 358

Por este fato, Arendt chega a usar a expressão “endeusamento do povo” para a

Revolução Francesa, apontando a intensão de tentar derivar a lei e o poder da mesma fonte.

Trata-se aqui de alinhar a ideia de vontade divina – a que se torna direito divino – à vontade

356 ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.

228. 357 ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.

236. 358 ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.

237.

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geral de Rousseau e Robespierre, a qual igualmente basta para criar uma lei, como aliás aparece

no início do art. 6º na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão (“A lei é a

expressão da vontade geral”).

Aponta, então, o círculo vicioso decorrente do processo legislativo: aqueles que estão

reunidos para constituir um novo governo não tem legitimidade para isso, o que remonta à

necessidade de um absoluto, uma lei superior ou fundamental que dará validade às demais. Para

tanto, lembra da clássica passagem de Rousseau, segundo a qual o estabelecimento de leis

superiores aos homens dependeria da existência de deuses. Isso aponta para a tentativa dos

modernos de buscarem um fundamento transcendente para a esfera política a partir de conceitos

como “o Legislador do Universo”, “leis da natureza e de Deus” e similares. Ressalta, por

oportuno, que na Antiguidade grega e romana não havia preocupação com isso e que,

curiosamente, os modernos que estavam prestes a separar definitivamente a política e a religião

estavam, em última análise, buscando um fundamento religioso para o poder. 359 Desta forma,

podemos considerar que a própria ideia de se buscar um fundamento superior e absoluto para

conferir validade ao sistema de leis é uma herança do absolutismo.

Sem dúvida existem muitas maneiras de interpretar a configuração histórica

em que teve aparecimento o incômodo problema de um absoluto. Quando ao

Velho Mundo, mencionamos a continuidade de uma tradição que parece nos

conduzir diretamente aos últimos séculos do Império Romano e aos primeiros

séculos do cristianismo, quando, depois que “o Verbo se tornou carne”, a

encarnação de um absoluto divino na terra foi representada inicialmente pelos

vigários do próprio Cristo, pelo bispo e pelo papa, aos quais se sucederam os

reis que invocavam direitos divinos para a realeza, até que por fim à

monarquia absoluta se sucedeu a soberania não menos absoluta da nação. 360

Curioso notar, nesta análise, que os revolucionários se voltaram à Idade Média e não à

Antiguidade para buscar um modelo de justificação da esfera política, na medida em que na

Idade Média “a esfera secular da política terrena recebia suas luzes do esplendor da Igreja”. 361

Inobstante este fato, voltavam-se à Roma pela repulsa às tradições medievais – sem perceberem

a espiritualidade que embalada seu esclarecimento –, e de lá poderiam extrair uma visão da

constituição americana segundo a qual esta dá ao governo força de religião. O entendimento da

359 ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.

240-241. 360 ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.

251. 361 ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.

254.

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palavra aqui, em seu sentido romano original, é interessante, pois remete a religare, ou seja,

ligar de volta a um início. 362

Neste ponto, Arendt começa a delimitar de maneira mais clara a distinção entre

autoridade e poder. A autoridade Romana não estava nas leis ou numa autoridade superior a

elas, estava, pois, no Senado (potestas in populo, mas auctoritas in senatu). O Senado

americano, de toda forma, difere substancialmente daquele romano. A autoridade, no modelo

americano, decorre do poder judiciário que, por exercer a autoridade, torna-se inapto ao poder,

da forma como, inversamente o próprio poder da legislatura torna o Senado inapto a exercer a

autoridade. Assim, pela falta de poder e por ser uma espécie de assembleia constituinte em

sessão contínua, o Supremo Tribunal americano é a sede da autoridade. Ressalta-se que a noção

de autoridade em Roma era política e a noção americana é jurídica, de interpretação. 363

Importante se faz pontuar a origem etimológica da palavra auctoritas, que provém do

termo augere, aumentar e crescer. O que, no caso romano, onde os Senadores representavam

os pais fundadores de Roma, significava que era possível aumentar, crescer e alargar as

fundações, tal como lançadas pelos ancestrais. Assim sendo: “Manter-se nessa linha

ininterrupta de sucessores significava, em Roma, estar na autoridade, e permanecer ligado ao

início dos ancestrais com piedosa rememoração e conservação significava ter peitas romana,

ser “religioso” ou estar “religado” aos próprios inícios”. 364 A autoridade, em sentido romano,

portanto, liga-se à ideia de tradição, religião e ampliação das fundações originais, tal como a

Constituição americana é ampliada pelas emendas.

À fundação que deliberadamente fundou o corpo político se incorpora uma veneração

que, conforme pretende concluir Arendt, envolve o resultado concreto desta reunião, a

Constituição, e protege este documento contra investidas do tempo e da mudança das

circunstâncias, de tal forma que a autoridade da república continuará incólume enquanto o ato

de fundação for rememorado sempre que surgirem questões constitucionais. 365

O que Hannah Arendt pretende dizer, em suma, é que a revolução americana, ou melhor,

o resultado da reunião americana, a Constituição, por decorrer de um corpo político por

deliberação mútua determinada por uma cadeia que a formou, lastreada no conceito de

362 ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.

255. 363 ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.

257-258. 364 ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.

258-260. 365 ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.

262.

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promessa e embalada pela ideia de fundação de autoridade, para ampliação por seus

descendentes, conforme o espírito romano, consistiu, em resumo, numa deliberação fundadora

de um direito legítimo. A ideia, portanto, é que a busca por um absoluto que rompa com o

círculo vicioso da legitimidade é inútil, na medida em que o “absoluto” reside no próprio ato

do iniciar em si. Avança neste ponto, questionando a própria visão consequencialista e

continuísta que temos do tempo (visão decorrente da tradição hebraico-cristão, que vê um Deus

como externo ao resultado de sua criação). O início não estaria ligado a uma cadeira de causas

e efeitos e não está ligado a nada que possa se prender; “é como se saísse do nada no tempo e

no espaço.” 366 A questão aqui reside no fato de haver um velho hábito humano ocidental de

querer buscar um absoluto do qual tenha brotado e pelo qual seja explicado o novo.

Em linha com a exposição acima, Hegel profere duras críticas à noção tipicamente

rousseauniana. Com efeito, o pensador que aponta o Estado como “a realidade da liberdade

concreta”367 nos coloca a seguinte questão no importante §258 de sua Filosofia do Direito:

O Estado, como realidade em ato da vontade substancial, realidade que esta

adquire na consciência particular de si universalizada, é o racional em si e para

si: esta unidade substancial é um fim próprio absoluto, imóvel; nele a

liberdade obtém o seu valor supremo, e assim este último fim possui um

direito soberano perante os indivíduos que, em serem membros do Estado, têm

o seu mais elevado dever. 368

Neste sentido, a universalização promovida da consciência particular que aparece no

fenômeno estatal – como fim absoluto – aparece no contratualismo como decorrente da

unificação das vontades individuais na ideia de vontade geral. Márcio Pugliesi, ao comentar o

§258 acima transcrito, nos apresenta importante lição:

Mas, ao entender a vontade apenas na forma definida da vontade individual (o

que mais tarde Fichte também faz), e a vontade geral não como o racional em

si e para si da vontade que resulta das vontades individuais quando

conscientes, a associação dos indivíduos no Estado torna-se um contrato cuja

base é, então, a vontade arbitrária, a opinião e uma adesão expressa e

facultativa dos indivíduos, de onde resultam as consequências puramente

conceituais que destroem aquele divino, em si e para si, das absolutas

autoridades e majestades do Estado. Ao chegarem ao poder, tais abstrações

produziram, por um lado, o mais prodigioso espetáculo jamais visto desde que

o gênero humano apareceu: restaurar, a priori e pelo pensamento, a

366 ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.

264. 367 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito. Trad. Norberto de Paula Lima,

adaptação e notas Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1997, p. 211. 368 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito. Trad. Norberto de Paula Lima,

adaptação e notas Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1997, p. 205.

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constituição de um grande Estado real, anulando tudo o que existe e é

concedido e querendo dar-lhe como fundamento um sistema racional

imaginado; por outro lado, como tais abstrações são desprovidas de ideia, a

tentativa de impô-las promoveu os mais horríveis e cruéis acontecimentos. 369

Assim, a construção de um Estado real com fundamento num modelo eminentemente

racional figura como problema congênito do Estado moderno. Seu fundamento contratualista,

objeto de nossa crítica, apresenta-se como tal modelo, sendo a unificação das vontades

particulares em uma vontade geral o resultado racionalmente alcançado de tal sistema.

Apontando para as consequências desta questão, cumpre lembrar que a França pré-

revolucionária era uma sociedade socialmente estratificada e, portanto, a sua noção de povo era

fragmentada a partir das classes rigidamente separadas por critérios de nascimento, profissão e

outros. Assim sendo, nada mais ilusório do que vislumbrar a formação de um todo uno como

origem e fundamento do poder político, posto que, em tal sociedade, a composição das vontades

não poderia se dar de outra forma, que não pela tentativa de manutenção de privilégios e

interesses particulares típicos de cada estamento ou segmento social específico.

Esta própria situação francesa que curiosamente dá lugar à ideia de vontade geral como

unificação de tais vontades incompatíveis do ponto de vista das demandas reais é a que

representa o locus de maior relevância histórica e política para a justificação contratualista do

Estado moderno, ainda que, como mencionado, a situação de igualdade seja curiosamente

apontada como inerente à natureza humana e, é claro, pressuposto essencial para a celebração

de qualquer contrato.

369 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito. Trad. Norberto de Paula Lima,

adaptação e notas Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1997, p. 206.

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5 AS TEORIAS CONTEMPORÂNEAS DE JUSTIFICAÇÃO DO ESTADO E DO

DIREITO

5.1 Breves notas sobre a modernidade como projeto em execução

Considerando que demonstramos até aqui a justificação do Estado moderno a partir das

doutrinas contratualistas, notadamente estruturadas a partir da obra hobbesiana e desenvolvidas

e aperfeiçoadas para os interesses modernos por Locke, Rousseau e Kant, bem como

apresentamos seus pontos fundamentais de estruturação e críticas que consideramos pertinentes

a tais escritos, cumpre-nos neste momento verificar – e em larga medida apenas retomar – os

pontos estruturantes da modernidade para que possamos deixar claro que, em nossa leitura

possível, não houve qualquer ruptura ou completude da modernidade que nos possibilite dá-la

como finda e, portanto, permanecemos no plano filosófico e, em especial, jurídico, sob as

premissas estabelecidas na aurora da modernidade e estruturadas, do ponto de vista da

justificação do Estado, a partir das doutrinas contratualistas. Verificaremos, ainda, a

superveniência de questões de ordem econômica e tecnológica que embora não tenham o

condão de alterar substancialmente as premissas modernas de estruturação do corpo social e do

direito, tornam necessárias adaptações sistêmicas sob pena de crises de diversos tipos. Estamos

diante daquilo que aqui denominamos modernidade tardia.

Destaque-se que os manuais de história tradicionalmente apontam a modernidade como

um período iniciado em 1543 e findo em 1789, com o início da Revolução Francesa. Após tal

data estaríamos na chama contemporaneidade. Essa periodização tradicional corresponde a

importantes mudanças, sobretudo quanto à fragmentação da unidade da Igreja medieval, a

ascensão do absolutismo e as grandes descobertas, entretanto a continuidade entre a Idade

Média tardia e a época moderna (até meados dos séc. XVIII) não deve ser ignorada. 370 Sabemos

que as características estruturantes da sociedade feudal (monarquia absolutista, sociedade

estratificada e teocentrismo) só são realmente abaladas – e, em grande parte, suplantadas – com

o início da Revolução Francesa que, em nossa visão aqui empregada, cuida de instaurar os

paradigmas políticos e jurídicos que caracterizarão aquilo que denominados modernidade.

Assim sendo, no plano fático, a consolidação do absolutismo monárquico no chamado período

moderno não nos parece um fato instaurador da modernidade, mas a queda dos regimes

monárquicos e as revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII parece-nos, no cume

370 CAENEGEM, R.C. van. Uma Introdução Histórica ao Direito Privado. Trad. Carlos Eduardo Machado. São

Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 35.

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alcançado na Revolução Francesa, sintetizar o início da modernidade política e jurídica. Além

do mais, foi somente em 3 de novembro de 1789 que a Assembleia Nacional Francesa decretou

extinto por completo o regime feudal e os privilégios dele decorrentes. 371

Posto isto, não podemos nos furtar a apresentar uma justificativa adequada para a

utilização da expressão modernidade tardia em detrimento de outras que poderiam substitui-la,

notadamente, é claro, a expressão pós-modernidade.

No que tange à nomenclatura, temos que o termo pós-moderninade remete

necessariamente a um período após a modernidade em algum sentido. Esta questão pode ser

compreendida ao menos em duas perspectivas; primeiro, como uma questão meramente

temporal, tratar-se-ia, aí, de um período após o período moderno sob o ponto de vista

cronológico (e considera, é claro, que a modernidade acabou); segundo, de forma filosófica,

um período que superou os anseios (ou o projeto) moderno. Esta segunda acepção, mais rica,

nos leva a importantes questões. Falaríamos de uma pós-modernidade pelo fato do projeto

moderno ter sido abandonado ou concretizado e estarmos diante de novos planos? Ou a pós-

modernidade representa uma superação da incompleta e já acabada modernidade que, portanto,

implica a modernidade? Esta segunda ideia parece adequada, na medida em que a expressão

pós-modernidade contém, em seu próprio nome, um tributo à modernidade (assim como os

períodos pré e pós-socráticos referenciam-se a Sócrates). Isto é, a própria utilização do termo

pós-modernidade representa a importância da modernidade no contexto em que a pós-

modernidade se insere.

Ainda neste ponto, temos claro que “a modernidade não pode e não quer tomar dos

modelos de outra época os seus critérios de orientação, ela tem de extrair de si mesma a sua

normatividade.” 372 Sem entrar na discussão se de fato a modernidade consegue tal

autorreferência, isto representará na visão de Habermas a necessidade de autocompreensão da

modernidade, que será um dos problemas fundamentais da filosofia de Hegel, na tentativa de

apreender seu tempo a partir da subjetividade tipicamente moderna. Com isso queremos dizer

que a ideia da pós-modernidade se apresenta para nós como uma tentativa de se superar a

modernidade, mas a esta fazendo referência. Não se intenta trabalhar a autocompreensão da

pós-modernidade como se esta tivesse germinado seus princípios fundadores; na verdade, a

371 TIGAR, Michael E.; LEVY, Madeleine R. O direito e a ascensão do capitalismo. Trad. Ruy Jungmann. Rio

de Janeiro: Zahar, 1978, p. 240. 372 HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade: doze lições. Trad. Luiz Sérgio Repa, Rodnei

Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 12.

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própria construção do conceito importa dizer que sua referência se encontra fincada no período

anterior, na modernidade.

Se adotarmos nossa leitura, de que permanecemos no período moderno, uma coisa ainda

é certa: há uma crise da modernidade. Com efeito, críticas às características fundantes da

modernidade foram apresentadas sob diversos ângulos, destacando-se aquelas de Nietzsche,

bem como posteriormente as da Escola de Frankfurt, notadamente o clássico Dialética do

Esclarecimento373, em que Adorno e Horkheimer apresentam fundada preocupação com o

sentido da ciência, da indústria cultural e dos rumos tomados pela razão instrumental.

Habermas374 nos lembra das diferentes posições críticas à modernidade, dentre elas aquelas que

verificam as premissas da modernidade como findas e a continuidade de suas consequências

(que seriam autossuficientes), bem como a visão daqueles que verificam uma união

indissociável entre razão e modernidade e, portanto, o fim da modernidade ocorreria tão

somente com o fim da razão moderna. Esta última visão, anote-se, é aquela que busca desvelar

o real sentido dominador do racionalismo ocidental.

Não vamos, evidentemente, ingressar em qualquer discussão acerca das perspectivas

denominadas por Habermas de neoconservadoras e anarquistas; importa-nos, apenas,

compreender a modernidade como projeto inacabado, em execução, para que possamos então

demonstrar o motivo mais relevante pelo qual utilizamos aqui da ideia de modernidade tardia.

Intentamos nos capítulos anteriores demonstrar como a filosofia política moderna,

notadamente o contratualismo de Hobbes até Kant buscou responder à questão da justificação

do Estado e conceder o necessário suporte ético-filosófico para a implementação das

democracias liberais, tais como ainda são estruturadas hoje. Neste sentido, entendemos que a

modernidade continua como projeto em execução até a atualidade, não havendo, desde a

formulação dos conceitos básicos de filosofia política moderna qualquer alteração substancial

que nos permita dizer que houve uma ruptura ou superação da época moderna do ponto de vista

da filosofia, em especial aquela política e jurídica.

Sabe-se, ainda, que a implementação dos conceitos políticos modernos, incluindo a

democracia e a liberdade, foram sendo concretizados aos poucos não só na Europa, mas também

com o devido atraso nas demais partes do Ocidente, incluindo América do Norte e do Sul. A

título de ilustração, Samuel Huntington nos lembra que:

373 ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Trad.

Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. 374 HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade: doze lições. Trad. Luiz Sérgio Repa, Rodnei

Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 7.

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Por volta de 1830, a norma nos Estados Unidos era o sufrágio universal de

todos os brancos do sexo masculino. Na Europa, em contraste, permaneciam

elevadas as qualificações de propriedade. O Ato de Reforma de 1832

aumentou o eleitorado inglês de 2% para 4% do total da população; nos

Estados Unidos, 16% da população total votaram nas eleições presidenciais

de 1840. (...) O sufrágio universal masculino foi introduzido na Alemanha em

1871, mas na Prússia o sistema de eleitores de três classes permaneceu em

vigor até o fim da Primeira Guerra Mundial. Nos Países Baixos e na

Escandinávia, o sufrágio universal masculino foi introduzido no fim do século

XIX e no início do século XX. 375

Tais dados representam a implementação gradual das demandas modernas no campo da

política, especialmente no que tange ao sufrágio, núcleo da democracia liberal estruturada a

partir da soberania popular. Ainda neste tocante, a implementação do voto feminino foi ainda

mais tardia. Ainda que em 1869 o Estado americano de Wyoming o tenha adotado, os Estados

Unidos apenas o adotaram com a 19ª emenda constitucional de 1920, tendo chegado à Inglaterra

em 1928. 376 Mais tardio ainda foi o direito de voto aos negros, sendo a Lei dos direitos de voto

americana assinada apenas em 1965; além é claro da permanência da escravidão até o final do

século XIX em boa parte do próprio ocidente, incluindo Brasil.

Para efeitos de nosso trabalho, tal movimento histórico lento e gradual de

implementação de direitos oriundos de escritos que remontam ao início da modernidade

representa a materialização histórica das demandas inerentes ao que denominamos projeto

moderno, ainda que nossa sucinta análise se restrinja apenas aos aspectos políticos e não

verifique os aspectos sociais e econômicos do projeto.

Dando sequência, temos que a expressão latina projectum refere-se a algo lançado,

assim como pro (à frente) e jacere (lançar, atirar) remete-nos à noção de um plano para a

realização de ações futuras. Desta forma, estabelecer a modernidade como projeto tem em si

uma conotação específica, qual seja, a de apresentá-la como plano, de tal modo que as ideias e

os princípios que iremos apontar como típicos do projeto moderno devem buscar efetivação na

realidade concreta, sendo, portanto, traçados na modernidade para ulterior realização, quando

então os projetos delineados tornar-se-ão objetos.

Nos anos 50, a palavra modernização é introduzida como termo técnico, e seu conceito

refere-se:

375 HUNTINGTON, Samuel P. A ordem política nas sociedades em mudança. Trad. Pinheiro de Lemos. Rio de

Janeiro: Forense-Universitária; São Paulo: Ed. USP, 1975, p. 106-107. 376 BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 13ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 251-252.

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A um conjunto de processos cumulativos e de reforço mútuo: à formação do

capital e mobilização de recursos; o desenvolvimento das forças produtivas e

ao aumento da produtividade do trabalho; ao estabelecimento do poder

político centralizado e à formação de identidades nacionais; à expansão dos

direitos de participação política, das formas urbanas de vida e da formação

escolar formal à secularização de valores e normas etc. 377

Referido conceito centra-se nos aspectos essenciais do capitalismo nascente,

notadamente no aumento das forças produtivas e da produtividade, mas também se coaduna

com o exposto acima, especialmente no que se refere à formação das identidades nacionais e o

poder político centralizado, temas interligados com a noção de soberania. Ademais, foca na

secularização dos valores e normas e na participação política, temas ligados à

institucionalização da racionalidade no direito formal. Ainda, alinha-se com as características

essenciais do projeto moderno conforme apontadas por Habermas:

Ora, o projeto da modernidade, formulado no século XVIII pelos filósofos do

Iluminismo, consiste em desenvolver imperturbavelmente, em suas

respectivas especificidades, as ciências objetivantes, os fundamentos

universalistas da moral e do direito, e a arte autônoma, mas ao mesmo tempo

consiste também em liberar os potenciais cognitivos assim acumulados de

suas elevadas formas esotéricas, aproveitando-os para a prática, ou seja, para

uma configuração racional das relações de vida. 378

Assim sendo, de forma direta, Habermas interpreta o Esclarecimento do séc. XVIII e

XIX como sendo um projeto de modernidade, o qual teria o objetivo de desenvolver três esferas

distintas: (1) as ciências objetivantes, que desencantam a natureza e libertam o sujeito

cognoscente; (2) as bases universalistas do direito e da moral, na linha da filosofia kantiana; e

(3) a arte autônoma, desvinculando-a das perspectivas medievais. Em complemento a tal

caracterização, podemos apresentar os elementos que caracterizam o mito da modernidade para

Hottois379: (1) universalismo racionalista; (2) fé na ciência e na técnica; (3) dominação-

exploração da natureza pela humanidade; (4) desprezo pelo passado; e (5) utopismo. A síntese

do discurso moderno centra-se, portanto, na razão como o instrumento apto a proporcionar a

emancipação humana, notadamente por meio do domínio contínuo da técnica.

377 HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade: doze lições. Trad. Luiz Sérgio Repa, Rodnei

Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 5. 378 ARANTES, Otília Beatriz Fiori; ARANTES, Paulo Eduardo. Um ponto cego no projeto moderno de Jürgen

Habermas: arquitetura e dimensão estética depois das vanguardas e duas conferências de Jürgen Habermas. São

Paulo: Brasiliense, 1992, p. 110. 379 HOTTOIS, Gilbert. Do renascimento à pós-modernidade: uma história da filosofia moderna e

contemporânea. Trad. Ivo Storniolo. Aparecida, SP: Idéias & Letras, 2008, p. 579.

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Neste sentido, para uma melhor compreensão desta caracterização do projeto moderno,

torna-se essencial mencionarmos, ainda que de passagem, a análise da teoria da modernidade

de Weber, a qual cobre tanto o processo de racionalização religiosa, quanto da sociedade,

expondo o surgimento da consciência moderna e sua corporificação nas instituições sociais, o

que se evidencia a partir das características do Estado moderno e da economia capitalista

norteados por aquilo que chama de razão instrumental. Em Weber, ambos se estabilizam

mutuamente a partir da interação mediada pelo direito formal moderno. Neste sentido:

É este processo em que as esferas de valores culturais, a saber, a ciência e a

tecnologia, a arte e a literatura, o direito e a moralidade, foram se

diferenciando das visões de mundo religioso-metafísicas – transmitidas pelos

gregos e, acima de tudo, pelas tradições judaico-cristãs, e se instituindo como

campos autônomos de saber e, posteriormente, como sistemas culturais de

ação – que se coloca como o fator explicativo determinante para o surgimento

da era moderna no Ocidente. Nessa diferenciação, surgem três esferas de

valores, uma cognitiva, uma expressiva e uma moral, cada uma das quais

segue sua própria lógica e desenvolve uma tensão com os demais elementos

da cultura, correspondente a esse esforço de autonomização. 380

Desta forma, Weber acaba por delinear as bases da modernidade, centrando-se na

autonomização ocasionada pela lógica da racionalidade instrumental expandida para os

diversos campos da vida social. Em especial, haverá racionalização do direito e da moralidade,

de onde Weber extrai o surgimento de uma ética profana de convicção e racionalidade, típicas

da modernidade e que formulam o ambiente necessário para o surgimento e consolidação do

capitalismo.

Em síntese, Weber irá nos apresentar o processo de profanação da cultura ocidental e

o desenvolvimento das sociedades modernas a partir da organização da empresa capitalista e

da burocratização do Estado, entendendo este processo como a institucionalização da ação

racional com respeito a fins (instrumental). Desta forma, acaba por identificar modernização

com racionalização.

Dentro deste quadro se inserem as ideias dos teóricos deste projeto, cujos resultados

alastram-se pelos diversos campos sociais, em especial no direito, pela busca de objetividade e

segurança jurídica, e na política com a secularização da administração pública, gerando um

movimento de racionalização – instrumental – de toda sociedade. Neste sentido:

380 ARAGÃO. Lucia. Habermas: filósofo e sociólogo do nosso tempo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002,

p. 158.

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Com o domínio da matéria por meios estritamente humanos sem recorrer ao

sobrenatural ou ao oculto, estabelece-se um modelo que sugere sejam as

sociedades conduzidas com objetividade, ordem e previsibilidade a fim de

produzir segurança. Essa, a fórmula iluminista para vencer a barbárie pelo

esclarecimento, controlar o mundo mediante a técnica, buscando fazer poder

e conhecimento sinônimos. Subtrair o encanto do mundo resume, portanto, o

projeto de modernidade, inclusive com a padronização do gosto. 381

Em termos políticos, o projeto moderno reduzir-se-ia, portanto, no desencantamento,

isto é, na crença das formas estritamente humanas – ou seja, racionais – de resolução de conflito

e sua consequente condução objetiva, ordenada e previsível da sociedade, com vista à produção

da segurança tão almejada pelos modernos. Este ponto aparecerá logo no início da

caracterização do Esclarecimento por Adorno e Horkheimer: “O programa do esclarecimento

era o desencantamento do mundo. Sua meta era dissolver os mitos e substituir a imaginação

pelo saber” 382, sendo certo que, na perspectiva crítica destes pensadores, o esclarecimento tende

a se reverter em mitologia e, mais, a razão, centro do projeto, despe-se de sua pretensão de

validade e de poder emancipatório e apresenta-se como poder de dominação.

Isto, é claro, tem substancial importância para nosso trabalho, na medida em que o

fator fundamental de sustentação filosófica do Estado passará na modernidade a ser traduzido

pela referida lógica desencantada e, portanto, deixará de vigorar qualquer fundamento absoluto

que não seja lastreado nos parâmetros típicos dos padrões científicos da modernidade e passará

a ser fundado na razão ou nos mecanismos racionalmente construídos para gerar justificação

adequada ao poder político.

No mesmo sentido, Márcio Pugliesi aponta Hegel como verdadeiro realizador do

projeto do Iluminismo ao verificar o Estado como expressão máxima da vida política. 383 Ainda,

em outro lugar, vai no mesmo sentido ao apontar que para Hegel “a razão objetiva realiza-se

numa sociedade em que os indivíduos livres reconhecem nas leis sua própria vontade e em si

mesmos uma expressão particularizada das leis.” 384

Com efeito, Hegel se utiliza da expressão modernidade em suas lições de história da

filosofia, designando um conceito de época, os “novos tempos”, isto é, a descoberta do Novo

Mundo, o Renascimento e a Reforma, que constituem um limiar entre a Idade Média e a

Moderna. Irá compreender seu tempo como o “tempo mais recente”, pensando o significado do

381 PUGLIESI, Márcio. Sujeito: traços de um projeto burguês. [Tese de doutorado]. São Paulo: PUC-SP, 2008,

229. 382 ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Trad.

Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p. 17. 383 PUGLIESI, Márcio. Teoria do Direito: aspectos macrossistêmicos. Rio de Janeiro: Sapere Aude, 2015, p. 71. 384 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito. Trad. Norberto de Paula Lima. Prefácio

e notas de Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1997, p. 23.

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Iluminismo e da Revolução Francesa para seus contemporâneos como o último estágio da

história. 385

Em suma, Hegel pode de fato ser considerado o sintetizador do projeto moderno, na

medida em que todos estes aspectos centrais da vida social tornam-se personificações do

princípio da subjetividade e são performados com o Estado que, na visão hegeliana é “a

realidade da liberdade concreta.” 386 Em outros termos, sendo a síntese de um movimento

histórico dialético, o Estado apresenta-se como a organização alcançada racionalmente para a

efetivação e compatibilização da ordem e da liberdade; justificando-o, portanto.

Aí constam, em breve síntese, os conceitos gerais de uma verificação da modernidade

enquanto projeto em execução e, portanto, inacabado. Referida exposição nos foi necessária

antes de verificarmos as abordagens contemporâneas acerca da justificação do Estado e que,

em nossa visão, não diferem substancialmente daquelas contratualistas e, portanto, continuam

como representantes de uma visão modernista acerca do direito e do Estado como forma de se

viabilizar a convivência de indivíduos livres.

Desta forma, a teoria neocontratualista de Rawls, bem como as procedimentalistas de

Luhmann e Habermas que analisaremos adiante intentam não mais formular a estruturação e

conceder suporte filosófico ao Estado moderno, democrático e liberal, tal como precisavam

fazer Locke, Rousseau e Kant, mas colocá-lo em prova visando convalidá-lo para sua

permanência com vistas à implementação plena do projeto ora arquitetado.

Ao apresentar a modernidade como projeto inacabado, estamos dizendo, entre outras

coisas, que embora modificações foram verificadas no desenrolar dos últimos séculos, estas não

foram suficientemente articuladas para superar – ou romper – com o projeto moderno, cujas

estruturas básicas de sustentação continuam as mesmas. Com efeito, Estado e direito

permanecem sendo os mecanismos sociais necessários para o regramento e efetiva manutenção

da ordem social instaurada, extraindo a devida justificação a partir da noção tipicamente

moderna da suposta autolegislação, ainda que esta esteja sob tensão no contexto da

modernidade tardia à luz de transformações que iremos apresentar no item 6 à frente.

385 HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade: doze lições. Trad. Luiz Sérgio Repa, Rodnei

Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 11. O problema da consciência do tempo ganhará uma nova

dimensão e a modernidade não poderá extrair de outros modelos seus critérios de orientação Nas palavras de

Habermas “ela tem de extrair de si mesma a sua normatividade” (idem, p.12). 386 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito. Trad. Norberto de Paula Lima. Prefácio

e notas de Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1997, p. 211.

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5.2 A justificação neocontratualista e a reutilização do contrato como instrumento

metodológico em John Rawls

John Rawls é certamente o pensador mais notável do séc. XX no que tange ao

contratualismo como forma de convalidar a forma de organização e os princípios basilares das

democracias liberais, dando-lhes, portanto, a necessária justificação no contexto filosófico de

sua época. Assim sendo, verificaremos neste item seu método, que podemos denominar

neocontratualista. Nos interessa aqui, é claro, verificar o método empregado pelo referido

pensador, na medida em que faz uma reformulação do contratualismo como forma de justificar

as instituições sociais típicas da democracia liberal.

Rawls inicia sua mais relevante obra dizendo que “a justiça é a virtude primeira das

instituições sociais, assim como a verdade é dos sistemas de pensamento”. 387 Referida frase

aponta para a direção de seu pensamento, notadamente voltado às instituições sociais como

meios adequados para implementar justiça, posto que elas são o meio socialmente construído

para melhor distribuir direitos e deveres aos cidadãos que convivem numa dada sociedade.

Neste sentido, Rawls sugere que os princípios de justiça voltados à estrutura básica de uma

sociedade e a suas instituições sejam obtidos por meio do recurso denominado acordo original,

em expressa referência à tradição contratualista aqui já desenvolvida.

Tais princípios seriam aqueles que “pessoas livres e racionais, interessadas em

promover seus próprios interesses, aceitariam em uma situação inicial de igualdade como

definidores das condições fundamentais de sua associação”. 388 Consta aí a visão do referido

pensador da justiça como equidade. Vislumbra, então, uma situação hipotética para a celebração

do chamado acordo original, caracterizada a partir de uma posição original em que os membros

de uma sociedade definirão os princípios de justiça que regerão tal sociedade; e o farão sob um

véu de ignorância, isto é, sem o conhecimento de seu lugar na sociedade, sua classe, status

social, sorte na distribuição de recursos e habilidades, inteligência, força etc. 389 Tal situação

equivale, estruturalmente, àquela do estado de natureza das teorias contratualistas clássicas, de

tal modo a nos abrir possibilidades semelhantes de crítica. Dentre elas, podemos anotar uma

crença similar na pureza racional humana, ou seja, na capacidade intrínseca dos seres humanos

de tomarem decisões rigorosamente racionais, sem interferências externas e internas, de tal

387 RAWLS, John. Uma teria da justiça. Trad. Jussara Simões. 4ª ed. rev. São Paulo: Martins Fontes, 2016, p. 4. 388 RAWLS, John. Uma teria da justiça. Trad. Jussara Simões. 4ª ed. rev. São Paulo: Martins Fontes, 2016, p. 14. 389 RAWLS, John. Uma teria da justiça. Trad. Jussara Simões. 4ª ed. rev. São Paulo: Martins Fontes, 2016, p.

14-15.

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162

sorte a obter respostas verdadeiras, ou justas, como melhor aplicável neste caso; afinal, Rawls

intenta com este recurso metodológico estabelecer a ideia segundo a qual o acordo celebrado

na posição original e sob o véu de ignorância alcança o status de pacto justo.

Em linha com a crítica acima, o próprio autor assume sua presunção de um senso de

justiça390, do qual, inclusive, emergiriam os dois princípios sobre os quais as pessoas racionais,

na situação acima descrita, chegariam a um consenso (Rawls391 chega a falar inclusive em

unanimidade). Em breve síntese, concluiriam pela igualdade na atribuição dos direitos e dos

deveres fundamentais (especialmente da liberdade) e que as desigualdades sociais e econômicas

só serão justas se resultarem em vantagem para todos (em especial para os menos favorecidos).

Os princípios teriam o seguinte teor:

Primeiro princípio

Cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema total de

liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema similar de

liberdade para todos392

Segundo princípio

As desigualdades econômicas e sociais devem ser dispostas de modo a que

tanto:

(a) se estabeleçam para o máximo benefício possível dos menos favorecidos

que seja compatível com as restrições do princípio de poupança justa, como

(b) estejam vinculadas a cargos e posições abertos a todos em condições de

igualdade equitativa de oportunidades. 393

De norte assumidamente kantiano394, o primeiro princípio apresenta-se como uma

interpretação procedimental da concepção kantiana de autonomia e do imperativo categórico.

Conforme o próprio Rawls:

Kant afirmava, creio eu, que uma pessoa age de modo autônomo quando os

princípios de sua ação são escolhidos por ela como expressão mais adequada

possível de sua natureza de ser racional igual e livre. Os princípios que

norteiam suas ações não são adotados em razão de sua posição social ou de

seus dotes naturais; ou em vista do tipo específico de sociedade na qual ela

vive ou das coisas específicas que venha a querer. Agir com base em tais

princípios é agir de modo heterônomo. Ora, o véu de ignorância priva as

pessoas que ocupam a posição original do conhecimento que as capacitaria a

390 RAWLS, John. Uma teria da justiça. Trad. Jussara Simões. 4ª ed. rev. São Paulo: Martins Fontes, 2016, p. 15. 391 RAWLS, John. Uma teria da justiça. Trad. Jussara Simões. 4ª ed. rev. São Paulo: Martins Fontes, 2016, p.

327. 392 Posteriormente reformulado para: “Cada pessoa tem um direito igual a um sistema plenamente adequado de

liberdades básicas iguais para todos, que seja compatível com um mesmo sistema de liberdade para todos.”

(RAWLS, John. Justiça e democracia. São Paulo, Martins Fontes, 2002, p. 144). 393 RAWLS, John. Uma teria da justiça. Trad. Jussara Simões. 4ª ed. rev. São Paulo: Martins Fontes, 2016, p.

376. 394 RAWLS, John. Uma teria da justiça. Trad. Jussara Simões. 4ª ed. rev. São Paulo: Martins Fontes, 2016, p.

318.

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163

escolher princípios heterônomos. As partes chegam a suas escolhas em

conjunto, na condição de pessoas racionais iguais e livres, sabendo apenas da

existência das circunstâncias que originam a necessidade de princípios de

justiça. 395

Embora de norte kantiano, verifica-se que a construção dos princípios da justiça,

diferente das perspectivas de Kant, é formulada aqui como um constructo coletivo (ou pelo

menos para a coletividade), na medida em que intenta chegar a princípios de justiça a partir de

um consenso. Considerando sujeitos numenais em situação de posição original, conforme posta

por Rawls, não haveria problemas no consentimento coletivo, dada inclusive da universalidade

da razão e o pressuposto básico de seu procedimento de eliminar fatores contingentes chegando-

se à razão pura de todos que, em tese, convergem aos dois princípios da justiça em comento.

A ideia aqui é a do consenso sobreposto, tema desenvolvido em sua obra O liberalismo

político, e cujo significado é basicamente a concordância, em termos gerais, com aquela

“concepção de justiça como uma concepção que determina o conteúdo de seus julgamentos

políticos sobre as instituições básicas.”396, sendo certo que as doutrinas não razoáveis que

coexistem nessa sociedade não contenham aceitação suficiente para solapar a justiça essencial

desta dada sociedade.

Ressalte-se que este primeiro princípio tem prioridade sobre o segundo397, na medida

em que as exigências da liberdade devem ser atendidas antes daquelas questões referentes às

desigualdades tratadas no segundo princípio. A partir daí, Rawls intenta demonstrar que a

liberdade somente pode ser restringida em nome da própria liberdade. Neste sentido, vale frisar:

Os princípios de justiça devem ser classificados em ordem lexical e, portanto,

a liberdade só pode ser restringida em nome da liberdade. Existem dois casos:

(a) uma liberdade menos extensa deve reforçar o sistema total de liberdades

partilhado por todos, e (b) uma liberdade menor deve ser considerada aceitável

por aqueles cidadãos com a liberdade menor. 398

Constam aí as hipóteses em que Rawls verifica a limitação da liberdade, sendo

importante notar na primeira hipótese a necessidade de vincular a liberdade menos extensa ao

395 RAWLS, John. Uma teria da justiça. Trad. Jussara Simões. 4ª ed. rev. São Paulo: Martins Fontes, 2016, p.

313. 396 RAWLS, John. O liberalismo político. Trad. Dinah de Abreu Azevedo. 2ª Ed. São Paulo Ática Lisboa: 2000,

p. 82. 397 Em 1973, Hart apresenta Rawls on liberty and its priority, no qual apresenta sua crítica à ideia da demonstração

desta prioridade apresentada por Rawls, que não seria necessariamente escolhida por um indivíduo racional. Para

tanto, ver: HART, H.L.A. Rawls on liberty and its priority. In: D. NORMAN. Reading Rawls: Criticalstudies on

Rawls. Los Angeles, Stanford University Press, 1989. 398 RAWLS, John. Uma teria da justiça. Trad. Jussara Simões. 4ª ed. rev. São Paulo: Martins Fontes, 2016, p.

376.

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164

sistema legal partilhado por todos e, portanto, buscar conceder ao sistema legal um fundamento

de aceitação compartilhada. Já no segundo caso, a ideia de aceitação é mais evidente ao dizer

que a liberdade menos extensa deve ser condição aceita por aqueles que dela suportam, de modo

que a estabilidade do sistema decorre do conformismo dos indivíduos acerca do sistema legal

e da forma como a sociedade é organizada. 399 Trata-se, portanto, de aceitar que o maior nível

de liberdade para uns funcione como boa estruturação do sistema, ou seja, a aceitação decorreria

exclusivamente do fato de que aqueles que suportam menor nível de liberdade reconhecem sua

situação como legítima apenas pelo fato de haver a possiblidade formalmente garantida – e

prevista no sistema legal vigente – de aumentarem seu nível de liberdade.

Nesta mesma linha vai o segundo princípio, em que é notável verificar a possibilidade

da existência de desigualdades econômicas e sociais, desde que sua disposição se dê de tal

forma que todos se beneficiem. O conceito aqui é que as partes na posição original acima

mencionada aceitariam otimizar a distribuição de bens em seu nível máximo, sendo a

“otimalidade de Pareto” utilizada por Rawls para justificar que “a configuração é eficiente

sempre que é impossível modificá-la para melhorar a situação de algumas pessoas (pelo menos

uma) sem, ao mesmo tempo, piorar a situação de outras pessoas (pelo menos uma)”. 400 Assim

sendo, temos de assumir que Rawls parte do pressuposto de que há uma quantidade limitada de

bens e uma quantidade maior (ilimitada, talvez) de desejo de consumo desses bens; daí a

necessidade de se discutir critérios para sua distribuição. 401

A partir da exposição de tais princípios, Rawls advoga pelo modelo da igualdade

democrática, em contraposição à igualdade liberal, onde há um sistema de livre mercado e uma

igualdade meramente formal no ponto de partida e que é posteriormente alterada em virtude de

contingências naturais e sociais.

399 Em O Liberalismo político, Rawls desenvolve de forma mais apropriada a questão da estabilidade. Sem prejuízo

das noções apresentadas neste sentido no decorrer de nosso texto, a questão se estrutura da seguinte maneira: “A

estabilidade envolve duas questões: a primeira é saber se as pessoas que crescem em meio a instituições justas

(como a concepção política as define) adquirem um senso de justiça suficiente, de modo a geralmente adirem de

acordo com essas instituições. A segunda é saber se, em vista dos fatos gerais que caracterizam a cultural política

e pública de uma democracia – e, em particular, o fato do pluralismo razoável –, a concepção política pode ser o

foco de um consenso sobreposto. Pressuponho que esse consenso consista em doutrinas abrangentes e razoáveis

que, em uma estrutura básica justa (como a concepção política a define), provavelmente persistirão e conquistarão

adeptos no decorrer do tempo.” (RAWLS, John. O liberalismo político. Trad. Dinah de Abreu Azevedo. 2ª Ed.

São Paulo Ática Lisboa: 2000, p. 187). 400 RAWLS, John. Uma teria da justiça. Trad. Jussara Simões. 4ª ed. rev. São Paulo: Martins Fontes, 2016, p. 81. 401 “Há identidade de interesses porque a cooperação social viabiliza para todos uma vida melhor do que qualquer

um teria se tentasse viver apenas por seus próprios esforços. Há conflito de interesses porque ninguém é indiferente

com relação a como são distribuídos os maiores benefícios produzidos pela cooperação, pois, para perseguir seus

objetivos, cada qual prefere uma fatia maior a uma fatia menor desses benefícios. Assim, precisamos de princípios

para escolher dentre os diferentes arranjos sociais que definem essa divisão de vantagens e para que se firme um

acordo no tocante às parcelas distributivas apropriadas.” (RAWLS, John. Uma teria da justiça. Trad. Jussara

Simões. 4ª ed. rev. São Paulo: Martins Fontes, 2016, p. 153).

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Não iremos aqui realizar uma minuciosa exposição acerca do pensamento de John

Rawls, nem discutir os diversos pontos levantados por sua obra quanto às liberdades iguais, a

questão da participação, da liberdade política, da tolerância, da poupança e economia, bem

como outras que, embora muito relevantes, não contribuem diretamente para a temática a que

nos propomos trabalhar. No que tange, então, à estrutura contratualista de sua teoria, cabe frisar

em Rawls o pressuposto do cumprimento daquilo que é pactuado, já que “para o acordo ter

validade, as partes devem ser capazes de honrá-lo em todas as circunstâncias pertinentes e

previsíveis. Deve haver uma garantia racional de que se pode cumpri-lo” 402 Isto para que haja

a confiança mútua de que todos vão cumprir os princípios pactuados, mesmo que as piores

possibilidades venham a se concretizar. Neste ponto, Rawls nos introduz um ponto de suma

importância para nosso trabalho, ao verificar a estabilidade de uma concepção de justiça a partir

do reconhecimento público de sua concretização por meio do sistema social. 403

Assim, o sistema só será estável se aqueles que devem fazer sacrifícios

tiverem uma forte identificação com interesses mais amplos que os seus

próprios. (...) Mesmo quando somos menos afortunados, temos de aceitar as

vantagens maiores dos outros como uma razão suficiente para nossas

expectativas mais baixas ao longo de toda nossa vida. 404

Esta seria a forma de se verificar se a concepção de justiça implementada é adequada.

Sua estabilidade decorre, nesta visão, do conformismo de indivíduos acerca da forma de

organização social em que se vive, ainda que tais indivíduos se encontrem em situação social

menos favorecida que a de outros, posto que tais indivíduos, no contexto analisado,

reconheceriam que a desigualdade verificada é justa, pois dela decorrem vantagens mútuas. Na

outra ponta, a verificação de todos como fins em si mesmo e não mero meio, implica abdicar

de benefícios sociais que não contribuem para a melhoria do todo.

Assim é que Rawls nos apresenta a ideia de uma sociedade bem ordenada405, ou seja,

moldada para promover o bem de seus membros e regulada por uma concepção de justiça,

402 RAWLS, John. Uma teria da justiça. Trad. Jussara Simões. 4ª ed. rev. São Paulo: Martins Fontes, 2016, p.

215. 403 RAWLS, John. Uma teria da justiça. Trad. Jussara Simões. 4ª ed. rev. São Paulo: Martins Fontes, 2016, p.

217. 404 RAWLS, John. Uma teria da justiça. Trad. Jussara Simões. 4ª ed. rev. São Paulo: Martins Fontes, 2016, p.

218. 405 “Dizer que uma sociedade é bem-ordenada significa três coisas: a primeira (e isso está implícito na ideia de

uma concepção de justiça publicamente reconhecida), que se trata de uma sociedade na qual cada indivíduo aceita,

e sabe que todos os demais aceitam, precisamente os mesmos princípios de justiça; a segunda (implícita na ideia

da regulação efetiva), que todos reconhecem, ou há bons motivos para assim acreditar, que sua estrutura básica –

isto é, suas principais instituições políticas, sociais e a maneira segundo a qual se encaixam num sistema único de

cooperação – está em concordância com aqueles princípios; e a terceira, que seus cidadãos têm um senso

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conforme trabalhada acima. Uma das ideias centrais para nosso tema de análise é, certamente,

a estabilidade e equilíbrio alcançados pelo estabelecimento dos princípios de justiça acima

descritos, sobre os quais há o já mencionado consenso sobreposto. Neste ponto, cumpre-nos

apresentar a ideia de interferências sistêmicas sobre a mencionada estabilidade:

O equilíbrio é estável sempre que os afastamentos dele, provocados, digamos,

por distúrbios externos, invocam forças internas do sistema que tendem a leva-

lo de volta ao estado de equilíbrio, a não ser, é claro, que os choques externos

sejam grandes demais. O equilíbrio é instável, pelo contrário, quando

distanciar-se dele desperta forças internas do sistema que levam a mudanças

ainda maiores. Os sistemas são mais ou menos estáveis, dependendo do poder

das forças internas disponíveis para devolver-lhes o equilíbrio. 406

Rawls se importa, evidentemente, com aqueles sistemas sociais embebidos nos

princípios de justiça por ele vislumbrados. Neste tocante, a estabilidade acaba por ocorrer

dentro daquela espécie de conformismo acima mencionada. Assim, haveria uma vinculação

moral para o cumprimento dos preceitos decorrentes das instituições sociais permeadas pelos

princípios de justiça, que envolvem fatores de ordem psicológica. A motivação, para Rawls,

parece até decorrer da necessidade dos indivíduos de aprovação por outros indivíduos407, pela

sociedade em geral, partindo-se da aceitação dos princípios como justos, isto é, de um senso de

justiça que naturalmente nos inclina a agir de modo a promover instituições justas e a suportar-

lhes, dada a concordância acerca de sua justiça inerente e – supostamente – publicamente aceita.

Trata-se aqui de verificar a ideia melhor desenvolvida em seu Liberalismo político, qual seja, a

do consenso sobreposto.

A ideia, em linha com o que aqui já foi exposto, é apresentar as condições de unidade e

estabilidade de uma sociedade democrática bem ordenada a partir dos princípios de justiça. Para

tanto é que Rawls nos apresenta o consenso sobreposto de doutrinas abrangentes e razoáveis:

Nesse tipo de consenso, as doutrinas razoáveis endossam a concepção política,

cada qual a partir de seu ponto de vista específico. A unidade social baseia-se

num consenso sobre a concepção política; e a estabilidade é possível quando

as doutrinas que constituem o consenso são aceitas pelos cidadãos

normalmente efetivo de justiça e, por conseguinte, em geral agem de acordo com as instituições básicas da

sociedade, que consideram justas. Numa sociedade assim, a concepção publicamente reconhecida de justiça

estabelece um ponto de vista comum, a partir do qual as reivindicações dos cidadãos à sociedade podem ser

julgadas.” (RAWLS, John. O liberalismo político. Trad. Dinah de Abreu Azevedo. 2ª Ed. São Paulo Ática Lisboa:

2000, p. 79). 406 RAWLS, John. Uma teria da justiça. Trad. Jussara Simões. 4ª ed. rev. São Paulo: Martins Fontes, 2016, p.

564. 407 RAWLS, John. Uma teria da justiça. Trad. Jussara Simões. 4ª ed. rev. São Paulo: Martins Fontes, 2016, p.

583.

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politicamente ativos da sociedade, e as exigências da justiça não conflitam

gravemente com os interesses essenciais dos cidadãos, tais como formados e

incentivados pelos arranjos sociais dessa sociedade. 408

Aí consta uma ideia central para a compreensão da justificação do Estado no âmbito das

sociedades complexas do século XX, onde há a coexistência de doutrinas conflitantes, cuja

harmonização depende, na visão de Rawls, de um consenso acerca daquilo que é essencial na

concepção de justiça publicamente adotada, bem como da pouca aceitação das perspectivas

drasticamente contrárias a ela; ocasionando, a partir do método contratualista visto acima (cuja

estrutura básica consiste em posição original, véu de ignorância e estabelecimento dos

princípios de justiça), um consenso suficientemente inquestionável sobre os fundamentos e

instituições básicas desta sociedade. Além desta vinculação, é necessário que o poder político

esteja “de acordo com uma constituição, cujos elementos essenciais se pode razoavelmente

esperar que todos os cidadãos, em sua condição de livres e iguais, endossem à luz de princípios

e ideias aceitáveis para sua razão humana comum.” 409 Sendo, este, na visão de Rawls, o

princípio liberal da legitimidade política, cuja preocupação não é exatamente o pluralismo em

si, mas a existência de um pluralismo razoável, isto é, uma concepção política de justiça que

possa ser endossada por doutrinas abrangentes diferentes e opostas. Assim é que se apresenta,

na visão do pensador em comento, a sustentação de determinada concepção política.

Como já foi dito, com respeito às questões relativas aos elementos

constitucionais essenciais e à justiça básica, a estrutura básica e suas políticas

públicas devem ser justificáveis perante todos os cidadãos, como requer o

princípio da legitimidade política. A isso acrescentamos que, ao fazer essas

justificações, devemos apelar unicamente para as crenças gerais e para as

formas de argumentação aceitas no momento presente e encontradas no senso

comum, e para os métodos e conclusões da ciência, quando estes não são

controvertidos. 410

Desta forma, Rawls aponta que a legitimidade decorre da justificação lastreada em

conceitos comuns (não controversos), que sejam “verdades claras” e de ampla aceitação,

fornecendo assim uma concepção política que possui uma base pública de justificação.

Este ponto remete-nos também ao tradicional questionamento acerca do cumprimento

de leis consideradas injustas. Diante da liberdade inerente ao ser humano consagrada pelas

408 RAWLS, John. O liberalismo político. Trad. Dinah de Abreu Azevedo. 2ª Ed. São Paulo Ática Lisboa: 2000,

p. 179-180. 409 RAWLS, John. O liberalismo político. Trad. Dinah de Abreu Azevedo. 2ª Ed. São Paulo Ática Lisboa: 2000,

p. 182. 410 RAWLS, John. O liberalismo político. Trad. Dinah de Abreu Azevedo. 2ª Ed. São Paulo Ática Lisboa: 2000,

p. 183.

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teorias contratualistas, como se justifica a obediência a leis consideradas injustas? Rawls nos

apresenta sua resposta, que não só se apresenta como decorrente da mesma lógica da

estabilidade apresentada acima (que se baseia no conteúdo dos princípios que regem as

instituições), mas também numa crença no próprio procedimento democrático:

Quando assumimos o ponto de vista da convenção constituinte, a resposta se

torna bem clara. Em primeiro lugar, entre o número limitado de procedimentos

viáveis que tenham qualquer possibilidade de aceitação, não há nenhum que

sempre decidiria a nosso favor. E, em segundo lugar um desses processos é,

sem dúvida, preferível à ausência de acordo. A situação é análoga àquela da

posição original, em que as partes renunciam a toda expectativa de egoísmo

do “carona”: esta alternativa é a melhor escolha (ou segunda melhor escolha)

para cada pessoa (deixando-se de lado as restrições relativas à generalidade),

mas não é, obviamente, aceitável para mais ninguém. De maneira semelhante,

embora nesse estágio de convenção constituinte as partes já estejam

comprometidas com os princípios de justiça, precisam fazer algumas

concessões mútuas para pôr em funcionamento um regime constitucional.

Mesmo com as melhores intenções, suas opiniões acerca da justiça estão

fadadas a entrar em conflito. Na escolha da constituição, portanto, e ao adotar

alguma forma de regra da maioria, as partes aceitam os riscos de sofrer as

consequências de deficiências de conhecimento e no senso de justiça uma da

outra para receber os benefícios de um processo legislativo efetivo. Não há

outra maneira de fazer um regime democrático funcionar. 411

Aqui o pensador nitidamente caminha rumo ao procedimentalismo que analisaremos

com maior profundidade à frente, anotando a importância do processo legislativo como justo

para viabilizar a realização de um regime democrático. Obviamente que as situações de

injustiças verificas estão sujeitas aos critérios estabelecidos acima, especialmente ao fato de

servirem para o benefício do todo, bem como serem aceitas por aqueles que são seus alvos. É

evidente que a noção posteriormente adotada por Rawls de racionalidade deliberativa412 paira

neste contexto, pressupondo a inexistência de erros de cálculo, bem como a precisão acerca do

conhecimento daquilo que realmente se deseja.

Diante do que foi acima exposto, fica claro que o contrato, enquanto instrumento

metodológico utilizado por Rawls, nos permite chegar a um critério – de viés liberal – para a

avaliação da ordem política vigente e não, é claro, viabilizar qualquer realização fática de um

contrato original. Com efeito, o que pretende o pensador em comento é apresentar sua ideia de

411 RAWLS, John. O liberalismo político. Trad. Dinah de Abreu Azevedo. 2ª Ed. São Paulo Ática Lisboa: 2000,

p. 184. 412 “Neste ponto, introduzo o conceito de racionalidade deliberativa seguindo uma ideia de Sidgwick. Ele

caracteriza o bem futuro de uma pessoa como aquilo que desejaria e procuraria se as consequências de todos os

diversos cursos de conduta a ela acessíveis fossem, no atual momento, previstas por ela com precisão e realizadas

de maneira adequada na imaginação.” (RAWLS, John. Uma teria da justiça. Trad. Jussara Simões. 4ª ed. rev.

São Paulo: Martins Fontes, 2016, p. 515).

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sociedade como sistema equitativo de cooperação no decorrer do tempo, de uma geração a

outra413, o que denota seu caráter associativo e uma visão da ordem social como ajustável e

possível de aprimoramento para a convivência harmônica das diferentes visões de mundo

coexistentes. Esta cooperação se caracteriza pela existência de procedimentos publicamente

reconhecidos, em termos equitativos, e cuja existência requer aceitação racional dos membros,

conforme trabalhamos acima.

Diferente dos pensadores contratualistas clássicos, Rawls já possui clara visão da

relevância da pluralidade de eticidades na sociedade como fator essencial para realização de

análises sociais. Em verdade, podemos analisar sua teoria a partir deste ponto de partida como

sendo essencial; afinal, a ideia de se buscar um método para a obtenção de princípios de justiças

para reger as instituições sociais decorre da necessidade de se viabilizar a convivência de

diferentes eticidades e concepções acerca da existência humana que naturalmente se ampliam

diante das possibilidades de liberdades concedidas a partir das revoluções liberais. Com efeito,

é o que parece apresentar logo no início de seu Liberalismo Político, cujo problema central é o

“de compreender como é possível existir, ao longo do tempo, uma sociedade estável e justa de

cidadãos livres e iguais profundamente divididos por doutrinas religiosas, filosóficas e morais

razoáveis, embora incompatíveis”. 414

Tal seria a construção de um fundamento comum, uma concepção política sobre a qual

recaia o que denomina consenso sobreposto. Sabe-se, conforme acima já exposto, que os

princípios de justiça sobre os quais devem recair tal consenso possuem conteúdo e, portanto, o

terreno comum das doutrinas a que se refere Rawls não torna seu procedimento como neutro;

existe, portanto, conteúdos liberais e relativos à questões sociais (ainda que aqueles tenham

prioridade sobre estas) decorrentes do acordo original que, em última análise, consistem naquilo

que fundamenta as instituições sociais que passam pelo superveniente crivo social, visando

justificar-se a partir de uma convalidação, na medida em que refletem o que é essencial nas

doutrinas razoáveis que naturalmente convivem numa sociedade democrática adequada a um

regime constitucional.

Diante disso, verificamos uma semelhança entre Rawls e os contratualistas clássicos

naquilo que tange à apresentação de uma justificação para o Estado (no caso de Rawls, das

instituições já existentes e consolidadas pelas democracias liberais) buscando imputar

413 RAWLS, John. O liberalismo político. Trad. Dinah de Abreu Azevedo. 2ª Ed. São Paulo Ática Lisboa: 2000,

p. 58. 414 RAWLS, John. O liberalismo político. Trad. Dinah de Abreu Azevedo. 2ª Ed. São Paulo Ática Lisboa: 2000,

p. 25.

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legitimidade – e, portanto, obediência – às instituições sociais decorrentes de um poder central

que unifica e instrumentaliza a concepção social do justo. Destaque-se que a pretensão dos

contratualistas adequava-se, evidentemente, à necessidade da época, ou seja, justificar a própria

ideia de Estado, ainda em formação conceitual, bem como dar o devido respaldo filosófico às

instituições que deveriam moldá-lo. Neste tocante, verificamos nos séculos formadores da

democracia liberal a implementação de diversas instituições visando a satisfação das demandas

filosóficas originadas nos escritos contratualistas.

No caso de Rawls, trata-se de um modelo que possibilita (re)avaliar as instituições

existentes e funcionantes, para que seja possível verificar se estão ou não, em menor ou maior

medida, alinhadas aos princípios de justiça que, conforme verificamos, seriam aceitos pela

racionalidade humana pura numa hipotética situação de acordo originário desta sociedade ou,

conforme Rawls aponta, pela “racionalidade mutuamente desinteressada”. 415 Além das críticas

já feitas à impossibilidade de se obter tal racionalidade e, portanto, tal acordo, insta frisar que

os resultados da avaliação podem ser frustrados pela impossibilidade fática de se mobilizar e

exercer ações de resistência à eventual opressão ou injustiça, caso se verifique a inadequação

das instituições.

De toda sorte, em última análise, Rawls revalida princípios importantes da modernidade

política, atualizando-os ao século XX e, consequentemente, dando-lhes um fôlego adicional no

caminhar da construção e consolidação da modernidade verificada como projeto em execução.

Trata-se, com efeito, de foco distinto dos contratualistas do início da modernidade, analisados

acima, na medida em que não trabalha propriamente a justificação do Estado, mas a justificação

dos princípios básicos que norteiam como suas instituições implementam direitos e deveres

numa sociedade plural. 416 Acrescenta-lhes, bem verdade, a problemática central da política

econômica da atualidade: a questão da desigualdade social e dos meios para saná-la. Neste tema,

Rawls não só realiza importante contribuição pelo simples fato de trazê-lo à discussão, mas

também ao apontá-la como responsabilidade das instituições sociais, visando, inclusive,

minimizar desigualdades decorrentes de fatores sociais e naturais contingentes, que embalavam

perspectivas liberais nitidamente meritocráticas.

415 RAWLS, John. Uma teria da justiça. Trad. Jussara Simões. 4ª ed. rev. São Paulo: Martins Fontes, 2016, p.

175. 416 Importante anotar também que em O Direito dos povos, Rawls estende sua lógica contratualista do nível

nacional para o internacional buscando expandir a determinação liberal interna para o plano internacional. Trata-

se de uma obra assumidamente lastreada na Paz perpétua de Kant, já menciona por nós anteriormente, cujo

propósito é apresentar a possibilidade de uma sociedade mundial de povos liberais lastreada em princípios

selecionados num procedimento similar – mas em outro nível – ao previsto em suas demais obras. (RAWLS, John.

O direito dos povos. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001).

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5.3 A (auto)legitimação pelo procedimento na teoria dos sistemas de Niklas Luhmann

Ao colocarmos nossa problemática à luz da teoria dos sistemas, verificaremos a

importância da autojustificação do direito, bem como a função primordial da comunicação

como forma de articulá-la. Assim, é importante de início anotar a impossibilidade de se

compreender separadamente ação e sistema de acordo com o modelo de Parsons, de tal modo

que a ação só é possível sob a forma de sistema, sendo a ação uma propriedade emergente da

realidade social. 417 Com efeito:

A ação humana é “cultural” na medida em que os sentidos e as intenções

referentes aos atos são formados através de sistemas simbólicos (onde se

incluem os códigos através dos quais eles atuam em padrões) que quase

sempre se centralizam no aspecto universal das sociedades humanas, isto é,

na linguagem. 418

Desta forma, as ações quase sempre se centralizam na linguagem, sendo esta a

característica formadora essencial dos sistemas sociais. Nesta teoria, não se concede

importância às variações de ações individuais, mas sim aos padrões emergentes. Articula-se aí,

na prática comunicativa, a formação dos sentidos formados por meio de sistemas simbólicos.

Aqui enveredamos para a questão da circularidade, essencial para uma compreensão inicial da

teoria dos sistemas e, em especial, para a continuidade – ou melhor, autorreprodução – da

sociedade enquanto tal, sendo esta a abordagem de Luhmann sobre a questão daquilo que

denomina legitimação (Legitimation).

Com efeito, o sistema deve continuar reproduzindo a diferença que o caracteriza para

continuar existindo como tal (o sistema é o resultado da distinção entre o sistema e o meio419)

e o faz por meio da comunicação, responsável pela produção e reprodução da diferença entre

meio e sistema. A delimitação do sistema com relação ao meio acontece, nos sistemas sociais,

por um único meio: a comunicação, apresentando-se assim como o princípio de autopoiesis dos

417 LUHMANN, Niklas. Introdução à Teoria dos Sistemas. Trad. Ana Cristina Arantes Nasser. 2ª Ed. Petrópolis,

RJ: Vozes, 2010, p. 42. 418 PARSONS, Talcott. Sociedades: perspectivas evolutivas e comparativas. Trad. Dante Moreira Leite. São

Paulo: Livraria Pioneira, 1969, p. 17. 419 “O que muda na atual compreensão da Teoria dos Sistemas, em relação aos avanços alcançados nos anos 1950

e 1960, é uma formulação mais radical, na medida em que se define o sistema como a diferença entre sistema e

meio. Tal formulação necessita de um desenvolvimento explicativo, já que se apoia em um paradoxo de base: o

sistema é a diferença resultante da diferença entre sistema e meio. O conceito de sistema aparece, na definição,

duplicado no conceito de diferença.” (LUHMANN, Niklas. Introdução à Teoria dos Sistemas. Trad. Ana

Cristina Arantes Nasser. 2ª Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010, p. 81).

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172

sistemas sociais. 420 Neste sentido, Parsons define a sociedade como “um tipo de sistema social,

em qualquer universo de sistemas sociais, e que atinge o mais elevado nível de autosuficiente,

como um sistema, com relação aos seus ambientes.” 421

Rejeitando a metáfora da transmissão por implicar demasiada ontologia, Luhmann então

nos apresenta a própria comunicação como “um sistema autopoiético, que, ao reproduzir tudo

o que serve de unidade de operação ao sistema, reproduz-se a si mesmo.” 422 Sem ingressarmos

nas questões específicas da linguagem, cuja complexidade nos tiraria do foco, centremos nossa

análise na teoria sobre a sociedade política organizada.

Feitas estas sucintas considerações iniciais com vistas a compreendermos a abordagem

sistêmica do fenômeno da justificação, verificamos que são muitas as possibilidades de ação de

um indivíduo no âmbito de uma sociedade, em outras palavras, o mundo apresenta ao homem

uma multiplicidade de possíveis experiências e ações que, quando concretizadas, abrem um

novo leque de possibilidades. Há, assim, complexidade e contingência nas possibilidades de

ação. Estas possibilidades são apresentadas especialmente na medida da experimentação efetiva

de terceiros observadas pelo indivíduo. É claro que, neste caso, o reconhecimento e absorção

da expectativa de terceiros pressupõe que o indivíduo reconheça o terceiro como igual

(igualdade na variação do comportamento, inclusive).

Diante da incerteza gerada pela contingência erigem-se estruturas estabilizadoras de

expectativas. Os sistemas sociais o fazem mediante regras (dever ser) a partir de uma redução

generalizante, típicas dos regulamentos e diplomas normativos (notadamente dotados de

generalidade e abstração). A função seria, é claro, a criação de segurança em termos de

expectativa (bem como de expectativa sobre expectativas). Assim, baseada em processos de

neutralização simbólica das expectativas, as normas

são expectativas de comportamento estabilizadas em termos contrafáticos.

Seu sentido implica na incondicionalidade de sua vigência na medida em que

a vigência é experimentada, e portanto também institucionalizada,

independentemente da satisfação fática ou não da norma. O símbolo do “dever

ser” expressa principalmente a expectativa dessa vigência contrafática, sem

colocar em discussão essa própria qualidade – aí estão o sentido e a função do

“dever ser”. 423

420 LUHMANN, Niklas. Introdução à Teoria dos Sistemas. Trad. Ana Cristina Arantes Nasser. 2ª Ed. Petrópolis,

RJ: Vozes, 2010, p. 293. 421 PARSONS, Talcott. Sociedades: perspectivas evolutivas e comparativas. Trad. Dante Moreira Leite. São

Paulo: Livraria Pioneira, 1969, p. 21. 422 LUHMANN, Niklas. Introdução à Teoria dos Sistemas. Trad. Ana Cristina Arantes Nasser. 2ª Ed. Petrópolis,

RJ: Vozes, 2010, 301. 423 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983,

p. 53.

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173

Para tratar apenas do âmbito normativo das expectativas – olvidando a análise do

aspecto cognitivo –, temos que com a evolução em complexidades dos sistemas sociais, a

separação entre ser e dever ser aumenta progressivamente.

Ressalte-se que “as normas enraízam em comunicações, e não em fatos”424, de modo

que o material possível sobre o qual se estrutura o trabalho da norma é o comunicativo, isto é,

o âmbito da descrição comunicativa dos fatos e não estes ontologicamente considerados.

Evidencia-se, assim, o papel da comunicação no âmbito da aplicação do direito, bem como na

manutenção das principais instituições e institutos jurídicos.

A título exemplificativo, no que concerne à função, estabilidade e legitimação política

de um conceito jurídico essencial como a propriedade, Luhmann apresenta importante lição:

Aqui já se pode inserir uma interpretação em termos de sociologia do direito.

A função, a estabilidade e a dependência de legitimação de uma instituição

jurídica como a propriedade não podem ser vistas apenas do ângulo da

economia, e também não só do da injustiça e da desigualdade. Elas dependem

essencialmente da riqueza de alternativas e da fantasia modificadora de uma

sociedade, da mobilização da comunicação, da facilidade do intercâmbio de

perspectivas e da troca de papéis, do acesso, em termos de experiência e então

também real, às possibilidades dos outros, ou seja, de quem, em quais

situações, funciona como alter ego. 425

Destaque-se, nesse rico excerto, dois importantes pontos. Primeiro, a necessidade de se

mobilizar a comunicação, evidenciando mais uma vez o papel da prática argumentativa como

forma de se manter a legitimação de normas e institutos jurídicos, questão que iremos nos

debruçar com mais afinco adiante. O segundo ponto ao qual chamamos atenção é exatamente

o sentido de todo o texto, sintetizado na ideia de estabilização de expectativas a partir da

possibilidade ou efetividade da ação de terceiros quanto ao instituto em análise.

A ideia de estabilização de expectativas aqui pode ser analisada e criticada em conjunto

com aquela de Rawls, apresentada acima, segundo a qual a estabilidade das instituições repousa

sobre a aceitação pelos indivíduos (inclusive daqueles menos favorecido) de que sua forma de

estruturação é adequada para a melhor convivência do todo; assim, as desigualdades verificadas

seriam justas, pois delas decorreriam vantagens mútuas, compartilhadas por toda sociedade. A

questão em Luhmann aparece estruturada de forma mais complexa, mas ainda sim similar.

424 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983,

p. 68. 425 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983,

p. 149.

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174

Especificamente sobre a propriedade, podemos apresentar uma visão crítica a tais

posições a partir de Pasukanis, que exalta o aspecto superestrutural das normas jurídicas e sua

pretensa – e meramente formal – igualdade em relação à propriedade:

A forma jurídica da propriedade não está em contradição com a expropriação

de um grande número de cidadãos, pois a condição de ser sujeito de direito é

uma condição puramente formal. Ela define todas as pessoas como igualmente

‘dignas’ de serem proprietárias, não obstante não as torne proprietárias. 426

Aí consta a clássica crítica marxista ao formalismo jurídico de norte positivista, que

reduz a análise do justo ao conceito de legalidade, estruturando assim a estabilidade de

conceitos, tal como o da propriedade, a partir da possibilidade meramente formal de sua

efetivação pelos indivíduos que no âmbito das democracias liberais são considerados iguais

pelas instituições e mecanismos sociais responsáveis pela distribuição de direitos e deveres,

inobstante a desigualdade fática inviabilizar a efetivação de tais direitos.

De volta à fundamentação das instituições e institutos, Luhmann aponta para o papel do

consenso a partir da própria ideia de expectativa com relação a terceiros, em linha com o quanto

visto até agora:

As instituições se fundamentam, então, não na concorrência fática de

determináveis manifestações de opiniões, mas sim no sucesso ao superestimá-

las. Sua continuidade está garantida enquanto quase todos suponham que

quase todos concordem; e possivelmente até mesmo enquanto quase todos

suponham que quase todos suponham que quase todos concordem. 427

Trata-se de um nível mais abstrato de consenso, distinto do possível nível fático deste,

cuja existência seria facilmente revogável e de difícil estabilização no tempo. Assim, a partir

daí o consenso se torna expectável e ativável caso necessário, de modo que “o “consenso social

geral” só precise ser coberto pela experiência atual de algumas pessoas, em alguns sentidos e

em alguns momentos.” 428

Este aspecto, atinente à estabilização, ocorre por meio da fixação de sentido transmitida

pela linguagem. Ressalta-se que com o aumento da complexidade social, a diferenciação

funcional ocorre, gerando uma ampla gama de possibilidades normativas, que por sua vez

426 PASUKANIS, E. B. A Teoria Geral do Direito e o Marxismo. Trad. Paulo Bessa. Rio de Janeiro: Renovar,

1989, p. 101. 427 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983,

p. 84. 428 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983,

p. 80.

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175

pressionam para que haja a seleção dessas projeções normativas – por vezes divergentes – que

devem se tornar direito. 429A partir daí, passa a ser necessário sistemas de intenção destinados

à seleção:

Para tanto, desenvolve-se, na forma do processo, um ordenamento próprio do

comportamento que, através de situações especiais, fórmulas e símbolos

especiais, locais especiais, papéis especiais e, finalmente, até mesmo normas

especiais, se isola da vida cotidiana, autonomizando-se, podendo dessa forma

concentrar-se na decisão jurídica, principalmente na solução de conflitos

normativos. 430

Ressalta-se, conforme consta do excerto acima, seu descolamento com relação à vida

cotidiana, o que significa dizer que o que é válido no mundo, não é necessariamente válido no

processo, pois precisará ser introduzido neste para que nele tenha validade. De toda sorte, trata-

se da previsão de um encaminhamento ordenado, cuja estrutura enquanto sistema social nos

interessa, posto que na visão de Luhmann “só com auxílio do processo é que as normas jurídicas

puderam ser abstraídas em um sentido capaz de sedimentar, por seu lado, a legitimidade da

dominação política.” 431

A decisão jurídica, por sua vez, legitima-se também pela expectativa da aceitação, já

que, para Luhmann: “Pode-se afirmar que legítimas são as decisões nas quais pode-se supor

que qualquer terceiro espere normativamente que os atingidos se ajustem cognitivamente às

expectativas normativas transmitidas por aqueles que decidem.” 432 Ressalte-se que o referido

autor visualiza a força física e o direito positivo como intrínsecos à exposição do direito e

consolidação da confiança no direito, ainda que de formas distintas. Entrelaçando estes

conceitos, verificamos que há uma suposição genérica de que os que forem afetados por

decisões se submetam à força física, ou seja, há uma expectativa de que tais afetados não se

rebelem. 433 A função legitimadora dos processos se fundamenta na separação em termos de

papéis sociais, ou seja, por serem diferenciados no contexto dos papeis sociais.

429 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983,

p. 176-177. 430 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983,

p. 178. 431 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983,

p. 180. 432 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito II. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985,

p.64. 433 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito II. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985,

p.65.

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176

Aqui consta, na obra de Luhmann, a vinculação ao tema por nós proposto, sobre qual

Luhmann dedicou, inclusive, obra específica, a Legitimação pelo procedimento, de 1969, um

ano após a Crise de legitimação do capitalismo tardio de Habermas ser lançada. Na referida

obra, Luhmann trabalha a ideia de procedimento a partir de três procedimentos que considera

estruturalmente decisivos nos sistemas políticos atuais, quais sejam, o procedimento da eleição

política, o procedimento parlamentar da legislação e o processo judicial, sendo os três de

naturezas distintas, porém todos juridicamente organizados.

Ressalte-se a visão clássica de procedimento como aquele que busca assegurar uma

esfera de comunicação livre e independente contra influências ou vantagens decorrentes de

status, posição e sob forma de processos legalmente organizados. 434 Entretanto, destaca

Luhmann que “era ilusão interpretar uma tal solução como um meio para alcançar o objetivo

da verdade – uma depreciação do problema da complexidade, típica da época do

iluminismo”435, lembrando que o núcleo de toda teoria procedimental é, em última análise, a

correlação com a verdade ou com a justiça como objetivo.

No que tange à legitimidade, Luhmann a apresenta como “uma disposição generalizada

para aceitar decisões de conteúdo ainda não definido, dentro de certos limites de tolerância”

436, o que torna clara a vinculação com a obra de Weber, especialmente quanto à legitimidade

de tipo legal-racional já aqui mencionada e que consiste, com efeito, o parâmetro pelo qual a

sociologia e a filosofia política têm estudado a questão da legitimidade. De fato, o progressivo

desencantamento do mundo tornou impossível vincular a legitimação do poder político de

qualquer moral naturalmente alcançável, o que tornou necessário que o próprio sistema político

produzisse sua própria forma e fundamento de legitimação.

Destaque-se, neste âmbito, a aceitação das premissas das decisões e a aceitação das

próprias decisões como dois momentos distintos da legitimação. Ademais, a questão transcende

a esfera individual de aceitação fática e momentânea de um indivíduo:

A legitimidade depende, assim, não do reconhecimento “voluntário”, da

convicção de responsabilidade pessoal, mas sim, pelo contrário, dum clima

social que institucionaliza como evidência o reconhecimento das opções

434 LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Trad. Maria da Conceição Corte Real. Brasília: UnB,

1980, p. 27. 435 LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Trad. Maria da Conceição Corte Real. Brasília: UnB,

1980, p. 27. 436 LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Trad. Maria da Conceição Corte Real. Brasília: UnB,

1980, p. 30.

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obrigatórias e que as encara, não como consequências duma decisão pessoal,

mas sim como resultado do crédito da decisão oficial. 437

Assim, a questão é estrutural e refere-se a um contexto social de controle de expectativas

e expectativas sobre expectativas. Trata-se aqui de uma transformação estrutural da expectativa

realizada por meio de um processo comunicacional a partir de regulamentos jurídicos. 438 A

ideia de procedimento ultrapassa a ideia de simples rito com sequencias fixas pré-determinadas

e alcança o status de sistema social com função específica. As estruturas reduzem a

complexidade do mundo a uma esfera limitada e simplificada de expectativas; baseando-se,

portanto, em não mais que ilusões quanto à complexidade dita real do mundo, de tal sorte que

devem estar preparadas para frustrações.

Neste contexto, torna-se essencial a ideia de dever, analisado à luz da sociologia de

Luhmann como “uma cifra para mecanismos sociais muito complexos, que estabilizam as

expectativas de comportamento quanto às desilusões e assim asseguram as estruturas”. 439 Desta

forma, cuidam de preservar as expectativas, até mesmo quando estas não se realizam nos casos

particulares.

Em resumo, anota-se aqui a importância da ideia de autolegitimação conforme

trabalhada por Luhmann. O caso do processo da eleição também contribui para uma melhor

compressão deste efeito de autolegitimação do sistema político, e este:

...quando se organiza apenas a si próprio de forma suficientemente complexa

nos seus processos, pode produzir e reduzir alternativas bastantes, tomar

providências para que as suas decisões sejam aceitas sem exceção como

obrigatórias; com isso pode reestruturar efetivamente as expectativas sociais

e, neste sentido, auto-legitimar-se. 440

Assim sendo, resume-se a legitimação não como o objetivo do procedimento (que visa

normalmente a verdade ou o justo), mas como consequência da manutenção da estabilidade

gerada a partir das estruturas possíveis do próprio sistema que, portanto, se autolegitima. 441

437 LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Trad. Maria da Conceição Corte Real. Brasília: UnB,

1980, p. 34. 438 LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Trad. Maria da Conceição Corte Real. Brasília: UnB,

1980, p. 35. 439 LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Trad. Maria da Conceição Corte Real. Brasília: UnB,

1980, p. 193. 440 LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Trad. Maria da Conceição Corte Real. Brasília: UnB,

1980, p. 201. 441 Sobre o uso da autoreferência de forma produtiva pela teoria dos sistemas (ao invés de ver nela um paradoxo

evitável), ressalta Teubner que: “the theory of autopoiesis delas with these paradoxes of self-reference in a

diferente way: Do not avoid paradoxes, but makes productive use of them! If social discourses are autopoietic

systmens, i.e. systems that recursively produce their elements from the network of their elements, then they are

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178

5.4 A continuidade do projeto moderno a partir da teoria procedimental da

democracia deliberativa de Jürgen Habermas

5.4.1 Notas sobre as bases da teoria da democracia deliberativa: racionalidade

comunicativa e consenso

Será por meio da racionalidade comunicativa que Habermas intentará reanimar as

propostas iluministas de emancipação humana. Ressalte-se, neste sentido, que o projeto

moderno funda-se na racionalidade e será por meio dela que Habermas irá propor sua revisão,

ainda que modificando-a. Assim, ciente da necessidade de superação da metafísica kantiana e

do paradigma do sujeito, Habermas escreve, em 1981, a Teoria do Agir Comunicativo, obra de

monumental importância no âmbito do chamado giro linguístico442 (ou guinada linguística).

Cuida-se, em apertada síntese, de substituir a consciência pela linguagem como forma de

expressão da racionalidade, afinal só é possível conhecer a razão por meio da expressividade

possibilitada pela linguagem. Assim, a autoconsciência do sujeito, considerada suficiente pela

filosofia da consciência típica do início da modernidade, é considera insuficiente por não

perceber a linguagem como o instrumento da razão que possibilita a compreensão e

comunicação dos pensamentos.

Nesta linha, irá propor a substituição da razão prática kantiana, voltada à orientação do

indivíduo na sociedade, pela razão comunicativa, apoiada em procedimentos de linguagem e

discurso e voltada ao entendimento, isto é, à formação intersubjetiva de consenso. 443 Esta

founded on that very self-referentiality that Habermas and Foucault are desperately trying to avoid (TEUBNER,

Gunther. How the law thinks: toward a constructive epistemology of law. San Domenico: European University

Institute, Badia Fisolana, 1988, p. 21 apud VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. O direito na teoria dos sistemas

de Niklas Luhmann. São Paulo: Max Limonad, 2006, p. 168). 442 “Giro linguístico foi a mudança de paradigma que ocorreu no pensamento filosófico ao longo do séc. XX. Aqui

a linguagem deixa de ser um objeto de estudo entre outros e passa a ter uma referência inevitável e fundamental

onde se abordam todos os problemas filosóficos. Razão e linguagem se tornam idênticos de tal modo que a

linguagem se torna a única forma racional de se conhecer a realidade. Nessa relação com o mundo passa a ter um

caráter simbolicamente mediado, visto que a linguagem desempenha um papel fundamental. A linguagem não é

mais um meio de conhecimento, ela passa a ser a condição de possibilidade de conhecimento.” (VELASCO

ARROYO, Juan Carlos. Para leer a Habermas. Madrid: Alianza Editorial, 2003.Tradução Livre). 443 “Embora Kant escolha a forma imperativa (‘Age só pela máxima que se possa transformar ao mesmo tempo,

por acção de teu desejo, em lei geral!’), o imperativo categórico assume o papel e um princípio de justificação,

assinalando como válidas as normas de conduta susceptíveis de generalização: todos os seres dotados de razão têm

de ser capazes de desejar o que se encontra moralmente justificado. É nessa perspectiva que falamos de uma ética

formalista. Na ética do discurso, o método de argumentação moral substitui o imperativo categórico. É ela que

formula o princípio ‘D’: - as únicas normas que têm o direito a reclamar validade são aquelas que podem obter

anuência de todos os participantes envolvidos num discurso prático. O imperativo categórico desce ao mesmo

tempo na escala, transformando-se num princípio de universalização ‘U’, que nos discursos práticos assume o

papel de uma regra de argumentação: no caso das normas em vigor, os resultados e as consequências secundárias,

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substituição nos força a repensar as bases da razão moderna e interpretar (e talvez reconfigurar)

a ordem política e jurídica existente. Abandona-se a tradicional estrutura da metafísica focada

na relação sujeito-objeto e implementa-se a noção de intersubjetividade, conforme interações

argumentativas. Com efeito, a partir da construção de Pierce de um modelo de conhecimento

que prescinde da tradicional visão sujeito-objeto e se firma numa construção intersubjetiva,

Habermas verá que a elaboração racional que conduz ao conhecimento não é um trabalho

solitário, mas cooperativo de uma comunidade científica. 444

Esta – a razão comunicativa – não é informativa e nem imediatamente prática, mas

refere-se a intelecções, proposições e normas criticáveis e, portanto, abertas a um

esclarecimento intersubjetivo via argumento ou discurso. 445 Desta forma, “o elemento

definidor da correção dos conhecimentos é um elemento externo ao plano cognitivo, situando-

se no plano da ação”446, considerando, evidentemente, que a fala é uma ação, de onde se extrai

seu caráter pragmático. Cumpre destacar que no modelo habermasiano da ação comunicativa,

os atos ilucucionais “são o meio no qual os agentes, que são orientados para uma coordenação

cooperativa de seus diferentes planos de ação, ‘mobilizam o potencial para a racionalidade’

inerente à linguagem ordinária”. 447 Sobre os atos ilucucionais, cumpre destacar as cinco

categorias vislumbradas por Searle:

Fizemos às pessoas como as coisas são (Assertivos), tentamos levá-las a fazer

coisas (Diretivos), comprometemo-nos a fazer coisas (Compromissivos),

expressamos nossos sentimentos e atitudes (Expressivos) e provocamos

mudanças no mundo através de nossas emissões linguísticas (Declarações). 448

provavelmente decorrentes de um cumprimento geral dessas mesmas normas e a favor da satisfação dos interesses

de cada um, terão de poder ser aceites voluntariamente por todos.

Finalmente, designamos por universalista uma ética que afirma que este princípio moral (ou um idêntico) não

exprime apenas as intuições de dada cultura ou de dada época, mas tem também sua validade geral.”

(HABERMAS, Jürgen. Comentários à ética do Discurso. Trad. Gilda Lopes Encarnação. Lisboa: Piaget, 1999,

p. 15-16). 444 “um signo consegue unicamente desempenhar a sua função representativa se estabelecer, simultaneamente à

referência ao mundo objetivo das entidades, uma referência ao mundo intersubjetivo dos intérpretes;

consequentemente, uma objetividade da experiência não é possível sem a intersubjetividade do entendimento

mútuo.” (HABERMAS, Jürgen. Charles S. Peirce sobre comunicação. In: HABERMAS, Jürgen. Textos e

contextos. Lisboa: Instituto Piaget, 2001, p. 21 apud SEGATTO, Antonio Lanni. A tensão entre facticidade e

validade. In: NOBRE, Marcos; TERRA, Ricardo. Direito e democracia: um guia de leitura de Habermas. São

Paulo: Malheiros, 2008, p. 41). 445 SIEBENEICHLER, Flávio Beno. Uma filosofia do direito procedimental. In: Revista Tempo Brasileiro, jul.-

set. – n. 138. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1999, p. 156. 446 ARAGÃO. Lucia. Habermas: filósofo e sociólogo do nosso tempo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002,

p. 107. 447 WHITE, Stephen K. Razão, justiça e modernidade: a obra recente de Jürgen Habermas. Trad. Márcio Pugliesi.

São Paulo: Ícone, 1995, p. 47. 448 SEARLE, John R. Expressão e Significado: estudos da teoria dos atos de fala. Trad. Ana Cecília G. A. de

Camargo e Ana Luiza Marcondes Garcia. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. X.

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Sendo estes os tipos de propósitos ilocucionários das emissões linguísticas, destacamos

aquele referente às declarações, já que tal finalidade ilocucionária visa “uma mudança de

mundo, representando-o como tendo sido mudado. Performativos, assim como outros tipos de

declarações, criam situações pelo simples fato de representá-las como tendo sido criadas.” 449

Tais declarações somente são possíveis na medida em que existem instituições

extralinguísticas, ou seja, externas ao que comumente denominamos realidade objetiva450, e

que, portanto, dependem dos observadores para existir e, é claro, que seja expressada pela

linguagem suas características.

Sem ingressar nos pormenores das teorias da linguagem, temos que a ação comunicativa

em sentido puro e a situação linguística também pura são pressupostos mútuos que se

apresentam como finalidade utópica da comunicação, posto que pressupõem uma situação

social ideal que, se e quando alcançada, possibilitam o discurso perfeito sem influências e a

obtenção do consenso válido. Se tomados como existentes, abrem-se críticas às formas de

interação e discurso fáticas, isto é, incongruências entre o pensado e o falado, entre as

idealizações e as expressões, minando o consenso ideal.

Em contraposição às teorias da correspondência, que pressupunham uma existência

ontológica como lastros da concepção da verdade e, por conseguinte, do justo, a teoria

consensualista cuida de examinar as condições sob as quais as proposições relativas a tais

objetivos podem ter validade – a racionalidade comunicativa baseia-se num sistema de

pretensões de validade. Neste rumo, verdadeira não é uma afirmação que corresponde a um

objeto ou a uma relação real, mas uma afirmação considerada válida num processo de

argumentação discursiva isento de coação e enganos. 451 A verdade não tem que ver com

conteúdo, mas com procedimentos: aqueles que permitem estabelecer um consenso fundado. A

verdade, num certo sentido, confunde-se com as condições formais para alcançá-la.

As regras e condições para a produção deste consenso alinham-se à situação ideal de

fala, que eliminaria influências internas e externas que tenderiam a distorcer o consenso

formado. Neste ponto, vale lembrarmos da posição original rawlsiana, na qual se previa uma

449 SEARLE, John R. Mente, linguagem e sociedade. Trad. F. Rangel. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p. 139. 450 O questionamento de Searle nos é aplicável: “Como pode haver uma realidade objetiva que é o que é apenas

porque pensamentos que é o que é?” (SEARLE, John R. Mente, linguagem e sociedade. Trad. F. Rangel. Rio de

Janeiro: Rocco, 2000, p. 106). 451 “As quatro pressuposições mais importantes são: (a) publicidade e inclusão: ninguém que, à vista de uma

exigência de validez controversa, possa trazer uma contribuição relevante, deve ser excluído; (b) direitos

comunicativos iguais: a todos são dadas as mesmas chances de se expressar sobre as coisas; (c) exclusão de

enganos e ilusões: os participantes devem pretender o que dizem; e (d) não-coação: a comunicação deve estar livre

de restrições, que impedem que o melhor argumento venha à tona e determine a saída da discussão.”

(HABERMAS, Jürgen. Agir comunicativo e razão destranscendentalizada. Trad. Lucia Aragão. Rio de Janeiro:

Tempo Brasileiro, 2012, p. 67).

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situação da qual decorreria um consenso acerca dos princípios de justiça a partir de um véu de

ignorância cuja função seria similar à da formação de uma situação ideal de fala, posto que visa

a construção de um consenso não enviesado por características pessoais, isto é, sem

interferências acerca da racionalidade plena da decisão.

Em Habermas, esta situação ideal de fala consiste numa medida de crítica para

questionar consensos formados e não num fenômeno empiricamente possível, estando ligado

aos seguintes postulados: igualdade comunicativa, igualdade de fala, veracidade, sinceridade e

correção de normas. 452 Tais postulados são de suma relevância para o patamar da crítica que

se fará aos consensos faticamente obtidos. Estes, por sua vez, se dão não só a partir de condições

de fala possíveis, mas dentro de um horizonte que limita a própria comunicação, o chamado

mundo da vida (lebenswelt)453, o qual é dado e abrange a consciência e o contexto social da

comunicação, condicionando as possibilidades de consenso.

Ressalte-se que o conceito de agir comunicativo em análise “desenvolve a intuição de

que à linguagem é inerente o telos do entendimento.” 454 Neste ponto, verificamos a necessidade

de por Habermas por apresentar um modelo de ação distinto daquele weberiano – a ação

racional com respeito a fins –, o que intentará fazer pela ação comunicativa que, conforme dito

acima, visa o entendimento. Desta forma, a finalidade do agir comunicativo volta-se à formação

de consensos, a princípio criticáveis a partir dos postulados acima descritos e considerando-se

os limites impostos pelo contexto no qual se dão (o mundo da vida). Afinal, é certo que a maior

complexidade decorrente da evolução social ocasionou pluralização de formas de vida que

inibem as convergências que se assentam na base do mundo da vida. Neste contexto, a questão

que surge é fundamental e é, para Habermas, um problema típico das sociedades modernas:

“como estabilizar, na perspectiva dos próprios atores, a validade de uma ordem social, na qual

ações comunicativas tornam-se autônomas e claramente distintas de interações estratégicas?”

455 Em termos mais claros:

Em tal situação, agudiza-se o seguinte problema: como integrar socialmente

mundos da vida em si mesmos pluralizados e profanizados, uma vez que

452 SIEBENEICHLER, Flávio Beno. Jürgen Habermas: razão comunicativa e emancipação. Rio de Janeiro:

Tempo Brasileiro, 1989, p. 105. 453 “Ora, podemos representar as componentes do mundo da vida, nomeadamente os padrões culturais, as ordens

legítimas e as estruturas de personalidade, como adensamentos e sedimentações destes processos de entendimento,

de coordenação de acções e de socialização que perpassam o agir comunicativo.” (HABERMAS, Jürgen.

Pensamento pós-metafísico: ensaios filosóficos. Trad. Lumir Nahodil. Lisboa: Almedina, 2004, p. 106-107). 454 HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: ensaios filosóficos. Trad. Lumir Nahodil. Lisboa:

Almedina, 2004, p. 89. 455 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, volume I. 2ª ed. Trad. Flávio Beno

Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012, p. 45.

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cresce simultaneamente o risco de dissenso no domínio do agir comunicativo

desligado de autoridades sagradas e de instituições fortes? 456

Neste contexto, e em especial na esfera política democrática, os consensos formados a

partir do agir comunicativo devem, como veremos, serem traduzidos em linguagem própria,

juridicamente permeada, sendo o sistema de direitos o responsável pela aludida integração.

5.4.2 A Legitimidade457 “a partir de baixo” do capitalismo liberal

Feitas as devidas introduções acerca da comunicação e do consenso, voltamo-nos agora

ao acoplamento destes conceitos ao direito que, na teoria habermasiana, consiste no medium

para a possibilidade de reprodução da sociedade complexa onde diferentes eticidades coabitam,

bem como meio de realização efetiva da autolegislação.

Para compreendermos esta importante afirmação, temos de analisar as diferentes

formações sociais historicamente verificadas, as quais consistem, em breve síntese, nas

formações (i) primitiva, em que os papéis de idade e sexo formam o princípio organizacional,

sendo o sistema de parentesco e de estrutura familiar os pilares determinantes da totalidade do

inter-relacionamento social; (ii) tradicional social, na qual o princípio de organização é a

dominação de classe efetivada por meio de um aparelho burocrático de autoridade que permite

a transferência da produção e a distribuição de riqueza de maneira privilegiada; e (iii) social

liberal capitalista, em que o princípio de organização é o relacionamento de trabalho

assalariado e capital, sendo a troca econômica o meio dominante de condução. 458

A partir disso, temos que na sociedade tradicional todos os domínios da vida social

encontram-se legitimados a partir de um conjunto de valores religiosos ou míticos que dão

sentidos às ações individuais e coletivas, tornando a maneira desta sociedade se organizar

legítima a partir de um referencial para a ação inquestionável, uma eticidade. Esta eticidade

provém da tradição, a qual determina que esta forma de organização deriva da natureza das

coisas, não sendo, portanto, a melhor dentre tantas outras, mas a única possível. Neste contexto,

qualquer questionamento ou falta de consenso a respeito das formas de organização desta

456 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, volume I. 2ª ed. Trad. Flávio Beno

Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012, p. 46. 457 Para fins deste capítulo, utilizaremos algumas vezes as expressões legitimidade e legitimação, conforme

utilizadas por Habermas. De toda sorte, o significado a elas atribuído é similar ao que aqui denominamos

justificação. 458 HABERMAS, Jürgen. A Crise de legitimação no capitalismo tardio. 2ª Ed. Trad. Vamireh Chacon. Rio de

Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002, p. 30-38.

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sociedade leva à exclusão daquele que discorda, com a manutenção do estado de coisas.

Entretanto, com o aumento dos dissensos, a eticidade única se abala.

A passagem da forma de organização social tradicional para a forma liberal capitalista

representa a possibilidade de convívio mútuo entre eticidades distintas e, por vezes, divergentes,

dentro de um mesmo espaço que, portanto, torna-se palco de um convívio conflituoso sob uma

ordem política que carece de unidade para manter-se, vez que não mais lastreada em valores

míticos ou religiosos inquestionáveis.

Como vimos anteriormente, no contexto do início da chamada modernidade irá ser

proposta a justificação da sociedade política em bases contratualistas, fundamentando a

sociedade a partir do indivíduo como único núcleo político considerável e substituindo as

fundamentações típicas da sociedade tradicional, notadamente as de base teológica, que

sustentavam o Antigo Regime, bem como todas aquelas de viés comunitarista, lastreadas na

visão aristotélico-tomista. Habermas, por sua vez, irá apresentar um entendimento diverso,

segundo o qual a base da legitimação política do Estado no âmbito do advento da modernidade

e do chamado capitalismo liberal não decorre de um entendimento filosófico como tal, mas a

partir da base econômica de reprodução desta sociedade. Isto, pois com Adam Smith e Ricardo

a sociedade passa a ser vista como o ambiente do comércio e do trabalho social, determinados

por leis anônimas, posto que decorrentes do livre comércio. Assim, com esta mudança de

perspectiva, conduzida pela economia liberal e também a partir das análises marxistas da crítica

à economia política, a categoria do direito, tal como vista pelos contratualistas, perde sua

posição-chave enquanto instrumento teórico legitimador da realidade social e política.

Em outras palavras, Habermas irá dizer que “os próprios mecanismos da integração

social são de natureza não-normativa” 459, cujas verdadeiras relações não são jurídicas, mas

econômicas.

Neste ponto, é essencial a análise de Habermas quanto à mudança estrutural ocorrida

com o advento do capitalismo: “A instituição do mercado pode ser fundamentada na justiça

inerente à troca de equivalentes; e, por esta razão, o Estado constitucional burguês encontra sua

justificação nas relações legítimas de produção.” 460 Assim, ante à inexistência de uma ordem

natural qualquer que legitime o Estado a partir de cima, o capitalismo em sua nascente apresenta

uma forma de legitimação a partir de baixo, ou seja, das forças produtivas. Assim, no

459 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, volume I. 2ª ed. Trad. Flávio Beno

Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012, p. 69. 460 HABERMAS, Jürgen. A crise de legitimação no capitalismo tardio. 2ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,

2002, p. 36.

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capitalismo liberal a legitimação curiosamente se articularia a partir de um fator supostamente

apolítico, que é sua base econômica (mercado e sistema de trocas).

Em outras palavras: o Estado desenvolve e garante o direito privado burguês,

o mecanismo monetário, determinadas infraestruturas, no geral os

pressupostos da estabilidade de um processo econômico despolitizado, liberto

das normas éticas e das orientações baseadas no valor de uso. 461

Assim, verificamos que o advento da chamada modernidade mexe com a posição das

forças produtivas no quadro de legitimação dos sistemas sociais institucionalizados. Com isso,

demonstram-se também inadequados os modelos jusnaturalistas e, portanto, aquele

contratualista462 e a dominação política saída dos quadros da racionalização a partir de cima

abandonará sua visão teológico-religiosa para poder ser legitimada a partir de baixo, ou seja, a

partir da ação instrumental, ainda que as técnicas características do trabalho precisem de um

quadro de interação para funcionarem.

Ele [o capitalismo], oferece uma legitimação da dominação que não desce

mais do céu da tradição cultural, mas que pode ser erguida sobre a base do

trabalho social. A instituição do mercado, na qual os proprietários privados

trocam mercadorias e que inclui o mercado em que aqueles desprovidos de

propriedade fazem o intercâmbio de sua única mercadoria, a própria força de

trabalho, promete a justiça na equivalência das relações de troca. Com a

categoria de reciprocidade, essa ideologia burguesa também transforma a ação

comunicativa em base de legitimidade. Mas o princípio da reciprocidade é

agora o princípio organizatório dos processos mesmo de produção e

reprodução. Por isso, a dominação política pode a partir de então ser

legitimada “de baixo para cima”, ao invés de legitimar-se “de cima para

baixo”, evocando os recursos da tradição cultural. 463

Esta é a visão habermasiana sobre a legitimação no âmbito do capitalismo liberal. Este,

por sua vez, é substituído por aquilo que denominamos capitalismo tardio, também chamado

de avançado. Neste novo modelo verifica-se o fim do capitalismo liberal e competitivo a partir

461 HABERMAS, Jürgen. Para a reconstrução do materialismo histórico. Trad. Rúrion Melo. São Paulo: Unesp,

2016, p. 397. 462 “No decorrer dos processos de racionalização das sociedades modernas, caracterizados por uma crescente

complexidade e diferenciação das estruturas sociais com a expansão da economia capitalista de mercado e a

consolidação do sistema burocrático administrativo do Estado moderno, e por uma crescente diferenciação das

esferas culturais de valor, as teorias contratualistas apoiadas na tradição do direito natural racional foram sendo

consideradas inadequadas para esclarecer o problema da legitimidade da dominação política.” (WERLE, Denílson

L.; SOARES, Mauro V. Política e direito: a questão da legitimidade do poder político no Estado democrático de

direito. In: NOBRE, Marcos; TERRA, Ricardo. Direito e democracia: um guia de leitura de Habermas. São

Paulo: Malheiros, 2008, p. 125). 463 HABERMAS, Jürgen. Técnica e ciência como “ideologia”. Trad. Felipe Gonçalves Silva. São Paulo: UNESP,

2014, p. 98.

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de revoluções tecnológicas que alteram as relações de produção, bem como pela inclusão do

Estado como principal player no mercado. O acoplamento do sistema econômico ao político

repolitiza as relações de produção, criando uma nova necessidade de justificação da ordem

política.

5.4.3 A repolitização da legitimação e seu fundamento comunicativo

A questão da legitimação no âmbito do capitalismo tardio refere-se à repolitização da

economia, conforme mencionada acima, bem como da dificuldade de se articular uma base

sólida de legitimação a partir da ruptura com a tradição realizada com o advento do capitalismo

liberal. Assim, mesmo carecendo do respaldo de valores universalmente aceitos, como nas

formações sociais anteriores, o Estado precisa legitimar-se, isto é, apresentar fundamentos

racionais que justifiquem a ordem jurídica e política.

A resposta para esta importante questão será fornecida pelo fortalecimento de estruturas

democráticas e dos direitos decorrentes do sistema valorativo universal burguês, solucionando

a questão a partir da democracia formal organizada pelo direito. Afinal, a partir do

desencantamento, “o direito entra no lugar das garantias metassociais do sagrado, que

estruturavam as sociedades medievais pré-modernas”. 464 Com efeito, era o direito que garantia

a circulação de mercadorias no âmbito do capitalismo liberal e será ele, novamente, o

responsável por articular esta nova forma de legitimação do Estado no âmbito do capitalismo

tardio, convalidando a ideia de que todo desenvolvimento ou modificação de forças produtivas

provoca um desenvolvimento nas estruturas normativas.

Para Habermas465, podemos falar em crises apenas quando membros de uma sociedade

experimentam alterações estruturais como sendo críticas para sua existência contínua e sentem

sua identidade social ameaçada. A ameaça à integração sistêmica, sob o manto do consenso,

ocorre quando estes fundamentos consensuais das estruturas normativas são danificados de tal

forma que as instituições sociais entram em colapso. As crises de legitimação, por sua vez,

“resultam de uma necessidade de legitimidade e brotam de mudanças no sistema político

(mesmo quando as estruturas normativas permaneçam sem mudança) e não podem ser

464 SIEBENEICHELER, Flávio Beno. Uma filosofia do direito procedimental. In: Revista Tempo Brasileiro, jul.-

set.- nº 138, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999, p. 157. 465 HABERMAS, Jürgen. A crise de legitimação no capitalismo tardio. 2ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,

2002, p. 14.

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cumpridas pela oferta existente de legitimação.” 466 Neste sentido, temos que o capitalismo

avançado (ou tardio) cria uma necessidade de legitimação que não dá conta de solucionar, posto

que ela não mais resulta das relações de produção e do mercado – até pela decadência da

indústria e ascensão do capitalismo financeiro e coordenado pelo Estado –, bem como não pode

mais utilizar aquelas referências tradicionais utilizadas nas formações pré-capitalistas.

Destaque-se que Habermas intentará demonstrar a possibilidade de se justificar as

pretensões de validade normativa apresentando fundamentos racionais para seu

reconhecimento, posto que a crença na legalidade, por si só, não concede a base de legitimação

necessária, carecendo de justificação, a qual seguirá o caminho de práticas de argumentação

pública entre cidadãos livres. Neste contexto, diminui-se a importância do mero voto como

refletor da vontade geral e atenta-se à construção das discussões, conforme realizadas no âmbito

argumentativo da esfera pública.

Neste tocante, Habermas apresentará sua crença no reconhecimento racionalmente

motivado e questionável a qualquer tempo das normas, de modo a direcionar sua argumentação

para uma lógica fundada no consenso obtivo por meio da referida prática argumentativa. O

direito, neste contexto, desempenhará o papel de transformar o poder comunicativo, alcançado

desta maneira, em poder administrativo, devendo, para tanto, traduzir os anseios comunicativos

periféricos nos termos técnicos reconhecidos pela ciência jurídica. Neste sentido, exalta o poder

do direito positivo:

O direito positivo é, precisamente, a única linguagem na qual os cidadãos

podem assegurar para si e garantirem mutuamente a participação na prática da

autolegislação, ou seja, a participação na produção de leis, que só assim

podem ser entendidas como leis que os cidadãos impõem a si mesmos. 467

Desta forma, o direito consiste no medium para a possibilidade de reprodução da

sociedade complexa onde diferentes eticidades coabitam. Ademais, em condições pós-

metafísicas, o direito deve ser compreendido a partir de uma busca realizada de forma

intersubjetiva e cooperativa. Assim sendo, o sistema jurídico extrai sua legitimidade a partir da

ideia de autolegislação, ou melhor, na autodeterminação pública e, em última instância, de

processos comunicativos. Em síntese:

466 HABERMAS, Jürgen. A crise de legitimação no capitalismo tardio. 2ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,

2002, p. 66. 467 HABERMAS, J. Más Allá del Estado Nacional. Madrid: Ed. Trotta, 1997, p. 162-163 apud ARAGÃO. Lucia.

Habermas: filósofo e sociólogo do nosso tempo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002, p. 59.

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Na linha da teoria do discurso, o princípio da soberania do povo significa que

todo o poder político é deduzido do poder comunicativo dos cidadãos. O

exercício do poder político orienta-se e se legitima pelas leis que os cidadãos

criam para si mesmos numa formação de opinião e da vontade estruturada

discursivamente. 468

Habermas nos apresenta, portanto, uma teoria da democracia sob o ponto de vista de sua

legitimação a partir de um paradigma procedimentalista do direito como meio de possibilitar a

convivência harmônica numa sociedade complexa, onde convivem diferentes eticidades, sendo

certo que a canalização da competência legislativa do povo transfere-se ao legislativo pelo

princípio parlamentar, já que “as comunicações políticas dos cidadãos estendem-se a todos os

assuntos de interesse público; porém elas desaguam, no final das contas, nas decisões de

corporações legislativas”. 469 Afinal, a legitimidade somente pode ser obtida por meio de

processos comunicativos isentos de violência, de modo que sua expansão para além do mundo

da vida ocorre pela institucionalização de procedimentos de deliberação democrática. Desta

forma, o direito acaba, num certo sentido, extraindo sua legitimidade a partir da legalidade que

ele mesmo produziu.

Assim, na chamada esfera pública470, também reproduzida pelo agir comunicativo,

ocorre a interação comunicativa tendente a canalizar interesses por meio de entendimentos

aptos a serem transformados em poder administrativo. A sociedade civil (grupos e movimentos

sociais) transferem reações à esfera pública, numa tentativa de institucionalizar discursos por

meio de canais institucionalizados de deliberação democrática, com vistas a, no final, conceder

a devida legitimidade às decisões políticas. Cabe lembrar, neste contexto, que a partir da

repolitização das relações econômicas – dada a perda da legitimação “de baixo” típica do

capitalismo liberal – a dominação exercida por meio do Estado torna-se suscetível de pressões

políticas a serem exercidas pelas forças democráticas. 471

Em apertada síntese, poderíamos dizer que a legitimidade vista por Habermas funda-se

sobre o princípio do discurso “D”: “são válidas as normas de ação às quais todos os possíveis

atingidos poderiam dar o seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos

468 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, volume I. 2ª ed. Trad. Flávio Beno

Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012, p. 213. 469 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, volume I. 2ª ed. Trad. Flávio Beno

Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012, p. 214. 470 “A esfera pública pode ser descrita como uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de

posição e opiniões; nela os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em

opiniões públicas enfeixadas em temas específicos.” (HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre

facticidade e validade, volume II. 1ª ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2011,

p. 93). 471 HABERMAS, Jürgen. A crise de legitimação no capitalismo tardio. 2ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,

2002, p. 79.

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racionais.” 472 Este princípio assume, pela via da institucionalização jurídica, a figura de um

princípio da democracia, legitimando o processo de normatização, assim “O princípio da

democracia resulta da interligação que existe entre o princípio do discurso e a forma jurídica.”

473

A partir daí, intentará apresentar um rol de direitos fundamentais, sendo de especial

destaque aquele ligado à participação no processo de formação da opinião da qual decorrerá o

direito que, neste contexto, e à luz da teoria do discurso, esclarece a relação entre direitos

humanos e soberania popular, bem como busca solucionar o problema da legitimidade.

Em nossa leitura, tal argumentação, ainda que articulada a partir de uma teoria

comunicativa que enfatiza o princípio “D”, ancora-se sobre o conceito de autolegislação –

mesmo que Habermas preferida falar de autonomia política474 – assemelhando-se às investidas

contratualistas dos setecentos. Isso para não ingressarmos nas críticas afetas à idealidade do

modelo, bem como na igualdade de forças no âmbito do discurso, cujas realidades

socioeconômicas distintas minam absolutamente, inviabilizando qualquer possibilidade de

consenso validamente formulado, quando não inviabilizando o próprio processo comunicativo.

Neste ponto, valemo-nos das lições do professor Márcio Pugliesi:

representação social é uma modalidade específica do conhecimento, que tem

por função a elaboração dos comportamentos da comunicação entre

indivíduos, constituindo um corpus organizado de conhecimentos e atividades

psíquicas pelas quais se torna inteligível a realidade social e física, permitindo

a inclusão em um grupo ou relações cotidianas e a transformação do mundo

social, possível pelo estranhamento, num mundo cotidiano, familiar e

“amistoso”. 475

Assim, enxergando o sujeito como uma atmosfera semântico-pragmática e suas

relações, o “horizonte possível para a comunicação permanece limitado pela intersecção entre

as distintas atmosferas em relação”476, de tal modo a afetar substancialmente – a depender das

limitações pragmaticamente decorrentes da aludida intersecção – as possibilidades de formação

472 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, volume I. 2ª ed. Trad. Flávio Beno

Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012, p. 142. 473 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, volume I. 2ª ed. Trad. Flávio Beno

Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012, p. 158. 474 “A ideia da autolegislação, que significa autonomia moral para a vontade particular, adquirida para a formação

coletiva da vontade o significado da autonomia política, porque o princípio do discurso encontra aplicação a outros

tipos de normas de ação, assumindo ele próprio uma figura jurídica ao lado do sistema de direitos.” (HABERMAS,

Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, volume I. 2ª ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio

de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012, p. 197). 475 PUGLIESI, Márcio. Teoria do direito. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 80-81. 476 PUGLIESI, Márcio. Teoria do direito. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 54.

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de consensos que, na visão habermasiana, tendem a chegar à esfera político-jurídica a partir do

exercício da razão no âmbito democrático institucionalizado.

Esta crítica às limitações comunicativas e, por conseguinte, à formação de consensos

válidos assumirá grandes proporções quando contrastada com a teoria habermasiana, já que a

diferenciação do sistema de suas circunstâncias ocorre por meio da produção e socialização

realizadas por meios de expressão e normas que necessitam de justificação por meio de

pretensões discursivas de validade. Assim, o processo de socialização operado por tais normas

carece de justificação, a qual somente poderá ocorrer discursivamente, a partir de ações

comunicativas.

Ora, se decorrem de ações comunicativas, sujeitam-se à crítica apresentada acima, bem

como ao império da força argumentativa empregada e que, em última instância, decorre de

conhecimentos técnicos, linguísticos e estruturais específicos daquelas que participam do

processo comunicativo como podem. Embora particulares – e, portanto, subjetivas –, tais

normas possuem pretensão de generalidade:

A generalidade significa objetividade de conhecimento e legitimidade de

normas válidas. Ambas garantem um significado comunitário ou

compartilhado que é constitutivo do mundo vital sócio-cultural. As estruturas

de intersubjetividade são apenas constitutivas de experiências e ação

instrumental, do mesmo modo que o são para atitudes e ação comunicativa.

Estas mesmas estruturas regulam, ao nível dos sistemas, o controle da

integração externa e da integração interna na natureza, isto é, os processos de

adaptação à sociedade que, por conta das competências de indivíduos

socialmente relacionados, opera através dos meios típicos de expressão que

admitem verdade e normas necessitando justificação. 477

Em última análise, os processos comunicativos produtores de normas com pretensão de

generalidade estruturam o sistema478, cuja própria estabilidade depende da aceitação destas

normas ou, melhor, da inexistência de um descontentamento tal que inviabilize sua eficácia ou

até mesmo existência.

Posto isto, temos que o direito, em sua teoria, apresenta-se como o médium através do

qual o poder comunicativo acima referido é transformado em poder administrativo, tendo o

sentido de uma procuração no quadro das permissões legais. 479 Assim, torna-se mais clara a

477 HABERMAS, Jürgen. A crise de legitimação no capitalismo tardio. 2ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,

2002, p. 22-23. 478 Embora não deixa de pontuar a possibilidade de ruptura das estruturas normativas por meio do aumento da

complexidade das escolas de organização e da modernização (cf. HABERMAS, Jürgen. A crise de legitimação

no capitalismo tardio. 2ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002, p. 24). 479 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, volume I. 2ª ed. Trad. Flávio Beno

Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012, p. 190.

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190

ideia de legitimidade que perpassa a obra habermasiana, especialmente considerando a origem

precípua do direito como decorrente de entendimentos intersubjetivamente realizados no

horizonte de comunicação possível dos mundos da vida em relação.

Para ser capaz de fornecer legitimação ao exercício do poder político, o direito

deve estar ligado a demandas normativas que emanam do entendimento

comunicativo de estruturas de intersubjetividade intacta que se formam em

“mundos da vida” racionalizados nos quais se ancoram as “esferas públicas”. 480

Neste sentido, Habermas irá cunhar sua bastante repetida afirmação de que “o direito

detém uma função de charneira entre sistema e mundo da vida.”481 Também é dentro deste

contexto teórico que Habermas nos apresenta, em Direito e Democracia, uma tensão típica do

direito, referente à facticidade (Faktizität) e validade (Geltung). Do ponto de vista interno, isto

representa a tensão entre a facticidade da coerção e a validade da norma. Do ponto de vista

externo – afeto aos contextos sociais – trata-se da tensão entre a facticidade do poder e a

validade decorrente da autonomia política dos cidadãos.

A norma jurídica, portanto, não pode ser entendida a partir da mera positividade ou,

conforme visto na análise de Luhmann acima, a partir de sua função de controlar expectativas;

além da legalidade e da consequente coerção dela decorrente, o direito insere-se num meio

social muito mais amplo que o sistema legislativo formal. A compreensão integral do fenômeno

jurídico, portanto, transcende esta esfera e alcança o cotidiano, de onde deve extrair

legitimidade a partir das relações sociais comunicativas que, na visão habermasiana, devem ser

articuladas num modelo de democracia radical, em que direito e política são vistos a partir de

um paradigma procedimental.

A partir disso, verifica-se, no plano interno, que a dominação política deve ser

entendida, primeiramente, como decorrente de um poder juridicamente organizado e, portanto,

dotado de legalidade. A legalidade, assim, apresenta-se como fundamento inicial de qualquer

perspectiva de legitimidade, a qual deve estar vinculada à ideia de justiça, conforme expressão

de uma comunidade de pessoas organizadas que agem comunicativamente visando

entendimentos que dão o necessário suporte racional e deliberativo às decisões que fundam este

direito do qual emana a legalidade do poder.

480 VILLAS BOAS FILHO, Orlando. Legalidade e legitimidade no pensamento de Jürgen Habermas. In: NOBRE,

Marcos; TERRA, Ricardo. Direito e democracia: um guia de leitura de Habermas. São Paulo: Malheiros, 2008,

p. 41. 481 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, volume I. 2ª ed. Trad. Flávio Beno

Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012, p. 83.

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191

Enquanto sua validade não estiver protegida através de uma autoridade

religiosa ou simplesmente moral, através de uma fé racional em valores,

portanto através de sanções internas correspondentes (medo de perder bens de

salvação, consciência de vergonha ou de culpa), ou através da capacidade para

autoligação, ela necessita de garantias externas. Nesses casos, a expectativa

de legitimidade de uma ordem social é estabilizada através de convenções ou

do direito. 482

A análise então weberiana de convenções ou do direito como forma de gerar o domínio

alinha-se, na maturidade da modernidade, à coercibilidade inerente ao direito positivo. O

sistema de direitos – ou o ordenamento jurídico moderno – será, portanto, o responsável por

operacionalizar a integração das diferentes eticidades manifestadas via ação comunicativa no

contexto social supostamente democrático, vez que promove a garantia de direitos

(notadamente liberdade e propriedade) e impõe-se pelo poder coercitivo do Estado. Ademais,

o direito não só garantiria sua facticidade pela coerção, mas também acoplaria a validade, pois

a concessão dos aludidos direitos supõe-se decorrente de pretensão racional e, portanto, a ele

concederia a necessária legitimidade. É desta forma que Habermas articula, à luz de Kant, a

coerção e a liberdade inerentes ao direito moderno como componentes de sua validade. Neste

sentido, a legitimidade depende do surgimento a partir de um “processo legislativo racional” e

curiosamente não está ligada à aceitação fática da norma. 483 Isto se justificaria, pois “em geral,

o sistema jurídico global possui um grau maior de legitimidade do que normas jurídicas

singulares” 484, já que aquele decorre da ideia de autolegislação decorrente da suposta

autonomia política dos cidadãos livres e associados.

Inobstante vincular a legitimidade à ideia de autolegislação, que nessas bases remonta

ao menos a Rousseau, vale lembrar que Habermas não está apenas preocupado com a questão

da aprovação popular, a qual restou enfraquecida após os eventos totalitários do séc. XX, mas

com a formação política decorrente de deliberações racionais abertas e voltadas ao consenso.

Destaque-se aí que a concepção de poder utilizada por Habermas englobará estes conceitos,

posto que utiliza a definição de Hannah Arendt, para a qual:

o poder resulta da capacidade humana, não somente de agir ou de fazer algo,

como de unir-se a outros e atuar em concordância como eles. O fenômeno

482 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, volume I. 2ª ed. Trad. Flávio Beno

Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012, p. 97. 483 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, volume I. 2ª ed. Trad. Flávio Beno

Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012, p. 50. 484 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, volume I. 2ª ed. Trad. Flávio Beno

Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012, p. 51.

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192

fundamental do poder não consiste na instrumentalização de uma vontade

alheia para os próprios fins, mas na formação de uma vontade comum, numa

comunicação orientada para o entendimento recíproco. 485

Habermas constantemente se refere à definição de poder de Arendt, especialmente na

medida em que se apresenta oposta ao conceito weberiano. Com efeito, enquanto Weber

apresentará uma ideia de possibilidade de imposição de vontade, Arendt entende que o poder

nasce a partir da união de homens com finalidade de ação. Neste sentido, entrelaçando os

entendimentos contratualistas com a formação moderna do poder político nos apresenta que:

A gramática da ação: a ação é a única faculdade humana que requer uma

pluralidade de homens; a sintaxe do poder: o poder é o único atributo humano

que se aplica exclusivamente ao entremeio mundano onde os homens se

relacionam entre si, unindo-se no ato de fundação em virtude de fazer e manter

promessas, o que, na esfera política, é provavelmente a faculdade humana

suprema. 486

Assim, a ação coletiva, do ponto de vista pragmático e a capacidade de promessas, do

ponto de vista filosófico e ético, geram uma ação mantida pela promessa que estrutura a base

do direito moderno e do poder político a cargo do Estado, apresentando-se, portanto, como

projeto. Habermas irá acrescentar a isso noções de sua teria do discurso, com vistas a apresentar

a formação do poder comunicativo dentro de esferas públicas.

Neste rumo, Arendt e Habermas acabam por se opor à forma de poder político da

modernidade quando apresentadas em sentido vertical, posto que solapam a ação política

horizontal pela dominação exercida pela mera coerção. Assim, o direito e a política não podem

ser vistos apenas numa perspectiva sistêmica circular de autolegitimação e as normas não

servem apenas para conter expectativas; mais do que isso, direito e política devem ser vistos a

partir de uma base de justificação decorrente da expressão da autodeterminação de cidadãos. A

legitimidade do direito, portanto, não pode se fundar no próprio direito, mas deve estar fundada

em normas decorrentes de entendimentos comunicativos de cidadãos que interagem num

mundo da vida dotado de racionalidade comunicativa e não contaminado pela ação intencional

típica dos sistemas, em especial do econômico.

485 HABERMAS, Jürgen. O conceito de poder em Hannah Arendt. In: FREITAG, Bárbara; ROUANET, Sérgio

Paulo (Orgs.). Habermas: sociologia. Trad. Bárbara Freitag e Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Ática, 1980, p.

101. 486 ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.

228.

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193

Assim, Habermas aponta sua visão acerca da estrutura racional que deve conter os

motivos da legitimação:

Entendo por legitimidade o merecimento do reconhecimento de uma ordem

política. A pretensão de legitimidade relaciona à preservação sociointegrativa

de uma identidade normativamente determinada da sociedade. As

legitimações servem para resgatar essa pretensão, ou seja, para mostrar que a

maneira e por que as instituições existentes (ou recomendadas) são

apropriadas para empregar o poder político de modo a realizar os valores

constitutivos para a identidade da sociedade. Se as legitimações convencem,

se são críveis, é algo que certamente depende de motivos empíricos; mas esses

motivos não se formam independentemente da força de justificação, a ser

analisada de maneira formal, das próprias legitimações – ou também podemos

dizer, do potencial de legitimação ou das razões que podem ser mobilizadas. 487

Neste sentido é que irá apresentar as condições formais da formação de consensos como

conservadores da força legitimadora, tratando-se de uma justificação, ou seja, “condições

formais de aceitabilidade das razões que emprestam eficácia às legitimações, ou seja, sua força

para produzir consenso e formar a motivação.” 488

Aqui Habermas apresenta entendimento similar aquele que aqui buscamos desenvolver,

ou seja, que a vinculação e o efetivo cumprimento (eficácia) depende de motivos extra-factuais

que emprestam eficácia à legitimação, o que, para o referido pensador consiste na aceitabilidade

das razões formadoras do consenso. Assim, os procedimentos pressupostos nesta

fundamentação fundam a validade da legitimidade, apresentando a visão habermasiana que

acordos livres, em supostas condições ideias, são a única base possível para a justificação

possível no ambiente pós-metafísico.

Em síntese, a justificação das normas jurídicas se dá como resultado de um processo

comunicativo do qual aquelas obtêm seu fundamento, conforme decorrente de um

reconhecimento intersubjetivo, de tal sorte que as normas apresentam-se aos seus destinatários

não só com a pretensão de legalidade, decorrente da coercibilidade – que alude ao cumprimento

orientado estrategicamente –, mas também com pretensão de legitimidade – que alude ao

reconhecimento racional de uma ordem política, conforme fundada em consensos valida e

racionalmente gerados conforme os procedimentos jurídicos típicos de um Estado democrático

de direito.

487 HABERMAS, Jürgen. Para a reconstrução do materialismo histórico. Trad. Rúrion Melo. São Paulo: Unesp,

2016, p. 388. 488 HABERMAS, Jürgen. Para a reconstrução do materialismo histórico. Trad. Rúrion Melo. São Paulo: Unesp,

2016, p. 390.

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194

6 A INSUFICIÊNCIA DOS MODELOS PROCEDIMENTALISTAS DE

JUSTIFICAÇÃO DO ESTADO E DO DIREITO

6.1 Capitalismo tardio e tecnocracia

Habermas verifica que “a suplementação e parcial substituição do mecanismo de

mercado pela intervenção estatal marca o fim do capitalismo liberal”.489 Ademais, “acredita que

as sociedades do capitalismo tardio já teriam resolvido seus conflitos econômicos mais urgentes

às custas de políticas sociais compensatórias e legislação social protetora.”490 Com isso,

dispensa o modelo marxista e aposta na social-democracia. Sob esta visão, torna-se

desnecessária qualquer revolução tendente a promover qualquer ruptura com a ordem

estabelecida, assumindo-se, por consequência, que ela não promoveria direitos e liberdades em

maior medida do que se verifica no ambiente social-democrata. As reviravoltas (ou, neste caso,

apenas reformas) da democracia se dão, nesta ótica, dentro do ambiente democrático491 e seriam

propostas por aqueles que visam os interesses chamados pós-materiais (qualidade de vida,

direitos humanos, autorrealização individual e questões de igualdade). 492 Afinal, qualquer

proposta tendente a minar o ambiente democrático não deve nele encontrar guarida. Será então

por meio da institucionalização da ação comunicativa que Habermas intentará implementar a

completude do projeto moderno no seio do capitalismo tardio, conforme já visto acima, sem de

qualquer forma enveredar para o socialismo em qualquer vertente. Cumpre-nos, então,

compreender melhor esta recente transformação do modo de produção capitalista verificada nas

últimas décadas.

Em O capitalismo tardio, Ernest Mandel493 analisa as diversas etapas de

desenvolvimento do capitalismo, sugerindo que este não mudou em sua essência, mas se altera

489 HABERMAS, Jürgen. A crise de legitimação no capitalismo tardio. 2ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,

2002, p. 48. 490 ARAGÃO. Lucia. Habermas: filósofo e sociólogo do nosso tempo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002,

p. 150. 491 “Com golpes de Estado e as barricadas não se chega a lugar algum. Toda transformação radical implica

mudanças de subjetividades: a revolução deve ser democrática. Sempre fui um antileninista. A ideia de que uma

elite se serve de instrumentos de produção para converter as massas parece-me completamente desacreditada. No

imediato, não sou um inimigo da social-democracia, se bem que me situe nitidamente mais à esquerda. Enquanto

não houver movimentos sociais dignos desse nome, o reformismo radical social-democrata é a única solução.

Depois das imensas decepções que a história do socialismo nos reservou, convém se mostrar prudente.” (Le

Monde. Entretiens avec le Monde. Paris, Ed. La Découverte, 1984, p. 226 apud ARAGÃO. Lucia. Habermas:

filósofo e sociólogo do nosso tempo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002, p. 152). 492 ARAGÃO. Lucia. Habermas: filósofo e sociólogo do nosso tempo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002,

p. 150. 493 MANDEL, Ernest. Capitalismo tardio. Trad. Carlos Eduardo Silveira Matos, Regis de Castro Andrade e Dinah

de Abreu Azevedo. 2ª ed. São Paulo: Nova cultural (Os economistas), 1985, passim.

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195

expressivamente entre 1940 e 1966, a partir daquilo que denomina terceira revolução

tecnológica, bem como a partir de 1967 com o aumento da concorrência internacional.

Destacamos as análises de Mandel sobre Estado e ideologia, em que verifica uma diminuição

na crença da individualidade e competição (características típicas do capitalismo clássico) e

maior crença no desenvolvimento vertiginoso da ciência, elemento central do capitalismo

tardio.

No contexto da Segunda Guerra Mundial e no pós-guerra, verificam-se as derrotas da

classe operária que possibilitam o aumento da mais-valia pelo fascismo e pela própria guerra,

bem como a acumulação do capital, o avanço da inovação tecnológica, a redução do tempo de

giro do capital fixo e a diminuição do trabalho gasto em produção e industrial, conjunto de

fatores que ocasionam a denominada terceira revolução tecnológica que acaba também por

permitir a reprodução do capital em escala internacional. 494 Sob a ótica estatal, este conjunto

de fatores ocasiona uma ampliação das funções do Estado no âmbito do capitalismo tardio:

É uma consequência de três características importantes do capitalismo tardio:

a redução da rotação do capital fixo, a aceleração da inovação tecnológica e o

aumento enorme do custo dos principais projetos de acumulação do capital,

devido à terceira revolução tecnológica, com seu aumento correspondente de

riscos de atraso ou malogro na valorização dos enormes volumes de capital

necessários a esses projetos. O resultado dessas pressões é uma tendência do

capitalismo tardio a aumentar não só o planejamento econômico do Estado,

como também a aumentar a socialização estatal dos custos (riscos) e perdas

em um número constantemente crescente de processos produtivos. Portanto,

há uma tendência inerente ao capitalismo tardio à incorporação pelo Estado

de um número sempre maior de setores produtivos e reprodutivos às

“condições gerais de produção” que financia. 495

Como consequência, no capitalismo tardio aumentam em quantidade e tamanho as

crises sistêmicas, que devem ser administradas, onde novamente exerce papel de destaque o

Estado. Aí consta uma das contradições e desafios do capitalismo tardio, qual seja, a

equalização da participação do Estado em funções econômicas, sem afetar substancialmente as

condições de mercado referentes à competição e à valorização do capital.

Neste contexto de complexidade econômica e avanço tecnológico, o capitalista clássico,

industrial, é substituído pelos técnicos e financistas. Segundo Mandel, “a crença na onipotência

494 MANDEL, Ernest. Capitalismo tardio. Trad. Carlos Eduardo Silveira Matos, Regis de Castro Andrade e Dinah

de Abreu Azevedo. 2ª ed. São Paulo: Nova cultural (Os economistas), 1985, p. 311. 495 MANDEL, Ernest. Capitalismo tardio. Trad. Carlos Eduardo Silveira Matos, Regis de Castro Andrade e Dinah

de Abreu Azevedo. 2ª ed. São Paulo: Nova cultural (Os economistas), 1985, p. 339.

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196

da tecnologia é a forma específica da ideologia burguesa no capitalismo tardio”. 496 Assim, na

sociedade pós-industrial as próprias crises seriam administradas a partir de soluções técnicas.

Esta racionalidade tecnológica apresenta-se, no ambiente do pós-guerra, como forma

(pseudo)neutra de resolução dos problemas, incluindo das condições socioeconômicas residuais

do capitalismo, contexto em que se destacam os tecnocratas.

No ambiente em comento, verificamos uma zona amortecedora entre sistema e pessoa497

em que os sentidos das ações relevantes para o primeiro são desligados das estruturas pessoais

de sentido e motivação. Neste tocante, torna-se clara a afirmação de Weber de que “toda

dominação expressa si mesma e suas funções por meio da administração”498, de tal sorte que a

associação racional a uma estrutura de dominação será expressada pela burocracia499 e,

galgando legitimidade, pela ação dos tecnocratas.

É no desempenho das funções administrativas que se manifesta a forma de dominação

legal-racional trabalhada por Weber, na qual existe um regulamento administrativo que fixa as

atribuições oficiais dentro de uma hierarquia de mando e subordinação, sempre com o devido

lastro em documentos escritos.

A impessoalidade burocrática acaba por ser, neste tocante, essencial à eficiência. Cria-

se com ela um mecanismo de alienação social, no qual as pessoas não falam em seu nome, vez

que não têm o domínio sobre a situação, i.e., não participam pessoalmente do processo

decisório, mas devem obedecer às ordens emanadas de cima. Assim, o bom funcionamento

administrativo resulta da alienação decorrente da observância de regras (distinção pensamento-

execução). É sabido, ainda, o aspecto fragmentado da burocracia, segundo o qual a cada

funcionário é atribuída uma esfera de competência intransponível, resultando a necessária

alienação com relação ao todo. Diante deste quadro, parece ser evidente sua função de

estabilização social, a partir de uma organização formalizada.

Cumpre-nos destacar que “a ideia de um poder tecnocrático pressupõe a existência de

um agregado social específico, relativamente estruturado e autônomo, unificado em torno de

um patrimônio simbólico próprio, uma herança cultural comum e um destino a ser

496 MANDEL, Ernest. Capitalismo tardio. Trad. Carlos Eduardo Silveira Matos, Regis de Castro Andrade e Dinah

de Abreu Azevedo. 2ª ed. São Paulo: Nova cultural (Os economistas), 1985, p. 351. 497 ARAGÃO, Lucia. Habermas: filósofo e sociólogo do nosso tempo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002,

p. 162. 498 WEBER, Max. O direito na economia e na sociedade. Trad. Marsely De Marco Martins Dantas. São Paulo:

Ícone, 2011, p. 304. 499 “uma estrutura social na qual a direção das atividades coletivas fica a cargo de um aparelho impessoal

hierarquicamente organizado, que deve agir segundo critérios impessoais e métodos racionais.” (MOTTA,

Fernando C. Prestes. O que é burocracia. 6ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 7).

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coletivamente elaborado e compartilhado pelos seus membros.” 500 Este conceito refere-se ao

que comumente denominamos comunidade técnico-científica.

Para Habermas, o que de fato irá distinguir o capitalismo das fases históricas anteriores

é a expansão dos subsistemas e a pressão necessária que isso gera nas formas tradicionais de

legitimação. O ponto crítico encontra-se no grau de “colonização do mundo da vida”, na medida

em que técnica e ciência se tornam as principais forças produtivas, e “elas não servem mais aos

fins de um esclarecimento político como fundamento da crítica à legitimação vigente, mas se

transforma ela mesma em fundamento da legitimidade.” 501 Aí encontraremos a noção de que a

técnica e a ciência assumem o papel de legitimar a dominação. Assim sendo, a questão da

legitimidade aparece vinculada aos modelos de participação no âmbito de uma democracia

deliberativa e de justificação de atos a partir das esferas de conhecimento supostamente neutros.

Cuida-se aí de uma pressão de modernização, ou melhor, de racionalização, que somada

ao desencantamento formam uma crítica às teorias que sustentam a sociedade tradicional,

surgindo novas fontes de legitimação, que reivindicam cientificidade. Neste contexto, a ciência

assume inevitavelmente um papel central no aparato ideológico de dominação.

Neste cenário, o desenvolvimento tecnológico típico do século XX, bem como a

expansão desta lógica ao Estado, torna-o instrumento de resolução de problemas técnicos,

despolitizando as decisões.

E assim se configura uma perspectiva segundo a qual a evolução do sistema

social parece ser determinada pela lógica do progresso científico. A legalidade

imanente deste progresso parece produzir uma pressão objetiva que tem de ser

obedecida por uma política orientada à satisfação de necessidades funcionais.

Quando, no entanto, essa aparência se impõe de modo efetivo, a

recomendação propagandística sobre o papel da técnica e da ciência pode

esclarecer e legitimar por que o processo de formação democrática da vontade

perdeu nas sociedades modernas sua função perante questões práticas e “deve”

ser substituído por decisões plebiscitárias acerca da composição pessoal do

conjunto de administradores. 502

Esta se afigura como a tese central da tecnocracia e que, ainda, possui força justificadora

do poder, afinal, as ciências modernas não só possuem um ferramental apto a criticar as formas

de legitimação tradicionais, mas propõe toda uma ressignificação destes modelos.

500 MARTINS, Carlos Estevam. Tecnocracia e capitalismo: a política dos técnicos no Brasil. São Paulo:

Brasiliense, 1974, p. 42. 501 HABERMAS, Jürgen. Técnica e ciência como “ideologia”. Trad. Felipe Gonçalves Silva. São Paulo: UNESP,

2014, p. 79. 502 HABERMAS, Jürgen. Técnica e ciência como “ideologia”. Trad. Felipe Gonçalves Silva. São Paulo: UNESP,

2014, p. 109.

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Neste contexto, as questões sociais que, na teoria democrática clássica, deveriam ser

resolvidas a partir de consultas populares diretas ou indiretas, apresentam-se como resolvidas

por critérios técnicos, detidos por aqueles que participam de tal comunidade. Assim: “a

expansão gradativa das esferas de ação social submetida aos critérios de controle racional e

científico, constitui uma as tendências mais marcantes da evolução das sociedades capitalistas

nas últimas décadas.” 503 Neste quadro conceitual, o problema social deixa de ser questão

política para ser administrado por especialistas na obtenção e processamento de informações.

Neste ponto assumem os tecnocratas504 papel central. Afinal, no âmbito das sociedades

complexas imersas no capitalismo tardio, podemos dividir três modos de lidar com questões

sociais relevantes505: A primeira maneira, seria tomar como premissa um conceito amplo de

democracia e, portanto, de participação popular nos processos decisórios e tratar as concepções

técnicas de forma pouco complexa, dado o predomínio da vontade popular. A segunda maneira

englobaria um conceito reduzido de democracia, tratando as questões técnicas como de média

complexidade. Neste caso, é possível que as questões sejam discutidas no âmbito de comissões,

porém com legitimidade democrática (ainda que teórica) concedida pelos mecanismos da

democracia indireta. Finalmente, a terceira maneira nos coloca diante de um conceito reduzido

de democracia – por vezes nulo – e de concepções teóricas de alta complexidade a serem

resolvidas com base em argumentos eminentemente técnicos, de tal sorte que as decisões sejam

tomadas sem qualquer respaldo democrático.

Diante disso, apenas a primeira abordagem cumpriria plenamente a premissa

democrática, alinhando as decisões do poder aos efetivos detentores do poder político. Resta

saber, neste caso, quais consequências decorrem da utilização destes modelos, sabendo-se que

a alta complexidade organizacional dos Estados tende a diminuir a possiblidade decisões

503 VELASCO E CRUZ, Sebastião C. Ciência e democracia: notas sobre Jürgen Habermas. In: Revista de Cultura

Vozes, nº 2, ano 71, Vol. LXXI, Vozes: 1977, p. 6. 504 “Importante anotar a diferença entre os tecnólogos e os tecnocratas: Os tecnólogos fazem parte do conjunto dos

recursos humanos disponíveis numa determinada sociedade. Na medida em que esse tipo específico de mão-de-

obra é recrutado, coordenado e posto a funcionar a serviço de organizações públicas e privadas, conviria dizer,

para assinalar esse fato, que tais organizações se apoiam em staffs técnico-científicos e que a sociedade como um

todo depende, para o seu funcionamento, da arregimentação do contingente técnico-científico com que é capaz de

contar. Quando nos referimos, por outro lado, a tecnocratas e tecnocracias, temos em mento um fenômeno de outra

ordem. Nesse caso, não estamos pura e simplesmente mencionando a presença de um contingente técnico-

científico num determinado contexto social; na verdade, estamos sugerindo, no mínimo, que os tecnólogos podem

ser apropriadamente descritos como sendo algo mais a assumiu, ou está em vias de assumir, as funções de uma

elite de poder.” (MARTINS, Carlos Estevam. Tecnocracia e capitalismo: a política dos técnicos no Brasil. São

Paulo: Brasiliense, 1974, p. 18). 505 Esta construção é baseada em: NASCHOLD, Frieder. Democracia e complexidade: teses e exemplos para a

discussão teórica na Ciência Política. In: SENGHASS, Dieter; NARR, Wolf-Dieter; NASCHOLD, Frieder.

Análise de sistemas, tecnocracia e democracia: textos sobre a discussão teórica na Ciência Política Alemã. Rio

de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1974, p. 77.

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democráticas desvinculadas de abordagens técnicas que são tomadas, nesta ótica, como

necessárias. Afinal, a escolha meramente política, neste contexto, deixa de ser livre para se

tornar refém das proposições técnicas, que a limitam. A técnica, em desenvolvimento, substitui

o papel da política e da ideologia; no limite, substitui as pessoas, de tal modo que a regência da

sociedade deixa de ser executada por pessoas e passa a ser conduzida pela técnica, impessoal e

objetiva; trata-se, em suma, de um processo de despolitização das decisões.

É notável, nesta discussão sobre a técnica e a tecnocracia, a visão de Marcuse, para o

qual “o universo totalitário da racionalidade tecnológica é a última transmutação da ideia de

Razão” 506 Neste sentido, irá apontar que:

Diante das características totalitárias dessa sociedade, a noção tradicional de

“neutralidade” da tecnologia não pode mais ser sustentada. A tecnologia

enquanto tal não pode ser isolada do uso que lhe é dado; a sociedade

tecnológica é um sistema de dominação que já opera no conceito e na

construção das técnicas. 507

Neste contexto, a tecnologia, vista como um processo social direcionado do uso da

técnica aparece em um momento posterior ao das consolidações das democracias liberais

resultantes das revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII, das quais resultou o Estado

como síntese daquilo que acima designamos como projeto moderno.

Com efeito, a expansão da racionalidade tecnológica que era evidente para Marcuse na

década de 40 é no séc. XXI visível e irrefutável, num processo gradual do enfraquecimento da

individualidade em detrimento da eficiência e conveniência. Se assim é, assiste razão à Marcuse

ao pontuar que “a busca do interesse próprio agora parece estar condicionada pela heteronomia;

a autonomia aparece como um obstáculo, em vez de estímulo à ação racional”. 508 Para

Habermas, “Marcuse está convencido de que naquilo que Weber chamou de “racionalização”

não se impõe uma “racionalidade” enquanto tal, mas sim uma forma de dominação política

oculta imposta em seu nome”. 509 A grande questão aí é que se Marcuse estiver correto e há, de

fato, uma vinculação entre tecnologia e dominação, não será possível a emancipação se não por

506 MARCUSE, Herbert. O homem unidimensional: estudos da ideologia da sociedade industrial avançada. Trad.

Robespierre de Oliveira, Deborah Christina Antunes e Rafael Cordeiro Silva. São Paulo: EDIPRO, 2015, p. 137. 507 MARCUSE, Herbert. O homem unidimensional: estudos da ideologia da sociedade industrial avançada. Trad.

Robespierre de Oliveira, Deborah Christina Antunes e Rafael Cordeiro Silva. São Paulo: EDIPRO, 2015, p. 36. 508 MARCUSE, Herbert. Tecnologia, guerra e fascismo. Trad. Maria Cristina Vidal Borba. São Paulo: UNESP,

1999, p. 84. 509 HABERMAS, Jürgen. Técnica e ciência como “ideologia”. Trad. Felipe Gonçalves Silva. São Paulo: UNESP,

2014, p. 73.

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meio de uma revolução da própria ciência e da técnica510, questão que vai direto ao âmago do

projeto moderno e cujas possibilidades de superação, segundo Habermas511, acabam por

estarem sempre ancoradas no próprio discurso da modernidade.

De volta ao papel do indivíduo no âmbito da democracia contemporânea, Bobbio nos

faz importante alerta, ao dizer que “tecnocracia e democracia são antitéticas: se o protagonista

da sociedade industrial é o especialista, impossível que venha a ser o cidadão qualquer.” 512

Ora, se a racionalidade tecnológica em expansão mitiga o individualismo e a concepção

kantiana de autonomia, ela acaba por colocar em cheque aspectos fundamentais do projeto

moderno, notadamente a própria noção de sujeito, à qual nos referimos anteriormente como

constructo central da filosofia moderna e que, de fato, será a base para o poder político das

democracias modernas a partir da noção de soberania popular decorrente da justificação

contratualista do Estado moderno. Acabará também por solapar qualquer funcionalidade dos

entendimentos intersubjetivos, posto que a opinião técnica tende a desbalancear e inviabilizar

o consenso válido e, portanto, acaba por minar todas as propostas de justificação do Estado e

da ordem jurídica, tanto as contratualistas, quanto as procedimentalistas.

Assim sendo, ainda que se garanta (e não se dê)513 aos indivíduos seus direitos

fundamentais, aquilo que constitui o centro do projeto político da modernidade, isto é, a

construção do corpo social pelo e para o povo, arruína-se gradativamente a partir de frutos da

própria modernidade, isto é, do avanço da técnica e sua inserção nos modos de produção, bem

como nos centros de decisão política.

6.2 A iminente supressão do sujeito

Fundadas em paradigmas típicos da modernidade, especialmente na posição ocupada

pelo Estado e pelo direito, bem como pela centralidade do sujeito – com exceção de Luhmann

– na formação e concessão de justificação às instituições, as teorias modernas e contemporâneas

sobre a justificação das ordens jurídica e estatal vigentes permanecem desatentas às

transformações sociais verificadas nas últimas décadas e que têm potencial de alterar

510 HABERMAS, Jürgen. Técnica e ciência como “ideologia”. Trad. Felipe Gonçalves Silva. São Paulo: UNESP,

2014, p. 81. 511 HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade: doze lições. Trad. Luiz Sérgio Repa, Rodnei

Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2000, passim. 512 BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Trad. Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Paz e terra, 2000, p.

46. 513 “Aquilo que de bem grade se dá – não requer garantia. Sempre que se requer garantias há referência implícita

à ruptura de confiança”. (PUGLIESI, Marcio. Laís, Galharda e Pavana: por uma sociedade moribunda. In: Revista

Eletrônica Sapere Aude. Ano 1, Vol. 9, abril-2013, p. 2).

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substancialmente as estruturas fundantes do edifício jurídico-político moderno, notadamente no

âmbito do capitalismo tardio.

Sobre o processo político, fundamento último que justificaria não só, num primeiro

momento, a composição do governo, mas o arcabouço simbólico do Estado que representam,

Slavoj Žižek apresenta curiosa comparação:

É fato notório que o botão de “fechar” da maioria dos elevadores é um placebo

sem nenhuma função, colocado ali apenas para nos dar a impressão de que

podemos participar de alguma maneira do processo, aumentando a velocidade

– mas quando apertamos o botão, a porta se fecha exatamente no mesmo

momento que fecharia se tivéssemos apertado apenas o botão do andar que

desejamos, ou seja, sem que o processo seja “acelerado” por apertarmos o

botão de “fechar”. Esse caso extremo de falsa participação é uma metáfora

apropriada para a participação dos indivíduos no processo político “pós-

moderno”. 514

Com efeito, o processo de formação de consensos nas sociedades complexas atuais não

deriva de práticas argumentativas intersubjetivas construídas em ambientes de diálogo isentos

de violências diversas e falhas, mas de acertos, trade-offs, negociatas515 e, quando muito, de

lutas entre grupos que lutam pela imposição de pautas e concretização de projetos.

Assim sendo, naquilo que concerne à formação de consensos a partir da ação

comunicativa habermasiana e sua visão procedimental da democracia, cumpre-nos relembrar a

tradicional crítica acerca da posição e peso dos argumentos daqueles que se posicionam como

interlocutores dos processos de formação dos consensos e, mais, apontar como na atual

democracia há uma ilusão notória acerca da participação do indivíduo como construtor direto

ou indireto dos consensos que cuidam de transformar alguma argumentação em ação

administrativa, por meio de leis e similares.

Com isso intentamos dizer que, na modernidade tardia, a democracia não se faz por

meio de indivíduos, conforme inicialmente formulada, mas sim por esferas intermediárias entre

o indivíduo e os efetivos representantes do poder, o que nos coloca diante da ilusão do indivíduo

soberano – fundamental constructo moderno –, e perante os verdadeiros atores da democracia

hodierna, quais sejam, os grupos de interesse, grupos de pressão, os próprios partidos (que

514 ŽIŽEK, Slavoj. Alguém disse totalitarismo?: cinco intervenções no (mau) uso de uma noção. Trad. Rogério

Bettoni. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 166. 515 Habermas, por sua vez, irá verificar negociações had hoc entre grupos em conflitos a partir de sua filosofia e,

portanto, ver neles uma espécie de “barganha justa”, uma espécie de acordo negociado (Vereinbarung), que

equilibra interesses em conflito. (HABERMAS, Jürgen. Between Facts and Norms: Contributions to a Discourse

Theory of Law and Democracy. Trad. William Rehg. Cambridge, MIT Press, 1998, p. 166).

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seriam também grupos) e, por fim, a própria técnica, como artifício pseudo-neutro que suplanta

a vontade popular.

A partir disso, verificamos que os temas de importância para a sociedade democrática

são discutidos e resolvidos mediante o entendimento estabelecido entre os diversos grupos de

pressão mediante tratativas, acordos e outras formas de negociação pelos quais buscam

estabelecer consensos ou, conforme expõe Bobbio516, trata-se de pacto social referendado por

forças sociais, tais como os sindicatos, ou pactos políticos referendados pelas forças políticas,

os partidos e, em última instância, apareceria a constituição, resultado de um pacto nacional.

Neste sentido, Touraine nos diz que:

Durante muito tempo, a vida democrática organizou-se em volta dos

parlamentares; depois, foi em volta dos partidos que garantiam as ligações

entre exigências sociais e acção política; agora, é no vasto mundo dos media

que se travem os debates que constituem o que está em jogo na acção

democrática. 517

Desta forma, ficaria reduzida a participação do indivíduo como fonte do poder, de tal

sorte que, dentro do contexto comunicativo, a formação dos consensos resultaria da correlação

de forças dentro do próprio parlamento (não necessariamente atreladas ao indivíduo), bem

como, mais atualmente, das agendas propostas e trabalhadas pela mídia. Destaque-se, ainda, a

própria ideia da prevalência dos grupos organizados como forma de viabilizar influência

popular na formulação do direito, reduzindo, portanto, o papel concedido ao indivíduo singular

que, das teorias modernas até Habermas, ainda aparece de uma forma ou de outra como fonte

do poder político:

A democracia social não exprime a vontade do homem empiricamente

insulado, mas referido sempre a uma agregação humana, a cujos interesse se

vinculou. Esses interesses, parcialmente coletivos e em busca de

representação, servem-se na democracia pluralista do Ocidente de dois canais

para chegarem até o Estado: os partidos políticos e os grupos de pressão. 518

516 “De maneira mais geral, com respeito não tanto à relação pessoal ou personalizada entre classe política e

cidadãos, entre governantes e governados, mas à relação entre grandes grupos de interesse ou de poder que

caracterizam uma sociedade pluralista e poliárquica como é a das relações de troca contrapostas às relações de

dominação, de conflitos que se resolvem através de tratativas, transações, negociações, compromissos,

convenções, acordos e se concluem, ou se deseja que se concluam, num pacto social referendado pelas forças

sociais (os sindicatos) ou num pacto político referendado pelas forças políticas (os partidos), ou até mesmo num

pacto nacional referendado pela reforma constitucional.” (BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Trad.

Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Paz e terra, 2000, p. 144). 517 TOURAINE, Alain. O que é a democracia? Lisboa: Instituto Piaget, 1996, p. 159. 518 BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 13ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 460.

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Assim, torna-se evidente um claro predomínio de grupos organizados em detrimento da

ótica liberal do indivíduo soberano e legislador, de tal modo a poluir todo e qualquer processo

comunicativo com vistas a um consenso democraticamente formulado e capaz de, de fato,

possibilitar a confluência de distintas eticidades.

Inobstante o fato de que a formação fática dos consensos, traduzidos em linguagem

jurídica, sejam formados a partir de entendimentos alheios às vontades populares, esta mantém

firme seu poder de chancelar decisões governamentais.

Roma locuta, causa finita – palavras decisivas de autoridade que poderiam

pôr fim a uma disputa, em todas as suas versões, desde “o sínodo da Igreja

decidiu” até “o Comitê Central aprovou uma resolução” e, por que não?, “o

povo deixou clara sua opção nas urnas”...519

Assim, a simples aprovação majoritária, ou conforme os diversos sistemas eleitorais

oportunamente aprovados por políticos eleitos por sistemas eleitorais aprovados por políticos

eleitos, opera a convalidação das decisões tomadas em nome do Estado – e, por vezes, em nome

da técnica –, encobrindo tais decisões com pretensa legitimidade democrática.

Inobstante a gradativa supressão do indivíduo – de centro do poder político na

modernidade para mero partícipe ofuscado e diminuto na modernidade tardia – o neoliberalismo

que embala esta visão concede à subjetividade tratamento específico:

A leitura neoliberal quando alcança o “sujeito”, sem eliminá-lo como em suas

versões mais sofisticadas, vê não o ‘subjectum’, aquele sob o qual se lança o

sentido, mas sim o ‘subjectus’, o submisso, e entende a história como

sequência de submissões e centros de configurações simbólicas: a physis no

mundo grego primitivo sucedida pelo nomos; o Deus da Idade Média; a Razão

no iluminismo e o Mercado na Contemporaneidade. 520

Diante disso, o sujeito burguês, ora formador do todo social a partir do atomismo

político típico da modernidade, afasta-se gradativamente da centralidade do projeto para ser

mero partícipe, isto é, afasta-se da visão kantiana do sujeito autônomo, racional e, portanto,

capaz das condições necessárias para sua emancipação, e passa a figurar como aquele que

recebe ordens – expressas ou tácitas – de como se vestir, consumir e, em especial, se portar

frente a regras que acabam por aparecer como decorrência de sua autonomia política, mas que,

519 ŽIŽEK, Slavoj. Em defesa das causas perdidas. Trad. Maria Beatriz de Medina. São Paulo: Boitempo, 2011,

p. 19. 520 PUGLIESI, Marcio. Laís, Galharda e Pavana: por uma sociedade moribunda. In: Revista Eletrônica Sapere

Aude. Ano 1, Vol. 9, abril-2013, p. 41.

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em verdade, surgem a partir de decisões técnicas despolitizadas ou decorrentes de

entendimentos de grupos dos quais não participa ou concorda.

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205

CONCLUSÃO

Para verificarmos o êxito ou insuficiência das justificações do Estado moderno

propostas desde sua formulação até a contemporaneidade foi necessário trabalharmos a ideia

de justificação inserida dentro de diferentes níveis de articulação do poder político, que

englobaria a legitimidade (aspecto empírico), a legalidade (aspecto normativo) e, por fim, a

justificação (aspecto ético-filosófico).

No plano empírico, temos que a legitimidade está ligada à observância das ordens e

comandos do poder, referindo-se a um fator social de obediência a um governo específico,

dotado de determinadas características que acabam por vincular o indivíduo ao cumprimento

efetivo de suas normas. Não se trata, portanto, de uma legitimação política do Estado, analisado

latu sensu como fenômeno histórico típico da modernidade, tampouco cuida de apresentá-lo

como justo.

A legalidade, por sua vez, refere-se ao aspecto normativo (e, portanto, formal) e, à luz

da teoria positivista, apoia-se na coercibilidade da lei, isto é, na capacidade do Estado em

articular o monopólio do uso da força para garantir o respeito aos seus preceitos. Neste ponto,

ressaltamos que se a articulação da dominação política se limitasse à coercibilidade e ao efetivo

cumprimento das normas, estaríamos concedendo à força simbólica do Estado todo o peso de

sua sustentação. Neste caso, qualquer abalo à sua capacidade de impor regras por meio da força

colocaria todo sistema político em risco. Adicionalmente, verificaríamos uma crescente

necessidade do Estado de reforçar mecanismos de fiscalização e imposição da lei e da ordem

como formas de manutenção de sua dominação.

Assim, verificamos a existência de um terceiro nível de articulação da dominação

política, que aqui denominamos justificação do Estado, de natureza ético-filosófica, e cuja

função consiste em manter coeso e estável o complexo social, dando também o necessário

fundamento para as formas de legalidade e legitimidade mencionadas acima. Trata-se, assim,

de um conceito que abarca os aspectos normativos e fáticos da obediência, realizando um enlace

supralegal de toda estrutura de dominação. Ademais, ao falarmos em justificação do Estado,

temos em análise um conceito que carrega consigo uma carga semântica de justiça, de modo

que não se trata aqui de qualquer explicação da existência das estruturas e institutos políticos e

jurídicos, apontando-os como necessários pragmaticamente, mas de apresentá-los como justos,

isto é, sustentáveis a partir de uma avaliação axiológica qualquer.

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206

Posto isto, realizamos uma abordagem histórico-evolutiva do problema da justificação,

para que nos fosse possível uma compreensão adequada do fenômeno em análise, bem como

para que fossem delineadas as características mais importantes acerca das justificações

verificadas na antiguidade e no medievo, que inevitavelmente figuraram como interlocuções

necessárias às teorias modernas, foco de nosso trabalho.

Nesta empreita, verificamos a noção aristotélica como assentada na natureza gregária

do ser humano, visto como animal político e, portanto, dotado de uma potência inata à

associação política, a qual figurará como único ambiente possível para a realização da

finalidade humana. A vida social, nesta teoria, não consiste em um meio para a realização de

qualquer concepção de bem, mas a própria finalidade do homem enquanto tal, uma vez que a

própria concepção de bem apresenta-se como social, evidenciando o organicismo típico da

antiguidade, não só pela predominância do corpo social frente ao indivíduo, mas por sua

existência prévia a este, sendo o todo anterior e superior às partes, que a ele se subordinam.

Nesta teoria, a sociedade política aparece como necessidade natural decorrente de formações

menores, já dotadas de autoridade e subordinação, estabelecendo a desigualdade natural dos

homens e justificando o exercício do poder político dentro desta conjuntura.

Também ligadas à ideia de necessidade do poder político instituído apresentam-se as

justificações de cunho teológico-religioso, de notável importância no medievo e, com algumas

aparições, também na atualidade. Referem-se a uma forma descendente de justificação do

Estado, especialmente em sua vertente cristã, que apontará todo poder como proveniente de

Deus. O Estado ainda figura como decorrente da natureza humana, sendo notável a influência

do tomismo como uma conciliação dos escritos aristotélicos à teologia cristã. Esta forma de

justificação teve forte impacto durante o Absolutismo monárquico, que cuidava de justificar o

poder dos reis em bases divinas. Tanto a justificação aristotélica, quanto as de cunho teológico-

religioso fundam-se na necessidade natural do status quo e, portanto, apresentam-se como uma

justificação extremamente sólida e dificilmente questionável.

Com a desconstrução da representação aristotélico-medieval do mundo e a conjuntura

política e social em transformação ante à iminente queda do sistema feudal, diminui-se a força

das justificações teológico-religiosas e decompõe-se o Antigo Regime. Neste contexto, emerge

na chamada modernidade a necessidade de uma justificação para o Estado com lastro na

racionalidade típica do Esclarecimento e, portanto, em bases seculares; inobstante se

mantivesse a busca de uma pretensão universal baseada num direito natural suprapositivo, o

qual passaria ele mesmo a ter fundamento racional.

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207

Hobbes será o primeiro responsável por cumprir com este propósito e estabelecer as

bases do pensamento político da modernidade, sistematizando o pensamento contratualista a

partir do experimento mental do estado de natureza e do surgimento do corpo social como

decorrente de um pacto humano; alterará, portanto, toda problemática da sociabilidade humana,

conforme vista até então em perspectiva aristotélica. Trata-se aqui de uma mudança na teoria

política de suma importância para a compreensão do pensamento moderno, qual seja, o

abandono da lógica naturalista aristotélica e do organicismo dela decorrente, para uma visão da

sociedade como decorrente de pacto humano e, portanto, convencional. Se para Aristóteles, a

sociedade política é vista como um fim em si mesma, autárquica, como diria; para Hobbes ela

aparece como mero meio, isto é, instrumento para viabilizar a autoconservação do indivíduo –

única realidade política dada –, que sacrifica sua liberdade natural para sujeitar-se à liberdade

civil. A conversão do status naturalis em status civilis reflete a pendular relação liberdade-

segurança, que ditaria os rumos da filosofia e da prática política de toda modernidade, sem

perder o fôlego na atualidade.

Da supressão da causa final aristotélica como elemento do pensamento político decorre

a lógica mecânica típica da modernidade, baseada apenas em causas eficientes, esvaziando

axiologicamente a natureza humana e introduzindo a incerteza gerada pelo movimento sem

telos predeterminado. A isso se seguirá uma necessidade moderna de se estabelecer, por

mecanismo racionalmente construído, a segurança necessária à convivência, resposta dada pelo

Estado moderno e seu direito positivo.

Como é sabido, o modelo hobbesiano advogava pela manutenção do absolutismo e,

portanto, não recebeu a devida aderência da burguesia em ascensão. Neste tocante, Locke irá

apresentar um modelo contratualista valendo-se dos mesmos instrumentos metodológicos, mas

evidenciando o poder do consentimento e a proteção da propriedade, vida e liberdade como

motivo último da construção do corpo social e, portanto, o Estado como protetor dos direitos

naturais. Daí a importância fundamental dos primeiros diplomas jurídicos formadores do

modernismo jurídico, todos com forte influência lockeana, em especial a Declaração Universal

dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e o Código Civil Napoleônico (1804), este

emblemático pelo tratamento concedido à propriedade.

Rousseau, por sua vez, verificará o contrato como pacto associativo, do qual decorre

uma cidadania ativa dos indivíduos e Kant evidenciará o direito como único fundamento

possível para a garantia da liberdade individual e para aquilo que denomina paz perpétua. A

proteção da propriedade de Locke, a vontade geral de Rousseau e a igualdade pressuposta na

transcendentalidade do sujeito kantiano delinearão as diretrizes constitutivas do Estado

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moderno, cujos diplomas jurídicos fundantes baseiam-se na igualdade formal, especialmente

aquela de contratar; no direito de propriedade como inviolável; e na obediência à lei, conforme

atrelada à soberania popular como conceito determinante de sua justificação.

Como justificação do Estado moderno e de sua ordem jurídica, o contratualismo firma-

se não só na suposta necessidade do Estado como organizador das liberdades em relação, mas

principalmente no conceito de autolegislação, pressupondo uma origem popular dos preceitos

normativos a partir da lógica da representação política e o consequente respeito e obediência às

instituições democrática e autonomamente estabelecidas. Afinal, a coerção assumida

voluntariamente supõe-se justa.

Quanto a esta primeira construção teórica voltada à justificação do Estado moderno,

temos que se supõe suportada por um hipotético pacto livremente firmado por indivíduos

abstratamente livres e iguais, sendo o indivíduo empírico e histórico ignorado, bem como as

relações desiguais entre eles. Neste tocante, o confronto entre a natureza a priori do pacto e a

submissão decorrente da liberdade natural humana centra-se no conceito de sujeito abstrato,

pressuposto dos ordenamentos jurídicos modernos e pedra angular do modelo político

construído. A vontade geral, supostamente uma expressão única da vontade de todos, é vista

como expressão da razão universal e colocada como novo absoluto, ainda que no plano fático

seja caracterizada pela transformação da vontade particular – de grupos – para uma vontade

com pretensão universal. Ressalta-se, neste sentido, que se trata de um pacto fictício que cria

regras reais, de modo que a construção de um Estado real com fundamento num modelo

eminentemente racional figura como problema congênito do Estado moderno, demonstrando a

insuficiência do modelo contratualista como justificador das ordens política e jurídica da

modernidade nascente.

Destaque-se aí nossa crítica ao modelo à luz da autolegislação decorrente do

contratualismo moderno, qual seja, a suposição – salientada no contexto da Revolução Francesa

– de que o poder e a lei brotam da mesma fonte, ou seja, da inalcançável vontade geral, ainda

que no caso da Revolução Americana Arendt busque demonstrá-la como criadora de uma

liberdade política decorrente de um pacto originário do poder, visto como ação coletiva

assumida via promessas mútuas. De toda forma, a natureza pressuposta e abstrata do pacto e

uma construção arbitrária daquilo que supostamente é natural ao humano ocasiona um reflexo

nos preceitos normativos que, meramente formais, confrontam-se com uma latente realidade

social que as luzes da razão insistem em ignorar.

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Utilizando-se do contrato como instrumento metodológico, John Rawls intenta, já no

contexto jurídico-político do pós-guerra, justificar as instituições sociais típicas da democracia

liberal a partir da ideia de um acordo originário, sob o véu de ignorância, cuja racionalidade

supostamente desinteressada trataria de apontar princípios de justiça de aceitação geral,

verdadeiros parâmetros para outorgar às instituições um consenso por sobreposição;

justificando-as, portanto. Nesta teoria, a justificação e estabilidade do sistema decorre de uma

convalidação, bem como de um conformismo acerca da organização da sociedade a partir de

uma aceitação, inclusive daqueles que desfrutam de menor nível de liberdade, de que sua

situação é legítima, vez que há a possiblidade formalmente garantida – e prevista no sistema

legal vigente – de aumentarem seu nível de liberdade. A justificação rawlsiana, neste sentido,

reflete um entendimento mais sofisticado da ideia de autolegislação, apresentando um

equilíbrio decorrente de um consenso sobreposto sobre instituições que observam princípios de

justiça amplamente aceitos pelo procedimento neocontratualista. Demonstra sua insuficiência

não só por partir de uma metodologia sumamente moderna, o contrato, mas também por centrar-

se numa racionalidade de pretensão universal, incorrendo, em suma, nos mesmos erros de seus

antecessores.

Diante das incertezas geradas pela contingência, a teoria dos sistemas de Luhmann irá

apontar estruturas normativas como estabilizadoras de expectativas. Trata-se de uma

neutralização simbólica das expectativas (bem como de expectativas sobre expectativas),

realizada por meio de um processo comunicacional a partir de regulamentos jurídicos. Neste

contexto, aquilo que Luhmann denomina legitimação ocorre como uma consequência da

manutenção da estabilidade gerada a partir de estruturas possíveis do próprio sistema que,

portanto, se autolegitima.

Habermas, por sua vez, apontará que a legalidade não é suficiente para justificar a

dominação política, sendo-nos especialmente útil com seu paradigma procedimentalista do

direito. Em sua visão, o procedimento democrático juridicamente determinado e determinável

será o único responsável pela justificação num ambiente pós-metafísico. O direito, portanto,

tem papel fundamental, posto que figura como o meio pelo qual se cria, procedimental e

democraticamente, os consensos que ensejarão a transformação do poder comunicativo em

poder administrativo, conforme reconhecido pelas estruturas jurídicas postas, traduzindo os

anseios comunicativos periféricos nos termos técnicos reconhecidos pela ciência jurídica.

Trata-se, portanto, de imputar à prática deliberativa num ambiente democrático a forma de

justificar o Estado e o direito, bem como de obter a emancipação humana que encabeça o projeto

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moderno, já que o direito e a política devem ser vistos a partir de uma base de justificação

decorrente da expressão da autodeterminação de cidadãos.

Desta forma, a justificação das normas a que nos debruçamos neste trabalho aparecerá,

para Habermas, não só a partir de sua pretensão de legalidade e, portanto, do efeito coercitivo

que ensejará comportamentos orientados estrategicamente, mas também de sua pretensão de

legitimidade – no sentido do que aqui denominamos justificação – na medida em que alude ao

reconhecimento racional de uma ordem política e jurídica, conforme supostamente fundada em

consensos validos e racionais obtidos num ambiente isento de coação e regulado por

procedimentos típicos de um Estado democrático de direito.

Ainda que Habermas conceda importância à autonomia política, conforme seja expressa

em termos argumentativos e, portanto, voltada ao consenso coletivamente composto, o

princípio do discurso por ele apresentado alinha-se à ideia de autolegislação, típica do

contratualismo dos setecentos, ainda que de forma mais sofisticada.

Com esta visão, Habermas se torna um continuísta do projeto moderno e, portanto, um

interlocutor necessário para o que aqui buscamos demonstrar. Com efeito, o abandono da ação

instrumental e a aposta na ação comunicativa tira a centralidade e individualidade do sujeito

moderno kantiano, mas sua teoria do agir comunicativo não é isenta de críticas. Afinal, a própria

construção do horizonte comunicativo do chamado mundo da vida pode ser construída de forma

enviesada. Ademais, apontamos a influência da força argumentativa dos indivíduos em relação,

conforme conhecimentos técnicos, linguísticos e estruturais específicos daqueles que

participam do processo comunicativo como podem; o que dificultaria a aceitação do idealismo

habermasiano quanto à formação de consensos. Neste tocante, a teoria sistêmico-

construcionista de Márcio Pugliesi utilizada para verificar sujeitos como atmosferas semântico-

pragmáticas, torna o horizonte possível de comunicação limitado à intersecção entre as distintas

atmosferas em relação, afetando o processo comunicativo e, portanto, dificultando, ou até

mesmo impossibilitando, a formação de consensos, a depender das limitações pragmaticamente

verificadas caso a caso.

Assim sendo, a derradeira conclusão de nossa tese vai no sentido de apontar as tentativas

de justificação do Estado moderno e sua ordem jurídica como assentadas sobre bases

semelhantes, notadamente na ideia de formação de uma vontade única a partir da multiplicidade

típica da modernidade (o que aparece como vontade geral e, posteriormente, como consenso)

e, consequentemente, na ideia de autolegislação, de monumental relevância desde o início da

modernidade como forma de justificar toda e qualquer lei ou governo que decorra direta ou

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indiretamente de procedimentos apontados como democraticamente formulados e

implementados.

A insuficiência dos modelos contratualistas e procedimentalistas não decorre somente

das críticas supramencionadas, mas também da dificuldade de articular o problema da

justificação no âmbito do chamado capitalismo tardio, caracterizado pela repolitização da

econômica a partir do aumento da participação do Estado no planejamento econômico e no

desempenho de funções mercadológicas que no âmbito do capitalismo industrial eram

desempenhadas pelo mercado, conforme disposto nas teorias liberais clássicas. Ademais,

caracteriza-se o capitalismo tardio também pelo desenvolvimento vertiginoso de novas

tecnológicas e do papel social desempenhado pela ciência, cuja aplicação à indústria e à

administração do Estado gera uma redução no tempo da produção e na utilização de recursos

humanos e, consequentemente, uma maior necessidade de investimento em ciência e

tecnologia, num ciclo de desenvolvimento e otimização. Neste contexto, aumentam em

quantidade e tamanho as crises sistêmicas, que devem ser administradas, onde novamente

exerce papel de destaque o Estado, contrastando com as teorias liberais clássicas englobadas

pelo projeto moderno.

Referido desenvolvimento transcende o campo econômico e alcança a política,

revestindo de tecnicidade as decisões administrativas que, portanto, se despolitizam. A

racionalidade tecnológica – ampliação da ação instrumental que buscou modificar Habermas –

alcança a esfera estatal e limita o papel do indivíduo como detentor de direitos ativos de

cidadania. A técnica, então, substitui o papel da política e da ideologia na perspectiva de

crescimento dos modelos tecnocráticos, tolhendo qualquer possibilidade de entendimento

intersubjetivo em virtude do peso do argumento de autoridade ou da necessidade técnica,

afetando qualquer proposta de justificação do Estado fundada em premissas contratualistas ou

procedimentalistas.

Na chamada modernidade tardia, caracterizada por esta nova forma de capitalismo, a

democracia abandona o romantismo dos contratualistas – especialmente aquele de Rousseau –

e se realiza por meio de esferas intermediárias entre o indivíduo e o governo, tais como grupos

de pressão e de interesse, incluindo os próprios partidos, bem como pela racionalidade técnica,

ambos ocasionando o ofuscamento da vontade popular e diminuindo a posição do indivíduo

como centro do projeto político moderno.

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Desta forma, o indivíduo, apontado pela filosofia moderna como verdadeiro detentor do

poder político a partir da soberania popular – e que cuida de fornecer a justificação do Estado

moderno a partir da ideia de autolegislação – será forçosamente suplantado pela racionalidade

técnica e diluído na tecnologia das novas mídias sociais. O centro do projeto político moderno,

isto é, a racionalidade autônoma do sujeito e suas funções ativa e passiva como cidadão,

encontram-se, portanto, solapados econômica e politicamente pelo desenvolvimento

tecnológico.

Quanto ao controverso papel da tecnologia no contexto tardio do projeto moderno,

embora Marcuse veja nela uma dominação enrustida, nós verificamos também uma

potencialidade de emancipação, na medida em que sua expansão poderá viabilizar uma efetiva

confluência da tecnologia com a participação democrática, que poderá ser empiricamente

possível em virtude de avanços tecnológicos que, ao contrário do que previa George Orwell,

poderão eventualmente ser utilizados pelo povo e não necessariamente contra este.

Diante disso, o sujeito burguês, ora formador do todo social a partir do atomismo

político típico da modernidade, afasta-se gradativamente da centralidade do projeto para ser

mero partícipe, isto é, afasta-se da visão kantiana do sujeito autônomo, racional e, portanto,

capaz das condições necessárias para sua emancipação, e passa a figurar como aquele que

recebe ordens – expressas ou tácitas – de como falar, vestir, consumir e, em especial, se portar

frente a regras que acabam por aparecer como decorrência de sua autonomia, mas que, em

verdade, surgem a partir de decisões técnicas despolitizadas ou decorrentes de entendimentos

de grupos dos quais não participa ou concorda.

Adicionalmente, a popularização da internet e das mídias sociais altera a materialidade

das relações e termina de liquidar o já debilitado capitalismo industrial, base econômica dada

para todas as teorias de justificação típicas da modernidade que, portanto, não possuem os

elementos necessários para responder aos anseios sociais sobre o papel da ciência e da

tecnologia no âmbito da produção e da democracia.

Diante desta complexidade, verificamos a insuficiência dos modelos de justificação do

Estado moderno, vez que não possuem o poder de articulação necessário para dar conta da

realidade em constante transformação, o que pode abalar a efetividade do Direito, bem como

acarreta as noticiadas crises de representação, que nos termos aqui trabalhados apresentam-se

como crises de justificação, ainda que as leis e a composição do governo tenham decorrido de

procedimentos democraticamente gerados e aplicados, remetendo-nos à problemática da

circularidade da justificação do Estado e do direito, cujas tentativas de imposição tencionam o

projeto moderno, podendo figurar como vetor determinante de sua ruptura.

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