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ProfissionalizaçãodaadministraçãopúblicaemodelosinstitucionaisdeconvivênciaentrepolíticoseburocratasnosgovernosdemocráticosdoséculoXXI

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XVI Congreso Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública, Asunción, Paraguay, 8 - 11 Nov. 2011

Profissionalização da administração pública e modelos institucionais de convivência entre políticos e burocratas nos governos democráticos

do século XXI

Ethel Airton Capuano

INTRODUÇÃOO tema deste artigo se insere no espírito da Carta Iberoamericana de la Función Pública,

aprovada pela V Conferencia Iberoamericana de Ministros de Administración Pública y Reforma del

Estado1, permeando, principalmente, questões executivas de governo relativas às “funções de direção”, como expressas nesse documento de referência continental. Embora importantes no contexto, não serão tratadas questões institucionais de fundo dos sistemas políticos na região, tais como os modelos de partidos e os sistemas eleitorais, concentrando-se o estudo em modelos de “engenharia de relacionamento” entre políticos e burocratas nos sistemas de governança pública das democracias com participação social que se busca neste início do Século XXI.

Em retrospectiva, observa-se que os diversos modelos históricos de organização e gestão dos negócios do Estado, envolvendo estereótipos de políticos e burocratas, têm sido estudados com renovado interesse nos últimos anos, ainda que registros sobre o tema remontem à Antiguidade. Questões essenciais nesse tema remetem aos papéis destinados aos representantes políticos da sociedade e aos burocratas profissionais na manutenção do Estado e funcionamento dos governos democráticos. Essa delimitação de territórios de atuação nas organizações públicas parece ser uma questão primordial que caracteriza cada um dos modelos de gestão governamental nos países desenvolvidos, assunto que será abordado, nesta oportunidade, desde algumas de suas raízes históricas conhecidas até a atualidade, para reflexão sobre que tipo de modelo geral de convivência entre essas duas forças seria mais recomendado para as democracias do Século XXI.

Entretanto, o aumento do interesse dos representantes políticos por questões técnicas, a maior inserção dos burocratas de alto nível hierárquico em questões políticas da Administração Pública e a maior transparência das ações de governo graças à revolução das comunicações digitais em rede parecem apontar para a necessidade de um novo modelo de gestão pública e uma ruptura com os modelos seculares vigentes. Isso se torna evidente na medida em que a revolução sociotécnica em curso apresenta um contraponto às tendências históricas inexoráveis nos sistemas político-administrativos que Weber (2001) anunciava no início do Século XX, que seriam conseqüentes a um processo evolutivo no sentido de tornar os partidos políticos, eles próprios, grandes organizações burocráticas com lideranças orgânicas que muitas vezes se superporiam, em termos de poder, à própria liderança política baseada na representação social. Outras forças estão surgindo nesse cenário, de modo análogo ao vaticínio weberiano, e uma nova forma de organização que promete modificar o sistema político atende pela denominação genérica de “cidadãos conectados em redes”.

1 A conferência ocorreu em Santa Cruz de La Sierra, Bolívia, nos dias 26 e 27 de junho de 2003.

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Esse cenário de mudanças exige uma reavaliação da previsão original de Aberbach, Putnam e Rockman (1981), que observavam, nas nações avançadas do Ocidente na segunda metade do Século XX, o estável e crescente poder dos políticos profissionais e dos burocratas no processo de formulação de políticas públicas. E, também, uma reflexão sobre a conclusão de Peters (2010), que associa, com dados recentes do crescimento das despesas do setor público em relação ao Produto Interno Bruto (PIB) de vários países, em vários estágios de desenvolvimento, uma tendência inexorável de ampliação do tamanho do Estado nas economias mundiais com o aumento da importância das burocracias na estrutura política moderna, com base na crescente relação de dependência das sociedades em relação a essas burocracias. Essa dependência pode ser explicada, naturalmente, pelo “conteúdo tecnológico da vida moderna”, com implicações técnicas que culminam em domínio da burocracia nos processos de tomada de decisão nos governos.

O conteúdo técnico dos governos é evidente não apenas pelos aspectos relativos à ciência e a tecnologia utilizada no provimento de meios para a Administração Pública, mas também no desenvolvimento de “tecnologias sociais” em áreas como educação, tratamento de dependentes químicos e proteção à infância. Peters (2010) argumenta, em síntese, que à medida que os assuntos de governos são cada vez mais influenciados pela tecnologia disponível, a burocracia como locus da tecnologia do setor público se posiciona cada vez mais no front dos processos de tomada de decisão governamental.2 Como conseqüência, a aparente contradição entre os imperativos de efetividade técnica e de responsabilidade democrática nos governos parece inevitável, exigindo-se novas elaborações a cada período histórico. Esse é o ponto nevrálgico de qualquer modelo de governança pública, mencionado também por Bobbio (1995), que percebia democracia e burocracia como conceitos antitéticos.Este artigo tem como objetivo uma provocação para o debate, com base em um modelo propositivo de governança envolvendo políticos e burocratas, assunto que não se esgotará, certamente, tão cedo na Ciência Política.

ORIGENS HISTÓRICAS DA BUROCRACIAO hibridismo comportamental político-técnico, na verdade, é onipresente não apenas na política,

mas também no plano do indivíduo, podendo ser considerado inerente ao ser humano, como o animal

político de Aristóteles (2001a). De um ponto de vista epistemológico, pode-se afirmar que o ser humano sempre exerceu atividades políticas – assim entendidas aquelas realizadas em defesa de interesses e valores – e atividades burocráticas – aquelas realizadas em bases técnicas para fins de esclarecimento ou controle lógico na execução de raciocínios e processos. Contudo, é importante o resgate histórico de alguns registros dessa convivência e uma conceituação de política e políticos, burocracia e burocrata, antes de um aprofundamento no tema.

Burocratas e SamuraisEm termos evolutivos, tem-se uma percepção de compartilhamento de funções no comando das

instituições públicas a partir dos registros dos reis, na Antiguidade, que contratavam guerreiros, tesoureiros, escribas e arquitetos para cuidar das guerras, das finanças, dos editos públicos e da construção de templos e palácios, por exemplo. Os reis, cercando-se do conhecimento específico desses profissionais, começaram a ceder espaço de poder para os que poderíamos denominar os “primeiros 2 Como evidências da ampliação das tecnicalidades dos governos no Estado moderno, Peters (2010) relata, por exemplo, que enquanto o Parlamento britânico aprovara, em média, 55 atos por sessão legislativa entre 1979 e 2005, cerca de 2.000 instrumentos normativos infralegais por sessão tiveram que ser elaborados. E que, nos EUA, enquanto o Congresso aprova algumas centenas de leis por ano, a burocracia elabora uma média de mais de 10 mil atos regulatórios infralegais por ano.

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burocratas”, que dominavam as técnicas e estratégias militares, econômicas, de comunicação e de construção civil úteis para a manutenção dos reinos. Esses profissionais da techne3 (ROOCHNIK, 1996), alguns sendo burocratas no atual sentido do termo, eram valiosos para os monarcas como instrumentos de sua política de dominação. Kneller (1980), por exemplo, menciona registros históricos de um quadro de servidores públicos recrutado com base no mérito burocrático, na China imperial, com ponderações interessantes sobre suas realizações, que contribuíram para o avanço da ciência e tecnologia chinesa da época em áreas como astronomia, matemática e engenharia hidráulica. Outro caso interessante, que mostra como a noção de burocrata é muito anterior à sociologia weberiana, é o dos samurais no Japão feudal. Os samurais, com o tempo, devido à sua educação (dominavam a escrita), tornaram-se também burocratas que serviam aos senhores e aos imperadores.

Weber (2001) explica, numa análise do contexto político absolutista, as razões primordiais pelas quais os soberanos colocaram profissionais técnicos a seu serviço, segundo o qual os políticos profissionais (ou “primeiros burocratas”) surgiram, no passado, da luta que opunha o príncipe às ordens e logo se colocaram a serviço do mandatário. O príncipe, para travar batalha contra as ordens, buscou apoio nas camadas sociais politicamente disponíveis, não comprometidas com essas tais ordens e que sabiam escrever, recorrendo aos brâmanes, aos sacerdotes budistas, aos lamas ou aos bispos e sacerdotes, porque neles encontrava um pessoal administrativo potencial capaz de expressar-se por escrito e suscetível de ser utilizado na luta que travava contra a aristocracia. Esses relatos deixam claro duas características-padrão do perfil dos primeiros burocratas a serviço de chefes políticos: o conhecimento técnico e a fidelidade ao mandatário-mor do reino. Obviamente, com esses predicados os burocratas profissionais (civis e militares) constituíam recursos que tornavam o monarca ainda mais poderoso perante seus rivais.

O conceito de atividade política adotado por Weber (2001: 59), embora reconhecendo a amplitude semântica dessa expressão, é o de direção do agrupamento político hoje denominado

“Estado” ou a influência que se exerce nesse sentido. E essa direção se exerce com aquilo que é central ao conceito de “política”: o poder. Em Weber (1999: 526), portanto, política é a tentativa de participar

no poder ou de influenciar a distribuição do poder, seja entre vários Estados, seja dentro de um Estado

entre os grupos de pessoas que este abrange. E político seria quem reclama poder, poder como meio ao

serviço de outros fins – ideais ou egoístas – ou poder “pelo próprio poder”, para deleitar-se com a

sensação de prestígio que proporciona.

Burocracia, por outro lado, sugere o poder ou a regra do escritório, ou, ainda, o poder dos

burocratas, um sistema de organização bastante antigo, presente nos grandes reinos do passado como China, Egito e Roma, considerado a razão decisiva da glória desses reinos e de sua herança indelével na história da humanidade graças à sua superioridade puramente técnica. É nesse ponto da epistemologia político-administrativa que se observa a transformação da burocracia, antes um poderoso recurso de governança do príncipe, em uma entidade de poder independente do príncipe, concorrendo com o poder deste no Estado moderno, fenômeno previsto por Weber (2001) como uma nova ameaça de dominação sobre a sociedade. Esse novo poder, no entanto, é intrigante na governança pública porque, com o avanço da ciência e da tecnologia, reduz o espaço de poder da política como veiculadora de valores e interesses nas decisões de governos em temas técnicos mais complexos.

3 Roochnik (1996) interpreta techne, um termo crucial nos diálogos de Platão, de modo bastante polissêmico, com os equivalentes “skill”, “art”, “craft”, “expertise”, “profession”, “science”, “knowledge”, “technical knowledge”.

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Burocracia, Democracia e Políticas PúblicasOs dois marcos históricos mais importantes que alavancaram a burocracia como força de

comando do aparelho de Estado moderno são, portanto: (1) o engajamento dos burocratas na luta dos reis contra as ordens aristocráticas que se opunham à sua soberania; e (2) o advento da democracia. O primeiro se refere à própria composição do aparelho de Estado absolutista e o segundo ampliou os espaços e os poderes da burocracia nos Estados democráticos de direito. O crescente poder da burocracia baseado no conhecimento técnico e no conhecimento dos complexos mecanismos da máquina administrativa do aparelho de Estado pode ser encontrado em vários relatos históricos, como os de Kneller (1980) e de Weber (2001).

Entretanto, esse mundo primordial da burocracia profissional estatal, composta por funcionários especializados a serviço do soberano, logo se tornou mais plural e menos especializado, na média, do ponto de vista técnico. Com a generalizada burocratização e a conseqüente ampliação das estruturas organizacionais do aparelho de Estado que acompanharam, primeiro, o Estado monárquico absolutista e, depois, o Estado moderno, ampliou-se também o interesse dos apoiadores políticos pela ocupação dos cargos da burocracia, fenômeno assim relatado por Weber (2001: 73):

Com essa ascenção de funcionários qualificados, era possível constatar – conquanto com transições

não tão claras – uma outra evolução envolvendo os “dirigentes políticos”. Por todo o sempre e em

todos os países do mundo, houve, evidentemente, conselheiros reais que gozaram de grande

autoridade. (…) Ao mesmo tempo em que transformava a política em uma “empresa”, a evolução ia

exigindo formação especial daqueles que participavam da luta pelo poder e que aplicavam os métodos

políticos, visando aos princípios do partido moderno. Nesse sentido, a evolução conduz a uma divisão

dos funcionários em duas categorias: de um lado, os funcionários de carreira e, de outro, os

funcionários “políticos”.

É neste ponto que se percebe outro fenômeno importante na administração do Estado, objeto central deste artigo, bastante presente nos governos contemporâneos de países mais desenvolvidos do ocidente: a figura do “executivo político”, que se tornou um concorrente do alto burocrata no comando das organizações públicas.

Outro aspecto relevante no processo histórico das burocracias estatais é que com a evolução dos modernos Estados ocidentais para governos democráticos, a partir da Revolução Inglesa no Século XVII, a análise dos papéis e comportamentos de políticos e burocratas estatais nas organizações públicas ganha uma nova dimensão explícita: as políticas públicas. Brooks (1989: 16), por exemplo, define política pública como uma ampla estrutura de ideias e valores com base na qual decisões são

tomadas e ações, ou inações, são implementadas por governos em relação a alguma questão ou

problema. Em suma, entende-se políticas públicas como abordagens epistemológicas, envolvendo aspectos políticos e burocráticos, que tratam das intervenções governamentais para solução de problemas na sociedade.

O advento da democracia nos sistemas de governo ocidentais também contribuiu para o fortalecimento da burocracia como força muito relevante no comando do Estado, especialmente nas funções clássicas de segurança nacional e gestão da economia, mas também numa nova função importante para a democracia: a operação do direito.

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Gustavo Lima Soares
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Essa observação empírica apenas confirma o que era previsível analisando-se o conceito basilar de burocracia como um sistema de controle científico da Administração baseado em regras. Bobbio (1995) registrou essa percepção no seu estudo prospectivo sobre o futuro da democracia, quando definiu um critério fundamental para distinguir esta forma de governo das outras, argumentando que o único modo de compreensão quando se fala de democracia, como contraproposta a todas as formas de governo autocrático, é de considerá-la caracterizada por um conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que estabelecem quem é autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos.

Com Weber e Bobbio têm-se análises bastante cuidadosas das implicações do crescimento da burocracia estatal de um ponto de vista da própria evolução da sociedade e do Estado democrático de direito. Weber (2001) comenta sobre a ascenção dos advogados na gestão dos negócios jurídicos do Estado moderno e Bobbio (1995) comenta sobre a promessa histórica (não mantida) do governo dos técnicos e argumenta sobre o paradoxo epistêmico entre burocracia e democracia e a conseqüente impossibilidade de um governo tecnocrata numa democracia:

(…) o projeto político democrático foi idealizado por uma sociedade muito menos complexa que a de

hoje. A promessa não foi mantida por causa de obstáculos não previstos ou que apareceram depois das

“transformações” (…) da sociedade civil. (…) Tecnocracia e democracia são antitéticas: se o

protagonista da sociedade industrial é o especialista ele não pode ser um cidadão qualquer. A

democracia se rege pela hipótese que todos possam decidir sobre tudo. A tecnocracia, ao contrário,

pretende que sejam chamados para decidir os poucos que são considerados como entendidos no

assunto. (BOBBIO, 1995: 23)

O problema da tecnocracia nas democracias, no entanto, permanece sem solução, com opiniões convergentes de Weber (1999) e Bobbio (1995)4. O primeiro observa que, tendencialmente, a administração burocrática é sempre uma administração que exclui o público, porque a burocracia oculta, na medida do possível, o seu saber e o seu fazer da crítica. O segundo argumenta que no tempo do Estado absoluto o povo era mantido afastado dos arcana imperii5 porque se acreditava que o povo era muito ignorante, mas que, embora atualmente os problemas a resolver, como o da luta contra a inflação, do pleno emprego, da mais justa distribuição de renda, sejam também complexos, não se deve excluir as soluções técnicas do escrutínio político.

Bobbio (1995) tenta resolver esse problema, de certo modo, concluindo que Estado democrático e o Estado burocrático são, historicamente, muito mais naturalmente conectados do que se pensa e todo Estado que se torna muito democrático torna-se ao mesmo tempo muito burocrático porque o processo de burocratização é uma conseqüência do processo de democratização.

4 Entretanto, Weber e Bobbio divergem, profundamente, quanto a sistemas de governo, sendo o primeiro avesso à democracia e o segundo um entusiasta. É famosa a seguinte conversa de Weber (2001: 16) com o General Ludendorff, comandante geral das forças alemãs na 1ª Guerra Mundial:Weber: – Numa democracia, o povo escolhe um dirigente que goza da sua confiança. Então o dirigente diz: “Agora é calar

e obedecer”. A partir desse momento, o povo e o partido já não podem interferir.

General Ludendorff: – Eu seria capaz de me acostumar a uma democracia assim.Weber: – Mais tarde o povo pode julgar. Se o dirigente cometeu erros, que o enforquem!5 Termo utilizado por Tácito para “os segredos de Estado” ou os “segredos de governo”.

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Esse vaticínio também se encontra em Weber (2001), que previa uma “ditadura do funcionário” e não a ditadura do proletariado, equalizando o Estado socialista com o Estado capitalista quanto ao modelo de dominação administrativa por meio da burocracia. Historicamente, tem-se observado essa tendência na medida em que tanto as empresas e governos capitalistas como governos socialistas exercem seu poder sobre a sociedade mediante a organização burocrática.

Culminando sua análise sobre uma das promessas consideradas não cumpridas pela democracia, a de um sistema político de melhor desempenho no atendimento às demandas sociais, Bobbio (1995) apresenta um diagnóstico que, ainda que parcial, tem mérito quando se compara o próprio desempenho da burocracia na sua origem, o Estado absolutista, com o desempenho da burocracia em regimes democráticos. Ele conclui que na democracia tem-se a demanda fácil e a resposta de governo difícil; na autocracia, ao contrário, o governo pode tornar a demanda mais difícil e dispõe de uma maior facilidade na oferta de respostas.

CRITICA DA RACIONALIDADE BUROCRÁTICAConforme Dusek (2006), a palavra “tecnocracia” apareceu nos anos 1920, mas suas raízes

remontam à filosofia grega – onde Platão (na Republica) propôs o governo ideal como o governo dos reis-filósofos. Essa ideia, ao longo da história moderna, foi adotada por pensadores tanto das ciências naturais como das ciências sociais, como Bacon (na Inglaterra), San Simon e Comte (na França) e Veblen (nos Estados Unidos). Entretanto, cabem ainda as questões centrais: afinal, a que nos referimos quando dizemos que um procedimento é muito burocrático? Ou a que se refere a crítica aos tecnocratas?

Os tecnocratas se apresentam como os advogados de regras de comportamento baseadas na razão, pelas quais a sociedade poderia atingir os resultados desejados; mas o que seria essa razão? Em que consiste essa “razão tecnocrática”? Em geral, essa razão é a razão científica ou tecnológica, baseada no raciocínio lógico mais fundamental desenvolvido pelo ser humano: “se procedermos de modo P, então teremos o resultado R”; ou, em notação lógica clássica simplificada, P → R (se P, então

R). A razão tecnocrata, então, estabelece que se um tomador de decisão proceder de uma forma respectivamente predefinida com base no conhecimento científico ou técnico disponível, então ele alcançará, muito provavelmente, o resultado colimado.

Essa versão de racionalidade é a que tem se disseminado no Século XX, que Weber e outros pensadores chamaram de “racionalidade instrumental” (DUSEK, 2006). Com essa racionalidade, o conceito de “técnica” é o de “saber fazer”, ou “saber como fazer”, que se fundamenta tanto no conhecimento científico e tecnológico como no conhecimento tácito – que se reporta ao conhecimento empírico de trabalhadores e artesãos em geral, com um componente que se pode também qualificar de “habilidade” ou “arte” (ROOCHNIK, 1996). A utilidade dessa racionalidade instrumental é evidente no dia-a-dia das organizações, da sociedade e das pessoas, sem a qual atividades fundamentais para a manutenção da civilização humana não seriam possíveis. Os atos mais presentes no cotidiano, tais como preparar alimentos e realizar a higiene pessoal, envolvem produtos processados, métodos e técnicas desenvolvidos com essa racionalidade.

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Contudo, para que isso seja viável deve-se abrir mão de explicações metafísicas sobre a natureza mais essencial das coisas do mundo, concentrando-se apenas em questões mais pragmáticas, ou nas conseqüências e implicações do uso que fazemos das coisas. Como exemplo, o padeiro, para o preparo de pães, não necessita ter profundo conhecimento da bioquímica dos ingredientes do pão, mas conhecer o processo de preparo de pães numa panificadora e as implicações práticas das misturas e dos procedimentos utilizados – isso não significa, no entanto, que ela não possa adquirir valiosos conhecimentos práticos de panificação com sua experiência profissional, como relatado por Nonaka e Takeuchi (1996).

O positivista Auguste Comte apontava como a maior vantagem desse tipo de racionalidade a previsibilidade, baseada em relações de meios com os fins, ou de causas e efeitos (DUSEK, 2006), argumentando que as predições são baseadas em leis causais. Se uma determinada coisa acontece, então um determinado resultado seguirá; se alguém deseja alcançar um certo objetivo, então deve seguir um respectivo procedimento.

Como proceder, então, com a parte irracional, ou menos racional (considerada subjetiva), das decisões tomadas pelos homens, tais como as que envolvem escolhas com base em valores e interesses, tal como ocorre nas políticas de governo? Weber, nesse aspecto do estudo evolutivo da racionalidade técnica, ao mesmo tempo reconhece que as decisões, mesma as consideradas anteriormente subjetivas, tendem a ser cada vez mais instrumentalizadas pela técnica, mas reconhece, também, que existem limites para essa racionalidade instrumental.

Dusek (2006) destaca esse traço weberiano quando o sociólogo observa que a cultura ocidental está sendo racionalizada, onde mais e mais áreas de pensamento e ação tradicionais estão sendo estruturadas pela razão instrumental. Entretanto, esse autor também ressalta que os objetivos ou valores sobre os quais os meios são estruturados racionalmente são baseados em decisão irracional, e que não pode, portanto, haver genuíno raciocínio sobre valores – Weber concorda com os existencialistas, que vêem a escolha de valores como uma decisão arbitrária, irracional.

Essa visão simplificadora de uma “racionalidade instrumental” é um tema bastante polêmico na filosofia e na sociologia, mas como modelo analítico pode ser útil para o desenvolvimento das ideias propostas neste artigo. É certo que o problema entre meios e fins que molda o raciocínio tecnocrático é aparentemente insolúvel sem valores e julgamentos a priori. O ser humano, para construir sua ciência e seu conhecimento, precisa de algo em que se apoiar no início, algo que não se submeta a dúvidas sobre a verdade, algo que se denomina axioma – o sistema racional do ser humano, portanto, é como uma pilha de tijolos, com os tijolos de cima apoiando-se nos de baixo. A linguagem é plena de exemplos dessa construção, pois geralmente termos novos, conceitos mais sofisticados, são elaborados a partir de termos mais primitivos, de significado conhecido por todos. Quando utilizamos, por exemplo, o termo composto executivo político, partimos da premissa que se compreende o que é um executivo e o que é um político, termos mais simples.

Aristóteles (2001b) e Kant (2000) enfatizaram o papel e o poder do julgamento, próprio da política, que não seria caracterizado por regras. Conforme Dusek (2006, p. 56), quando se busca racionalizar julgamentos com regras, deve haver regras também para a aplicação dos julgamentos, e regras para aquelas regras, num processo interminável de regras para formulação de outras regras.

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O que se percebe, nessa discussão filosófica, é que não se concebe que um ser humano possa decidir com base em suas próprias regras, ainda que tácitas (ou difíceis de exprimir formalmente), e que esse ser humano possa esclarecê-las sem uso de seus próprios valores. Este é um ponto que tem muito a ver com o raciocínio político no sentido mais estrito, mas que pode também ser tratado de modo mais transparente, portanto “técnico”, na medida em que alguns valores se tornam públicos numa sociedade democrática, como a “busca da felicidade” geral dos cidadãos.

Em síntese, o procedimento considerado muito burocrático, cerne da crítica política aos tecnocratas, em geral se refere ou à complexidade natural do tema (que causa desconforto ao público leigo) ou ao critério decisório de um procedimento técnico no sentido amplo, que pode ser um procedimento produtivo ou uma decisão regulamentar. E isso ocorre, geralmente, somente por duas razões: (1) a complexidade do procedimento não é compreensível pelo cidadão, causando desconfiança; (2) a qualidade técnica do procedimento é contestada pelo cidadão, seja por questões de conteúdos cognitivos, valores e julgamentos ou questões materiais (como erros operacionais ou desempenho insatisfatório, por exemplo).

O primeiro caso envolve questões de transparência, ou de linguagem na comunicação do agente público com a sociedade, e o segundo aspectos democráticos mais essenciais de participação social na formulação do procedimento burocrático. Quando se atribui a um agente público a pecha de tecnocrata, geralmente isso significa que esse agente público ou não esclareceu, de modo transparente, seu comportamento num processo de interface com a sociedade, ou que, mesmo tendo esclarecido seu procedimento numa linguagem comum, este não é aceito do ponto de vista dos critérios de decisão utilizados (que podem envolver, também, valores e julgamentos). Com isso, percebe-se a importância de um estudo mais aprofundado naquilo que é muito caro para Bobbio, conforme Brandão (2006)6: a participação do cidadão na condução cotidiana dos negócios do Estado.

Com isso, resta evidente o enorme contra-senso metodológico tanto ao se tentar excluir os burocratas dos processos decisórios inerentes à governança pública quanto ao se excluir os políticos de questões da alta gestão administrativa, pois se as respostas dos sistemas políticos democráticos às demandas sociais devem ser elaboradas sob uma série de restrições, sua complexidade é tamanha que não se pode prescindir nem do conhecimento tecnocrático nem dos valores e julgamentos políticos.

PERFIS E PAPÉISA literatura sobre os perfis e papéis de políticos e burocratas ao longo da história é vasta, ainda

que se apresente, geralmente, em forma de biografias e estudos de personagens historicamente mais relevantes em determinados contextos. Em geral, estadistas, parlamentares e militares que em algum momento histórico se destacaram têm sido objeto de estudos mais aprofundados. O mesmo não ocorre, entretanto, com os burocratas, que muito menos freqüentemente aparecem nos estudos históricos do Estado moderno. É por essa contingência material que as obras de Aberbach, Putnam e Rockman (1981) e de Peters (2001) constituem textos clássicos para aprofundamento dos estudos sobre o relacionamento entre políticos e burocratas no comando da organização estatal nos países. Outras obras apresentam aspectos interessantes desse relacionamento em contextos específicos, como a de Campbell

6 Brandão (2006: 143) reconhece no pensamento de Bobbio uma herança doutrinária do eminente jurista Hans Kelsen na definição de democracia como um conjunto de regras cuja propriedade principal é permitir a maior participação possível –

direta ou indireta – dos cidadãos nas decisões a que são submetidos . O outro componente preponderante no pensamento de Bobbio, segundo o qual a democracia é um conjunto de regras cuja propriedade principal é a resolução pacífica de

conflitos político-sociais, seria oriundo de Popper.

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e Szablowski (1979), por exemplo, que comentam o comportamento dos “superburocratas” das agências estatais no Canadá; a de Clifford (1998), que analisa a importância relativa de homens de negócios, burocratas e militares na construção da moderna Coreia; de O’Leary, van Slyke e Kim (2010), que atualizam, numa perspectiva histórica evolutiva, percepções de escopo bastante amplo sobre questões relevantes na Administração Pública; de Gomes, Dias e Motta (1994) e Graham (1997), que mostram, com abundantes informações históricas, a crueza do modelo de Estado patrimonialista e clientelista vigente no Brasil Império.

Aberbach, Putnam e Rockman (1981) apresentam os resultados de sua pesquisa sobre origens, perfis, papéis, crenças e comportamentos de burocratas e políticos envolvendo 1.400 servidores públicos senior e membros dos parlamentos nos Estados Unidos, Reino Unido, França, Alemanha, Itália, Países Baixos e Suécia. Os autores tentam responder, com os dados obtidos em mais de uma década de pesquisa de campo, entrevistando políticos e burocratas senior, a três questões fundamentais:Como diferem, um de outro, burocratas senior e políticos parlamentares e, de modo inverso, como eles

se parecem? O que explica as diferenças e similaridades entre burocratas e políticos? O que essas

diferenças e similaridades significam para a formulação de políticas públicas?

Esses autores elaboram, a priori, quatro conceitos (ou quatro “imagens”) sobre o relacionamento entre políticos e burocratas que correspondem, grosseiramente, à evolução de seus papéis na política do Ocidente nos cem anos desde a segunda metade do Século XIX até a segunda metade do Século XX. Os dados mostram, inicialmente, como as elites políticas e burocráticas chegam ao topo nas cadeias de comando das organizações públicas (nos parlamentos ou em postos dos poderes executivos) e permitem uma análise explanatória sobre as implicações da base educacional e profissional dos entrevistados em relação às diferenças nos dois tipos de carreiras. Complementam essa análise preliminar com outras questões, de aspectos relevantes para o estudo, buscando respostas para as seguintes indagações (ABERBACH; PUTNAM; ROCKMAN, 1981):• Como políticos parlamentares e burocratas senior interpretam seus respectivos papéis e como eles abordam a governança e a formulação de políticas públicas?• Como seus compromissos ideológicos diferem, por quê, e que diferença isso faz para o processo de governança?• Quais as perspectivas de políticos e burocratas em relação a dimensões-chave da democracia como liberdade e pluralismo, igualdade e participação, e quais as origens desses compromissos?• Como políticos e burocratas se comportam no relacionamento mútuo e em relação aos demais participantes no processo político?• Quais são as implicações desses perfis e papéis desempenhados por políticos e burocratas para um governo efetivamente democrático?• Como poderão as inevitáveis tensões entre políticos e burocratas se tornarem mais criativas, de modo que o Estado possa ser mais efetivo e ágil, estável e inovador?•

Os conceitos (ou imagens) adotados pelos autores têm como base epistêmica o nível (ou tipo) de engajamento de ambas forças nos processos de políticas públicas, sendo:I. Política e Administração: abordagem de divisão do trabalho, com nítida separação e complementaridade no comando do aparelho de Estado, atribuindo-se aos políticos a missão de formulação de políticas públicas e aos servidores civis sua administração (algo parecido com o dueto empreendedorismo-administração).

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II. Interesses e Fatos: assumindo-se que ambos, políticos e servidores públicos civis, participam do processo de formulação de políticas públicas, mas com contribuições distintas; políticos contribuem com interesses e valores; servidores públicos com fatos (ou informação) e conhecimento.III. Energia e Equilíbrio: ambos perfis, políticos e burocratas, se engajam na formulação de políticas públicas e ambos se relacionam com a política; a real distinção entre a atividade de um perfil e de outro é que enquanto os políticos articulam amplos e difusos interesses de indivíduos, os burocratas realizam a mediação entre interesses mais estreitos e focados de clientelas organizadas – a atuação dos políticos, nesta imagem, é mais energizadora, passional, partidária, idealista, inovadora, ideológica e pública (no sentido de angariar publicidade mesmo); a atuação dos burocratas é mais de bastidores, com ajustes incrementais, proporcionando equilíbrio às políticas públicas.IV. Híbrido Puro: sugere-se, especulativamente, que ao longo do último quarto do Século XX estaria desaparecendo a distinção weberiana entre os papéis de políticos e burocratas, produzindo-se um perfil profissional “híbrido puro” no comando dos negócios do Estado.

Obviamente, as imagens I e IV representam estereótipos de perfis na alta gestão das organizações públicas, talvez com pouca probabilidade de ocorrerem com muita freqüência. Enquanto na “Imagem I” pressupõe-se um modelo estilo “os políticos pensam, os burocratas executam”, na “Imagem IV” pressupõe-se um modelo onde “políticos e burocratas fazem tudo em conjunto, compartilhando funções políticas e burocráticas”. Os autores citam, como exemplos do perfil híbrido da “Imagem IV”, políticos franceses proeminentes da Quinta República como Valéry Giscard d'Estaing, Dominique de Villepin e Jacques Chirac. Aberbach, Putnam e Rockman (1981) citam, ainda, iniciativas de introdução desse perfil híbrido no Reino Unido nos governos de Harold Wilson e Edward Heath, na segunda metade da década de 1960; no caso da Alemanha, os autores observam que essa prática é antiga, tendo-se, comumente, militantes políticos entre os servidores civis de nível senior, e um número substancial de ex-burocratas no parlamento.

Outro aspecto interessante da pesquisa de Aberbach, Putnam e Rockman (1981) é inerente ao sistema político-administrativo dos EUA, reportando a identificação de um terceiro tipo de agente estatal, o dos “executivos políticos” (os mesmos “políticos profissionais” históricos mencionados por Weber), representando os altos executivos do governo que apesar de detentores de conhecimento técnico burocrático são indicados para os cargos pelo critério político, algo que para os autores é uma característica única, que não existe nos países europeus pesquisados. Esses autores também concluíram que políticos e burocratas nesses países eram extraordinariamente bem educados, do ponto de vista formal, em comparação com seus compatriotas, o que, contemporaneamente, implica um problema de linguagem na interação entre burocratas e “cidadãos comuns” que pode comprometer um processo de participação e controle social. Considerando-se que a burocracia estatal utiliza linguagens técnicas, que para os cidadãos comuns equivalem a linguagens cifradas, portanto ininteligíveis, como esperar-se que esses cidadãos possam participar das decisões e controlar os resultados das ações desses governos?

Em termos de cultura política sul-americana, a tradição ibérica, marcada pela preponderância da formação legal ou religiosa e pelo desapreço à ciência, constituiu o marco intelectual fundamental das elites coloniais e imperiais. Este traço cultural, inserido num sistema econômico pouco desenvolvido, onde preponderava o trabalho escravo, contribuiu para o desprestígio de atividades práticas e para sua pouca relevância econômica e política, com impactos negativos na evolução da techne como contraparte da politica na região.

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Como evidência histórica desse fenômeno, o Brasil assistiu, na República Velha, um episódio marcante que deixaria bem claros os limites epistemológicos de qualquer tentativa de teorização acerca das fronteiras de atuação entre políticos e técnicos na solução dos problemas nacionais. Esse episódio é o da campanha pública de erradicação da febre amarela no Rio de Janeiro liderada pelo médico sanitarista Oswaldo Cruz, que num momento foi apontado como “inimigo do povo” nos jornais e discursos na Câmara e no Senado brasileiro na época, e também satirizado nas modinhas de Carnaval. Embora com resultado positivo ao final do episódio, a inovação tecnológica implementada na gestão da saúde pública, nesse caso, causou um momentâneo desconforto popular que moveu, durante algum tempo, forças políticas contra a solução técnica do problema.

Esse traço de agente de mudança sociotécnica tem se revelado, entre os burocratas do setor público, em várias experiências alhures, com conclusões interessantes. Como os burocratas são, geralmente, muito mais perenes em seus cargos que os políticos, algumas iniciativas de desenvolvimento do setor público têm encontrado melhor suporte na silenciosa burocracia que na política. Os exemplos contemporâneos são vários, especialmente em países sul-americanos, desde o desenvolvimento de sistemas de segurança em aduanas e no tráfego aéreo até o desenvolvimento de poderosos bancos de dados de finanças públicas, de cidadãos e empresas – esses sistemas computacionais, denominados, às vezes, “sistemas de informação estruturadores”, têm se tornado os principais instrumentos tecnológicos de controle burocrático nos países em geral, com inúmeras e enormes vantagens técnicas e econômicas sobre os sistemas manuais da geração burocrática anterior. Esses sistemas de controle se aplicam a toda a população, registrando informações sensíveis sobre a vida dos cidadãos tais como cadastro pessoal e familiar, nível de escolaridade, vínculos de emprego, renda mensal, impostos devidos e pagos, movimentação bancária, etc, como verdadeiros big brothers – e o mais interessante de tudo isso é que são desenvolvidos com pouca ou nenhuma participação formal de membros do parlamento.

A experiência histórica das burocracias do setor público tem demonstrado, em várias instâncias e momentos, a extrema robustez e eficácia desse tipo de instituição quanto ao atendimento do requisito da estabilidade na governança pública. Os governos parlamentares conhecem, no dia-a-dia, essa vantagem da burocracia, mas governos não parlamentaristas também têm tido experiências positivas nesse aspecto, como, por exemplo, o caso brasileiro de grande instabilidade política no ano de 1992, que culminou na renúncia do Presidente da República. Embora a cúpula do governo estivesse sob intenso ataque, a burocracia se portou muito bem mantendo os órgãos públicos essenciais em pleno funcionamento.

CENÁRIOS SOCIOTÉCNICOS E TENDÊNCIASA evolução dos modelos nacionais de relacionamento entre políticos e burocratas na

Administração Pública nos anos 1980, 1990 e 2000 não reforçaram a hipótese de tendência para a “Imagem IV” de Aberbach, Putnam e Rockman (1981), mas mostraram uma preferência pelo modelo da “Imagem II”, que reconhece as diferenças de crenças e métodos de atuação de burocratas e políticos – onde burocratas se baseiam em fatos e informações e políticos em valores e interesses. Com isso, parece que a realidade mostra um retorno à idéia da dicotomia básica weberiana da “Imagem I”, mas com uma compreensão maior de sua necessária complementaridade de papéis na gestão de políticas públicas.

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Aberbach e Rockman (2006), reavaliando, em estudo mais recente, a hipótese conclusiva de sua pesquisa empírica seminal dos anos 1970, revelaram-se surpresos com a inversão da tendência nos países pesquisados apontada inicialmente, atribuindo como causa dessa mudança de trajetória na Administração Pública a pressão econômica por melhor desempenho gerencial dos governos para manutenção financeira do Welfare State nos anos 1980 e além.

Esses autores observam que a noção de “equidade”, como valor para os governos dos países estudados, tem perdido status para a noção de “eficiência” nos programas de bem estar social. E “jogam a toalha” admitindo que esses eventos também marcaram o triunfo das idéias orientadas ao

mercado que alavancaram um fenômeno – ou, mais apropriadamente, um pacote de fenômenos – que

passou a ser chamado de New Public Management (NPM). Outros autores, como Svara (2001), Wille (2010) e Lodge e Gill (2011), confirmam essa percepção quanto à atual prevalência do modelo básico da NPM nos governos dos países de cultura anglo-saxônica.

Contrariando essa tendência, não parece ter sido o gerencialismo a escolha majoritária do sistema de governança pública nos países de tradição napoleônica (ou latina) como França, Itália, Brasil e países da América do Sul. O Brasil, por exemplo, passa atualmente por um período histórico de ampliação significativa da cobertura dos benefícios de seu sistema de Welfare State, notadamente com o programa “Bolsa-Família” no combate à extrema pobreza. Embora restrições orçamentárias também existam, por enquanto o crescimento econômico acelerado dos últimos anos tem permitido ao governo central uma ampliação confortável do financiamento dos benefícios sociais sem necessidade de um modelo de gestão com maior ênfase na eficiência do gasto público, como propõe os seguidores da doutrina gerencialista de mercado.

O diagnóstico recente de Aberbach e Rockman (2006) parece o mais preciso em relação aos mecanismos decisórios que têm resultado na opção pelo modelo gerencial, em detrimento do modelo institucional de gestão governamental, nos países europeus. Com a crise econômica de 2008, esse quadro epistemológico geral de aproximação do gerencialismo pode se aprofundar ainda mais devido ao apelo da eficiência econômica, especialmente em questões-chave de políticas públicas como a escala de oferta de serviços públicos – sempre limitada pela “Doença de Baumol” (PETERS, 2010).7

Em áreas sociais como educação, saúde e segurança, questões de produtividade representam um desafio ainda não vencido, implicando, ao contrário, um aprofundamento das crises de financiamento público na medida em que, na maioria dos casos estudados, o aumento dos investimentos não tem se refletido em melhores resultados. A crise no sistema educacional francês (CAPUANO, 2011), por exemplo, revela o mesmo problema fundamental que se observa no modelo do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil, onde o crescimento do orçamento não tem resultado em melhorias na qualidade e produtividade dos serviços (MARTINS FILHO, 2008).

7 Baumol e Bowen (1965), analisando mercados de produção artística, concluiu que esse tipo de mercado não possibilitava ganhos de produtividade e que, portanto, extrapolando para os demais ramos de atividade com essa característica (como os das organizações que prestam serviços sem fins lucrativos), seria esperado que os preços desses produtos ou serviços se elevassem relativamente ao nível de preços geral da economia. Entretanto, Peters (2010) observa que atualmente o setor público parece mais propício a mudanças de produtividade a partir do uso de computação eletrônica que o setor privado – talvez devido à “linha de base” de inovação tecnológica se encontrar mais atrasada no setor público.

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Esse cenário se torna mais preocupante na medida em que as sociedades ocidentais envelhecem, como relata Peters (2010: 8), pois além das pensões, os idosos tendem a consumir mais serviços

médicos per capita que os jovens, de modo que as despesas com programas de saúde pública também

tendem a aumentar à medida que as populações envelhecem. Esse autor observa, empiricamente, que em média uma pessoa com mais de 65 anos utiliza duas vezes mais serviços médicos que uma pessoa com idade entre 45 e 65 anos, e que essa mudança na estrutura etária dos países industrializados é muito rápida.

Outro fato recente, que corrobora a tendência gerencialista do modelo de gestão pública na União Européia, é a aprovação da nova norma de licitações a ser utilizada pela organização e pelos Estados Membros. Em comunicado de 24/06/2011 (EC, 2011), a Comissão Europeia explicou os fundamentos dessa mudança alegando que as restrições orçamentárias requerem aquisições públicas mais eficientes, um objetivo de gestão que está sendo elevado à agenda política em todos os Estados Membros. Com a finalidade de assegurar o uso eficiente do dinheiro público, reformas nas regras atuais devem criar ferramentas mais flexíveis e amigáveis aos usuários para redução de custos e da duração dos procedimentos de contratação.

Enfim, em um mundo democrático com demandas cada vez mais incontroláveis e meios escassos e controlados para satisfazê-las, não há como presumir-se que o fator econômico deixe de ter um peso decisivo na arquitetura dos modelos de gestão governamental e no relacionamento entre políticos e burocratas senior no futuro. Especialmente em tarefas operacionais de produção de bens e serviços, as vantagens do mercado são inegáveis e parece que mesmo governos pouco propensos, ideologicamente, a adotar o mercado como referência para a gestão de recursos públicos, modelos mais gerencialistas e mais contratualizados estão sendo cada vez mais utilizados.

Como exemplos, o governo francês vislumbra como saída estratégica para sua preocupante crise fiscal estrutural o aumento da produtividade da “função pública”, limitando inclusive o ingresso de novos servidores públicos nas carreiras de Estado; o governo espanhol, por sua vez, tem adotado medidas de avaliação de desempenho dos serviços públicos prestados à população e utilizado mais intensivamente o conceito e as tecnologias de Governo Eletrônico, com vistas à redução de custos e melhoria da qualidade; e os governos britânicos têm promovido uma descentralização administrativa sem precedentes em sua história, denominada “devolução de poderes” (às administrações locais), e promovido a contratualização de serviços públicos com empresas e organizações do terceiro setor (CAPUANO, 2011).

Convergindo nessa tendência de gestão mais eficiente de recursos, os governos britânicos mais recentes, inclusive os trabalhistas, estão também testando modelos inovadores de recrutamento de executivos no mercado para cargos na alta gestão do Civil Service (UK, 2008; UK, 2010b).8 Embora esse modelo de recrutamento tenha apresentado alguns problemas de adaptação dos executivos à burocracia estatal, devido ao sistema de incentivos do setor público ser muito diferente do sistema de incentivos do mercado, parece que não há intenção de abandoná-lo no futuro próximo, apontando-se para modelos de recrutamento híbridos com candidatos do próprio Civil Service e do mercado.

8 Peters (2010) menciona os servidores públicos do Civil Service britânico como “talentosos amadores”.

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Os casos de países sul-americanos também parecem apontar para modelos híbridos de recrutamento de executivos para a Administração Pública no futuro. Os cargos públicos da alta gestão federal no Brasil, por exemplo, têm exercido especial atração entre militantes de partidos políticos em busca de emprego formal e poder de articulação nas organizações públicas, configurando-se uma conhecida tendência, vislumbrada por Weber ainda no início do Século XX, de uma parcela dos políticos viverem não apenas para a política, mas também da atividade política (WEBER, 2001). Esse modelo de recrutamento de executivos públicos baseado essencialmente no critério político decorre, principalmente, da pressão dos partidos que compõem as grandes coalizões eleitorais que têm caracterizado as democracias ocidentais nos últimos anos, consubstanciando-se não apenas nos governos sul-americanos, mas também em países desenvolvidos como o Reino Unido – onde são empossados mais de uma centena de ministros9 com o propósito de se garantir a coesão política do Gabinete.

Outra tendência, com reflexos danosos ao desempenho do setor público, se refere à alta rotatividade dos ministros nos cargos, conforme a série histórica apresentada na Tabela 1, referente ao caso brasileiro. Esse fenômeno, mencionado anteriormente por Capuano (2008), representa uma séria dificuldade para a elaboração e execução de estratégias governamentais em políticas públicas no país. Ferraz e Azevedo (2011) evidenciam esse problema também em outros 22 países, além do Brasil, especificamente na área de saúde, concluindo que os ministros da saúde permanecem, em média, 32 meses em seus cargos (mas apenas 15 meses no caso do Ministro da Saúde no Brasil), tempo demasiado exíguo para o necessário planejamento de longo prazo em saúde pública, e contrastam esses dados com os de grandes organizações do mercado, onde os executivos-chefes (Chief Enterprise

Officers – CEOs) permanecem, em média, 7,3 anos em seus cargos – e 9,1 anos, no caso do ramo da indústria voltada para serviços de saúde.

Os períodos históricos que classificam os dados da Tabela 1 se referem: aos anos de fundação do sistema republicano de governo no Brasil, de 1889 a 1930, que sucedeu o Império (denominado “República Velha”); aos anos do governo ditatorial de Getúlio Vargas, de 1930 a 1945 (“Ditadura Vargas”); aos anos do primeiro período de experiência democrática, de 1946 a 1964 (mencionado como “Democratização”); aos anos da última ditadura militar, de 1964 a 1984 (“Ditadura Militar”); e ao último período, de 1985 até 2010, que perdura até o momento (“Redemocratização”).

Os ministérios selecionados para essa pesquisa são os mais estáveis no tempo e que têm constituído, historicamente, a espinha dorsal do Governo Federal no Brasil. Observa-se, a propósito, (I) que nos períodos ditatoriais o tempo médio de gestão dos ministros em seus cargos (TMG) tem sido historicamente muito maior que nos períodos democráticos, na razão do dobro ou do triplo. O TMG na “Ditadura Vargas”, que antecedeu o primeiro período de “Democratização”, é de 34 meses, enquanto o deste é de apenas 12 meses. Com a “Ditadura Militar”, o TMG se elevou, novamente, para 37 meses, enquanto o TMG do último período democrático (“Redemocratização”) não tem passado de 22 meses. Em alguns ministérios, como o da Previdência e Assistência Social, o TMG ministerial não tem passado de 15 meses.

9 Os ministros que excedem o número de departamentos não têm funções executivas.

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Com tempos médios de permanência nos cargos (TMG) em torno de 21 meses, computando-se todo o período histórico considerado, ou de 22 meses, se considerados apenas o último período histórico de governos federais no Brasil, não se pode, por razões práticas, esperar dos ministros o desenvolvimento de planos, programas e projetos de longo prazo de maturação, com os de infraestrutura e desenvolvimento econômico, por exemplo. O mesmo problema é observado nos ministérios da área social, como o Ministério da Educação e o Ministério da Saúde, onde poucos ministros têm passado, historicamente, de dois anos no comando dessas pastas. Berlinski, Dewan e Dowding (2005) e Cleary e Reeves (2001) apontam esse problema também no Governo do Reino Unido; Chang, Lewis e McCarty (2001) apresentam uma análise histórica mais extensa, de base estatística, sobre o tempo de permanência de executivos políticos em seus cargos nos EUA, com as mesmas conclusões.

Em geral, projetos públicos com tempo de maturação no médio ou longo prazo são muito vulneráveis aos riscos políticos de perda de patrocínio – imagine-se, por exemplo, o risco de perda de investimentos na construção de uma estrada de rodagem cuja execução é interrompida na fase de compactação da base que suportará o pavimento asfáltico, geralmente constituída de material rochoso suscetível ao carreamento por chuvas e ventos; ou o risco de sucateamento dos sofisticados e onerosos equipamentos tecnológicos de um moderno hospital recém-concluído, se o projeto de implantação for interrompido e a entidade mantenedora com seus profissionais de saúde não assumirem seus postos.

Como na maioria dos países sul-americanos não existe uma nítida tradição dicotômica de papéis que culmina em demarcação de territórios para ação mais ou menos autônoma de políticos e de burocratas profissionais na Administração Pública e, conseqüentemente, também não são utilizados modelos institucionais para divisão do trabalho entre as próprias organizações governamentais, os únicos esteios que restam para a profissionalização e melhoria de desempenho geral parecem apontar para (I) o perfilamento dos ocupantes dos cargos da alta gestão, num ambiente de livre competição entre postulantes dos quadros dos órgãos públicos e de outras origens (algo parecido com o modelo britânico em experiência); (II) a contratualização (interna ou externa) de resultados, sempre que possível; e (III) a responsabilização com base em padrões de comportamentos, melhores práticas e resultados objetivamente mensuráveis. É com essa perspectiva que se propõe um novo modelo de seleção para os postos de executivos públicos, que também significa um novo modelo de convivência entre políticos e burocratas senior no comando das organizações estatais.

MODELO DE PROFISSIONALIZAÇÃO PROPOSTOÉ importante, ao se propor modelos de gestão para organizações, o estabelecimento de

premissas tão sólidas quanto necessárias (e possíveis) no contexto, numa abordagem pragmática, reduzindo-se assim o risco de se construir pesados castelos epistemológicos sobre bases empíricas pantanosas. A literatura contemporânea sobre Administração Pública versando sobre o conceito de Nova Gestão Pública (New Public Management – NPM) não está livre dessa armadilha silogística quando alguns autores partem para um reducionismo do tipo “burocracia weberiana” versus

“gerencialismo” sem cuidar de aspectos de contexto tão importantes como a cultura política e as instituições de cada país, que definem, ao longo do tempo, novos contornos funcionais e novas versões locais tanto para a burocracia como para o modelo gerencialista de gestão governamental. Com efeito, deve-se duvidar se algum dia houve algum modelo de governança, em algum país, que se conformasse exatamente como o modelo weberiano original, ou se existe algum país que tenha adotado o modelo gerencialista puro.

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O modelo de profissionalização proposto neste artigo se concentra em questões essenciais, com uma abordagem mais genérica, partindo da premissa que as burocracias dos governos democráticos ocidentais se encontram num momento de transição para um novo paradigma que ainda não se sabe ao certo qual será, ou se haverá algum modelo predominante. E os motivos da mudança se devem às próprias mudanças dos cenários econômicos, políticos e sociotécnicos em curso, baseadas na evolução das tecnologias da informação e comunicação (TIC) e seus usos de amplo espectro na sociedade.

Esse modelo se baseia num cenário com a perspectiva de maior protagonismo político dos cidadãos do Século XXI, especialmente as novas gerações diariamente conectadas à rede mundial de computadores, desafiando, de certo modo, as velhas instituições da política representativa do Século XX. O’Leary, Slyke e Kim (2010), a título de conclusão da III Conferência Minnowbrook sobre o futuro da Administração Pública, sintetizam como desafios e oportunidades desse cenário seus próprios componentes ambientais de contexto, como o globalismo, a necessidade de governança colaborativa, o papel das TIC e a ânsia por uma democracia mais deliberativa e com ampla participação social, mas também ressaltam aspectos mais técnicos a serem desenvolvidos para sustentação desse novo paradigma, como novos modelos de organização, novas abordagens e disciplinas para o ensino da nova geração de líderes, a demonstração da relevância da Administração Pública para os países democráticos e sua natureza epistemológica multidisciplinar. Contudo, talvez a mensagem mais importante de Minnowbrook III tenha sido aquela sentida pelos acadêmicos mais jovens que dela participaram: a Administração Pública como área do conhecimento humano precisa se reposicionar para tratar, efetivamente, das novas realidades da governança pública contemporânea.

Engenharia Política de RequisitosEm que bases políticas se poderão, então, desenvolver um modelo de gestão governamental

mais próximo dos valores de mercado em termos de produtividade e qualidade, mas também mais consentâneo com os valores públicos da cidadania num ambiente democrático? Como articular-se liberdade, participação e controle social com melhor desempenho gerencial, transparência e foco em resultados nas organizações públicas do Século XXI? Questões chave como essas precisam ser discutidas, sob pena de se produzir modelos acadêmicos sem utilidade prática. Essa tarefa não é trivial e exige certa dose de engenharia política para se traduzir toda a inerente sociologia das organizações públicas em requisitos do modelo.

Como em outras épocas de mudanças nos padrões civilizatórios, o atual momento histórico é pleno de incertezas e riscos, mas percebe-se, claramente, uma luta entre o novo e o velho na Administração Pública, onde ora vencem novas idéias e uma esperança de renovação, ora as inovações propostas são vencidas pela inércia do status quo e seus interesses constituídos (ABRUCIO, 2008). Esse movimento pendular muito presente na sociedade ocidental contemporânea também pode ser entendido como uma tensão constante entre as instituições e os projetos de mudança, apresentando-se também como um paradoxo político: como cidadãos queremos, ao mesmo tempo, instituições mais sólidas e seguras, que resistam às intempéries e riscos da política, mas também instituições que evoluam continuamente para se adequarem às mudanças cada vez mais velozes de uma sociedade cada vez mais complexa. Queremos mais liberdade, participação e controle social nos destinos políticos dos países, mas queremos também mais segurança contra eventuais infortúnios da vida em sociedade – enfim, queremos mudanças dramáticas sem riscos.

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Conseqüentemente, a “busca da felicidade” colimada pela ação política, em sua gênese filosófica, se torna uma empreitada cada vez mais complexa e incerta de um ponto de vista epistemológico, desafiando a capacidade humana de formulação de políticas públicas. E com isso eleva-se a “barra de salto” da inteligência necessária para dar conta de semelhante tarefa de construção abstrata, mas com profundas implicações concretas na vida em sociedade.

Condições de contorno (como requisitos a serem atendidos) mais detalhadas para a elaboração de modelos de gestão governamental capazes de produzir resultados socialmente satisfatórios com recursos públicos abundam, tais como: (1) organizações mais profissionais, mais produtivas e mais imunes ao sistema de espólio político, ainda que colaborativas e integradas ao sistema político; (2) organizações públicas mais abertas (ou “permeáveis”) para interação social com os cidadãos; (3) modelos de tomada de decisão mais participativos, representativos e transparentes; (4) processos de gestão mais eficazes, eficientes, seguros e transparentes; (5) gestores mais responsáveis e responsabilizáveis pelas suas ações; (6) gestores com mais liberdade de ação e mais focados em resultados de desenvolvimento; (7) controle social mais efetivo; etc.

O pensamento contemporâneo em gestão pública busca algo muito além de governos mais gerenciais, em que os governos trabalham de modo mais eficaz e eficiente em benefício do cidadão contribuinte. O que se busca parece algo mais alinhado a um conceito de “governar com os cidadãos”, ironicamente um modelo mais próximo ao modelo suíço de governo de comunidades. E essa capacidade de governar com os cidadãos deverá ser desenvolvida sem perder-se de vista valores éticos necessários aos atores envolvidos nas ações políticas e administrativas (envolvendo burocratas, políticos e cidadãos), que se encontram incrustados no próprio conceito de Estado democrático de direito, tais como os sintetizados nos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade. Em síntese, essa engenharia política que se busca deverá resolver, satisfatoriamente, o dilema contemporâneo apresentado por Bobbio (1995): desenvolver a democracia sem abrir mão da burocracia necessária para a transparência e o controle dos governos, ainda que esses dois conceitos pareçam antitéticos.

Bases EmpíricasCertamente, a primeira metade do Século XXI será plena de embates políticos sobre que direção

esse Estado contemporâneo deverá tomar em questões muito caras aos cidadãos ocidentais, que podem ser sintetizadas naquilo que se denomina, genericamente, “Estado de Bem Estar Social” (Welfare

State). Como exemplos, o envelhecimento geral da população mundial acarretará a necessidade de novos pactos sociais intergerações e serviços de saúde mais adequados para os mais idosos (que representarão uma proporção maior da sociedade do que hoje); e a ascenção econômica de enormes contingentes de pessoas à condição de classe média (WILSON; DRAGUSANU, 2008) causará significativo impacto sobre o planejamento urbano, necessitando-se de cidades e equipamentos públicos mais adequados para o atendimento de novas necessidades de habitação, sistemas de suprimento de energia, vias de transporte e de comunicação.

Os sistemas políticos também terão que se modernizarem no sentido de uma maior interação dos representantes eleitos com a população, especialmente com eficientes recursos de redes sociais, sob pena de perda de legitimidade dos agentes políticos em situações concretas. O poder de comunicação alavancado por núcleos de mídia especializada e pelas redes de interação social digital tanto pode legitimar uma ação política, quando bastante esclarecida, quanto torná-la insustentável, quando não

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defendida de modo adequado por seus patrocinadores. Com o aumento proporcional da “classe média mundial”, o contingente de pessoas com acesso à informação, inclusive sobre a política, também deverá aumentar muito em termos absolutos e relativos, aproximando um pouco mais a civilização ocidental do conceito de “aldeia global”, onde a comunicação e a interação social será muito mais intensa e veloz, o que poderá trazer desvantagens para o modus operandi de políticos com mentalidade arcaica.

O avanço das ciências e das tecnologias também poderá mudar o modo de se pensar políticas públicas em áreas clássicas da ação governamental como educação fundamental, saúde e segurança. Com tecnologias de saúde baseadas na informática, por exemplo, as pessoas poderão monitorar diariamente suas funções orgânicas e tomar algumas decisões sem necessidade de consulta ao médico tradicional em um hospital; e com a popularização do acesso a redes digitais de banda larga o conceito físico de “escola” também poderá desaparecer, superando-se o persistente gargalo de produtividade na prestação desse tipo de serviço no modo tradicional (a “doença de Baumol”). O controle físico presencial de apenados, nos casos de criminosos de menor risco para a sociedade, também poderá evoluir das penitenciárias tradicionais para sistemas inteligentes de monitoramento remoto digital, com menores custos.

Com essas perspectivas sociotécnicas evolutivas, podem-se prever níveis de complexidade crescente em políticas públicas, envolvendo tanto aspectos políticos de natureza valorativa como aspectos técnicos para os executivos no comando das organizações públicas. É interessante essa conclusão óbvia porque ela contraria o aparente retrocesso evolutivo aceito por Aberbach e Rockman (2006) em relação ao hibridismo de sua “Imagem IV” no relacionamento entre burocratas e políticos, na medida em que o processo de formulação de uma política pública, com tantos conceitos e valores políticos, sociais e tecnológicos envolvidos, e tantas relações entre esses conceitos e valores, não permitirá mais, nem de um ponto de vista epistemológico nem de um ponto de vista prático, uma separação muito clara de funções entre esses dois grupos da elite administrativa. Exemplos: (1) Quando parlamentares discutirem, doravante, o uso de células-tronco no tratamento de doenças, deverão eles iniciarem pelo conhecimento desse tipo de célula, de suas tecnologias de manipulação e implicações para o ser humano in abstracto, ou pelas opiniões e interesses de seus eleitores no assunto? (2) E os burocratas do serviço público envolvidos nessa questão de saúde, deverão conhecer apenas os rituais sagrados da Administração Pública ou também os detalhes tecnológicos, valores políticos e implicações sociais desse inovador e promissor recurso para tratamento de doenças?

Novo Modelo de GestãoObviamente, esse novo burocrata senior do serviço público não poderá atuar no vácuo político e

administrativo, sem um modelo de gestão que possa condicionar e suportar seu comportamento. O modelo de gestão precisa também atender alguns requisitos essenciais, tais como: (1) tornar os processos decisórios mais socialmente participativos e transparentes; (2) contribuir para que os processos de formulação (ou de planejamento) e execução de políticas e serviços públicos sejam mais efetivos, eficazes e eficientes; e (3) contribuir para o aprimoramento dos sistemas de controle interno e externo da Administração Pública. Com intuito de atender a esses requisitos, propõe-se um modelo de gestão baseado na macroestrutura de governo expresso na Figura 1. Esse modelo de macroestrutura das organizações públicas apresenta algumas características de sistemas políticos republicanos e parlamentaristas, numa síntese que busca somar suas vantagens e evitar algumas de suas desvantagens específicas.

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Como vantagens, podem-se mencionar uma maior coesão política em torno do Governo na medida em que não há, em princípio, limitações físicas para composição do ministério, como no modelo britânico de Gabinete (UK 2010a). Os “Ministros Temáticos” (Figura 1) terão sob sua responsabilidade, basicamente, tarefas de coordenação das ações de governo, com responsabilidade partilhada na formulação de políticas e no encaminhamento de processos decisórios em temas relevantes de políticas e serviços públicos. Esses temas são os que exigem, geralmente, atenções especiais dos governos, com escopo mais amplo e transversal que nos ministérios setoriais, tais como as relativas a: gestão estratégica dos objetivos e políticas de governo; controle de qualidade dos serviços públicos; formulação e avaliação de políticas de governo eletrônico; coordenação dos processos de integração e complementação entre as políticas e serviços sociais; formulação e avaliação de programas multimodais de infraestrutura; etc. Em termos de governabilidade do modelo, esses ministros atuarão como presidentes dos “Conselhos e Comitês Temáticos” (Figura 1), coordenando esses loci de participação social nas decisões de governo.

Os Conselhos e Comitês Temáticos se apoiarão, em questões mais burocráticas, nas secretarias técnicas da Casa Civil da Presidência da República, que atuarão em “temas-espelho” como gestão estratégica e coordenação de governo, além de temas clássicos de gestão governamental como planejamento e orçamento e as políticas temáticas setoriais. Essas secretarias deverão se ocupar, fundamentalmente, do fluxo, tratamento e apresentação da informação para tomada de decisão nos conselhos e comitês políticos.

Como nos países mais desenvolvidos, o número de ministérios, que terão funções mais de coordenação executiva que deliberativas, poderá ser mais reduzido, variando de quinze a vinte. A coalizão política necessária para a ação governamental estará assegurada não no nível executivo da Administração Pública, mas no nível de gestão acima, mais deliberativo, contribuindo o modelo para dificultar os jogos de interesses anti-republicanos que freqüentemente ocorrem mais no nível de execução de políticas e serviços públicos, quando os ministérios efetuam as transações de aquisições de bens e serviços no mercado e no terceiro setor e o dinheiro público muda de mãos.

A camada tática e operacional de execução de políticas e serviços públicos deverá se concentrar em organizações especializadas na produção ou na contratação de bens e serviços com regras e comportamentos mais próximos aos de mercado, envolvendo autarquias, fundações e empresas públicas, mais as empresas privadas e as organizações do terceiro setor. Essa será a camada de “chão-de-fábrica” do setor público, responsável pelo “fazer acontecer” e pelo contato mais direto com os cidadãos usuários dos serviços públicos.

Considerando-se sua missão institucional típica de unidades de produção, o modelo de gestão pressupõe perfis profissionais mais especializados em disciplinas técnicas nessas organizações, o que não significa que tais perfis não sejam necessários em algumas unidades dos ministérios, tais como nas áreas de especificação de bens e serviços para aquisição – a propósito, essa é uma falha conceitual grave observada em modelos de divisão do trabalho mais radicais nas estruturas de governo, onde os ministérios (ou departamentos) seriam apenas “entidades pensantes” e as autarquias, fundações e empresas públicas entidades operacionais executoras.

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Quando se pressupõe divisão do trabalho, é mais prudente pensar-se em perfis predominantes e não perfis únicos na burocracia pública, pois nas interfaces entre organizações de uma camada de gestão e outra sempre haverá a necessidade de perfis que falem as mesmas linguagens técnicas dos dois lados do balcão. Como seria possível uma organização elaborar projetos e especificar adequadamente bens e serviços para aquisição se ela não conhecer, com certa profundidade, metodologias de elaboração e gerenciamento de projetos e detalhes dos mercados e produtos a serem adquiridos? Esperar que uma organização pública possa elaborar e avaliar projetos de qualidade, realizar boas aquisições e gerenciar contratos adequadamente sem um razoável conhecimento dos mercados, seus atores e produtos é a receita certa para o desastre nessa função10, motivo pelo qual o modelo de gestão proposto pressupõe a introdução desse tipo de perfil técnico nos ministérios em maior número, para atuarem nas interfaces de transações com outras organizações públicas e organizações parceiras no mercado e no terceiro setor.

Com perspectivas de uma reforma essencial na estrutura do aparelho de Estado, a questão das contratações públicas poderia ser ainda mais aprimorada a partir da criação de agências especializadas no estilo norte-americano da Agência de Serviços Gerais (General Service Administration – GSA), com alto nível de profissionalização e conhecimento em gestão de compras governamentais no sentido amplo. Essa medida poderia reverter o preocupante estado em que se encontra essa importante função de Estado em alguns países sul-americanos como o Brasil.

Outro aspecto institucional desse modelo é a inclusão cada vez mais freqüente das comissões do Congresso Nacional no jogo da democracia, a serviço da democracia. Essas comissões, que geralmente contam com apoio técnico muito especializado, uma característica do modelo de Congresso norte-americano, poderão auxiliar na fiscalização das entidades operadoras vinculadas, administrativamente, aos ministérios, inclusive as agências reguladoras, assim como os parceiros do mercado e do terceiro setor, demandando para tanto papéis institucionais mais específicos nesse sentido.

É relevante ressaltar-se, também, que a construção dos loci de participação social previstos no modelo pode partir dos atuais conselhos setoriais existentes em alguns países, mas esses conselhos preexistentes precisam de um modelo com estruturas de apoio burocrático mais profissional, mais efetivo, com assessoria técnica especializada quase em tempo integral para que possam, de fato, exercer suas funções e gerar os resultados esperados nos processos decisórios. Com algumas pesquisas preliminares realizadas no Brasil sobre esses conselhos percebe-se, na maioria dos casos observados, certa letargia e falta de capacidade operacional para que a participação social se torne mais efetiva nos processos decisórios, e isso ocorre não por falta de empoderamento institucional concedido pelos governos, mas por falta de capacidade técnica operativa necessária para que os anseios sociais representados nesses conselhos reconheçam as “linguagens” do setor público – tal como a orçamentária, financeira e de controle – e se transformem em reais instrumentos democráticos de governança participativa. Os casos mais críticos desses conselhos parecem concentrar-se em algumas áreas de políticas sociais e nas empresas públicas (nestas, o conhecimento de negócio dos conselheiros muitas vezes é insuficiente, resultando que o nível de controle social dessas organizações tende a ser nulo).

10 Com esse requisito, o burocrata profissional do serviço público precisa ser um bom contratador, especialmente em países em desenvolvimento onde essa função pública é mais vulnerável ao espólio político.

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Obviamente, esse novo modelo de gestão governamental também deve conter um modelo estruturante de gestão da informação, como ilustrado na Figura 2. Esse modelo de arquitetura da informação ministerial será centrado nos processos de trabalho, que ao serem operados deverão gerar, automaticamente, quase todas as informações necessárias para a gestão ministerial em todos os níveis, desde a função básica de gestão de atendimento ao público, passando pelo recursivo processo de gestão dos processos e pela gestão interna em nível diretivo, até o topo da cadeia de comando da organização, na direção política e no “Conselho de Cidadãos”. Os órgãos de controle também deverão se beneficiar dessa arquitetura na medida em que poderão ter acesso a todos os dados das transações executadas pelos gestores ministeriais quase em tempo real.

As tecnologias dessa “espinha dorsal” de fontes e usos de informação nos modernos ministérios deverão suportar a automação de todos os processos, tanto de gestão interna (planejamento, orçamento, compras, recursos humanos, serviços de TIC, serviços gerais, controle, etc) como de gestão externa (execução de políticas e serviços públicos), de modo a se contruir um ambiente tecnológico com informações relevantes e prontamente disponíveis para todos os gestores, em todos os níveis, além de informações para o controle social pelo público em geral (com Web portais de serviços integrados de espectro amplo, blogs e integração com redes sociais em meio eletrônico).

Conforme a explanação desenvolvida em Capuano (2008), o esquema pictórico da Figura 2 representa os blocos ontológicos de construção de estruturas em “lego”, com processos e sistemas de informação digital de suporte tecnológico a uma moderna organização pública baseada na informação e no conhecimento inspirada no modelo de Drucker (1994), onde as extensões das superfícies de contato entre os blocos indicam as interfaces conversacionais predominantes entre as unidades estruturais dessas organizações. Ou seja, essas interfaces mostram os pontos de interação entre grupos de atores nas organizações e os acessos necessários aos respectivos sistemas de informação de suporte aos seus processos e atividades no dia-a-dia.

Esse tipo de organização deve ser analisado, para melhor compreensão, no sentido de baixo para cima, iniciando-se pela gestão do atendimento ao público. Com objetivos primordiais de atender à sua clientela com qualidade e produtividade, perfis e tecnologias específicas para essa função devem ser alocadas nos ministérios, operando de acordo com processos estruturados, integrados e automatizados, como os serviços de atendimento remoto (por correio eletrônico e telefone, principalmente). As tecnologias de Web Portal (WP), Gestão de Relacionamento com Clientes (CRM) e Gestão da Cadeia de Suprimentos (SCM)11 deverão suportar esse ambiente de informação governamental – os atuais sistemas de Ouvidoria atendem, em parte, às necessidades de relacionamento com o público.

Os atuais sistemas eletrônicos de compras governamentais também são úteis, mas representam apenas um dos vários componentes de modernos sistemas de gestão da cadeia de suprimentos, que necessitam, primordialmente, de sistemas de monitoramento do mercado e de cadastro prévio e pormenorizado de produtos e fornecedores, sem o que as licitações tendem a se tornar “roletas russas” em processos de aquisições mais complexos.

11 CRM - Custom Relationship Management; SCM – Supply Chain Management.

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O bloco de gestão de processos de negócio representa o coração pulsante desse modelo de organização, estruturando, com recursos tecnológicos de automação tais como softwares classe ECM12, toda a atividade voltada para os assuntos administrativos internos, para o relacionamento com seus colaboradores e parceiros externos, e todo processo de produção de bens e serviços finalísticos para consumo de sua clientela. É importante, para se compreender a missão desse bloco, o conceito de law

enforcement, que poderia ser interpretado como “aplicação das normas baseada em sistemas de informação eletrônicos”.

O mais importante é que esse conceito pressupõe que nenhum gestor público poderá executar nenhuma transação em seus processos de trabalho sem o uso dos respectivos sistemas eletrônicos de informação, tendo-se como vantagens a tempestiva disponibilização de dados indispensáveis para a transparência e controle da gestão e a possibilidade de aprimoramento da gestão com base em indicadores factuais resultantes da execução dos processos – essa massa de dados gerada pela execução dos processos poderá levar a gestão a níveis técnicos de excelência nunca antes experimentados, especialmente nos países em desenvolvimento que ainda não assimilaram uma cultura de gestão da informação.

Como gestão interna entende-se as funções clássicas de provimento de meios para que as demais unidades do ministério possam executar suas funções específicas. Como exemplos, têm-se as clássicas áreas de gestão orçamentária e financeira, de gestão de pessoas e de compras e serviços gerais, além da própria área de gestão de recursos tecnológicos. Essas unidades também deverão ter seus processos de atendimento ao público interno automatizadas, de modo a tornar a gestão interna mais uma unidade estilo self service para os usuários. As tecnologias que compõem a estrutura vertical de integração dessas unidades pelos fluxos de informação e serviços são as de Planejamento de Recursos Corporativos (ERP)13 e de Gestão de Conteúdos Corporativos (ECM).

As unidades de apoio à direção política do ministério, como as de assessoria e controle, poderão se beneficiar do amplo e ágil acesso à enorme massa de dados gerada pelos sistemas de informações de processos transacionais (OLTP) das camadas mais táticas e operacionais da organização. Essas tecnologias são as de “Armazém de Dados” (DW)14, “Inteligência de Negócios” (BI), “Gestão do Capital Intelectual” (GCI) e “Gestão de Ativos Intangíveis” (GAI), que suportam processos de recuperação, tratamento e representação da informação em formatos mais gerenciais úteis para gestão de recursos. Como bases de dados para gestão do capital intelectual, por exemplo, pode-se desenvolver sistemas de “bancos de talentos”, um recurso imprescindível nas áreas de gestão de pessoas em organizações modernas.

E para gestão de ativos intangíveis pode-se desenvolver sistemas de captura e disponibilização de informação pública sobre os conceitos atribuídos pelo público às instituições ministeriais, talvez por meio de observatórios de desempenho de serviços públicos – a “marca” de um ministério poderá ser o conceito de seus clientes.

12 ECM: Enterprise Content Management. Esses softwares integram funções de automação de processos, gestão de documentos eletrônicos e colaboração, entre outras.13 ERP – Enterprise Resource Planning.14

OLTP – On Line Transaction Process; DW – Data Warehouse.

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Novo Executivo GovernamentalA era da informação digital contemporânea exige um novo perfil de executivo governamental,

seja ele um burocrata de carreira ou um “executivo político”, utilizando o termo empregado por Aberbach, Putnam e Rockman (1981). Quando se compreende o argumento central de Bobbio (1995) quanto à essência da convivência democrática com participação social, percebe-se que a questão da informação é central nesse discurso, necessitando de soluções adequadas. A informação é o elemento epistemológico que une, de um ponto de vista lógico e lingüístico, todos os agentes envolvidos nas questões de governo e, de modo ainda mais candente, nas questões de Estado, sejam eles burocratas, políticos ou cidadãos interessados.

Alguns cientistas atribuem à informação o papel de “princípio de organização das coisas”, constituindo o nexo conceitual entre os seres e as coisas do mundo construído pela inteligência humana. É a informação, portanto, o principal recurso a ser utilizado pelos altos burocratas de governos democráticos para navegar nos limiares entre a politica de valores e interesses e a techne mais factual e estruturante.

E se a informação é um elemento central no relacionamento dialógico entre os agentes públicos, e entre estes e o resto da sociedade numa democracia do Século XXI, o problema da linguagem surge como conseqüência. Burocratas e executivos políticos situados nas camadas limítrofes entre a política e a técnica precisam, portanto, desenvolver “interlínguas”, ou linguagens de compreensão comum entre os diversos públicos atuantes na cena dos ministérios – alguns cientistas sociais sugerem que os indicadores podem ser essa linguagem padrão de intercomunicação.

Com isso em mente, resta estabelecer-se em que dimensões cognitivas e respectivos níveis de gestão governamental o uso da linguagem e da informação ocorrerá num modelo de convivência entre políticos e burocratas senior. É importante observar-se que algum critério de “territorialidade” ainda poderá ser útil na divisão de trabalho nos ministérios e nos órgãos centrais de coordenação de governo, como no modelo de composição híbrida proposto na Figura 3 (BC: Burocrata de Carreira; EP: Executivo Político; MP: Membro de Partido Político).

Esse novo executivo híbrido deverá atuar como secretário, chefe de gabinete, secretário executivo ou diretor, dele exigindo-se, primordialmente, conhecimento temático de seu ministério, requisito complementado por um certo compromisso político, especialmente nos casos de ministros e secretários de políticas públicas setoriais.

Os chefes de gabinete precisam conhecer os temas do ministério e terem alguma familiaridade com seus processos de gestão, além, obviamente, de afinidade com o ministro. O secretário executivo e sua equipe de diretores, considerando sua missão de provedores de recursos de gestão interna, devem, primordialmente, conhecer aquilo que se denomina “máquina administrativa” do aparelho de Estado, atributo que se aplica, em geral, aos burocratas de carreira no serviço público. Obviamente, critérios relevantes em processos seletivos de burocratas senior ou executivos políticos para as funções de secretário executivo e diretores de gestão interna são, além do conhecimento temático e a experiência burocrática, o desempenho anterior observado nesse tipo de função ou em funções similares, além de algum nível de compromisso político com o próprio ministro e sua equipe de colaboradores mais próximos.

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A preponderância de temas técnicos bastante estruturados, cognitivamente, nos níveis inferiores de gestão ministerial, como nos casos dos processos de gestão interna, torna os burocratas de carreira os candidatos ideais para exercerem esse tipo de função gerencial. Os valores técnicos, nesses casos, devem impor-se ante os valores políticos, sob pena de solapamento de todo o sistema de mérito, da eficácia e da eficiência administrativa e da própria noção de democracia na Administração Pública. Os novos burocratas nessas funções não devem ser muito diferentes, nas dimensões éticas, de seus antecessores históricos, pautando-se tanto pelos princípios legais que sustentam o sistema democrático do país estatuídos na Constituição e na legislação ordinária como por uma noção gerencial mais contemporânea no serviço público de “fazer mais com menos”. O empoderamento normativo desses profissionais, no exercício de suas funções, também é importante, sob pena de rendição da techne à politica nos níveis mais básicos da Administração Pública, naquilo em que a techne é a única garantia do erário contra desperdícios e interesses pouco republicanos, culminando no retorno completo à barbárie do sistema de espólio total.

Quanto aos secretários e diretores de políticas setoriais, espera-se deles não a isenção política (a tal neutralidade burocrática weberiana), mas desempenho superior como executivos públicos que deverão ser, no sentido de “fazerem acontecer” em suas respectivas áreas e funções de governo, conforme as normas vigentes. O que não se deve confundir, neste caso, com capacidade de articulação política no sentido partidário, como se observa, comumente, nas democracias de países emergentes – o sentido do termo “desempenho”, portanto, não deve ser diferente do sentido adotado para se qualificar um executivo no mercado, que articula, de modo efetivo, os recursos à sua disposição para que a organização possa alcançar seus objetivos e metas.

A vantagem desse modelo é que os partidos políticos, mesmo num sistema de espólio dos cargos de alta gestão, terão que arregimentar para suas hostes simpatizantes que reúnam, como atributos importantes, não apenas gosto pelas suas causas políticas, mas também capacidade de gestão e ética profissional acima da média.

Predominância de Perfis por Áreas de GovernoEm geral, o que se observa quanto aos atuais perfis e sua presença na alta gestão dos ministérios

em países como o Brasil é indicado na Figura 4, tendo-se os ministérios das áreas especiais e econômicas gestores mais técnicos e os ministérios das áreas sociais de governos executivos políticos. Essa tendência, na verdade, tem origem milenar e é de difícil mudança, concentrando-se normalmente as atenções do príncipe mais na gestão de seus recursos vitais (nas áreas de finanças e segurança, principalmente) do que na gestão dos interesses difusos dos súditos (demandas sociais).

Então, como se poderia elaborar um modelo mais avançado de gestão governamental onde as áreas sociais não representassem o “primo pobre” em termos de recursos de gestão? Como os ministérios da área social tratam de interesses políticos muito específicos, de modo diferente dos ministérios das áreas especial e econômica, obviamente uma solução que prime pela democracia participativa não poderá prescindir da representação política de seus dirigentes senior, restando-se, portanto, a solução via processo seletivo de executivos políticos com capacidade técnica comprovada para apoiar os dirigentes políticos. O termo “comprovada” passa pela idéia de se aproveitar as experiências anteriores de gestão em políticas sociais dos candidatos a esse tipo de função em outras instâncias de governo, como integrantes de uma grande rede de gestores sociais num país e, em última análise, em todo o mundo.

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Com o aproveitamento da experiência compartilhada nessas redes, os altos gestores (executivos políticos) também poderiam contribuir para a ampliação das bases empíricas de conhecimento técnico nas ciências sociais, suprindo as lacunas da academia.

As necessidades de perfis mais completos, abrangendo conhecimento acadêmico e experiência técnico-burocrática e política nas áreas intermediárias de gestão nos ministérios, sempre poderão, também, serem supridas por burocratas mais qualificados, como nos modelos dos serviços civis dos países parlamentaristas europeus. A maioria dos burocratas senior latino-americanos, tal como os Beamte (funcionários públicos) alemães, têm apetência pela atividade política, ainda que, na maioria das vezes, atuem nos bastidores, constituindo-se, na prática, executivos políticos com extenso currículo na burocracia.

Competências EsperadasOs altos gestores governamentais do Século XXI, sejam burocratas ou executivos políticos,

precisarão apresentar competências para lidar, basicamente, em quatro dimensões nas organizações públicas: (1) as principais teorias que embasam o estado-da-arte na ciência e na tecnologia em sua área temática; (2) os compromissos temáticos assumidos pelos governos perante a sociedade; (3) os meios que o aparelho de Estado dispõe para cumprimento desses compromissos; e (4) a evolução sociotécnica e seus impactos sobre a relação entre governo e sociedade.

As competências da primeira dimensão poderão ser supridas pelos cursos acadêmicos; as da segunda pelo envolvimento do postulante com o tema no dia-a-dia; as da terceira com certa experiência de gestão no setor público; e as da quarta dimensão com algo que se denomina “cultura geral”, que se desenvolve a partir da curiosidade natural sobre as coisas do mundo, mas tendo como objeto de conhecimento um misto de techne e politica. Grosso modo, poderíamos denominar as competências da primeira dimensão como “conhecimento técnico”, as da segunda como “sensibilidade política”, e as da terceira como “experiência em gestão governamental”, que somadas à “cultura geral” tornam um currículo executivo bastante consistente para o setor público.

Os burocratas constituem uma elite com adequada competência acadêmica decorrente do próprio processo seletivo baseado nesse tipo de mérito, portanto apresentam o conhecimento técnico mínimo inerente às competências da primeira dimensão. Quanto aos executivos políticos, não se pode afirmar isso sem conhecimento curricular dos postulantes, que podem ter conhecimentos técnicos até superiores, em alguns casos, aos dos burocratas.

Em termos de sensibilidade política, a balança pende, naturalmente, em favor dos políticos profissionais, mas executivos políticos que atuam nos mercados de trabalho do setor público podem se especializar em determinados temas de políticas e serviços públicos e se tornarem, desse modo, profundos conhecedores das implicações políticas inerentes aos compromissos específicos de governo em suas áreas de atuação. Quanto aos burocratas, é comum certa “especialização” setorial no exercício de suas funções nas carreiras, o que também pode culminar no desenvolvimento de uma sensibilidade política que os tornem simpáticos a determinados governos pelos seus conteúdos programáticos e abordagens de ação, como nos casos dos altos gestores governamentais nos EUA e na Alemanha.

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Quanto à experiência em gestão governamental, trata-se de uma dimensão de competências que compromete a qualidade dos postulantes do mercado sem experiência no setor público. Como exemplo, a experiência britânica de recrutamento de executivos de mercado para altos postos no Civil Service

tem mostrado que certas frustrações de desempenho observadas nesses candidatos, ou mesmo certas frustrações pessoais desses executivos que os levam a abandonar o Civil Service, são devidas à natureza muito distinta entre os ambientes e comportamentos típicos da burocracia pública e da gestão empresarial.

A percepção da cultura do setor público como excessiva em regras de controle e com um ritmo vital mais lento, em comparação com a cultura empresarial, com regras de gestão mais flexíveis e ritmos mais dinâmicos, muitas vezes tem desencorajado os executivos recrutados no mercado. Com isso, resta evidente que o postulante de mercado a funções da alta gestão governamental precisará passar por uma sessão de “imersão” formal no ambiente e na cultura do setor público antes de iniciar suas atividades, talvez em escolas de governo, onde ele possa conhecer as regras e ritmos da Administração Pública na prática e aprender que a distância entre o sonho político e a realidade das organizações públicas encarregadas de concretizá-lo muitas vezes se mede em anos-luz.

Considerando a centralidade e a abrangência dos processos de gestão interna na estrutura dos ministérios, os candidatos a secretários executivos também deverão conhecer, pelo menos, os conceitos de gestão da informação governamental e das TIC inerentes ao modelo de atores e fluxos da Figura 2. Experiência recente no Ministério da Educação no Brasil demonstrou que um secretário executivo com esse tipo de visão sociotécnica pode apresentar resultados de gestão surpreendentemente positivos ao cabo de alguns anos de investimentos em projetos de modernização corporativa com base nas TIC.

Em relação à cultura geral como item de competência, propõe-se que os postulantes sejam submetidos a sabatinas ministradas por bancas de pessoas também com bastante cultura geral, de modo que se possa avaliar o estoque e a qualidade dos conhecimentos gerais e a capacidade de aprendizado e inovação sociotécnica (o “pensar fora da caixa”) do postulante, seja ele um burocrata de carreira ou um executivo político. Essas bancas de sabatinas poderiam ser coordenadas pelos comitês de governo encabeçados por ministros temáticos, de acordo com algumas normas de avaliação predefinidas.

Os postulantes precisariam mostrar, nessas sabatinas, sua capacidade de articular consistentemente ideias promissoras, pessoas e incentivos, organizações potencialmente parceiras, processos de trabalho e recursos tecnológicos para alcançar os objetivos e metas de governo colimados pelas políticas e serviços públicos.

É importante também, para que um novo modelo de gestão se torne efetivo, que ele seja inserido em normas administrativas transparentes e auditáveis pelos órgãos de controle e avaliados pela própria sociedade a partir das práticas de governo. Esse imperativo de formalismo é reivindicado, por exemplo, por Marini (MILENA, 2011), de modo análogo às normas de gestão fiscal responsável, como a Lei de Responsabilidade Fiscal no Brasil.

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CONCLUSÕESCerta vez um filósofo argumentou que existe uma faculdade, que ele chama de habilidade, cuja

natureza consiste no poder de praticar as ações que conduzem ao fim visado e atingi-lo. E que se o fim é nobre, a habilidade será merecedora de louvor, mas se for mau, a habilidade será meramente astúcia. Os cidadãos, na democracia que se busca para o Século XXI, enfrentam o desafio de identificar, nas ações dos agentes públicos (burocratas senior e executivos políticos, principalmente), a habilidade que pode conduzir ao êxito dos investimentos públicos e a astúcia que conduz a práticas não republicanas. E isso será possível somente se os cidadãos tiverem o direito e os meios necessários para participarem mais ativamente das decisões e ações de governo e de controlar e avaliar os resultados – algo mais próximo da visão de democracia participativa de Bobbio (1995), que poderia ser sintetizada no conceito de se “governar com os cidadãos” e não somente para os cidadãos.

Com essas premissas, esse novo sistema político necessitará de mudanças essenciais e profundas, algo que poderá acontecer quando as novas gerações nascidas na cultura das redes sociais digitais e as parcelas sociais recentemente incluídas no mercado começarem a impor sua vontade nas urnas e cobrar resultados dos governos pela via indireta da representação política, pela pressão popular reverberada nos meios de comunicação ou por instrumentos de democracia direta. Essas mudanças deverão tornar os cidadãos senhores de efetivas escolhas políticas e não somente de opiniões eleitorais.

Entretanto, essas transformações podem levar décadas para se tornarem efetivas face aos arcaicos sistemas políticos vigentes e, de um ponto de vista mais pragmático, os imperativos da eficiência econômica nos governos exigem respostas de mais curto prazo, sob pena de se inviabilizar investimentos sociais indispensáveis para a estabilidade democrática. A inércia, a incompetência, a “doença de Baumol” e as práticas não republicanas precisam ser combatidas, nos modelos de gestão governamentais das democracias contemporâneas, com instrumentos de governança adequados, talvez com um sistema misto de gestão buscando-se uma composição entre os valores mais nobres da burocracia estatal clássica com o dinamismo das práticas de mercado, como alguns países europeus estão experimentando. O problema da alta gerência pública, que é central neste cenário, precisa de soluções mais ousadas e inteligentes que considerem tanto a natureza complexa das interfaces de relacionamento institucional entre a techne e a politica como a necessidade premente dos governos apresentarem resultados de desenvolvimento.

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RESENHA BIOGRÁFICAO autor é Doutor em Ciência da Informação pela Universidade de Brasília e membro da carreira

de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão no Brasil desde 1990. Exerce, atualmente, a função de Assessor da Diretoria Executiva do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), em Brasília (DF). E-mail: [email protected]; telefone: +55 (61) 3424-9652.

QUADROS, TABELAS E GRÁFICOS

Tabela 1. Tempo Médio de Gestão Ministerial no Brasil

Figura 1. Modelo Proposto de Macroestrutura Governamental

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Figura 2. Organização Pública Fundamentada na Informação e no Conhecimento

Figura 3. Modelo de Composição Híbrida

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Figura 4. Perfis Predominantes na Alta Gestão Pública

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