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7/23/2019 Resenha Nacional Estrangeiro (Sergio Miceli) por Gustavo Sorá http://slidepdf.com/reader/full/resenha-nacional-estrangeiro-sergio-miceli-por-gustavo-sora 1/4 RESENHAS 143 que esta também assumisse formas mitigadas, con- forme já vimos. Na sociedade competitiva, a cor funciona como índice ‘relativo’ de primitividade – sempre em relação ao padrão contigente do tipo humano definido como útil e produtivo no racio- nalismo ocidental e implementado por suas insti- tuições fundamentais – que pode ou não ser con- firmado pelo indivíduo ou grupo em questão. O próprio Florestan relata sobejamente as inúmeras experiências de inadaptação ao novo contexto de- terminadas, em primeiro plano, por incapacidade de atender às demandas da disciplina produtiva do capitalismo” (p. 160). RUY BRAGA é professor do Departamen- to de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.  Modernismo brasileiro: nada mais internacional Sergio MICELI.  Nacional estrangeiro: história so- cial e cultural do modernismo artístico em São  Paulo. São Paulo, Companhia das Letras, 2003. 280 páginas. Gustavo Sorá  Nacional Estrangeiro apresenta uma etnogra- fia histórica do mundo social que se formou em torno da vida artística em São Paulo nas primeiras décadas do século XX. Ainda que o modernismo, tanto em arte como em literatura e pensamento social, tenha imposto nos anos de 1920 e 1930 o autenticamente nacional , as razões de seu surgi- mento e de seu poder simbólico não podem ser compreendidas a não ser em relação com o mun- do prévio a partir do qual se diferenciou. O livro compõe-se de dois atos: no primeiro entram os fi- gurantes da elite social, econômica e política que tornaram possível a constituição de um mercado de arte: Adolfo Augusto Pinto, Altino Arantes, Francisco Ramos de Azevedo, José de Freitas Val- le, Olívia Guedes Penteado. Mecenas e coleciona- dores oriundos de famílias ricas, barões do café ou membros de linhagens quatrocentonas ligados ao Império. Quase todos eles líderes políticos, profis- sionais liberais renomados e empresários bem-su- cedidos da Primeira República que passavam a  vida entre a capital da província e Paris, centro do cosmos. No segundo ato aparecem os protagonis- tas do modernismo, os artistas: Anita Malfatti, Tar- sila do Amaral, Lasar Segall, os irmãos Gomide e  John Graz. Alguns também filhos das elites tradi- cionais, mas outros imigrantes ou filhos de imi- grantes. Esses artistas e seus pares escritores com os quais formaram casais, amizades e grupos vi-  veram igualmente entre a Europa e o Brasil. Nes- te estudo, Europa e Brasil não representam terras tão distantes – dois mundos cortados por frontei- ras físicas e mentais que às vezes entram em con- tato: São Paulo, Buenos Aires, México não se compreendem sem as metrópoles, assim como Paris não se compreende sem suas periferias. Em

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que esta também assumisse formas mitigadas, con-

forme já vimos. Na sociedade competitiva, a cor

funciona como índice ‘relativo’ de primitividade – 

sempre em relação ao padrão contigente do tipo

humano definido como útil e produtivo no racio-

nalismo ocidental e implementado por suas insti-tuições fundamentais – que pode ou não ser con-

firmado pelo indivíduo ou grupo em questão. O

próprio Florestan relata sobejamente as inúmeras

experiências de inadaptação ao novo contexto de-

terminadas, em primeiro plano, por incapacidade

de atender às demandas da disciplina produtiva do

capitalismo” (p. 160).

RUY BRAGA é professor do Departamen-to de Sociologia da Faculdade de Filosofia,

Letras e Ciências Humanas da Universidadede São Paulo.

 Modernismo brasileiro: nada 

mais internacional 

Sergio MICELI.  Nacional estrangeiro: história so-

cial e cultural do modernismo artístico em São Paulo. São Paulo, Companhia das Letras, 2003.280 páginas.

Gustavo Sorá

 Nacional Estrangeiro apresenta uma etnogra-fia histórica do mundo social que se formou emtorno da vida artística em São Paulo nas primeirasdécadas do século XX. Ainda que o modernismo,tanto em arte como em literatura e pensamento

social, tenha imposto nos anos de 1920 e 1930 oautenticamente nacional , as razões de seu surgi-mento e de seu poder simbólico não podem sercompreendidas a não ser em relação com o mun-do prévio a partir do qual se diferenciou. O livrocompõe-se de dois atos: no primeiro entram os fi-gurantes da elite social, econômica e política quetornaram possível a constituição de um mercadode arte: Adolfo Augusto Pinto, Altino Arantes,Francisco Ramos de Azevedo, José de Freitas Val-le, Olívia Guedes Penteado. Mecenas e coleciona-dores oriundos de famílias ricas, barões do café oumembros de linhagens quatrocentonas ligados aoImpério. Quase todos eles líderes políticos, profis-sionais liberais renomados e empresários bem-su-cedidos da Primeira República que passavam a vida entre a capital da província e Paris, centro docosmos. No segundo ato aparecem os protagonis-tas do modernismo, os artistas: Anita Malfatti, Tar-sila do Amaral, Lasar Segall, os irmãos Gomide e John Graz. Alguns também filhos das elites tradi-

cionais, mas outros imigrantes ou filhos de imi-grantes. Esses artistas e seus pares escritores comos quais formaram casais, amizades e grupos vi- veram igualmente entre a Europa e o Brasil. Nes-te estudo, Europa e Brasil não representam terrastão distantes – dois mundos cortados por frontei-ras físicas e mentais que às vezes entram em con-tato: São Paulo, Buenos Aires, México não secompreendem sem as metrópoles, assim comoParis não se compreende sem suas periferias. Em

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lugar de tratar as culturas nacionais como unida-des auto-evidentes, como conjuntos fechados, Mi-celi toma como objeto as redes de relações sociaisque unem essas distâncias; observa os efeitos dapresença dos imigrantes, segue os artistas e cole-

cionadores brasileiros em Paris, avalia as viagense os deslocamentos sociais, leva a sério o tipo deatenção que os artistas metropolitanos, como Fer-nand Léger, prestam a seus clientes da periferia,mesmo quando fossem ultrapassados, como Pau-lo Prado. Após a demonstração de Sergio Miceli,o que a arbitrária classificação da história da artee da cultura trata como o autenticamente nacio-nal, obras geralmente consideradas produtos deuma independência consciente em face dos mo-delos europeus dominantes, passa a ser apreendi-

do como objetos nacional-estrangeiros. O autorapela algumas vezes para a idéia de híbrido, masa imprecisão desta noção, em voga nas ciênciassociais dos anos de 1990, não chega a transmitir asingularidade deste tipo de práticas e objetos que,como a arte moderna, não se encaixam nas for-mas de classificação vigentes, naciocentradas . Mi-celi produz um novo enquadramento, propõeuma nova forma de ver o sagrado, o que parecianão precisar mais revisão. O livro vai acumulan-do elementos para ressaltar a amplitude geográfi-ca e mental do nacional-estrangeiro. Realiza, as-sim, uma profícua contribuição sobre um temasobre o qual sempre haverá resistência e que seenquadra em um programa de pesquisas no âm-bito nacional e internacional de vigor cada vezmaior: aquilo que é considerado a essência do na-cional é, na verdade, fruto de um intercâmbio in-cessante e desigual entre pessoas e idéias, entreestilos artísticos e de pensamento, entre sensibili-dades e gostos de um espaço internacional. Como

disse Pascale Casanova, o nacional é definitiva-mente relacional. Nacional Estrangeiro é um livro iconoclasta.

 À ruptura dos limites estabelecidos entre o nacio-nal e o estrangeiro, o livro acrescenta a rupturacontra a semiótica dos estilos, contra as classifica-ções empobrecedoras dos gêneros. Mais que en-focar o modernismo, Miceli enfoca os modernistas ,artistas de carne e osso, ambivalentes, contraditó-rios, que convivem com os mecenas e seus vícios

oligárquicos, seus gostos barrocos, suas fugasmundanas, sua distribuição de privilégios – unem-se a estes por vínculos mercantis, políticos, de he-rança, de amizade, de inimizade e, em boa parte,de subordinação. As preferências acadêmicas e

pré-modernas dos mecenas impõem limites àspossibilidades vanguardistas que os artistas sãocapazes de importar. Os gostos dos primeiros e asdisposições estéticas dos segundos gestavam-seem uma Europa onde a sobreposição de estilosde arte e de vida de artista era mais variada e con-fusa do que é capaz de enunciar a caracterizaçãode épocas e de gêneros.

Em São Paulo, os salões, entre os quais sedestacava o do senador Freitas Valle, materializa- vam os círculos de sociabilidade. A proximidade

entre mecenas e artistas é trabalhada com basenão na identidade, mas nas diferenças e nos con-trastes, em um contínuo movimento de fusões efissões impulsionado por amor, por idéias e poruma acelerada competição em busca da distinçãosocial e artística. Os significados da arte não sur-gem do descobrimento de relações formais, teori-camente postuladas, entre os estilemas ou as uni-dades de significação estéticas, e sim de relaçõeshumanas, sociohistoricamente reconstruídas, en-tre pessoas que pintam e pessoas que apreciam,reconhecem, avaliam e compram. Porém Miceli sedistancia definitivamente de qualquer sociologis-mo redutor: os panoramas sociais são panos defundo para os alvos de atenção que são os qua-dros. Miceli os observa como faria o crítico, masintroduz um outro olhar. Utiliza termos e códigosdescritivos da crítica, mas explica as obras nãopara os conhecedores de arte e sim para um pú-blico mas amplo, que o obriga a descrever cadaquadro em detalhe e o leva a convencer como um

etnógrafo traduzindo os costumes de um grupo in-dígena ou estrangeiro. O texto é intercalado comuma galeria de 160 reproduções mediante as quaiso leitor aprende e comprova. Cada quadro é ummundo em si que nos convida não a uma classi-ficação antecipada dos elementos de modernida-de ou pré-modernidade presentes, mas a penetrarna configuração singular dos estilemas artísticos enas relações sociais do qual é efeito e causa. Emoutras palavras, pode-se afirmar que a gramática

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do livro alterna etnografía de quadros e desenhode práticas de sociabilidade; conduz o olhar des-de a profundidade das telas até a superfície dosuniversos sociais traçados pelas biografias entrela-çadas dos artistas e dos colecionadores. Não há

antecipações de marcos sociais, políticos e econô-micos para em seguida inserir os efeitos da arte.Toda a demonstração recupera a especificidadedos produtos artísticos como lugar privilegiadopara lançar nova luz sobre o problema da diferen-ciação das “classes dirigentes” e dos esquemas depensamento e sensibilidade, que vividos comopatrimônio de todos, da nação, são o produto dasdisputas entre alguns protagonistas poderosos,tão poucos que entram nos recargados salões da Vila Kirial.

Os mecenas são conservadores, preferem serretratados por pintores acadêmicos como OscarPereira da Silva, José Ferraz de Almeida Júnior, oitaliano Antonio Rocco, o espanhol Juan Pablo Sa-linas. Porém, os meios institucionais criados poreles (pensionato artístico, bolsa de estudos na Eu-ropa, exposições e prêmios) beneficiam as viagensde formação dos jovens que virão a importar al-guns dos elementos da vanguarda, como AnitaMalfatti. O gosto cada vez maior pelas adaptaçõeslocais de uma linguagem pictórica moderna foipossível devido às experiências singulares de re-conversão de certos personagens típicos da aris-tocracia amante da arte como Olívia Guedes Pen-teado (1872-1934). Tendo enviuvado em 1914,aproximou-se dos círculos de escritores e artistasda primeira geração modernista. Em 1923, emcompanhia de Tarsila do Amaral e de Oswald de Andrade, ela comprou em Paris a primeira coleçãode quadros de artistas modernistas brasileiros e es-trangeiros. Mais tarde encarregaria o imigrante li-

tuano Lasar Segall da decoração de um pavilhãode sua mansão dedicado à arte moderna. Entre osartistas, alguns como Tarsila do Amaral tambémeram herdeiros da aristocracia antiga. Sua atraçãopela vanguarda explica-se por uma trajetória mar-cada pelas freqüentes viagens ou experiências de vida no exterior; por crises como a ruptura preco-ce de um casamento prescrito por condição social;pelo estilo sofisticado gerado na convivência como grupo dos cinco (Menotti del Picchia, Mario de

 Andrade, Oswald de Andrade e Anita Malfatti) e,especialmente, a relação amorosa com Oswald de Andrade, responsável pela eclosão da fase antro-pofágica. Esta ocorre entre 1927 e 1929, poucosanos durante os quais Tarsila traduz inventos mo-

dernos, como os propostos por Fernand Léger, emmotivos ressaltados pelos líderes literários do gru-po como as manifestações profundas de uma cul-tura nacional, com suas figuras populares, as mi-tologias indígenas, novos temas e estilos para umaarte autenticamente brasileira. Contudo, o estiloconsagrado em Abaporu nem foi prefiguradodesde a Semana de Arte Moderna nem subsistiua uma década dos anos de 1930, em que o triun-fo do modernismo se adaptou aos padrões espe-rados pela política cultural oficial.

 A diferença decisiva para o estabelecimentodo modernismo artístico foi finalmente estabeleci-da pela experiência imigrante. Durante as décadasde 1910 e 1920 instalaram-se em São Paulo artistasjá formados em círculos de vanguarda. Lasar Se-gall, por exemplo, antes de chegar ao Brasil, con- viveu com círculos expressionistas de Berlim eDresden. Russo de ascendência judia, ao chegar aoBrasil casou-se com uma mulher pertencente aoclã Klabin. Esse e outros grupos de imigrantes em-presários bem-sucedidos criaram em meados dosanos de 1920 outros círculos de sociabilidade, nosquais se expandiu o universo de gostos e escolhasculturais possíveis. Por outro lado, os imigranteslevaram ao limite a expressão de motivos tipica-mente brasileiros, como num esforço de compreen-der a fatalidade do desligamento de suas raízes emum ambiente nacional estrangeiro, um lugar dife-rente, com seus próprios problemas sociais, étni-cos e políticos. Os imigrantes, ou os estrangeirosem geral, foram o problema inventado nos anos

de 1930 para terminar de acomodar as realizaçõesdo modernismo como plataforma da estética na-cional. Ao mesmo tempo eles não entraram – nes-sa condição – na história nacional da arte e da cul-tura. Este livro restitui o peso e o significado dascontribuições dos imigrantes. Porém os imigrantesaqui manifestam um tipo de experiência transfor-madora e não uma essência marcada pelo nasci-mento em terras distantes. Se os estrangeiros noBrasil redobraram a interpretação do tipicamente

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nacional, os brasileiros também realizaram essemovimento em experiências migrantes, em deslo-camentos transatlânticos decisivos para imaginaruma arte nacional estrangeira. Somente a realiza-ção dessa condição mista explica a possibilidade

de que o modernismo haja sido reconhecido inter-nacionalmente como uma arte (e uma literatura)original, representativa do Brasil.

 As palavras nacional (e) estrangeiro, final-mente, se conjugam com as palavras artístico (e)sociológico. Miceli não focaliza o mundo da artecom as lentes frias do sociólogo, nem utiliza emterreno sociológico códigos esotéricos da arte quepoucos leigos poderiam decifrar. Em síntese, pode-se afirmar que a força deste livro vem da conver-são do olhar que obriga tanto a artistas como a so-

ciólogos a visualizar unidades de análisesdistintas, internacionais, para compreender pro-blemas locais universais.

GUSTAVO SORÁ é pesquisador do CO-NICET no Museo de Antropología da Univer-

sidad Nacional de Córdoba.