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2 O que é Filosofia? Não me sentiria digno de viver se não me sentisse digno de filosofar e, se não filosofasse, não me saberia tão vivo Razao Inadequada

Razão inadequada Nº2

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O que é Filosofi a?

Não me sentiria digno de viver se não me

sentisse digno de fi losofar e, se não

fi losofasse, não me saberia tão vivo

Raza

o In

adeq

uada

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Rafael Lauro (textos, diagramação)Rafael Trindade (textos, revisão)Amauri Ferreira (texto)Shin KwangHo (capa)Bóris Moreno (ilustrações)Laura Mello (ilustrações)Fabiano Alves (ilustrações)Gabriella Brito (ilustração)

Sergio PoggioAdriana VasconcellosMarcelo Stehlick

Expediente desta ediçao:

Agradecimentos:

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Editorial

Dois anos e já queremos dizer aquilo que somos e não somos. Sim, é ousado, mas é preciso. Ousadia é para nós uma prerrogativa, tal como a prudência. Se nos defi nimos como uma Razão Inadequada foi para contrapor-se, mas se dissemos “Não” é porque antes gritamos “Sim” para nossas ideias. Ouvimos o corpo, o barulho da cidade, escutamos o ritmo das frases de fi lósofos que admiramos e decidimos dar

nossa pequena contribuição ao cenário da fi losofi a no Brasil e no confuso mundo da internet.

Nos acusam de superfi ciais, e nós agradecemos. Nos pedem que sejamos profundos, mas nós mal atingimos a superfície de nós mesmos. Nos chamam de loucos, ridículos, até mesmo utópicos, mas eles não sabem que estes são nossos momentos mais lúcidos. Sabemos que é impossível viver mundos utópicos, por isso lutamos diariamente para viver o mundo real. Isto nos torna muito melhores e muito piores que Deus. Fizemos da liberdade um fi m e um meio, mas sentimos que ainda nem começamos.

Se publicamos esta revista foi simplesmente para ampliar encontros, quebrar imagens, criar e fazer fl uxos passarem. Nosso território é online, mas já extrapolamos e caímos em livrarias, palestras e outros eventos. Nosso teritórios criados dia a dia, quebram nossos limites, expandem nossas fronteiras. A velocidade é necessária neste mundo paranóico, mas seguimos de forma a deixar para trás tudo de pesado. Cada letra, cada palavra é uma nova batalha. Hoje, tudo que nasce tem vida curta, nosso blog nasceu para consumir-se e viver perto do fogo. Se vivemos é porque nos reinventamos continuamente.

Neste ponto temos que admitir que nos preocupamos em devir-fi lósofos. Sim, nossas partículas aproximam-se cada vez mais das vibrações daqueles que fi losofaram antes de nós. Mas faremos isso de nosso jeito, e criaremos nosso próprio modo de fi losofar. Esta revista, cuja origem se deu numa série feita para o blog, aborda a questão O que é fi losofi a?, tanto do nosso próprio ponto de vista quanto dos fi lósofos com os quais temos afi nidade.

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Indice

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O que e Filosofia?Rafael Lauro e Rafael Trindade

Há filosofias que desejam conhecer: a Verdade torna-se o fundamento de qualquer possibilidade de triunfo. Há filósofos que desejam refletir: o

espelho é seu instrumento de trabalho. Alguns preferem discutir: as academias são seus habitats naturais. Outros querem comunicar: a objetividade racional é seu princípio. Nós queremos mais, queremos criar: nem falso nem verdadeiro, mas o que é interessante; trocamos o espelho pela ponte para não perder o horizonte; deixamos de lado as querelas universitárias para nos concentrar na atualidade dos problemas; enfrentamos a razão instituída apostando em outra racionalidade – deslocamos o eixo por sob o qual as ideais se adequam às normas.

A filosofia está mais perto da loucura do poeta que do método científico: filosofar com cheiros, toques, gostos… devires. Nossa filosofia começa com o riso, o humor é a primeira das afirmações. Se antes de qualquer embate nós rimos, é porque os problemas nos agradam, o conflito se faz necessário e a colisão inevitável. Não se faz nada sem antes rir um pouco, e, depois, rir muito. A incapacidade ao riso empurra a filosofia a uma triste sobriedade. A seriedade é própria aos que prezam pelas coisas pesadas, que querem ir ao fundo, submergir, explorar e sentir a gravidade. Nosso caminho é outro: dançamos como quem resiste ao peso, lançamos-nos ao abismo como quem pode voar.

Se nos apontam: “estão arriscando a pele em algo que de nada mais serve do que adornos poéticos”, respondemos com Ulpiano: “ou a filosofia é o risco superior da vida ou não serve para nada”. Há de se assumir de saída que nós não possuímos o sentido, nós o sentimos de maneira muito passageira. Tudo se faz em tendências, fluxos, movimentos, setas, vetores, direções; sempre variáveis, sempre variantes, sempre variações. O filósofo está para a filosofia assim como o náufrago está para o mar. Pensar o mundo é ter a certeza de estar enfrentando um Golias, mas já não somos os primeiros a tentar.

Não há conceito que não se transforme, não há virgem imaculada, não há altar para as ideias, não há sagrado. Não há, portanto, uma razão para não filosofar. Expulsamos o medo da filosofia, deixe que ele frequente apenas os terrenos em que ainda somos fracos. Muito antes do medo vêm alegria e tristeza: dois lados de uma mesma moeda, cujo valor é inestimável à filosofia.

Movimentar, acelerar, sobrevoar, girar, eis os requisitos de um pensamento que se instaura no devir. Engolimos e vomitamos conceitos, ruminamos pensamentos até que eles se tornem perigosos novamente. A filosofia é uma maneira de lidar com as forças que nos querem rasgar por dentro, ela é uma máquina de tornar ativo o que é passivo. Cansamos de nos sentar à sombra, cansamos de ver o rio correr: queremos ser o rio.

Deixamos a burocracia da filosofia para trás, já está na hora de filosofar com coragem. Não somos especialistas, deixamos este assento vago aos entediantes. Sem Deus nem Estado, a filosofia se tornou para nós um parricídio, um desafio, uma fuga inesperada do presídio: as sirenes soam alto, por todos os lados há a tentativa de capturar o pensamento, mas onde houver um pouco de criação haverá também uma linha de fuga. Não fazemos reféns, mas deixamos vítimas. A filosofia nos trouxe a revolta, claro, e ela é necessária, mas talvez tão necessária quanto os momentos de descanso, de silêncio e espanto.

Nos atiramos no precipício para voltar diferentes; não queremos mais seguir os passos daqueles que nos levam ao abismo. Cada dia, cada vez mais, nos tornamos artesãos de nós mesmos. Escavar, abrir as feridas, cuidar

de si, é uma tarefa dolorosa, mas certamente necessária. Olhar para as limitações que nos são impostas, para as fraquezas que nos habitam, para as doenças de nosso tempo e buscar soluções – não há tanta distância assim entre psicologia e filosofia. A parte dolorosa é ver as barras que nos prendem, tentar mudar de lugar e ver as correntes que limitam nossos movimentos. Mas é bom saber que estamos por nossa própria conta e risco, que o mais pesado dos fardos é também nossa maior chance de libertação. Se fizemos o diagnóstico em preto e branco, foi para afirmar uma prática com todas as cores!

Uma prerrogativa, sempre atual, para renovar uma razão anciã: unir mente e corpo. Ouvir os instintos,

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6 Ilustração por Boris Moreno

virar os ouvidos para dentro e escutar os gritos de um corpo amansado, pacificado, docilizado. Se desde sempre a sensibilidade foi vista como perigosa, agora ela é a base imanente de toda filosofia; se a razão se tornou opressora, agora ela pode ser artifício, astúcia criativa. Talvez nossa razão seja inadequada porque ela é também afetiva! Ela não tenta se sobrepor ao corpo. Invertemos conselhos, desfizemos planos, corroemos cartilhas. Nossos afetos tornaram-se razão! Novos encontros, fim dos esteriótipos. Queremos uma razão que multiplique, que mergulhe no caos de peito aberto. Um razão explosiva que tenha na vida o seu combustível e no pensamento o seu comburente. Somos a Razão Inadequada, as razões inadequadas, e se pudermos ser mais, seremos, se pudermos multiplicar, melhor ainda!

A filosofia é mais do que um modo de vida, ela é a vida se apresentando como pensamento. Quando uma ideia nos atravessa, queremos concedê-la o mínimo de consistência. O desejo do filósofo é precisamente o de tomar a realidade por um movimento de pensar acontecimentos. Pensar torna-se uma maneira de intensificar o curso da vida, deixar o caminho mais bonito. Não há fracasso maior para a filosofia do que afastar-se da existência por considerá-la perigosa demais. Separar o pensamento da vida é esvanecer o tempo e esvaziar o espaço, trocar o intenso pelo extenso, o singular pelo mensurável, o alegre pelo triste.

Estamos à espreita, este é nosso modo de filosofar. O predador com o olhar fixo em sua presa um segundo antes do confronto. A filosofia é este instante de concentração total, um momento onde todo o resto se apaga. O objetivo é ter sempre um olhar diferente por onde se passa, cruzando fronteiras, ultrapassando a nós mesmos. Nos tornamos complexos, isto é, temos cada vez mais dobras; isto nos permite agir de modos diferentes, afetar o mundo e ser afetado por ele de múltiplas maneiras. Não existe sensibilidade inadequada,

porque qualquer sensibilidade é válida. O vento no rosto, a água do rio nos pés, isto é filosofia? Talvez dependa de sua capacidade de experimentar. Quanto mais o céu fica azul, mais filosofia. Quanto mais o mar se agita, mais filosofia. Quanto mais anoitece, mais filosofia. E que dirá uma filosofia da aurora? Filosofar é ser capaz de criar e habitar estes momentos ativamente. É a potência de estendê-los no espaço e no tempo, para dentro e para fora. Ir fundo no momento, tirar tudo o que se pode; alterar as densidades, examinar as espessuras, contestar o peso, modificar a atmosfera, averiguar profundidades, abrir horizontes: é tudo matéria de filosofia.A filosofia se conjuga em um só tempo, ela deve ser capaz de nos fazer estar presentes no instante máximo; que não nos percamos em tolices e superstições. Ser capaz de habitar um instante de perfeição, isto é filosofar no presente. Este é o pensamento que nos permite experimentar momentos de eternidade. A grandeza de uma filosofia está na sua capacidade de nos despertar novas intensidades. Não basta estar presente, é preciso que nossas forças se atualizem, que nós estejamos inteiros entregues àquilo que nos acontece. Não nos sentiríamos dignos de viver, se não nos sentíssemos dignos para filosofar e, se não filosofássemos, não nos saberíamos tão vivos •

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A POTENCIA DO CONCEITORafael Lauro

Não há pergunta mais exigente para uma fi losofi a da diferença do que esta: “que sou eu?”. Em 1991, Gilles Deleuze escreveu, em conjunto com

Félix Guattari, seu último livro. Um livro de velhice, um livro despojado de estilo, preocupado em falar concretamente. “Mas o que é isso que eu fi z toda a minha vida?”, pergunta ele. O que é a Filosofi a? é o livro em que Deleuze pretende, tal qual máquina, combinar todas as suas peças “para enviar ao porvir um traço que atravesse as eras…”. Dada a grandeza da questão, não pretendo senão esboçar uma interpretação da resposta de Deleuze, uma leitura sustentada por quatro pilares: singularidade, multiplicidade, alteridade e mobilidade.O que é um fi lósofo? É um conceito em potência, diz Deleuze. E a fi losofi a? É a disciplina que consiste em

criar conceitos. O fi lósofo é o artesão a quem compete a criação dos conceitos e a fi losofi a é a sua profi ssão, seu métier. Esta é, em suma, a resposta deleuziana: “a questão da fi losofi a é o ponto singular onde o conceito e a criação se remetem um ao outro”. Esta conclusão não é nada mais que um princípio, uma faísca que faz acender uma série de outras questões. Que é um conceito? O que ele supõe? De que tipo de criação falamos aqui? Qual é o seu lugar?

O conceito é questão de articulação; é um complexo de componentes representados por um nome. Todo conceito remete a um problema e só se criam conceitos em função de problemas. Saber colocar-se problemas, eis um sinal de maturidade. Ser fi lósofo é também trabalho de papel, cola e tesoura: é preciso saber cortar, ligar,

Não há conquista, há ocupação. O conceito toma de assalto um território

e o povoa de questões8 razaoinadequada.com

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desconectar ideias nos conceitos para fazê-los responder aos problemas. Conceituar é “conectar componentes interiores até a saturação ou o fechamento”, de tal modo que mudar suas conexões, mudaria sua natureza.

Toda criação é singular e o conceito, como criação propriamente filosófica, é sempre uma singularidade. O primeiro princípio da filosofia é que os Universais não explicam nada, eles próprios devem ser explicados” A oposição entre singularidade e universalidade é então a primeira característica da noção deleuziana de filosofia. Onde há apenas contemplação, reflexão e comunicação, não há filosofia, pois essas faculdades são máquinas de construir Universais. O fato de ter de ser criado impede ao conceito a universalidade. “Os conceitos não nos esperam inteiramente feitos. Não há céu para os conceitos”. Resta saber: que unidade resta à filosofia? Pouca ou nenhuma.

O conceito tem singularidade, não unidade. Ele é único apenas na medida em que é singular e esta singularidade, que lhe é própria, o faz ser conceito apenas no que concerne sua aplicação particular, na sua relação com um problema. Mas onde fica então a Verdade? “O conceito tem sempre a verdade que lhe advém em função da sua criação”. Ou seja, o conceito não possui nem diz verdades a não ser num sentido muito específico em que se pode falar em verdade. Há alguma veracidade quando o conceito se relaciona com nossa história e, sobretudo com nossos devires. Todo filósofo tem a árdua tarefa de criar conceitos para problemas que mudam necessariamente. É por isso que não se deve discutir filosofia, não há ganho nenhum. Estudar a história da filosofia é, antes, mergulhar nos conceitos, trazer suas pertinências à tona num novo contexto.

Se não discutimos filosofia, como medir a grandeza de uma filosofia? Não é a precisão do conceito, uma espécie de adequação do pensamento ao verdadeiro, que o faz ser grande, mas sua pertinência, seu interesse. É pela natureza dos acontecimentos aos quais um conceito nos convoca que medimos seu interesse, sua grandeza.

Destacar sempre um acontecimento das coisas e dos seres é a tarefa da filosofia quando cria conceitos, entidades. Erigir o novo evento das coisas e dos seres, dar-lhes sempre um novo

acontecimento: o espaço, o tempo, a matéria, o pensamento, o possível como acontecimentos…”

O acontecimento é como o sorriso sem gato de Lewis Carrol em Alice, é aquilo que há de novo na repetição, no evento. O conceito é a constelação de um acontecimento por vir, é o que permite conhecer o novo se fazendo. Essa dinâmica do conceito exige por sua vez um horizonte de eventos, um solo múltiplo, um plano de imanência. A filosofia é ao mesmo tempo criação de conceitos e instauração de plano.

Aqui nos deparamos com a multiplicidade irredutível à qual o pensamento se depara quando se estende sobre o caos. O caos é precisamente isso: um perpétuo movimento de determinações se fazendo e se desfazendo. O pensamento pede só um pouco de ordem para suportar o caos. “Arte, ciência e filosofia querem que rasguemos o firmamento e mergulhemos no caos, só o venceremos a este preço”. Como o filósofo enfrenta o caos? Traçando um plano.

O plano de imanência é como um corte do caos e age como um crivo. O caos caotiza, diz Deleuze. Isto significa que ele desfaz no infinito toda a consistência. Se coloca então o desafio supremo da filosofia: “dar consistência sem nada perder do infinito”. O plano de imanência é o olhar do filósofo dirigido para um horizonte aberto. No topo de uma montanha, ele observa atento o plano instaurado, criando conceitos para traçar ordenadas intensivas, para inscrever a velocidade infinita do múltiplo na singularidade finita do conceito. O plano faz um apelo à criação de conceitos, ele é o solo deserto dos acontecimentos, ele precisa dos conceitos para adquirir consistência, para que suas questões e seus problemas sejam habitados.

A transcendência é o risco derradeiro da filosofia. Há religião, e não filosofia, cada vez que se decide construir um Império celeste no plano, permitindo que o pensamento opere por figuras, que nada mais fazem do que projetar sombras por sobre o solo. “A parte da imanência, ou a parte do fogo, é por ela que se reconhece o filósofo”. Vem daí a admiração a Espinosa, nas palavras de Deleuze: “o príncipe dos filósofos”, “o tornar-se filósofo infinito”.Cada plano não pretende ser o único. Ao assumir o

Não há conquista, há ocupação. O conceito toma de assalto um território

e o povoa de questões9razaoinadequada.com

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caos que recorta, ao assumir que é um pequeno pedaço do quadro infinito, ele se revela imanente. Assim, temos a escolha entre a transcendência e o caos: refugiar-se no conforto da verticalidade imperativa da universalidade ou assumir o risco caótico da singularidade permeada pela multiplicidade. O gesto supremo da filosofia está exatamente no encontro entre a singularidade do conceito e a multiplicidade do plano de imanência, que se esforça sempre por mostrar o não pensando, isto é, o alcance de seus territórios.

Criar um conceito é construir uma região no plano, juntar uma região às precedentes, explorar uma nova região, preencher a falta. O conceito é um composto, um consolidado de linhas, de curvas”Os conceitos não se criam sozinhos, eles dependem do filósofo para vir ao mundo, mas este não os cria senão com alguma ajuda. Todo filósofo fala na terceira pessoa e, quando escreve, “faz com que algum outro fale”. É sempre um personagem conceitual que percorre o plano. É um Zaratustra, como nômade no deserto; é um Sócrates, como vagante na ágora; é o Proletário, como portador da revolução, é um Esquizofrênico, como andarilho do ser; é a Razão, como adequadação ou inadequação, mas é sempre outro, que não o filósofo. Inventar personagens representa a insistência do filósofo em recusar a identidade em favor da alteridade.

O personificação do pensamento em um outro, este devir conceitual do sujeito, não se faz senão com muita hesitação. O filósofo acompanha de longe seu personagem percorrer o plano até encontrar uma terra fértil: o temor acompanha a decisão de tentar territorializá-la: “os personagens conceituas têm este papel, manifestar os territórios, desterritorializações e reterritorializações absolutas do pensamento”. Aproximar-se de um território, enxergar os movimentos infinitos que o percorrem, a relação de forças que ali se encontram, perceber os acontecimentos do pensamento sobre o plano e ali assentar um conceito, tão móvel e dinâmico quanto as condições de sua criação.

Não há conquista, há ocupação. O conceito toma de assalto um território e o povoa de questões e, dessa forma, ele conhece. Conhece o quê? Ora, a si mesmo. Não há o que conhecer senão a sua própria relação singular com o problema, com o acontecimento, com o território. O conhecimento em filosofia não passa disso, estabelecer relações de vizinhança, continguidade, antagonia entre conceitos num determinado horizonte de questões, num plano de imanência.“Pensar é experimentar, mas a experimentação é sempre o que se está fazendo - o novo, o notável, o interessante, que substituem a aparência de verdade e que são mais

exigentes que ela. [...] A história não é experimentação, ela é somente o conjunto das condições quase negativas que tornam possível a experimentação de algo que escapa à história. Sem história, a experimentação permaneceria indeterminada, incondicionada, mas a experimentação não é histórica, ela é filosófica” .

Uma inversão permanece necessária à filosofia de nosso tempo: trocar a história pela geografia, a genealogia pela geologia, pensar uma geofilosofia. Enquanto pesquisadores, é preciso que deixemos o tempo histórico de lado em nome de um tempo estratigráfico, que se volte aos estratos, aos vários planos de imanência instaurados uns sobre os outros: se os conceitos promovem variações nos planos, precisamos nos ater ao relevo da filosofia. Perceber que o devir não é história e que o movimento, a mobilidade é própria ao conceito e nos impede de alcançar paradigmas, referentes tais quais a Razão Comunicativa ou os Imperativos Categóricos. Arrancar a filosofia de um culto das origens em favor de um meio, aí está uma receita para tornar o filósofo um criador. Traçar um plano de imanência, inventar personagens insistentes e criar conceitos consistentes é, por fim, filosofar •

Deleuze

Ilustração por Gabriela Brito 11

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dA SERVIDAO A LIBERDADERafael Trindade

A vida de Espinosa não foi muito fácil. Sua família era judia e fugiu de Portugal para escapar da inquisição. Chegando na Holanda,

ele cresceu dentro da comunidade judaica; era muito inteligente, mas não pode continuar seus estudos devido à morte de seu irmão mais velho. Foi então forçado a ajudar seu pai nos negócios da família.

Sua inteligência e ousadia lhe deram um amargo caminho: foi excomungado aos 24 anos, sendo completamente isolado da comunidade judaica. Tal acontecimento, apesar de traumatizante, permitiu a Espinosa concentrar-se nos estudos de fi losofi a e latim, suas verdadeiras paixões, mas sem nunca subestimar novamente a arrogância e o poder do pensamento religioso.

Em todos os momentos, até o resto da vida, Espinosa esforçou-se para livrar a si e aos outros da superstição religiosa, dos medos irracionais que brotam das inseguranças do homem e da ignorância que os mantêm escravos. Por não conhecerem como o mundo funciona, por não entenderem, os homens caem vítimas das explicações sagradas onde Deus tem todas as respostas e devemos apenas aceitar e obedecer o que os profetas nos dizem.

Nesta busca para livrar a si e aos homens de sua própria servidão, Espinosa trilhou o único caminho seguro que conhecia: a fi losofi a. Em seu mais importante livro, Ética, publicado depois de morto, o fi lósofo traça uma linha reta através de axiomas e proposições que levam do conhecimento à liberdade. Começando por Deus, passando pelos afetos, Espinosa ensina como transformar a servidão em liberdade. Para ele, a fi losofi a e o conhecimento têm essa capacidade, retirar as algemas que prendem o ser humano em medos irracionais e opressões políticas e religiosas.

Abrindo o livro, Espinosa explica que Deus não é um legislador, nem um ditador e muito menos um soberano sentado em um trono mandando e desmandando, escolhendo quem vai para o céu e quem é condenado ao inferno. Não, para Espinosa, Deus é a própria natureza, nem mais nem menos. Deus é todas as coisas e não há nada fora dele. Então, ele não está separado de sua criação, ele próprio é a sua criação e todas as coisas estão nele, nós também.

Já em seu Tratado Teológico Político, anterior à Ética, Espinosa alertara para os perigos da religião que

começa oferecendo explicações do mundo mas termina impondo sua fé e forçando os outros a obedecerem o que suas crenças mandam. Não, Deus não quer obediência simplesmente porque é impossível desobedecê-lo, Ele é a natureza e suas leis naturais seguem de sua própria essência. Ele causou tudo, inclusive a si mesmo; divina é a substância infi nita, ela é pura necessidade, essência e potência de criação. Deus é o criador eterno, pois nada está para além dele, nem pode destruí-lo.

Dentre os atributos de Deus, diz Espinosa, está a matéria e o pensamento. Nós, seres humanos, somos parte destes dois atributos. Nosso corpo é feito de várias partes, cada vez menores, que se movimentam ora mais rápida e ora mais lentamente. E nossa mente é composta de ideias. Temos a capacidade de nos mover e de pensar. Somos apenas uma pequena amostra desta potência infi nita, que Espinosa chama de modo, sendo assim, estamos incluídos na cadeia de causa e efeitos tanto dos corpos quanto das ideias. Mas, mesmo que pequena, somos uma parte desta potência do ser que gerou todas as coisas e permanece imanente à sua criação; ou seja, somos capazes de, nas condições certas, criar e pensar corretamente.

As ações do corpo são diretamente sentidas pela mente, ou alma. Não há uma relação de hierarquia, os dois são a mesma coisa, dois lados de uma moeda (veja aqui). Tudo que fazemos se refl ete em nossos pensamentos e tudo que pensamos se refl ete em nosso corpo. Para pensar corretamente é preciso viver corretamente e o contrário também é verdade: para viver corretamente é preciso pensar corretamente. A alma é a ideia do corpo, um corpo que sofre diariamente, que sente dores, que sente-se oprimido, terminará por ter ideias horríveis da vida, do mundo e de si mesmo. Mas um corpo levado a viver cada vez mais segundo sua natureza, aumenta o número de ideias corretas de si e do mundo. Pensar é a maior virtude para Espinosa, é o caminho mais rápido para quebrar o peso dos idealismos e romper com as fáceis explicações supersticiosas.

Mas como pensar melhor e viver melhor? Nas relações, é claro. Nossos corpos são pequenas partes de matéria e pensamento que entram em relação com o resto do mundo. Viver é a arte dos encontros, viver bem é aprender a escolher estes encontros. Quando ocorre um bom encontro, minha potência aumenta, e eu me torno mais feliz. Contudo, quando ocorre um mau encontro eu me torno mais triste, e minha potência

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diminui. Nosso corpo e mente procuram sempre efetuar bons encontros para aumentar a potência de existir, Espinosa chama isso de conatus. Não queremos apenas existir, isso é muito pouco, queremos nos aproximar de Deus; ele tem a potência infi nita de agir e de ser afetado pelas coisas, quando mais aumentamos esta capacidade, mais tomamos parte ativa da criação.

Espinosa quer libertar os homens do peso dos Ídolos, dos moralismos e torná-los verdadeiramente livres; para isso ele usa da principal ferramenta do ser humano: a razão. Mas o mundo é tão vasto, suas forças são tão grandes e opressoras, como é possível ser verdadeiramente livre? Somos levados de um lado a outro como folhas ao vento: temos medo, frio, fome, dor, é possível realmente ser livre? A servidão humana é a fraqueza do conatus, a impotência para regular nossos afetos internos e de resistir às afecções do mundo à nossa volta. Somos colonizados pelo mundo exterior. Desta forma, não só apenas nos deixamos dominar como passamos a desejar o que nos impõe. Mas o conatus quer não a p e n a s existir, quer resistir e e x p a n d i r -se. Com a razão somos c a p a z e s de escolher nossos encontros, a virtude do pensamento nos mostra a melhor maneira de ser afetado para aumentar nossa potência de agir.

A virtude é a força para agir segundo nossa própria natureza. Liberdade, para Espinosa, não é agir segundo possibilidades, é agir segundo nossa natureza. Somos uma parte da potência infi nita de Deus, lembram-se? Não estamos fora do mundo, mas somos uma parte ativa dele. Sendo assim, basta uma pequena felicidade e nos tornamos mais parecidos com Deus (que é totalmente livre). Quanto mais somos felizes, melhor conseguimos pensar. Ninguém pensa bem quando está triste, somente

a felicidade é capaz de nos levar cada vez mais longe.

A Ética de Espinosa é o caminho de refl exão no qual aprendemos a analisar nossos afetos e agir de modo a sempre contentar-se com nossos atos. O desejo de alegria do conatus é a força que nos impulsiona rumo à liberdade. Juntos, razão e emoção são capazes de fortalecerem-se e tornarem-se mais capazes de agir. É preciso que o pensamento se torne uma emoção tão forte quanto o medo que nos colocam.

Filosofar é questionar-se constantemente: é este o melhor caminho para a felicidade? O que estou sentindo? Sou realmente a causa de mim mesmo? Estou agindo segundo minha natureza ou só obedecendo ordens externas? O fi lósofo utiliza-se da razão para

tornar-se virtuoso e feliz. Não porque haja uma recompensa após a vida para

isso, mas sim porque a própria felicidade de fi losofar já é uma

recompensa. Espinosa foi o grande discípulo de

sua própria fi losofi a. Vivendo feliz,

trocando cartas com seus amigos, r e c e b e n d o outros em sua casa para conversar. O fi lósofo sempre escolheu os m e l h o r e s lugares para

ter uma vida boa, simples em

posses mas rica em pensamento

e bons momentos. Soube muito bem

evitar problemas com os intolerantes religiosos

de seu tempo e os ignorantes que não entendiam sua fi losofi a e o

chamava de ateu, materialista e imoralista.

Para que serve a fi losofi a? Ora, responderia Espinosa, para tornar-se livre, virtuoso, feliz, potente, autor de sua própria história, senhor de si mesmo. Tudo isso, para Espinosa, é a mesma coisa, são sinônimos. Quanto mais fi losofamos, mais nos afastamos das tristezas e inseguranças da vida. Filosofar é deixar o medo e a esperança de lado para confi ar na razão e em si mesmo. Claro que é difícil, mas através da Ética, podemos dar

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Somos colonizados pelo mundo exterior. Desta forma, não só apenas

felicidade de fi losofar já é uma recompensa. Espinosa foi

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os primeiros passos para mais do que pensar fi losofi camente, viver fi losofi camente. Que caminho belo, quanto mais contentes, melhor agimos e mais próximos fi camos de Deus. Quanto mais fi losofamos, mais queremos fi losofar.

Na Ética, razão e emoção se unem para libertar o homem de todas as superstições e fazê-lo ser o mais livre que pode. O homem deixa de se submeter a qualquer poder moral e religioso, supersticioso ou autoritário, sua lógica agora é a da potência dos encontros. Tudo que causa tristeza é afastado, o fi lósofo não é mais alguém sisudo e taciturno, ele é aquele que age em vista de sua felicidade e dos outros, de acordo com a razão. Talvez por isso Espinosa tenha sido tão odiado, ele apostava na felicidade, na alegria, na satisfação, no prazer, no bom humor, no contentamento, na beatitude. Em um mundo tão covarde e triste, poucos ousaram fi losofar como Espinosa •

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o FILOSOFO LEGISLADORRafael Trindade

Nietzsche sabe � losofar com o martelo, mas também sabe dançar. Sua de� nição do � lósofo é tão múltipla quanto as forças que nele

habitavam. Há nele uma singularidade belíssima: a vida confunde-se com o pensamento. O simples fato de existir, se re� ete em uma maneira de existir - eis a � loso� a: quais são os valores que engendram uma vida? Como a saúde e a doença fazem de um corpo um � lósofo?

Em alguns, é a força que se torna a doce vontade de � loso� ar, noutros, é a doença, o ressentimento que vomita uma � loso� a contagiosa e perigosa. Nietzsche não quer saber de mundo das ideias, este ídolo quebrou-se há muito tempo. O � lósofo alemão também não perde tempo subindo uma montanha com as tábuas que serão gravadas com as leis de deus, Deus está morto, resta este mundo e nós que o habitamos. Quem � losofa são os homens, e ela nasce da saúde ou da doença. Se no primeiro existe uma Vontade de Potência em constante atualização, no segundo encontramos um corpo enfermo, fraco, procurando em que se segurar.

“Que virá a ser do pensamento mesmo que é submetido à pressão da doença?” (Nietzsche, A Gaia Ciência). De onde nascem as � loso� as ascéticas? De onde nascem os ideais? Nietzsche responde isso em seu livro Genealogia da Moral: o homem doente vive a falta de sentido, não tem a capacidade de a� rmar-se, não pode suportar a dor e cria mundos e planos onde procura descansar e se esconder. Todo idealismo, toda � loso� a e religião até agora, todo platonismo disfarçado, todo desejo revolucionário de um mundo perfeito foi produto de um corpo cansado, esgotado, ávido por um paraíso perdido onde possa repousar.

A � loso� a nasce do corpo, em Nietzsche, � loso� a e � siologia se confundem. “Temos de continuamente parir nossos pensamentos em meio a nossa dor, dando-lhes maternalmente todo sangue, coração, fogo, prazer, paixão , tormento, consciência, destino e fatalidade que há em nós” (Nietzsche, A Gaia Ciência). Saber viver, enfrentar a dor, fazer do sofrimento ferramenta para superar-se. Se a vida é o prato do dia, a dor é um corpo enfermo, fraco, procurando em que se segurar.um corpo enfermo, fraco, procurando em que se segurar. superar-se. Se a vida é o prato do dia, a dor é superar-se. Se a vida é o prato do dia, a dor é

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Ilustração por Rafael Lauro16

seu tempero. O � lósofo faz de seu corpo instrumento para a� rmar valores e encontrar novos modos de vida.

Nietzsche sofria de dores de cabeça horríveis que às vezes o deixavam de cama por dias. Ele era extremamente sensível ao clima e à culinária dos lugares por onde passava. Parte de sua vida foi dedicada a encontrar o melhor clima, os melhores pratos, os melhores livros, músicas. Aquilo que não o matou, o fortaleceu. “O veneno que faz morrer a natureza frágil é um forti� cante para o forte - ele nem o chama de veneno” (Nietzsche, A Gaia Ciência). Ele soube fazer de sua dor o remédio para tornar-se mais forte, não o entorpecente para fugir do mundo e de si mesmo. Se o sofrimento é a condição de crescimento e criação de qualquer artista, porque não seria também do � lósofo?

Isso fez de Nietzsche um � lósofo sem meias palavras. É de se esperar, então, que sua concepção de � lósofo não seja das mais amistosas. Filos (amigo) e so� a (sabedoria) são interpretados por ele de uma perspectiva diferente. O � lósofo, para Nietzsche, é aquele que carrega o martelo, e faz a sabedoria passar pelas mais duras provações. Que grande amigo da � loso� a é este personagem cuja dureza e rispidez tira o melhor que tem de seu material de trabalho. O � lósofo,

com sua disciplina e rigidez, talvez até truculência, busca lapidar um diamante bruto, desinfetar a ferida purulenta.

“Entendo o � lósofo como um terrível corpo explosivo diante do qual tudo corre perigo” - Nietzsche, Ecce homo, as Extemporâneas, §3

Para Nietzsche, a � loso� a não deve ser o refúgio dos fracos. Filosofar está distante de rezar, pregar, salvar, cuidar... O � lósofo é o contrário de um sacerdote e a � loso� a não é uma casa onde os doentes descansam. Não há compaixão na � loso� a! “Os autêntico � lósofos são comandantes e legisladores: eles dizem ‘assim deve ser!’, eles determinam o ‘para onde?’ do ser humano” (Nietzsche, Além do Bem e do Mal). Ser � lósofo é tornar sinônimo querer e criar, é dar vazão à Vontade de Potência. O � lósofo cria valores, recicla, redispõe, reordena. Filosofar é comandar! O conhecimento do � lósofo é criação, sua verdade é uma manifestação da Vontade de Potência. Por acaso já existiram � lósofos assim?

A � loso� a é criação e transvaloração de valores. E para criar, os � lósofos assumem diferentes perspectivas, trazem um novo olhar (aquele que só um homem sadio poderia trazer). O � lósofo não sai do mundo para re� etir, pelo contrário, se ele faz avaliações, seu dever é mergulhar no mundo. Sendo assim, o � lósofo não poderia deixar de ser também um experimentador. Para ir além do bem e do mal, é preciso experimentar para além da moral. O pensador é como um alquimista, ele mistura afetos e forças.

Fazer invenções, testar vidas, pensamentos, práticas. Aí faz-se a diferença entre o “trabalhador � losó� co”, de� nido por Nietzsche como um pensador menor, e o “livre-pensador”, o � lósofo legislador. Um busca compreender para reproduzir e copiar, o outro compreende para inventar e criar em cima. “Filoso� a, tal como até agora a entendi e vivi, é a vida voluntária no gelo e nos cumes - a busca de tudo o que é estranho e questionável no existir, de tudo o que a moral

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Nietzsche

até agora baniu” (Nietzsche, Ecce Homo). Ir para além da moral, mas não se esconder, não fugir, não ter nojo. Nietzsche faz a negação da negação, ele vira o rosto para tudo que denigra este mundo. O � lósofo não se isola, ele anda no mundo para exaltá-lo e conhecer seus inimigos.

A tarefa do � lósofo é então a de assumir uma postura nova, dar vazão à alegria criadora, à inspiração de artista e deixar-se levar pelo mar de forças que o farão viver e pensar como um juiz de si. A tarefa do � lósofo é criar e ordenar valores. Mas como chegar tão alto? Como atingir os cumes do pensamento? Zaratustra ensina a dançar: somente aqueles com pés leves podem ir tão longe. Sim, a transvaloração de todos os valores implica em tornar tudo leve. Deixar todo peso, todo “Tu deves!”, é a tarefa do � lósofo dançarino.

Aprender a dançar é aprender a ir além de si mesmo, criar valores, legislar, tornar-se senhor de si, sapatear em tudo que é pesado e lento. O verdadeiro dançarino é aquele que, apesar da dor dos pés machucados, parece voar. Dor, superação e beleza. O sofrimento transforma-se em meio para descolar-se do chão. E que outro caminho haveria? Não queremos a preguiça do homem sedentário.

Tornar-se leve, � exível, imbatível, escorregadio, nômade, impossível de emboscar. Criar o novo, experimentar, inverter valores, inventar novos modos de vida: eis o � lósofo. Zaratustra disse que só acreditaria em um deus que soubesse dançar, ele estava certo; Nietzsche, por sua vez, só acreditaria em um � lósofo que soubesse dançar, tal como ele sabia •

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A � loso� a de Michel Foucault movimentou algumas das ideias mais originais do século XX: sua matéria-prima sempre foi a surpresa. Antes de tudo, é preciso surpreender-se com as

próprias ideias, aí está um critério fundamental. Ir além dos limites, uma necessidade; Correr riscos, uma condição. Quando um entrevistador o pergunta se ainda temos necessidade “das questões sem resposta e dos silêncios” da � loso� a, Foucault responde:

“O que é a � loso� a senão uma maneira de re� etir, não exatamente sobre o verdadeiro e sobre o falso, mas sobre nossa relação com a verdade?” Foucault, Ditos e Escritos X

Não à toa, esta entrevista foi realizada sob a condição de que fosse publicada sem assinatura, isto é, anonimamente. Ele queria ver ainda o alcance de suas provocações para além do burburinho que, nos anos 80, o nome Foucault causava por si só. Eis uma preocupação propriamente foucaultiana: saber ao certo se os questionamentos arrancam os sujeitos de si mesmos, se eles funcionam como uma empresa de dessubjetivação.

Em outra ocasião posterior, Foucault repete: “meu problema nunca deixou de ser a verdade”. Assim como no prefácio ao segundo volume da História da Sexualidade, ele expressa a intenção sempre presente em sua obra de realizar uma História da verdade. Essas a� rmações, tomadas assim à primeira vista, são bastante impressionantes e, para dizer o mínimo, desconfortantes. Como assim? Foucault estava preocupado com a verdade? Ele ainda creditava à � loso� a a capacidade de descobrir tais quimeras, desvendar tais mistérios? Antes de tudo, é preciso entender o que é a verdade para ele:

“A verdade, espécie de erro que tem a seu favor o fato de não poder ser refutada, sem dúvida porque a longa cocção da história a tornou inalterável” Foucault em Nietzsche, a Genealogia, a História, 1971

Para bem entender o projeto de Foucault para sua � loso� a e, em seguida, esboçarmos alguma ideia do que é a � loso� a para ele, precisamos enxergar em Nietzsche a raiz de uma questão: precisamente, o projeto genealógico como a história de um erro com nome de verdade. O � lósofo olha para a história não em busca de origens e essências, mas à procura das condições de criação daquilo que se toma como verdade. Segundo Foucault, sua pesquisa se dá sobre o dizer verdadeiro e as formas de re� exibilidade.

O corpo é a superfície de inscrição dos acontecimentos. Sobre ele, pulverizam-se as verdades perpetuamente. O que está em jogo não são as verdades enquanto essências, mas a atuação delas enquanto discursos sobre os corpos, suas ações enquanto dissolução do Uno em seres chamados homens e

fILOSOFAR PARA O PRESEnTERafael Lauro

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práticas de vida. É neste sentido que Foucault fala em realizar uma história da verdade. Ele quer entrar por dentro dos jogos entre verdadeiro e falso

na história, a � m de dizer o que é a atualidade. Olhar para as disputas do passado, sublevar as relações de força, fazer ouvir as vozes silenciadas,

para então voltar-se mais vivo e ativo para o atual.

Entramos então na questão central. Filosofar é trabalhar criticamente com o pensamento sobre o pensamento. Para quê?

Para descobrir até onde é possível pensar diferentemente! Modi� car o horizonte daquilo que se conhece em vez de legitimar aquilo que já se sabe, eis o objetivo.

“Existem momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a olhar e a re� etir” Foucault em História da Sexualidade II

A obra-prima do � lósofo é a constatação de sua própria surpresa, não apenas enquanto ignorante, mas fundamentalmente enquanto ser dotado de pensar diferentemente. Essa potência de se diferenciar é o maior investimento do � lósofo, que realiza uma hermenêutica de si, exercita-se em pensamento buscando sempre separar-se

de si mesmo. E que tarefa está reservada à � loso� a? Realizar uma história do pensamento, de� nir as condições nas quais

o ser humano ‘problematiza’ o que ele é, e o mundo no qual ele vive.

Durante toda a sua vida, Foucault operou com um conceito de razão múltipla. A racionalidade é um campo complexo de linhas

de pensamento irredutíveis. De nada servem as estruturações da Razão instituída enquanto tal, outras formas de racionalidade

se criam sem cessar. Daí a necessidade de voltar-se para as ditas verdades, questioná-las, avaliar quais são seus interesses. A inserção

daquilo que se assume como verdadeiro na história nos permite liberar o pensamento daquilo que ele pensa silenciosamente e permitir-lhe pensar

diferentemente. Uma pergunta se mostra essencial: “a que preço o sujeito pode dizer a verdade sobre si mesmo, a que preço o sujeito pode dizer a

verdade sobre ele mesmo enquanto louco?”.

Em razão de uma relação de forças que não os privilegiavam e de mais um movimento no tabuleiro do jogo das verdades, o louco, o preso, o doente, o pervertido, o confesso,

todos eles pagaram um preço teórico, econômico e, principalmente, institucional por terem suas vozes caladas e seus pensamentos silenciados. A � loso� a é então uma ferramenta

que nos permite enxergar em que medida nossa relação com a verdade encarcera, pune, vigia, coage, controla. E o � lósofo? Segundo Foucault, é apenas um tipo diferente de curioso, que tem no

pensamento sua matéria de consumo corrente •

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a criaçao filosoficaAmauri Ferreira

Para nos adaptarmos à vida social é necessário, por meio do reconhecimento habitual, distinguirmos objetos que percebemos

justapostos simultaneamente no espaço para agirmos sobre eles, onde frequentemente nos servimos do número, da linguagem e do raciocínio inteligente para superarmos resistências materiais por meio da fabricação de instrumentos artifi ciais. Somos capazes de conhecer as relações de causa e efeito entre certas coisas exteriores a nós, de desenvolvermos o conhecimento científi co, de dominarmos uma porção da matéria inerte através da mecânica, em busca de bem-estar e prazer. Nos agarramos a ideias gerais – e aos hábitos que caracterizam a moral fechada – para nos conservarmos. Mas, diante de ideias consideradas

verdadeiras que sustentam a vida social de uma determinada época, surge, de modo inesperado, alguém que ousa romper com o senso comum: o fi lósofo. “Diante de ideias correntemente aceitas, de teses que parecem evidentes, de afi rmações que haviam passado até então por científi cas, assopra no ouvido do fi lósofo a palavra: Impossível. […] Força singular, essa potência intuitiva da negação” (Bergson, O Pensamento e o Movente). As ideias que o fi lósofo irá expor através da sua obra virão, primeiramente, desta rejeição de ideias consideradas socialmente como à prova de críticas. Em seguida, ele irá avançar no desenvolvimento da sua doutrina servindo-se da fi losofi a e da ciência de seu tempo e, sem dúvida, mergulhará nesta jornada que, embora o resultado seja incerto, segue adiante e aceita riscos porque sente que

Ilustração Fabiano Alves20

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tocou em algo que o impulsiona à materialização da obra.

Para esse despertar fi losófi co, que é necessariamente subversivo, é indispensável uma suspensão dos nossos hábitos que correspondem às exigências da vida social. Para Bergson, somos constituídos por uma zona de indeterminação que concerne ao intervalo entre o estímulo recebido (sonoro, visual, olfativo…) e a resposta efetuada através dos nossos mecanismos motores. Em razão da suspensão das ações utilitárias, as nossas lembranças passam a desfi lar em nossa consciência com maior riqueza de detalhes, isto é, o nosso passado coexiste com o presente ou, para falar de outro modo, quando percebemos um objeto qualquer no mundo exterior, sentimos e nos recordamos de algo. Porém, a vida social exige de nós ações utilitárias, que implicam uma diminuição deste intervalo que caracteriza a zona de indeterminação, recalcando uma atualização mais rica do nosso passado e, sem dúvida, nos impedindo de experimentarmos o tempo real, onde cada instante percebido por nós se compõe com todo o nosso passado, razão pela qual mudamos sem cessar. Bergson denomina duração este tempo constituído pela continuidade dos estados psicológicos. Portanto, a duração se distingue do tempo espacializado que é representado simbolicamente pelo número.

Em vez de se dirigir para a fi xidez das coisas exteriores que nos aparecem como descontínuas, o fi lósofo volta-se para si mesmo, onde há continuidade de sensações e sentimentos, mudanças qualitativas que o enriquecem gradualmente, pois somente a partir dessa direção voltada para si mesmo que ele pode fazer com que seja despertada a intuição da duração: “Nada mais de estados inertes, nada mais de coisas mortas”, afi rma Bergson; “apenas a mobilidade da qual é feita a estabilidade da vida. Uma visão desse gênero, na qual a realidade aparece como contínua e como indivisível, está no caminho que leva para a intuição fi losófi ca” (Bergson, O Pensamento e o Movente). Para acontecer esse despertar da intuição fi losófi ca, a experiência de uma consciência que se abstém de agir de modo utilitário é plenamente estimulada pelo fi lósofo, que ocorre ao mesmo tempo em que ele amplia a sua capacidade de sentir o que as excitações materiais produzem no seu corpo e no seu espírito. Essa experiência, que é possível a qualquer um de nós, é impedida quando nos limitamos ao reconhecimento habitual, cuja atenção passa de um objeto percebido a outro objeto: de uma notícia de jornal passamos rapidamente para outra notícia, de um canal de televisão a outro canal, de um site na internet a outro… O embotamento dos sentidos e o esmagamento da experiência de que mudamos sem cessar são efeitos de um modo de existir reduzido ao utilitarismo, à comunicação gregária, à necessidade

de nos adaptarmos ao meio para sobrevivermos.

Uma relação simpática com o objeto percebido, por meio do reconhecimento atento, permite, enfi m, sentirmos que não estamos separados da continuidade material que nos afeta a todo instante. A intuição surge dessa experiência que, da perspectiva da conservação gregária, é inútil, porém, ela é essencial para que seja desenvolvida uma atenção suplementar, que é a do espírito sobre ele mesmo: “Ela [a intuição] representa a atenção que o espírito presta em si mesmo, de sobejo, enquanto se fi xa sobre a matéria, seu objeto. Essa atenção suplementar pode ser metodicamente cultivada e desenvolvida” (Bergson, O Pensamento e o Movente). Ora, Bergson sublinha que, apesar da raridade da experiência dessa atenção suplementar, ela pode, no entanto, ser cultivada e desenvolvida por meio de métodos que podemos nos servir. Mas em qualquer método que nos leve à intuição da duração estará implicada algumas noções essenciais do bergsonismo: suspensão do mecanismo sensório-motor, ampliação da zona de indeterminação, atualização crescente do passado no presente, atenção sobre o objeto (que pode ser um livro, uma música, uma paisagem), estímulo da nossa capacidade de sentir. Evidentemente, também são noções essenciais para que alguém se torne fi lósofo.

Por partir de uma intuição original, ou seja, do conhecimento da vida de dentro como impulso para criar, o fi lósofo não imita, ou melhor, não pode imitar a fi losofi a de ninguém. Essa ideia de “falta de originalidade” somente aparece ao leitor por meio de uma leitura apressada e, por isso, superfi cial, pois, de fato, diante da obra de um grande pensador, “ali mesmo, onde parece repetir coisas já ditas, [o fi lósofo] as pensa à sua maneira” (Bergson, O Pensamento e o Movente). Certamente ele foi infl uenciado pelas ideias de outros fi lósofos e cientistas, porém, como ele as recebeu, como ele as submeteu à intuição e como ele soube comunicar por meio das palavras a sua visão original da vida, é algo profundamente verdadeiro e singular. Ao ser atingido por uma ideia original, o fi lósofo extrai da vida o impulso para comunicar o seu pensamento – seus conceitos, então, levam a sua assinatura. Apenas aparentemente, ou seja, pela forma, sua obra pode ser considerada como uma “evolução na história da fi losofi a”, mas, de fato, através de um exame mais profundo, sua obra nos revelará sua novidade e simplicidade, e não uma “evolução”: “O fi lósofo poderia ter vindo vários séculos antes; teria lidado com uma outra fi losofi a e uma outra ciência; ter-se-ia posto outros problemas; ter-se-ia expresso por outras fórmulas; nenhum capítulo, talvez, dos livros que escreveu teria sido como é; e no entanto ele teria dito a mesma coisa” (Bergson, O Pensamento e o Movente). Bergson, que foi um grande leitor de Espinosa,

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considera o livro principal deste fi lósofo, a Ética, como grande exemplo de contraste entre a forma e o fundo de uma obra fi losófi ca. É o fundo que sustenta a forma, é o pensamento vigoroso que está por trás do desfi le de proposições, demonstrações, escólios, corolários. “É, por trás da pesada massa dos conceitos aparentados ao cartesianismo e ao aristotelismo, a intuição que foi a de Espinosa, intuição que nenhuma fórmula, por simples que seja, será sufi cientemente simples para exprimir. […] Quanto mais remontamos para essa intuição original, tanto melhor compreendemos que, caso Espinosa tivesse vivido antes de Descartes, teria sem dúvida escrito algo diferente do que escreveu, mas que, Espinosa vivendo e escrevendo, teríamos certeza de ter apesar de tudo o espinosismo” (Bergson, O Pensamento e o Movente).

Em uma carta pouco conhecida (de 12 de setembro de 1909), escrita em homenagem a Gabriel Tarde, Bergson enfatiza a existência de dois gêneros de pensadores que a história da fi losofi a nos ensina a distinguir. Existem os que “caminham metodicamente rumo ao seu objetivo, elevando-se de grau em grau até uma síntese querida e premeditada” (Bergson, carta em homenagem a Gabriel Tarde). Esta busca pela unifi cação do saber soa estranho aos ouvidos de Bergson, porque mantém o fi lósofo condicionado a levar adiante os resultados que o cientista alcançou através da experiência. Deste modo, o fi lósofo se limita a induzir e a deduzir, sem aceitar riscos, seguindo a mesma direção da ciência ao generalizar os mesmos fatos: “Há uma certa concepção da fi losofi a que quer que todo esforço do fi lósofo tenda a abarcar numa grande síntese os resultados das ciências particulares. […] Estranha pretensão, na verdade! Como a profi ssão de fi lósofo poderia conferir àquele que a exerce a capacidade

de avançar mais longe do que a ciência na mesma direção que ela?” (Bergson, O Pensamento e o Movente).Mas existem aqueles pensadores que assumem riscos, que têm consciência de que nem tudo que a fi losofi a nos diz é verifi cado ou verifi cável, porque simplesmente sentem que estão certos daquilo que querem nos comunicar. São os que vão, “sem metódo aparente, aonde sua fantasia os conduz, mas cujo espírito é tão bem afi nado ao uníssono das coisas que todas as suas ideias se harmonizam naturalmente entre elas. […] Eles são fi lósofos sem haver procurado sê-lo, sem haver pensado nisso. Sua refl exão, partindo não importa onde e engajando-se em não importa que caminho, arranja-se para conduzi-las sempre ao mesmo ponto” (Bergson, carta em homenagem a Gabriel Tarde). Para Bergson, a tarefa da fi losofi a não é fazer uma síntese mais sofi sticada da ciência. Sua tarefa é outra: se dirigir para a experiência da duração. Ora, a experiência da duração implica consciência, direção para o interior de nós mesmos, onde a intuição fi losófi ca pode ser, inclusive, intensifi cada pela emoção criadora. Portanto, o fi lósofo deve seguir esse movimento da vida, que é a criação, para colocar verdadeiros problemas, pois, alerta Bergson, a história da fi losofi a errou durante muito tempo em se deter nos falsos problemas, cujas questões são inerentes à estrutura da nossa inteligência, tais como o Ser, o não-Ser, o Nada, o Fundamento – problemas que nos mantém distantes do conhecimento da vida. Ao contrário da ciência, que nos promete bem-estar e prazer, a fi losofi a pode nos tornar alegres e, também, como ele sublinha na carta em homenagem a Tarde, “nos tornar melhores e mais fortes”. Esta é a força subversiva da fi losofi a que não pode ser esquecida •

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Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir. Sentir tudo de todas as maneiras . Sentir tudo

excessivamente, porque todas as coisas são, em verdade, excessivas e Toda a realidade é um excesso, uma violência, uma alucinação extraordinariamente nítida que vivemos todos em comum com a fúria das almas, o centro para onde tendem as estranhas forças centrífugas, que são as psiques humanas no seu acordo de sentidos.

Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas, quanto mais personalidade eu tiver,

Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver, quanto mais simultaneamente sentir com todas elas,

Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento, estiver, sentir, viver, for,

Mais possuirei a existência total do universo, mais completo serei pelo espaço inteiro fora.

Mais análogo serei a Deus, seja ele quem for, porque, seja ele quem for, com certeza que é tudo, e fora d’Ele há só Ele, e Tudo para Ele é pouco. Cada alma é uma escada para Deus, Cada alma é um corredor-universo para Deus,

Cada alma é um rio correndo por margens de externo para Deus e em Deus com um sussurro. Sou um monte confuso de forças cheias de infinito tendendo em todas as direções

para todos os lados do espaço, a Vida, essa coisa enorme, é que prende tudo e tudo une e faz com que todas as forças que raivam dentro de mim não passem de mim, nem quebrem meu ser, não partam meu corpo, não me arremessem, como uma bomba de Espírito que estoura em sangue e carne e alma espiritualizados para entre as estrelas,

para além dos sóis de outros sistemas e dos astros remotos. Tudo o que há dentro de mim tende a voltar a ser tudo. Tudo o que há dentro de mim tende a despejar-me no chão, no vasto chão supremo que não está em cima nem embaixo, mas sob as estrelas e os sóis, sob as almas e os corpos por uma oblíqua posse dos nossos

sentidos intelectuais. Sou uma chama ascendendo , mas ascendo para baixo e para cima, ascendo para todos os lados ao mesmo tempo, Sou um globo de chamas explosivas buscando Deus e queimando a crosta dos meus sentidos,

o muro da minha lógica, a minha inteligência limitadora e gelada. Sou uma grande máquina movida por grandes correias de que só vejo a parte que pega nos meus tambores, o resto vai para além dos astros, passa para além

dos sóis, e nunca parece chegar ao tambor donde parte... Meu corpo é um centro dum volante estupendo e

infinito em marcha sempre vertiginosamente em torno de si, cruzando-se em todas as direções com outros volantes, que se entrepenetram e misturam, porque isto não é no espaço mas não sei onde espacial de uma outra maneira-Deus.

Dentro de mim estão presos e atados ao chão todos os movimentos que compõem o universo, a fúria minuciosa e dos átomos, a fúria de todas as chamas, a raiva de todos os ventos, a espuma furiosa de todos

os rios, que se precipitam, a chuva com pedras atiradas de catapultas de enormes exércitos de anões escondidos no céu. Sou um formidável dinamismo obrigado ao equilíbrio de estar dentro do meu corpo, de não transbordar da minh’alma. Ruge, estoira, vence, quebra, estrondeia, sacode, freme, treme, espuma, venta, viola, explode, perde-te, transcende-te, circunda-te, vive-te, rompe e foge, sê com todo o meu corpo todo o universo e a vida, arde com todo o meu ser todos os lumes e luzes, risca com toda a minha

alma todos os relâmpagos e fogos, sobrevive-me em minha vida em todas as direções!

Álvaro de Campos