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1 CURSO DE FILOSOFIA MEDIEVAL PROF. MARCOS AURÉLIO FERNANDES

PROF. MARCOS AURÉLIO FERNANDES€¦ · é a “história da filosofia medieval”? A história do ocidente medieval provém do fluxo de três tradições, a grega, a hebraica e a

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CURSO DE FILOSOFIA MEDIEVAL

PROF. MARCOS AURÉLIO FERNANDES

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Unidade I: No limiar da Idade Média

A filosofia não se dá sem ancestralidade. Para se compreender a filosofia é

preciso um diálogo com a sua história, com o seu passado. É que,

paradoxalmente, as forças de futuro do pensamento se encontram recolhidas,

no pensado e no impensado, do passado. Também a filosofia medieval teve

uma ancestralidade e só pode ser compreendida, se levarmos em conta esta

ancestralidade. Para reconhecer esta ancestralidade, é preciso que

perguntemos: quais são as fontes do grande manancial de pensamento que

é a “história da filosofia medieval”?

A história do ocidente medieval provém do fluxo de três tradições, a grega,

a hebraica e a romana. Atenas, Jerusalém e Roma são os centros do mundo

antigo, a partir de cujas heranças se o ocidente medieval irá se constituir.

Atenas e Jerusalém são dois mundos heterogêneos e irredutíveis um ao outro.

Um, é o mundo do pensamento, que experimenta a ousadia do

questionamento do ser e a sempre iminente angústia ontológica do nada. O

outro é o mundo da fé, que experimenta a adesão confiante e firme à

revelação de Deus e a continuamente possível tentação da infidelidade.

Porém, no cristianismo dos primeiros séculos, primeiramente, e na Idade

Média, depois, estes dois mundos irão se encontrar, só se separando

novamente no início da modernidade.

No limiar da Idade Média encontram-se dois luminares da era patrística do

cristianismo, que são as duas maiores autoridades para os pensadores

medievais latinos. O primeiro, Agostinho, pertence ele mesmo ao mundo

latino. O segundo, Dionísio, pertence ao mundo grego.

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Aula 01 - Agostinho

O horizonte para uma hermenêutica do pensamento de Agostinho se

traça a partir do espírito de seu tempo e de sua busca existencial.

Agostinho vive em si mesmo o ocaso do mundo antigo. Ele é um

homem que prepara a passagem da antiguidade para uma nova

época, aquela que nós, modernos, chamamos de “medieval”. A nota

fundamental, que dá o tom a todo o seu pensamento é a quaestio

Dei (a busca de Deus), que, em seu entendimento é a própria busca

da verdade e da felicidade. Seu pensamento é marcado por um forte

cunho existencial. Em cada texto de seus escritos ressoa a

facticidade da existência humana vivida em primeira pessoa (eu),

diante de um Tu (Deus), e em comunhão com um nós (os outros).

Por isso, sua linguagem é, basicamente, a da “confissão”. Confessar

é, aqui, trazer à fala a alegria da libertação, que o homem

experimenta na busca e no encontro da verdade. Por isso, a

confissão é, em Agostinho, canto de louvor. A própria miséria da

existência humana, experimentada no horizonte desta libertação, se

transfigura. Até mesmo a culpa se torna “feliz culpa”, quando o

homem experimenta a graça de uma verdade libertadora. E esta

verdade libertadora Agostinho experimenta no horizonte da fé

cristã. É, pois, a partir deste horizonte hermenêutico que Agostinho

se apropria criticamente da filosofia grega, tornando-se um dos

maiores pensadores de todos os tempos.

1.1 O itinerário de Agostinho e o espírito de seu tempo

Aurélio Agostinho, em seu itinerário biográfico, marcado pela busca da

verdade, se confronta com as diversas possibilidades de realização humana,

presentes em seu tempo. Nascido no ano de 354 na Numídia (território a

oeste de Cartago), em Tagaste, como filho de pai romano e pagão (Patrício)

e de mãe africana e cristã (Mônica), Agostinho vive em sua própria carne o

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encontro de duas culturas que se mesclam naquela região do norte da África:

a cultura púnica autóctone e a cultura romana dominante. Vive também em

sua alma uma divisão: a luta entre o apelo sensual (herdado do pai) e o apelo

espiritual (herdado da mãe). Apesar de sua mãe ser cristã, Agostinho não

adere à fé em Cristo, a não ser em idade adulta, com o batismo no ano de

387. O itinerário espiritual de Agostinho, até chegar à fé cristã, expressa as

várias tendências culturais de seu tempo. Na escola, recebeu uma formação

baseada na leitura dos autores latinos e voltada, sobretudo, para a linguagem

(Cícero, Vergílio, Horácio, Ovídio e Catulo) e para a história (Salústio e Lívio).

O encontro com a filosofia se deu a partir da leitura do diálogo Hortênsio de

Cícero, uma exortação à filosofia, entendida como “amor à sabedoria”. Ali

Agostinho se depara com um pensamento que ele fará seu por toda a vida:

que todo o homem quer ser feliz; que a verdadeira felicidade não consiste

em fazer o que se quer, mas em querer e fazer o bem, ou seja, que a

verdadeira felicidade se encontra na virtude, que torna o homem bom e suas

obras boas.

Em busca da verdade e da verdadeira felicidade, e em meio às lutas com sua

sensualidade – que se ameniza um pouco com o encontro de uma

companheira, com quem ele tem um filho, Adeodato (Dado por Deus) –,

Agostinho adere ao maniqueísmo. No dualismo ético e metafísico

característico desta forma sincrética de gnosticismo – que mistura

cristianismo gnóstico, zoroastrismo, hinduísmo e budismo – Agostinho

encontra um reflexo de sua própria alma dividida. O pertencimento a esta

forma de gnosticismo se dava em três estágios: os hýlicos (materiais), os

psíquicos – também chamados de auditores (ouvintes) – e os pneumáticos

(espirituais) ou eleitos. Agostinho chegou ao grau de ouvinte. No

maniqueísmo ele encontrou uma explicação (provisória) para o problema do

mal. Segundo esta doutrina de Manés (ou Mani), a realidade se divide em

dois princípios conflitantes: o do bem – espiritual – e o do mal – a matéria.

Entretanto, no maniqueísmo Agostinho não encontrou uma síntese de fé e

razão. De fato, sua crença era mantida apesar de muitas perguntas de sua

razão ficar sem resposta. Após o encontro em Cartago com um líder

maniqueu, chamado Fausto, que não conseguiu responder às suas perguntas,

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que se relacionavam especialmente com a astrologia e com a concepção

materialista de Deus e da alma, Agostinho abandona o maniqueísmo.

Após esta frustração, ele busca refúgio no ceticismo da nova academia. Tende

para os filósofos acadêmicos, que em todas as questões promoviam a dúvida

e afirmavam que o homem não pode apreender nenhuma verdade com

certeza absoluta. Todo conhecimento era apenas provável. Para eles, a

felicidade se encontrava na conquista da ataraxia (imperturbabilidade da

alma), que se alcança através do exame crítico de toda tese (skepsis) e da a

suspensão de todo o juízo (epoche). Já Cícero tinha adotado o ceticismo como

orientação de vida. Entretanto, o ceticismo de Agostinho não chegou a ser

uma postura generalizada – ele não abandonou a fé em Deus, por exemplo.

Tratava-se, para ele, mais de uma postura crítica em matéria de

conhecimento.

Por fim, porém, Agostinho duvida da própria postura de duvidar de tudo. A

superação da fase cética vem com a leitura de escritos platônicos, mais

propriamente, de escritos neoplatônicos, como os de Plotino e Porfírio, em

geral na tradução de Mário Vitorino, quando Agostinho já se encontrava na

Itália. Agostinho, de fato, tinha deixado Cartago no ano de 384; e, após um

ano em Roma, conseguira o cargo de mestre de retórica junto ao palácio do

Imperador em Milão. O neoplatonismo ajuda-o a fazer uma passagem do

dualismo para o monismo metafísico. De fato, o pensamento neoplatônico

encara a realidade como constituída a partir de um único princípio:

justamente o princípio do Uno. Para o platonismo o mal não é uma realidade

em si, que nega e se rivaliza com o bem. Ontologicamente, o mal é uma

privação do bem, o que equivale a dizer: uma privação do ser. O

neoplatonismo deu a Agostinho também a possibilidade de um conhecimento

não materialista de Deus (o Uno, o Bem) e da Alma. Ademais, a doutrina do

Nous (Intelecto) possibilitou a Agostinho uma aproximação à especulação

acerca do Logos (Verbum = Verbo) desenvolvida pelo cristianismo desde

Justino e os alexandrinos (Clemente, Orígenes), a partir do Prólogo do

Evangelho de João e da concepção judaico-helenista acerca da Sabedoria

(Sophia) de Filo de Alexandria. Segundo esta tradição, Cristo é o Logos, isto

é, o Deus junto de Deus, a potência divina da Sabedoria eterna com a qual

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Deus cria todas as coisas, a Palavra da Vida e da Verdade, o mestre universal,

que ilumina todo o homem que vem a este mundo. Segundo a leitura da

história desenvolvida por esta tradição, gregos e judeus foram presenteados

com pedagogos, que os preparam para o encontro com este Mestre universal.

Os gregos tiveram na filosofia o seu pedagogo, assim os judeus tiveram a

Torah (Lei, Instrução). Mas, ambos, judeus e gregos, na plenitude dos

tempos, puderam conhecer o próprio Mestre, com a encarnação do Logos,

em Jesus Cristo. Ora, nos escritos neoplatônicos Agostinho encontrou

pensamentos muito semelhantes àqueles do Prólogo de João. Mas não

encontrou que “o Logos se fez carne e habitou entre nós”. O encontro com o

Logos encarnado, com Cristo, Agostinho só faz quando, em Milão, conhece o

bispo Ambrósio, e passa a ler as cartas de Paulo. De início se aproxima de

Ambrósio unicamente pelo interesse de aprender algo mais da arte retórica.

Mas depois, começa a se interessar pelo conteúdo dos discursos de Ambrósio.

Além da presença imponente de Ambrósio e da leitura das cartas de Paulo,

outros fatores estimularam Agostinho a dar o passo decisivo, ou melhor, a

fazer o salto para a fé: o testemunho da conversão de Mário Vitorino, o

tradutor platônico, e as histórias sobre o monge egípcio Antônio (ou Antão),

que heroicamente combateu o bom combate da fé contra as insídias da sua

sensualidade e da tentação diabólica. Assim, em 387, Agostinho se fez batizar

por Ambrósio, juntamente com seu filho Adeodato. O itinerário espiritual de

Agostinho, pois, vai do sensualismo maniqueu ao cristianismo, passando pelo

ceticismo e pelo platonismo. Na fé cristã, portanto, a busca de Agostinho pela

verdade e pela felicidade – por Deus – encontrou um firme ponto de apoio,

uma resposta ao seu coração inquieto: “porque nos criastes para Vós e o

nosso coração vive inquieto, enquanto não repousar em Vós” (Confissões I

1) (AGOSTINHO, 1988, p. 23).

O tempo que imediatamente antecede e sucede ao seu batismo é o mais

fecundo em escritos filosóficos. Em 386 Agostinho forma com seus amigos

uma comunidade de vida, dedicada ao estudo e à oração, num retiro chamado

Cassicíaco, junto de Milão. Ainda na Itália, ele escreve um opúsculo contra o

ceticismo (Contra academicos); um sobre a felicidade (De beata vita); outro

sobre o lugar do bem e do mal na ordem universal criada por Deus (De

ordine); e um diálogo íntimo (“de si consigo mesmo”) sobre a investigação

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das coisas inteligíveis e sobre a imortalidade da alma (Soliloquium), tema que

é retomado em outros textos desta fase, como o De imortalitate animae (Da

imortalidade da alma) e o De quantitate animae (Da grandeza da alma),

sobre a relação entre alma e corpo. Ainda é deste período o projeto de

escrever sobre as ciências da época, cujas raízes remontavam ao tempo dos

sofistas (séc. IV a.C), ou seja, as disciplinas das sete artes liberais (artes

liberales: o trivium – gramática, dialética e retórica – e o quadrivium –

geometria, música, aritmética e astronomia). Deste projeto, Agostinho

conseguiu realizar somente a redação em parte de um escrito sobre a

gramática e sobre a música. De volta a Tagaste, em 388, Agostinho ainda

escreve o diálogo De Magistro (Do mestre), sobre a linguagem e a educação,

e termina o livro De vera religione (Da verdadeira religião), sobre a relação

entre a fé e o saber.

Na fé cristã Agostinho considera ter encontrado a verdadeira religião, o

caminho universal da libertação da alma, procurado pelos filósofos

neoplatônicos, e, na verdadeira religião, a verdadeira filosofia, pois, amar a

sabedoria é, em última instância, amar a Deus. A partir de então os textos

de Agostinho expressam sempre mais o empenho de buscar uma

compreensão, movendo-se ao interno da própria fé: credo ut intelligam –

creio para compreender, é o seu mote. Surge, então, um grande número de

escritos exegéticos, onde Agostinho recorre muito ao método alegórico

promovido por Orígenes, escritos sobre a fé e sobre a moral cristãs, bem

como escritos polêmicos contra as doutrinas heréticas de seu tempo (os

próprios maniqueus, os donatistas e os pelagianos). No campo da dogmática

pode-se destacar o seu tratado De Trinitate (Da Trindade), onde Agostinho

considera a alma humana em suas potências – memória, intelecto e vontade

– como imagem da Trindade. Ainda é importante a discussão sobre a relação

entre graça, pecado e natureza, suscitada com o pelagianismo, que pregava

a possibilidade da auto-salvação do homem, negando o pecado original e a

necessidade da graça divina. Para Agostinho, a natureza humana não se

encontra em sua pureza originária, mas se acha decaída e degenerada, o que

impossibilita ao homem salvar-se pelas suas próprias forças. Assim como o

pecado degenera a natureza humana, a graça a regenera e a resgata. A

consideração sobre a liberdade humana encontra-se, pois, sempre no centro

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da tensão dialética entre pecado e graça. A liberdade não se encontra sem a

verdade. Ela é fruto sempre de um processo de libertação. Nesta libertação,

porém, o empenho humano não é tudo. Embora não se realize a libertação

sem empenho, a libertação mesma é sempre mais do que empenho humano:

é graça divina. A liberdade é, pois, dom de uma conquista, que exige do

homem o melhor de sua boa vontade e que, no entanto, supera o próprio

homem, como evento de gratuidade divina.

De libertação e de liberdade falam, enfim, as duas principais obras de

Agostinho. As Confissões proclamam a alegria da libertação nas vicissitudes

da sua história pessoal. A Cidade de Deus investiga os vestígios da ação

libertadora de Deus na história da humanidade como um todo, que, à luz da

fé se torna ela mesma história de salvação, isto é, história de libertação

operada pela revelação da verdade de Cristo e com a instauração do reino de

Deus. As Confissões foram escritas como um canto novo do homem novo,

um louvor à grandeza e à misericórdia divina que socorre o homem em sua

pequenez e miséria. Já a Cidade de Deus foi escrita a partir do ano de 410,

por ocasião do saque de Roma, por Alarico, rei dos Godos. A violação da

“Cidade eterna” (Roma) foi um abalo no mundo da época. Os pagãos diziam

que o responsável pela fraqueza de Roma era o cristianismo. Enquanto Roma

fora governada sob a proteção dos deuses pagãos, ela dominou o mundo;

agora que Roma era governada sob a proteção do Deus cristão, o Deus de

um crucificado, ela se enfraquece e é dominada pelos bárbaros. Agostinho

defende, nesta obra, o cristianismo desta acusação. Roma fora grande não

por causa dos deuses pagãos e sim por causa da moralidade herdada dos

primeiros romanos. Do mesmo modo, sua queda não era devida ao Deus

cristão e sim à corrupção daquela mesma moralidade, que se instalara nas

instituições do Império. Esta defesa dá a Agostinho também a ocasião de

pensar o sentido da história à luz da fé cristã. Surge, assim, a primeira

teologia da história, que reúne um vasto saber enciclopédico e historiográfico

sobre a história antiga e uma forte especulação filosófica sobre o sentido da

historicidade da vida humana como tal. Agostinho morre em 430, com os

Vândalos às portas da cidade de Hipona (Hippo Regius, atual Annaba, na

Argélia), onde ele fora bispo desde o ano de 397. Ele morre, pois, vendo o

fim de uma potência mundial, que parecia inabalável: o Império Romano.

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1.2 A apropriação crítica da filosofia grega à luz da fé cristã

O sentido do pensamento de Agostinho e de sua apropriação crítica da

filosofia grega no horizonte da fé cristã, talvez possa ser elucidado com

palavras daquele que o doutor de Hipona considerava o maior de todos os

filósofos, Platão. No Fédon (85 C-D), denomina sua investigação filosófica de

“segunda navegação” (deuteros plous). Na linguagem marinheira do tempo,

“segunda navegação” era aquela que se fazia com os próprios remos, sem a

ajuda do vento. Para Platão, a primeira navegação era aquela que os

primeiros filósofos tinham empreendido com o pensamento em torno do ser

como physis (natureza). A segunda navegação, porém, feita com a ajuda da

dialética, era aquela que ele mesmo empreendia com o pensamento em torno

do ser como idea (ideia, forma essencial) e que portava ao vislumbre do

mundo inteligível, para além do mundo sensível, portanto, ao que nós

chamamos de conhecimento meta-físico. Desde Platão, toda a história

ocidental fora condicionada pelo pensamento e conhecimento metafísico, por

esta sua “segunda navegação”. O próprio Platão, no entanto, percebeu os

limites desta forma de investigação, feita com os recursos da razão finita. A

filosofia é como uma jangada, que o filósofo usa, para atravessar o mar da

vida, na falta de um barco sólido, que só uma revelação divina poderia dar:

De fato, tratando-se destes assuntos (a saber: relacionados

com o sentido da vida e da morte), não é possível se não fazer

uma destas coisas: ou aprender de outros qual seja a verdade;

ou então descobri-la por si mesmos; ou ainda, se isso for

impossível, aceitar, entre os raciocínios humanos, aquele que

for melhor e menos fácil de se confutar, e sobre este, como

sobre uma jangada (epi skhedias), afrontar o risco da travessia

do mar da vida (diapleusai ton bion); a menos que se possa

fazer a viagem de modo mais seguro e com menor risco

(asphalesteron kai akindynoteron) sobre uma nave mais sólida

(epi bebaioterou okhematos), ou seja, confiando-se a uma

divina revelação (epi logou theiou tinos). (Platão, Fedon, 85 c-

d tradução nossa). (cfr. PLATONE, 1997, p. 198-199).

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Ora, Agostinho não hesitou em confiar-se à revelação divina que ele

encontrou na sabedoria da fé cristã. O lignum crucis – o lenho da cruz –

tornou-se para ele o barco sólido e seguro para aportar no porto estável do

ser, superando, assim, as instabilidades do mar do vir a ser. Como se fosse

uma ressonância ao discurso de Platão sobre a segunda navegação, as

palavras de Agostinho declaram:

A partir do momento que se vê que todas estas coisas (a saber:

do mundo) são mutáveis, o que é aquilo que é, senão o que

transcende todas as coisas que são e não são neste mundo?

Quem, pois, compreenderá isto? Ou quem, de qualquer

maneira, que tenha empenhado as forças da sua mente para

poder compreender tanto quanto seja possível aquilo que é, é

capaz de chegar àquilo que, de qualquer maneira, com sua

mente consegue colher? É como se alguém visse de longe a

pátria, mas houvesse no meio o mar que o separa dela. Ele vê

onde deve ir, mas lhe falta o meio com que ir. Assim é para nós,

que queremos chegar àquela nossa estabilidade, onde aquilo

que é é, porque este somente é sempre assim como é. Há no

meio o mar deste mundo através do qual devemos ir, enquanto

muitos nem mesmo veem onde devem ir. Por isso, a fim de que

existisse também o veículo com que ir, veio de lá Aquele ao qual

queremos ir. E o que ele fez? Preparou o lenho com o qual

pudéssemos atravessar o mar. De fato, ninguém pode

atravessar o mar deste mundo, se não é conduzido pela cruz de

Cristo. A esta cruz poderá agarrar-se, às vezes, mesmo aquele

que tem os olhos doentes. E quem não vê onde deve ir, não se

separe da cruz, e a cruz o conduzirá (Agostinho, Comentário ao

Evangelho de João: II, 2 tradução nossa). (cfr. AGOSTINHO,

2000, p. 493-495).

Agostinho tinha consciência daquilo que Paulo proclamara (1Cor 1, 17 – 2,

16): que a sabedoria da cruz é loucura para aqueles que buscam a sabedoria

deste mundo (para os gregos) e vice-versa, que a sabedoria deste mundo é

loucura para aquele que vê na cruz a sabedoria de Deus. Entretanto, ele

postula que a sabedoria que a razão busca encontra-se, em última instância,

na “loucura da cruz”. A verdadeira filosofia se encontra na revelação do

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mistério da cruz. Este pensamento já tinha emergido em Justino e em

Clemente de Alexandria, por exemplo. Antes de Agostinho, já outro insigne

autor da patrística latina tinha salientado a heterogeneidade, para não dizer

a discrepância e a “inimizade” entre a busca filosófica da razão humana e a

revelação divina: Tertuliano (séc. II-III), um dos apologistas do cristianismo

diante dos ataques da cultura dominante. Com palavras inflamadas e com

uma retórica impressionante, feita de antíteses e de paradoxos, diz

Tertuliano:

O que tem o filósofo e o cristão em comum? O discípulo da

Grécia e o discípulo do Céu? O pretendente à fama e o

pretendente à vida eterna? O fazedor de palavras e o realizador

de ações? O destruidor e o edificador das coisas? O amigo e o

inimigo do erro? O falsificador da verdade e o seu

reconstituidor? O seu ladrão e o seu vigia? (Apologia 46). O que

tem em comum Atenas e Jerusalém, a Academia e a Igreja, os

heréticos e os cristãos? (Da Prescrição 7). O filho de Deus foi

crucificado: não dá vergonha, porque é vergonhoso. E o filho de

Deus morreu: é credível, porque improvável. E foi sepultado: é

certo, porque impossível (Da Carne de Cristo 5 – tradução

nossa). (Apud ÜBERWEG, 1927, p. 50).

Tertuliano acentuou ao máximo a oposição entre fé e razão. Agostinho

reconheceu a heterogeneidade entre a razão e a fé, mas não acentuou esta

oposição, antes buscou conciliá-las numa síntese bem peculiar, onde a fé

assume sob si a busca filosófica da razão e funciona como instância crítica

desta. Na Idade Média, o que venceu foi a posição de Agostinho, apesar de

sempre ter havido tendências fideístas, como a de Pedro Damião, no século

XII, por exemplo. Esta união de coisas tão distintas, filosofia e fé, permite,

na visão de Agostinho, uma navegação mais segura no mar desta vida, para

aportar no porto do ser, isto é, na estabilidade d’Aquele que é o que é,

d’Aquele que é sempre assim como é, conforme a revelação do nome divino

a Moisés: Ego sum qui sum: qui est, misit me ad vos (Eu sou quem sou:

quem é, mandou-me a vós) (Êxodo 3, 14). É assim que a metafísica, o

empenho autônomo da investigação racional que questiona o ser, e a

teologia, o empenho da busca da compreensão da fé, que se volta para o

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Deus de Jesus Cristo, se unem. Esta união marcará o destino da filosofia até

o fim Idade Média.

O programa de investigação filosófica em Agostinho se resume nesta frase:

Deum et animam scire cupio. Nihil plus? Nihil omnino (Desejo conhecer Deus

e a alma. Nada mais? Absolutamente nada mais) (Solilóquio I 2, 7). Portanto,

ao preceito do oráculo délfico (Gnote seauton – conhece-te a ti mesmo!),

Agostinho acrescenta o conhecimento de Deus. Nesse duplo conhecimento,

pois, está o essencial da investigação filosófica agostiniana. De que adianta

ao homem o conhecimento do mundo inteiro, se ele ignora a si mesmo e a

Deus? Por isso, das três partes da filosofia, a saber, a física, a lógica e a ética,

a mais importante é, nesta perspectiva, a ética. A física, ou filosofia natural,

só vale se conduz ao conhecimento da causa primeira; a dialética, ou filosofia

racional, é apenas instrumental, uma disciplina que ensina a aprender e a

ensinar e que investiga de que modo o homem pode conhecer a verdade; já

a ética, ou filosofia moral, é o que mais importa, pois ela é a busca do bem

maior para o homem, ou seja, da felicidade, que consiste na fruição de Deus

(frui Deo), o Sumo Bem, o Bem puro e simples. O sentido do filosofar está

na própria busca da felicidade por parte do homem: nulla est homini causa

philosophandi, nisi ut beatus sit (não há nenhuma outra causa que leva o

homem a filosofar, a não ser a busca de ser feliz) (A Cidade de Deus XIX 1).

Na verdade, a filosofia natural, a racional e a moral, constituem um tríplice

caminho, que reconduz o homem a Deus, pois Deus é causa subsistendi

(causa do subsistir), ratio intelligendi (razão do entender) e ordo vivendi

(ordem do viver) (A Cidade de Deus VIII 4).

É a partir dessa perspectiva que Agostinho valora a filosofia grega. O

conhecimento dos filósofos jônicos e itálicos da natureza só tem valor

enquanto conduz ao conhecimento (vago ainda) de uma razão divina a

governar o cosmo. Sócrates merece atenção, pois mudou o foco da física para

a ética. Platão é o maior dos filósofos. Agostinho conta Aristóteles entre os

mais antigos platônicos, apesar de este ter fundado a sua própria “seita”, a

dos peripatéticos; e considera-o “homem de excelente engenho”, superior a

muitos dos platônicos, mas inferior em estilo a Platão (Cfr. A Cidade de Deus

VIII 12). Platão e os filósofos que o seguem, como Plotino, Porfírio e Jâmblico,

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se destacam pelo empenho metafísico (transcendental). Para Agostinho, eles

se encontram na sua mesma dinâmica, ou seja, no movimento do quaerere

Deum (buscar Deus): cuncta corpora transcenderunt quaerentes Deum;

omnem animam mutabilesque omnes spiritus transcenderunt quaerentes

summum Deum (transcenderam todos os corpos, em busca de Deus;

transcenderam também todas as almas mutáveis e os espíritos, em busca do

sumo Deus). (A Cidade de Deus VIII 6). O neoplatonismo teria até mesmo,

segundo Agostinho, vislumbrado algo da Trindade. De fato, Agostinho

entrevê uma analogia entre a tríade ser, entender, viver (esse, inteligere,

vivere) ou a tríade Uno (hen), Intelecto (Nous) e Alma do mundo (Psyché),

com o mistério trinitário do Pai, Filho e Espírito Santo. O neoplatonismo teria

ainda o mérito de propor ao homem a busca da purificação, da iluminação e

da visão de Deus e um ideal de virtude maior, que consiste no ser semelhante

a Deus (A Cidade de Deus IX 17).

Entretanto, movidos pela soberba, os filósofos neoplatônicos não foram

capazes de aderir ao Verbo encarnado: ao Deus que se esvaziou a si mesmo,

fazendo-se semelhante ao homem e tornando-se servo de todo o homem, a

ponto de, por amor aos homens, sofrer a morte de Cruz. De fato, estes

filósofos mostraram-se vãos, ao aderir aos sacrifícios pagãos e ao culto dos

demônios (entendidos como mediadores entre os deuses e os mortais), como

foi o caso de Porfírio, o qual confessou não ter ainda constado que nenhuma

seita teria encontrado “a senda universal para a libertação da alma” (A Cidade

de Deus IX 33). Tornaram-se cegos para o único mediador entre Deus e o

homem, o Deus-homem, Cristo Jesus. Cumpriu-se assim o oráculo do profeta

Isaías: perdam sapientiam sapientium et prudentiam prudentium reprobabo

(porei a perder a sabedoria dos sábios e reprovarei a prudência dos

prudentes) (Cfr. Confissões VII 9). De fato, a “senda universal para a

libertação da alma” se encontra no seguimento humilde do Cristo Crucificado,

o Logos feito carne, humanado, que os platônicos, em sua soberba, não

reconhecem.

Também os céticos da Nova Academia se desviaram. Eles invertem a ordem

das coisas, afirmando que o investigar torna o homem mais feliz do que o

saber. Ora, sem a possibilidade de uma posse da verdade, não tem sentido

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nem mesmo a busca e a investigação. É esta posse que, acima de tudo, torna

o homem feliz, como, de resto, afirmou também Aristóteles (Cfr. Ética a

Nicômaco X 7). Eles afirmaram que o homem, no máximo, pode chegar a um

conhecimento provável do real. Como pode se dar o provável, sem o

verdadeiro? Não é o verdadeiro a medida a partir da qual se mede o provável?

Ademais, quem investiga pode perceber que o desejo do verdadeiro que é

inerente ao homem não é em vão. Em diversos níveis de conhecimento, é

possível ao homem o conhecimento da verdade. No nível do conhecimento

sensível, por exemplo, pode-se afirmar que os sentidos não nos enganam,

como se costuma afirmar. Na verdade, como já observaram os estoicos,

somos nós que nos enganamos em nossos juízos sobre o que os sentidos nos

mostram. Já o conhecimento racional se baseia sobre um princípio que

absolutamente certo: o princípio de não contradição. Dada uma disjunção

contraditória, um dos membros deve ser verdadeiro e o outro falso. Mesmo

se o conhecimento sensível e o conhecimento racional fossem enganosos, há

algo que se subtrai a todo engano: si fallor, sum (se me engano, existo), diz

Agostinho, antecipando, de certa maneira, o cogito, ergo sum, de Descartes

(Cfr. A Cidade de Deus XI 26). Com efeito, é certíssima a evidência da auto-

presença da mente para si mesma, evidência que ela tem, junto dos atos ou

vivências que ela realiza:

Quem, porém, pode duvidar que a alma vive, recorda, entende,

quer, quer, pensa, sabe e julga? Pois, mesmo se duvida, vive;

se duvida, lembra-se do motivo de sua dúvida; se duvida,

entende que duvida; se duvida, quer estar certo; se duvida,

pensa; se duvida, sabe que não sabe; se duvida, julga que não

deve consentir temerariamente. Ainda que duvide de outras

coisas não deve duvidar de sua dúvida. Visto que se não

existisse, seria impossível duvidar de alguma coisa (Da Trindade

X 10, 14). (AGOSTINHO, 1994, p. 328).

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1.3 A busca da felicidade e da verdade como busca de Deus (quaestio

dei)

A busca de Deus (quaestio Dei), em Agostinho, passa, pois, pelo

conhecimento da alma (anima), melhor, do espírito (animus) ou mente

(mens), ou seja, não tanto da dimensão sensitiva da alma, mas de sua

dimensão espiritual, que transcende o mundo sensível, o mundo dos corpos.

Graças a essa transcendência, a mente pode conhecer-se a si mesma em sua

autopresença imediata e em sua evidência indubitável. Ao homem, o caminho

que conduz à verdade passa necessariamente pelo conhecimento de si

mesmo e pelo recolhimento no mais íntimo de si. Agostinho indica: noli foras

ire, in te redi; in interiore homine habitat veritas (Não vás para fora, entra

em ti mesmo: no homem interior habita a verdade) (A Verdadeira Religião,

72). A partir deste aceno, Agostinho, por exemplo, convida o homem a

investigar a grandeza, amplidão e profundidade da memória (Confissões X 7-

19). E se admira: “grande é a potência da memória, ó meu Deus! Tem não

sei quê de horrendo, uma multiplicidade profunda e infinita. Mas isto é o

espírito, sou eu mesmo. E que sou eu, ó meu Deus? Qual é a minha natureza?

Uma vida variada de inumeráveis formas com amplidão imensa” (Confissões

X 17). Investigando a si mesmo, Agostinho acaba encontrando o que supera

a si mesmo: a presença de Deus na mente do homem, como Verdade que o

ilumina desde dentro, como Vida de sua vida. E mais, ele encontra, ainda, na

mente humana, uma analogia da Trindade, na tríade ser, conhecer e amar,

que espelha o Pai, princípio sem princípio do ser, o Filho, princípio principiado

como o Intelecto do Pai, e o Espírito Santo, o princípio espirado do amor que

une Pai e Filho: “somos, conhecemos que somos e amamos esse ser e esse

conhecer (...). Como conheço que existo, assim também conheço que

conheço. E quando amo essas duas coisas, acrescento-lhes o próprio amor,

algo que não é de menor valia” (A Cidade de Deus XI 26).

O homem busca a felicidade, mas a felicidade consiste em se alegrar com a

verdade, pois uma felicidade sem verdade seria uma felicidade falsa, isto é,

não seria felicidade. Como o homem, porém, pode alcançar a verdade?

Resposta: dentro de si mesmo. A Verdade habita o homem interior; ela é o

próprio Deus que ilumina o homem desde dentro. Ubi enim inveni veritatem,

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ibi inveni Deum meum ipsam veritatem (onde encontrei a verdade, ali

encontrei o meu Deus, que é a verdade mesma) (Confissões X 24). Ora, há

uma diferença ontológica entre a Verdade e o verdadeiro. A verdade é aquilo

que possibilita o verdadeiro como verdadeiro. Agostinho entende a verdade,

primordialmente não no sentido lógico, como a retidão do juízo, pois esta já

supõe a verdade pré-predicativa, a verdade no sentido manifestativo, ou seja,

a verdade no sentido ontológico: verdade é o que é; ou ainda: verdade é o

que mostra aquilo que é (quae ostendit id quod est) (A Verdadeira Religião

XXXVI 66). Verdadeiro é aquilo que se mostra tal como é ou que é tal como

se mostra. Verdade é aquilo que produz tal mostrar, ou seja, é aquilo que

ilumina tanto a coisa conhecida como o próprio ato de conhecer. Assim como

o olho do corpo conhece o visível graças à claridade da luz sensível, também

o olho da mente, o intelecto da criatura espiritual, conhece o inteligível graças

à claridade da luz divina, ou seja, da Verdade. Ora, esta Verdade não é algo

que se submete ao juízo do homem. Pelo contrário, para que o juízo do

homem seja verdadeiro, isto é, reto, é necessário que ele esteja de acordo

com as regras da verdade. A estas regras Agostinho chama de rationes

aeternae (razões eternas), pois são imutáveis em si mesmas. Elas dão acesso

ao conhecimento de verdades a priori e incondicionadas, quer no campo

teórico, quer no campo prático. Elas dão acesso, portanto, ao mundo

inteligível, ao reino das ideias, como chamava Platão. Por exemplo: como

pode o homem injusto conhecer o que é justo? De onde ele tira a ideia da

justiça, já que ele é injusto, se não da luz da Verdade que ilumina o homem

sobre o que é justo e injusto?

Onde, pois, estarão escritas essas regras? Elas que possibilitam

ao injusto reconhecer o que é justo, descobrir que deve possuir

aquilo que ele mesmo não possui? Onde hão de estar escritas

senão no livro daquela luz que se chama Verdade? Nesse livro

é que se baseia toda lei justa que é transcrita e que se transfere

para o coração do homem que pratica a justiça. Não como se

ela emigrasse de um lado para o outro, mas a modo de

impressão na alma. Tal como a imagem de um anel fica

impressa na cera, sem se apagar do anel (Da Trindade XIV 15,

21). (AGOSTINHO, 1994, p. 469-470).

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A Verdade não se encontra somente no íntimo mais íntimo do homem. Ele

também se encontra acima dele, no sentido de transcendê-lo. Enquanto a

mente do homem é mutável, a Verdade é imutável. Enquanto a mente criada

é temporal, a Verdade incriada é eterna. Ao in te ipsum redi (entra em ti

mesmo) corresponde também o transcende te ipsum (ultrapasse a ti

mesmo), pois a verdade não é somente “íntima” (o que há de mais interior),

mas também “suma” (o que há de mais elevado) no homem. E esta Verdade

é Deus: Tu autem eras interior intimo meo et superior summo meo (Tu, com

efeito, eras mais íntimo que o meu próprio íntimo e mais sublime que o ápice

do meu ser! (Confissões III 6).

1.4 Criação e temporalidade

Platão tinha postulado o mundo inteligível das ideias ou essências como

eterno e imutável, separado do mundo sensível. O Demiurgo de Platão ordena

o mundo sensível a partir do mundo inteligível. Agostinho entende que as

ideias se encontram na mente ou no Intelecto divino (no Logos ou Verbo).

Elas são pensamentos de Deus, segundo os quais ele cria todas as coisas.

São, pois, as razões eternas e estáveis das coisas, os fundamentos de tudo

aquilo que surge e perece (rationes rerum – razões ou fundamentos das

coisas), que estão presentes na Sabedoria criadora de Deus. São formas

formadoras e não formas formadas, que estão presentes e atuantes na

matéria do universo como logoi spermatikoi (sementes do Logos) ou rationes

seminales (razões que atuam como sementes), isto é, são potencialidades de

geração e de formação que a matéria traz consigo, em seu bojo, diz

Agostinho, mesclando, assim, uma concepção ao mesmo tempo platônica e

estoica das ideias.

Em lugar da emanação neoplatônica, Agostinho põe a tese de uma creatio ex

nihilo (criação a partir do nada). A emanação é um processo necessário e

eterno. Segundo este processo, as coisas emergem do Uno de maneira não

imediata, mas através de uma série de mediações. A criação é, ao contrário,

um ato livre e contingente, que não tem nenhum pressuposto, a não ser a

própria vontade criadora que Deus traz consigo, ou seja, a vontade de

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comunicar o ser para além de si mesmo. Dizer que a criação é ex nihilo (do

nada) é dizer que ela é a partir da absoluta liberdade de Deus. Nada é

pressuposto desta criação a não ser a gratuidade desta liberdade. Mesmo o

caos originário, de onde surge o cosmos é um caos criado. A matéria informe,

um quase-nada, é entendida como o substrato indeterminado, que recebe a

o ser como forma determinante das coisas. Se a forma é o elemento estável

e definidor das coisas, a matéria é o elemento instável: princípio de mutação,

que traz consigo o sentido da transitoriedade do vir a ser. Ademais, a criação

é uma comunicação do ser que é imediata. “Tudo o que é, enquanto tem o

ser, o tem de Deus” (Da Verdadeira Religião: XVIII 36, 97). Criação é

comunicação do ser. É, portanto, evento que acontece por meio da Palavra

(Logos / Verbo), que é a própria Sabedoria eterna de Deus. É nesta Sabedoria

que estão as Ideias como arquétipos (formas originárias) de todas as coisas.

Na mente divina, porém, não estão somente as ideias universais das coisas,

mas também as ideias de cada ser individual. A individualidade ou

singularidade das coisas adquire, assim, uma dignidade eterna e infinita, que

não tinha no pensamento grego. Cada indivíduo foi como indivíduo, isto é, na

sua singularidade, pensado por Deus, desde a eternidade (Epístola XIV 4).

Se do ponto de vista de Deus a criação é uma comunicação do ser, do ponto

de vista da criatura ela é uma participação do ser. A criatura só é à medida

que participa do ser, que lhe é comunicado livre e gratuitamente pelo Criador.

Por si mesma, ela é um nada e tende para o nada. Por isso, a conservação

do mundo é uma continuação do ato criador de Deus. Se Deus retirasse o ser

que ele comunica à criatura, esta voltaria para o nada.

A decisão de criar, por parte de Deus, é eterna (Cfr. A Cidade de Deus XI

4ss). Mas o mundo criado, em virtude da sua finitude, é temporal. Tempo e

espaço só existem no mundo criado e com o mundo criado. O tempo é a

medida do movimento, do devir, do surgir e perecer. Só há tempo onde há

mutabilidade. Mas, só há medida onde haja uma mente que atue o ato de

medir. A mente humana vive a experiência imediata do tempo como duração.

“Em ti, ó meu espírito, meço os tempos!” (Confissões XI 27). Nessa

experiência da duração, primeiro vem o futuro, como o que ainda não é;

depois vem o presente, como o que já é; depois, o passado, como o que não

mais é. Na vivência da duração, o futuro é expectativa; o presente é atenção;

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o passado, memória. O tempo é uma distentio animae: o distender do

espírito. Os três tempos, na verdade, são um único tempo: o presente. O

futuro é o presente da expectativa; o presente é o presente da atenção; o

passado, o presente da memória. Futuro, presente e passado são, portanto,

três formas de presente. Eles pressupõem sempre a autopresença do espírito

a si mesmo. O tempo é, assim, um vestígio ou uma imagem da eternidade:

o presente estável, que não conhece nem mutação nem duração. O homem

se encontra, assim, entre o tempo e a eternidade, em virtude da ambivalência

de sua natureza. Ele se encontra no meio, entre o ser absoluto e o nada (o

não-ser absoluto). Isso lhe provoca fascínio e horror: Inhoresco, inquantum

dissimilis ei sum, inardesco, inquantum similis ei sum (horrorizo-me,

enquanto sou dissímile dela [da luz divina], inflamo-me, enquanto sou símile

a ela) (Confissões XI 9).

1.5 O Bem, a vontade e a ordem do amor

A comunicação do ser é um ato da bondade de Deus. Aliás, Deus não é um

bem, mas o bem pura e simplesmente. Ele é o sumo Bem. Na concepção

platônica, o Bem é aquilo que deixa e faz ser, é aquilo que torna o ente apto

a ser. Por isso é que o Bem está além do ser, além de toda entidade (epekeina

tes ousias). Plotino colocou o Uno além do ser. O Uno é o próprio Bem. Em

Agostinho, Deus é o Bem Uno, anterior a toda a pluralidade de bens.

Torna a olhar a Verdade, se o podes. Por certo, tu não amas

realmente senão aquilo que é bom (...). Bom é isto e bom é

aquilo. Prescinde disso e daquilo e contempla o próprio Bem, se

podes. Então verás a Deus, que é bom, não por algum outro

bem, mas o Bem de todos os bens (...). Portanto, a Deus se há

de amar, não como se ama a este ou aquele bem, mas como se

ama o próprio Bem. É esse o bem da alma que se há de procurar

(...). Somente o Bem é bom (Da Trindade: VIII 3, 4).

(AGOSTINHO, 1994, p. 263-264).

Na adesão ao Bem puro e simples e na sua fruição está a felicidade

(beatitudo) do homem. Para este Bem tende, fundamentalmente, a vontade

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do homem. A vida do espírito consiste em conhecer e querer, razão e

vontade. Vontade (voluntas) é, porém, essencialmente, amor (amor).

Quando a vontade do homem se volta para as muitas coisas mutáveis e nelas

se dispersa, ou seja, quando ela se volta para os muitos bens particulares, o

amor se torna cobiça (concupiscentia). In multa defluximos (Nós nos

deslizamos para muitas coisas) (Confissões X 29). A concupiscência da carne,

que é a busca desenfreada do prazer, a concupiscência dos olhos, que é o

desejo vão da curiosidade, e a soberba, que é a cobiça de ser amado e

temido, sem querer amar e temer, armam, a cada passo da existência do

homem, uma cilada. A vida do homem é uma tentação sem trégua: Numquid

non ‘temptatio est vita humana super terram’ sine ullo interstitio? (Não é,

pois, ‘a vida humana sobre a terra uma tentação’ sem interstício?)

(Confissões X 28). Por se deixar arrastar para as muitas coisas, o homem se

torna um peso para si mesmo: “Oneri mihi sum” (sou um peso para mim

mesmo) e a vida se torna para ele um enfado (molestia). Por já sempre se

ter perdido e alienado de sua existência autêntica, o homem se torna uma

questão para si mesmo: quaestio mihi factus sum (tornei-me uma questão

para mim mesmo) (Confissões IV 4).

Quando, porém, a vontade se volta para o único e eterno Bem, que torna

boas todas as coisas, o amor se torna caridade (caritas) e o homem alcança

a contenção da própria existência, recolhendo-se no Uno (continentia) e

obtendo a leveza do ser. Para que isso aconteça, é preciso que o homem, em

suas ações e em seus hábitos, siga a ordem do amor (ordo amoris). Isso

requer, em primeiro lugar, observar a diferença entre uti (usar) e frui (fruir,

encontrar prazer em). Em primeiro lugar, o homem precisa servir-se das

criaturas, em vez de buscar nelas a satisfação plena dos seus desejos, pois a

meta última da vontade é o Sumo Bem. Deter-se nas criaturas seria conter a

marcha da vontade em seu caminho para o seu fim último. Em segundo lugar,

o homem precisa amar menos o que é menos digno de ser amado: o corpo,

menos do que o espírito. Pois, no próprio homem, há uma hierarquia de ser:

o homem é uma alma que se serve de um corpo: mortali atque terreno utens

corpore ([a alma é uma substância racional] que se serve de um corpo mortal

e terreno) (Dos Costumes da Igreja I 27). Em terceiro lugar, o homem

precisa amar em igual medida o em igual modo deve ser amado: o próximo.

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Em quarto lugar, o homem precisa amar acima de tudo o que acima de tudo

é digno de ser amado: Deus, o Sumo Bem, o próprio amor.

A vontade, portanto, é dotada de livre arbítrio: ela pode se voltar para o

Sumo Bem ou dele se desviar, invertendo a ordem do amor, isto é, amando

menos o que é mais digno de ser amado e vice-versa, amando mais o que é

menos digno de ser amado. Se, do ponto de vista ontológico, o mal é uma

privatio boni (uma privação do bem); do ponto de vista ético, o mal é uma

inversão na ordem do amor, uma inversão que tem origem na própria

vontade. O livre-arbítrio, portanto, não é, em si, um bem supremo, e sim um

bem mediano, pois com o livre-arbítrio o homem pode perder ou conquistar

a sua liberdade. É que livre-arbítrio é condição necessária para a liberdade,

mas não suficiente. Para ser livre, o homem não pode deixar de se libertar

continuamente, pela verdade, para o Bem. Por isso, não basta ao homem ter

uma vontade livre. Para que ele seja feliz, é preciso que tenha uma vontade

boa (bona voluntas). Contudo, boa é aquela vontade que se dirige e adere ao

Sumo Bem. A questão é se o homem, por si só, é capaz de alcançar este

Sumo Bem. Para Agostinho, a vontade do homem é, desde o seu nascimento,

uma vontade impotente para alcançar o que ela se propõe. E isso é uma

decorrência do pecado original. Contra Pelágio, desde a perspectiva da fé

cristã, ele postula que somente a graça pode regenerar a vontade do homem

e torna-la capaz de alcançar aquilo que ela busca em última instância: a

fruição do Sumo Bem.

1.6 As duas cidades, o ethos social e o sentido da história

A medida de um homem é a medida de seu amor. Cada um é aquilo que ele

ama e como ele ama. Isto vale não somente para o indivíduo. Vale também

para as comunidades humanas e para esta comunidade de seres racionais,

que é a Civitas (Cidade, Estado). A civitas é, pois, uma comunidade espiritual,

fundada num ordenamento ético e jurídico. Não qualquer congregação de

seres humanos é uma civitas, mas sim aquela cuja fundamentação repousa

na ratio (razão) e, por conseguinte, no vínculo da lex (lei). A civitas é, por

conseguinte, uma societas rationalium – sociedade de seres racionais –

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fundada sobre o povo, especialmente, sobre o costume dos antepassados

(mos maiorum). A civitas é, portanto, uma res publica, uma realidade pública,

a forma de sociedade, instituída pelo povo. Agostinho assim definiu o conceito

de ‘povo’: populus est coetus multitudinis rationalis rerum quas diligit

concordi communione sociatus (“o povo é o conjunto de seres racionais

associados pela concorde comunidade dos objetos amados”) (A Cidade de

Deus XIX 24). Por isso, dirá Agostinho, se quisermos conhecer a identidade

de um povo, é preciso perguntar: o que é que ele ama? Este mesmo critério

Agostinho usa para refletir sobre a história.

A história da humanidade, lida à luz da história da salvação, contida na Bíblia,

é, para Agostinho, a história de duas Cidades, fundadas por dois amores: a

Civitas terrena (Cidade Terrena), simbolizada biblicamente por Babilônia,

arquétipo da desordem e da injustiça, e a Civitas Dei (Cidade de Deus),

simbolizada por Jerusalém, arquétipo da ordem e da justiça. “Dois amores

fundaram, pois, duas cidades, a saber: o amor próprio, levado ao desprezo a

Deus, a terrena: o amor a Deus, levado ao desprezo de si próprio, a celestial.

Gloria-se a primeira em si mesma e a segunda em Deus” (A Cidade de Deus

XIV 28). As duas Cidades, portanto, são dois tipos de constituição do mundo

da convivência humana, duas formas de organização da vida social, cada uma

fundada por uma espécie de amor e seu ethos. Podemos ressaltar a

concepção de poder que fundamenta a arte de governar em uma e outra

Cidade: “naquela, seus príncipes e nações avassaladas veem-se sob o jugo

da concupiscência de domínio; nesta, servem em mútua caridade, os

governantes, aconselhando, e os súditos, obedecendo” (A Cidade de Deus

XIV 28). Ou seja: numa, o poder é exercido a partir da cobiça de dominação

sobre os outros homens, noutra, o poder é exercido a partir da intenção de

servir e ajudar a construir uma comunidade humana justa.

As duas cidades encontram-se, durante toda a história, misturadas. Por

conseguinte, não coincidem com a Igreja e o mundo. A Cidade de Deus tem

habitantes mesmo entre os que estão fora dos limites da Igreja visível, como

a cidade terrena também tem habitantes mesmo entre aqueles que estão

contados como cristãos. A Igreja militante é ainda uma realidade mista,

híbrida: traz em si justos e injustos, habitantes da Cidade de Deus e da cidade

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terrena. Somente a Igreja triunfante, na eternidade, é que será uma

realidade pura e sem mancha de pecado, em que habitarão somente os

justos.

A história é um processo teleológico. A consumação deste processo consiste

na revelação e constituição definitiva do Reino de Deus: o triunfo da

Jerusalém Celeste. A temporalidade histórica é caracterizada pela

tempestuosidade dos combates entre os humanos que se agitam na

diversidade e mesmo no conflito de seus interesses. A paz terrena é sempre

frágil, fruto dos acordos interesseiros dos homens. Os homens que amam a

justiça, porém, devem promover esta paz terrena, mas almejando a paz

celeste e perpétua, que é a verdadeira meta da história e que consiste em o

homem fruir de Deus e em Deus. Mas, o que é a paz como tal? Agostinho

responde: “a paz de todas as coisas é a tranquilidade da ordem”. E o que é a

ordem? “A ordem é a disposição que às coisas diferentes e às iguais

determina o lugar que lhes corresponde” (A Cidade de Deus XIX 13).

Estante do saber

O livre-arbítrio

(http://sumateologica.files.wordpress.com/2009/07/santo_agostinho

_-_o_livre-arbitrio.pdf), de Agostinho.

Confissões

(http://sumateologica.files.wordpress.com/2009/07/santo_agostinho

_-_confissoes.pdf), de Agostinho.

A vida de Agostinho (http://www.zahar.com.br/doc/t1055.pdf),

capítulo 02 do livro Santo Agostinho de Gareth Matthews.

Agostinho e o ceticismo

(http://criticanarede.com/hist_cepticismo.html), excerto do capítulo

03 do livro Santo Agostinho de Gareth Matthews.

Agostinho de Hipona (http://gloria.tv/?media=75103), filme de

Roberto Rossellini.

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Agostinho é, portanto, um pensador de alto nível e de intensa

dinâmica existencial. Sua influência foi bastante forte em toda a

Idade Média e chega até aos nossos dias. Na Alta Idade Média (do

século V até o ano mil) sua influência é decisiva para formar o

espírito medieval latino. Até o século XII, esta influência não

encontra concorrência. Com ele, vigora a filosofia de Platão e do

neoplatonismo, porém. No século XIII, com a recepção de

Aristóteles, esta hegemonia platônico-agostiniana é quebrada,

sobretudo na obra de Tomás de Aquino. Agostinho acabou sendo,

portanto, o elo de dois mundos: o antigo e o medieval. Durante

vários séculos, somente outro pensador, com outro estilo de

pensamento, pode emergir como uma referência alternativa: o

Pseudo-Dionísio Areopagita.

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Aula 02 – O Pseudo-Dionísio Areopagita

Depois de Agostinho, o segundo nome da tarda antiguidade mais

importante como fonte para o pensamento medieval é o do Pseudo-

Dionísio Areopagita. Se Agostinho é do círculo cultural latino, o

Pseudo-Dionísio é do círculo cultural grego. Nesta aula vamos

estudar o pensamento do Areopagita, que gozou de tanta

autoridade na Idade Média.

Esta aula não possui fontes. Favor incluí-las.

2.1 O corpus de escritos do Pseudo-Dionísio

Na Idade Média, um conjunto de escritos, o corpus dionysiacum, teve uma

alta relevância para a filosofia e teologia. Assim é chamado este conjunto de

escritos pois foi legado sob a autoria de Dionísio Areopagita, o filósofo

convertido por Paulo em sua pregação no areópago em Atenas, na qual o

Apóstolo anuncia aos gregos o “Deus desconhecido” (agnostos theos) (Atos

dos Apóstolos 17, 17-34). Este conjunto de escritos, pois, foi transmitido com

o peso de uma autoridade apostólica. Mas, não deixou de corroborar a

importância deste “corpus” o nível de especulação filosófica e teológica nele

inserida. O verdadeiro escritor destes escritos permanece-nos ignorado. Já

Abelardo (1079 – 1142) levantou a dúvida sobre a autoria deles, No século

XV, por sua vez, Lourenço Valla realizou de modo mais rigoroso uma crítica

à autenticidade da autoria atribuída a Dionísio, o Areopagita. Mas somente

no século XIX é que a falsificação ficou provada. Daí o nome: Pseudo-Dionísio.

Aqui, porém, por comodidade, vamos chamá-lo como os medievais o

chamavam, ou seja, simplesmente de Dionísio.

As pesquisas mais recentes corroboram a hipótese de que o autor do corpus

dionysiacum teria vivido na virada do século V para o século VI, no espaço

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da Síria (HEINZMANN, 1992, p. 116). O corpus está escrito em grego. O autor

promove uma síntese de neoplatonismo tardio – ele é um herdeiro de Proclo

(410 – 485) – e de especulação cristã – neste sentido ele é também herdeiro

da patrística grega do século IV, sobretudo dos capadócios, e, em especial,

de Gregório de Nissa (334 – 394).

2.2 Deus e sua cognoscibilidade

Dionísio, em sua obra, aborda as possibilidades e os limites do conhecimento

e do discurso humano sobre Deus (HEINZMANN, 1992, p. 117). O

pensamento de Dionísio se expõe em contínua tensão dialética. De um lado,

está a teologia afirmativa; de outro, a teologia negativa (PSEUDO DIONISIO

AREOPAGITA, 1990, p. 374-377). A teologia afirmativa (kataphatike) é

descendente (kata = do alto para baixo). Ela nomeia Deus com os nomes que

são acessíveis à razão e que são dados pela revelação. Afirma que Deus é;

que ele é unidade (monas) e tríade (trias); que ele é ser, vida e sabedoria;

que, como ser, ele deixa e faz ser todo o ente; como vida, ele anima todo o

vivente; como sabedoria, ele ilumina e instrui todo o inteligente. Depois,

nomeia Deus com os nomes que são acessíveis ao discurso cotidiano, tirado

do mundo sensível, usando metáforas: dizendo que Deus é vento, é água, é

fogo, é rocha, é águia, é leão, etc. Ora, o discurso simbólico sobre Deus é um

discurso que, fala da semelhança na dessemelhança. E o discurso racional

sobre Deus é um discurso também limitado, pois fala de Deus com os nomes

e os conceitos que nos são acessíveis. Por isso, torna-se necessária a teologia

negativa (apophatike), que realiza, por meio do negar, um retorno a Deus.

De fato, o prefixo “apo” dá a entender um movimento de eliminação, mas

também de retorno e distanciamento. Aqui se nega que Deus seja qualquer

determinação que nós atribuímos a ele, por meio de imagens ou de conceitos

da nossa linguagem. Deus não é nada de sensível; também não é nada

daquilo que nos é inteligível, pois transcende tudo, tanto o sensível, quanto

o inteligível. Na teologia afirmativa, o divino se dá em proximidade crescente,

à medida que ele se deixa dizer em nossa linguagem conceitual e simbólica.

Noutra, o divino não se deixa dizer, ele se subtrai sempre de novo e só se dá

nessa subtração, isto é, na distância de seu mistério e no retraimento de sua

transcendência. A teologia afirmativa é como uma pintura; a negativa, como

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uma escultura. A pintura põe. A escultura tira. Mas, tanto no pôr como no

tirar, ambas fazem aparecer algo de novo. Contudo, Deus não é nada daquilo

que aparece tanto numa como noutra. Tanto o conhecimento que o homem

alcança pela via positiva, como o que ele consegue pela via negativa, só têm

sentido dentro do movimento maior, que dá sentido a ambas, quer dizer,

dentro da experiência da busca da união amorosa com a Deidade, ou seja,

dentro da teologia mística. É na união (henosis) amorosa com a Deidade que

se dá a completa semelhança do homem com Deus, melhor, se dá a

deificação (theosis) do homem. E esta é a meta da teologia mística.

Deus, propriamente, não é. Dizer isso, no contexto da teologia negativa, não

significa dizer que ele não existe. Significa, antes, afirmar que ele transcende

o ser e todo o ente. Ele é superessencial (hyperousios), ou seja, ele supera

toda essência (ousia). Ele está além de tudo (epekeina ton panton). Ele é

superdesconhecido (hyperagnostos). O homem só pode conhecê-lo pela

ignorância, que está acima de todo o conhecimento: no saber mais excelente,

que é o não-saber. Ele está envolvido na caligem, isto é, na escuridão do

mistério. Só no silêncio o homem conhece o inominável. O pensamento de

Dionísio está a serviço desse silêncio. Tudo o que ele diz, o faz a partir desse

silêncio. Tudo o que ele fala, o faz para se deixar tocar por este silêncio. Mas,

o que é que se pode dizer de Deus, mesmo sabendo que ele é o indizível? A

regra primeira é que tudo o que o homem pode dizer de Deus deve dizê-lo

de maneira a exprimir a sua excelência (hyperokhe), já que ele transcende

tudo. Os medievais denominarão esta forma de falar de Deus de via

eminentiae (via da excelência), pela qual se atribui a Deus o que há de melhor

e em grau superlativo.

Deus é a causa, o princípio, a essência e a vida de tudo. Causa (aitia) é aquilo

que responde (aiteo) pelo surgimento de uma coisa. Princípio (arkhe) é o que

não somente faz começar, mas também sustenta e faz consumar alguma

coisa. Deus é essência de tudo, não no sentido de que tudo é Deus

(panteísmo), mas no sentido de que Deus concede a tudo a vigência e a

presença no ser. Deus é vida de tudo, no sentido de que toda a dinâmica do

universo é por ele regida, sustentada, animada e vivificada. Se ele retira o

seu sopro do universo, tudo volta ao pó do nada. Ele é o Senhor do ser, o ser

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que está acima de todo o ente e de toda a essência. Ele é o fundamento do

ser de todos os entes. Mas, trata-se de um fundamento abissal, pois é

fundamento sem fundo, que se retrai e se retira do horizonte do ser, à medida

que transcende o próprio ser. Como Criador, ele chama para dentro do

horizonte do ser (eis to einai) todos os entes. Em si, ele não é nada daquilo

que existe e não pode ser conhecido em qualquer uma das criaturas. Porém,

por outro lado, tudo o que existe é uma determinada imagem e semelhança

dele. Quanto mais alto ele se encontrar na ordem do ser, ou seja, quanto

mais perfeito for o ente, ele expressa mais e de modo mais esplendoroso a

bondade do Criador. Ele é o Uno, que é o autor do Todo. Este Todo articula o

múltiplo a partir do Uno e em vista do Uno (uni-verso: vertido no e para o

Uno).

2.3 O universo hierático

A totalidade do ente, o universo, é uma ordem bela (kosmos), pois em tudo

há certa ressonância e resplendor do Criador (HEINZMANN, 1992, p. 119-

121). É uma hierarquia: uma ordem principiada e regida pelo poder sagrado

(hieros) . Nesta ordem, os entes, em diferentes graus de perfeição, remetem

ao Criador, à medida que participam mais ou menos do ser, da vida, da

inteligência. Todo o cosmos é uma teofania (manifestação de Deus). Todo o

universo celebra uma liturgia onde cada ente é revestido de uma

correspondência simbólica ou analógica, que permite ao homem ascender a

Deus. Em toda a parte, através dos diversos coros dos entes terrenos e

celestes, sensíveis e inteligíveis, celebra-se o ofício divino, a obra de Deus na

criação. Espíritos celestes e terrestres se estruturam, de modo a receber e a

comunicar o ser, a força e a atuação que procedem de Deus. Surgem daí as

hierarquias, a celeste e a eclesiástica, cada uma estruturada triadicamente:

os nove coros angélicos no céu e os seis graus do múnus santificador na

Igreja (bispos, presbíteros, diáconos; monges, leigos e catecúmenos).

Entretanto, o grau do múnus de santificar nem sempre coincide efetivamente

com o grau de santidade pessoal. Se os graus do múnus de santificar

apresentam uma dinâmica descendente, os graus de efetiva santificação

constituem uma dinâmica ascendente. Os graus do ser-santificado coincidem

com os níveis de progresso na via mística, pelos quais o homem vai se

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assemelhando cada vez mais com Deus, até ser um com o Uno, tornando-se

deificado. Também a dinâmica de elevação do homem a Deus é triádica. O

primeiro nível é o da purificação (katharsis), o segundo, da iluminação

(photismos) e o terceiro, da perfeição (teleiosis). A visão cósmica, portanto,

de Dionísio é hierárquica e hierática. É ambas as coisas, porém, pelo fato de

em tudo e por toda a parte acontecer a hierofania (manifestação sagrada) de

Deus. É num mundo assim que o homem cristão medieval, latino ou

bizantino, vai viver. Tudo será banhada de uma aura dourada: o halo do

sagrado, do santo, do divino. Em sua disposição religiosa, este homem vai

recorrer não tanto à magia ou à teurgia, como propunham os filósofos

neoplatônicos, como Jâmblico e Proclo, mas à liturgia cristã: a celebração dos

mistérios de Deus nos mistérios da existência humana e da natureza. Espaço

e tempo se carregam de um sentido sagrado.

Esta concepção de mundo, essencialmente metafísica e religiosa, une a visão

cristã da criação e a visão neoplatônica da emanação numa síntese bem

peculiar. Ela é fundamentalmente otimista. Todo o ente é bom na mesma

medida em que é. Pois, na criação, o Bem se difunde, comunicando o ser a

todo o ente. O mundo é produto da bondade divina. Deus cria com um ato

livre e gratuito de bondade e cria cada coisa imediatamente (sem mediações,

como afirmava a teoria neoplatônica da emanação), o que indica um interesse

por cada criatura, ao contrário da tese de alguns filósofos gregos, como

Epicuro, por exemplo, que afirmavam que Deus não se interessa pelo mundo.

Se há o mal, ontologicamente ele vem de uma privação do bem; eticamente

ele vem das livres escolhas das criaturas racionais, à medida que invertem a

ordem hierárquica dos bens, valorizando mais o que tem menos dignidade e

valorizando menos o que tem mais dignidade. Por isso é que o homem precisa

retornar para Deus, galgando os níveis da purificação, da iluminação e da

perfeição. Quando um homem se eleva até Deus, ele ergue consigo todo o

universo. No livre destinar das criaturas racionais, portanto, está cada vez

em jogo o retorno do universo a Deus, do múltiplo ao Uno.

Estante do saber

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Da Hierarquia Celeste

(http://sumateologica.files.wordpress.com/2010/02/pseudo-

dionisio_da_hierarquia_celeste.pdf), de Pseudo-Dionísio.

O símbolo contra o texto: Pseudo-Dionísio Areopagita e a

irrepresentabilidade divina

(http://www.revistamirabilia.com/Numeros/Num7/numero7_2.html),

de Henrique Marques Samyn.

A mística de Dionísio e o seu modo de assumir as possibilidades

filosóficas e teológicas da razão tiveram grande efeito na Idade

Média. Através de Máximo, o confessor (falecido em 622), ela atuou

sobre a Igreja do Oriente (Bizantina). Ele foi honrado, sobretudo, na

França medieval, que o identificava com o São Dionísio (Saint

Denis), bispo de Paris nos primórdios da história da Igreja. Através

de Hilduíno (827 – 835) e de João Escoto Eriúgena, intelectuais

importantes no renascimento promovido por Carlos Magno, atuou

sobre os teólogos monásticos do século XII (Ricardo e Hugo de São

Vitor; Guilherme de Saint Thierry). No século XIII, os escritos do

“corpus dionysiacum” foram comentados por nada mais nada menos

do que por Roberto Grosseteste, Alberto Magno e Tomás de Aquino.

Boaventura, o mais insigne teólogo da mística franciscana, também

o teve como autoridade. Nos séculos XIV e XV, Dionísio influi no

maior místico especulativo que a Idade Média conheceu: Mestre

Eckhart, bem como em sua escola (Tauler e Ruysbroeck). Através

destes últimos e de Dionísio, o Cartuxo, a influência de Dionísio

chega a Nicolau de Cusa, o último pensador medieval, que se tornou

um elo entre dois mundos: o medieval e o moderno, pois, com sua

“douta ignorância” possibilitou uma nova concepção do saber

moderno, aquela que fundou o projeto da física matemática.

Unidade II: A filosofia na alta Idade Média latina

Em 476 ocorreu a queda do Império Romano do Ocidente. Odoacro, ex-rei

dos hérulos e soldado mercenário, chefe da guarda pretoriana, depôs o

imperador Rômulo Augusto em Ravena. Este fato costuma ser apontado como

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o início da Idade Média. Com a queda do Império Romano do Ocidente, o

cristianismo foi a única força histórica universalista que podia reunir o que

restou da civilização romana e o que os povos “bárbaros” traziam consigo.

Era o fim da Antiguidade, uma era em que o homem acreditava simplesmente

poder seguir as forças da natureza e da sua razão, para alcançar a felicidade

pessoal e coletiva. O cristianismo, ao contrário, ensinava que havia algo de

errado com o homem e que, se ele seguisse simplesmente a sua natureza,

acabaria errando o alvo de sua busca pela felicidade. O homem precisava de

uma força sobrenatural, pois sua natureza se tinha degenerado e se tornara

desnatural. Era a graça que poderia elevar a natureza do homem para que

ele alcançasse a felicidade, aquela que fosse possível nesta vida e a felicidade

plena na vida eterna. Os primeiros séculos medievais, a assim chamada Alta

Idade Média (do século V ao ano mil), foi um tempo de penitência e purgação.

Os mosteiros se tornaram os centros de difusão da civilização, da cultura e

da espiritualidade, uma espiritualidade baseada no lema de Bento de Núrsia

(c. 480 – c. 547): ora et labora (ora e trabalha). Diz-se que este tempo, em

que os senhores feudais e a Igreja dominaram, foi uma longa noite história,

que só se interrompera com o renascimento urbano dos séculos XII e XIII,

com a irrupção do poder burguês, o surgimento das universidades e a

influência do aristotelismo na filosofia. Mas nesta noite o homem ocidental

não deixou de ter sonhos místicos e não faltaram espíritos vigilantes. Trata-

se, no dizer de Chesterton, biógrafo de Francisco de Assis e de Tomás de

Aquino, de “uma noite demorada e austera, noite de vigília, à qual não faltara

a visita das estrelas” (CHESTERTON, 1961, p. ?).

Em meio a esta noite brilharam as luzes de alguns luminares do saber. Nós

vamos estudar dois deles: Boécio e João Escoto Eriúgena.

Aula 03 – Boécio

Boécio (c. 480 – 524) é considerado o último romano e o primeiro

filósofo da Idade Média. Nasceu em Roma e era de família nobre.

Participou do governo de Teodorico, rei dos ostrogodos, mestre dos

exércitos, que subiu ao poder no ocidente, no ano de 488, com o

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apoio do então Imperado Romano do Oriente, Zenão (474 – 491).

Boécio foi uma peça chave na translação do pensamento grego para

a nova era que estava começando, o que nós chamamos de Idade

Média. Teodorico, que tinha passado a sua infância em

Constantinopla (461 – 471), colocou sua capital em Ravena e

moldou a sua cúria segundo o modelo bizantino. Confiou a Boécio a

tarefa de promover a transmissão do saber antigo às nova geração,

mas também nomeou-o para cargos administrativos e políticos. De

fato, Boécio chegou a ocupar o papel de cônsul e também o mais

alto cargo do governo, o cargo de magister officium (“mestre dos

ofícios”). Mas caiu sobre ele a suspeita de conspiração com

Constantinopla, ele foi preso e depois morto, por ordem do rei. Na

prisão, ele compôs uma das obras mais célebres da literatura latina:

o livro “De Consolatione Philosophiae” (Da Consolação da Filosofia).

Esta aula não possui fontes. Favor incluí-las.

3.1 O projeto de Boécio: a translação do saber da antiguidade

O projeto da vida de Boécio foi mediar, como intérprete, a passagem da

filosofia grega para a nova época (HEINZMANN, 1992, p. 95-115). Queria

escrever sobre as “artes livres” (artes liberales) – as do trivium, disciplinas

sobre a linguagem (gramática, dialética e retórica) e as do quadrivium,

disciplinas matemáticas (geometria, música, aritmética e astronomia) –, que

eram consideradas uma propedêutica ao estudo filosófico. Adaptando os

tratados matemáticos de Nicômaco de Gerasa, escreveu pelo menos uma

instrução sobre a aritmética (Institutio arithmetica) e outra sobre a música

(Institutio musica). O papel de intérprete da filosofia grega para o novo

mundo ele exerceu em duplo sentido: como tradutor e como comentador dos

textos filosóficos gregos. Seu desejo era traduzir e comentar todas as obras

de Platão e todas as de Aristóteles. Morreu sem cumpri-lo. Boécio partilhava

do entendimento dos neoplatônicos, segundo o qual Aristóteles seria uma

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propedêutica a Platão. Almejava restituir a concordância entre ambos (in

unam revocare concordantiam). Segundo a prática dos neoplatônicos, o

estudo filosófico começava com as obras lógicas de Aristóteles, consideradas

como instrumentais (organon - instrumento) ou como condições para a

construção do saber científico. Boécio passou à posteridade como o

comentador das Categorias e do Da Interpretação. Comentou também o

Isagoge, de Porfírio, que era uma introdução (eisagoge) às Categorias de

Aristóteles e, portanto, uma introdução à introdução à filosofia. Além disso,

escreveu vários opúsculos sobre lógica, que, juntamente com os escritos de

Aristóteles e de Porfírio, fizeram parte da chamada logica vetus (Lógica

Velha), que predominou até o século XII. Entretanto, Boécio não era somente

um lógico, mas também um metafísico e teólogo. Os medievais o chamaram

de noster summus philosophus (nosso supremo filósofo). Os seus opúsculos

sobre os mistérios da revelação e da fé cristã, os Opuscula sacra, passaram

à Idade Média revestidos de autoridade. Eles tiveram o mérito de traduzir

para o latim palavras fundamentais da dogmática cristã, cunhadas a partir da

filosofia grega e inseridas no discurso teológico, a partir dos confrontos com

as heresias trinitárias e cristológicas: palavras como substância, acidente,

essência, natureza, pessoa, potência, ato, matéria, etc. No campo teológico

ele se torna exemplar do slogan: fidem si poteris rationemque coniunge (se

podes, une a fé e a razão) (Opuscula Sacra, Patrologia Latina 64, 1302) (Cfr.

BOÉCIO, 2005, p. 195 e 309).

3.2 A lógica: as categorias, os categoremas e o problema dos

universais

Para Boécio, a lógica não tem um fim em si mesma, mas serve à filosofia. Ele

não deixa claro sua posição sobre o estatuto da lógica: se ela é uma disciplina

apenas instrumental – supellex atque instrumentum (ferramenta e

instrumento) –, ou se ela é parte integrante da filosofia mesma, filosofia

racional, como se dizia – tractatus de propositionibus atque syllogismis et

cetera (tratado sobre as proposições e os silogismos, e outras coisas). Sua

posição parece querer conciliar ambas as posições: a lógica é parte integrante

da filosofia, já que ela tem o seu objeto próprio; mas ela é também

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instrumento, pois funciona metodicamente a serviço de outras disciplinas da

filosofia.

No campo da lógica, Boécio elabora uma teoria sobre as categorias (LIBERA,

1998, p. 255-257). As categorias são modos de se atribuir predicados ao

sujeito. Boécio distingue entre categorias substanciais (substância, qualidade

e quantidade) e categorias acidentais (as sete outras categorias de

Aristóteles). No caso das categorias substanciais, a predicação constitui uma

atribuição do ser e expressam a identidade do sujeito; no das caso das

categorias acidentais, não, a predicação não atribui um predicado intrínseco

ao ser, mas sim extrínseco, uma vez que não expressa algo de sua

identidade. Boécio elabora também uma teoria sobre os termos concretos.

Há termos concretos que expressam algo de substancial, como o nome

“animal” e termos que expressam algo de acidental, como o nome “branco”.

Assim também, há uma predicação essencial, quando o termo indica algo de

substancial, ou seja, quando ele faz parte da definição do sujeito, como

“animal” no predicado “animal racional mortal” atribuído ao sujeito “homem”;

e há também uma predicação acidental, quando o termo não indica algo que

faz parte da definição do sujeito, como “branco” quando referido ao sujeito

“homem”. O termo acidental é designado como de subiecto (a partir do

sujeito) e o termo essencial é designado como in subiecto (no sujeito). Boécio

ainda elabora uma teoria sobre a natureza da relação dos termos abstratos

com os termos concretos. O termo concreto acidental “branco”, por exemplo,

guarda uma dupla relação: com o sujeito que ele nomeia (a coisa branca em

questão) e com a forma da qual ele deriva (a brancura). O termo “branco”

nomeia um acidente, uma qualidade de um sujeito (a coisa em questão).

Mas, por outro lado, ele é um termo derivado de outro termo, que é abstrato,

mas que nomeia algo de essencial: a brancura. “Branco” pode ser predicado

de alguma coisa; mas “brancura” não pode. “Brancura” nomeia uma forma

essencial: a brancura é aquilo pelo que o branco é branco. Essa dupla relação

é chamada de paronímia. Paronímia é a característica de uma palavra que

deriva de outra, dito de outro modo, que recebe de outro a sua denominação,

como branco vem de brancura, gramático vem de gramática, e corajoso de

coragem. Ora, esta apresentação da paronímia dá margem a uma

interpretação platonizante, pois permite uma aproximação com a eponímia

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platônica, segundo a qual a imposição dos nomes acontece à medida que as

ideias se reproduzem nas coisas sensíveis que delas participam. Assim, o

“branco” recebe o nome de “brancura”. Segundo a interpretação platônica, o

branco é branco por participar, isto é, tomar parte da essência comum, da

ideia ou forma essencial da brancura. Esta concepção toca, então, o famoso

“problema dos universais”.

Boécio, depois de Porfírio, é responsável pelo surgimento do chamado

“problema dos universais” (LIBERA, 1999, p. 130-134). Na sua introdução às

Categorias de Aristóteles, Porfírio colocara o problema, mas sem querer

resolvê-lo. Os conceitos universais são aqueles que se referem aos

predicáveis. Os categoremas ou predicáveis designam os modos em que um

predicado se predica de um sujeito, ou seja, as diversas formas de relações

lógicas que o predicado possa ter com o sujeito. Porfírio os chamou de cinco

“vozes” (voces). São eles: gênero, espécie, diferença, próprio e acidente.

Porfírio perguntou se gênero e espécie, enquanto determinações universais

(comuns a vários sujeitos), são realidades subsistentes em si mesmas ou se

são apenas conceitos produzidos pelo pensamento, ou seja, se são entidades

reais ou apenas mentais. Depois, se são entidades reais, vem a pergunta se

são corpóreas ou incorpóreas. E adiante: se são incorpóreas, pergunta-se se

são separadas das coisas sensíveis (transcendentes) ou se são unidas a elas

(imanentes). Depois de discutir as antinomias do problema, Boécio aponta a

seguinte solução, que se refaz à de Alexandre de Afrodísia: gênero e espécie

nomeiam formas essenciais, portanto, entidades reais, que, por um lado, são

incorpóreas, mas que, por outro lado, se dão como formas imanentes às

próprias coisas, não existindo separadas delas. Na verdade, a coisa concreta

é o resultado da união da forma essencial, inteligível, com a matéria

acidental, sensível. Os sentidos apreendem ambos os momentos constituintes

de maneira misturada e confusa. O intelecto, porém, tem a capacidade de,

por sua própria força de pensamento, separar o que está unido na coisa: a

forma essencial, como elemento inteligível, e a matéria, como elemento

sensível. O universal, portanto, só existe imanente à coisa concreta, mas só

pode ser apreendido de modo separado. O ato intelectual de separar o

inteligível do sensível Boécio chama de divisão (divisio) ou abstração

(abstractio). Divisão é fazer acontecer uma visão do inteligível junto do

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sensível; abstração é extrair mentalmente o inteligível do sensível. Este

processo de divisão/abstração, por sua vez, se faz com a ajuda da

comparação. Comparando vários indivíduos, prescindindo das suas

diversidades e concentrando a atenção somente em suas semelhanças, eu

apreendo a espécie. Por sua vez, comparando várias espécies, deixando de

lado suas diversidades e ressaltando somente suas semelhanças, eu intuo o

gênero. Com outras palavras: a espécie é um conceito que se forma a partir

da semelhança de vários indivíduos e o gênero é um conceito que se forma a

partir da semelhança de várias espécies. Portanto, os universais, como

conceitos, são produtos da abstração. Mas, eles não são conceitos vazios.

Eles nomeiam algo de real, embora não concreto, algo que existe na coisa

concreta e que a determina em seu ser: as formas essenciais ou as naturezas

das coisas. A abstração pressupõe, antes de toda a comparação, uma

capacidade de ver, isto é, de cointuir (contueri) e espelhar (speculari) o que

há de essencial e inteligível na coisa concreta. Trata-se, pois, de uma solução

que concilia Aristóteles, para quem as formas essenciais são imanentes às

coisas; e Platão, para quem as formas essenciais ou ideias são entidades

reais, tão reais que determinam toda realização das coisas concretas. Apesar

do vocabulário aristotélico, porém, no seu teor, ela pende mais para o lado

de Platão. Ela lê o problema das categorias e dos categoremas de Aristóteles

com os olhos de Platão.

A lógica é, por assim dizer, o átrio da filosofia. Adentrando no espaço interno

da filosofia, deparamo-nos com seu duplo modo de ser: ela é filosofia

especulativa, que trata das naturezas das coisas (de rerum naturis); e

filosofia prática, que trata da ação e do viver do homem com os outros

homens.

3.3 A filosofia especulativa

Investigando a natureza das coisas, o intelecto se depara com três tipos de

naturezas: as naturalia (coisas naturais), as intelligibilia (realidades

inteligíveis) e as intellectibilia (neologismo de Boécio, que aqui traduzimos

com um neologismo em português, usando a expressão “realidades

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intelectíveis). Naturais são as coisas corpóreas, sensíveis. Inteligíveis são as

almas humanas, que, embora sendo em si mesmas espirituais, não são puros

espíritos, mas sim espíritos unidos aos corpos. Intelectíveis, por sua vez, são

os seres puramente espirituais e imutáveis, Deus em primeiro lugar. De

maneira platônica e seguindo a linha de Orígenes e Agostinho, Boécio entende

as realidades inteligíveis (as almas humanas) como espíritos decaídos no

mundo dos corpos.

Na sua obra De hebdomadibus (Dos sete dias da criação), Boécio formula

uma teoria ontológica seguindo o modelo axiomático da matemática (LIBERA,

1998, p. 252-254). Nesta teoria, ele anuncia a diferença entre ser (esse) e

ente (id quod est). São nove teses:

1. A primeira tese é introdutória. Apresenta a posição segundo a qual

ser e ente são conceitos comuns, que todos pressupõem, embora

só muito raramente e com dificuldade são explicitamente notados

pelos homens. Com outras palavras, estes conceitos são

compreensíveis por si mesmos, mas são difíceis de serem

compreendidos para nós, que não exercitamos o intelecto de

maneira a apreender aquilo que é o mais comum e o mais primordial

na realidade, pois estamos sempre voltados para as muitas coisas

particulares.

2. Dito isso, Boécio anuncia a sua segunda tese: diversum est esse et

id quod est (diverso é o ser e aquilo que é, o ente). Esta tese

anuncia a diferença ontológica, ou seja, a diferença entre ser e ente

(aquilo que é). Boécio explica que o ser, por si só, ainda não é nada

(de ente). Apenas o ente é (subsiste), pois recebe a forma que o

faz ser (forma essendi). Boécio parece entender o ser como algo de

transcendental e entender o ente a partir da categoria de substância

(o que é como o que subsiste).

3. A terceira tese diz que o ser não participa de nada, enquanto o ente

participa (do ser). Com efeito, só o que já é pode participar (tomar

parte) de algo outro. O ser mesmo (ipsum esse), pelo fato de não

ser (nada de ente), não participa de nada. Aqui Boécio traz à tona

o conceito de participação (participatio), que, desde Platão, nomeia

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o tipo de relação do ente com o ser, mas não a relação do ser com

o ente.

4. A quarta tese anuncia que o ser mesmo é puro ser, não tendo nada

fora de si e que o ente não é somente o que ele é, mas tem também

algo fora de si. Esta tese se compreende melhor com a tese

seguinte.

5. Na quinta tese Boécio introduz a diferença entre substância, aquilo

que o ente é em si mesmo; e acidente, aquilo que o ente tem fora

de si mesmo. Substância nomeia o apenas ser alguma coisa (esse

tantum aliquid). Acidente, porém, nomeia o ser alguma coisa

naquilo que é (esse aliquid in eo quod est), ou seja, o ser inerente

a alguma coisa.

6. A sexta tese dá a entender a primazia do ser sobre o ser-alguma-

coisa, sobre o ser isto ou aquilo (uma forma determinada): para

(simplesmente) ser, tudo o que é (todo o ente) participa do ser;

mas, para ser alguma coisa, todo o ente deve participar também de

outra coisa (diferente do ser puro e simples). O ser, portanto, vem

antes de ser-alguma-coisa. Todo o ente participa do ser, enquanto

é. E participa de uma determinada forma de ser, enquanto é alguma

coisa (esta essência e não outra). Com outras palavras: o ente

participa do ser (puro e simples) e participa de uma essência (uma

determinada forma de ser).

7. A sétima tese diz: tudo o que é simples tem o ser e o ente como

um. Aqui se anuncia o estatuto ontológico dos seres simples, as

entidades superiores, divinas, no neoplatonismo, Deus, no

cristianismo: Deus é simples. Isto quer dizer: nele, ser e ente fazem

uma unidade e não uma dualidade. Deus não tem o ser, ele é o

(seu) ser.

8. A oitava tese completa a sétima, falando do contrário do que é

simples, isto é, do que é composto: em todo o ser composto, uma

coisa é o ser, outra coisa é o ente. Portanto, no composto há uma

dualidade de ser e ente. Neste caso, o ente não é o seu ser; ele

apenas tem o seu ser.

9. A nona e última tese fala do diverso e do semelhante. O diverso

provoca repulsa. O semelhante busca, anseia pelo semelhante. O

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que deseja alguma coisa além de si mesmo mostra que é por

natureza semelhante àquilo que deseja. Esta tese serve para

fundamentar uma ideia central na ontologia de Boécio e sempre

reiterada na tradição medieval, a de que todo o ente é bom. Esta

tese se fundamenta de maneira silogística da seguinte maneira:

todo o ente deseja o seu próprio bem; todo o ente deseja o seu

semelhante; logo, todo o ente que deseja o bem é ele mesmo um

bem.

A partir da diferença ontológica (entre ser e ente), pode-se intuir a diferença

teológica, entre Deus e o mundo. Deus é aquele em que ser e ente são um.

Deus é o que ele é. A criatura, não. A criatura apenas tem o seu ser, a partir

daquilo que ela é. Ela é sempre um isto ou aquilo. Depois, em Deus há uma

identidade imediata entre sua substância e o seu predicado (atributo), o que

não acontece com a criatura. Por exemplo: uma criatura só pode ser justa, à

medida que participa da justiça. Há uma diferença e uma relação extrínseca

entre o justo e a justiça, no caso da criatura. Em Deus, não. Nele, há uma

identidade entre o justo e a justiça. Dito de outro modo: Deus não é justo,

mas é a própria justiça. Ou ainda: Deus não é justo pelo fato de participar da

justiça; Deus é justo, por ser a própria justiça. No caso de se estar falando

de Deus e de seus atributos, a identidade ou a relação intrínseca entre o

sujeito e o predicado vale para as categorias essenciais (substância,

qualidade, quantidade); mas não vale para as categorias acidentais. Neste

caso, vale o contrário. As categorias acidentais, com efeito, enunciam algo

extrínseco a Deus. Já dizem algo de extrínseco a qualquer sujeito finito. No

caso de Deus, porém, esta “estranheza” aumenta ainda mais. Assim, por

exemplo, tomemos a categoria “onde”. Se eu disser que um homem está na

praça, isto não enuncia algo de intrínseco ao homem, mas algo de extrínseco.

O achar-se localizado aqui ou ali não faz parte de seu ser e sim de um seu

“estar”. Em relação a Deus isso é ainda mais evidente. Quando se diz que

Deus está em todo o lugar, por exemplo, o que se pretende dizer é que Deus

não está em lugar algum.

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3.4 A filosofia prática

Tudo isso pertence à filosofia especulativa. Boécio, no entanto, investigou

também a filosofia prática (HEINZMANN, 1992, p. 101-104). Esta é, antes de

tudo, ética individual; e investiga o modo como o homem pode alcançar a

felicidade pela prática da virtude. Depois, ela é também ética social ou

política; e investiga como é que na sociedade e no Estado podem reinar a

justiça, a prudência, a fortaleza e a moderação. Entre uma e outra se

encontra, ainda, a ética doméstica, que investiga o melhor modo de conduzir

a família para o bem.

Todo o empenho do homem aspira a uma única coisa, ao seu bem último e

pleno, ou seja, à sua felicidade. A felicidade é aquela condição em que todos

os bens se reúnem de modo perfeito (BOÉCIO, 1999, p. 186-187). Esta

felicidade, o homem não pode encontrar fora (extra), mas somente dentro

(intra) de si. Ora, o homem aspira, naturalmente, aos verdadeiros bens. Estes

bens, porém, remetem ao bem supremo. Aspirando ao seu supremo bem, o

homem, no fundo, aspira ao Bem puro e simples, que é idêntico ao Uno. Esta

aspiração ao Uno/Bem puro e simples é o amor (o Eros de Platão). O amor,

a aspiração ao Uno/Bem, é o princípio estruturante do cosmo e da vida

humana. A ruina da alma humana se dá quando ela se perde fora de si, em

busca das muitas coisas, dos muitos bens. Sua salvação, quando ela se

recolhe em si mesma e aí se transcende, movida pela aspiração ao Uno/Bem.

O homem está posto entre Deus e o animal. Está no poder de sua liberdade

elevar-se até Deus ou rebaixar-se ao nível da vida animal. O homem está

também entre o tempo e a eternidade. O tempo é conduzido pela providência

divina. A providência (providentia) é aquela divina razão, que tudo ordena e

dispõe no supremo Senhor de todas as coisas. Deus governa o mundo com

leis imutáveis e estáveis. Imóvel, move todas as coisas. O destino (fatum) é

aquela necessidade das leis imutáveis, que a providência impõe às coisas

mutáveis. O homem que se afasta de Deus e se perde na multiplicidade das

coisas materiais, sente o destino como fatalidade. Porém o homem que aspira

a Deus, retornando, a partir de sua liberdade, para o Uno/Bem, sente o

destino como providência divina. Ele entende que todas as coisas são

conduzidas pela providência e pelo destino para o bem, melhor, para o seu

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bem. Por isso, ele pode sempre esperar e orar. A esperança do homem,

porém, em última instância aspira a uma felicidade que não é temporal, mas

eterna. O tempo não pode conter toda a plenitude da vida divina. Ele se

dispersa na multiplicidade dos momentos, que se sucedem uns aos outros. A

eternidade é um presente que não passa. O presente é uma imagem da

eternidade de Deus. Esta, porém, consiste nisso: na posse perfeita e

totalmente simultânea da vida infinita (interminabilis vitae tota simul et

perfectio possessio).

Na concepção de Boécio, este homem que perfaz seu caminho a partir da sua

liberdade, medindo-se com o destino e com a providência divina, é pessoa.

Pessoa é uma substância indivídua, de natureza racional (naturae rationabilis

individua substantia). Cada homem constitui a sua individualidade, a partir

de sua “natureza racional”, isto é, a partir de sua liberdade, de sua

capacidade de conhecer a verdade e de amar, isto é, de aspirar ao bem. À

medida que ele conhece a verdade e pratica o bem, ele se torna mais

propriamente pessoa e alcança, assim, a semelhança com Deus, que também

é um ser pessoal, melhor, tri-pessoal. De fato, o fim último do homem, ao

participar da eternidade de Deus, isto é, da plenitude de sua vida, é deificar-

se (deos fieri).

Estante do saber

Boécio e o problema dos futuros contingentes

(http://www.principios.cchla.ufrn.br/23P-205-232.pdf), de William de

Siqueira Piauí.

A influência de Boécio sobre a Idade Média Latina foi rica: não só na

lógica, mas também na metafísica e na teologia; não só na filosofia

especulativa, mas também na filosofia prática, especialmente na

ética. Não só no conteúdo do que ele ensinou, mas também na

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linguagem que ele cunhou com a língua latina. Alcuíno o considerou

uma autoridade. Abelardo, no século XII, o tomou como o maior dos

filósofos latinos. O Livro das Sentenças, de Pedro Lombardo, que

será comentado pelos grandes mestres do século XIII, o cita

continuamente. Ainda no século XII, o seu pensamento influenciará

sobretudo a Escola de Chartres e Gilberto Porretano. Muitos serão

os insignes pensadores que comentarão suas obras, incluindo

Tomás de Aquino. O livro De Consolatione Philosophiae (Da

Consolação da Filosofia) será comentado por João Escoto Eriúgena,

Guilherme de Conches, Pedro d’Ailly, Dionísio, o Cartuxo, entre

outros. Será traduzido, ainda na Idade Média, para o inglês, francês,

alemão e grego. Dante e Boccaccio o estimarão. Outros, como João

Gerson e Mateus de Cracóvia, o imitarão, escrevendo também uma

Consolatio Theologiae (Consolação da Teologia).

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Aula 04 – João Escoto Eriúgena

Na Alta Idade Média, João Escoto Eriúgena, no século IX, foi o

pensador que levou à consumação a apropriação da cultura e do

pensamento antigo por parte do mundo latino, apropriação que

começara com Boécio. Ele é o maior nome da época do

renascimento carolíngio. Vamos, pois, estudá-lo nesta aula.

4.1 Nas pegadas do Pseudo-Dionísio Areopagita

Foi como filósofo, e não tanto como teólogo, que João Escoto Eriúgena (c.

810 – c. 877) entrou para a história do pensamento medieval. Seus grandes

feitos foram, primeiro, ter dado entrada no mundo latino, à tradição grega

que se refaz a Gregório de Nissa, Dionísio Areopagita e Máximo, o Confessor

(580-662); segundo, ter apresentado uma concepção do Todo da realidade,

na sua obra prima De divisione naturae (Da divisão da natureza), muito mais

elevada no domínio da linguagem e do pensamento, do que toda outra obra

de seu tempo, no mundo latino.

Johannes Scotus Eriugena: assim era o seu nome para os medievais. Na

literatura atual, ele é chamado ora de Erígena, ora de Eriúgena. O seu nome

diz a sua origem: Scotus significa que vem da Escócia; Eriúgena, ou Erígena,

que ele vem da Irlanda (Eire, em irlandês). Esta combinação – Scotus

Eriugena – se explica pelo fato de a Irlanda ser chamada, naquele tempo, de

Scotia Maior (Escócia Maior). Sua atividade, porém, se dá na França, em

Paris, sob o governo de Carlos, o Calvo.

O conhecimento da língua grega o permitiu traduzir os escritos de Gregório

de Nissa, Dionísio Areopagita e Máximo, o Confessor. Já havia uma tradução

das obras de Dionísio, feita por Hilduíno, abade do mosteiro de São Dionísio,

no tempo do Imperador Luís, o Pio, mas esta era ininteligível. Por isso, Carlos,

o Calvo, recomendou a Eriúgena que fizesse outra. Eriúgena não estudou

somente os escritos de Dionísio, mas também os de seu principal herdeiro no

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oriente, Máximo, o Confessor. Máximo tinha dado prosseguimento à doutrina

de Dionísio, tornando-a um pouco mais acomodada aos moldes da ortodoxia.

No centro de sua obra está a tese sobre a encarnação, muito apreciada no

oriente, a saber, de que Deus se fez homem para que o homem fosse feito

Deus. Trata-se da theosis (deificação) do homem, que é a consumação da

criação, o retorno de todas as coisas a Deus. Como o homem é microcosmo

(um cosmo em miniatura), ao se unir ao homem Deus une-se a todo o cosmo

e, quando o homem é deificado, com ele todo o universo é também deificado:

Deus se torna tudo em todas as coisas.

4.2 A divisão da natureza

A obra prima de Eriúgena, escrita na forma de diálogo entre um nutritor

(nutridor, professor) e de um alumnus (pupilo, aluno), traz em seu título a

língua grega e latina, sinal de que o pensador pensa em latim, mas a partir

da língua grega. O título está assim formulado: Peri physeos merismou id est

De divisione naturae. Peri physeos merismou é a expressão grega, que

Eriúgena repete, em língua latina, depois de um id est (isto é): De divisione

naturae. Objeto da investigação é, portanto, o tema mais antigo da filosofia:

a Physis, o que os latinos traduziram por Natura. Ambas as palavras nomeiam

não a natureza no sentido parcial das ciências naturais, mas a natureza em

sentido filosófico: o ser, sendo como a totalidade do ente, ou seja, de tudo

aquilo que é. A palavra grega, physis, dá a entender a experiência do ser

como surgimento (phyo = surgir, brotar, nascer). De modo análogo, a palavra

latina, natura, significa a experiência do nascer (nasci = nascer, vir à luz).

Natureza é o vigor de ser como surgimento e nascimento, como irrupção no

claro, como vir à luz. A obra trata, pois, do ser em sua originariedade e de

suas “divisões”.

A palavra divisio (divisão) tem um sentido próprio no contexto do

neoplatonismo. Não tem o sentido classificatório que damos ao termo. Não

somos nós que dividimos a natureza, mas a natureza mesma que se “divide”.

Por sua vez, divisão (divisio) não tem o sentido de partir, mas sim o sentido

de fazer-se ver (visio = visão). O ser originário se faz ver em diferentes

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espécies. Espécie significa, aqui, o modo como algo se faz ver, como se ele

se dá à visão (aspectus), melhor, a forma, o contorno, o brilho e esplendor

de ser (speciosus = formoso, brilhante). No contexto neoplatônico, divisio

(divisão) corresponde à analysis: o modo como o Uno se desdobra e se

articula em uma multiplicidade. É movimento de exitus (saída do Uno) e de

descensus (descida). Assim acontece, por exemplo, na dinâmica dos

universais: o movimento de aparecimento dos entes vai se dando do

generalissimum (o mais geral) ao specialissimum (o mais especial). Para a

concepção neoplatônica, gênero é o elemento gerador, originário (genus =

nascimento, origem); espécie (species) é a forma e o esplendor do que é

gerado. O movimento de desdobramento do uno ao múltiplo vai do

generalíssimo ao especialíssimo e, uma vez alcançada a espécie última, a

multiplicação se finaliza como multiplicação de indivíduos. Individuum é

aquilo que é dividido (divisum) ao extremo e que não é mais divisível

(indivisum). O contrário da divisio (divisão) é a resolutio (literalmente:

desligamento; em sentido figurado, porém: a dissolução ou dissipação, no

caso, do múltiplo), isto é, quando o múltiplo se desfaz, pelo seu retorno ao

uno. O caminho de ascensão (ascensus) e retorno (reditus), que vai do

múltiplo ao uno, parte do indivíduo e das múltiplas espécies e chega ao

generalíssimo (o ser como substância). A divisão da natureza, porém, não se

dá segundo a dinâmica de gêneros e espécies, mas se dá de modo

transcendental, pois o que nela se faz ver ultrapassa todo o criado e a própria

categoria de substância. Refere-se à dinâmica de desdobramento do ser em

sentido transcendental e não do ser em sentido categorial (substância = ser

em si).

As divisões da natureza não constituem partes de um todo, mas

manifestações diversas do Todo. Divisio (divisão) é o ato pelo qual a

“Natureza”, melhor, o Todo, o Absoluto, a plenitude originária e una do ser,

que nós chamamos de Deus, se desdobra, melhor, se comunica, se faz visível.

Ela é teofania: divina apparitio (Da divisão da Natureza III 19). As quatro

divisões da Natureza são, pois, destinações do Todo, são momentos de uma

história do ser, cuja origem e fim se encontram na eternidade.

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Torna-se me visível que a divisão da natureza através de quatro diferenças

recebe quatro espécies: das quais a primeira está naquela que cria e não é

criada; a segunda, naquela que é criada e cria; a terceira, naquela que é

criada e não cria; e a quarta, naquela que nem cria nem é criada (Da divisão

da Natureza I 1).

1. A primeira aparição do ser se dá naquela natureza que não é criada e

cria: Deus como causa creatrix (causa criadora). Deus é a essência-ente,

possibilidade real e realidade possibilitadora de tudo o que vem a ser,

fundamento abissal de todas as coisas. Pelo ato criador, ele comunica

existência a tudo o mais. Enquanto ser originário e pleno, Deus é tudo, é o

Todo, o Uno, o absoluto, o eterno. Nada há fora dele.

2. A segunda aparição do ser se dá naquela natureza que é criada e que

cria. Trata-se, aqui, das causae primordiales (causas primordiais ou

primeiras) de todas as coisas, o que Platão chamou de ideias, as formas

originárias ou arquétipos de todas as coisas. Esta concepção, porém, em

Eriúgena só se entende caso se tome como horizonte a doutrina cristã

trinitária, mais especificamente, a doutrina cristã do Logos-Filho de Deus.

Cada coisa, antes de ser em si mesma e no espaço-tempo do mundo, é em

Deus, como um pensamento e um desejo no espírito de Deus, ou melhor, no

Filho de Deus. A criação é um desdobramento e uma ressonância da geração

do Filho. No Filho, o Pai se diz. Nele, o Pai concebe e diz todas as coisas, por

bem-querer, de modo absolutamente gratuito. Criação é comunicação do ser,

comunicação que se dá por meio do Filho: a Palavra (o Logos, o Verbo, a

Sabedoria, a Arte) eterna do Pai. “No princípio Deus criou o céu e a terra”,

isto é, a totalidade dos entes. “No princípio”, isto é, na Palavra (Logos), no

Filho, que é coessencial e coeterno com Deus, o Pai. Por isso, criação tem um

quê de geração. O criado é cria de Deus, concebido, gestado e trazido à luz

por Deus no Filho de Deus, desde a eternidade. A natureza das coisas que

estão na mente ou no espírito divino é criada, mas é também criadora. A

verdade de cada coisa do mundo consiste em ela ser assim como era no

pensamento de Deus. As ideias eternas das coisas são arquétipos, formas

formadoras, que determinam o modo de ser de cada coisa que vem à luz no

espaço-tempo do mundo.

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3. A terceira aparição se dá naquela natureza que é criada, mas não é

criadora. Natureza naturada, não natureza naturante, para usar uma

terminologia análoga, presente na modernidade, desde Spinoza. Trata-se,

aqui, da natureza do mundo, estendida no espaço-tempo. O mundo surge do

nada: do nada da receptividade para o ser, denominado de materia prima

(matéria primordial). “O mundo é, pois, feito de matéria sem forma; matéria

sem forma, totalmente, de nada; e, por isso, também o mundo é feito

totalmente de nada” (Da divisão da Natureza III 22). Cada coisa do mundo é

concreta. Isto quer dizer: ela se faz visível por meio de uma concreção

(concretum: particípio passado de concrescere = crescer junto, adensar,

condensar). Os dois elementos que entram na composição do concreto é a

forma, elemento determinante do modo de ser, e a matéria, princípio de

receptividade, que se predispõe a ser. Só que, agora, como matéria formada.

O mundo criado é, neste sentido, a forma terminal do processo criativo do

ser. Por ser terminal, já não cria. É, no entanto, criado. Criar é, aqui, dar

existência, possibilitar subsistência e consistência de ser. O ser não é

somente essência, mas também existência. Existência significa a positividade

de ser: de ser no espaço-tempo do mundo, de ser em si (substância) e de

ser relação com outras coisas, de ter uma densidade e uma consistência de

ser. Esta concepção de ser, de cunho “existencial”, é nova em relação ao

neoplatonismo, que entendia o ser de modo essencialista.

4. A quarta aparição do ser se constitui na natureza não criada e que não

cria. É Deus como fim de todas as coisas, o Bem para o qual tudo tende e

pende, como à sua consumação, perfeição e plenitude. Aqui se trata de Deus

como a plenitude serena em que todo o movimento criativo se aquieta e se

silencia; o silêncio em que a sinfonia da criação se recolhe. A primeira e a

quarta divisões, portanto, correspondem a Deus como o princípio e o fim de

todas as coisas, alfa e ômega de tudo. Nas palavras do próprio Eriúgena:

E, pois, a primeira e a quarta são um, porque elas são

inteligíveis somente a respeito e a partir de Deus; é ele, pois, o

princípio de todas as coisas que são dadas com ele, dele a partir

de si, e é o fim de todas as coisas, que o apetecem, para que

nele se aquietem eterna e imutavelmente (Da divisão da

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Natureza II 2 – tradução nossa). (Apud ÜBERWEG & HEINZE,

1927, p. 174).

O fim de tudo é o retorno (reditus), a reversão (reversio) para Deus. É o

recolhimento do múltiplo no Uno. Na consumação de todas as coisas, Deus é

tudo em tudo. Escutemos as próprias palavras de Eriúgena. Ele diz que, neste

estágio, Deus

... já deixou de criar, uma vez que todas as coisas estão

convertidas para dentro de suas razões eternas nas quais

permanecerão e permanecem, desistindo também de serem

chamadas pelo nome de criaturas; Deus, pois será tudo em

tudo, e toda a criatura será obumbrada, uma vez que foi

convertida para dentro de Deus, como os astros ao surgir do sol

(Da divisão da Natureza III 23). (Apud ÜBERWEG & HEINZE,

1927, p. 174).

4.3 Deus e as criaturas

Qual, porém, a relação entre Deus e a criatura? A imensa intimidade entre

Deus e a criatura que se apresenta nessa concepção de Eriúgena levantou

suspeitas, ao longo da história, de panteísmo. Contudo, há panteísmo onde

o Deus em questão não é tomado como ser pessoal e onde o ato criador é

encarado como simples emanação e não como um ato livre e gratuito de

amor. Não é o caso de Eriúgena. Apesar das ressonâncias neoplatônicas, o

seu pensamento é fundamentalmente cristão. O horizonte de sentido de sua

exposição é o mistério trinitário. A processão do universo a partir de Deus se

dá por meio do Filho. É o Espírito Santo que vivifica todas as coisas. É por

meio da deificação do homem que o universo retorna para Deus e nele se

aquieta. O homem é criado de tal maneira, que nele todas as coisas estão

contidas. Ele é o microcosmo, por ser o elo que liga as duas extremidades

criaturais: o mundo do espírito e o mundo do corpo, o inteligível e o sensível.

A queda do homem é a queda do universo. A salvação do homem é a própria

salvação do universo. Ao unir-se ao homem, na encarnação, Deus se une ao

próprio universo. A intimidade que existe entre Deus e a criatura é uma

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intimidade da relação paternal-filial e mesmo da relação esponsal. A

deificação não é uma eliminação do humano no homem, mas a sua plena

consumação, pois o homem já fora criado à imagem e semelhança de Deus.

A reversão e resolução de todas as coisas em Deus não é a supressão da

individualidade, mas a sua consumação (cfr. Da Divisão da Natureza V 8-13).

Não há confusão entre Deus e a criatura. “Conquanto, Deus não é o todo da

criatura, nem a criatura parte de Deus, assim do mesmo modo, a criatura

não é o todo de Deus, nem Deus, parte da criatura” (Da divisão da Natureza

II 1) (Apud ÜBERWEG & HEINZE, 1927, p. 174). Entretanto, há absoluta

intimidade e proximidade entre Deus e a criatura, uma plena identificação, o

que só se torna possível a partir de uma admirável condescendência amorosa

por parte de Deus, pois, ao criar, Deus se faz, de certa maneira, “criado”, isto

é, renunciando-se à sua absoluteza, Deus se dispõe a entrar no horizonte do

ser criatural, a se relacionar com a criatura no plano de ser dela mesma:

Nada, pois, subsiste fora dela (da natureza divina). Conclui-se

que somente ela, verdadeira e propriamente, é em todas as

coisas e nada verdadeira e propriamente é, que não seja ela.

Assim, não devemos compreendê-las como duas coisas

distantes, Senhor e criatura, mas como um e o mesmo. Pois,

tanto a criatura é subsistente em Deus, quanto Deus de modo

admirável e inefável é criado na criatura, manifestando-se a si

mesmo; invisível, fazendo-se visível; incompreensível, fazendo-

se compreensível; oculto, fazendo-se aberto; incógnito,

fazendo-se conhecido; carente de forma e aspecto, fazendo-se

formoso e especioso; sendo super-essencial, fazendo-se

essencial; e sendo super-natural, fazendo-se natural (...); em

todas as coisas criando, faz-se criado em todas as coisas; sendo

feitor de todas as coisas, torna-se feito em todas as coisas. (Da

Divisão da Natureza III 17) (Apud ÜBERWEG & HEINZE, 1927,

p. 173).

Paradoxalmente, o infinito se torna finito. Mas, um infinito que não pode ser

finito não é verdadeiro infinito. A condescendência de Deus não depõe contra

a sua transcendência, antes a atesta e corrobora. De uma maneira dialética,

porém, pela via negativa, é preciso reafirmar a transcendência de Deus.

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Eriúgena o faz, ao modo de Dionísio. A via negativa leva a intuir Deus como

não criado nem criador. Mas, agora, de um modo todo especial. Deus é agora

intuído não como princípio nem como fim de todas as coisas; não mais como

ser nem como natureza, nem como essência nem como ente; mas como o

que transcende tudo isso, como “super-essencial”. Essentia est, affirmatio;

essentia non est, abdicatio; superessentialis est, affirmatio simul et negatio

(É essência, afirmação; não é essência, abdicação; é super-essencial,

afirmação e, simultaneamente, negação) (Da divisão da Natureza I 16). A via

negativa é via de abdicação. É renunciando a Deus que o homem intui algo

do mistério de Deus, não como criador, princípio e fim da criatura, mas como

Deus mesmo, na sua Deidade. Em sua Deidade, Deus se dá como silêncio.

Aqui todo o afirmar e negar se recolhe. Como o que transcende todo o ser,

toda a essência e natureza, todo o ente e existente, Deus pode ser chamado

de Nada?

4.4 Ser e nada

Eriúgena faz uma investigação sobre os modos em que nós falamos de ser e

de nada (ÜBERWEG & HEINZE, 1927, p. 170-171). Há pelos menos cinco

modos de interpretar o ser e o nada, ou melhor, aquelas coisas que são (ea

quae sunt) e aquelas que não são (ea quae non sunt). Tudo depende, do

ponto de vista semântico, do sentido que a cópula est (é) ou non est (não é)

recebe na proposição.

1. Num primeiro sentido, dizemos que é àquilo que se faz conhecer

diretamente, por meio da experiência sensível. Neste sentido Deus

nada é, mas não somente Deus. Também a essência de cada coisa

e as ideias ou razões eternas das coisas na mente de Deus nada

são. Nós não conhecemos o que a coisa é (sua essência), mas

apenas que ela é (sua existência). De sua essência nós só temos

um conhecimento indireto, oblíquo, por via dos acidentes, ou

melhor, dos atributos e propriedades, sendo algumas mais

características e substanciais do que as outras. Do mesmo modo,

Deus e as ideias são por nós pensados, mas não conhecidos, se por

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conhecimento entendermos aquilo que se dá de modo sensível.

Neste primeiro sentido, pois, o que é metafísico é um nada.

2. Em segundo lugar, na ordem do criado, diz-se que é a tudo aquilo

que se deixa apreender num determinado nível, que não é, a tudo

o que transcende esse nível, estando num nível superior. A cada

vez, o superior é um nada em relação ao inferior, que não o

apreende. O vegetal nada é para o mineral; o animal, nada é para

o vegetal; a alma intelectiva nada é para o animal (alma sensitiva);

o anjo nada é para o homem. Nada é, aqui, designação para

transcendência, superação no ser, superioridade de ser.

3. Em terceiro lugar, chamamos de nada àquilo que é apenas

potencial, ao que ainda não é, ao que ainda não se realizou: como

a semente nada é em relação à árvore.

4. Em quarto lugar, chamamos de nada àquilo que é corporal, pois

surge e perece, isto é, passa do não-ser para o ser e do ser para o

não-ser, aparece e desaparece.

5. Em quinto lugar, num sentido moral, chamamos de nada ao pecado,

pois é um dano à imagem e semelhança de Deus no homem. Desta

exposição podemos inferir que Deus pode ser chamado de “nada” à

medida que este nome designa sua transcendência superessencial,

ou seja, à medida que ele transcende todo o ser, toda a essência e

natureza, todo o ente e existente, à medida que ele é intuído como

sendo unicamente ele mesmo, absoluto, isto é, solto de toda

relação com a criatura, nem como princípio nem como fim de todas

as coisas.

Estante do pensar

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A natureza como teofania em Orígenes e João Eriúgena

(http://www.unisinos.br/publicacoes_cientificas/images/stories/pdfs_

filosofia/vol9n1/19a24_art03_lupi%5Brev_ok%5D.pdf), de João Lupi.

O conceito de participação em João Escoto Eriúgena

(http://www.filosofia.cchla.ufrn.br/dissertacoes/iris%20fatima.pdf),

de Íris Fátima da Silva.

Por causa das suspeitas de panteísmo, o pensamento de Eriúgena

foi prejudicado em sua recepção no pensamento medieval. Muitas

vezes sua influência foi implícita e tácita. Há um grande número de

manuscritos de suas obras, o que atesta que ele foi muito lido na

Idade Média. Citam-no autores como Berengário de Tours, Isaac de

Stella e Alano de Lila. Honório Augustodunense, na primeira metade

do século XII, recorre amplamente ao seu pensamento em sua obra

intitulada “Clavis physicae” (A chave da física). O que prejudicou

bastante a leitura do Da divisão da Natureza foi a interpretação

panteísta dada por Amalrico de Bena e pelos amalricianos. Este

ensinou abertamente a identidade de Deus e da criatura. Para ele,

Deus é a essência e a forma de toda a criatura. Tudo é um e este Um

é Deus. Os amalricianos, por sua vez, ensinavam que Deus atua em

nós o querer e o agir e que, por conseguinte, não havia nenhuma

diferença entre bem e mal, entre mérito e culpa. Diziam ainda que o

Pai se encarnou em Abraão e nos patriarcas; que o Filho se

encarnou em Jesus Cristo; e que o Espírito Santo se encarnara

neles, os amalricianos, para suprimir a Igreja e instituir um reino de

conhecimento e de amor. Quem traz em si o amor está no céu. Não

há, de fato, nem céu nem inferno. Vê-se que a sutil relação de

identidade e diferença que existe no pensamento de Eriúgena cede

lugar, no caso dos amalricianos, a uma concepção grosseira, onde a

identidade perde toda tensão dialética e todo o tom de encontro

pessoal com Deus e a identificação se torna crassa confusão. Por

causa de tudo isso, a leitura do Da divisão da natureza foi proibida

pelo concílio de Paris em 1210 e esta decisão foi ratificada quinze

anos depois pelo papa Honório III. Apesar disso, admiradores de

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Dionísio no século XIII, como Alberto Magno, Tomás de Aquino, e os

franciscanos citaram Eriúgena como o “comentador” de Dionísio.

João Gerson e Nicolau de Cusa, no fim da Idade Média, também o

têm como um dos seus autores favoritos.

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Unidade III: A filosofia na Idade Média românica (séculos X-XII)

O século X foi um século de consolidação do projeto de Estado e de civilização,

começado com Carlos Magno. A França é o centro da Europa. Do ponto de

vista religioso, um fato que marca a história é a fundação da Abadia de Cluny.

As reformas monásticas vão se seguindo, no século XI, com uma renovação

feita pelos beneditinos, com o apogeu de Cluny e com o surgimento de novas

ordens, como os cartuxos (1084) e os cistercienses (1098). Na arte, o

românico dá o tom do espírito desta época. A cristandade medieval se lança

no projeto de realizar na terra a Cidade de Deus, preconizada por Agostinho.

No fim do século XII e início do século XIII o mundo cristão latinófono toma

contato com o pensamento da antiguidade grega de uma maneira mais

profunda através das traduções dos manuscritos dos filósofos gregos. O

intercâmbio cultural entre os latinos e os bizantinos se intensifica. Com a

reconquista de Toledo, começa também um movimento amplo de tradução

de textos dos filósofos do Islã: árabes e judeus. Através disso tudo a filosofia

ver-se-á modificada pela grande influência de Aristóteles, dito “O Filósofo”

por antonomásia. Vamos também, nesta unidade, fazer um passo para trás

e ver como a filosofia foi se desenvolvendo nestes outros mundos e como ela

chega ao mundo cristão latinófono.

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Aula 05 – Anselmo de Cantuária

Para a filosofia, porém, o século X é um século obscuro. Após

Eriúgena, o pensamento se cala. Eriúgena parece ter sido a última

ressonância da antiguidade na Idade Média. A filosofia antiga, que

tinha começado com os poemas sobre a “Physis” termina com um

tratado sobre a “divisão” da physis (Natureza). Há uma

continuidade, de Parmênides a Eriúgena. Entre Eriúgena e Anselmo,

o maior representante do pensamento no século XI, há o silêncio,

um hiato que separa dois mundos. Eriúgena é a consumação do

pensamento antigo na Idade Média, Anselmo, a abertura de um

novo pensamento, de um pensar original, que vai ganhando forma e

densidade no século XII e que rebenta no século XIII. Anselmo

nasceu em Aosta, no Piemonte (Itália), entrou para o mosteiro de

Bec, na Normandia (França), onde foi aluno de Lanfranco, e se

tornou, desde 1093 até a sua morte, arcebispo de Cantuária

(Canterbury, Inglaterra).

Nesta aula vamos estudar as contribuições de Anselmo para a

história da filosofia: a sua teoria da significação e da denominação;

sua posição sobre o problema da relação entre fé e razão; e sua

demonstração da existência de Deus.

5.1 Teoria da significação e da denominação: as categorias

Um feito importante de Anselmo foi a união de lógica e gramática, em sua

obra De Grammatico (Do gramático). Nesta obra, Anselmo une a semântica

de Aristóteles com a gramática de Prisciano, elaborando uma teoria da

significação e da denominação. A teoria da significação e da denominação

parte do problema da paronímia (LIBERA, 1998, p. 295-298). Paronímia

(Paronymia) é a característica de uma palavra que deriva de outra, ou seja,

que recebe de outro a sua denominação, como gramático vem de gramática,

e corajoso de coragem, segundo os exemplos dados por Aristóteles no

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primeiro capítulo das Categorias. O problema que Anselmo se põe é como

“gramático” pode ser, ao mesmo tempo, uma qualidade e uma substância.

Portanto, a ela se atribui a paronímia. Trata-se de um nome ambíguo.

“Gramático” significa, propriamente, isto é, per se, um acidente, mais

claramente, uma qualidade, a saber, “conhecedor da gramática”. Mas, de

uma maneira indeterminada, esta expressão remete a uma substância, isto

é, a um indivíduo que tem esta qualidade: a de ser conhecedor de gramática.

“Gramático”, portanto, significa“per aliud (por outro), isto é, de maneira

indireta, uma substância: este homem, que tem a qualidade de ser

conhecedor de gramática. O termo “homem” denomina e significa direta,

principal e propriamente a substância: este indivíduo. Já o termo “gramático”

é ambíguo: por um lado, denomina a substância significando-a de modo

indireto e indeterminado (per aliud): designa um indivíduo, que é conhecedor

de gramática; por outro lado, o termo “gramático” recebe a sua denominação

de “gramática” e significa per se, isto é, por si mesmo, um acidente, isto é,

uma qualidade: conhecedor de gramática.

A partir desta teoria da denominação e significação, Anselmo aplica à

gramática as categorias da ontologia aristotélica. Parte do seguinte estado de

coisas: o conhecimento da gramática não é essencial ao homem, embora seja

essencial ao gramático. Todo homem pode entender a linguagem sem

precisar da gramática; mas nenhum gramático pode expor uma compreensão

da linguagem sem a formação própria da gramática. Os conceitos de

“gramático” e de “homem” são diferentes. “Homem” nomeia um quid, um

determinado “quê”, uma substância. Designa uma substância primeira

(substantia prima) enquanto significa este homem, este indivíduo. Designa

uma substância segunda (substantia secunda) enquanto significa a espécie

chamada “homem”, a espécie humana. O nome “homem” é, por isso,

chamado de substantivo. “Gramático” nomeia, diretamente, um quale, uma

qualidade. O nome “gramático” é, por isso, um adjetivo. Ele só significa um

quid (substância) por meio de um quale (qualidade). O dialético se ocupa

diretamente com as palavras (voces: vozes) e só mediatamente, por meio

das palavras, com as coisas (res). Neste sentido, ele deve levar em

consideração o que as palavras significam direta e imediatamente (per se).

Por isso, à pergunta – quid est grammaticus? (o que é “gramático”?) – deve

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responder: vox significans qualitatem (uma palavra que significa uma

qualidade), um adjetivo. Grammaticus designa, pois, diretamente uma res

(coisa/algo de real), que é um acidente, um quale (uma qualidade) e equivale

a habens grammaticam (tendo conhecimento da gramática). Grammaticus

designa, então, de modo indireto (per aliud) e de modo denominativo (per

apellationem) o homem.

Pode-se ver, pois, que, na obra De grammatico, Anselmo molda a gramática

segundo a lógica e a metafísica, mais precisamente, segundo a ontologia da

substância. Esta iniciativa possibilitou, por sua vez, o surgimento de uma

lógica da linguagem, no século XII, com Gilberto Porretano e Pedro Abelardo,

e, no século XIII, de uma gramática especulativa, que tratava dos modos de

significar (De modis significandi) das palavras. Assim, as categorias

aristotélicas foram aplicadas à morfologia e à sintaxe. As abordagens da

linguagem de Roger Bacon, Martinho e João de Dácia e Tomás de Erfurt vão

nesta direção. Deste último é a obra Grammatica Speculativa (Gramática

Especulativa), que, no século XX, foi objeto de estudo do doutorado de Martin

Heidegger, ainda quando o texto era atribuído a Duns Scotus.

5.2 A fé em busca do intelecto

O mote de Anselmo é: “fides quaerens intellectum (fé buscando

entendimento). Trata-se de uma retomada do mote de Agostinho: credo ut

intelligam (creio para compreender). Assim se dá o método especulativo de

Anselmo: A ratio (razão), como pensamento que se exerce pela “meditatio”

(meditação), busca, no horizonte da fides (fé), o intellectus (a compreensão,

o entendimento, o insight) (HEINZMANN, 1992, p. 166-169). Como, porém,

entender melhor a relação entre fides e ratio (razão) em Anselmo? Não se

trata de chegar à fé a partir da razão, como queriam os entusiastas da

dialética. Isso é impossível e danoso. Mas, trata-se de chegar a uma

compreensão da fé a partir do exercício da razão, um exercício que não põe

em questão a própria fé, mas a supõe, como horizonte irrenunciável. Pois, o

que está em jogo na fé, é mais do que uma crença ou opinião, ou mesmo a

adesão a uma doutrina, é, acima de tudo, a fidelidade a alguém: ao Deus fiel

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e à sua auto-revelação. A fé, aqui, é entendida em duplo modo: como fides

qua, o ato de crer, e como fides quae, o crido, o conteúdo do que se crê. A

teologia é intellectus fidei: empenho de intelecção que se dá a partir da fé

(do ato de crer, fides qua) e que se volta para a compreensão do crido (do

conteúdo da fé, fides quae). A fides (fé) é dom de Deus. O intellectus

(intelecto), empenho do homem. Por isso, fides quaerens intellectum pode

significar também, em nível mais originário: o dom de Deus que, a priori,

ama, busca e quer, no homem, o empenho de compreender, que é empenho

de receber. Teologia é, assim, o saber de um encontro que se dá entre o Deus

que se dá a revelar e o homem que se dispõe a acolher e a compreender tal

auto-revelação de Deus. Do mesmo modo que o conceito de “fides” (fé),

também o conceito de ratio (razão) é duplo. Por um lado, ratio denomina a

razão como capacidade do homem de processar a compreensão e apreensão

de sentido das coisas (intellectus). Por outro, ratio é entendido como o

fundamento e o fundo essencial de alguma coisa (ratio rei). A teologia

consiste em ser a investigação das rationes necessariae (razões necessárias)

daquilo que é crido (fides quae). Ela procura encontrar e expor as razões da

fé, ou seja, o fundamento essencial e racional daquilo que é crido. É neste

sentido que Anselmo busca realizar algumas investigações teológicas sola

ratione (somente com a razão), isto é, expondo unicamente argumentos de

razão, sem recorrer a argumentos de autoridade (da Escritura ou dos Padres

da Igreja).

A busca do intellectus (compreensão) ou das rationes necessariae (razões

necessárias) no horizonte da fé pressupõe, contudo, a verdade como possível.

Mas, o que é a verdade? Anselmo dedica uma obra em forma de diálogo a

esta questão (De Veritate). Trata-se de uma questão essencial. Ela pergunta

pela essência da verdade – quid sit veritas? (o que é a verdade?). Anselmo

parte da experiência: dizemos que há verdade está ali onde se dá o

verdadeiro. Há a verdade de uma indicação (significatio) e a verdade de uma

enunciação (enunciatio); a verdade de uma opinião (opinio), por um lado, e

a verdade de uma vontade (voluntas) ou de uma ação (actio), por outro; há

ainda uma verdade dos sentidos (sensus) e uma verdade da essência das

coisas (essentiae rerum). Muitas são, pois, as formas de verdade: há uma

verdade do conhecer, a verdade lógica; uma verdade do agir, a verdade ética;

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e uma verdade do ser, a verdade ontológica. A verdade ontológica é o

fundamento da verdade lógica. Com efeito, causa da verdade do juízo ou

enunciado está no ser ou não ser da coisa enunciada (res enunciata). Mas, o

que faz com que todas estas formas de verdade sejam verdade? A resposta

de Anselmo é: a rectitudo (retidão), ou seja, que algo seja como ele deve

ser. Verdade é, portanto, a coincidência ou identidade entre o ser e o dever-

ser da coisa. Mas, de onde a coisa haure o seu dever-ser? O que é normativo

para o real é o ideal, normativo para a coisa é a ideia da coisa. Conhecimento

e ação estão sempre mensurando o fático (o ser real) a partir da essência,

ideia ou norma (o ser ideal, o dever-ser). Isto quer dizer: a verdade lógica e

a verdade ética pressupõem a verdade ontológica. Mas a ideia da coisa se

funda e se fundamenta, originariamente, na mente de Deus. A verdade das

coisas (verdade ontológica) consiste em elas serem aquilo que eram na

mente de Deus, ou seja, em corresponder ao projeto criador divino. As coisas

são imagens concretizadas dos pensamentos de Deus. A ratio necessaria

(razão necessária) de uma coisa é justamente a exposição desta verdade

essencial das coisas, a verdade da essência da coisa. Deus é a verdade

originária, suprema e infinita, a partir da qual as coisas recebem o seu ser

verdadeiro e as formas de verdade se concretizam. Com efeito, a rectitudo

da Verdade, que é Deus, é diferente da rectitudo das formas de verdade

derivadas desta verdade originária. A verdade das coisas recebe sua medida

da summa veritas per se subsistens (verdade suprema que subsiste por si

mesma), que é Deus mesmo. A verdade de Deus não recebe medida de

nenhuma outra, pois ela mesma é o parâmetro, a partir donde se mede a

verdade das coisas (ontológica), e, por conseguinte a verdade do

conhecimento (lógica) e a verdade da ação (ética). Esta verdade, por

conseguinte, não pode se dar de modo plural. Ela é singular: única em si

mesma, e una em todas aquelas outras formas de verdade.

Mas, voltando à pergunta pela essência da verdade, como caracterizar um

conceito formal de verdade, que vale tanto para as formas de verdade

derivadas quanto para a verdade absoluta, una, infinita e suprema? Para

Anselmo, a essência da verdade se deixa dizer nesta indicação: Veritas est

rectitudo mente sola perceptibilis (verdade é a retidão perceptível só com a

mente). A retidão segundo a qual a coisa é o que deve ser, ou seja, é o que

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ela é no pensamento ou no projeto criador de Deus, constitui a verdade

ontológica. Tanto a retidão predicativa, de uma significação ou de um

enunciado, bem como a retidão de um conhecimento dado pela experiência

ou pela razão, que caracteriza a verdade lógica; quanto a retidão de uma

opinião, vontade ou ação, que caracteriza a verdade ética; quanto, ainda a

retidão segundo a qual uma coisa é o que ela deve ser, isto é, correspondendo

ao pensamento dela no desígnio criador de Deus; todas estas formas de

retidão recebem sua medida da verdade originária, infinita, absoluta e

incriada: Deus. Verdade é a percepção da retidão, percepção que se dá sola

mente (com a mente somente), isto é, numa apreensão puramente

inteligível.

5.3 Demonstrações da existência de Deus

A investigação sobre a verdade remeteu à verdade absoluta e originária,

Deus. Mas, como demonstrar sola ratione, isto é, só com a razão, as rationes

necessariae, ou seja, os fundamentos racionais da fé na existência de Deus?

Numa primeira obra, o Monologion, Anselmo tenta demonstrar a existência

de Deus por meio de dois argumentos a posteriori, isto é, partindo da

experiência (ANSELMO, 1995, p. 48-59). Ele o faz seguindo a via platônico-

agostiniana. Num primeiro argumento, Anselmo toma em consideração

conceitos transcendentais: bonum (bom), ens (ente), unum (uno). Anselmo

parte da existência de bens no mundo, que são mais ou menos bons. Alguns

bens nós consideramos bons pela utilidade (propter utilitatem); outros, pela

sua beleza (propter honestatem). Estes bens são medidos e valorados como

mais ou menos bons. Deve haver, então, uma medida pelas quais se medem

os bens. Esta medida deve ser um bem absoluto e não um bem relativo, algo

que é um bem por si mesmo (bonum per se ipsum) e não um bem por

participação, algo que não é um bem, mas o bem. Trata-se, portanto, do

summum bonum (sumo bem), que nós chamamos Deus. Este mesmo

raciocínio vale para a grandeza e para a dignidade. Vale, por fim, para o ser.

Tudo o que é parece ser através e a partir de algo que ele não é. Deve haver

algo, através do que e a partir do que tudo o que é, é: o ente que é a partir

de si mesmo, o sumo ente. E este sumo ente não pode ser senão um só: uma

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vez que a própria verdade exclui que sejam muitos, aquilo por meio do que

tudo é, é necessário que seja um, aquilo pelo que tudo o que é, é. O segundo

argumento toma em consideração uma ordem gradativa no ser de tudo o que

é: a natureza da árvore é menos digna do que a natureza do cavalo, que é

menos digna do que a natureza do homem. Numa há somente o ser, noutra

o ser, o viver e o sentir, noutra, por fim, o ser, o viver, o sentir e o pensar.

Esta gradualidade de naturezas aponta para uma única natureza suprema.

Esta é o que ela é, por si mesma, e tudo o que é, é o que é por ela. Melhor:

trata-se de uma natureza, que é por si mesma boa e grande; que é por si

mesma aquilo que ela é; que é por si mesma o que é sempre verdadeiro,

bom e grande; e que é o sumo bem, a suma grandeza, o sumo ente ou a

suma substância, ou seja, que é o Altíssimo, de tudo aquilo que é. Esta

argumentação pressupõe, pois, o ser por participação (participatio), que é

sempre relativo, a saber, o ser da criatura; e o ser em sentido absoluto, que

é o ser de Deus. O relativo é por outro (ens ab alio). Já o absoluto é por si

mesmo (ens a se). Os muitos relativos pressupõem, contudo, um único

absoluto.

Já no Proslogion (alocução), Anselmo busca um argumento único (unum

argumentum), que possa demonstrar de modo a priori a existência de Deus.

Vejamos o teor do seu argumento:

(1) Portanto, o Senhor, tu que dás a compreensão da fé, dá-me compreender, por quanto tu sabes ser útil, que tu és como cremos, e que tu és aquilo que cremos. Ora, nós cremos que tu és algo em relação ao qual não se pode pensar nada de maior. (2) Ou talvez não existe alguma natureza assim, porque “o insipiente disse no seu coração: ‘Deus não existe’” (Salmo 14, 1 e 53, 1)? Mas, certamente, aquele mesmo insipiente, quando ouve isso que eu digo: “algo em relação ao qual não se pode pensar nada de maior”, entende aquilo que ouve; e aquilo que entende está no seu intelecto, mesmo se não compreenda aquele ser. (3) De fato, uma coisa é uma coisa ser no intelecto, e outra coisa é compreender que aquela coisa existe. Pois, quando um pintor pensa previamente sobre aquilo que há de fazer, ele tem isso no seu intelecto, mas não compreende ainda que existe aquilo que ainda não fez. Quando, porém, já pintou, ele tem no intelecto e compreende que existe aquilo que já fez. (4) Portanto, também o insipiente deve convencer-se de que ao menos no intelecto existe algo em relação ao qual não se pode

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pensar nada de maior, porque, quando ouve isso, compreende. E o que quer que ele compreende, está no intelecto. E certamente isso em relação ao qual não se pode pensar nada de maior, não pode existir somente no intelecto. Se, pois, existe somente no intelecto, pode-se pensar que existe também na realidade, o que é maior. (5) Se, portanto, isso em relação ao qual não se pode pensar algo de maior existe somente no intelecto: isso mesmo em relação ao qual não se pode pensar algo de maior é aquilo em relação ao qual se pode pensar algo de maior. Mas, com certeza, isso não pode ser. Portanto, existe, sem nenhuma dúvida, algo em relação ao qual não se pode pensar algo de maior, seja no intelecto, seja na realidade1.

Trata-se de um argumento que busca não precisar de outros argumentos

para demonstrar, mas que seja suficiente para demonstrar por si mesmo que

Deus em verdade existe. Este “argumento único” de Anselmo foi chamado

por Kant de “argumento ontológico”. No capítulo II, a partir do espírito do

credo ut intelligam (creio para compreender) ou do fides quaerens intellectum

(a fé buscando a compreensão) – que, aliás, é o subtítulo da obra –, Anselmo

diz: et quidem credimus te esse aliquid quo nihil maius cogitari possit (o certo

é que cremos que tu és algo, acima do qual não se pode pensar nada de

maior). Esta denominação assinala a transcendência de Deus. Que ela fale

do Deus da fé e da revelação torna-se claro pelo fato de Anselmo orar a este

Deus, cuja existência ele quer provar (!). Mas, será mesmo que se trata de

uma prova, em sentido apologético? Ou se trata mais de demonstrar, melhor,

de mostrar a racionalidade daquilo que se crê? Neste caso, seria a penumbra

da fé buscando a clareza da compreensão. Em todo o caso, a expressão

aliquid quo nihil maius cogitari possit (algo, acima do qual não se pode pensar

nada de maior) não é nova: está enraizada na tradição latina (Sêneca, Cícero,

Agostinho, Boécio). Nova é a explicação que se segue. O insipiente diz em

seu coração: não há Deus, Deus não existe (cfr. Salmo 13, 1). A proposição

“Deus existe”, como enunciado de algo crido, ou seja, de um conteúdo da fé,

não é evidente por si mesma. É preciso, pois, que intervenha a razão. Pois

bem: o insipiente entende o que significa a expressão aliquid quo nihil maius

1 Anselmo d’Aosta: Proslogion. Milano: Rizzoli, 1992, p. 80-85.

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cogitari possit (algo, acima do qual não se pode pensar nada de maior).

Enquanto esta expressão é entendida, ela está em seu intelecto: intelligit

quod audit, et quod intelligit, in intellectu eius est, etiam si non intelligat illud

esse (entende o que ouve, e aquilo que entende está em seu intelecto,

mesmo se não entende aquele ser). Uma coisa, porém, é ser no intelecto

(esse in intellectu), outra é ser real (esse rem). Por exemplo, o pintor tem

em mente uma obra. Esta obra, enquanto simplesmente pensada e

intencionada pelo pintor, só tem o ser no intelecto do pintor. Agora, se esta

obra é produzida e levada a cabo, ela passa a ser realmente, a ter um ser

real, um ser na realidade efetiva (esse in re). Assim, o que existe somente

no intelecto é menor do que aquilo que existe efetivamente na realidade. Ora,

é certo que aquilo acima do qual não se pode pensar nada de maior não pode

ser somente no intelecto: si enim vel in solo intellectu est, potest cogitari

esse et in re, quod maius est (de fato, se existe só no intelecto, se pode

pensa-lo existente também na realidade e este é ainda maior). Negar que

Deus exista na realidade, portanto, conduz a uma contradição: “por

conseguinte, se aquilo acima do qual não se pode pensar nada de maior,

existe só no intelecto, aquilo acima do qual não se pode pensar nada de maior

é aquilo acima do qual se pode pensar uma coisa maior”. Isso feriria o

princípio de não-contradição: seria afirmar e negar ao mesmo tempo o

mesmo predicado do mesmo sujeito: “Deus é aquilo acima do qual não se

pode pensar nada de maior e Deus é aquilo acima do qual se pode pensar

algo de maior”. A negação da existência de Deus é racionalmente absurda.

A afirmação da existência de Deus é racionalmente evidente. A conclusão é,

pois: “sem dúvida, portanto, algo acima do qual não se pode pensar nada de

maior existe, quer no intelecto, quer na realidade”. Mas, porque então o

insipiente diz em seu coração que Deus não existe? Anselmo distingue entre

o simples pensar (cogitare) uma palavra, que é uma voz significativa (vox

significans) e o entender o que é significado com ela, ou seja, entender a

coisa mesma, aquilo que ela é (intelligere id ipsum, quod res est) (Capítulo

IV). Se se entende aquilo que se pensa, quando se nomeia “aquilo acima do

qual não se pode pensar nada de maior”, não se pode pensa-lo como não

existente (Capítulo III). (ANSELMO, 1990, p. 140-141).

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Um monge contemporâneo de Anselmo, de nome Gaunilo, porém, não ficou

convencido com a demonstração. Por isso, escreveu um livro intitulado Liber

pro insipiente (Livro em favor do insipiente). Para ele, a passagem do esse in

intellectu (ser no intelecto) para o esse in re (ser na realidade) não é

evidente. Há uma diferença entre o ser pensado e o ser real. Eu posso pensar

uma ilha no oceano que ultrapasse a todas as outras em seus atributos e essa

ilha não existir realidade. A resposta de Anselmo é que Deus não é uma ilha.

Isto quer dizer que Gaunilo não observou a singularidade deste ente cuja

existência está em questão nesta demonstração (ANSELMO, 1990, p. 173-

192). O argumento de Gaunilo poderia valer para um ente qualquer, mas não

para o ente supremo. Entretanto, a objeção de Gaunilo abre a perspectiva de

uma objeção que sempre de novo se repetiu contra o argumento único do

Proslogion: o argumento de Anselmo faria um salto indevido da ordem do

pensar para a ordem do ser, pois afirma que, pelo fato de não se poder pensar

Deus como não existente, deve-se concluir que ele existe realmente.

Entretanto, Anselmo distingue, sim, estas duas ordens e afirma que a ordem

do ser é maior do que a ordem do puro pensar. É justamente tendo isso como

pressuposto, que ele afirma que não se pode dizer que Deus existe só no

pensamento e não na realidade e que se deve dizer que Deus existe, quer no

pensamento, quer na realidade.

O argumento de Anselmo provoca uma reflexão relevante sobre pensar e ser.

Parece pressupor uma identidade entre pensar e ser: as leis do pensar seriam

também as leis do ser. Não se pode pensar Deus como não existente, logo,

Deus existe. Uma tese assim teria sentido se fosse pressuposta a identidade

de pensar e ser. Entretanto, Anselmo supõe uma diferença entre o ser-

pensado (esse in intellectu) e o ser realmente (esse in re). O que ele afirma

que Deus não pode ser pensado como algo que existe apenas no pensamento.

Quem entende aquilo que está dizendo, quando fala de Deus, não pode

pensá-lo como não existente. Essa impossibilidade não é somente

psicológica; nem somente lógica; mas é ontológica; ou seja, ela não é

fundamentada somente na ratio (razão) do homem, mas também na ratio rei

(no sentido da coisa mesma) e trata-se de uma ratio necessaria (razão

necessária). Com este argumento, será que Anselmo pretende encerrar Deus

no limite de um conceito e da razão humana? A resposta é: não. A própria

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expressão usada para designar Deus – aquilo acima do qual não se pode

pensar nada de maior – aponta para a grandeza transcendente do sujeito em

questão. Anselmo sabe que Deus é maior do que aquilo que o homem pode

pensar dele: quod maior sit quam cogitari possit (que é maior do que aquilo

que se pode pensar). Deus não é um primeiro ente no universo dos muitos

entes. Entre o ente supremo e o fundamento pelo qual tudo o que é, é, há

uma diferença abissal. Dizer que Deus é o ente supremo, entendendo esta

excelência em sentido relativo e ôntico, é ainda pouco. É preciso dizer muito

mais, isto é, é preciso apontar para a sua excelência no ser, enquanto aquilo

pelo que tudo o que tem o ser, ou melhor, enquanto vere esse, ser em sentido

verdadeiro, ou seja, o ente que tem a singularidade de ser a pura, simples e

absoluta perfeição do ser. Quem pensa Deus não pode somente chegar ao

limite do pensável, deve também, em pensando-o, ultrapassar esse próprio

limite. A expressão “aquilo acima do qual não se pode pensar nada maior” é

um convite a pôr-se no limite do pensável e a ali intuir o que ultrapassa todo

o pensável: a plenitude pura e simples, absoluta do ens a se (ente que é a

partir de si), melhor, do vere esse (ser em sentido verdadeiro e próprio).

Estante do saber

Anselmo de Cantuária sobre a verdade do pensamento

(http://www.ufpel.edu.br/isp/dissertatio/revistas/30/04.pdf), de

Roberto Hofmeister Pich.

Perfeições puras segundo Anselmo de Aosta

(http://www.ufpel.edu.br/isp/dissertatio/revistas/31/09.pdf) e O

papel da razão em Anselmo de Aosta

(http://www.ufpel.edu.br/ich/filosofiamedieval/pdf/anselmo_papel.pd

f), ambos de Manoel Vasconcellos.

O modo como Anselmo abordou a relação entre fé e razão se tornou

paradigmático para a teologia escolástica. Sua teoria da significação

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e da denominação influiu na elaboração de uma doutrina da

“analogia entis” (analogia do ente), que iremos estudar em Tomás

de Aquino. Sua abordagem lógica da gramática influiu na lógica

linguística do século XII (Gilberto de Poitiers e Pedro Abelardo) e

sua abordagem ontológico-categorial da gramática influiu na

elaboração de uma gramática especulativa no século XIII (Roger

Bacon, Tomás de Erfurt). Mas, o que fez história mesmo ao longo

dos séculos foi o “argumento único” do Proslogion. Na Idade Média,

estão a seu favor Guilherme de Auxerre, Boaventura, Mateus de

Aquasparta, Egídio Romano e Duns Scotus. Já Tomás de Aquino e

Guilherme de Ockham não o aceitam. Descartes o assume, desligado

do seu contexto. Kant o critica e rejeita. Hegel o apoia. Cada um, a

partir de sua perspectiva de pensamento. O que não se pode negar

é que Anselmo foi uma autoridade para os medievais e constitui

também um pensador respeitado também pelos pensadores

modernos. E, se os continentais hoje o consideram devido aos seus

temas, os analíticos o retomam devido ao rigor formal lógico de

suas exposições e devido à sua teoria lógico-semântica.

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Aula 06 – Pedro Abelardo

Os homens do século XII respiram ares de modernidade: já não se

acham simplesmente como herdeiros dos antigos, mas também

como iniciadores de algo novo. Coisas novas vão acontecendo em

todos os campos da vida destes homens. Por toda a parte sopram

novos ares. Podemos aqui citar: o surgimento do “amor cortês” em

meio à aristocracia cavalheiresca; o renascimento urbano com o

despontar das comunas; a importância das escolas catedrais, como

a de Chartres e a de São Vitor, a reforma monástica dos

cistercienses, tendo Bernardo de Claraval como protagonista; a

mística das mulheres, tendo em Hildegarda de Bingen um dos seus

expoentes; a hermenêutica da história e a profecia de uma nova era

em Joaquim de Fiori; as lutas entre dialéticos e anti-dialéticos; os

esforços de sistematização com as Sumas e os Livros das

Sentenças, tendo Pedro Lombardo como principal iniciador desta

literatura; e, por fim, mas não com a menor importância, o começo

das traduções dos árabes e dos manuscritos gregos, que vão

renovar o pensamento no século XIII.

Pedro Abelardo (1079-1142) é aquele homem em que a

modernidade do século XII, isto é, a irrupção de um novo modo de

ser histórico, se faz visível. Pedro o Venerável o saudou como o

Aristóteles de seu tempo. Por outro lado, foi ferrenhamente

combatido por Bernardo de Claraval e condenado por dois concílios

por causa deste embate. Abelardo nasceu no Burgo Les Pallet, perto

de Nantes, filho do cavaleiro Berengário e de sua esposa Lucia. Foi

aluno de Roscelino de Compiègne, o grande representante do

nominalismo do século XII e de Guilherme de Champeaux, que

representava uma posição de extremo realismo na querela dos

universais.

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Esta aula não possui fontes. Favor incluí-las.

6.1 Abelardo e a querela dos universais

Uma concepção nominalista dos universais já aparece no século XI. Hermann

de Tournai, na primeira metade do século XII, cita alguns nomes de mestres,

que ensinavam a dialética juxta quosdam modernos (segundo o modo dos

modernos), ou seja, não segundo Boécio. Estes consideravam que o estatuto

dos universais – qual o tipo de ser se deva atribuir a eles - se encontrava in

voce (na palavra) e não in re (na coisa). Anselmo afirma que estes “heréticos

da dialética” consideravam que os universais não fossem nada mais do que

flatus vocis (sopro da voz). A estes modernos e heréticos da dialética

pertence, sem dúvida, Roscelino de Compiègne, que foi mestre de Abelardo.

João de Salisbury, em seu Metalogicus, diz que a posição segundo a qual os

universais, isto é, o gênero e a espécie, se dão na voz, ou melhor, que as

palavras mesmas, em sua sonância física, é que são universais, surgiu e

desapareceu com o próprio Roscelino. O próprio Abelardo, com efeito,

rejeitou a posição extrema do seu mestre. Em vez da tese universale est vox

(universal é a voz), Abelardo apresentou outra tese: universale est sermo

(universal é o discurso, a linguagem) (ÜBERWEG & HEINZE, 1927, p. 205-

213).

Abelardo não aceitou também a posição contrária, a do realismo de seu outro

mestre, Guilherme de Champeaux, o amigo de Bernardo, que, mais tarde,

após ter sido derrotado na disputa com Abelardo, abandonou a dialética e

fundou a Escola de São Vitor. Guilherme ensinava que uma e mesma coisa

(res), essencialmente universal, encontrava-se ao mesmo tempo nos vários

indivíduos da mesma espécie, de sorte que estes não se distinguem quanto

à essência, mas apenas pelo conjunto de acidentes. Depois da disputa com

Abelardo, porém, mudou a formulação de sua tese e, em vez de dizer que a

mesma e única coisa (res) existir essencialmente (essentialiter) nos vários

indivíduos, diz que esta mesma e única coisa (res) existe indiferentemente

(indifferenter) nas coisas individuais. Em todo o caso, para ele, o universal

era uma coisa (essencial ou indiferente) que existia nas coisas individuais.

Numa perspectiva tão realista (realis = aquilo que diz respeito à res, coisa),

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a dimensão do conceito e do pensamento se retira completamente

(ÜBERWEG & HEINZE, 1927, p. 205-213).

Abelardo reformula o problema de Porfírio (HEINZMANN, 1992, p. 178-179).

Este formulou o problema dos universais com três perguntas. Abelardo

apresenta uma quarta pergunta. Na perspectiva de Abelardo, o problema se

apresenta assim: 1. Se os universais (gênero e espécie) têm verdadeiro ser

ou se eles consistem somente em algo pensado e dito (in opinione). 2. Caso

se admita que os universais tenham verdadeiro ser, isto é, existência real,

são eles de natureza corporal ou incorporal? 3. Eles existem separados das

coisas sensíveis ou são imanentes a elas? 4. É necessário que exista alguma

coisa correspondente à denominação dos gêneros e espécies, ou o universal

continua a existir ex significatione intellectus, ou seja, a partir da significação

do conceito, mesmo se não houvesse mais nenhum indivíduo que

correspondesse àquela denominação? Ex.: se não houvesse mais nenhuma

rosa, a palavra rosa continuaria a ter significado?

Abelardo rejeita a posição realista segundo a qual o universal é uma coisa

essencialmente idêntica na diversidade dos indivíduos. Argumenta ele: se nos

indivíduos existe uma coisa essencialmente idêntica e se eles se distinguem

apenas pelas formas, segue que uma e mesma coisa toma formas opostas.

Por exemplo: a “animalidade”, essencialmente idêntica no homem e no bicho,

apresenta as formas opostas da racionalidade e da irracionalidade. O que é

impossível. Abelardo rejeita também a posição ainda realista segundo a qual

o universal é uma coisa indiferentemente idêntica na diversidade dos

indivíduos. Esta tese entende que uma mesma coisa é universal e individual.

A singularidade se funda numa diferenciação (discretio), já a universalidade

consiste numa indiferenciação (indifferentia), ou seja, numa convergência de

semelhanças (convenientia similitudinis). A objeção principal de Abelardo se

volta contra a pressuposição desta tese, de que universalidade e

individualidade poderiam ser compreendidas de maneira puramente

acidental. Isto acarretaria a consequência de que a individualidade pudesse

ser definida por si mesma, o que é contraditório. Abelardo rejeita também a

tese de que o universal é uma coleção (colletio) ou soma de objetos

individuais que caem sob um conceito. Assim, todos os homens constituem o

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universal “homem”. Esta tese tem o inconveniente de exigir que o universal

como todo devesse estar em cada indivíduo.

Entretanto, qual a resposta que Abelardo dá à questão dos universais? Já

dissemos que há uma diferença entre a posição de Roscelino e a de Abelardo.

A do primeiro diz:“universale est vox (universal é voz). Voz é a palavra como

ocorrência física de um som, de um ruído, como algo natural. A posição de

Abelardo diz: universale est sermo (universal é discurso, linguagem). O

discurso, ao contrário, é uma institutio hominum, uma instituição dos

homens. A voz é algo de natural, a palavra ou o discurso é algo de humano,

cultural. Embora a palavra seja também voz, ela é mais do que voz, ela é

uma voz significativa. O ato de significar, porém, é sempre um ato humano,

que se funda na convivência dos homens entre si e no seu mundo cultural.

Além disso, Abelardo define assim o universal: est autem universale

vocabulum quod de pluribus singillatim habile est ex inventione sua praedicari

– universal é um vocábulo que, com base numa instituição ou invenção

humana, é apto a ser predicado individualmente de muitos (Lógica para

iniciantes 16). O universal é, pois, algo que diz respeito à linguagem e não a

coisas. O universal, porém, não é simples vox, som da boca humana, mas é

um vocabulum, vocábulo, isto é, uma vox significativa, uma voz que significa

alguma coisa. Mais ainda: o universal é sermo, algo que se dá no exercício

concreto do discurso, no falar uns com os outros. Neste sentido, o universal

já foi sempre encontrado pelo homem no exercício histórico, social e cultural

do discurso. O homem o encontra (invenit) e à medida que o encontra no

exercício concreto do discurso (sermo), quer dizer, do falar humano no

mundo da convivência, o universal é uma invenção (inventio) ou uma

instituição, isto é, uma fixação ou estipulação, sócio-cultural-histórica

(institutio).

Na verdade, Abelardo apreende uma dupla função do universal (HEINZMANN,

1992, p. 180). A primeira é a da apellatio (denominação), entendida como a

capacidade de indicar objetos perceptíveis sensivelmente. A segunda é a da

significatio, quando se trata de se referir a objeto que não é perceptível

sensivelmente. Assim, quando uso o nome “Pedro” para este homem aqui, o

que está acontecendo é uma denominação. Mas, quando uso o nome

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“homem” como conceito de uma espécie, o que está acontecendo é uma

significação. É que “Pedro” é uma res (coisa), mas “homem”, não. “Homem”

é um conceito (intellectus). A coisa é singular, individual. O conceito é

universal. A palavra pode designar uma coisa, mas pode também designar

um conceito. O erro do realismo está em entender o conceito como coisa

universal.

Entretanto, como se dá a gênese do conceito? Resposta: através da

abstração. O conceito é um produto da capacidade abstrativa do intelecto

humano. A sensibilidade (sensus) oferece a coisa em sua individualidade; o

intelecto (intellectus), ou seja, a razão (ratio) ou a mente (animus) produz o

conceito em sua universalidade. Abstrair é ater-se unicamente à semelhança

formal entre as coisas. Abstrair é uma questão de atenção: é levar em

consideração somente a semelhança entre coisas diferentes individualmente.

Esta semelhança é expressa no conceito. O conceito é uma res imaginaria

quaedam et ficta, uma coisa imaginária e fictícia, uma imagem ou

representação do real. O universal é uma imagem comum e indistinta de

muitas coisas. Como quando eu digo “casa” não tenho em vista esta ou

aquela casa na sua singularidade e com suas qualidades particulares, mas eu

tenho em vista algo de comum e de indiferenciado que pode ser dito de todas

as casas individuais. O conceito “casa” expressa aquilo que é comum e

semelhante em relação a todas as casas individuais, realmente existentes. O

conceito, portanto, enquanto universal, tem em vista a forma communis, a

forma comum das coisas individualmente diversas. A representação

imaginária que é produzida pela razão (figmentum) serve de intermediação

entre o real e o conceito. Aquilo que o intelecto intenciona no conceito

universal não é algo realmente existente, mas a forma comum. Por isso,

mesmo quando não existe a coisa individualmente dada, realmente existente,

o conceito permanece capaz de significar alguma coisa. Por exemplo, se não

existe mais nenhuma rosa neste mundo, o conceito de rosa continuaria

significativo, pois ele se referiria não a rosas existentes, mas à forma comum,

abstrata, de todas as rosas, que já existiram ou que poderiam existir. A

posição de Abelardo, pois, está entre o nominalismo puro e simples de

Roscelino e o realismo extremo de Guilherme de Champeaux. Em busca de

um nome para esta posição, ela poderia ser chamada de conceptualismo.

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6.2 Dialética e a teologia

Outra contribuição importante de Abelardo para a história do pensamento

medieval é o método dialético do Sic et non (Sim e não), nome de uma de

suas obras (ABELARDO, 2000, p. 122-135). Este método, que consiste em

contrapor dialeticamente as opiniões das auctoritates (autoridades, autores

significativos da tradição), foi doravante amplamente aplicado na teologia

medieval. Trata-se de uma nova forma de investigação, que consiste

fundamentalmente na colocação de questões (quaestio, interrogatio) e na

busca da resposta por meio da confrontação entre tese e antítese. Trata-se

também de uma nova concepção sobre a relação entre auctoritas

(autoridade) e ratio (razão), pois confia a esta a incumbência de dar a

resolução às contradições entre os ditos das autoridades da tradição.

Não obstante, Abelardo é favorável ao uso da dialética e não ao seu abuso

no campo teológico. A ratiuncula humana (razãozinha humana) não pode

compreender nem dizer o mistério divino. Ele distingue entre intelligere seu

credere (entender e crer), por um lado, e o cognoscere e comprehendere

(conhecer e compreender), por outro. Aqui na terra o homem não pode

conhecer e compreender o mistério divino, pode somente entender e crer

algo dele. Por isso, o poder da dialética é limitado nesta esfera. O homem

deve sempre se recordar do que Platão dizia a respeito do Sumo Bem, quando

o comparava com o Sol, que não pode ser fitado por muito tempo pelo olhar

do homem. Com efeito, o homem não pode fitar diretamente o mistério

divino. Deus é, aqui, incompreensível para o homem e este pode somente

entender algo dele por meio de imagens e semelhanças (similitudines).

Abelardo aplicou-se, no campo teológico, sobretudo ao estudo da Trindade.

O Pai se dá a conhecer, segundo ele, como potentia (potência), o Filho como

sapientia (sapiência) e o Espírito Santo como benignitas (benignidade) de

Deus. A princípio, Abelardo considerou que os filósofos conhecessem algo da

Trindade, pois entre os platônicos, falava-se de três hipóstases constituidoras

de todas as coisas: o Uno (Hen), o Intelecto (Nous) e a Alma do Mundo

(Psyche). Depois, sob a invectiva de Bernardo de Claraval, Abelardo

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retrocedeu nesta opinião, que era comum entre os pensadores da Escola de

Chartres também. Entretanto, não abdicou de identificar a Anima Mundi

(alma do mundo) com o Espírito Santo. O ensinamento trinitário de Abelardo,

porém, foi condenado como modalismo, graças à impugnação de Bernardo,

em 1140 no Sínodo de Sens. Depois disso, Abelardo teve que se retirar no

claustro de Cluny, acolhido por Pedro o Venerável. Característico é também

o entendimento teológico da encarnação de Abelardo, que foge ao de

Anselmo e de Agostinho. Segundo estes, o Filho de Deus se tinha feito homem

para libertar o homem do poder do diabo e tinha sofrido para dar satisfação

à justiça divina. Para Abelardo, não é este o motivo central da encarnação.

Deus se faz homem no Cristo por amor. Sua encarnação e paixão são para o

homem um exemplo de amor e o homem é salvo à medida que adere a este

amor e o pratica em relação a Deus e ao próximo.

Abelardo deu uma conotação menos objetivista e mais pessoal também à sua

ética. A obra intitulada Scito te ipsum (Conhece-te a ti mesmo) é uma

monografia incompleta sobre os princípios éticos do cristianismo, que retoma

o princípio délfico ou socrático do autoconhecimento (HEINZMANN, 1992, p.

184-185). Na ética, o que vem em primeiro plano não são valores objetivos

nem normas, não é nem mesmo obras ou feitos exteriores, mas as intenções

e as atitudes do homem. Somente a intenção é o decisivo para a moralidade

dos atos humanos. Deus julga o homem não segundo suas obras exteriores,

mas segundo suas intenções interiores. As obras são indiferentes em seu

valor ético. O que dá valor às obras é a intenção. O pecado não é uma

transgressão objetiva de uma norma moral, mas é um agir contra a própria

consciência.

Abelardo também deu uma contribuição importante para uma compreensão

medieval do diálogo intercultural (LIBERA, 1998, 326-327). Sua obra

intitulada Dialogus inter Philosophum, Iudaem et Christianum (Diálogo entre

um filósofo, um judeu e um cristão) é testemunho desta postura aberta e

dialogante de Abelardo. Os três são caracterizados como adoradores do Deus

único, mas cada qual à sua maneira. Eles dialogam e buscam a arbitragem

do autor, isto é, de Abelardo. Neste diálogo Abelardo retoma a concepção

trazida por Justino, segundo a qual o Logos é o mestre universal, aquele que

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ilumina toda a humanidade em sua busca pela verdade. A abertura católica

(universal) desta concepção se expressa na convicção de que nenhum

ensinamento é tão falso que não contenha algo de verdadeiro, ainda que seja

um pequeno vestígio da verdade. O filósofo de Abelardo tem traços árabe-

muçulmanos. Ele é nascido em terras do Islã e criado na tradição islâmica,

mas procura a verdade por meio de argumentos e segue mais a razão do que

as opiniões dos homens. A partir dessa postura, ele estuda criticamente as

“seitas” (divisões religiosas) de seu mundo. Abelardo vê na investigação da

razão por um fundamento comum de verdade a base para um diálogo inter-

religioso e intercultural. Como se pode ver, a fisionomia do filósofo de

Abelardo não corresponde somente ao filósofo árabe-muçulmano, cujo perfil

cai bem com o de Avempace (Abu Bakr ibn al Saigh), contemporâneo de

Abelardo, mas esta fisionomia cai bem também com a do próprio Abelardo e

dos filósofos que, a partir de então, vão apresentar traços de modernidade

em meio à Idade Média. O diálogo de Abelardo foi interrompido por sua

morte. Neste tempo, estavam chegando ao ocidente as primeiras influências

dos árabes na filosofia.

Estante do saber

Virtude, vício e pecado nas obras éticas de Pedro Abelardo (1079 -

1142) (http://www.ufpel.edu.br/isp/dissertatio/revistas/29/29-

06.pdf), de Pedro Rodolfo Fernandes da Silva.

Lei natural e seus desdobramentos no Dialogus inter philosophum,

judaeum et christianum, de Pedro Abelardo

(http://www.revistaindice.com.br/pedrorodolfo.pdf), de Pedro Rodolfo

Fernandes da Silva.

Abelardo assinala uma guinada na autocompreensão do homem

ocidental em pleno século XII. Entretanto, ele não deixou uma

escola. Sua posição sobre o problema dos universais vai repercutir

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no nominalismo e do conceptualismo do século XIV, que será

responsável pela autodestruição da grande síntese escolástica do

século XIII e pela irrupção de uma nova época, marcadamente pelo

desenvolvimento da ciência moderna. Seu método dialético, porém,

foi decisivo para o desenvolvimento da escolástica no século XIII.

No fim do século XII, sob o impulso dado por Abelardo e por Hugo

de São Vitor, começam as primeiras tentativas de colecionar os

ditos das autoridades da tradição com o fim de promover uma

disputa dialética em torno deles. É a época da “Summa

sententiarum” (Suma das sentenças) e dos “Libri sententiarum”

(Livros das Sentenças). A obra mais famosa neste sentido ficou

sendo a de Pedro Lombardo (+ 1160): “Libri quatuor sententiarum”

(Os quatro livros das sentenças). O primeiro livro trata da doutrina

sobre Deus; o segundo, sobre a criação; o terceiro, sobre a

redenção; e o quarto, sobre os sacramentos e a escatologia. Até o

século XVI será costume entre os candidatos ao doutorado em

teologia, ler e comentar, durante dois anos, os quatro livros das

sentenças de Pedro Lombardo. De início os comentários produzidos

serão mais aderentes ao texto. Depois, o texto vai se tornando

apenas o pretexto para a discussão das questões (quaestiones), que

vão sendo desenvolvidas com cada vez maior autonomia por parte

dos comentadores. O peso vai passando da autoridade da tradição

para a força autônoma da razão. E isso, juntamente com as

traduções dos escritos dos pensadores árabes, judeus e gregos, foi

decisivo para o desenvolvimento do pensamento medieval latino

nos séculos seguintes.

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Aula 07 - A filosofia no mundo bizantino

Em 529, o Imperador do Império Romano do Oriente, Justiniano,

mandou fechar a Academia de Platão. Os filósofos de Atenas –

Damáscio, Simplício, Eulâmio, Prisciano da Lídia, Hérmias, Diógenes

e Isidoro de Gaza – deixam o Império Bizantino e se refugiam por

três anos em terras do Império Sassânida. Em 532 eles retornam ao

território do Império Bizantino e se instalam em Harran (a Carrhae

dos latinos), na mesopotâmia setentrional, perto de Edessa. É uma

cidade importante na história da humanidade. De lá, segundo a

Bíblia, teria partido Abraão rumo à terra prometida. Esta mesma

cidade, de cultura assíria, irá acolher, no século IX, filósofos árabes.

Nesta aula vamos estudar como a filosofia viveu em meio ao mundo

cultural e espiritual do Império Bizantino, buscando aprender suas

características neste meio e compreender o modo como se delineou

uma tradição filosófica bizantina, diferenciada daquela latina.

7.1 Características da filosofia em Bizâncio

O mundo bizantino, de língua grega, é outra concreção da romanidade,

aquela que se mantém com o Império Romano do Oriente, cuja capital era

Constantinopla (Bizâncio). Em Bizâncio a filosofia, do século IX ao XV, tem

uma fisionomia e uma história própria. Quatro aspectos marcam o seu perfil

(LIBERA, 1998, p. 19-20). 1. Para os bizantinos, a filosofia, denominada de

“helênica” é algo de estranho; para eles há a filosofia exterior, que é a filosofia

dos filósofos, e há a filosofia interior, que coincide com a teologia cristã, que

seria a verdadeira filosofia. 2. A filosofia usufrui de autonomia em relação à

teologia e a teologia não é entendida como teo-lógica, ou seja, como

aplicação da dialética à discussão das questões pertinentes à fé. 3. A teologia

é essencialmente monástica e não é ensinada na academia; esta tem a função

de formar funcionários do poder imperial e a filosofia é assimilada dentro

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desta perspectiva. 4. O filósofo bizantino é essencialmente um enciclopedista,

um polyhistor, ou seja, um estudioso que domina vários âmbitos da pesquisa.

7.2 As raízes da tradição filosófica bizantina

As raízes da tradição filosófica bizantina se encontram em João Filoponos, no

Pseudo-Dionísio Areopagita e em João Damasceno. João Filoponos (490-570)

viveu em Alexandria. Sobreviveu à perseguição de Justiniano aos filósofos.

Combateu Proclo e comentou Aristóteles. Em 642 Alexandria foi tomada pelos

árabes omíadas. Isso foi decisivo para a história da filosofia, pois os filósofos

árabes aprenderam a ler Aristóteles especialmente pela lente dos

comentadores alexandrinos da tarda antiguidade. Entretanto, a mediação

entre a filosofia antiga e a filosofia medieval bizantina se deu especialmente

pela atuação do Pseudo-Dionísio Areopagita (séc. V-VI), que já estudamos, e

por João Damasceno (+ 754). Uma obra deste último é significativa para a

história da filosofia. Trata-se da obra intitulada Fonte do Conhecimento (Pege

gnoseos). A obra começa com uma introdução à lógica e à ontologia,

inspirada em Porfírio e em Amônio. Na linha da tradição de Filo, Clemente de

Alexandria e Gregório de Nissa, ele vê na filosofia uma serva da teologia,

posição que também será especialmente afirmada por Pedro Damião, no

ocidente, no século XII. A segunda parte da obra dá uma visão das heresias

cristãs. A terceira parte desenvolve sistematicamente a doutrina dos Padres

da Igreja. A teologia dos Padres é articulada em quatro livros: sobre Deus,

sobre a criação, sobre a encarnação e, por último, sobre a glorificação do

homem-Deus, sobre os sacramentos e sobre a escatologia – grosso modo, a

mesma articulação adotada, mais tarde, por Pedro Lombardo (século XII) nos

seus Livros das Sentenças. Esta terceira parte foi traduzida para o latim por

Burgúndio de Pisa (1151) sob a encomenda do papa Eugênio III (1145-1153).

Alberto Magno e Tomás de Aquino a cita sob o nome de De fide ortodoxa (Da

fé ortodoxa) (LIBERA, 1998, p. 76-77). Entre as contribuições de João

Damasceno está a sua teoria dos nomes divinos: a distinção entre nomes

“negativos”, que dizem o que Deus não é, e não o que ele é, e os nomes

“positivos”, que nos dizem o que convém à natureza de Deus (seus atributos),

e não a sua natureza mesma. Outra contribuição é a sua afirmação resoluta

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da transcendência divina: que Deus está além do conhecimento, porque – tal

como o Bem de Platão – é “além da essência” (epekeina tes ousias). Por fim,

ficou famosa também a sua interpretação de Êxodo 3,14, segundo a qual o

“sou quem sou” significa a incompreensibilidade de Deus e que Deus possui

e reúne em si a totalidade do ser, como um oceano de substância, infinito e

ilimitado.

7.3 Os renascimentos nos tempos de Fócio e de Miguel Psellos

Paralelamente, na segunda metade do século IX, aconteceram o

renascimento carolíngio e o renascimento bizantino. Tanto em um como em

outro, a filosofia se encontra na corte imperial e serve para formar

funcionários do alto escalão. O primeiro renascimento bizantino se dá com

Fócio (c. 820-891) (LIBERA, 1998, p. 33-34). Ele é Patriarca de

Constantinopla após a querela do iconoclasmo (730-843). Foi ele quem

enviou Cirilo e Metódio para a evangelização dos eslavos. Mas foi ele também

o protagonista bizantino do primeiro cisma entre a Igreja grega e a Igreja

latina. No centro deste cisma esteve a questão do Filioque. Enquanto a Igreja

latina afirmava que o Espírito Santo provinha do Pai e do Filho, a Igreja Grega

defendia que o Espírito Santo provinha do Pai por processão, assim como o

Filho provinha do Pai por geração. Sua contribuição para o pensamento, no

entanto, é pouca, pois é mais um enciclopedista do que um pensador criativo.

O segundo e mais significativo renascimento bizantino se dá, porém, no

tempo de Miguel Psellos (1018 - c.1078) (LIBERA, 1998, p. 34-39; ÜBERWEG

& HEINZE, 1927, p. 283-285). Este chegou a ocupar o cargo de “cônsul dos

filósofos” na Academia de Constantinopla. Foi ele quem, encarregado pelo

Imperador Isaac Comênio, redigiu o Ato de acusação a Miguel Cerulário

(1054), o patriarca de Constantinopla que protagonizou o segundo cisma

entre as Igrejas latina e grega, devido a questões de jurisdição sobre igrejas

da Itália Meridional e de igrejas latinas de Constantinopla. Miguel Cerulário

tinha excomungado o papa Leão IX e este tinha excomungado o patriarca

Miguel Cerulário. Este acabou sendo deposto e desterrado pelo sínodo graças

à acusação de Miguel Psellos. Miguel Psellos considerava Gregório Nazianzeno

e Platão como as duas maiores autoridades na tradição. Chegou a comentar

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os Oráculos Caldaicos, texto considerado pelos filósofos neoplatônicos,

especialmente Proclo, como revelação divina. Contribuiu, na lógica, para uma

teoria dos silogismos. Sucessor de Miguel Psellos no cargo de “Cônsul dos

filósofos” foi João Ítalo (+ 1055), defensor do aristotelismo neoplatonizante.

Foi suspeito de heresia pela aplicação da dialética no campo teológico. Foi

proibido de ensinar por causa das teses pagãs (“helênicas”, segundo a

linguagem da época) que ele defendia.

7.4 A filosofia em bizâncio nos séculos XII e XIII

No começo do século XII, o filósofo Nicolau de Methone (+1165) escreve uma

refutação dos Elementos de Teologia, de Proclo (ÜBERWEG & HEINZE, 1927,

p. 285). A tentativa de aplicar o aristotelismo lógico à teologia leva à

condenação outro filósofo: Eustrato de Nicéia (c. 1050 – c. 1120) (LIBERA,

1998, p. 40-42). Este formulou uma teoria do Bem supremo como princípio

único de todos os seres; como o que possui o ser de maneira eminente e

antecipadamente. Entende que Deus tem em si mesmo, antes da criação, de

maneira supraintelectual e supraessencial, as ideias de todas as coisas.

Colaborou para formar a doutrina dos três estados do universal, importante

na escolástica medieval. O primeiro estado seria o universal ante rem (antes

da coisa): correspondente à ideia ou arquétipo do ente na mente de Deus. O

segundo estado seria o universal in re (na coisa): correspondente à forma

imanente das coisas. O terceiro estado seria o universal post rem (depois da

coisa): correspondente ao conceito geral abstrato, extraído a partir do

sensível pelo intelecto. Chegou a ser traduzido para o latim por Roberto

Grosseteste. Outro traduzido pelo mesmo autor latinófono foi Miguel de Éfeso

( + c. 1110) (LIBERA, 1998, p. 42-43). Junto com Eustrato, fez parte de um

círculo de filósofos reunido pela princesa Ana Comneno. Também ele

comentou escritos de Aristóteles. Contudo, o aristotelismo destes autores era

baseado numa leitura neoplatonizante do Estagirita. No século XII há certo

intercâmbio com o mundo latino na corte dos Comneno. Há filósofos latinos

em Constantinopla: Leão Toscano e Hugo Eteriano. Há também filósofos

latinos que traduzem textos filosóficos do grego para o latim. São os

chamados graecizantes. Entre eles aparecem os nomes de: Burgúndio de Pisa

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(c. 1110-1193) e Tiago de Veneza, o primeiro tradutor medieval latino de

Aristóteles.

Em 1204 Constantinopla foi tomada pelos latinos na Quarta Cruzada. O

Império Latino de Constantinopla durou até o ano de 1261. Neste período, a

filosofia calou-se em Constantinopla. Extinguido o Estado e o ensino na corte

imperial, extingue-se também a produção filosófica. Entretanto, alguns

filósofos se refugiaram no Império de Nicéia. Dentre estes, Nicéforo

Blemnydes. Por este tempo, o filho do Imperador João III, Teodoro Dukas

Láscaris (que veio a ser Teodoro II) escreveu duas obras filosóficas de

importância: Sobre a unidade da natureza e Interpretação do universo. Após

a morte deste, Miguel VIII Paleólogo retoma Constantinopla (1261). Depois

da reconquista, outro filósofo se destaca: Jorge Paquímero, que comenta

Dionísio e a segunda parte do Parmênides de Platão. Também faz um resumo

da obra de Boécio. Jorge Paquímero se opôs à união entre as Igrejas Latina

e Grega levada a cabo, temporariamente, no concílio de Lião (1274) (LIBERA,

1998, p. 47-49).

7.5 A filosofia em bizâncio nos séculos XIV e XV

As atividades acadêmicas de Constantinopla renascem, no século XIV, com a

do Katholikon Museion (Museu Universal), sob o reinado de Andrônico II

(LIBERA, 1998, p. 49-59). Muitos ocidentais começaram a frequentar esta

instituição. Dentre estes, dois humanistas italianos: Francesco Filelfo e Enea

Silvio Picolomini (futuro papa Pio II). Este intercâmbio será essencial para o

Renascimento. No início do século XIV, os estudiosos bizantinos se dividem

em duas tendências, uma voltada para a física antiga e outra voltada para a

astronomia “moderna”. Nicéforo Chumnos (1250-1327), aristotélico convicto,

representa a primeira tendência, e Teodoro Metoquita (1270-1322), defensor

da astronomia ptolomaica, a segunda.

O que domina durante o século XIV é a controvérsia do hesicasmo ou

quietismo. A tensão, nesta querela, é entre racionalismo e misticismo. O

hesicasmo fala da hesykhia (repouso, quietude) como uma experiência de

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iluminação, semelhante à de Moisés no monte Horeb ou a da transfiguração,

experimentada pelos discípulos Pedro, Tiago e João no monte Tabor, e

também como uma experiência de visão da glória divina, que conduz à

deificação. Sua proveniência é antiga, remonta a Gregório de Nissa.

Entretanto, o próprio do hesicasmo medieval é o método de recolhimento

interior, exposto, por exemplo, por Simeão, o Novo Teólogo (949-1022). Este

método ensinava a “oração do coração” ou a “oração de Jesus”, aliado a uma

concentração da atenção da mente no umbigo, daí o fato de os místicos que

praticavam este método serem chamados de onfalopsíquicos (os que têm a

alma no umbigo). O maior adversário dos hesicastas foi Barlaam de Simara

(c. 1290- c. 1348). O maior defensor do hesicasmo, porém, foi Gregório

Palamás (1296-1359). A doutrina de Palamás é a reafirmação de uma tese

central da teologia bizantina: a deificação (théosis) do cristão. A disputa foi

vencida pelos hesicastas. Em 1368, com efeito, Gregório Palamás foi

canonizado. Barlaam foi condenado em 1341 e se refugiou no ocidente,

convertendo-se ao catolicismo e tornando-se bispo. Chegou a ensinar o grego

a Petrarca. Um nome de destaque na filosofia deste tempo foi Nicéforo

Gregora (c. 1265-1360), também conhecido como Nicéforo o filósofo.

Escreveu uma monumental História Romana (em 37 volumes), uma crônica

de 1204 a 1359. Critica tanto o palamismo como o antipalamismo. Negava a

distinção entre a essência divina e as suas “energias”, bem como a

possibilidade de qualquer conhecimento místico. Foi aprisionado por três anos

após a vitória do palamismo no sínodo de 1351. A doutrina de Gregório

Palamas, por sua vez, foi levada adiante por Nicolau Cabasillas (1320-1398).

Este, em sua obra intitulada Sobre a vida em Cristo, acentua a primazia, em

relação às obras exteriores, da consciência, da intenção e da boa vontade.

Dá mais importância ao amor e à renúncia de si do que aos exercícios

ascéticos. Valoriza sumamente a liturgia bizantina, com toda a sua teologia

simbólica.

A segunda metade do século XIV foi dominada pela controvérsia em torno ao

tomismo. A grande figura do tomismo bizantino é Demétrio Kydones (c.

1324-1397/1398). O principal adversário, por sua vez, é Calixto Angelikudes

(c. 1340-1420). Este, favorável ao palamismo, combate na doutrina de

Tomás a identificação entre a essência divina e suas perfeições e a tese

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tomista de que os bem-aventurados irão ter uma visão da essência divina na

eternidade, embora ao homem peregrino neste mundo seja esta mesma a

visão algo impossível. Para Calixto esta visão da essência divina é por

princípio impossível, quer na temporalidade, quer na eternidade. A visão

beatífica é um ser iluminado pela glória divina e não um conhecimento da

essência de Deus.

O debate do século XV é dominado pela oposição entre platônicos e

aristotélicos. Do lado platônico, neste tempo, destaca-se Gemistos Pleton

(1355/1360- c. 1452). Do lado aristotélico, Jorge Escolário (c. 1405-1472),

que chegou inclusive a traduzir e comentar o De ente et essentia (Do ente e

da essência) de Tomás de Aquino.

Com a queda de Constantinopla sob o domínio dos turcos otomanos,

liderados por Maomé II, em 1453, muitos humanistas platonizantes

bizantinos migrarão para a Itália e ajudarão a constituir o

humanismo italiano renascentista, que se oporá ao aristotelismo

escolástico e reabilitará o helenismo pagão, fazendo irromper,

assim, o advento da modernidade propriamente dita.

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Aula 08 – A filosofia nos mundos islâmico e judaico medieval

Vejamos, neste momento, como a filosofia viveu em terras do Islã.

Antes de tudo vamos estudar como a filosofia foi recebida,

aculturada e cultivada no Islã oriental. Depois vamos ver como ela

se fez presente no Islã ocidental, mais precisamente na Andaluzia, a

Espanha muçulmana. Vamos também estudar como a filosofia foi

cultivada pelos judeus medievais, especialmente por aqueles que

viveram no Islã nos tempos em que a filosofia mais floresceu.

8.1 A translação da filosofia para o Islã por obra de filósofos pagãos

e cristãos na Pérsia e na Síria

Durante a época omíada (661-750) a filosofia que se faz presente em terras

do Islã é cultivada por pagãos e cristãos (LIBERA, 1998, p. 70-77). Em Harran

os filósofos pagãos tomam o nome de sabeus, invocando vínculo com Ssabi,

que os muçulmanos consideravam filho de Hermes, tomado como um dos

profetas pelo Islamismo. Adaptam o aristotelismo ao contexto monoteísta.

Consideram como princípio de tudo uma mônada eterna e absoluta (Deus);

afirmam uma criação eterna e necessária, ou seja, afirmam a coeternidade

de causa e efeito (Deus-Universo) no ato criador e consideram a criação um

processo necessário, que se opera naturalmente, como os raios que emanam

do disco solar. Deus é a causa das substâncias imateriais, que são surgem

por meio de sua primeira emanação: a Inteligência. A Inteligência é a única

coisa saída imediatamente de Deus, pois do Uno só pode vir imediatamente

o único, não o múltiplo e este único, tese que remonta a Alexandre de

Afrodísia. Ora, este único é a Inteligência. Desta, por sua vez, emanam as

outras inteligências que são as substâncias imateriais e, por fim, as

substâncias materiais.

Os cristãos da Síria e da Pérsia, nestorianos e jacobitas, acolheram o domínio

muçulmano como uma libertação do poder imperial bizantino. Foram também

acolhidos, na condição de “protegidos” (dhimmi) do Império Islâmico.

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Pagavam tributos, mas gozavam de liberdade para cultivar sua crença.

Enquanto o nestorianismo, ao afirmar a dualidade sem união das duas

naturezas de Cristo, convergia bem com o zoroastrismo persa,

essencialmente dualista; o jacobismo, monofisita, ao afirmar uma única

natureza em Cristo, vinha a calhar bem com o islamismo. Em todo o caso,

ambos as dissidências cristãs encontraram abrigo e espaço no islamismo. Do

século VII ao X eles vão levar adiante o cultivo da filosofia e também da

medicina. Alfarabi e Avicena foram alunos de cristãos. Enquanto a princípio

os sírios mais davam do que recebiam, do ponto de vista cultural, ao fim o

que acontecia era o contrário, os sírios mais recebiam da cultura islâmica do

que davam. Os principais comentadores de Aristóteles entre os sírios foram:

Jorge dos Árabes (+724), ‘Ishobokht (+ c. 780), Davi bar Paulos (+ c. 785),

Moses bar Kepha (+ 903). Entre os jacobitas destacam-se os tradutores de

Aristóteles para o siríaco, refugiados num mosteiro junto ao rio Eufrates,

chamado Qenneshrin, a saber: Severo Sebokht (+ 666/667), Atanásio de

Balad (+ 686) e Tiago de Edessa (+ 708). João Damasceno (+ 754) chegou

a viver sob o domínio muçulmano, no reinado de Omar II (717-720), que era

hostil aos cristãos. Refugiou-se, então, no mosteiro melquita helenófono de

São Sabas e tornou-se o teólogo do patriarca de Constantinopla, João V,

durante a controvérsia do iconoclasmo. O Imperador iconoclasta Constantino

Cropônimo conseguiu sua anatematização no concílio de Hieréia e o

ridicularizou trocando o seu sobrenome árabe de Mansur (vitorioso) para

manzer (bastardo), colocando-o, assim, sob a sombra do islamismo. João

Damasceno escreveu uma Controvérsia entre um muçulmano e um cristão.

8.2 A aculturação da filosofia no Islã

O intercâmbio cultural entre islamismo e cristianismo nestoriano e jacobita

(monofisita) foi significativo. Atesta-o a correspondência entre o líder

nestoriano Timóteo e o califa al-Mamum (813-833). Na era abássida (750-

945/946) acontece uma efetiva aculturação da filosofia entre os árabes

(LIBERA, 1998, p. 77-96). Ao fim deste período, os filósofos, cristãos e

muçulmanos, se expressam em língua árabe. Se o Aristóteles siríaco é apenas

o Aristóteles lógico, o Aristóteles árabe é o Aristóteles integral, incluindo até

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mesmo obras apócrifas e pseudoepígrafas. Segundo Ibn al-Nadîm, o próprio

Aristóteles teria aparecido em sonho ao califa para exortá-lo a reunir em

Bagdad os seus manuscritos e os dos grandes filósofos gregos. O califa

obedeceu ao seu sonho e mandou várias embaixadas culturais a Bizâncio e

conseguiu reunir os textos de Aristóteles e de seus comentadores da tarda-

antiguidade. Assim, desde 830 funcionava, em Bagdad, uma instituição

chamada Bayt al-hikmah (“Casa da Sabedoria”), que reunia todos os

tradutores da época. Formados no aristotelismo de tradição siríaca, o grupo

de tradutores incluía cristãos e não cristãos. Além das obras autênticas foram

também traduzidas obras apócrifas, que foram postas em circulação sob a

autoria de Aristóteles: entre estas, o Livro do Bem Puro, conhecido no

ocidente com o nome de Liber de causis (Livro das causas) e a Teologia dita

de Aristóteles. A fonte principal do Livro do Bem Puro (ou Livro das Causas)

é Elementatio theologica (Elementos de Teologia) de Proclo. A Teologia de

Aristóteles é, na verdade, um texto que remonta aos ensinamentos de

Alexandre de Afrodísia, de Plotino e de Proclo. Algum texto de Platão, ao

menos a República, parafraseada por Averróis, foi traduzido também, mas

não chegou até nós. Também foram traduzidos textos apócrifos de Platão,

como o Testamento de Platão para a educação dos jovens e tratados de

alquimia. Parte considerável das Enéadas de Plotino também foi traduzida.

Nas traduções, os tradutores se dividiram entre aqueles que traduziam

palavra por palavra (tradução ad verbum: voltada para a palavra ao pé da

letra) e aqueles que buscavam antes o sentido da frase e traduziam para uma

frase que dissesse este sentido em árabe, sem se preocupar com uma

correspondência verbal (tradução ad sensum: voltada para o sentido da

frase). Os tradutores cristãos de Bagdad não somente traduziam para o árabe

como também escreviam uma obra própria também usando o árabe como

língua. Entre estes se destaca Yahyâ ibn Adi (893/894-974), denominado de

“o lógico”, pelos árabes. O objeto da lógica é constituído pelos sons vocais

que significam coisas universais (o que Aristóteles chama de ta katholou: os

universais), isto é, os gêneros, as diferenças, as espécies, os próprios e os

acidentes comuns. O objetivo da lógica consiste em conectar os ditos signos

com a realidade por eles designada. A esta apresentação do estatuto da lógica

segue uma concepção de verdade: a verdade proposicional, que consiste na

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adequação entre a coisa e o intelecto (adaequatio rei et intellectus, dirão os

latinos).

Os primeiros séculos islâmicos procederam, pois, a uma aculturação da

filosofia ao mundo muçulmano: nasce a falsafa (filosofia, em árabe) (LIBERA,

1998, p. 97-103). No século VIII desenvolveu-se uma teologia propriamente

enraizada na tradição religiosa do Profeta Maomé, chamada de kalâm. Não

se trata de uma teologia como ciência dos mistérios da fé, do tipo do que

acontecia no mundo cristão. O kalâm surge como uma apologia da tradição

religiosa em face aos ensinamentos filosóficos gregos que contradiziam a

doutrina islâmica e aos ensinamentos dos cristãos e, ao mesmo tempo, uma

leitura jurídico-religiosa. Os que cultivavam o kalâm se chamavam

muttakallimûn e se dividiam em escolas, como os mutazilitas (de mutazila:

os isolados) e os seus adversários, os asharitas (partidários de Abû’l-Hasan

al Ashari). Os mutazilitas, surgidos a partir da separação de Wâsil ibn Ata (+

c. 750) em relação a seu mestre Hasan al-Basri (+ c. 730), defendiam cinco

teses: 1. A unidade absoluta de Deus. 2. A justiça divina. 3. A promessa e a

ameaça. 4. A morada entre as duas moradas, ou seja, a situação do crente

em estado de pecado, que não se encontra nem fora da fé nem dentro da fé.

5. A obrigação para o crente de ordenar o bem e proibir o mal. O principal

adversário dos mutazilitas foi Ashari (874-935). Defendia que o Corão era a

palavra eterna e incriada de Deus, colocando, assim, outro princípio junto de

Deus, ameaçando, segundo a visão dos mutazilitas, a unidade da substância

divina. Afirma a existência de atributos divinos, inclusive a onisciência divina

(negada pelos mutazilitas). Também defende que, na eternidade, o homem

poderá ter a visão da essência divina, tese rejeitada pelos mutazilitas e

também por boa parte dos teólogos bizantinos e defendida por Tomás de

Aquino. No campo moral, afirmava que o homem não é propriamente criador

de seus atos, mas somente “adquirente”.

Estante do saber

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Filosofia Árabo-Islâmica (Breve relance histórico)

(http://www.lusosofia.net/textos/sidarus_adel_filosofia_no_islao.pdf)

, de Adel Sidarus.

Falsafa – a filosofia entre os árabes

(http://falsafa.dominiotemporario.com/doc/FALSAFA_LIVRO_PAG_NE

T.pdf), de Miguel Attie Filho.

8.3 Al Kindi

Al Kindi (800-866) é o primeiro filósofo muçulmano (LIBERA, 1998, p. 103-

107; ÜBERWEG & HEINZE, 1927, p. 303-304; HEINZMANN, 1992, p. 145-

146). Foi chamado de o “filósofo dos árabes”. Ele procura mostrar a não

contradição entre a concepção filosófica de Deus e a da mensagem corânica.

Afirmava que o sentido da filosofia é tornar o homem, tanto quanto for

possível, semelhante a Deus. Mais próximo dos mutazilitas, para ele Deus é

o Uno Verdadeiro, transcendente a todo o predicado, um ser causal

absolutamente simples, ao qual não se aplica nenhuma categoria ou atributo.

Com seu Tratado sobre o Intelecto, ao comentar o De anima (Da alma) de

Aristóteles, mais especificamente o livro III, Al Kindi introduziu toda uma

discussão sobre o intelecto agente, que doravante vai percorrer toda a

história da filosofia medieval. O pano de fundo do problema é o da relação

entre experiência e intelecto. Al Kindi distingue a partir de sua leitura de

Aristóteles alguns “momentos” que constituem o intelecto ou a atividade

intelectual. Primeiramente, afirma que a alma intelectiva é imaterial e

impassível. Depois, que o intelecto é em si mesmo vazio de todas as coisas.

Enquanto pensa todas as coisas, distingue-se no intelecto um princípio ativo,

o intelecto agente (nous poietikos) e um princípio receptivo, o intelecto

passivo (nous pathetikos). O intelecto agente se dá como pura

espontaneidade e como atividade essencial e permanente. A estes dois

momentos ou princípios do intelecto, um ativo e outro receptivo, Al Kindi

acrescenta um terceiro, que corresponde ao momento em que o intelecto

alcança o saber, ou seja, o “intelecto adquirido” (intellectus adeptus, dirão os

latinos). Há também um quarto momento, o “intelecto demonstrativo”

(intellectus demonstrativus), que é a visão da íntima relação entre as

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premissas e as conclusões. Al Kindi foi visto, no governo do califa al-

Mutawakil, como “pagão” ou “grego”, foi perseguido e suas obras foram

confiscadas. Tendo demonstrado sua ortodoxia dentro da tradição religiosa

islâmica, recebeu-as de volta.

8.4 Alfarabi

Outro fundador da filosofia entre os muçulmanos foi Alfarabi (870-950)

(LIBERA, 1998, p. 112-116; ÜBERWEG & HEINZE, 1927, p. 304-307;

HEINZMANN, 1992, p. 146-147). Nasceu no Turquestão, estudou lógica com

os mestres cristãos de Bagdad e terminou os seus dias em Damasco. Foi

chamado de “Segundo Mestre” (o primeiro era Aristóteles). Era um sufi. O

sufismo era uma corrente ascética e mística islâmica, nascida no século VIII.

No século IX, porém, sofreu grandes perseguições por parte da ortodoxia

sunita. Ensinava a doutrina de um retorno ao Princípio divino através do

aniquilamento de tudo o que distingue a alma humana de seu Criador.

Também ensinava a doutrina da união do homem com Deus pela inabitação

de Deus no homem. Deus fala na alma do homem que se une a ele

perfeitamente e esta palavra que habita na alma é uma palavra de Verdade.

Trata-se de doutrinas que conhecem certa analogia no ensinamento de

místicos cristãos, como Mestre Eckhart, por exemplo. Alfarabi ensinou a

contingência de todas as coisas, apresentando a tese da diferença entre

essência e existência, que será retomada por Tomás de Aquino. Nas coisas

criadas, a essência não é a existência. O ser que ela é, a criatura recebe,

assim como recebe também o fato de existir. A essência é o universal que se

concretiza numa existência singular, num indivíduo. As coisas do universo

não têm o movimento a partir delas mesmas, mas o recebem do primeiro

movente imóvel, que é Deus. O movimento do universo vem de Deus e

retorna para ele. Alfarabi combina a doutrina da criação, comum ao

islamismo, ao judaísmo e ao cristianismo, com a doutrina da emanação,

própria do neoplatonismo (Plotino). O Primeiro é aquele de quem procede o

ser. Ele tem o ser como aquilo que lhe é próprio. Tudo o que é recebe dele o

ser, como por uma efusão, irradiação ou emanação. Do Primeiro, que é o

Uno, provém o Primeiro Intelecto, que anima o primeiro céu. Daí advêm

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também as demais inteligências, que animam as esferas celestes, até a

décima Inteligência, que anima e governa o mundo sublunar, isto é, o mundo

do devir, quer dizer, do surgir e perecer. Esta décima Inteligência é o

Intelecto Agente, que também leva o homem a conhecer. Alfarabi atribui um

conhecimento do universal e do individual tanto ao sentido quanto ao

intelecto. Diversamente da opinião comum – singulare sentitur, universale

intelligitur (o singular é sentido, o universal é entendido) – afirma que há um

conhecimento do universal pelos sentidos e um conhecimento do individual

pelo intelecto. A tese de um conhecimento intelectivo do singular será

retomada, no mundo latino, por Duns Scotus e Guilherme de Ockham. A

iluminação do Intelecto Agente é que possibilita ao homem abstrair o

universal e apreendê-lo no conceito. O intelecto humano passa, assim, de

uma condição potencial (in potentia), para uma atual (in effectu) e, por fim,

alcança sua consumação na plena aquisição do saber (adeptus ou acquisitus).

A doutrina aristotélica do intelecto, portanto, em Alfarabi, sofre uma

reinterpretação em sentido neoplatônico e cosmológico.

8.5 Ibn Sina (Avicena)

Um dos maiores nomes da filosofia do Islã é Avicena (LIBERA, 1998, p. 117-

124; ÜBERWEG & HEINZE, 1927, p. 307-310; HEINZMANN, 1992, p. 148-

149). Ibn Sina ou Avicena (980-1037), médico e filósofo, viveu em

Hamadhân, na Pérsia (hoje Irã), onde chegou a ser vizir (wazîr: aquele que

carrega o fardo) do príncipe buída Shams al-Dawla. Foi aprisionado por um

tempo após a morte deste. Sua obra mais famosa foi o Kitâb al-Shifâ’ (Livro

da cura), uma obra enciclopédica, que abrangia todas as ciências particulares

de seu tempo bem como a filosofia. Foi chamado de “Terceiro Aristóteles” (o

segundo foi Alfarabi). O seu primordial interesse é a metafísica. Em sua

Autobiografia, Avicena diz ter lido quarenta vezes a Metafísica de Aristóteles

sem ter compreendido. Já em desespero, foi salvo pela leitura de Desígnio da

Metafísica, obra de Alfarabi, que lhe iluminou o entendimento da obra de

Aristóteles. A metafísica de Avicena é um tema de particular importância na

história da filosofia medieval. Metafísica é a ciência do ente enquanto ente,

ou seja, do ente no tocante ao seu ser. O ser é o que por primeiro é

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apreendido e compreendido em toda relação do intelecto com o ente. Em

sentido pleno, ente é aquilo que é necessário, isto é, aquilo que é e não pode

não ser. O ente necessário é o que é por si e a partir de si mesmo (o que os

latinos chamarão de ens a se). Este ente se chama Deus. Divergindo do

neoplatonismo, Avicena diz que Deus é o Uno e o Ser; o neoplatonismo dizia,

com efeito, que Deus estava acima e além do ser. Esta diferença se entende

porque o neoplatonismo entende o ser como ser-determinado e como

correlato do pensamento. Ora, se Deus, o Uno, está acima do pensamento,

então está também acima do ser. Entretanto, para Avicena, o Uno vigora

como a plenitude do próprio ser, uma vez que é o ser necessário. Em Deus,

essência e existência são o mesmo. Essência designa o “o que é” o ente, a

sua natureza, e existência, o “que é”, o ato ou o fato de ser. Há também o

ente não necessário, o ente contingente, que é, quando poderia ou pode não

ser (os latinos chamarão de ens ab alio, ente a partir de outro, visto que este

ente, para ser, precisa receber o próprio ser, isto é, a essência e a existência).

Contudo, Avicena entende que o ato criador de Deus, que ele interpreta como

uma emanação ou processão, é um processo necessário, eterno e feito por

mediações. Já os pensadores cristãos medievais vão ressaltar que este ato é

livre, temporal e contingente (Deus podia não ter criado o mundo), como

também imediato (Deus cria diretamente cada coisa). Não obstante sua

dependência de Deus o mundo é eterno, pois a emanação do mundo a partir

do Uno é eterna, junto com o Uno.

Do Uno vem o um e não o múltiplo. O primeiro que procede do Uno é a

Inteligência primordial, que contém em si as ideias das coisas todas. Desta

Inteligência, pois, procedem as demais Inteligências. Como Alfarabi, também

Avicena interpreta as Inteligências cosmologicamente, como substâncias

espirituais que animam e regem as esferas celestes. A última Inteligência

emanada é o Intelectus Agens, o intelecto agente. Este é a origem do mundo

visível. Ele dá a cada coisa do mundo visível o seu ser, isto é, a sua essência.

Ele é o doador das formas (dator formarum), sendo a forma, entendida como

essência ou modo de ser determinante, o momento de inteligibilidade de cada

coisa. O elemento determinado pela forma é a matéria. A matéria é o

princípio da multiplicidade e da pura potencialidade e, enquanto princípio, é

eterno. A matéria, enquanto princípio de potencialidade, responsável pelo

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devir, isto é, pelo surgir, mas também pelo perecer das coisas. Se a forma é

princípio de unidade e de identidade no ser, a matéria é princípio de

multiplicidade e de alteridade. Ela pela matéria que as coisas vêm a ser como

muitas e como diversas. É pela matéria que uma espécie se multiplica em

indivíduos numericamente diversos. Por isso, a matéria é também princípio

de individuação: aquilo pelo que o indivíduo se torna este indivíduo e não

outro. O singular traz em si algo de genérico, de específico e de acidental:

por exemplo, Sócrates é animal, é homem e é este indivíduo aqui, que se

chama pelo nome próprio de Sócrates. O genérico e específico são dados pela

forma. O acidental-individual é dado pela matéria.

Há três maneiras de a forma subsistir: na mente divina, nas coisas e no

conceito do intelecto humano. A forma ou essência, por um lado, é uma ideia

na mente do ente necessário, Deus. Ela ali tem a sua subsistência originária.

Por outro lado, ela se dá em cada coisa, como momento imanente e

integrante de cada coisa, sendo aquilo que define o ser da coisa. A forma ou

essência é, portanto, transcendente (em Deus) e imanente (na coisa). Em si

mesma, a forma não é nem singular, nem universal. Ela se torna universal

no intelecto humano que a apreende graças à atuação originária do Intelecto

Agente. É o Intelecto Agente quem responde pela abstração inicial da forma,

entendida como espécie inteligível da coisa. Nosso intelecto humano recebe

a forma abstrata da coisa, abstraída justamente graças à atuação do Intelecto

Agente, e a compreende como o elemento inteligível, único e idêntico, válido

para vários indivíduos, sendo aquilo pelo que vários indivíduos são

semelhantes e pertencem a uma mesma espécie. A semelhança entre várias

espécies, por sua vez, produz o conceito de gênero. Aquilo, porém, pelo qual

as espécies se distinguem, é a diferença específica. Espécie, gênero e

diferença específica são conceitos universais, isto é, são conceitos que valem

para muitos indivíduos. O conceito se dá como modo de referência do

intelecto com aquilo que o intelecto apreende e compreende. Avicena

distingue dois modos de o intelecto se relacionar com o ente. O intelecto pode

se dirigir para as coisas reais. Então temos o conceito das coisas (os latinos

chamariam isso de intentio prima: intenção primeira). A física se move neste

plano ou dimensão do conceito, pois na física se opera com conceitos das

coisas. O intelecto, porém, pode se dirigir aos conceitos e operar com

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conceitos de conceitos (este direcionamento os latinos chamam de intentio

secunda – intenção segunda – como “intentio logica” – intenção lógica). A

lógica trata de conceitos de conceitos, como espécie, gênero e diferença.

O homem é um composto de matéria e forma como todos os outros entes do

mundo visível. A matéria é o corpo, a forma, a alma. A alma é, pois, a forma

do corpo. A forma aqui é entendida como entelekheia, princípio de

consumação. Ou seja, é a alma o princípio pelo qual o corpo se forma, isto é,

surge, cresce e se consuma, alcançando sua perfeição. Avicena entende o

homem como um composto cuja unidade é substancial. Isso quer dizer: o

homem não é a unidade de duas substâncias diversas, corpo e alma, mas a

unidade de uma única substância, que é composta de corpo e alma. Avicena

rompe, pois, com a tradição dualística platônica, seguindo a concepção da

unidade substancial do composto humano, apresentada por Aristóteles.

Foi grande a influência de Avicena no mundo cristão. Suas obras foram

traduzidas com grande interesse, na Espanha, por Domingos Gundissalino

juntamente com o judeu Avendeath-Avendehut-ibn-David. Roger Bacon o

considerava o “chefe e príncipe dos filósofos”. Alberto Magno e Tomás de

Aquino incorporaram muito de sua filosofia. Duns Scotus o tem como uma

das autoridades mais consideradas na metafísica. Apesar das reservas e

mesmo oposições, devido à concepção emanacionista de um mundo eterno,

o pensamento nos séculos XIII e XIV do ocidente seria impensável sem

Avicena.

Estante do saber

A filosofia primeira (1ª Parte

http://falsafa.dominiotemporario.com/doc/tiraz_2_alkindi_1.pdf) (2ª

Parte

http://falsafa.dominiotemporario.com/doc/alkindi_2_de_3_tiraz.pdf)

(3ª Parte

http://falsafa.dominiotemporario.com/doc/alkindi_3_3_pagina_falsaf

a.pdf), de Al-Kindi.

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O livro a respeito dos princípios das opiniões dos habitantes d’ A Cidade

Excelente (I-VI) (http://falsafa.dominiotemporario.com/doc/al-

madina_1_6_Tiraz.pdf), de Alfarabi.

Alma e intelecto em Ibn Sina (Avicena)

(http://revista.institutohypnos.org.br/arquivos/14/artigo6.pdf), de

Miguel Attie Filho.

Entrevista de Miguel Attie Filho sobre o Livro da Alma de Avicena: (1ª

Parte http://www.youtube.com/watch?v=LcA2M36g_O0) (2ª Parte

http://www.youtube.com/watch?v=KTke1en5GX0&feature=related)

8.6 A contraofensiva dos teólogos: Sarrastani e Algazali

No século XI, em 1055, termina a era dos abássidas e os califas perdem o

poder diante dos sultões turcos, começando, assim, a era dos seljúcidas. Os

sultões favoreceram a teologia sunita, fundando escolas chamadas de

Madrasas, colégios de ensino do direito e das ciências úteis à religião. Com o

fortalecimento dos teólogos sunitas, a ofensiva se volta contra Avicena e os

filósofos, bem como contra os xiitas. Dois nomes se destacam nesta ofensiva

dos teólogos: Algazali e Sarrastani (LIBERA, 1998, 124-129). Este último,

Sarrastani (1086-1153), escreveu um livro, Luta contra os filósofos (Kitâb

Musâra’at al-falâsifa) e também outro, intitulado Livro das religiões e das

seitas. O alvo da luta de Sarrastani é principalmente Avicena. Nega que possa

haver “filósofos muçulmanos”. A filosofia dos filósofos que atuam nas terras

do Islã representa para ele uma ruptura com a tradição religiosa islâmica,

com o Livro, a Revelação e a Profecia. A filosofia e os filósofos são

apresentados com estranhos ao Islã. A aceitação dos filósofos pagãos da

antiguidade no mundo cultural do Islã lhe parece uma aberração. Do ponto

de vista do conteúdo, Sarrastani ataca, por exemplo, a incoerência de

Avicena, de propor a concepção de Deus como o Único e de apresenta-lo, ao

mesmo tempo, de maneira triádica, ou seja, como pensamento, pensante e

pensado. A filosofia de Avicena teria, assim, a mesma dificuldade que a

teologia cristã: conjugar, em Deus, a unidade e a triplicidade. Apesar de

ferrenho opositor da filosofia e dos filósofos, Sarrastani, porém, tinha um

agudo senso filosófico. Era justamente com este agudo senso filosófico que

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ele combatia a filosofia e os filósofos, sobretudo Avicena. Para combater à

altura a filosofia é preciso filosofar. É o que aconteceu de certa maneira com

Sarrastani, mas é também o que aconteceu de maneira ainda mais forte com

Algazali (LIBERA, 1998, p. 124-127; ÜBERWEG & HEINZE, 1927, p. 310-312;

HEINZMANN, 1992, p. 149-150) .

Algazali (Abu Hamid Muhamamad ibn Muhamad ibn Tawus Ahmad Al-Tusi al-

Shafi) (1058-1111), era um homem religioso – ele era sufi – dedicado a

combater os filósofos e a filosofia do Islã, em especial Avicena. De espírito

místico, dizia que não existe nenhum “ele” a não ser “Ele”, Deus. Algazali

nasceu em Tubaran, lecionou em Bagdad, em Hamadan e em Tus. Jurista e

teólogo, ele admitia as ciências úteis à religião, mas combatia a filosofia como

nociva. Entretanto, para combater a filosofia, ele mesmo filosofou e deixou

um contributo importante para a história da filosofia. Na verdade, Algazali

não combatia a racionalidade como tal, mas sim o estilo de racionalismo que

se concretizou na filosofia dos filósofos do Islã. O resultado paradoxal é que,

combatendo racionalmente o racionalismo dos filósofos, ele contribuiu com a

filosofia. O êxito desta empreitada acabou sendo uma filosofia cética. A obra

em que Algazali realiza este combate se divide em duas partes: a primeira se

intitula Maqâsid al-Falâsifa (As intenções dos filósofos); a segunda, por sua

vez, se intitula Tahâfut al-falasifa: pode-se traduzir por “A incoerência dos

filósofos” ou ainda como “O esboroamento dos filósofos”. No medievo latino

ela foi traduzida como Destructio philosophorum (A destruição dos filósofos).

Os pontos da religião que Algazali considerava mais ameaçados pelos

filósofos eram: a criação temporal do mundo a partir do nada, a realidade

dos atributos divinos, o conhecimento divino das coisas particulares, o

milagre e a ressurreição do corpo. Algazali primeiramente expõe as teses dos

filósofos tais como elas se apresentam, sem refutá-las. Sua exposição é tão

fiel, que em muitos leitores latinos, cujos manuscritos eram incompletos,

criou a impressão de que Algazali tivesse sido o mais fiel discípulo de Avicena,

o mesmo que ele queria combater! A exposição das teses dos filósofos

envolve a lógica, a física e a metafísica. Na metafísica, Algazali organiza as

teses em torno de três temas: o mundo, a alma, Deus. Mais tarde, na

metafísica escolar elaborada por Wolff e Baumgartner, fontes de Kant, a

metafísica se articulará, justamente, em três disciplinas que serão chamadas

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de metafísicas especiais: a cosmologia, que trata do mundo; a psicologia, que

trata da alma; e a teologia, que trata de Deus. Os argumentos de refutação

das teses dos filósofos, usados por Algazali, conduzem a uma filosofia cética.

Algazali parte do pressuposto de que os artigos de fé não podem ser

demonstrados racionalmente, mas não também não podem ser refutados

racionalmente. Mas, querendo deixar aberta a possibilidade daquilo que a

religião afirma, Algazali procura combater uma compreensão racionalista da

realidade. Neste sentido, ele ataca o eixo da concepção racionalista, que é o

princípio de razão suficiente (tudo tem uma razão), mais exatamente, ele

ataca o princípio de causalidade (tudo tem uma causa), combatendo uma

concepção da realidade que encara todo o processo como necessário, e que

não deixa espaço para a ação divina no mundo. Quando o filósofo afirma, por

exemplo, que o fogo é a causa eficiente da combustão de alguma coisa, ele

está dizendo demais. A experiência não mostra nada de causalidade, ou seja,

o advir de uma coisa a partir de outra coisa. A causalidade é uma suposição

da mente do homem. Observamos que com o fogo advém a combustão. Não

observamos que do fogo advém a combustão. O nexo de causalidade é uma

ilação que extrapola o observado, o campo da experiência. Podemos

conhecer que algo aparece com o aparecimento de outro algo, ou que algo

aparece após o aparecimento de outro algo, mas não podemos observar que

algo aparece a partir do aparecimento de outro algo. Na verdade, o fogo é

apenas uma ocasião para o aparecimento da combustão. Não é a sua causa

mais própria, muito menos a sua causa única. Deus é, na verdade, a única

causa de tudo o que acontece. Tudo o mais, que consideramos causa dos

eventos na realidade, é apenas ocasião e não propriamente causa. Esta

doutrina antecipa o ocasionalismo de Malebranche. Por outro lado, a negação

do princípio de causalidade antecipa o ceticismo de Hume.

Algazali ainda deixou uma importante contribuição com o seu Livro das

religiões e das seitas, uma renovação das ciências da religião. No âmbito da

religião, acentua a importância da vontade. Em lugar do racionalismo,

emerge o voluntarismo, ou seja, a afirmação do primado da vontade sobre o

intelecto. Ali também defende o poder miraculoso de Deus, sua liberdade e

transcendência, ou seja, sua não submissão à necessidade cósmica.

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No Islã oriental, Algazali foi o último grande pensador. Outros que vieram

depois são menos conhecidos, ao menos no ocidente (LIBERA, 1998, p. 129-

137). Abul Barakat Al-Bagdadi (+ c. 1164), judeu convertido ao islamismo,

trouxe importantes contribuições para a lógica. Sua teoria da lógica é muito

semelhante à do nominalismo do século XIV do ocidente, especialmente à de

Guilherme de Ockham. Escreveu também um comentário ao livro bíblico do

Eclesiastes. Abd al-Letif al-Bagdadi (+ 1231) reinterpretou a estrutura onto-

teo-lógica a metafísica aristotélica segundo esquemas neoplatônicos.

Aristóteles é extremamente platonizado, lido segundo a chave interpretativa

de Plotino e Proclo. Nele, aparece uma concepção do Logos, que lembra

aquela dos pensadores cristãos, desde Justino. A Inteligência que provém da

fonte primeira, do Uno, é o Logos. Ele rege todas as coisas. Tudo o que existe

conhece nele e por ele o que lhe convém: seres inanimados e animados,

plantas e animais. É também por ele que a alma racional conhece o

verdadeiro e nele repousa. Ele é a providência divina espalhada por todo o

universo. É o grande Nomos: a lei divina que tudo rege. É a luz do Deus

altíssimo, pelo qual tudo passa a ser o que lhe é próprio e o que lhe incumbe.

Com as invasões mongóis, iniciadas em 1242, o Islã oriental sofre um forte

abalo, também no âmbito cultural. Durante o tempo de recuo ante à ameaça

mongol, que trazia destruição e provocava o êxodo de inteiras populações, o

islamismo oscila entre o xiismo e o sunismo. Depois que o Islã oriental se

recompõe, a filosofia já não é mais criativa. A herança de Avicena é a única

que se impõe e os filósofos são apenas epígonos.

8.7 A filosofia no Islã ocidental

Paralelamente e além do desenvolvimento da filosofia no Islã oriental, foi se

dando outro desenvolvimento no Islã ocidental, especialmente na Espanha

muçulmana, ou seja, na Andaluzia, que se tornou um dos maiores centros

culturais da Idade Média.

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8.7.1 Os iniciadores da filosofia na Espanha muçulmana

A contribuição mais significativa ocorreu entre os séculos X e XII. O primeiro

grande pensador da Andaluzia foi Ibn Hazm (994-1064), que viveu na época

do califado de Córdoba (LIBERA, 1998, p. 145). Foi jurista e crítico das

interpretações jurídicas de seu tempo. Dividiam as opiniões dos pensadores

entre aqueles os partidários da eternidade do mundo e os que defendiam sua

adventicidade. Entre os primeiros estão os falâsifa (filósofos), que afirmam

uma criação eterna. Entre os segundos, há os que admitiam vários criadores,

como os maniqueus, que admitem dois princípios, um do bem e outro do mal,

e os cristãos (que são triteístas na ótica muçulmana); há também os que

admitem um único criador, como os judeus e os muçulmanos. De 1086 a

1147 a Espanha vive sob o domínio dos “almorávidas”. Originariamente,

estes constituíam uma comunidade ascética e militar, consagrada à oração e

ao djihâd (guerra santa). Ibn Badjdja (+ 1139), conhecido no mundo latino

como Avempace, viveu em Saragoça e foi vizir na época do governador Ibn

Tifalwit (LIBERA, 1998, p. 151-156). Em uma obra intitulada O regime do

solitário realiza uma versão do bios theoretikos (vida contemplativa) de

Aristóteles dentro do contexto político do Islã. Procura tematizar o estilo de

vida que deve levar o cidadão ideal que só tem poder sobre si mesmo, ou

seja, o modo de vida do homem que antecipa, na cidade real, a vida que seria

a sua, na cidade ideal. Este cidadão é um homem solitário, que funda, porém,

uma comunidade espiritual de homens solitários, saídos da massa. É o

homem que se eleva do conhecimento sensível para o inteligível; melhor, do

conhecimento inteligível abstrativo para o conhecimento inteligível intuitivo

(conhecimento das Inteligências Separadas). Mais ainda: é o homem que se

une ao Intelecto Agente separado e que, em sua inteligibilidade, conhece-se

a si mesmo. Enfim, é o homem divino simplesmente. De 1147 a 1269 a

Andaluzia foi governada pelo almôadas, de origem marroquina. O pai da

filosofia nesta era foi Ibn Tufayl, mas o seu maior representante foi Ibn Ruchd

ou Averróis. Ibn Tufayl (+ 1185) diz que há uma sabedoria e uma beatitude

maior do que a propugnada por Ibn Badjdja (Avempace). É quando a ascese

intelectual é substituída pelo êxtase. A união ou conjunção (ittisâl) com o

Intelecto Agente separado se alcança para além de toda especulação. A mais

plena visão se dá quando o fundo (sirr) do homem se torna o espelho de

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Deus. Passa-se, assim, do conhecimento especulativo-discursivo para o

conhecimento sapiencial, isto é, que consiste em saborear o divino. Há

paralelos desta concepção, no mundo cristão, em Agostinho e na tradição

agostiniana em geral, como em Alexandre de Hales e Boaventura, que

propugnam a superioridade do intellectus (intelecto) e da intelligentia

(inteligência) acima da ratio, ou seja, da razão como capacidade de

conhecimento abstrativo-discursivo, bem como a superioridade da sapientia

(sapiência, sabedoria, no sentido de um conhecimento que saboreia o divino)

sobre a scientia (ciência, conhecimento especulativo).

8.7.2 Ibn Ruch (Averróis)

Ibn Ruchd ou Averróis (1126-1198) foi o filósofo do Islã de maior influência,

mas também o mais contestado (LIBERA, 1998, p. 164-185; ÜBERWEG &

HEINZE, 1927, p. 313-322; HEINZMANN, 1992, p. 150-152). Estudou direito,

medicina e teologia. Foi juiz e médico. Nasceu e viveu em Córdoba. Após sua

atividade como filósofo, porém, foi exilado em Lucena (Elisama), seus livros

foram queimados e morreu longe de sua terra natal, em Marrakesh. Sua

vocação aristotélica, porém, começou graças a um desejo do soberano Abu

Yaqub Yusuf, que reclamava ao filósofo Ibn Tufayl do fato de Aristóteles ser

incompreensível. Ibn Tufayl já se sentia muito velho para pôr-se na

empreitada de comentar o Estagirita. Por isso, pediu ao seu mais brilhante

aluno que o fizesse. E essa foi a missão da vida de Ibn Ruchd, que a cumpriu

de bom grado. Averróis foi chamado de “O comentador” (por antonomásia)

de Aristóteles. Como tal, procurou neutralizar os elementos neoplatônicos

que interferiam na interpretação dos textos de Aristóteles. Seu objetivo era

alcançar o sentido exato destes textos e torna-los acessíveis aos outros.

Escreveu três tipos de comentários: pequenos, médios e grandes. É

sobretudo nos pequenos comentários (resumos, chamados no mundo latino

de sumas ou epítomes), que ele expõe seu próprio pensamento.

Averróis defende a tese de uma criação eterna. A criação é um processo

eterno e necessário, que procede do Primeiro Movente imóvel (Primus motor

imobilis). Não há, portanto, uma criação do nada (ex nihilo), livre e temporal.

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Esta Causa Primeira é vista, pois, como parte da própria realidade do

universo, embora seja inacessível ao conhecimento imediato do homem. Para

Averróis, a imortalidade da alma é indemonstrável pelos recursos da própria

razão. Somente a revelação (a Profecia, o Alcorão) a atesta. Do ponto de

vista da razão, pode-se afirmar que a alma é forma do corpo e que, como tal,

é passageira como ele. Embora a essência ou gênero humano seja eterno, o

indivíduo é mortal. A afirmação de uma impossibilidade de demonstração

racional da imortalidade da alma e da criação, sem, contudo, negar a

revelação divina presente no Livro da Profecia (Alcorão), deu aos cristãos a

impressão de que Averróis propugnasse uma dupla verdade contraditória, ou

seja, a verdade da razão, que nega a imortalidade e a criação, e a verdade

da fé, que afirma o que aquela nega.

Para Averróis, a alma individual é a sensitiva. Esta alma, no processo do

conhecimento, une-se ao intelecto, que opera nela. Este é o chamado

intelecto hílico (material). O intelecto hílico é um mediador entre o indivíduo

humano e o Intelecto Agente separado. O intelecto hílico, de fato, está

potencialmente voltado para a união com os indivíduos humanos (almas

sensitivas existentes), mas, por outro lado, está sempre voltado para o

Intelecto Agente. O intelecto hílico ou possível é único para todos os homens.

O máximo que os indivíduos humanos, enquanto almas sensitivas,

conseguem alcançar é a produção de fantasias, melhor, de imagens ou

representações tiradas do mundo sensível (os latinos chamam a imagem ou

representação sensível individual da coisa de phantasma). Trata-se do

“intelecto especulativo” (que reflete o inteligível por meio de imagens

sensíveis ou fantasias). É o intelecto hílico que põe o indivíduo humano, com

seu intelecto especulativo, em contato como Intelecto Agente separado.

Através deste contato, ou melhor, desta união, o que é inteligível é libertado

do sensível. A abstração é um efeito da ação do Intelecto Agente, sempre em

ato, sobre nosso conhecimento. Ser homem é ser capaz de transcender o

sensível e apreender o inteligível e, por meio deste processo, mediado pelo

intelecto hílico, unir-se ao Intelecto Agente, eterno, separado e sempre em

ato. A consumação deste processo se concretiza no que Averróis chama de

“intelecto adquirido”, que é a conjunção ou união da alma com o Intelecto

Agente. Nesta conjunção está a felicidade suprema do homem. Esta doutrina

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de Averróis foi interpretada no mundo cristão como a afirmação da tese da

unidade do intelecto de todos os homens. Foi rejeitada por negar a

imortalidade da alma individual e sua espiritualidade. Mais tarde Leibniz

caracterizou esta doutrina como “monopsiquismo”. Mas Averróis não afirma

que a alma (psykhe) dos homens é uma só. Afirma que os indivíduos

humanos são almas sensitivas e que o seu intelecto natural é o intelecto

especulativo, ou seja, aquele que reflete por meio de representações

imaginárias; afirma também que os homens conhecem por meio de um único

intelecto hílico, por cuja mediação eles se unem ao Intelecto Agente.

Averróis respondeu à crítica feita aos filósofos por Algazali – a Incoerência

dos filósofos – com uma obra intitulada A incoerência da incoerência. Apontou

para a contradição performativa que traz consigo a postura cética: ao negar

a validade universal do conhecimento, reivindica a este princípio uma

validade universal, ou seja, reivindica o que nega. Averróis também não

aceita a limitação empírica que Algazali impõe à razão, no intuito de liberar o

espaço para a revelação e atuação divina. Para Ibn Ruchd a razão não é

limitada pela experiência, mas vai além desta, graças à possibilidade de

abstração que lhe é concedida.

Ibn Ruchd ou Averróis ainda escreveu sobre a relação entre filosofia e

religião. Considerava que ambas fossem caminhos diversos para alcançar a

única verdade. O Livro Sagrado, que contém a Profecia, segundo ele, possui

um sentido óbvio, acessível à massa dos simples crentes; e um sentido

escondido, acessível somente à elite intelectual dos filósofos. Entre os simples

crentes da massa e os filósofos que compõem a elite intelectual estão os

teólogos (muttakallimûn: os estudiosos do kalâm, a teologia do estilo

dominante). Os simples crentes seguem a via da retórica ou oratória, isto é,

seguem os discursos persuasivos, que falam por imagens e que tocam aos

sentimentos. Os teólogos, qualquer que seja a sua escola (mutazilitas ou

asharitas), seguem a via da dialética, que lida com premissas apenas

prováveis em seus raciocínios. Já os filósofos seguem a via dos argumentos

demonstrativos, que partem de premissas verdadeiras e certas. Averróis faz

uma crítica impiedosa aos teólogos. Considera-os como desnecessários e

danosos a ambos, aos simples fiéis e aos filósofos. Esta crítica, bem como

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suas posições nada ortodoxas dentro do islamismo, lhe granjeou a

perseguição religiosa, a condenação, a queima de seus livros, o exílio em

Lucena e a morte em Marrakesh. Com a condenação de Averróis a falsafa

(filosofia) se calou no Islã. Apenas o kalâm (teologia) e o sufismo, a típica

mística muçulmana, continuaram dando alento ao pensamento no islamismo

dos séculos posteriores. Com a reconquista cristã da Espanha muçulmana,

começa uma intensa aculturação da filosofia dos filósofos do Islã e a recepção

de Aristóteles provoca uma grande revolução no pensamento medieval latino.

No Império Otomano, de origem turca, que conquistou Constantinopla em

1453, o Islã se enclausurou em si mesmo. As traduções, os comentários e os

debates da filosofia se paralisaram. As madrasas, escolas destinadas à

reprodução ideológica, se restringiram aos estudos jurídicos e a ortodoxia

sunita rigorosa se impôs inconteste sobre as consciências dos homens do Islã.

Estante do saber

Religião e Filosofia em Algazali

(http://www.hottopos.com/mp4/gazali_mplus4.htm#maxi),

organização de A. R. Hanania.

O aristotelismo e o pensamento árabe: Averróis e a recepção de

Aristóteles no mundo medieval

(http://www.scielo.oces.mctes.pt/pdf/rphl/n24/n24a04.pdf), de

Eduardo C. B. Bittar.

8.8 A filosofia entre os judeus medievais

Na Idade Média, os judeus se encontravam espalhados em meio ao mundo

dominado pelo Islã, pelo Oriente Médio, pelo Norte da África e pela Península

Ibérica. Foram influenciados culturalmente pelo islamismo, mas não

deixaram de criar uma cultura própria (LIBERA, 1998, p. 191-193). Havia os

teólogos que seguiam a forma árabo-muçulmana de fazer teologia (o kalâm),

como Yusuf ben Abraão al-Basir (séc. XI); e havia os que recusam o kalâm,

como Maimônides (séc. XII). Do mesmo modo, em termos de filosofia, havia

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os filósofos que seguiam o modelo árabo-muçulmano de fazer filosofia (a

falsafa), de modo mais aderente e os que o seguiam de modo mais livre,

adaptando-o ao contexto judaico de costumes e de língua; havia também os

que ultrapassam a falsafa, quer cultivando a filosofia em modo próprio

sozinha, quer conciliando-a com a mística hebraica medieval típica, ou seja,

a Cabala. Vejamos, pois, um pouco da tradição filosófica judia na Idade

Média.

8.8.1 Raízes e posições fundamentais do pensamento filosófico

judaico

O primeiro encontro entre filosofia e judaísmo se deu na tarda-antiguidade,

em Alexandria, na obra de Fílon (+ 40 d.C.), que identificou o Deus revelado

a Moisés (cfr. Êxodo 3,14) com o Ser absoluto (FILONE, 1994, p. 7-51). Obra

de pensamento judaico é também a cabala (QBLH ou Kabbalah: recepção),

forma de misticismo judaico, que se tornou influente nos séculos XII e XIII.

Dentre os escritos mais antigos da Cabala está o Sephir Jezira (Livro da

Criação), escrito antes do ano 500 d.C. Nele afluem elementos platônicos,

neoplatônicos e gnósticos (BUSI & LOEWENTHAL, 1999, p. 35-46).

Entre as posições fundamentais do pensamento judaico está a apresentação

de Deus como ser pessoal absoluto e transcendente e do mundo como sua

criação livre. O homem está em face de Deus numa relação de pessoa para

pessoa, ou seja, num autêntico encontro eu-tu. A dignidade do homem se

expressa especialmente pela vontade e pela sua liberdade. Estas posições

fundamentais vão influir na filosofia dos filósofos judeus medievais.

8.8.2 Isaac Israeli

Isaac Israeli (c. 855 – c. 955/956) é o primeiro filósofo judeu de destaque

(LIBERA, 1998, p. 198-202; ÜBERWEG & HEINZE, 1927, p. 333-334;

HEINZMANN, 1992, p. 153). Compilador e neoplatônico, sua obra mais

conhecida é o Livro das Definições, obra traduzida para o latim por Gerardo

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de Cremona. Entende a filosofia como amor à sabedoria; depois, ao modo

neoplatônico, como assemelhação a Deus pela compreensão das verdades

das coisas e, ao modo de Platão, como zelo e preocupação constante com a

morte. A estas definições da filosofia acrescenta ainda outra: a filosofia é

conhecimento de si. Reinterpreta Plotino adaptando a sua filosofia ao

contexto judaico. No topo e origem de tudo está o Uno, que é Deus, o criador

ou a causa primeira de todas as coisas. O seu poder e a sua vontade são

modalidades e atividades de sua essência. Outros dois princípios de toda a

realidade são a Forma primeira e a Matéria primeira. Depois vêm as

inteligências (hipóstases intelectuais) e as almas. Há a alma racional, a alma

sensitiva e a alma vegetativa. Depois vem a Natureza ou o Céu e, por fim, o

mundo dos corpos. A natureza rege a geração dos corpos, a alma rege a

natureza e a inteligência rege a alma. Citações de Isaac Israeli aparecem em

Alberto Magno e Tomás de Aquino.

8.8.3 Ibn Gabirol (Avicebron)

Outro nome importante da filosofia judaica é o de Ibn Gabirol (LIBERA, 1998,

p. 202-210; ÜBERWEG & HEINZE, 1927, p.335-338; HEINZMANN, 1992, p.

153-154) . Salomão Ibn Gabirol (1021-1051), conhecido no mundo latinófono

como Avicebron, escreveu um poema religioso muito admirado pelos judeus

de seu tempo: o Keter Malkouth (A coroa real). Seus versos foram

conservados na liturgia judaica. No entanto, no mundo latino, ele é mais

conhecido por outra obra, intitulada em latim, como Fons Vitae (Fonte da

vida), que foi objeto de admiração e de crítica para alguns autores

(http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/veritas/article/viewFile/18

08/1338). Sua filosofia foi bem controvertida no mundo latino por causa da

teoria chamada de “hilemorfismo universal”: a doutrina segundo a qual, todo

o mundo criado é composto de matéria (hyle) e forma (morphe). Esta

doutrina foi defendia pelos franciscanos e atacada pelos dominicanos, isto é,

por Alberto Magno e Tomás de Aquino, que viam nela a ameaça do

materialismo. Para Ibn Gabirol não há somente matéria corporal, mas

também matéria espiritual. A matéria é princípio constitutivo essencial de

todo o ente criado: esse est existentia formae in materia (ser é existência da

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forma na matéria). Ele não entende a matéria em sentido aristotélico como

pura potencialidade, nem mesmo a entende em sentido meramente

neoplatônico como princípio de multiplicidade e diversidade. Para ele, a

unidade de todas as coisas é dada pela matéria, enquanto a diversidade é

dada pela forma diferente que cada coisa tem. Matéria significa, aqui,

portanto: substrato, quer seja um substrato corporal, no caso dos corpos,

quer seja um substrato espiritual, no caso dos puros espíritos. Nesta

concepção, todo o ente criado tem um substrato ontológico que recebe o ser

isto ou aquilo por meio da forma e este substrato receptivo é a matéria. Dito

de outro modo, a matéria é o princípio de poder-ser no sentido de poder-

receber uma forma. Ibn Gabirol define o sentido da existência humana a

partir da filosofia como conhecimento de si mesmo. Conhecer-se a si mesmo,

porém, é conhecer todas as coisas, pois o homem é um microcosmo. A

perfeição da alma racional consiste em vir a ser um mundo inteligível, como

também dizia Avicena. Se o homem conhece a si mesmo, isto é, sua

corporalidade e espiritualidade, ele conhece todas as coisas, pois todas as

coisas são ou corporais ou espirituais e o homem é ambas as coisas: espiritual

e corporal. Contudo, autoconhecimento do homem é o momento em que o

universo começa o seu retorno para a fonte do ser e da vida, Deus. O fim do

homem, por sua vez, é unir-se ao mundo superior, é a conjunção (dibbuq ou

coniunctio) com a fonte da vida, Deus, onde todas as coisas encontravam-se

originariamente como essências ou ideias.

8.8.4 Maimônides

O maior nome, porém, da filosofia judaica medieval é o de Maimônides

((LIBERA, 1998, p. 216-225; ÜBERWEG & HEINZE, 1927, p. 339-342;

HEINZMANN, 1992, p. 154-157). Moisés ben Maymun (Maimônides:

1135/1138-1204) nasceu em Córdoba, mas, devido às perseguições aos

judeus, teve que se refugiar de cidade em cidade, até chegar ao Cairo. Assim

como Averróis, Maimônides tinha Aristóteles como o grau supremo do

intelecto humano, só superado por aqueles que receberam a inspiração divina

(os profetas). Sua obra mais famosa se intitula Moreh Nebukhim, cuja

tradução latina soa: Dux neutrorum sive perplexorum (Guia dos indecisos ou

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perplexos), uma das culminâncias do pensamento medieval. Impregnado de

cultura árabo-muçulmana e enraizado na tradição judaica, consegue uma

síntese teológica que ultrapassa a falsafa (filosofia típica dos árabes) e o

kalâm (teologia típica dos árabes e judeus). Procura expor o sentido da

Torah e do Talmude, indo além de sua literalidade (sentido esotérico). Trata

dos filósofos e da profecia; das religiões e dos ritos. Critica severamente os

teólogos (muttakallimûn): estes não só deixaram de demonstrar alguma

coisa, mas inverteram o mundo e alteraram as leis da natureza. Um problema

importante discutido por Maimônides é o da criação. Segundo ele, não se

pode, pela filosofia, isto é, com demonstrações puramente racionais,

demonstrar que o mundo seja eterno ou que seja criado. O máximo que o

teólogo consegue alcançar é mostrar a nulidade das demonstrações alegadas

pelos filósofos em favor da eternidade do mundo. A eternidade do mundo não

é objeto de objeto de demonstração nem de fé. Já a criação é objeto de fé

(na tradição profética) e não de demonstração. A física e a metafísica podem

aduzir razões em favor da necessidade da existência de um primeiro movente

imóvel do universo. Aqui Deus aparece como causa primeira e como

pensamento de pensamento (nous noeseos). Deus é uno: nele há a total

identidade de pensar, pensante e pensado. Paralelamente, no homem há uma

identidade entre o pensamento e a coisa pensada (o ser). A compreensão de

Deus a partir do mundo criado, porém, é limitada, pois entende Deus somente

como causa do mundo, sem apreender a sua essência em si mesma. Moisés

Maimônides interpreta a criação como ato livre e Deus como ser pessoal

transcendente, diante do qual o homem se encontra numa relação eu-tu. A

perfeição ética é o caminho para o homem se aproximar de Deus.

Para Maimônides, o profeta é o filósofo consumado. A iluminação intelectual

ou perfeição especulativa prepara o estado profético. A profecia é uma

emanação de Deus que se estende por meio do Intelecto Agente sobre a

faculdade racional e a imaginativa do homem. É o mais alto grau a que a

razão humana pode, por graça, chegar. Se a emanação divina ilumina

somente a faculdade racional, sem atingir a imaginativa, temos os sábios; se

ilumina também a imaginativa, temos os profetas; se ilumina somente a

faculdade imaginativa, temos os magos e os legisladores. A ciência se faz por

meio do silogismo. Há homens que só podem aprender uma ciência já feita e

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há homens que são capazes de descobrir por si mesmos os meios termos

necessários para a dedução silogística. Estes são os que desenvolvem os

graus maiores da intelectualidade, apreendendo melhor os inteligíveis e se

unindo ao Intelecto Agente.

Maimônides teve grande influência no mundo cristão. Foi citado

especialmente por Alberto Magno e Tomás de Aquino. A filosofia judaica

continuará na Idade Média cristã, especialmente na França. Gersônides

(1288-1344) e Moisés de Narbonne (1300-1362) serão os principais

continuadores da tradição filosófica judaica, além daqueles que se dedicaram

a conciliar filosofia e cabala. A aventura filosófica do judaísmo medieval

termina, porém, na Itália, com Judá ben Isaac, conhecido como Leão, o

Hebreu (c. 1460- c. 1523), cujos Diálogos de Amor tiveram papel decisivo no

êxito do neoplatonismo de Florença.

Podemos concluir esta aula fazendo algumas ponderações gerais

sobre o estudo da filosofia em Bizâncio, no Islã e no judaísmo

medieval. Antes de tudo, observamos que cada um destes mundos

possui uma experiência de pensamento própria, com suas posições

fundamentais e com seu estilo peculiar. O pensamento destes

mundos é mais do que a filosofia. Ele se dá também na medicina, no

direito e na religião, com sua forma de teologia própria e sua

mística também própria. A filosofia, porém, é aculturada no

contexto destes mundos e se torna uma concreção de pensamento

que assimila as demais tendências do pensamento. O resultado

demonstra a riqueza do espírito humano em suas várias tradições

culturais. É o produto desta riqueza que chega ao ocidente cristão

latinófono pelas traduções que começam a ocorrer no fim do século

XII e no início do século XIII. Trata-se de um sobrevento de grande

impacto, que transforma o mundo medieval latinófono. O esforço

hermenêutico que estas tradições têm de constituírem e

interpretarem sua própria identidade à luz do confronto com as

alteridades constitui o diálogo dos mundos, que é a Idade Média,

um diálogo onde participam gregos pagãos e bizantinos, cristãos

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“heréticos” e muçulmanos, muçulmanos e judeus, cristãos latinos e

muçulmanos e judeus.

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Unidade IV – A filosofia no período gótico da Idade Média latina:

séculos XIII-XIV

O século XIII no mundo cristão latino é o tempo do renascimento urbano, do

surgimento das universidades, do advento de Aristóteles no pensamento e

do estilo gótico na arte.

A arte gótica dá bem o tom da vida espiritual daquele tempo. Seu símbolo

maior é a catedral. Ela mostra que aqueles que habitavam “a idade das

trevas” eram apaixonados pela luz. Ela é a síntese entre a poesia da pedra e

a potência da luz. A catedral é, com efeito, ordenada para captar a luz e

guardá-la como algo transformado, de imaterial, como se pensava que ela

fosse, nesta matéria muito rara e sutil que é um vitral sob uma abóbada

muito alta. A catedral gótica é a luz da teologia escolástica encarnada na

poesia da pedra. Na experiência espiritual testemunhada pela arte gótica,

tudo é figura e sinal, interpretação e remissão para o Espírito. É o Espírito

que, numa força criadora infinita, cria para si uma vida transbordante. Nesta

vida absoluta, todos, e cada um, podem, sem senões nem restrições,

participar. Carece somente de ter olhos para ver. Há que se irromper na

dimensão da contemplação a fim de que, através de uma película de

aparência, poder tocar em toda a parte o Absoluto. Nesta nova experiência

espiritual da humanidade do Ocidente latino, é permitido ao homem viver se

elevando, através das diversas dimensões da criação, para Deus. Cada

degrau da criação traz em si o todo, cada vez de maneira diferente. Das

dimensões materiais dos corpos às dimensões espirituais dos anjos, da

multiplicidade das substâncias compostas à simplicidade das substâncias

separadas, se perfaz uma escada, através da qual é possível se elevar para

Deus. A catedral gótica é a recordação e o protótipo de uma passagem

ilimitada para uma potência sempre crescente, ou seja, de uma escalada.

Talvez, uma escalada que prepara para um salto, um salto no abismo da

escuridão luminosa de Deus. É que a catedral faz de todo o mundo uma

igreja. Ela mostra que também e sobretudo fora está se realizando,

constantemente, um ofício divino. Em toda a parte. No ser. Pois ser é Deus.

A catedral é uma demonstração de que o homem pode, por toda a parte,

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estar na casa de Deus. Basta que o homo religiosus (homem religioso), que

é sempre um homo viator (homem a caminho, viandante), realize a

passagem, o transitus, a páscoa, cada vez e sempre de novo, até a suprema

passagem, que se cumpre no salto da morte. Religião é passagem. Ela acena

para a contemplação, para aquele olhar que vê tudo em tudo – e Deus em

cada coisa.

Vamos ver, nesta unidade, como o pensamento, que se faz filosófico-

teológico-místico se apresenta por esta época. Vamos estudar o expoente

deste pensamento: Tomás de Aquino. Nas outras aulas vamos estudar

Boaventura de Bagnoreggio, Duns Scotus, Guilherme de Ockham e Mestre

Eckhart.

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Aula 09 – Tomás de Aquino

O século XIII, no tocante aos estudos, é marcado pelo surgimento

das universidades, pela implantação do método escolástico e pelo

advento de Aristóteles. O maior expoente da escolástica deste

tempo é Tomás de Aquino. Tentemos, pois, compreender o

horizonte de seu pensamento em seu conjunto e em seus momentos

essenciais. Tentemos, porém, antes de tudo, entender Tomás de

Aquino em seu contexto.

Esta aula está carente de indicação de suas fontes. Favor incluí-las.

9.1 A recepção de Aristóteles no mundo cristão latinófono

De 1150 a 1250 toda a obra de Aristóteles foi traduzida. Não somente o

Organon, mas também os escritos de metafísica, de física, psicologia e ética.

A recepção de seu pensamento começa pelos idos de 1200, especialmente na

Universidade de Paris. De início, Aristóteles foi proibido, depois, acabou sendo

recomendado. A proibição de Aristóteles se deve a pelo menos três teses que

colocaram em questão convicções fundamentais da fé cristã: a criação ex

nihilo (a partir do nada), a imortalidade individual da alma e a doutrina da

providência divina. No ano de 1210, um sínodo de Paris proibiu a leitura dos

textos de filosofia da natureza de Aristóteles. Uma proibição de 1215, porém,

inclui a Metafísica. Em 1231, o papa Gregório IX confirmou a proibição, mas

com a ressalva: “até que fossem corrigidos” (os seus escritos). Entretanto,

não somente os mestres da faculdade de artes, mas também os da teologia

seguiram lendo, comentando, discutindo e criticando Aristóteles, até que, em

1255, os escritos de Aristóteles fossem recomendados oficialmente no

programa de estudos da faculdade de Artes. Aristóteles se tornou,

simplesmente, o “Filósofo” e a admiração que Avicena, Averróis e Maimônides

nutriram pelo Estagirita se passou também aos filósofos cristãos do mundo

latinófono.

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A recepção de Aristóteles, contudo, não foi tranquila. Foi agravada

especialmente pelas teses defendidas por alguns filósofos da Faculdade de

Artes (Artes Liberais), como Siger de Brabante (+ 1286) e Boécio de Dácia

(+ 1284), que seguiam a interpretação de Aristóteles promovida por Averróis

(“Averroismo Latino”). A tese heterodoxa principal consistia na afirmação da

unidade do intelecto para todos os homens, seguindo certa interpretação de

Averróis (Leibniz chamou esta tese de “Monopsiquismo”). Via-se nesta tese

uma ameaça à imortalidade individual da alma humana. Uma das principais

metas do cristianismo: a salvação do indivíduo acaba sendo ameaçada por

essa tese (HEINZMANN, 1992, p. 158-160).

9.2 Tomás: o teólogo

Tomás de Aquino nasceu em 1224, na Itália (perto de Nápoles). Foi educado

com os beneditinos em Monte Cassino e estudou as Artes Liberais no centro

imperial de estudos de Nápoles, onde teve como mestre Pedro de Hibérnia.

Contrariando sua família, entrou para a Ordem dos Pregadores (a ordem

mendicante dos dominicanos). Estudou depois com Alberto Magno (1200-

1280) em Paris e em Colônia. Com este aprendeu a dedicar-se ao estudo de

Aristóteles. Sua atividade de ensino se dá antes de tudo em Paris. Depois

ensina na Itália, em Roma, Viterbo e Nápoles. Em sua segunda fase em Paris

enfrenta uma polêmica dirigida contra as ordens mendicantes e também

combate os aristotélicos extremos da faculdade de Artes. Tomás de Aquino

se entende, antes de tudo como teólogo. Num dos raros momentos em que

fala de si em sua obra, ele declara: “A tarefa principal da minha vida, à qual

me sinto obrigado em consciência diante de Deus, é que todas as minhas

palavras e todos os meus sentimentos falem d’Ele”. Antes de morrer, tem

uma experiência mística que o leva a dizer: “Não posso mais. Tudo aquilo

que escrevi me parece palha em comparação com aquilo que vi” (Apud

TORREL, 2003, p. 26). Morre em 1274, com 50 anos de idade, perto da abadia

cisterciense de Fossanuova, a caminho do Concílio de Lião. Foi em vida e

depois da morte contestado pelos agostinistas, tanto os de fora como os de

dentro de sua própria ordem. Dentre suas obras, no interesse da filosofia, se

destacam o opúsculo intitulado De ente et essentia (Do ente e da essência),

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os diversos Comentários a Aristóteles, as Questões disputadas, a Suma

Contra os Gentios e a Suma Teológica.

A Suma Teológica é a obra mais célebre de Tomás, embora tenha ficado

inacabada. Sua intenção pedagógica nesta obra se deixa declarar com as

palavras: “Os doutores da verdade católica devem instruir não só os iniciados,

mas também os principiantes (...), por isso, o intento que nos propomos

nesta obra é o de expor tudo aquilo que concerne à religião cristã no modo

mais conveniente à formação dos principiantes” (Apud TORREL, 2003, p. 30).

Ele assim explica o gênero da Suma: “... tentaremos, confiando na divina

ajuda, expor a doutrina sagrada com a maior brevidade e clareza permitida

por tal disciplina” (Apud TORREL, 2003, p. 31). Tomás é um pensador

sistemático que reflete sobre um assunto partindo dos princípios últimos

claramente sistematizados. Mas como é ao mesmo tempo o pensador

objetivo, cada pormenor que trata não é considerado apenas pretexto para

discorrer sobre os princípios, mas é na verdade ponderado com particular

atenção, ainda que à primeira vista não pareça conformar-se facilmente com

os grandes motivos principais de seu pensamento. Tomás declara o limite do

conhecimento teológico, na tradição do Pseudo-Dionísio, a quem chegou a

comentar. Nós não podemos saber de Deus o que ele é, mas somente o que

ele não é. Tomás sabe bem que a precisão e objetividade da verdadeira

teologia só tem um fim em vista: arrancar o homem da claridade fácil da sua

existência, para mergulhá-lo no mistério da incompreensibilidade de Deus,

onde o homem ultrapassa a compreensão para se render à adoração. Para

ele, só na medida em que a teologia dos conceitos compreensíveis se revogar

na teologia da incompreensibilidade que toma o homem de veneração diante

do mistério, é que é verdadeiramente teologia. A teologia apresenta, na

Suma, três temas, segundo o esquema do exitus (saída de Deus) e reditus

(retorno para Deus): fala-se, antes de tudo, de Deus; em seguida, do

movimento da criatura racional para Deus; enfim, do Cristo, o qual, enquanto

homem, é via para ascender a Deus.

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9.3 A autonomia da razão

Mesmo sendo principalmente teólogo, Tomás não deixou de valorizar a

filosofia. Sempre trabalhava em paralelo. Por exemplo, quando escrevia a

parte da Suma que trata da moral cristã, ele trabalhava também,

paralelamente, um comentário à Ética de Aristóteles (TORREL, 2003, p. 22).

Apesar de transitar bem na dimensão da filosofia e da teologia, ele não quis

que ambas se confundissem. No ocidente cristão, é o primeiro a postular uma

autonomia da filosofia em relação à teologia. Paradoxalmente, porém, esta

postulação de autonomia da filosofia não é motivada pela reivindicação de

uma libertação da razão em relação à fé, mas sim, por tomar a sério os

dogmas da fé: a criação e a encarnação. Durante séculos, o cristianismo tinha

seguido pela via do espiritualismo e transcendentalismo. O juízo final era o

dogma principal. Platão era a filosofia mais adequada para apoiar esta via de

transcendência. Mas, a partir do século XII, como demonstra a arte gótica, o

cristianismo sofre uma guinada radical: volta-se para o mundo como criação

de Deus e para a humanidade de Deus. Daí decorre também, na filosofia, a

exigência de uma guinada anti-platônica. O idealismo transcendental

platônico cede o lugar ao realismo empírico aristotélico. É preciso se voltar

para o mundo sensível, o mundo da experiência, no qual nós, de início e na

maior parte das vezes nos encontramos. Não ter vergonha de reconhecer que

nossa aventura no conhecimento começa sempre “de baixo”, do mundo

sensível. Depois, não querer construir o conhecimento em especulações

soltas no ar, mas atendo-se ao que se mostra concretamente – a manifestis

non discendere (não se afaste do que é manifesto!), diz ele (De Spiritualibus

Creaturis 5: apud HEINZMANN, 1992, p. 205). Deus cria dando o ser ao

mundo e o mantendo neste mesmo ser. Entretanto, ao criar, Deus deixa sua

obra repousar em si mesma, ou melhor, deixa que sua obra tenha em si

mesma o princípio de sua atividade. Enquanto os agostinistas, de modo

pessimista, salientavam as consequências do pecado para a razão humana,

que se tornou cega para o essencial, para o mundo do espírito e para Deus,

Tomás salienta, de modo otimista, que o homem fora criado por Deus como

sua imagem e semelhança, isto é, como um ser livre e autônomo. A

onipotência do criador não suprime a liberdade do homem, antes, a promove.

Criar é deixar-ser. É não somente um ato de dependência, mas é também

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um ato de liberação. A “causa primeira” não anula, antes promove a

autonomia das “causas segundas” que atuam no mundo. A autonomia da

razão é o horizonte da filosofia. Aliás, a filosofia é o máximo empenho de

autonomia da razão (HEINZMANN, 1992, p. 204-205).

A afirmação desta autonomia é também o motivo pelo qual Tomás prefere,

na teoria do conhecimento, a teoria da abstração de Aristóteles do que a

teoria da iluminação de Agostinho. Tomás de Aquino, seguindo Aristóteles,

entende a conquista do conhecimento como um empenho do próprio homem,

uma disposição adquirida graças ao esforço humano de compreender as

coisas. O conhecimento humano sempre parte dos sentidos. Os sentidos nos

revelam coisas sensíveis, substâncias individuais. Conhecer é abstrair.

Abstrair é, antes de tudo, prescindir: prescindir do que é sensível, do que é

particular. Abstrair é, depois, extrair: extrair o inteligível, o elemento

universal. O intelecto tem o poder de distinguir mentalmente o que, na

realidade, é inseparável: o inteligível e o sensível, o individual e o universal.

O homem transcende o mundo da experiência pela capacidade abstrativa da

razão. A razão, a partir da abstração, forma o conceito; a partir do conceito,

enuncia juízos sobre o real; a partir dos juízos, realiza raciocínios

(silogismos); concatenando os juízos e articulando razões necessárias e

prováveis, a razão elabora a ciência. A ciência é, portanto, uma construção

do homem. Mas esta construção se dá graças à capacidade que lhe foi dada

pelo Criador. Esta capacidade é a “luz natural da razão”. A ciência e a filosofia

são uma conquista do homem, que segue esta luz natural da razão. A fé já

um dom de Deus, que é infuso no homem como graça de uma iluminação

sobrenatural. Assim, mesmo seguindo uma concepção Aristotélica do

conhecimento como abstração, Tomás ainda entende o conhecimento como

“iluminação”, embora seja uma iluminação que advém do intelecto como

potência naturalmente inserida na alma humana, que é criada por Deus. Deus

é a fonte de ambas as formas de conhecimento: a da razão natural e a da fé

sobrenatural. Por isso, ambas não podem se contradizer.

A envergadura do intelecto é de tal magnitude, que Tomás chega a firmar de

que a alma intelectual é, de certo modo, todas as coisas. Isso quer dizer: o

intelecto tem a capacidade para conhecer todo o ente, qualquer que seja o

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seu modo de ser, pois todo o ente, enquanto criação do intelecto divino, é

inteligível. Há uma correlação fundamental entre pensar e ser. Seguindo sua

própria capacidade, o intelecto é apto a partir das coisas e se elevar até Deus.

Como fica claro ao fim de seu opúsculo juvenil O ente e a essência, a filosofia

de Tomás é a demonstração de uma elevação da mente para Deus, uma

elevação que o homem faz a partir de suas próprias forças (TOMÁS DE

AQUINO, 1990, p. 241). Autonomia é isso: o erguer-se a si mesmo do

homem, a partir da capacidade de sua liberdade. Entretanto, embora

fundamentalmente orientada para o todo, a razão não pode tudo. Acima da

luz natural da razão, está a luz sobrenatural da fé. Se a filosofia é a ciência

da autonomia da razão, a teologia é a ciência da obediência, melhor, da

recepção agradecida e afeiçoada da fé. A fé é “virtude infusa”. A disposição

de crer não vem do homem, mas de Deus. E a teologia é uma ciência bem

singular, pois é a ciência de uma verdade, cuja revelação não é acessível à

investigação autônoma da razão, mas é sobrenatural, isto é, puramente

gratuita. A filosofia é experiência do empenho da razão. A teologia é a

experiência da gratuidade da fé. Ambas, no entanto, isto é, razão e fé, vêm

de Deus. Uma, a filosofia, está fundada na ordem da criação e da luz natural

da razão. A outra, a teologia, está fundada na ordem da salvação e na luz

sobrenatural da fé (revelação).

Tomás de Aquino assume uma posição diferenciada em relação à tradição

dominante na Idade Média latina até o século XIII. Ele opera uma distinção

nítida entre filosofia e teologia. Não só. Ele até postula certa autonomia da

filosofia em relação à teologia. Filosofia e teologia são saberes distintos. A

filosofia é o conhecimento que surge da luz natural da razão. A teologia é o

conhecimento que parte da luz sobrenatural da revelação e se move no

horizonte da fé. A filosofia pode se elevar a Deus, mas é um conhecimento

que se alcança por via da razão natural, partindo-se das criaturas, como

aparece na exposição das "cinco vias" que demonstram a existência de Deus.

A razão chega a uma causa primeira do ser, ao ente supremo, necessário,

absoluto ao qual, diz Tomás, "nós chamamos Deus". A filosofia, porém, pode

ser o que ela é sem se subordinar à teologia. A subordinação da filosofia à

teologia é uma necessidade ou possibilidade do teólogo, não do filósofo

enquanto tal. A teologia, por sua vez, parte da revelação divina. Os mistérios

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da Trindade e da Encarnação, por exemplo, escapam à razão. A razão, no

máximo, pode preparar os preambula fidei (os preâmbulos da fé) (ÜBERWEG,

1927, p. 429). A passagem da razão natural à fé não se dá por continuidade

e sim por um salto. À fé só se chega com a própria fé. E a fé é uma virtude

infusa (infundida, derramada), um dom sobrenatural. Aqui a palavra fé não

é o mesmo que crença. O ato de crer é, aqui, um dom sobrenatural e gratuito

de Deus. A partir da fé, porém, se edifica a teologia, que recorre à razão para

clarear melhor o sentido daquilo que se crê, sem, porém, extinguir o mistério.

Com a razão, o máximo que o crente consegue é mostrar a não absurdidade

daquilo que ele crê. Ademais, todo o conhecimento que temos de Deus,

mesmo com o auxílio da fé, é limitado. Nós podemos dizer o que Deus não é,

mas não o que ele é.

9.4 As demonstrações da existência de Deus em Tomás: as cinco vias

Tomás considera necessário demonstrar a existência de Deus, já que ela não

nos é imediatamente evidente, ou seja, não é objeto de uma intuição (visão

direta e imediata) (ROVIGHI, 1991, p. 99-100). A existência de Deus é per

se nota simpliciter (evidente por si mesma, pura e simplesmente) ou per se

nota quoad se (evidente por si mesma, segundo si mesma), mas não é per

se nota quoad nos (evidente por si mesma, para nós). A existência de Deus

seria para nós imediatamente evidente se conhecêssemos sua essência, mas,

como não a conhecemos, então também não temos a evidência imediata da

sua existência. A evidência só resulta de um processo demonstrativo da

razão, prescindindo, aqui, evidência própria da fé e da revelação (.

Na Suma Teológica (I, q. 2, art. 3), Tomás apresenta cinco vias para

demonstrar a existência de Deus. A primeira via é a do devir. Partindo da

experiência, é certo que algumas coisas se movem (certum est aliqua

moveri). Tudo aquilo que devém ou muda é mudado por outro (omne quod

movetur ab alio movetur). Ora, a razão requer que, na ordem das causas,

não se vá ao infinito (hic autem non est procedere in infinitum). A conclusão

é que deve haver um primeiro movente ou uma primeira causa do devir, que

seja, ela mesma imutável. E esta causa, diz Tomás, “nós chamamos Deus”.

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Esta primeira via parte, pois, do fato do motus. Em Tomás motus não é

simplesmente movimento como nós hoje entendemos (no sentido de

deslocamento). Motus é, em sentido muito mais abrangente, devir, mutação,

passagem do não ser ao ser, ou do poder-ser (potentia) à realidade efetiva

de ser (actus). Enquanto as causas segundas são somente causas do devir

das coisas (causae fiendi), a causa primeira é, na verdade, a causa do ser

(causa essendi) das coisas que devêm.

A segunda via parte da consideração da causa eficiente. Nas coisas da

experiência há uma ordem de causalidade eficiente. Contudo, não é possível

que algo seja causa eficiente de si mesmo (nec est possibile quod aliquid sit

causa efficiens sui ipsius). Ela deveria ser antes de si mesma, o que é

impossível. Também não é possível ir ao infinito nesta ordem das causas

eficientes. Logo, é necessário pôr uma causa eficiente primeira e a esta “todos

chamam Deus”. Se a primeira via demonstra a necessidade de um primeiro

movente do devir, que seja ele mesmo imutável, a segunda via demonstra a

necessidade de uma causa primeira do ser, que seja ela mesma não causada.

A terceira via parte da experiência, de que há no mundo coisas que podem

ser e não ser, isto é, as coisas contingentes, que são geráveis e corruptíveis.

Ora, tudo que é contingente tem uma causa. Sua passagem do não-ser ao

ser requer uma causa. Também aqui não se há de ir ao infinito na ordem das

causas. Portanto, é necessário que haja alguma coisa que seja

necessariamente e indefectivelmente por si mesma. “E isto é Deus”. A ordem

das causas possíveis e contingentes requer uma primeira causa necessária e

indefectível.

A quarta via parte da gradação que se encontra nas coisas. Nelas, há o mais

e o menos bom, o mais e o menos verdadeiro. A gradação na perfeição,

porém, requer a referência a um máximo perfeito, a algo que seja

sumamente ente, sumamente verdadeiro e sumamente bom. Aquilo que é

maximamente é a causa daquilo que, no seu gênero, é menos perfeito, como

o fogo, que é o maximamente quente é causa de calor de outros corpos.

Assim, existe um ente que é a causa do ser, da bondade, da verdade e da

perfeição de todas as coisas e “este nós chamamos Deus”.

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A quinta via parte do governo das coisas. Todas as coisas, mesmo aquelas

que são privadas do conhecimento, agem por um fim, pois buscam aquilo que

é melhor para elas. Isto acontece não por acaso, pois a ordem teleológica

demonstra algo de uma orientação e direção inteligente no devir das coisas.

É como uma flecha que é direcionada por um arqueiro. Portanto, há um ente

inteligente pelo qual todas as coisas naturais são ordenadas a um fim, “e este

nós chamamos Deus”.

9.5 A analogia do ente

Uma vez demonstrada a necessidade da existência de Deus, como entender

a relação entre o ser de Deus e o das criaturas? Para Tomás de Aquino há

uma analogia entre o ser da criatura e o ser de Deus (HEINZMANN, 1992, p.

207-208). Analogia é uma identidade entre os diferentes, uma semelhança

entre os dessemelhantes. Deus é. A criatura também é. Há uma identidade

no ser. A perfeição, que consiste no ato de ser (actus essendi) é a mesma,

em Deus e na criatura. Contudo, há uma diferença entre ambos e essa

diferença é de grau ou proporcionalidade (analogia de proporcionalidade).

Deus é e é sumamente, ou seja, infinitamente. A criatura é e é de modo

limitado sempre, ou seja, finitamente. Depois, no horizonte do ser criatural,

há maior e menor perfeição de ser, pois o universo está ordenado

hierarquicamente: de cima para baixo: espíritos puros ou inteligências

(anjos) em coros hierárquicos, depois o homem (como elo entre o mundo

espiritual e o mundo corporal), depois os seres corpóreos: animais, vegetais,

minerais, por fim, os elementos fundamentais (fogo, ar, água e terra) e, no

limite, a materia prima (matéria primeira ou primordial), um quase não-ser,

a pura possibilidade de receber o ser. De alto a baixo, as criaturas recebem

o ser e o transmitem em graus do maior para o menor. Mas, qualquer que

seja o grau de perfeição no ser que tenha uma criatura, o seu grau é sempre

limitado. A criatura é um ser composto. No caso dos seres corpóreos, há uma

composição de matéria e forma (como no homem, a matéria é o corpo e a

forma é a alma). Depois, nos seres que são puros espíritos, embora não haja

mais uma composição de matéria e forma, há ainda uma composição

ontológica de potência (possibilidade) e ato (realidade). A criatura não é a

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sua essência, ela tem a sua essência. E ter uma essência é participar de uma

possibilidade determinada de ser, de um modo e vigência de ser determinado.

A criatura não é o seu ser pois ela recebe o ser (o ato de ser, a existência) e

o ser tal ente que ela é (a essência) de outro ente. Ela é, como diziam os

medievais, ab alio (a partir de outro). Já Deus, não. Deus é o ser que ele é.

Nele, o ato de ser (a existência) coincide com o ser tal ente que ele é

(essência). Deus é o seu ser e o é imediatamente, sem passar de uma

potência (possibilidade, ainda não ser) para um ato (realidade, já ser). Ele é

ato (realidade) sem potência (possibilidade), é ato puro (actus purus).

Sempre é o que ele é. Neste sentido de plenitude, Deus é o ser mesmo

subsistindo em si mesmo (ipsum esse subsistens): ele não é somente o sumo

ente, mas é o ser em que não há nada de não ser, a essência que é puro e

pleno ser, a realidade realíssima em si mesma, ainda que seja, para nós, a

última realidade (pois o que vem primeiro na ordem do ser, vem por último

na ordem do conhecer). Entretanto, apesar destas diferenças - ser puro e

pleno de Deus e ser composto e restrito da criatura - há uma identidade entre

a perfeição de ser de Deus e a da criatura. Porém, essa identidade se dá

numa relação de proporcionalidade (variação de grau). E isso é o que se

chama de analogia do ente (analogia entis).

9.6 A essência nas substâncias compostas e o princípio de

individuação

A essência se encontra de modo absoluto na substância e de modo relativo

nos acidentes. As substâncias, porém, podem ser de dois tipos: compostas e

simples. As substâncias compostas são menos nobres do que as simples. No

entanto, elas nos são mais acessíveis e fáceis de serem apreendidas. Quando

Tomás fala de substância composta, ele entende uma composição de forma

e matéria. Forma é o princípio de determinação de um ente. É pela forma que

um ente é tal ente, com este modo de ser e não outro. Se a forma é o

determinante, a matéria é o determinado. Matéria é determinabilidade, poder

receber uma determinação. Quando um artesão vai fazer uma mesa, ele pode

assumir para a feitura desta obra, diversos tipos de matéria: pedra, madeira,

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vidro, etc. A forma é o que é a obra que deve ser feita. A matéria é o de que

a obra deve ser feita.

Nas substâncias compostas a essência não é a simples forma; nem a simples

matéria; nem a relação de matéria e forma; mas o composto íntegro (sínolo)

de matéria e forma (TOMÁS DE AQUINO, 1990, p. 206). A matéria é o

elemento indeterminado e determinável. A forma é o momento determinado

e determinante. A matéria é de que a coisa é feita. A forma é o que é esta

coisa que é feita. A matéria é receptiva para a forma. A forma é doadora à

matéria. A forma doa o ser à matéria. A matéria recebe o ser da forma. Na

realidade, jamais encontramos uma materia prima (uma matéria sem forma).

A materia prima seria o nada de que toda a criatura pode receber o ser. Nós

encontramos sempre somente a matéria formada. Mas, uma coisa formada

de matéria e forma pode, por sua vez, servir de matéria para outra forma. A

essência não é a matéria somente, pois a essência é princípio de

inteligibilidade e de conhecimento, já a matéria não é aquilo que me faz

conhecer a coisa, mas é somente aquilo que faz a coisa existir de fato, em

ato. O que me faz conhecer a coisa é a forma (princípio de determinação). A

essência não é somente a forma, pois a essência é o que vem à fala no

conceito por meio da definição. E a definição de alguma coisa se faz

acrescentando ao gênero a diferença específica. Ora, o gênero corresponde à

matéria ("animal" na definição de "homem") e a diferença corresponde à

forma ("racional" na definição de "homem"). Na definição de homem eu tenho

tanto o elemento da forma (racionalidade: o que determina a diferença entre

a espécie homem e as demais espécies de animais) e o elemento matéria

(animal: pois a animalidade serve de matéria para a forma da humanidade,

por isso, podemos inferir, o corpo humano é organismo animal, mas é

organismo animal determinado pela vitalidade própria do homem). Pois bem,

a essência na substância composta é o todo: matéria-e-forma. Se a essência

fosse somente a forma, não teríamos como diferenciar física e matemática.

A física estuda o devir dos entes que surgem e perecem. Ora, estes entes são

compostos de forma e matéria. Esta composição é o que dá a eles a sua

concretude individual. Já a matemática abstrai da matéria e intui apenas o

elemento formal dos corpos (como o número na aritmética; a figura na

geometria). A essência também não é a relação entre forma e matéria.

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Relação é um acidente. Já a composição de matéria-e-forma é algo de

essencial, inerente e intrínseco à substância composta. A matéria é o que faz

um ente ser em ato, isto é, ser de fato, se realizar de fato; já a forma é o

que faz um ente ser de fato este tal ente, que ele é. O branco (matéria) faz

a brancura existir em ato (como algo de real, como um fato). A brancura

(forma) faz o ente ser tal ente, ou seja, ser branco.

O princípio de individuação é a matéria assinalada nas dimensões do espaço

e no tempo (materia signata) (TOMÁS DE AQUINO, 1990, p. 207). Se todo

homem participa da mesma essência (a humanidade), partilhando de uma

mesma espécie, o que diferencia cada indivíduo como tal? O que é que torna

cada indivíduo este indivíduo que ele é? Esta pergunta visa o princípio de

individuação. Para Tomás, o princípio da individuação das substâncias

compostas é a matéria - mas não a matéria pura e simplesmente e sim a

matéria assinalada, perfilada e configurada na concretude de um espaço e de

um tempo, de uma história. Todos os indivíduos têm matéria, mas o que

define este indivíduo como este indivíduo é a unicidade concreta de sua

matéria e a historicidade desta mesma matéria.

Para Tomás, o indivíduo é indefinível, já que a definição se faz por gênero e

diferença específica. Não há uma definição para a essência de Sócrates, mas

só uma definição para a essência de "homem". Quando digo que Sócrates é

homem, não estou definindo Sócrates como Sócrates. Estou dizendo que

Sócrates é um indivíduo da espécie humana. Ora, certamente isso diz algo

de essencial em relação a Sócrates, mas não diz tudo, nem o que é o

elemento pelo qual Sócrates é Sócrates. Pelo contrário, diz algo pelo qual

Sócrates tem algo em comum com Platão. Por isso, só a espécie é definível,

o indivíduo não. Eu posso indicar um indivíduo, posso também descrevê-lo,

mas não posso defini-lo. No indivíduo, a essência se encontra individuada.

Chamamos de pessoa a um indivíduo de natureza racional, como dizia a

definição de Boécio.

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9.7 A essência e as intenções lógicas: o problema dos universais

Como fica a essência em relação às "intenções lógicas": gênero, espécie,

diferença? No capítulo III de sua obra “De ente et essentia” (TOMÁS DE

AQUINO, 1990, p. 207-216), Tomás se propõe analisar também como ente e

essência se relacionam com as "intenções lógicas", isto é, com os conceitos

de gênero, espécie e diferença (os chamados “universais”). Aristóteles falou

de uma substância primeira, o ente na sua singularidade - como um "este

aqui" e de uma substância segunda, o ente na sua universalidade - como o

gênero e a espécie. O problema sobre o estatuto dos entes denominados de

substância segunda (os universais) foi chamado na história da filosofia de o

problema dos universais. No modo como Tomás trata da relação da essência

com o gênero e a espécie, podemos ver como ele dá uma solução a este

problema, que Porfírio, comentando Aristóteles, transmitiu à história, sem ele

mesmo resolver.

Como a essência se relaciona com os conceitos universais de gênero, espécie

e diferença específica no caso das substâncias compostas? Em sentido

absoluto, a essência não é nem individual nem universal. Em sentido relativo,

a essência é individuada no indivíduo. Tomás nega que as essências sejam

separadas das coisas singulares, ou seja, nega a tese platônica, que postula

a subsistência de ideias ou essências separadas dos entes singulares, no

“mundo das ideias”, o hiperurânio. As ideias ou essências das coisas podem

ter três formas de subsistir: na mente de Deus (ante rem: antes da coisa),

nas coisas (in re: na coisa) e depois da coisa (post rem). Tomás pressupõe a

subsistência da essência na mente de Deus, antes do ato criador. No âmbito

do mundo criado, por sua vez, a essência existe propriamente individuada no

indivíduo. Depois, a essência é abstraída pelo intelecto. O intelecto produz o

universal. No conceito universal a essência apresenta-se universalizada, ou

seja, ela é um predicado que enuncia um atributo de muitos indivíduos. A

abstração separa (mentalmente) o que está unido (realmente) no ente

singular: a essência e a existência, o inteligível e o sensível, a forma e a

matéria. O universal recolhe o momento essencial, inteligível, formal da

coisa. Depois, comparando indivíduos entre si, o intelecto apreende certa

semelhança formal (essencial, típica, estrutural) entre os indivíduos. Esta

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semelhança que expressa a essência de vários indivíduos, a semelhança

formal-estrutural, é a espécie. Quando comparamos, por sua vez, a

semelhança entre as espécies e apreendemos algo de comum entre várias

espécies, então produzimos o conceito de gênero. Tomás diz que os

universais expressam a essência, mas de maneira indistinta. Na espécie, fica

indistinto as notas individuais e individuantes do ente singular. No gênero,

fica indistinto e implícito aquilo que é peculiar de cada espécie (o específico).

Em resumo: os universais expressam a essência das substâncias compostas

de maneira abstrata e indistinta: a espécie enuncia a essência, abstraindo

das notas individuais, o gênero enuncia a essência, abstraindo das notas

específicas do ente. Contudo, neste caso, a essência é tomada em sentido

relativo ao ente e de maneira abstrata. É desta forma que a essência subsiste

não na coisa (o ente real), mas "na alma", isto é, no intelecto. O (conceito)

universal, porém, não é uma mera ficção do intelecto (como afirmava o

nominalismo), mas é uma produção do intelecto que tem fundamento nas

semelhanças reais entre as coisas reais (cum fundamento in re).

9.8 A unidade substancial do homem e a imortalidade da alma

humana

Como a essência se relaciona com as substâncias separadas (inteligências,

puros espíritos, anjos), com a substância divina e com os acidentes em Tomás

de Aquino? Toda a criatura é composta de potência (possibilidade) e ato

(realidade), pois não tem o ser a partir de si (a se), como a Causa Primeira,

mas tem o ser a partir de outro (ab alio). Mas nem toda a criatura é composta

de matéria e forma. No cosmo, há a dimensão do espírito, onde vigem as

puras formas e há a dimensão do corpo, onde toda a forma é uma forma que

informa (plasma) uma matéria. Minerais, vegetais, animais e a alma racional

(do homem) são formas que informam a matéria corpórea. Neste âmbito, a

matéria assinalada pelas dimensões quantitativas do espaço (materia signata

quantitate) é o princípio de individuação. Por isso, neste âmbito de entes, as

espécies são compostas por uma diversidade e pluralidade numérica de

indivíduos. O homem está no topo desta escala de entes, que são compostos

de matéria e forma. No mineral, há o ser, no vegetal o ser é viver, no animal

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o ser é viver como um ente capaz de sentir e no homem, ser é viver como

ente capaz de pensar. O princípio da vida vegetal chama-se alma vegetativa,

responsável pela nutrição e crescimento, por exemplo. O princípio da vida

animal chama-se alma sensitiva, responsável não somente pelas funções

vegetativas do corpo, mas também pelas funções sensoriais e mesmo pela

memória e pela imaginação. O princípio da vida humana é a alma intelectual,

que é responsável pelas funções vegetativas, sensitivas e espirituais. Para

Tomás, o homem não é um composto de duas substâncias (uma corpórea e

outra espiritual). O homem é um todo, caracterizado pela unidade substancial

da alma racional (forma) e do corpo (matéria). Não há uma pluralidade de

formas no homem (como afirmava a escola franciscana, que punha uma

forma do corpo - forma corporeitatis - junto com uma forma da alma). Só há

uma forma, que dá o ser, o viver, o sentir e o pensar (conhecer e amar) ao

corpo. Esta unidade substancial de uma alma essencialmente racional (que

assume sob si as funções sensitivas e vegetativas) com um corpo, é o

composto (sínolo) ou a substãncia humana. O corpo não é algo de acidental,

pois é a partir dele que se dá a formação da individualidade desta substância,

que vem a se chamar de "pessoa" (substância individuada de natureza

espiritual).

Dentre as funções da alma humana, há algumas que estão essencialmente

relacionadas com o corpo: como as vegetativas (crescimento, nutrição) e as

sensitivas (percepção sensorial, imaginação sensível, memória sensível). Mas

há também uma função que transcende toda a relação com o corpo, e esta

função é o pensar (intelligere). A capacidade que o pensamento tem de

abstrair do sensível o inteligível e de conhecer o universal é um testemunho

da transcendência (em relação ao mundo corpóreo) da alma humana

(espiritualidade da alma). Pelo seu intelecto, a alma é capaz de conhecer todo

o inteligível, de convergir com tudo o que é, de ser, de certa maneira, todas

as coisas (HEINZMANN, 1992, p. 217). O homem é o microcosmo não

somente por unir em si mesmo os dois extremos do universo, pelo fato de

ser o elo que liga o espiritual e o corporal, mas ele é o microcosmo também,

e sobretudo, por ser capaz de, pelo intelecto, conhecer e convir com tudo o

que é, pois tudo o que é, à medida que é, é também inteligível e verdadeiro.

Esta capacidade transcendental do intelecto torna a alma humana um

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espírito. Espírito é aquele ente capaz de conhecer e amar. É com o espírito e

como espírito que aparece, no universo, a dimensão da liberdade. No homem,

a liberdade - a capacidade do livre-arbítrio, do domínio de si e do poder-ser-

princípio das próprias ações - é a imagem de Deus, que é espírito

perfeitíssimo, criador dos espíritos e dos corpos.

A matéria não subsiste sem a forma. Sem a forma, ela se corrompe, como o

corpo de um cadáver. Mas, pode a forma subsistir sem a matéria? No caso

das substâncias espirituais, como a alma humana e também os espíritos

puros ou inteligências, a forma subsiste por si mesma, sem matéria. Tomás

postula, de fato, para a alma humana a possibilidade de subsistir mesmo

depois da morte, quando o corpo se corrompe (imortalidade da alma).

Entretanto, como cristão, afirma que uma alma sem corpo é um estado de

exceção. A tese da unidade substancial do composto humano (corpo e alma),

que a um primeiro momento foi condenada e vista por muitos como

ameaçadora à tese da imortalidade da alma, era, na verdade, uma

salvaguarda à fé na ressurreição da carne (HEINZMANN, 1992, p. 214-215).

O platonismo é que fala de uma imortalidade da alma. O cristinianismo,

porém, professa a fé na ressurreição da carne. Mas, como fica a

individualidade do homem na morte? Não é a matéria o princípio de

individuação? Para Tomás, a obra da individualidade começa a união da alma

a um corpo. Mas esta união funciona como princípio somente, não como fim

da individualidade. Fim da individualidade é a pessoa como ser espiritual. A

individuação é uma obra que dá forma à alma espiritual humana. Portanto, a

individualidade pode subsistir mesmo na morte. Embora este estado da

imortalidade da alma requeira o estado da ressurreição da carne, para se

cumprir os ditames da natureza composta do homem. A alma humana é,

portanto, uma forma auto-subsistente e, enquanto tal, é separada. Mas o

homem é uma substância composta e o destino natural da alma humana é a

união com um corpo. Este é o seu destino eterno e não um destino acidental,

que vem por conta de uma queda no mundo sensível, como pensavam os

platonismos.

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9.9 A essência nas substâncias separadas

A alma humana, pela sua espiritualidade e pela sua imortalidade, dá

testemunho da possibilidade e da realidade de "substâncias separadas".

Aristóteles falava de Inteligências que moviam os céus / os corpos celestes.

O neoplatonismo entendeu as inteligências como emanações do Nous e como

hipóstases divinas que moviam as esferas celestes. Assim também

entenderam os filósofos árabes. O filósofo judeu Maimônides questionou se

as Inteligências moviam mesmo os céus. O cristianismo entendeu estas

Inteligências como seres angélicos e os dispensou da função de mover os

céus e os corpos celestes. Tomás postula que estes seres sejam puras formas,

isto é, forma sem matéria (TOMÁS DE AQUINO, 1990, p. 222-229). São

substâncias simples, se levarmos em consideração a composição de matéria

e forma. Nas substâncias compostas, a forma é o que dá o ser, a matéria é

o que recebe o ser. A essência é o próprio composto de matéria e forma. Nas

substâncias simples, a essência é a própria substância simples, feita de forma

somente. A quididade da sustância simples é o próprio simples, assim como

a quididade da substância composta é o próprio composto.

Como fica a individualidade destas substâncias, já que não têm matéria? Nas

substâncias compostas, o princípio de individuação é a matéria. Por isso, a

espécie se divide em uma pluralidade de indivíduos numericamente diversos.

No caso das substâncias simples, o ser-um do indivíduo não é do tipo de uma

unidade numérica. O indivíduo neste caso, não é um entre outros, não é mais

um da sua espécie. O indivíduo, este um que se apresenta, é, neste caso, a

própria espécie. O vigor e o esplendor de ser (espécie) nesta forma é tão

intenso e uno, que ela não se divide e não se multiplica em vários indivíduos,

mas ela constitui uma única individualidade. Por outro lado, a individuação é

tão intensa, que, nesta dimensão do espírito, o indivíduo realiza em si mesmo

todas as possibilidades de ser da sua espécie. Indivíduo é espécie e espécie

é indivíduo, no mundo do espírito. Por isso, a pessoalidade não diminui aqui,

mas, ao contrário, ela cresce. Os seres simples são ainda mais pessoas do

que os humanos. Pois pessoa é uma substância individuada de natureza

(essência) espiritual ou intelectual. Se o intelecto é, na alma humana, razão;

nos seres simples o intelecto é uma capacidade de conhecimento também

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simples. No homem, o intelecto é razão: procede finitamente, abstraindo do

sensível o inteligível; procede também mediatamente, momento por

momento, produzindo na mente o conceito universal, para ter mais claro a

essência das coisas. O intelecto das puras Inteligências, porém, não é assim.

Elas veem diretamente as essências, elas intuem o inteligível de maneira pura

e imediata, pois elas mesmas são puramente inteligentes. O semelhante

conhece o semelhante, segundo um antigo princípio grego. O homem

conhece o inteligível partindo e por meio do sensível por ser um ser

inteligente, mas também corpóreo-sensível. A inteligência pura conhece o

inteligível sem precisar da mediação do sensível e sem precisar da finitude

da razão, de seu caráter abstrativo e discursivo. A visão da essência é simples

naqueles cuja essência é também simples. Esta visão da essência é o que se

chama de intelecto. O homem é um ente de alma intelectual, mas é o mais

baixo na ordem dos seres intelectuais. No homem, o intelecto é razão

(capacidade abstrativa e discursiva). A razão é a marca da finitude do

intelecto humano. Não obstante, o homem, enquanto intelecto (espírito =

capacidade de conhecer e de amar), à medida que se volta para o verdadeiro

(pelo conhecimento) e para o bem (pela vontade), pode galgar os diversos

graus de espiritualidade dos espíritos (pode ser 'angélico', 'querúbico',

'seráfico'). Tomás diz que, apesar de podermos dizer que há gêneros e

espécies (=indivíduos/pessoas) no mundo espiritual das inteligências puras,

não podemos conhecer em que consiste as diferenças específicas que os

distinguem uns dos outros.

Apesar disso tudo, os puros espíritos não são absolutamente simples. Sua

simplicidade é relativa. Eles recebem o ser. São a partir de outro (ab alio).

Passam do não ser para o ser, enquanto seres criados. Passam, isto é, da

potência (possibilidade) para o ato (realidade), no ato criador. Eles não são

a sua essência, eles têm a essência e a têm à medida que a recebem da

Causa Primeira. Por isso, há neles uma diferença de forma (essência) e ser

(actus essendi: ato de ser; existência). A quididade das Inteligências é a

própria inteligência. Mas o ente, neste caso, não é imediatamente a sua

essência, para ser o ente que ele é, é preciso que ele receba a existência. A

essência designa o "o que é", a existência, o "que é".

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A diferença entre essência e existência na criatura é uma tese fundamental

da ontologia medieval. Muito se discutiu se esta diferença era real ou apenas

mental ou se era algo intermédio entre o real e o apenas mental. Para Tomás,

a diferença entre essência e existência é real. A existência acrescenta algo

que a essência por si mesma não traz: o ato de ser. Que o ato de ser seja

algo de novo e independente do simples poder-ser de uma essência, é uma

tese que coloca Tomás do lado oposto ao platonismo, onde o ser era

iminentemente a essência e o existente era visto apenas como uma realização

transitória e fugaz da essência. Tomás inverte a metafísica? Parece que sim!

A essência só é essência enquanto pensado por um existente (seja Deus ou

o intelecto criado) ou enquanto individuada num existente. Isto é o oposto

do platonismo. Não há essência sem existência e toda essência é a essência

do existente ou para um existente (HEINZMANN, 1992, p. 210).

Chegamos, então, ao topo e à meta do discurso de O Ente e a Essência: Deus

(TOMÁS DE AQUINO, 1990, p. 230-235). O discurso deste opúsculo é, de

fato, uma elevação da mente para Deus, percorrendo graus ascendentes de

ser: das substâncias compostas às simples; das criadas à incriada; do ens ab

alio (ente que recebe o ser de outro), ao ens a se (ente que é o seu próprio

ser a partir de si mesmo). Ele é simplicíssimo, pois nele não há composição

de tipo algum, nem de matéria e forma, nem de potência e ato. A própria

composição de essência e existência se desfaz numa unidade absolutamente

simples. Uno em si mesmo, em Deus a essência e a existência constituem

uma única coisa. Em Deus, a essência é ente. Em Deus, a essência é o

existente e o existente é a essência. Deus não tem o ser que ele é, mas é o

ser que ele é. Deus é o ato puro de ser, o real realíssimo. Deus é o ser mesmo

(ipsum esse). De modo que alguns chegaram a dizer que Deus não tem

essência. Enquanto tal, Deus está fora de todo o gênero (extra omne genus).

É o transcendente por excelência. Vai além de todo o dizer e pensar da

criatura. Tudo o que podemos dizer dele é o que ele não é não o que ele em

si mesmo é. Sua transcendentalidade, porém, é diversa da

transcendentalidade do ens communis (o ente tomado na sua máxima

generalidade, anterior a toda a diferenciação de gênero, espécie e indivíduo).

Em Deus, a individuação é máxima: ele é o Único. Ele não é um entre outros,

nem é um todo especial. Ele é, simplesmente, o Um. E sua Unidade se faz

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pela sua bondade. É por ser maximamente ser, que Deus é maximamente

bom. É por ser maximamente bom, que Deus é sumamente Uno. As pessoas

divinas, que compõem a Trindade, são momentos diversos do Único Deus,

mas, porque elas são sumamente amadas e sumamente amantes, elas são

uma Unidade essencial e substancial.

Resumindo: em Deus a essência é sua própria existência; nas criaturas

intelectuais, a essência é diferente da existência e é o próprio simples; nas

criaturas corporais, a essência é diferente da existência e é o próprio

composto de matéria e forma.

Mas, como ficam os acidentes? Tudo o que foi falado diz respeito a

substâncias. Os acidentes fazem parte da essência das substâncias? Os

acidentes têm essência? O que é acidente? Tomás empreende uma

investigação sobre a relação entre a essência e os acidentes na última parte

de “De ente et essentia” (TOMÁS DE AQUINO, 1990, p. 235-241). Acidente é

o sobrevém (accidit) ao ente, àquilo que o ente é em si mesmo (essência-

existência: substância; incluindo matéria e forma, no caso das substâncias

compostas). Se a substância é ente no sentido de "ser em si" (in se); o

acidente é ente enquanto o que não subsiste em si mesmo, mas somente em

outro (in alio). Por exemplo: o vermelho, enquanto cor, é uma qualidade de

algo, de um corpo. A cor vermelha sobrevém a este corpo como algo que o

determina ulteriormente. Nós não temos conhecimento direto da substância

das coisas, mesmo das coisas que nos rodeiam em nosso mundo sensível. Só

temos conhecimento das substâncias, por meio dos seus acidentes, isto é,

por meio das propriedades ou atuações desta substância. Há acidentes que

são propriedades intrínsecas da substância, que determinam mais

intrinsecamente o ente, como a qualidade e a quantidade, e há acidentes que

são propriedades extrínsecas, como a relação, o onde, o quando, etc. Os

acidentes intrínsecos decorrem da forma e os extrínsecos, da matéria, isto

no caso das substâncias compostas. Isto quer dizer que, para conhecermos

algo da essência das substâncias compostas, a qualidade e a quantidade são

modos de acesso imprescindíveis. A qualidade e a quantidade, pois, estão em

maior proximidade com a essência das substãncias compostas.

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Há acidentes dos indivíduos (por exemplo, o fato de Sócrates estar na ágora

é algo de casual, acidental) e há acidentes da espécie (o fato de Sócrates ser

branco é algo de casual, acidental, contingente). Há acidentes que são

produzidos por princípios essenciais. Por exemplo: o calor do fogo; ou o riso

do homem. O calor é algo que manifesta o ser do fogo de maneira essencial,

embora seja em si mesmo algo de acidental. O calor é uma característica do

modo fundamental de agir do fogo e o agir de um ente decorre de seu ser

(agere sequitur esse: o agir segue o ser) (HEINZMANN, 1992, p. 220). O riso

pode ser algo de casual no homem, mas a capacidade de rir manifesta algo

que é próprio do homem, denotando uma característica típica e, por isso,

remetendo a algo de essencial no homem. Somente o homem produz uma

comédia, por exemplo. O riso é, em princípio, um sinal de inteligência e a

inteligência é uma nota essencial do homem, enquanto ser racional. O sorriso

manifesta a espiritualidade do homem, sua capacidade de se surpreender

com a graciosidade do ser, se dando como verdade e como beleza.

Os acidentes têm essência? Como não? Se eles são entes, têm essência. A

brancura é a essência do branco, a vermelhidão (o rubor) é a essência do

vermelho. Contudo, há uma diferença entre a denominação da essência no

caso dos acidentes e no caso das substâncias, quando vamos falar de espécie

e de gênero. "Animal racional" denomina a essência (definição) de homem.

Usamos palavras concretas para dizer a essência de uma substância. Já para

dizer a essência de um acidente, usamos palavras abstratas. O vermelho é

concreto: tem uma infinda gama de nuances ou matizes de vermelho. Mas a

essência do vermelho é a vermelhidão ou rubor. Palavras como "vermelhidão”

ou "rubor" são abstratas, mas dizem algo de essencial de um acidente. A

vermelhidão nomeia a espécie de vários casos particulares de vermelho. Por

sua vez, a vermelhidão é uma espécie do gênero cor, melhor, é uma espécie

de colorido ou coloração. Cor é um conceito abstrato, um conceito de gênero.

Nós não encontramos cores por aí, encontramos coisas vermelhas, verdes,

azuis, etc. Melhor, encontramos vermelhos, azuis, verdes em uma imensa

gama de matizes... Mas, acidentes só se dão nas criaturas. Em Deus não há

acidentes. À substância divina não sobrevém qualquer determinação ulterior

ou exterior, pois ela é una, simples, absoluta e plena. Os atributos da

substância divina são determinações que se resolvem na sua simplicidade.

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Em Deus, não é uma coisa a misericórdia e outra a justiça. Em Deus, a justiça

é misericórdia e a misericórdia é justiça; por sua vez, justiça e misericórdia

são Deus em Deus, ou seja, elas se recolhem na unidade simples da

substância divina, do ser divino, que é o próprio ser (ipsum esse), o ser pleno.

É para este ser que caminha toda a especulação de o Ente e a Essência.

Tomás termina O ente e a essência, com um Amém. Todo este discurso

ontológico era uma elevação da alma para Deus. Se ente e essência é o que

por primeiro o intelecto concebe e se constituem, assim, o ponto de partida

de todo o discurso filosófico, Deus, o ente-essência ou a essência-ente, o ser

mesmo (ipsum esse), é o ponto de chegada do discurso filosófico.

Estante do saber

Textos

O ente e a essência

(http://www.lusosofia.net/textos/aquino_tomas_de_ente_et_essentia

.pdf), de Tomás de Aquino.

Tempo e Eternidade em Santo Tomás de Aquino

(http://www.revistamirabilia.com/Numeros/Num11/10.%20Carlos%2

0Nougue.pdf), de Carlos Nougué.

A psicologia de Tomás de Aquino: a vontade teleologicamente

orientada pelo intelecto

(http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a17/oliveira01.pdf), de

Cláudio Ivan de Oliveira.

Vídeos

A verdade segundo Tomás de Aquino

(http://www.youtube.com/watch?v=9E0paEH9LKg)

O Ente segundo Tomás de Aquino

(http://www.youtube.com/watch?v=8FAmW5EW_A0&feature=related

)

Evidência segundo Tomás de Aquino

(http://www.youtube.com/watch?v=QlNb_r77D74&feature=related)

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Movimento e Natureza — Aristóteles e Tomás de Aquino

(http://www.youtube.com/watch?v=b_HH1WXQhjs&feature=related)

A síntese de pensamento de Tomás de Aquino é a mais imponente

da Idade Média. Seu pensamento é uma verdadeira construção de

uma catedral gótica, feita não de pedras e vitrais, mas de conceitos.

Com solidez e leveza, com ousadia e equilíbrio esta construção se

levanta ao mais alto, ao Altíssimo. Sua filosofia pode ser bem

entendida como uma ascensão da mente para Deus. É justamente

na construção arrojada e firme que Tomás se avantaja sobre os

demais escolásticos. Alberto Magno é mais abrangente, Boaventura

é mais ardoroso, Duns Scotus é mais rigoroso. Entretanto, em

nenhum destes pensadores o pensamento filosófico-teológico-

místico ousou construir em solo aristotélico uma catedral gótica

feita de conceitos e proposições. Seu pensamento no início foi

estranhado e combatido por agostinistas, franciscanos, dominicanos

e seculares, como João Peckham, Pedro de João Olivi, Roberto

Kilwardby e Pedro de Tarantaisa e Henrique de Gand. A condenação

que o bispo de Paris, Estevão Tempier, lançou contra várias teses

filosóficas aristotélicas em 1277, atingia não somente aos

averroistas da faculdade de Artes, mas também a ele. Não

obstante, vários outros conseguiram entrever a sua grandeza. A

Ordem dos Pregadores (dominicanos), aos poucos, o elegeu como o

teólogo oficial. Acabou sendo canonizado, no século XIV e, na

modernidade, escolhido pela Igreja como o doutor comum (Doctor

Communis). O tomismo, no entanto, permaneceu muito aquém,

como uma filosofia e teologia de epígonos. As discussões com

escotistas se perderam em pontos de vista e debates estéreis de

escolas. Não obstante, as intuições e posições de Tomás passaram

para a escolástica tardia, especialmente aquela cultivada pelos

jesuítas, e, através desta, à filosofia moderna. Suarez é um

mediador dos mais importantes neste processo. Descartes não

deixará de ter influências da escolástica em geral e, certamente,

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também dos dois maiores pensadores da tradição cristã: Agostinho

e Tomás de Aquino.

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Aula 10 - Boaventura de Bagnoreggio

No franciscano Boaventura de Bagnoreggio (Nome de batismo: João de Fidanza –

1217/18-1274) o pensamento se faz mística. Ele é a consumação da linhagem de

pensadores da tradição, que remonta a Clemente de Alexandria e Orígenes e passa

por Agostinho e Dionísio, por Anselmo, Ricardo e Hugo de São Vitor. Nesta tradição há

o seguinte esquema: o conhecimento sensível (dos sentidos) abre ao homem a

experiência do mundo; o homem transcende o conhecimento sensível pela sua

capacidade inventiva, surgindo, assim as artes mecânicas (saber artesanal e técnico),

que, por sua vez, são superadas pelas sete artes liberais (as ciências teóricas: as

matemáticas e as da linguagem); estas então fluem para a filosofia (tripartida em

filosofia racional, natural e moral); a filosofia, por sua vez, é assumida sob e ao interno

da teologia, como a busca das razões da fé; a teologia especulativa, porém, é exercício

de iluminação e desemboca no silêncio contemplativo e na imersão mística (a

experiência da "caligem": as “trevas luminosas” do mistério divino). Neste sentido, a

filosofia é um momento no Itinerário da mente para Deus (Itinerarium mentis in

Deum). Ela é o saber que o homem alcança a partir da luz interior, que é a luz do seu

intelecto. Mas há ainda uma luz superior: que é a luz da revelação.

10.1 A filosofia no itinerário da mente para Deus

O conhecimento filosófico, portanto, na concepção de Boaventura, não pode ser

cultivado em função dele mesmo. Seria como parar no itinerário da mente para Deus.

Ademais, se o homem permanece abandonado ao uso da sua razão somente, ele

fatalmente erra. Pois, falando como teólogo, Boaventura adverte que a natureza

humana foi corrompida pelo pecado e uma das consequências desta corrupção da

natureza humana é a ignorância. A natureza humana não se encontra em seu estado

perfeito originário, mas em estado degenerado. A razão é como uma flecha que não

consegue alcançar o seu alvo por si mesma. A verdade plena, que a razão busca, só é

encontrada quando a razão é iluminada pela verdade sobrenatural da revelação. A

revelação assume, porém, a razão dentro dela mesma. Por isso, a fé não se limita a crer,

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mas quer também compreender aquilo que crê. Ela se empenha com todas as forças da

razão em compreender o sentido daquilo que crê e disso surge a teologia. Entretanto,

todo o empenho racional da razão no interior da teologia consiste na busca de se abrir

à iluminação do alto. Todo o conhecimento vem de Deus e retorna para Deus. Por fim,

porém, o homem deve fazer calar em si mesmo toda a voz da especulação e, no silêncio,

reconhecer que o mistério de Deus está além de toda especulação. Por fim, a questão

é experimentar afetivamente este mistério, no silêncio, transportando-se para dentro

dele, para dentro da sua caligem (treva) luminosa, suprarracional e superessencial,

como dizia Dionísio Areopagita.

A título, pois, de esboço para uma introdução no âmbito de tal pensamento, demos

alguns acenos a partir de duas obras de S. Boaventura: o De Reductione Artium ad

Theologiam (Da redução das artes à teologia) e o Itinerarium Mentis in Deum (Itinerário

da mente para Deus). O opúsculo comumente intitulado De Reductione Artium ad

Theologiam, pode ser situado, quanto à data de sua composição, dentro do período em

que S. Boaventura era Magister Regens (Mestre Regente) na Universidade de Paris, isto

é, entre 1253 e 1257, ano em que ele foi eleito ministro geral da ordem franciscana, o

sétimo na sucessão dos ministros gerais que governaram a Ordem depois do Fundador,

Francisco de Assis. Pode-se ver uma afinidade entre este opúsculo e sua obra prima, o

Itinerarium Mentis in Deum, que foi escrito no ano de 1259, portanto, 33 anos depois da

morte de Francisco de Assis. O mesmo tipo de tematização se encontra também nas

Collationes De Septem Donis Spiritus Sanctii (Conferências sobre os sete dons do Espírito

Santo) e nas Collationes in Hexaemeron (Conferências sobre os seis dias da criação),

conferências universitárias pronunciadas em Paris, aquelas de 1268, e estas de 1273

aproximadamente. Em todos estes escritos o sentido dos estudos é esclarecido como o

empenho da busca contemplativa de Deus através dos diversos modos de constituição

da realidade e do conhecimento. Realidade e conhecimento, aliás – há que se lembrar –

não estão no pensamento medieval, assim como estão no pensamento moderno, frente

a frente, face a face como contrapostos, a modo do esquema sujeito-objeto. Para o

pensamento medieval o conhecimento mesmo é a realidade na sua máxima

potencialização. Somente no conhecimento, isto é, no âmbito do Intelecto, é que a

realidade se chega a si mesma em sua inteligibilidade e encontra sua luminosidade plena

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através da compreensão e da linguagem. O mundo mesmo se eleva e se esclarece no

seu próprio ser através da mente que se deixa aviar na busca de Deus, o ser mesmo,

fonte e plenitude de todo o ser. Quando se fala da realidade se está falando do

conhecimento, e vice-versa. Por isso, as obras de S. Boaventura estão sempre falando

do mesmo itinerário de busca, no qual a realidade e o conhecimento, para a finitude do

pensamento humano, se iluminam na sua plena claridade.

10.2 A luz fontal e suas irradiações

A Idade Média, vulgarmente considerada uma época de trevas, amou sumamente a luz.

A arte gótica é testemunha disso. Também o é a metafísica da luz, desenvolvida em

Oxford, por Roberto Grosseteste e pelo franciscano Roger Bacon. Em Boaventura,

podemos falar, mais propriamente, de uma mística da luz. O conhecimento, que é luz e

que torna a realidade esclarecida e transparente, provém da luz fontal, que é Deus, e

para ele deve poder retornar, graças ao empenho do homem de se deixar iluminar pelas

diversas luzes que o solicitam. Os dois textos que estamos tomando em consideração, o

Da redução das artes à teologia e o Itinerário da mente para Deus começam com a

citação bíblica da Epístola de Tiago (cap. 1, vers. 17): “omne datum optimum et omne

donum perfectum desursum est, descendens a Patre luminum” – “toda dádiva ótima e

todo dom perfeito vem do alto, descendo do Pai das luzes” (BOAVENTURA, 1998, p. 291

e 351). Tudo quanto há, todo o ser e todo conhecer, é bom, é mesmo ótimo, pois tem a

sua origem em Deus mesmo, o sumo e eterno Bem. É o próprio S. Boaventura quem

elucida: “nesta palavra se toca a origem de todas as iluminações, e ao mesmo tempo,

com ela, se insinua a emanação generosa, liberal, das múltiplas luzes a partir daquela

luz fontal” (BOAVENTURA, 1998, p. 351). Para o pensamento medieval o sentido do ser

se expressa como luz. Seja no reino dos corpos seja no reino do espírito os entes ocupam

seu lugar no cosmo de acordo com a capacidade deles de receber e de transmitir a luz.

O ser é luz. Deus, o ser absoluto, que é uno e que é tudo, o ente a se, o ente que,

enquanto criador, se faz fonte de todo o ser que ele mesmo não é, de todo ser relativo,

que só existe na medida em que participa da comunicação do ser que provém do criador,

é o princípio fontal de toda a iluminação. Deus é luz (Deus est lux) no sentido mais

próprio e originário. Dele emana como que um manancial, uma cascata, de luz. Os

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diferentes degraus do ser criado não são outra coisa que diferentes níveis de iluminação,

ou diferentes níveis de participação no ser que Deus mesmo comunica a partir de si. A

criatura, com efeito, só é algo, na medida em que participa desta comunicação do ser,

isto é, desta iluminação divina. Por si mesma e em si mesma ela é um puro nada, uma

pura escuridão. Enquanto é algo, na sua finitude, a criatura é, portanto, cada vez uma

síntese entre luz e escuridão, entre ser e nada, entre ato e potência, forma e matéria.

Quanto mais material, tanto mais obscura; quanto mais espiritual, tanto mais luminosa

é a criatura. Só Deus é o ser puro e absoluto, a luz sem escuridão alguma, o ato puro, a

forma de todas as formas. O homem é chamado a ascender pelos diversos degraus do

ser criado e, através, desta ascensão, a preparar cada vez o salto para dentro da

claridade total, fontal, originária que é Deus mesmo. O Itinerarium Mentis in Deum

(Itinerário da mente para dentro de Deus) é a preparação para este salto, um salto para

dentro do abismo da luminosidade originária e absoluta de Deus.

O De reductione artium ad Theologiam (Da redução das artes à teologia) é uma

elucidação desta via iluminativa, ou seja, a via que o espírito percorre para ser

plenamente iluminado (BOAVENTURA, 1998, p. 351-367). Nesta obra, o Doutor Seráfico

nomeia quatro iluminações. Na quaternidade iluminativa assinalada por Boaventura se

encontra toda iluminação que é emanada a partir da irradiação daquela luminosidade

fontal que é o próprio Deus. S. Boaventura elenca uma luz exterior, uma luz inferior,

uma luz interior e uma luz superior.

10.3 A luz exterior: as artes mecânicas

A luz exterior é aquela das assim chamadas artes mecânicas (BOAVENTURA, 1998, p.

351-353). Na Idade Média, assim como na Antiguidade, tanto o artesanal como o

artístico, tanto o útil como o agradável, pertenciam ao âmbito da arte. O conteúdo

semântico da palavra arte era muito mais vasto. Um eco desta compreensão antiga da

arte se deixa insinuar em palavras do nosso vocabulário, tais como artífice, artesão,

artefato, artesanal e, até mesmo, em expressões aparentemente diferentes tais como

em fazer arte no sentido da jovialidade de uma criança, de sua inventividade ao mesmo

tempo ousada e inocente. A arte é o empenho que traz à luz uma obra. É um saber e um

poder criar, produzir, inventar obras. Enquanto empenho, exige de quem nele se lança

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o exercício, a retomada do próprio fazer num perfazer sempre mais aprimorado junto à

coisa que se toma como material para a obra. A arte diz, portanto, um modo de ser e de

proceder, elementar e primário, através do qual o homem lida com a realidade. É no

corpo a corpo da lida com a realidade, com as coisas, com as situações, consigo mesmo,

que o homem faz gerar todo um mundo que não existia naturalmente: o mundo-cultura.

Na verdade, o homem não somente gera artefatos e obras a partir de seu fazer

inventivo, mas também – neste mesmo fazer – ele gera a si mesmo e ao seu mundo

cultural e histórico, ele co-nasce, isto é, ele nasce junto com o mundo, ele conhece a si

e seu mundo e tudo que lhe vem ao encontro a partir deste empenho de lida e de corpo

a corpo com o elementar das coisas e das situações.

A partir do texto de Boaventura podemos compreender que existem dois tipos básicos

de arte. Um é o das artes chamadas mecânicas; outro, porém, o das artes chamadas

liberais. A arte mecânica é uma luz que guia o homem para a produção de artefatos que

vêm de encontro à indigentia corporis, à indigência do corpo, isto é, à necessidade

elementar do humano na sua finitude corpórea, física, material: alimentar-se, vestir-se,

morar e proteger-se, curar-se das doenças e afastar a tristeza do espírito. Boaventura,

na trilha de Hugo de São Vítor, enumera sete artes mecânicas: lanificium, armatura,

agricultura, venatio, navigatio, medicina, theatrica, ou seja, as artes de produzir o

vestuário, seja para o uso civil seja para o militar, nomeadas como lanifício e armadura;

as artes de produzir o alimento, seja vegetal seja animal, nomeadas como agricultura e

caça; a arte mercantil de providenciar, através do comércio, aquilo que não se tem à

mão para o uso cotidiano, nomeado como navegação; a arte de prevenir e de curar as

doenças, de vir em socorro da enfermidade do corpo, nomeado como medicina; e, por

fim, a arte do divertimento, de produzir espetáculos que venham de encontro à

indigência da alma, à tristeza, nomeada como arte do teatro (HUGO DE SÃO VÍTOR,

2001, p. 111-123). Boaventura recorda que “toda arte mecânica é para produzir ou

consolação ou comodidade; é para excluir ou a tristeza ou a indigência; é para o útil ou

para o agradável” (BOAVENTURA, 1998, p. 352). O Doutor Seráfico chama de mecânica

a estas artes. Deve-se entender aqui a palavra “mecânico” a partir de seu sentido

originário. Com efeito, a palavra “mecânica” vem do verbo grego mekhanáomai, que

significa o ter a esperteza no bolar um plano, saber preparar e executar bem uma obra,

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manufaturar com habilidade e competência alguma coisa. Mekhané significa o meio, o

instrumento, o recurso da habilidade e da competência. Arte mecânica quer dizer,

portanto, o gosto, a habilidade e a competência inventiva do humano que o levam a

providenciar o elementar para vir em socorro da sua finitude no mundo. Boaventura

chama de luz exterior a iluminação inventiva que guia o homem através das artes

mecânicas.

Existem, porém, outras artes, nas quais o homem, livre da indigência do corpo, pode se

dedicar à busca do conhecimento pelo conhecimento, guiado pelo simples e

desinteressado gosto pelo desvelamento da realidade tal como ela se apresenta ao

espírito humano. São as chamadas artes liberais. Na idade média elas compreendiam o

quadrivium (geometria, aritmética, astronomia e matemática) e o trivium (gramática,

dialética e retórica), isto é, as artes que guiam o espírito humano no conhecimento das

coisas (res) e da linguagem (verbum). A dedicação a elas supõe o otium, a scholé, isto é,

o cultivo livre e desinteressado do saber, a dedicação gratuita pelas coisas do espírito.

Mas tais artes, na idade média, estavam compreendidas como disciplinas pertencentes

ao âmbito da filosofia, o que Boaventura chama de luz interior.

10.4 A luz inferior: o conhecimento sensível

A luz inferior é aquela do conhecimento sensível, isto é, aquela que guia o homem na

experiência da natureza, experiência que ele faz através da sensibilidade (BOAVENTURA,

1998, p. 353-354). Através dos cinco sentidos – a vista, a audição, o olfato, o gosto e o

tato – o homem conhece de modo natural e originário o mundo circundante. Ver, ouvir,

cheirar, degustar e tocar são modos de conhecimento do mundo. Através dos cinco

sentidos o homem, enquanto microcosmus ou minor mundus (microcosmo ou mundo

menor) opera a descoberta do mundo sensível, o macrocosmus ou maior mundus

(macrocosmo ou mundo maior). É que os cinco sentidos guardam uma correspondência

e uma relação de conveniência com os cinco elementos que constituem todos os corpos:

a terra, a água, o ar e o fogo, mais a quinta essência, que para S. Boaventura é indicada

pela luz. O conhecimento do mundo sensível, por sua vez, tem a função de proporcionar

ao homem a percepção das coisas e, nesta percepção, o prazer proveniente da beleza,

da suavidade ou da salubridade delas; e, para além da percepção e do prazer, o

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conhecimento sensível serve também como ponto de partida para o conhecimento

inteligível do mundo que se dá através da sensibilidade. No Itinerarium Mentis in Deum

os dois primeiros degraus da ascensão para Deus são constituídos pelo conhecimento

sensível (BOAVENTURA, 1998, p. 300-315). Através das coisas descobertas pela

sensibilidade e nelas mesmas nós podemos entrever o poder, a sabedoria e a bondade

do Criador. Elas são, assim, como que vestígios, sombras, simulacros do Criador.

10.5 A luz interior: o conhecimento filosófico

A luz interior é aquela da filosofia. Esta luz guia o homem no conhecimento das verdades

intelectuais (BOAVENTURA, 1998, p. 354-356). Trata-se ou das verdades do discurso

(veritas sermonum – filosofia racional ou lógica), ou das verdades das coisas (veritas

rerum – filosofia natural ou física), ou ainda das verdades dos costumes (veritas morum

– filosofia moral ou ética). No fundo, trata-se da mesma subdivisão da filosofia que os

antigos estabeleceram: episteme logike (conhecimento lógico), episteme physike

(conhecimento físico) e episteme ethike (conhecimento ético). As disciplinas filosóficas

se dão ao redor de três eixos fundamentais: o logos, a physis e o ethos, isto é, a razão

discursiva em si mesma; depois, a totalidade dos seres a partir do modo de constituição

ontológica que lhes é próprio; e, por fim, o âmbito da liberdade, ou seja, da vida humana

enquanto entregue à responsabilidade do bem viver e do bem agir. Trata-se, portanto,

de investigar as razões da intelecção, as causas do ser e a ordem do viver. Da filosofia

racional fazem parte, segundo Boaventura, as disciplinas referentes à compreensão e à

linguagem, ou seja, a gramática, a lógica e a retórica. Da filosofia natural, por sua vez,

fazem parte as disciplinas referentes aos diversos modos de ser dos entes, ou seja, a

física que diz respeito aos entes que surgem e perecem, a matemática, que diz respeito

àquilo que é imanente à matéria, mas que em si mesmo é imutável, ou seja os números

e as figuras e, por fim, a metafísica, que investiga as causas imutáveis e os princípios

essenciais dos entes no seu ser. Da filosofia moral, enfim, fazem parte a ética individual,

a ética social e a ética política. S. Boaventura diz que a luz do conhecimento filosófico é

dita interior “porque inquire as causas interiores e latentes, e isto através dos princípios

das disciplinas e da verdade natural, que são inseridas naturalmente no Homem”. Trata-

se, portanto, de exercitar o intellectus, ou seja, de intuir o essencial de todas as coisas,

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de recolher da realidade aquilo que ela tem de mais essencial, que só se torna visível

através de uma visão intelectual, de ir ao fundo das coisas, de sondar o fundamento a

partir de onde tudo se constitui. Realizando tal tarefa o homem se essencializa a si

mesmo, pois a vocação natural do homem é ser a instância na qual o ser de todas as

coisas vem à luz. Por isso, a filosofia diz respeito, em última instância, à essencialização

do próprio homem, ao seu autoconhecimento e à descoberta da verdade que se

encontra nele mesmo. A postura filosófica fundamental é, assim, concebida na trilha da

tradição socrática do “conhece-te a ti mesmo” e, além disso, agostiniana, ou seja, aquela

que convida a descobrir no homem interior o lugar próprio da verdade.

10.6 A luz superior: a sagrada escritura

A luz superior é aquela da graça e da Sagrada Escritura. Tal luz é dita superior “porque

conduz para as realidades superiores, manifestando o que está acima da razão e porque,

não pela invenção, mas pela inspiração desce do Pai das luzes” (BOAVENTURA, 1998, p.

356-357). Trata-se, portanto, de uma iluminação que está além da habilidade, da

competência, da inventividade e da capacidade de investigação do homem. Não está no

raio das possibilidades do homem. Mas é graça de um encontro com o Deus e Pai de

Jesus Cristo, o Crucificado. A iniciativa deste encontro é de Deus mesmo e não do

homem. Ele é o amor que amou os homens por primeiro. E porque os amou quis

comunicar a si mesmo, revelar-se e doar-se a eles no seu Filho. A autorrevelação ou

autocomunicação de Deus em Jesus Cristo, testemunhada pelas Sagradas Escrituras,

constitui a iluminação própria da verdade salutar, ou seja, daquela verdade que é,

fundamentalmente, verdade de salvação. Não se trata mais, aqui, de conhecer verdades

que estão ao alcance do próprio homem na finitude de seu intelecto, como na filosofia.

Trata-se, agora, de acolher a iluminação de uma verdade que salva, isto é, que tem o

poder de gerar o homem para uma nova existência, para a vida e a liberdade dos Filhos

de Deus. A salvação é a recondução do homem a esta nova existência, é o seu

renascimento em uma nova vida, um novo céu e uma nova terra. Desta quarta

iluminação fala-nos o mesmo s. Boaventura no Itinerarium quando fala do quarto

degrau na ascensão para Deus. Toda a Sagrada Escritura tem em vista a obra da salvação.

Aqui nós nos movemos dentro da ordem da caridade, para usar a terminologia de Pascal.

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O amor é a essência e a finalidade da revelação das Sagradas Escrituras. O que se deve

crer diz respeito ao evento maior da história da salvação, que testemunha o imenso

amor com que Deus nos amou: a Encarnação do Verbo incriado, o Filho de Deus. O que

se deve praticar a partir da leitura das escrituras não é outra coisa que o amor, e isto na

sua dupla forma, de amor a Deus e de amor ao próximo. Aquilo a que se deve tender,

aquilo que devemos aspirar com todas as forças de nosso ser é a união no amor com

este Deus que vem a nós através de Jesus Cristo, o Crucificado. A leitura das Sagradas

Escrituras deve ser sempre guiada buscando o que se deve crer, como se deve viver, e

como aderir a Deus na união que o amor nos proporciona. Daí resulta os três sentidos

espirituais da Sagrada Escritura, tão marcantes na exegese e hermenêutica medieval, ou

seja, o alegórico, o moral e o anagógico. O alegórico dá ao crente a clareza da

compreensão acerca daquilo que ele deve crer, ou seja, acerca do evento da

Encarnação. O moral ou tropológico lhe ensina como ele deve viver seguindo o

mandamento do amor. O anagógico lhe ensina como ele deve se deixar conduzir para

aderir a Deus na suprema união amorosa para a qual o homem é atraído. Desta leitura

das Sagradas Escrituras, acrescida e aprofundada com a leitura dos Padres e doutores

da Igreja, mestres na fé, na conduta da vida cristã e na contemplação é que surge o que

S. Boaventura chama de Teologia.

O De reductione artium ad theologiam é, portanto, uma re-flexão na qual toda a

iluminação que procede de Deus retorna, isto é, é reconduzida (reductio) à sua origem.

Todo o saber deve poder conduzir o homem a Deus, pois todo genuíno saber é um dom

de Deus. Toda a realidade deve remeter a Deus, pois toda a realidade é um aceno que

remete para a sua origem: Deus mesmo. Boaventura lê toda a realidade à luz de um

sentido último, isto é, à luz do encontro com o Deus de Jesus Cristo Crucificado. Em

todos os modos de constituição da realidade e do conhecimento, seja aquele da

capacidade inventiva do homem, seja aquele que se dá por vias de sua sensibilidade,

seja aquele que conduz o homem à sua essencialização mais própria através da busca

dos primeiros princípios de todas as coisas, o Doutor Seráfico surpreende sempre

acenos, vestígios, imagens, semelhanças que permitem co-intuir a presença do Deus da

revelação, quer da revelação natural que se dá por meio da criação, quer da revelação

sobrenatural que se dá por meio Sagrada Escritura, semelhanças que remetem à ordem

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da caridade, que fazem vibrar o coração do homem no desejo da união com o Sumo

Bem. O De reductione artium ad theologiam é, por conseguinte, uma conversão ou

retorno (reditus) de todo o saber à ordem da graça ou da caridade.

Depois de falar das quatro iluminações S. Boaventura conclui:

Das coisas que foram ditas concluímos que, embora pela primeira divisão seja quádrupla

a luz que desce do alto, são porém seis as suas diferenças: a saber, a luz da Sagrada

Escritura, a luz da cognição sensitiva, a luz da arte mecânica, a luz da filosofia racional,

a luz da filosofia natural, a luz da filosofia moral. E, portanto, são seis as iluminações

nesta vida e elas têm ocaso, porque toda a ciência será destruída; e, assim, lhes sucede

o sétimo dia do repouso, que não tem ocaso, a saber a iluminação da glória.

(BOAVENTURA, 1998, p. 357-358).

As seis diferentes iluminações, os seis degraus na ascensão para Deus, tudo isso fala da

nova criação, do homem novo formado à imagem do Verbo incriado e encarnado. Mas

estes senários falam também da finitude da experiência espiritual do Homo Viator, ou

seja, do homem do peregrino que busca a Deus. O amor é já certo descanso, um

prenúncio e um início do sétimo dia, o dia do repouso, símbolo da quietude da paz que

se dá por meio da união amorosa com Deus na eternidade. A iluminação natural conduz

à iluminação da graça e esta, por sua vez, à iluminação da glória. A ciência é algo de

provisório, o seu sentido não é outro que o amor, ou seja, a caridade, aquilo que deve

permanecer para sempre, por toda a eternidade.

10.7 Deus como ipsum esse (o ser mesmo)

No Itinerarium Mentis in Deum (Itinerário da mente para Deus), depois de falar dos

quatro primeiros degraus da ascensão da alma para Deus, os quais correspondem à

contemplação de Deus extra nos (fora de nós) e intra nos (dentro de nós), Boaventura

fala da contemplação de Deus supra nos (acima de nós). Trata-se de fixar o olho do

espírito, isto é, a mens, na claridade mesma de Deus. No quinto degrau se contemplam

as perfeições invisíveis de Deus à luz do nome de Deus enquanto ipsum esse, o ser

mesmo. De tal contemplação nos fala S. Boaventura:

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... querendo, pois, contemplar as perfeições invisíveis de Deus referentes à unidade da

essência, fixe primeiramente o olhar no ser mesmo e veja que o ser mesmo é em si

certíssimo, de tal modo que não pode ser cogitado como não sendo, porque o ser mesmo

puríssimo não se dá a não ser na plena fuga do não-ser. Com efeito, assim como o nada

absoluto nada tem de ser nem de suas propriedades, assim também o ser mesmo nada

tem de não-ser, nem em ato nem em potência, nem segundo a verdade da coisa nem

segundo a nossa estimação. Como, porém, o não ser é a privação do ser, ele não recai

na nossa intelecção a não ser em virtude do ser; o ser, porém, não é apreendido pelo

intelecto em virtude de um outro, porque tudo aquilo que é apreendido pelo intelecto ou

é apreendido como não-ente, ou como ente em potência, ou como ente em ato. Se, pois,

o não ente não pode ser compreendido a não ser em virtude do ente, e o ente em

potência a não ser por meio do ente em ato – e ser nomeia o mesmo ato puro de ser,

então ser é aquilo que originariamente cai sob apreensão do intelecto; e aquele ser é o

que é ato puro. Mas tal ser não é um ser particular, que é ser limitado, porque é mesclado

de potência; nem é ser análogo, porque este nem mesmo está em ato, nem mesmo

existe. Resta, portanto, que aquele ser é o ser divino. (tradução nossa. Cfr. BOAVENTURA,

1998, p. 332-333).

O ser mesmo é a verdade no sentido originário, é o fenômeno por excelência.

Manifestíssimo e certíssimo em si mesmo. O ser que exclui de si todo o não-ser. O ser

que é plena positividade, posição absoluta. O ser que é por si mesmo é o que por si

mesmo se dá a compreender, de modo originário. Tal ser é puro ato de ser. Tal é o ser

divino. Torna-se estranho, pois, que, sendo o ser divino o ser manifestíssimo por que é,

então, que o nosso intelecto só com muito custo é que se dá conta deste ser. Na trilha

de Aristóteles o próprio Boaventura esclarece acerca desta cegueira do intelecto

humano:

... é pois admirável a cegueira do intelecto que não considera aquilo que originariamente

vê e sem o que não pode conhecer nada. Mas como o olho que está voltado para as

várias diferenças das cores não vê a luz, por meio da qual vê todo o resto – ou se vê não

se dá conta dela – assim o olho da nossa mente, voltado para os entes particulares e

universais, não adverte o ser mesmo, que é fora de todo o gênero, ainda que este seja o

primeiro que se dá à nossa mente e que através dele todos os outros se nos ocorrem.

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Donde aparece de modo veríssimo que ‘assim como o olho do morcego se atém à luz,

assim também o olho da nossa mente se atém aquilo que é manifestíssimo da natureza’;

porque acostumado às trevas dos entes e às imagens sensíveis, quando intui a luz mesma

do sumo ser, parece-lhe que nada vê; não compreendendo que esta caligem mesma é a

suma iluminação da nossa mente, assim como quando o olho vê a pura luz, parece-lhe

nada ver. (tradução nossa. Cfr. BOAVENTURA, 1998, p. 334).

10.8 Deus como summum bonum (sumo bem)

No âmbito do lumen naturale (luz ou lume natural da razão) a contemplação do ser

mesmo é a nossa suma iluminação. No âmbito, porém, do lumen supranaturale (luz ou

lume sobrenatural da fé) ainda é possível uma iluminação ulterior, que é descrita por

Boaventura no sexto degrau do Itinerarium. Assim como no quinto degrau a

contemplação do ser mesmo conduzia à convicção da unidade do ser divino, no sexto

degrau a contemplação do Sumo Bem conduz à convicção da trindade pessoal deste

mesmo ser. O ponto de partida é o princípio do bonum diffusivum sui (o bem difusivo

de si mesmo). Depois de dar as razões de tal convicção da fé, S. Boaventura nos convida:

... se podes, contempla, pois, com o olho da mente a pureza desta bondade, que é ato

puro dum princípio que ama caritativamente com um amor gratuito, com um amor

devido e com os dois amores simultaneamente. Um amor que é pleníssima comunicação

do sumo Bem por meio da inteligência e da vontade: pelo primeiro modo, produzindo o

Verbo – em quem se dizem todas as coisas – e, pelo segundo, produzindo o Dom – em

quem se doam todos os outros dons. A perfeita comunicabilidade do sumo Bem far-nos-

á compreender que é necessário exista a Trindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

(tradução nossa. Cfr. BOAVENTURA, 1998, p. 339-340).

Mas, adverte-nos, S. Boaventura, em tal contemplação não devemos nos deixar

enganar, como se estivéssemos compreendendo o incompreensível. Aqui a nossa razão

se embate na incompreensibilidade do paradoxo. Os mistérios da fé, a Trindade e a

Encarnação, vigoram no paradoxo. E isto deixa o espírito do contemplativo atônito de

admiração. A busca de Deus através do caminho da iluminação cristã chega ao seu ápice

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na contemplação da Encarnação, isto é, do mistério paradoxal do Deus-Homem. Diz-nos

o Doutor Seráfico:

... nesta consideração o espírito se ilumina perfeitamente, contemplando, como no sexto

dia da Criação, o homem feito à imagem de Deus. Com efeito, se a imagem é uma

semelhança expressiva, quando nossa mente considera em Jesus Cristo – que é, por

natureza, a imagem do Deus invisível – a nossa humanidade tão admiravelmente

exaltada e tão inefavelmente unida, vendo reunidos numa só pessoa o primeiro e o

último, o sumo e o ínfimo, o centro e a circunferência, o alfa e o ômega, a causa e o

efeito, o criador e a criatura – isto é, o ‘livro escrito por dentro e por fora’- então ela já

chegou ao termo do seu itinerário. Agora chegou à perfeição de suas iluminações, como

Deus chegou à perfeição de suas obras no sexto dia da Criação. (BOAVENTURA, 1998, p.

344).

10.9 A caligem: a claridade superluminosa do ser divino

A razão se embate com o paradoxo na contemplação dos mistérios mais abscônditos da

fé: a Trindade e a Encarnação. Aqui reina o incompreensível, a coincidentia oppositorum

(coincidência ou conjunção dos opostos). Aqui a investigação mergulha na Docta

ignorantia, para usar uma expressão de Nicolau de Cusa. No sétimo degrau do

Itinerarium, Boaventura convida, pois, o leitor a dar o salto no abismo da claridade

divina. É o mergulho na noite luminosa do ser divino, a “caligem”, de Dionísio

Areopagita. Diz-nos o Doutor Seráfico: “Agora resta à nossa mente transcender e passar,

pela consideração destas coisas, não apenas além deste mundo sensível, mas também

além de si mesma”. Nesta passagem, porém, há que se recorrer ao mediador entre Deus

e o homem: Jesus Cristo Crucificado, que é o caminho e a porta, a escada e o veículo

para o homem chegar ao ser divino. Entretanto, para que esta passagem seja perfeita,

é mister que o homem abandone todas as operações intelectuais, se deixe transportar

e transformar em Deus, com o seu mais profundo afeto. É este um dom místico e

secretíssimo que

... ninguém conhece, senão quem o recebe. Nem o recebe, senão quem o deseja. Nem o

deseja, senão quem está inflamado profundamente pelo fogo do Espírito Santo que Jesus

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Cristo enviou à terra. Por isso o Apóstolo diz que esta sabedoria foi revelada pelo Espírito

Santo. Já que, para obter esta passagem das criaturas a Deus, nada pode a natureza e

pouco o esforço humano, é preciso dar pouca importância à indagação e muita à unção,

pouca à língua e muita à alegria interior, pouca à palavra e aos livros e muita ao dom de

Deus – isto é, ao Espírito Santo -, pouca ou nada à criatura e toda à essência criadora –

o Pai, o Filho e o Espírito Santo (...) Se agora procuras saber como isso acontece,

pergunta-o à graça e não à ciência, ao desejo e não à inteligência, ao gemido da oração

e não ao estudo dos livros, ao esposo e não ao mestre, a Deus e não ao homem, à

escuridão e não à clareza. Pergunta-o, não à luz, mas ao fogo que tudo inflama e

transfere a Deus com uma unção que arrebata e um afeto que devora. (BOAVENTURA,

1998, p. 346).

O salto do mergulho na noite clara e silenciosa do mistério de Deus é uma morte mística.

Trata-se daquela morte que é posta como condição da possibilidade para a visão de

Deus. Por isso diz S. Boaventura:

... morramos, pois, e entremos nas trevas. Imponhamos silêncio às nossas inquietações,

concupiscências e imaginações. Com Cristo crucificado passemos ‘deste mundo ao Pai’,

para que, depois de no-lo ter sido mostrado, possamos dizer com Filipe: ‘Isto nos basta’,

e possamos ouvir com São Paulo: Basta-te a minha graça’. (BOAVENTURA, 1998, p.348).

Estante do pensar

Teologia e Metáfora em Boaventura

(http://www.lusosofia.net/textos/martins_antonio_rocha_teologia_e_metafora_boav

entura.pdf), de António Rocha Martins.

Junto com Tomás de Aquino, Boaventura é a culminância do pensamento filosófico-

teológico-místico do século XIII. Nele, as intuições fundamentais da espiritualidade

franciscana encontra uma formulação filosófico-teológica, a tradição agostiniana

chega a uma síntese admirável e a mística do Pseudo-Dionísio encontra uma expressão

escolástica. Boaventura mostra que escolástica e mística são uma unidade

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substancial, uma dupla expressão de pensamento. Sua visão do cosmos como uma

teofania, concede um sentido simbólico a todas as coisas. O universo se torna um todo

relacional, onde tudo remete a tudo e o todo remete ao Verbo. Tudo é palavra, pois

tudo é ressonância do Verbo divino, que diz: “faça-se a luz” (fiat lux). Nele, a metafísica

da luz, trabalhada por Roberto Grosseteste e por Roger Bacon, recebe novos impulsos.

Sua valorização da interioridade recorda a Agostinho, que exorta a buscar a verdade

no homem interior. Sua ênfase na afetividade e na vontade, reassume a interpretação

da teologia dada pelo seu mestre Alexandre de Hales, que entendia o conhecimento

teológico não como ciência, mas sim como sapiência, ou seja, como um saber

experimental-afetivo do divino. De Alexandre de Hales também, Boaventura retoma

a visão do “bonum diffusivum sui” (o Bem difusivo de si mesmo) como princípio de

todas as coisas no universo, assim como o Sol da Alegoria da Caverna, de Platão. Sua

valorização do indivíduo vai ser um contributo importante para a escola franciscana,

que se seguirá com Duns Scotus. Duns Scotus e Guilherme de Ockham vão, no século

seguinte, dar continuidade, ao seu modo, às decisões e intuições prévias do

franciscanismo na filosofia e na teologia. É interessante como Francisco de Assis, que

se dizia “simplex et idiota” (simples e idiota), pôde imprimir em toda uma escola

filosófico-teológica da Idade Média, um espírito e uma tônica própria. Alexandre de

Hales, Boaventura, Roger Bacon, Duns Scotus e Guilherme de Ockham beberam de

uma mesma fonte e deram, cada qual a seu modo, expressão escolástica ao espírito

do poeta trovador de Assis, que, de pés no chão e roupa surrada, tomava dois gravetos

em suas mãos e os tocava ao ombro como se fosse um violino, cantando o Canto da

Criação, que ressoa em todas as coisas.

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Aula 11 – A filosofia na crise do século XIV

A capacidade de criar história do medievo cristão começa a declinar

a partir da segunda metade do século XIII. A partir da crise vai

acontecendo uma autodestruição do medievo cristão. Desta crise,

na lenta transição dos séculos XIV e XV, surge o mundo novo da

época moderna. Em meio a ela, a metafísica se torna filosofia

transcendental em Duns Scotus e a mística especulativa chega a seu

ápice no dominicano Mestre Eckhart. Acontece, assim, a passagem

de uma ontologia substancial para uma ontologia relacional,

funcional-sistêmica ou estrutural. Vejamos, então, nesta aula, o que

acontece com e na filosofia neste tempo de crise e de passagem.

11.1 A crise

A partir da segunda metade do século XIII, entram em crise e declinam juntas

as três instituições medievais portadoras de pretensões universais: o Sacro

Império-Romano Germânico, o sistema feudal-cavalheiresco e o Papado.

Um pouco por toda a parte vai mudando a maneira de sentir a

vida e viver o mundo. O ar que se respira já não é a atmosfera

da criação de Deus, presente continuamente em toda criatura.

A organização vertical e hierarquizada por instâncias perde o

fôlego social e histórico e deixa de ser aceita espontânea e

tranquilamente na prática das ações e dos comportamentos. O

homem medieval começa a desacreditar que as instituições em

vigor e a ordem vigente sejam modelos e paradigmas criados

por Deus, quer direta, quer indiretamente. (LEÃO, 2008, p. 243-

244).

No século XIV, começa a emergir o poder da burguesia. Ao mesmo tempo,

começa a primeira grande guerra europeia, a Guerra dos Cem Anos (1337-

1453), tendo a França e Inglaterra como protagonistas. Em meados do

século, a peste negra grassa sobre a Europa, vitimando milhões de pessoas.

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A morte parece reinar em clima apocalíptico. O filme O sétimo selo

(http://www.youtube.com/watch?v=YknL-BWzSwY), de Ingmar Bergman

mostra bem a atmosfera daquele fim de época e constitui uma parábola sobre

o nosso tempo. Naquele tempo, irrompem movimentos de contestação de

toda a ordem estabelecida. No movimento franciscano, desde o fim do século

XIII, os “Espirituais” (Pedro de João Olivi, Ubertino de Casale, Ângelo

Clareno), emergindo no vazio da perplexidade epocal, retomam o profetismo

do abade Joaquim de Fiori (séc. XII) e dão voz a uma visão escatológica e

apocalíptica da história. Para eles, era instaurado o tempo das grandes

tribulações, necessário para uma radical purificação e reforma da Igreja e

para o advento do tempo novo, que marcaria o Reinado do Espírito. Naquele

tempo, em meio à perda de cadência das forças históricas, só restava a

esperança, ainda que frágil.

Nestas condições, não foi difícil o homem medieval sentir-se sem continente,

em transição de paradigma, de passagem para um outro mundo. Os velhos

padrões desvaneceram e os novos parâmetros ainda não se consolidaram. É

momento de desorientação e angústia. Os modelos se desvaneceram, os

valores gastaram-se e os princípios ficaram sem força. Predomina um

intervalo de mundo. É tempo de transformação, não, apenas, de modos e de

maneiras de viver, de formas e matizes de relacionamentos, mas, sobretudo,

de estruturas e princípios. É dia de libertação de tudo que se desgastou, mas

também momento de aventuras, de riscos e de ousadias. Nos interstícios

encontram espaços as esperanças mais díspares e as experiências mais

desencontradas. Nas universidades, outros tantos baluartes do universalismo

medieval, junto com o Papado e o Império, com o feudalismo e o artesanato,

o realismo dos universais sofre os primeiros abalos do nominalismo. Nas

cidades alemãs, cresce a força das tentativas de mudanças sociais. Entre o

povo surgem sempre novas seitas e emergem por toda a parte movimentos

religiosos diversos e opostos entre si, mas idênticos todos em contestar a

mediação institucional da Igreja e em reivindicar autonomia para indivíduos

e grupos. Nos mosteiros e nos conventos, tanto masculinos, quanto

femininos, grassa profunda inquietação. A religiosidade herdada e as formas

tradicionais de piedade já não satisfazem as demandas pessoais de um

contato imediato e vivo com Deus. Grande é a sedução de correntes

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exotéricas e proféticas. Reina uma atmosfera trabalhada por inquietações de

toda sorte e eivada de fermento revolucionário.

Impregnada de fermento revolucionário está a crítica da política que vem à

tona no pensamento de Marsílio Ficino e de Guilherme de Ockham.

11.2 A crítica político-eclesiástica de Marsílio Ficino e de Guilherme

de Ockham

Marsílio foi contemporâneo de Ockham e de Dante e tem a particularidade de

ter sido o primeiro a formular uma obra de Filosofia Política ou ciência política,

denominada Defensor pacis (O Defensor da Paz), antecedendo assim a Hugo

Grotius e Hobbes, aos quais alguns autores atribuem tal título. Marsílio abre

sua obra O Defensor da Paz com uma referência às ameaças e conflitos que

colocam em risco a sociedade. Entre estes conflitos, Marsílio indica a

pretensão papal e eclesiástica à plenitude do poder (plenitudo potestatis). A

existência desta pretensão não possui legitimidade na civitas. A finalidade da

ciência política de Marsílio é construir uma teoria que dê as condições

necessárias para a satisfação das necessidades e que se alcance o bem viver,

que seria o fim perfeito, completo e independente de qualquer outro.

Também na linha da separação entre poder espiritual e poder temporal, vai

a crítica política de Guilherme de Ockham (GUILHERME DE OCKHAM, 1998 e

2002).

O cânon da Igreja Católica a respeito da plenitude ou caráter teocrático do

papado, plenitudo potestatis, isto é, de que o Papa recebeu de Cristo tal

plenitude de poderes a ponto de ter o direito de dispor de qualquer coisa,

tanto na ordem espiritual como na temporal, é refutado por Ockham. Seu

argumento baseia-se na convicção de que se o papa houvesse recebido de

Cristo tal plenitude de poderes e se comportasse em consonância com isso,

submeteria a si todos os cristãos. Isto resultaria em uma escravidão pior do

que a antiga, pois diria respeito a todos os homens, confirmando a

contrariedade desta tese não apenas ao Evangelho, mas às exigências

fundamentais da convivência humana.

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Na verdade, o Papa é ministrator, não dominator, sendo o seu dever servir,

e não sujeitar. O seu poder foi instituído em favor dos seus súditos, e não

para que lhes fossem retirada aquela liberdade que está fundamentada nos

ensinamentos de Cristo. Tal poder não cabe nem ao Papa nem ao Concílio,

porque ambos são falíveis. É a igreja, como comunidade livre de fiéis, que

sanciona as verdades que constituem a sua vida e o seu fundamento. A

teocracia e a aristocracia não têm lugar na igreja, sendo necessário abrir

espaço para os fiéis, membros efetivos da igreja, cuja comunidade é a única

à qual cabe a infalibilidade.

Além de redimensionar o poder do Papa no interior da igreja, ele faz o mesmo

nas suas relações com o poder temporal. Se a autoridade do Papa tem caráter

apenas pastoral e moral, ele não pode legislar para todo o povo no que se

refere ao temporal, âmbito que é da competência do Imperador. Trata-se de

duas esferas de âmbitos e competências independentes e autônomas. Logo,

a autoridade imperial não é sagrada, não provindo de Deus através do Papa.

A partir disso, pode-se concluir que Ockham pretendia defender o Imperador

contra o Papa, no sentido de defender seus direitos contra o absolutismo

papal. Porém, mais do que na política imperial, seu interesse estava voltado

para a igreja, a qual ele pretendia que fosse reformada nas estruturas e nas

orientações. O Papa é falível, assim como o Concílio. Só é infalível a igreja

como comunidade universal de fiéis, que não pode ser dissolvida por

nenhuma vontade humana porque, conforme a promessa de Cristo, durará

até a consumação dos séculos. Para tanto, contudo, a igreja precisa sofrer

uma reforma no sentido de retornar à pobreza evangélica, sem ambições

terrenas nem pretensões autoritárias, remetendo-se ao ideal franciscano.

É indicativo o fato de que à reivindicação da separação entre poder espiritual

e poder político, veiculada em Marsílio Ficino e em Guilherme de Ockham, se

junte, no âmbito teorético, a reivindicação da separação entre filosofia e

teologia. Esta reivindicação pode-se ouvir, especialmente, na obra de Duns

Scotus e de Guilherme de Ockham.

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Estante do saber

O pensamento de Marsílio de Pádua e o pensamento político e eclesiológico

tardo-medieval

(http://www.outrostempos.uema.br/volume03/vol03art06.pdf), de Moisés

Romanazzi Tôrres.

As relações de poder na Idade Média tardia - Marsílio de Pádua, Álvaro Pais

e Guilherme de Ockham

(http://www.lusosofia.net/textos/souza_jose_antonio_as_relacoes_de_pode

r_na_idade_media_tardia.pdf), de José Antônio de C. R. de Souza.

11.3 A estrutura ontoteológica da ciência transcendental ou

metafísica em Duns Scotus

O franciscano escocês João Duns Scotus (1265/1266- 1308) ensinou em

Paris, Oxford e Colônia. Ele acentua ainda mais do que Tomás de Aquino, a

distinção entre filosofia e teologia (HEINZMANN, 1992, p. 234-235). A

filosofia primeira ou metafísica é um estudo que investiga o ente enquanto

ente e os transcendentais, isto é, os conceitos que transcendem todos os

conceitos de gênero e espécie e que são determinações posteriores do

conceito de ente (res, aliquid, unum, verum, bonum - coisa, alguma coisa,

um, verdadeiro, bom) (HEINZMANN, 1992, p. 237-238). O conceito de ente

é o mais universal. Abrange tudo. E vem antes de toda e qualquer

diferenciação. É a partir deste conceito que nós podemos conhecer tudo o

mais. Até mesmo Deus nós só podemos conhecer a partir do conceito de ente.

Podemos, com efeito, conhecê-lo como o ente infinito, diverso do ente finito.

A demonstração da existência de Deus consiste em fazer ver que o infinito é

possível, que é necessário e que é real. O conhecimento de Deus como ente

infinito, porém, é limitado. "Ente" não é um conceito de "Deus" (conceptus

dei), mas é um conceito que nós atribuímos a Deus (conceptus de deo). Dizer

que Deus é o ente infinito é o que nós podemos, mas com isso não podemos

crer que estamos dizendo a essência de Deus. Além disso, nós podemos

atribuir a Deus a perfeição do ser, atribuindo a ele os conceitos

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transcendentais no seu grau máximo: Deus é o sumo ente, o sumo bem, o

sumo verdadeiro, o sumamente uno, etc.

11.3.1 Filosofia e teologias

A filosofia, pois, que começa com o conhecimento do ente termina no

conhecimento de Deus. Outro, porém, é o conhecimento que a teologia tem

de Deus. Ela parte da revelação. E a revelação diz: Deus est caritas (Deus é

amor). A teologia, a “nossa teologia” (theologia nostra ou theologia quoad

nos, teologia segundo nós), é um saber que busca desdobrar racionalmente,

isto é, especulativamente, o que Deus revelou de si mesmo na história da

salvação (ela pressupõe a fé numa revelação divina na história). Desse saber

os filósofos não fazem idéia. Entretanto, o saber teológico não é exercido em

função do conhecimento teórico, e sim em função do conhecimento prático:

ele visa mover o homem para o amor, para a caridade, entendendo a caridade

como amor prático a Deus e ao próximo.

Filosofia e Teologia: ambas são bem distintas para Duns Scotus. A filosofia é

um saber natural. A teologia, um saber sobrenatural. O sobrenatural, porém,

não é antinatural. Ele, pelo contrário, eleva e realiza a transcendência do

natural. O natural não é anti-sobrenatural. Pelo contrário, o natural aspira

naturalmente pelo sobrenatural. Portanto, embora filosofia e teologia sejam

saberes distintos, de ordens distintas, estas ordens não se repugnam, pelo

contrário, elas se completam. Sendo assim, a filosofia não perde, antes

ganha, quando se deixa iluminar por horizontes que só a teologia pode

oferecer ao filósofo. O saber da fé alarga o horizonte para o conhecimento

humano e a filosofia só pode sair ganhando com este alargamento. Apesar

disso, filosofia e teologia têm objetos materiais e formais distintos. O objeto

material (o tema de estudo) da filosofia é o ente enquanto ente, como dizia

Aristóteles. Isso quer dizer: o objeto da filosofia primeira ou primordial

(metafísica) é o mesmo objeto primeiro do intelecto: o ente enquanto ente,

isto é, o ser do ente. A filosofia investiga o ser de todo o ente, buscando seus

princípios. Ao perguntar pelos princípios e causas de todo o ente, a filosofia

se dá com o Primeiro Princípio, possível, real e necessário. E este Primeiro

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Princípio, que a filosofia descobre chama-se, numa linguagem religiosa, Deus.

Portanto, o ponto de partida da filosofia é o ente enquanto ente (o objeto

primeiro do intelecto humano) e o ponto de chegada da filosofia é a idéia de

Deus enquanto Primeiro Princípio de todo o ente (o objeto último, mais

inacessível do intelecto humano). Quanto ao objeto formal (a perspectiva em

que se dá o estudo em questão), filosofia e teologia também se diferem. A

filosofia é o conhecimento do ente à luz da razão. E mesmo quando a filosofia

encontra a idéia de um Primeiro Princípio, e o denomina Deus, este

conhecimento de Deus é um conhecimento puramente racional. Já o objeto

formal (a perspectiva que ilumina o conhecimento) da teologia é a revelação

divina, contida na Escritura Sagrada. Quando a teologia fala de Deus, fala

dele não como de um Primeiro Princípio, mas como ser pessoal, melhor, com

Trindade de pessoas numa única substância da Deidade. Além disso, filosofia

e teologia se diferenciam pela finalidade. A filosofia é ciência especulativa:

sua finalidade é a contemplação da verdade por causa da própria verdade. Já

a teologia é ciência prática: sua finalidade é amar a Deus por causa dele

mesmo e amar ao próximo por causa de Deus.

Portanto, filosofia e teologia são conhecimentos distintos no seu objeto e na

sua perspectiva. A teologia filosófica é uma culminância da ontologia. A

teologia da fé pode até se apropriar da teologia filosófica, como ponto de

partida, porém. Em si, ela deve ir muito mais além. O teólogo, porém, pode

ter conhecimentos que ajudam a abrir visões novas em relação aos problemas

filosóficos. A busca natural que a razão tem pelo conhecimento não é negada,

mas é superada e assumida sob e ao interno do horizonte sobrenatural da fé.

A “nossa teologia”, porém, não consegue conhecer Deus como Deus, mas

somente Deus enquanto revelado na história humana. Deus como Deus só

pode ser conhecido pelo homem na vida eterna. Por isso, a teologia mais

elevada possível ao homem não é nem a teologia da metafísica, nem a

teologia da fé, mas a teologia da visão beatífica de Deus, que os bem-

aventurados têm. A nossa teologia não é baseada na intuição. Já a teologia

dos bem-aventurados, sim, será uma teologia muito melhor do que a nossa

(pobre) teologia. Pois então o homem poderá conhecer Deus face a face.

Entretanto, há ainda outra teologia, inacessível ao homem: a teologia em si

(theologia in se). Essa é a teologia de Deus. Só Deus conhece Deus. E esse

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conhecimento, o saber que Deus tem de si mesmo, é a teologia em sentido

verdadeiro, próprio e pleno (BOULNOIS, 1999, p. 102-106).

11.3.2 Ontologia: a universalidade transcendental do conceito de

ente

A metafísica é o estudo do ente enquanto ente e dos transcendentais. Antes

de tudo, ens (o ser-sendo, o ente) é aquele conceito ao qual se reconduz toda

a multiplicidade dos conceitos. De fato, os conceitos das coisas se

reconduzem aos conceitos das categorias e esses conceitos categoriais, por

sua vez, nos remetem, em última instância, àqueles conceitos que são

chamados de transcendentais, por estarem fora de toda a classificação

categorial, ou seja, estão extra omne genus (fora de todo o gênero) e

perpassam todo o ente enquanto ente, isto é, todo o ente enquanto

simplesmente é, ou ainda, todo o ente no seu ser. Eles são formalitates

(formalidades) intuídas ex parte rei (da parte da coisa), ou seja, através do

processo cognoscitivo próprio da razão humana, que é a abstração.

Ora, o conceito ens, justamente por ser o mais abstrato é o mais prenhe de

concretude, justamente por ser o mais vazio é o mais prenhe de plenitude,

justamente por ser o mais indeterminado é o mais passível de determinação.

Sua universalidade, que se dá a modo de um “todo vazio”, está apta não

somente a deixar ser a compreensão de todo e qualquer ente na sua

singularidade, como este ente aqui em sua haeceitas (“istidade”: a forma

irredutível do indivíduo na sua singularidade) (HEINZMANN, 1992, p. 235-

237), como também a compreensão do ente finito em seu conjunto e em sua

conjuntura, a saber, o mundo como uni-verso; também está apta a deixar

ser a totalidade do ente infinito, ou seja, o ser divino, que é vere esse et

totum esse (ser verdadeiro e absoluto) (HEIZMANN, 1992, p. 238-240).

A positividade do conceito de ens não somente se dá por graça de sua

universalidade transcendental, mas também mercê de sua unidade

absolutamente simples. Por força dessa simplicidade absoluta (simpliciter

simplex) o conceito de ens é indefinível e irredutível. Aqui o intelecto esbarra

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numa espécie de paredão incontornável e intransponível. Nessa resistência e

recusa, o que há de mais óbvio no mundo, o simplesmente ser, se torna o

mais enigmático. Mas, talvez seja justamente por graça dessa densidade

impenetrável, que a um primeiro olhar parece ser um vazio e uma

indeterminação radicais, que o conceito de ens seja aquele do qual não

podemos fugir em todos os nossos empenhos de conceituar e dizer tudo

quanto é e tudo quanto há.

Enfim, a positividade do conceito de ens também se dá por graça de sua

originariedade. Em todo e qualquer conhecimento, o intelecto já terá sempre

conhecido o ens. Ele é o prae-cognitum (conhecido prévio) em todo o

cognoscere (conhecer). O ens é o primum objectum intellectus (objeto

primeiro do intelecto). Eis porque nós, em tudo quanto apreendemos e

compreendemos, já sempre fomos referidos ao ens e já sempre o

pressupomos, partindo dele em todas as nossas tentativas de denominação,

conceituação, definição, dedução, no “âmbito” de nossa inteligência

especulativa, como também em todas as nossas tentativas de ação e

operação, no “âmbito” de nossa inteligência prática.

Enfim, a universalidade transcendental, a unidade absolutamente simples e

originariedade do ens fazem desse conceito o mais fecundo e capaz de dar à

nossa razão finita a possibilidade de transcender o ente finito e seu

conhecimento habitual, passando para a contemplação do ente infinito,

vislumbrando um quê da superabundância e superfluência de seu ser.

Passamos, assim, do todo vazio para o todo pleno. No movimento dessa

passagem, que é, na verdade, uma elevação da mente para Deus, jamais

deixamos o elemento do ens, ou seja, a proximidade de nossa referência ao

ser. É na proximidade do ser que nós experimentamos a proximidade e a

distância de Deus. É no vazio do ser que a plenitude do ser divino se divulga.

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11.3.3 Teologia metafísica: o ente infinito e os mosaicos dos nomes

divinos

Para se dizer a positividade do ens que é inteira e absolutamente a se (a

partir de si), enquanto ens infinitum, ens necessarium, ens Creator (ente

infinito, necessário, criador); depois, para dizer a positividade eminente e

supereminente de seu modo de ser, enquanto summum bonum, summum

verum, summum unum (sumo bem, sumo verdadeiro, sumo uno); e ainda,

para dizer a positividade de sua onipotência e onisciência, bem como de sua

inteligência e vontade excelentes, é preciso que recorramos à positividade

primordial do conceito de ens. Com efeito, toda predicação que realizamos

de Deus é ab ente (a partir do conceito de ente). Entretanto, o conceito de

ente não é um conceito de Deus (Conceptus Dei), mas um conceito acerca de

Deus (Conceptus de Deo). De fato, quando denominamos Deus de ens

infinitum (ente infinito), por exemplo, não estamos dizendo a essência

mesma de Deus, mas algo de próprio dessa essência, assim como quando

nós denominamos o homem de um “vivente que ri” não estamos dando a

definição da quididade do homem, mas estamos nos referindo a algo que é

próprio dele, a partir de sua essência mesma. Ademais, essa denominação

ens infinitum que é, segundo Scotus, a mais apropriada para se predicar de

Deus, embora seja uma denominação simples, não é absolutamente simples,

pois ela conjuga o conceito de ens e o conceito de infinitum. Isso mostra,

mais uma vez, o limite de nossa denominação e predicação do nome divino.

Na finitude de nossa condição peregrina, só nos é dado um conhecimento

complexo daquele ente que, em si, é absolutamente simples! Em todo caso,

quer para marcarmos a diferença e a unidade apenas analógica entre o ser

de Deus e o ser das criaturas, quer para denominarmos o nome divino através

de seus atributos no modo da eminência e supereminência, sempre

precisamos recorrer à positividade do conceito primordial do ens.

Pela luz natural da razão, no entanto, nos é dado um conhecimento finito

dessa infinitude. Por esse conhecimento, os nomes do inominável se finitizam

na eminência e supereminência dos atributos. Numa primeira impressão, eles

são negativos, pois negam algo da criatura. No entanto, se olharmos bem,

eles negam a negatividade da criatura. Com outras palavras, eles são

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positivos, de tal maneira que neles se expressa a positividade do divino, como

negação da negação. Seja como for, no entanto, os conceitos que lhes servem

de “matéria” para denominar o divino são hauridos, sempre, daqueles

conceitos que, em si mesmos, não estão submetidos às categorias de gênero

e espécie. São, por assim dizer, conceitos transcendentais.

A bem da verdade, o conhecimento humano de Deus, in via, in statu iste (a

caminho, neste estado em que nos encontramos na vida terrena), é bem

apoucado. Tanto na ordem da graça, isto é, no horizonte da fé e da revelação,

quanto na ordem da natureza, ou seja, no horizonte da luz natural da razão,

vale dizer, no horizonte da metafísica, o que o humano pode saber de Deus

é módico. Somente no lumen gloriae (luz da glória) ou seja, no esplendor da

revelação definitiva e eterna de Deus é que o humano pode fruir, na visio

beatifica (visão beatífica, visão que torna feliz), de um conhecimento de Deus

sub ratione deitatis (sob a razão ou na perspectiva da deidade), quer dizer,

de um conhecimento de Deus enquanto Deus, em sua deidade, ou ainda, com

outras palavras, de Deus ut haec essentia (Deus enquanto essa essência

aqui), enquanto esta essência em sua singularidade. Mas esse conhecimento

de Deus, essa theologia beati (theologia dos bem-aventurados), hoje,

enquanto estamos em caminho, nos é inacessível. Enquanto estamos a

caminho, somos presenteados apenas com a luz frágil da razão natural e com

a penumbra da fé. Entretanto, o saber da fé, a theologia nostra, que se dá

na contemplação amorosa do Deus de Jesus Cristo, que é caritas (amor,

caridade), contemplação essa que se cumpre “em enigma e como por

espelho” (Paulo), assume por debaixo de si o conhecimento de Deus que é

possível à luz natural da razão. Ora, esse conhecimento, que é um

conhecimento do divino (theoria), mais do que um conhecimento de Deus

mesmo (theós), uma teologia, é um conhecimento do divino (theion), ou seja,

é uma “teiologia”. Não obstante, ele, que é o “ápice da teoria” (theoria - como

‘visão de Deus’). É, como dizia Aristóteles, recordado por Duns Scotus, fonte

de indizível alegria e realização da felicidade natural do humano:

No que concerne às substâncias eternas, os frágeis

conhecimentos que nós temos delas nos trazem, contudo, em

razão da excelência dessa contemplação, mais alegria que todas

as coisas que nos circundam, da mesma maneira como frágil

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olhar fugidio que se volta para pessoas amadas nos doa mais

alegria e alegria maior do que o conhecimento exato de muitas

outras coisas. (De partibus animalium I, 5: 644b 31-35. Apud

DUNS SCOTUS, 1988, p. 107-108).

Com outras palavras, a teologia, no sentido de uma contemplação dos nomes

divinos, pressupõe a ontologia, que é uma investigação metafísica, isto é,

uma inquirição acerca do ente e dos transcendentais. É a partir da onto-logia

que a teo-logia recebe a sua condição de possibilidade e toda a sua

envergadura. Temos, assim, um círculo: a teo-logia funda a onto-logia, como

o fim funda o começo e a onto-logia funda a teo-logia, como o começo deixa

ser a marcha rumo ao fim. Assim, a metafísica, onto-logia em seu começo e

teo-logia em seu fim, como expressão da transcendência, é subsumida pela

dinâmica agraciada e agradecida da razão natural que responde ao toque do

mistério do ser, que se doa e se retrai no conceito do ente.

Na verdade, em Scotus, a figura metafísica do divino é uma espécie de

mosaico dos transcendentais, um mosaico que se transforma em ícone, à

medida que, na proximidade do que nos está ao alcance, guarda a distância

da sacralidade do mistério. Entretanto, a distância do sagrado não é distância

de um inacessível que nos ultrapassa, mas é a distância de uma proximidade

por demais próxima. Em Scotus, a figura metafísica do divino, vivente no

elemento da sacralidade do mistério, é apenas imagem especular que guarda

uma remissão ao Deus da revelação, que é caritas (amor, caridade). Ao

investigar os atributos divinos, Scotus reflete e contempla a figura divina

configurada à luz do ser e dos transcendentais e, no seu brilho, ele vislumbra

um quê do mistério da positividade e da cordialidade do Deus da revelação,

que é caritas. É por isso que, na sua linguagem, a especulação metafísica se

transforma em prece, isto é, em adoração e louvor.

Deus Nosso Senhor, ao teu servo Moisés, quando ele se

informava do teu nome junto de ti, veríssimo doutor, para o

apresentar aos filhos de Israel, sabendo o que a inteligência dos

mortais pode conceber acerca de ti, respondeste, dando a

conhecer o teu nome bendito: ‘Eu sou aquele que sou’ (Ex.

3,14). Tu és o ser verdadeiro, tu és o ser todo. Se tal me fosse

possível, era isto em que acredito que eu queria saber. Ajuda-

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me, Senhor, a investigar o quanto pode chegar a conhecer do

ser verdadeiro, que tu és, a nossa razão natural, começando a

partir do ser, que a ti mesmo atribuíste. (DUNS SCOTUS, 1990,

p. 111)

Aqui fica claro que a pergunta pela condição de possibilidade do conhecimento

de Deus, à luz natural da razão, se dá no sentido de uma contemplação do

Nome de Deus, como pura positividade do ser, isto é, como superabundância

e superfluência do ser. A teo-logia da metafísica se transforma, assim, na

contemplação dos nomes divinos, na esteira da tradição do Dionísio

Areopagita. Em Scotus, a teo-logia metafísica é subsumida de tal maneira

que, em cada “Tu és”, ressoa um nome do Altíssimo, unindo à

condescendência cordial da revelação a finitude agraciada e agradecida da

razão. Os transcendentais são subsumidos de modo a deixar ser a

ressonância do “Tu és” em sua plena positividade de ser, isto é, na

superabundância e superfluência do infinito amor. Em todos eles ressoam

variações de um mesmo tema, a saber, o tema do ser. Daí que a busca e

investigação, sim, a inquirição do que se pode conhecer de Deus à luz natural

da razão é uma especulação e meditação que se realiza ab ente (a partir do

ente).

11.4 A obra de Duns Scotus

A obra de Duns Scotus mostra um extraordinário espírito de autonomia.

Embora reverencie Agostinho e Anselmo como as maiores autoridades da

tradição ocidental cristã, seu pensamento não pode ser identificado como um

agostinismo tradicional. Embora conheça e cite com frequência Aristóteles e

os filósofos árabes e judeus do Islã, especialmente Avicena e Averróis, seu

pensamento não pode ser identificado com o aristotelismo. Dialoga

criticamente com a tradição e com os pensadores mais expressivos de seu

tempo, como o tomista Egídio de Roma (1244-1316) e o agostinista Henrique

de Gand (+ 1293). Por outro lado, admira criticamente a Godofredo de

Fontaines (+ 1306), aristotélico de orientação moderada. Era um pensador

que levava o rigor lógico da demonstração tão a sério, que lhe foi dado o

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título de Doctor Subtilis (Doutor sutil). Contudo, mais do que criticar, o que

Duns Scotus queria mesmo era, autonomamente, traçar uma nova

construção do pensamento filosófico, especulativo-metafísico e prático-ético,

e da teologia. Há quem o tenha visto como um precursor de Kant, em sua

delimitação e definição da metafísica como ciência transcendental. Mas Duns

Scotus ainda deixa lugar para uma teologia como culminância da metafísica,

o que não se pode dizer de Kant. Além disso, o transcendental de Duns Scotus

é ontológico, fundado na realidade mesma, e não estrutural e a priori,

fundado na subjetividade. O espírito que anima, porém, o pensamento de

Duns Scotus é a caridade. Seu pensamento bem pode ser definido a partir do

ordo caritatis (Ordem da caridade). Para ele, enfim, o amor é o sentido de

ser de todas as coisas. Nunca em forma mais seca, disse um estudioso do

pensamento franciscano (Agostinho Gemelli), se exprimiu amor mais

profundo, mais inteligente e mais forte. Nenhuma doutrina jamais respondeu

como esta às inclinações mais elementares e fundamentais dos homens e –

dir-se-ia, de todos os seres vivos: o anseio pela felicidade, pela especial

felicidade que é o bem – bonum.

Assim, na sobriedade do pensamento e no rigor da especulação filosófico-

teológica, se esconde a alma franciscana de Duns Scotus. Uma alma que, em

tudo e junto a tudo que pensa, está sempre à espreita do rigor da caridade.

Na linguagem prosaica de sua escolástica, porém, vibra tênue a suavidade e

delicadeza do amor.

Na Divina Comédia, ao chegar ao Paraíso, mais precisamente ao Céu do Sol,

Dante se encontra com a os Bem-aventurados Domingos e Francisco, entre

outros, que dançam e cantam em torno do poeta. Ali também ele vê duas

coroas de espíritos sapientes. A primeira se configura em torno de Tomás e

a segunda em torno de Boaventura. Em cada uma dessas duas coroas, em

sua generosidade poética, Dante coloca uma persona non grata (pessoa não

agradável, mal vista). Na coroa de Tomás aparece o averroísta Siger de

Brabante. E na de São Boaventura o monge calabrês, dotado de espírito

profético, Joaquim de Fiori. No Canto XIV, porém, Dante vê se configurar

diante de si uma terceira coroa, trazendo novas revelações. E o poeta canta:

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E eis que à roda, em luz igual brotava / Um brilho sobre a luz

que já lá era, / Como horizonte que se iluminava./ E tal como

ao cair da tarde houvera / Começando no céu mais aparências,

/ Como de a vista ser e não ser vera, / Pareceu-me mais novas

subsistências / Lá começar de ver, e andar um tanto / Fora das

outras duas circunferências. / Ó vero cintilar do Espírito Santo!/

Como se fez de súbito candente / Aos olhos que, vencido, não

levanto (ALIGHIERI, 2005, p. 715-716).

Podemos ler nestes versos o presságio de uma nova escola e de um novo

pensamento que trouxesse novas descobertas e novas perspectivas, que até

então não se encontravam nem em Santo Tomás, nem em São Boaventura.

Ora, isso acontece de modo inusitado e surpreendente em Duns Scotus.

Estante do saber

Tempo e eternidade: um modelo em Duns Scotus (c. 1265-1308) e

uma nota sobre Francisco de Meyronnes (c. 1280-1327)

(http://www.revistamirabilia.com/Numeros/Num11/14.%20Roberto.p

df) e Poder absoluto e conhecimento moral

(http://www.revistafilosofia.unisinos.br/pdf/177.pdf), de Roberto

Hofmeister Pich.

João Duns Escoto

(http://www.lusosofia.net/textos/costa_freits_manuel_barbosa_joao_

duns_escoto.pdf) e A existência de Deus segundo Duns Escoto

(http://www.lusosofia.net/textos/costa_freitas_manuel_barbosa_exis

tencia_deus_segundo_duns_escoto.pdf), de Manuel Barbosa da Costa

Freitas.

Duns Scotus: a lei natural na moral e na política

(http://www.ufpel.edu.br/isp/dissertatio/revistas/27-28/27-28-

3.pdf), de Alfredo Culleton.

João Duns Escoto (c. 1265-1308) Subsídios bibliográficos

(http://repositorio-

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aberto.up.pt/bitstream/10216/55688/3/meirinhosescoto000126348.p

df), organizado e com introduções por José Francisco Meirinhos.

Duns Scotus fez escola e seu pensamento por muito tempo se

ofereceu como uma alternativa ao tomismo e ao agostinismo.

Entretanto, o escotismo mesmo, lutando contra o tomismo, se

perdeu em querelas de escolas. O pensamento de Duns Scotus é

maior do que o escotismo, assim como o de Tomás é maior do que o

tomismo.

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Aula 12 – Guilherme de Ockham e Mestre Eckhart

A crise iniciada no século XIII se configura, sobretudo, no

pensamento de Guilherme de Ockham. Do nominalismo e da

concepção ontológica da mística de Eckhart, confluída para o

pensamento de Nicolau de Cusa, surgirá a ontologia da ciência

moderna, onde tudo se dessubstancializa e cada coisa passa a não

ser mais do que um nó de relações com outras coisas.

12.1 Guilherme de Ockham

Guilherme de Ockham acredita menos no poder da razão do que Duns Scotus.

Para ele todo o conhecimento metafísico de Deus é vão e inútil. No século XII

os pensadores acreditavam poder abranger a Trindade com o poder da razão

(Abelardo, por exemplo). No século XIII, Tomás de Aquino admitiu o

conhecimento da existência de um Deus como dentro das possibilidades da

razão. E subtraiu a possibilidade de um conhecimento da Trindade. Guilherme

de Ockham retira até mesmo a possibilidade de o homem conhecer a

existência de Deus a partir da razão. O regresso ao infinito, usado por Tomás

nas cinco vias para demonstrar a existência de Deus poderia, segundo ele,

ser admitido racionalmente. Resultado: não há um rigor necessário na

demonstração racional da existência de Deus. A existência de Deus é, então,

questão de fé e não de razão. Se isso vale para a existência de Deus, vale

ainda mais para a Trindade. Ockham, assim, não somente distingue, mas

separa com um corte radical a filosofia e a teologia. A filosofia é o

conhecimento que o homem autonomamente pode alcançar seguindo em

busca da verdade e tendo como parâmetro a evidência lógica. A teologia é o

saber da fé, tanto no sentido do saber que a fé gera quanto no sentido do

saber que tem a fé (o crer e o crido) como seu tema. Vemos assim que de

Boaventura a Ockham nós vamos de um extremo ao outro.

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12.1.1 A onipotência divina e a contingência do ente criado: o

primado do indivíduo e o problema dos universais

O registro central do pensamento de Guilherme de Ockham é a afirmação da

onipotência divina e de sua liberdade absoluta e soberana (ROMBACH, 1965,

p. 78-139). Da fé na onipotência divina advém também a fé na criação.

Embora a criação seja objeto de fé, ela determina a concepção ontológica em

relação ao todo do ente criado. Se a criação é um ato livre, então o criado é

contingente (HEINZMANN, 1992, p. 244-247; TODISCO, 1998, 24-71).

Contingente é o não-necessário, o que é quando poderia não ter sido, o que

é assim, quando poderia ter sido diferente. A liberdade e a temporalidade do

ato criador de Deus e a contingência do criado são o característico da

concepção cristã, em diferença, por exemplo, do modo de pensar dos

pensadores árabes-muçulmanos, para os quais a criação, ou melhor, a

emanação do uno por parte do múltiplo, é necessária e eterna. Estas teses

teológicas de fundo acabam determinando também as posições filosóficas de

Guilherme de Ockham. Diferentemente da concepção neoplatônica da

emanação, ressalta-se, aqui, o fato de Deus ser a causa imediata da criação.

Suprimem-se, pois, também todas as mediações. Pluritas non est ponenda

sine necessidade - A pluralidade não há de ser posta sem necessidade. Assim

soa o princípio de pensamento que no século XVII foi chamado de "navalha

de Ockham". Passando esta navalha na concepção do surgimento de todas

as coisas, Ockham elimina o mundo das ideias. Enquanto para Platão o

cosmos surge da conjugação das ideias eternas e da atividade do demiurgo

que ordena a matéria segundo o modelo destas mesmas ideias ou essências;

enquanto o platonismo cristão postulava que Deus criara o mundo a partir

das ideias presentes no seu Intelecto ou no seu Verbo (Logos); Guilherme de

Ockham afirma que Deus cria sem a necessidade da mediação de ideias ou

de emanações. Ele cria direta e imediatamente cada ente na sua

singularidade. Com isso o indivíduo recebe uma imensa dignidade.

O pensamento grego não valorizava o indivíduo. Ele era algo de acidental. O

essencial era a essência, eterna e imutável, que se dava no gênero e na

espécie. O indivíduo era uma concreção efêmera e acidental da essência. Já

Duns Scotus afirmara que o princípio de individuação (aquele pelo qual o

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indivíduo se torna indivíduo) não era simplesmente a matéria determinada

segundo as dimensões do espaço e marcada pela quantidade, segundo

afirmara Tomás de Aquino. A individualidade não provém de algo acidental

ou de uma privação. A individualidade é algo de positivo. Duns Scotus

chamou isso de haecceitas (istidade): a forma da individualidade, deste

(haec) ente na sua singularidade. Na trilha de Duns Scotus, também

Guilherme de Ockham valoriza a individualidade. Para ele, não há a

necessidade de postular uma essência universal anterior à própria coisa (a

ideia ou arquétipo da coisa na mente de Deus). Para ele, o ser autêntico é o

indivíduo.

Se para Tomás de Aquino, na trilha de Aristóteles, o indivíduo é incognoscível

(pois conhecer é universalizar), para Duns Scotus e Guilherme de Ockham há

um conhecimento intelectivo do indivíduo na sua singularidade. Este é o

conhecimento incomplexo, o conhecimento que é anterior a todo o

conhecimento proposicional-dedutivo (que é complexo). O conhecimento

incomplexo, por sua vez, pode ser intuitivo e abstrativo. O conhecimento

intuitivo é aquele que opera uma visão direta e imediata do indivíduo, isto é,

do ente na sua singularidade. Quando vejo este Ipê florido, esta visão é direta

e imediata. E é uma visão intelectiva. Eu apreendo e compreendo este Ipê

florido como este Ipê florido. E este Ipê florido é único no mundo, irrepetível,

singular. E eu o apreendo na sua individualidade e singularidade, melhor, na

sua existência individual, única, irrepetível, singular. Entretanto, se eu

prescindo desta sua existência e desta sua individualidade, eu obtenho uma

noção abstrata de "Ipê". Por via da abstração e da comparação entre todos

os indivíduos que apresentam esta mesma forma e que correspondem a esta

mesma noção, eu produzo o conceito de espécie. Então eu falo do Ipê como

de uma espécie. A espécie é aquilo que há de comum entre todos os

indivíduos que apresentam esta mesma forma ou modo de ser. Se eu

abstraio, por sua vez, das diferenças entre as espécies e considero apenas o

que há de comum entre elas, então eu obtenho a noção de gênero. Assim,

os conceitos de espécie e de gênero são apenas produções mentais, que

derivam da abstração das notas comuns a diversos indivíduos. Não se trata

de nominalismo puro e simples (como o de Roscelino), pois este afirma que

os universais são meros sons ou vozes, mas de um conceptualismo à maneira

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de Abelardo, pois Guilherme de Ockham afirma que o conceito, embora sendo

uma produção da mente e do discurso (sermo), guarda uma referência a algo

de real, contudo, presente na realidade concreta do indivíduo. A partir desta

concepção do problema dos universais Ockham vai mudar também a

concepção de ciência. A ciência não se refere propriamente às coisas reais,

mas às nossas concepções e aos nossos discursos sobre as coisas. A ciência

não trata propriamente do real, mas de nossa linguagem acerca do real.

12.1.2 A via moderna da philosophia sermocinalis: a mudança na

compreensão da essência da verdade

A posição de fundo do pensamento de Ockham mostra uma transformação

radical, por se dar na dimensão dos princípios e estruturas que regem a

compreensão do ser do ente no seu todo, e, por conseguinte, de Deus, do

mundo, do homem, do conhecimento, da linguagem, da verdade.

Antes de tudo, Ockham se apresenta como um pensador que pode ser

contado entre os moderni, ou seja, aqueles que se confrontam de maneira

crítica com os veteres ou antiqui e buscam abrir novos caminhos de

pensamento em meio à situação de perplexidade epocal. De fato, Ockham

segue a via moderna da philosophia sermocinalis, ou seja, o estilo de filosofar

que privilegia a linguagem, melhor, a lógica do discurso como instância

privilegiada de discussão das questões filosóficas, contrapondo-se, assim à

via tradicional da philosophia realis, mais voltada para as coisas efetivas do

real do que para a linguagem do pensamento (TODISCO, 1998, p. 20-24).

Neste sentido, Guilherme de Ockham é um nome que deve chamar a atenção

da filosofia da linguagem contemporânea, sobretudo dos analíticos.

Esse estilo de filosofar é indício de uma transformação na compreensão da

essência da verdade. Para ele, as coisas em si mesmas não são nem

verdadeiras nem são não–verdadeiras, isto é, falsas. A verdade concerne à

coisa apenas enquanto e na medida em que ela é intencionada pelo intelecto

(ut intellecta). A verdade diz respeito à coisa apenas e na medida em que ela

emerge e aparece na claridade do intelecto (apparens in intellectu tantum),

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se tornando, assim, uma res intencionalis. Uma vez apreendida pelo intelecto,

a coisa recebe um ser mental, uma existência intencional, diferente de seu

ser e de sua existência real. Para Ockham, o intelecto é, ao mesmo tempo,

passivo e ativo. É passivo, enquanto recebe em sua claridade a manifestação

da coisa. É ativo à medida que a concebe. Para a mente, conceber é ficar

prenhe da manifestação da coisa, é gerar em si a coisa como objeto, é

produzir dentro de si (concipere enim est producere intra se).

O intelecto é, portanto, generativo, produtivo: ele recebe e concebe a coisa,

produzindo-a mentalmente como objeto no conceito. O conceito da coisa é

uma intentio prima: o intelecto visa, antes de tudo, a coisa, através do seu

conceito. O intelecto conhece a coisa, antes de tudo, através de uma cognitio

intuitiva. Ele coisa a coisa mesma e não, como se pensava, uma imagem ou

representação da coisa. A intuição é a visão imediata da coisa mesma na sua

singularidade. É a recepção da autodoação imediata e concreta dessa coisa

na sua singularidade. A notitia intuitiva atesta a existência da coisa em sua

fatualidade singular. A coisa conhecida imediatamente pelo intelecto, pois, é

produzida mentalmente através do intelecto. O produto dessa produção é o

conceito.

A primeira atividade, pois, do intelecto consiste em conhecer intuitivamente

a coisa como este sujeito (substantia, subjectum) e em concebê-la, isto é,

produzi-la mentalmente como objeto, ou seja, torná-la uma res intencionalis,

uma coisa intencional, que existe mentalmente (um objectum). Mas não se

esgota nisso. À capacidade de conhecer intuitivamente segue a capacidade

de conhecer abstrativamente (cognitio abstrativa). Se o conhecer intuitivo é

sempre o conhecimento de uma singularidade, o conhecer abstrativo é

sempre o conhecimento do que há de comum entre coisas singulares (cognitio

communis). Ao conceber esta casa como uma casa o intelecto produz

abstrativamente o conceito “casa”, que vale para todas as casas singulares.

Conceituar é também generalizar. O conhecimento intuitivo é um conhecer

adequado, próximo e claro da coisa (cognitio in se). O conhecimento

abstrativo é um conhecer derivado, distante e difuso das coisas (cognitio in

alio).

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O intelecto é capaz não somente de conhecer as coisas (intuitiva e

abstrativamente). É também capaz de pensar o conceito das coisas que

conhece. Pensando, ele produz conceitos de conceitos, que são visados numa

segunda potência, por assim dizer (intentio secunda). A lógica opera nesse

nível de pensamento. Ockham vai aproveitar em suas investigações

filosóficas as melhores contribuições da nova lógica que tinha surgido com

Pedro Hispano no século XII: a logica modernorum (lógica dos modernos) ou

logica terminorum (lógica dos termos) (Cfr. GUILHERME DE OCKHAM, 1999,

passim). A contribuição mais importante diz respeito à teoria da suposição

(HEINZMANN, 1992, p. 252-254; TODISCO, 1998 , p. 72-110).

12.1.3 O discurso e a teoria da suposição

O intelecto conhece pensando e pensa conhecendo. Pensar é, aqui, discorrer.

O pensamento é discursivo: fala pensando e pensa falando. Recorrendo à

terminologia latina, o intellectus humano é ratio: pensamento discursivo-

demonstrativo. O conceito corresponde ao termo simples do discurso mental

(sermo) operado pela razão. Os termos da linguagem são sinais. O conceito

é, neste contexto, o sinal primordial (signum primarium) da linguagem

mental ou pensamento discursivo. Enquanto sinal, o conceito deixa a coisa

vir de encontro ao pensamento que discorre. Ele a representa, no sentido de

fazer as vezes dela, de estar em se lugar, de assumir a sua posição. O

conceito supõe (supponit) a coisa; acontece com base nessa suposição da

coisa (suppositio: quase pro alio positio).

Um termo funciona numa suppositio personalis se deixar vir ao encontro a

coisa em sua autodoação intuitiva. Neste caso, ele está para uma coisa na

sua singularidade (ex.: Homo currit – um homem ou este homem corre).

Funciona numa suppositio simplex se está para uma pluralidade ou

comunidade de coisas abarcadas por um mesmo conceito abstrato (ex: Homo

est species – “Homem” é uma espécie). Funciona, enfim, numa suppositio

materialis se está para um termo oral ou escrito: supponit vel pro voce vel

pro scripto (ex.: “Homo” est nomen, substantivum – “Homem” é nome,

substantivo).

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O pensamento discursivo não somente fala das coisas, mas fala também das

palavras, com as quais fala das coisas. Essa fala em segunda potência, por

assim dizer, é típica do discurso gramatical, da gramática. Assim como o

pensamento em segunda potência, que opera com conceitos de conceitos, é

típico da lógica. Nas bitolas da gramática e da lógica é que se vem pensando,

na tradição do ocidente, a linguagem.

A linguagem é, para Ockham, o caminho pelo qual se discutem as questões

filosóficas, a começar da ontologia: o discurso a respeito do ser do ente. O

ser é determinado pelo pensar e esse vige, enquanto razão, como linguagem.

O que diz o verbo “ser”? É o verbo primordial da linguagem como um todo.

Funciona, primeiramente, como cópula. Articula um juízo de atribuição:

atribui um predicado (P) a um sujeito (S): S é P (ex.: O homem é um animal).

Constitui, pois, a condição fundamental de possibilidade de todo juízo, ou

seja, de todo o enunciado ou proposição que opera na forma de uma

predicação.

Em segundo lugar, o verbo ser profere a existência de uma coisa. Enquanto

aparece num juízo de existência, não atribui nada ao sujeito, isto é, não põe

nada de novo, não acrescenta nada à coisa, ao sujeito da proposição (ex.:

este homem é, existe). Kant diria: ser não é um predicado real. O existir de

uma coisa diz respeito não propriamente àquela coisa enquanto tal, mas

àquela coisa enquanto um ente (ex.: “o homem é, existe” não diz respeito ao

propriamente ao homem, mas a todo o ente real e ao homem apenas

enquanto é um ente real). Tomado nessa acepção de existir, o verbo ser

(esse) diz tanto quanto ser real (esse reale), pronuncia a realitas (realidade)

da res (coisa). O ser real é igual para todos os entes, embora os entes sejam

reais em diferentes modos. Essa concepção contrasta de modo agudo com a

visão hierarquizada dos entes, típica do medieval. Segundo essa visão os

entes teriam mais ou menos ser, de acordo com sua capacidade de participar

do ser que lhes fora comunicado por Deus (analogia entis: participatio et

communicatio). Agora se dá um nivelamento ontológico radical. No tocante

ao ser, ao ser real, toda a coisa é igual.

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Em terceiro lugar, o verbo ser confere essência à coisa (ex.: “homem é animal

racional”). Era opinião comum que a essência se deixava dizer na

universalidade do conceito. Para Ockham, porém, em si, a essência não é

nem singular nem universal. A essência “homem” não coincide propriamente

nem com este homem singular nem com o conceito geral de “homem”.

Melhor, a essência diz respeito mais apropriadamente à coisa singular do que

ao conceito geral. Cada coisa tem a sua essência. Mas a essência não é algo

de estranho à coisa, antes, coincide com essa coisa mesma na sua

singularidade. A essência é o indivíduo mesmo na sua singularidade (na sua

haecceitas, diria Scotus). Ela não se distingue realmente do indivíduo. A

distinção é somente de caráter lógico, mental. Nesta concepção, pois, o

indivíduo em seu ser concreto é investido de uma importância absoluta. O

indivíduo não é a reprodução particular de uma essência geral, nem é o

exemplar de uma idéia (modelo, protótipo, arquétipo na mente de Deus). O

poder criador do Deus onipotente não precisa de modelos ideais para criar

entes reais. Cada indivíduo emerge na existência, investido de absoluta

originalidade, a partir da infinita potência criadora de Deus, sem a mediação

de um mundo de ideias. O mundo das ideias perde, pois, o seu vigor e

vigência. O indivíduo real é o que vale de fato.

Além disso, acontece um nivelamento ontológico entre essência (substância)

e acidentes. Essência diz o ser algo de algo (ex.: o ser homem deste homem).

Significa “o que é” o ente, o seu puro “quê”. Tem, portanto, uma significação

nominal e não verbal, como nos primórdios. Ora, o “algo” e suas propriedades

se encontram no mesmo nível. A coisa é o que ela manifesta de seu “que”.

Ela é as suas propriedades, as suas manifestações. A essência não é algo que

está por detrás de suas aparências ou por debaixo de suas propriedades e

ações. É o que se dá nessas aparências, nessas propriedades e ações. Assim,

cada determinação da coisa (acidente), por assim dizer, deixa de ser

acidental, casual, e passa a ser essencial. Isso vai ser decisivo para o

surgimento da ciência moderna, que renuncia a ser um conhecimento das

coisas como são, para ser o conhecimento das coisas como aparecem e como

aparecem relacionadas umas com as outras. Somente neste sentido é que o

empirismo pode encontrar uma justificativa de princípio ao interno da filosofia

da ciência.

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12.1.4 Crítica da teologia metafísica

Em Guilherme de Ockham, a lógica repercute na ontologia e, ao mesmo

tempo, na teologia especulativa (HEINZMANN, 1992, p. 257-260; TODISCO,

1998, p. 110-140). Na trilha da tradição ocidental, a metafísica é onto-teo-

logia. O ser é determinado a partir do pensar, o on a partir do logos. Tanto o

on (ens) no sentido de koinótaton (ens communis: o ente no sentido de uma

universalidade comum, que tudo abrange) quanto no sentido de akróstaton

(ens summum: o ente sumo, isto é, Deus). Como se dá a crítica de Ockham

à teologia especulativa da metafísica?

Primeiramente, ele recusa assumir o “ser” como nome apropriado de Deus.

A rigor, nenhum nome pode ser atribuído apropriadamente a Deus. Nós não

dispomos de um conceptus proprius de Deus. O nome “Deus” não é nenhum

nome próprio. É um nome comum. Nós só podemos falar de Deus com nomes

comuns. Toda denominação distintiva de Deus permanece extrínseca à sua

essência, por nós ignorada. Nenhum nome diz a essência divina na sua

singularidade. Todo nome que atribuímos a Deus fala d’Ele a partir do mundo

da criatura. Encobre o abismo de diferença que vigora entre Deus e a criatura.

Assim, a univocidade dos nomes é apenas conceitual, jamais é real. O

primado do nome “ser” em relação a Deus só procede, à medida que o nome

“ser” não diz nada de acidental ou de qualitativo. Entretanto, mesmo esse

nome permanece inapropriado como todos os demais nomes. Então, qual o

sentido dos nomes divinos? O seu sentido consiste em criar um campo de

nominabilidade para o inominável. A nominabilidade é uma necessidade do

homem, esse ser falante. Trata-se, porém, de uma necessidade limitada,

pois, se é verdade que o homem precisa nomear Deus para com ele se

relacionar, também é verdade que essa nominabilidade não precisa ser

apropriada para ele poder crer e amar a Deus.

Em segundo lugar, Ockham considera impossível qualquer demonstração

rigorosa da existência de Deus, seja a posteriori seja a priori. Antes de tudo,

demonstrar a existência do que quer que seja é um procedimento insensato.

Não se pode demonstrar que A seja, nem que A não seja. Demonstrar é um

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procedimento lógico, que requer mediação de conceitos. Ora, a existência de

qualquer coisa só se dá na imediatez de um conhecimento intuitivo, jamais

se faz acessível por vias de um conhecimento abstrativo e de um

procedimento raciocinativo. Contudo, não temos um conhecimento intuitivo

de Deus. Depois, inferir a existência de Deus a partir da existência do mundo

(Deus como causa prima) é um procedimento não necessário. O regressus

ad infinitum na série das causas, cuja recusa exerce um papel fundamental

nas cinco vias de Tomás, não é impossível. Para Ockham, não o fato de o

mundo existir requer necessariamente a existência de Deus, mas sim o fato

de o mundo não deixar de existir. O regressus ad infinitum, plausível ao se

pensar numa ordem das causas producentes, não é plausível ao ser pensar

numa ordem de causas conservantes. Só se pode supor uma primeira causa

eficiente por se ter que supor uma primeira causa conservante. Também uma

demonstração a priori da existência de Deus (Anselmo) é sem sentido. Se

não conhecemos a essência de Deus, não podemos deduzir de sua essência

a sua existência. Depois, mesmo se nos apoiássemos em uma idéia de Deus

que fosse distintiva (como o summum ens ou o ens perfectissimum), a

demonstração seria muito frágil, pois essa idéia não seria apropriada a Deus

mesmo, pois ela seria uma idéia formada por via de eminência partindo-se

das criaturas. No fundo, não estaria falando de Deus mesmo, mas de Deus a

partir das criaturas. Enfim, mesmo se a inferência de que tal ente supremo

deve necessariamente existir fosse correta, não significaria que da sua

correção lógica se poderia mostrar a sua existência mesma.

Ademais, não se pode provar, segundo Ockham, a onipotência de Deus. Esse

é um artigo de fé: dico quod non potest demonstrari, quod deus sit

omnipotens, sed sola fide tenetur – digo que não se pode demonstrar, que

Deus é onipotente, mas há que se ater a isso somente pela fé (Quolibeta

Septem, Opera Theologica IX, I, q. 1). Aqui, pois, se deixa o âmbito do

racional e se salta para dentro do âmbito da fé.

O discurso metafísico a respeito de Deus aparece como extremamente frágil,

na perspectiva do pensamento filosófico e teológico de Guilherme de Ockham.

Ele marca, assim, a crise da onto-teo-logia medieval. Uma crise da metafísica

medieval, que aparece como uma autodestruição filosófica num primeiro

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plano, mas que talvez seja motivada, num plano mais profundo, pela própria

teologia da onipotência e da liberdade divina, concebida no horizonte da fé.

O pensamento de Ockham opera, assim, uma demolição da metafísica

tradicional e marca uma transformação de princípios na estruturação da

compreensão do ser do ente, do ser do conhecimento e do ser da verdade.

Neste sentido, lembra a obra de pensamento de Kant. Em meio ao ruir do

aparato metafísico que amparava e firmava, como um firmamentum, a

existência do homem cristão medieval, pouca coisa permanece de pé.

Primeiro, a fé, que se baseia nela mesma e não nos arrazoados da razão.

Segundo, o conhecimento intuitivo das coisas singulares, que acontece numa

evidência imediata. Em terceiro, porém, um conhecimento ainda mais

intuitivo, isto é, um conhecimento ainda mais imediato e evidente, claro e

distinto do que o conhecimento intuitivo da coisa singular: trata-se do

conhecimento que a mente, o intelecto, tem de si mesmo. Esse conhecimento

é o único indubitável. Com efeito, diz Ockham, eu posso duvidar de que o rei

está sentado, mas, enquanto duvido, não posso duvidar de que duvido

(Comentário às sentenças livro II, q. 21). A evidência mais certa é aquela

que a mente, o intelecto, tem de si mesma, à medida que pensa: a evidência

que se dá como uma autopresença da mente a si mesma, o cogito

(Comentário às sentenças, prólogo, q. 1). A única certeza indubitável da

razão é a auto-apreensão da mente - neste sentido ele antecede o cogito sum

de Descartes.

Estante do saber

Existe uma Resposta Ockhamiana (ou não Ockhamiana) ao Ceticismo?

(http://www.cle.unicamp.br/cadernos/pdf/Ernesto%20Perini%20Santos.pdf

), de Ernesto Perini-Santos.

A propriedade de suposição na lógica de Ockham

(http://www.ufsj.edu.br/portal-repositorio/File/revistalable/magno.pdf), de

Magno de Souza Simões e Mariluze Ferreira de Andrade e Silva.

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As inferências temporais em Guilherme de Ockham

(http://www.revistamirabilia.com/Numeros/Num7/numero7_7.html), de

Guilherme Wyllie.

Anselmo y Ockham: uma fe para distintas lógicas-semióticas

(http://www.revistamirabilia.com/Numeros/Num7/numero7_6.html), de

Jorge Francisco Aguirre Sala (em espanhol).

12.2 Mestre Eckhart

Em meio à crise do século XIV, a escolástica se separa da mística. Se a

escolástica começa a se esclerosar, contudo, a mística mantém o seu vigor

especulativo em alta. O maior místico especulativo da Idade Média é o

dominicano alemão Mestre Eckhart (c. 1260-c. 1327), herdeiro da herança

neoplatônica da escola de Colônia, fundada por Alberto Magno. Sua obra é

escrita em parte em latim e em parte em alemão medieval. A obra latina é

de caráter mais escolástico, já a obra alemã é de caráter mais místico. Seu

modo de dizer é ousado e, por isso, granjeou-lhe as suspeitas de heresia.

Quando algumas de suas teses foram condenadas como suspeitas de heresia,

porém, ele já tinha morrido. Na mística de Eckhart o pensamento

especulativo é posto contra seus limites extremos, falando a linguagem

dialética ou mesmo a linguagem do paradoxo.

12.2.1 O Ser é Deus

Mestre Eckhart inverte a proposição de Tomás de Aquino: Deus est ipsum

esse (Deus é o ser mesmo) (LEÃO, 2008, p. 257-259; HEINZMANN, 1992,

268-274)). No Prólogo geral de sua obra prima ele anuncia a proposição:

esse est Deus (o ser é Deus). A sua obra prima, que foi planejada, mas não

executada, era o Opus Tripartitum, obra tripartida, que constava de: Opus

Propositionum, a obra das proposições; Opus Quaestionum, a obra das

questões; e o Opus Expositionum: a obra das exposições. A proposição em

questão era a primeira do Opus Propositionum. Isso quer dizer que ela é tese

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fundamental de Eckhart. “Esse est Deus” – Ser é Deus. No comentário ao

livro do Eclesiástico, Eckhart comenta o verso 21 do capítulo 24: “qui edunt

me, adhuc esuriunt”: “aqueles que se nutrem de mim, ainda têm fome”. E

Eckhart diz: “omne ens edit deum utpote esse” - todo ente se nutre de Deus,

para que possa ser. Ou seja: tudo o que é só é na medida em que recebe o

poder ser e o fato de ser de Deus. Tudo o que o ente é o é por graça e virtude

de Deus. Por si mesmo, o ente criado nada é. Tire-lhe o ser que é dado por

Deus, e o ente volta ao nada. “Extra esse et ante esse solum est nihil” - fora

do ser e em face do ser só há o nada. O ser que o ente tem é-lhe dado apenas

de empréstimo. O ser é uma propriedade de Deus e não da criatura. Da

criatura é somente o nada. E mesmo o nada da criatura, enquanto nomeia

uma possibilidade de ser alguma coisa, de receber o ser de outro, é também

uma dádiva de Deus. O ser é comunicado à criatura, como uma dádiva

indevida, supérflua, absolutamente gratuita. "Todas as criaturas são um puro

nada. Não digo que são insignificantes, pequenas, nulas, ou qualquer outra

coisa assim. Elas são um puro nada", diz Eckhart.

Entre o criado e Deus não há diferença de grau na perfeição do ser, como

afirmava a doutrina da analogia do ente em Tomás. Há, sim, um abismo total:

o abismo do nada. Somente Deus é e tudo o que há de ser na criatura, bem

como todas as perfeições transcendentais do ser que lhe é comunicada (a

bondade, a verdade, a unidade, a beleza), tudo isso é de Deus, melhor, tudo

isso é Deus. E a criatura participa disso (se nutre, alimenta-se disso) por pura

dádiva e como que "por empréstimo". De Deus é o ser, pois o ser é Deus. Da

criatura o nada e do nada advém o fato da criatura ser sempre um ser

determinado, um “esse hoc et hoc” – um ser isto e aquilo.

Tudo isso é dito positivamente. Mas, Eckhart, como bom pensador, também

diz o contrário disso. Dizem que os pensadores se contradizem sempre uns

aos outros. Eckhart, como bom pensador, contradiz a si mesmo. Na

proposição "esse est Deus” (o ser é Deus), Eckhart elabora uma ontologia da

identidade. Nesta ontologia, à criatura pertence somente o nada. Em seguida,

Eckhart elabora uma ontologia da diferença, salientando a transcendência de

Deus em relação ao ser e atribuindo o nada a Deus e o ser à criatura.

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12.2.2 Deus é pensar

A ontologia da diferença se dá na proposição: “Deus est intelligere” – Deus é

pensar (HEINZMANN, 1992, 273-274). Mas não um pensar que pensa o que

já é. Sim, um pensar que, em pensando, faz ser o que é. Enquanto tal, Deus

está acima do ser (epekeina tes ousias, como dizia Platão). A criatura é. Ser

é, aqui, ser um ente determinado, um "hoc et hoc" (isso e aquilo). Neste

sentido, ser é algo de criatural. Deus não é, à medida que ele transcende

todo o ser. A niilidade, porém, de Deus é diversa da niilidade da criatura,

exposta na primeira proposição (esse est Deus). A niilidade de Deus é sua

transcendência, como já indicava João Escoto Eriúgena. Dizer que Deus é o

ser pleno e puro, é ainda dizer muito pouco de Deus. Em si, de Deus não se

pode dizer nem que ele é nem que ele não é. Em si, Deus está além de todo

o ser e não ser. Pois ele, como intellectus, é a fonte de todo o ser e não ser

(o nada da criatura). Tudo é à medida que é um pensamento de Deus, um

pensamento pensado deste a eternidade, não como o artista pensa a sua

obra, mas sim como a mãe pensa em seu filho, que vai nascer. Pois a criação

é geração, melhor, é participação na filiação, pois é no Filho (o Logos ou

Intelecto) que Deus cria todas as coisas. E tudo o que é no Filho, pelo Filho e

para o Filho. Por isso, a maior obra do homem consiste em vir a ser o que ele

era, em Deus, antes de existir (no mundo e em si mesmo): ser filho no Filho,

ser Deus com Deus e em Deus, por pura graça, não como algo que é devido

por natureza.

12.2.3 O desprendimento e o amor

O homem volta à sua origem em Deus pelo desprendimento, pois Deus

mesmo é, em última instância, desprendimento (MESTRE ECKHART, 2006,

passim; 2008, passim). Com o nome “desprendimento” nós tentamos

traduzir uma palavra primordial no pensamento de Eckhart. Em alemão a

palavra é “Abgeschiedenheit” (em alemão medieval Eckhart diz, na verdade,

Abgescheidenheit). O sufixo “-heit” corresponde, aproximadamente, ao

nosso “dade”. Designa ser, vigor de ser, ser como vigência e regência de uma

presença. O sufixo se acrescenta a “Abgeschieden-”. Por sua vez, ali nós

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temos o prefixo “ab” e o verbo “scheiden”. “Ab” assinala certo retraimento.

Diz o distanciamento do que se retrai, do que se retira, do que se vela e se

encobre. Assim, “Abschied” significa despedida. O movimento de quem se

despede é o de ir se retirando. Quem se retira, na despedida, some no

horizonte, se vela e se encobre em sua invisibilidade. Abgeschiedenheit diz,

portanto, antes de tudo a transcendência absoluta de Deus, melhor, acena

para o retraimento de sua deidade. Esse retraimento é o fundo abissal, que

deixa e faz tudo ser o que é. É do abismo dessa identidade que emerge e

brota toda a diferença, que articula e compõe o uni-verso. “Abgeschiedenheit”

é o retraimento que deixa e faz ser a unicidade de cada sendo na sua

diferença, isto é, na singularidade de sua identidade. É o suporte que recolhe

e acolhe toda e qualquer diferença como a unidade de tudo em tudo. A

“Abgeschiedenheit” – o desprendimento –, como sentido do ser, vige como

abissal retraimento, como o silêncio de fundo de todas as coisas, como o

humilde e recatado pudor do mistério originário. É a partir desse silêncio, que

se percute e repercute a linguagem do Um. É a partir do abismo do

retraimento que o ser emerge como fontal e originária superabundância da

doação da liberdade criativa, que deixa e faz ser todas as coisas, na sua

diferença, na identidade consigo e com todo o universo. “Abgeschiedenheit”

– desprendimento – é a proximidade calma de um vigor que rege sem se

impor, que se doa, retirando-se e retraindo-se para dentro do pudor de seu

mistério.

A plena vigência do desprendimento como sentido do ser chama-se, em

Eckhart, Minne, uma palavra medieval para amor. Eckhart não recorre à

palavra usual para amor, Liebe, mas à palavra que se diz no contexto do

amor cavalheiresco medieval, Minne. Originariamente, Minne designava a

ternura e o vigor do amor misericordioso, que se desdobra em diligente

cuidado e antecipação solícita, em bem-querer atencioso, que se empenha

por poupar e proteger, defender e salvar. Minne, depois, passou a designar

a intimidade do amor de enamoramento no encontro entre um homem e uma

mulher e na doação mútua e inteira, a modo do amor esponsal. A partir do

século XII e XIII passou a nomear o protótipo do amor-dedicação de um

cavaleiro para com uma dama, o motivo de suas lutas, de suas façanhas e

de suas gestas. Na linguagem medieval, Minne trinken – beber o amor - era

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comemorar a dádiva do amor, era recordar a gratuidade e a graciosidade do

encontro amoroso, da afeição e da intimidade que ele fazia surgir.

Comemorar a dádiva é recebê-la, sempre de novo, numa gratidão que a faz

frutificar.

Em Eckhart, a palavra “Minne” evoca e re-corda o mais antigo de tudo quanto

há: o desprendimento como dádiva do amor primeiro, isto é, primordial.

“Minne” é o desprendimento como fonte que jorra cordial na superabundância

e superfluência da doação de toda e qualquer possibilidade de ser. É a soltura

e a leveza do desprendimento que, encobrindo-se a si mesmo no recato de

sua humildade, deixa brotar e jorrar de si toda e qualquer possibilidade de

ser. Esse modo de ser do desprendimento como amor, um discípulo tardio de

Eckhart, no século XVII, cantou como o florescer por florescer da Rosa: “A

rosa é sem por quê, / floresce por florescer, / não olha p’ra seu buquê, / nem

pergunta se alguém a vê”.

Estante do saber

Os sermões alemães completos

(http://caminhodomeio.files.wordpress.com/2009/06/meister-

eckhart-os-sermoes-alemaes.pdf), de Mestre Eckhart.

Mestre Eckhart: misticismo ou “aristotelismo ético”?

(http://www.fflch.usp.br/df/site/publicacoes/filalema/filalema_11/rod

rigo_03.pdf), de Rodrigo Guerizoli.

As imagens da nobreza na vida e nas obras de Mestre Eckhart

(http://www.revistamirabilia.com/Numeros/Num9/artigos/13.pdf) e

“Xeque-mate ao tempo, às formas e ao lugar...”. Mestre Eckhart entre

o fluir do tempo e o remanso da Eternidade

(http://www.revistamirabilia.com/Numeros/Num11/13.%20Matteo.p

df), de Matteo Raschietti.

12.3 Da mística à ciência: Nicolau de Cusa

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O ser, que é Deus, no retraimento de sua deidade, vigora como amor. Isso é

algo do pensamento de Eckhart e de sua mística. Estranhamente, este

pensamento e essa mística atuaram em Nicolau de Cusa (1401-1464)

(HEIZMANN, 1992, p. 279-290). E do Cusano veio uma influência que

determinou o nascimento da ciência moderna. A ontologia da diferença

possibilitou uma compreensão do universo como um todo relacional, onde

cada ente é o que é à medida que é em relação com outro ente; portanto,

uma ontologia do sistema ou da estrutura. Não há, aqui, um ser em si do

ente. Todo o ente finito é o que é a partir da relação com outro ente. É um

algo outro (aliquid: aliud quid, outro quê). Deus mesmo, porém, dirá Nicolau

de Cusa, é o não-outro (non aliud). É ele mesmo. E basta. A partir de então

a transparência passa a ser o sentido da criação. A verdade de cada coisa

passa a residir na sua estrutura interna. O mundo passa a se mostrar como

a estruturação, em que cada coisa só é o que é na sua relação com as outras

coisas, dentro da grande ordem universal. O universo mesmo passa a ser

experimentado como uma espécie de creatio continua (criação contínua)

imanente. Tudo é somente no devir de uma gênese cocriativa universal. Por

isto, o conhecimento se volta para as conjunturas funcionais dos diversos

momentos estruturais do universo. Assim, a moderna ciência da natureza

seria filha do gótico, da mística, quer ela saiba, quer não. Já Boaventura dizia

ser a Escritura um livro, que só nos foi dado porque já não éramos capazes

de ler o livro da criação. Também Mestre Eckhart afirmava que quem não

conhecesse mais do que as criaturas – isto é, quem tivesse um conhecimento

límpido da transparência das criaturas – não precisaria de prédica, pois cada

criatura é plena de Deus e é um livro. Se, mais tarde, Galilei declarava ser a

“filosofia” – o saber da uni-totalidade – escrita no livro da natureza em

caracteres matemáticos, isto só era possível sobre o fundo da mística

medieval, do seu pensamento especulativo e da arte gótica.

Estante do pensar

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Nicolau de Cusa (1401-1464) (http://publique.rdc.puc-

rio.br/revistaalceu/media/alceu_n4_Konder.pdf), de Leandro Konder.

O tema do “pecado original” na teoria do conhecimento de Nicolau de

Cusa (http://www.principios.cchla.ufrn.br/24P-267-296.pdf), de

Gianluca Cuozzo.

A visão disso tudo se fez poesia, porém, em alguns versos de Dante,

cantados no “Primeiro Canto” do Paraíso, na Divina Comédia (Cfr.

ALIGHIERI, 2005, p. 601) e é com estes versos que terminamos

nosso estudo de filosofia medieval, pois neles se deixa ver o sentido

do Mesmo, que, de diversas formas, foi pensado pelos pensadores

medievais:

As coisas todas quantas

Têm uma ordem entre si, e isso é forma,

Que faz o universo a Deus semelhante.

Aqui as altas criaturas veem o vestígio

Da eterna valência, que é fim,

Ao qual se conforma a supradita norma.

Na ordem, que eu digo, tendem

Todas as naturezas, por diversas sortes,

Ao seu princípio, com mais ou menos vigor.

Daí, se movem a diversos portos

Através do grande mar do ser, e a cada uma

É dado instinto para que lá aporte.

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