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Multidão - Negri
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
Bolsista Responsvel: Fernanda dos Passos
Bolsistas Colaboradores: Guilherme de M. Casas, Jssyca dos
Santos Lima, Lidiane Bernardes, Lucas Rodrigues Alves Antunes,
Monique N. Do Nascimento, Paullina Luise Bochi.
Professor Orientador: Aires Jos Rover
Objetivo: O seguinte resumo foi feito com o intuito de compor
o trabalho - cujo tema e-Democracia - que vm sendo desenvolvido
fruto da bolsa do Programa de Iniciao Cientfica (PIBIC).
Resumo do Livro
Multido Guerra e democracia na era do Imprio,
de Michael Hardt e Antonio Negri
Sumrio
Prefcio: A vida em comum 03 1. GUERRA 1.1 Simplicissimus
Excees Golem
O estado de guerra global Biopoder e segurana
Violncia legtima Samuel Huntington, Geheimrat
0405050707091112
1.2 Contra-insurgncias O nascimento da nova guerra Revoluo nos assuntos militares O mercenrio e o patriota Assimetria e domnio de pleno espectro
1313141617
1.3 Resistncia O Primado da Resistncia Do Exrcito Popular Guerra de Guerrilha
191920
1
Inventando Lutas em Rede Inteligncia de Enxame Do Biopoder Produo Biopoltica
212223
2. MULTIDO2.1 Classes perigosas O devir comum do trabalho O crepsculo do mundo campons A riqueza dos pobres (ou Ns somos os pobres!)
2.2 De Corpore O Apartheid Global Uma Viagem a Davos O Estado Forte Est de Volta A Vida no Mercado2.3 Os rastros da multido A Monstruosidade da Carne Invaso dos Monstros A Produo do Comum Alm do Privado e do Pblico Carnaval e Movimento A Mobilizao do Comum Excurso 2: Organizao: Multido esquerda
232323242628283030313232343436384041
3. DEMOCRACIA3.1 A Longa Marcha da Democracia
A Crise da Democracia na Era da Globalizao Armada O Projeto Democrtico Inacabado da Modernidade A Rebelio dos Devedores A Democracia No Realizada do Socialismo Berlim, 1953: Revolta Da Representao Democrtica Opinio Pblica Global Macaces Brancos
3.2 Reivindicaes globais de democracia Cahiers de dolances
Queixas de representaoQueixas de direitos e justiaQueixas econmicasQueixas biopolticasConvergncia em SeattleExperincias de reforma globalReformas de RepresentaoReformas de Direitos e JustiaReformas EconmicasReformas BiopolticasDe volta ao sculo XVIII!Excurso 3: Estratgia: Geopoltica e novas alianasA CRISE DA GEOPOLTICAO COMANDO UNILATERAL E O EIXO DO MALCONTRADIESUMA NOVA CARTA MAGNA?Iconoclastas
3.3 A democracia da multido
4343434446474950535455555760616264656666676870707172737476
2
Soberania e democracia Os dois lados da soberania Ingenium Multitudinis Que a fora esteja convosco A Nova Cincia da Democracia: Madison e LninReferncias Bibliogrficas
767781838793
Prefcio: A vida em comum
Este livro fala sobre a possibilidade de uma democracia em escala global, sobre o
projeto chamado multido. Alm de expressar um desejo de igualdade e liberdade e, exigir
uma sociedade global democrtica, o projeto da multido proporciona os meios para alcanar
esses objetivos.
O estado de conflito instalado no mundo faz com que a democracia seja ameaada. E
um dos grandes obstculos que a democracia enfrenta o estado de guerra global. A guerra
sempre foi incompatvel com a democracia. Este livro comea tratando do estado de guerra. A
guerra assume um carter generalizado, estrangulando todas as formas de vida social e
impondo sua prpria ordem poltica.
O livro Multido seria uma continuao do livro Imprio, que falava sobre a nova
forma global de soberania, de um "poder em rede", que tem como seus elementos
fundamentais os Estados-nao dominantes, juntamente com as instituies supranacionais, as
grandes corporaes capitalistas e outros poderes. Nossa atual ordem global definida por
rgidas divises e hierarquias, em termos regionais, nacionais e locais. Considerando as
condies atuais e as tentativas para manter a atual ordem global, o unilateralismo e o
multilateralismo no so possveis. Quando dito que o Imprio uma tendncia, significa
dizer que a nica forma de poder que ser capaz de preservar a atual ordem global de
maneira duradoura. O Imprio domina uma ordem global acossada por uma guerra perptua.
O estado de guerra inevitvel no Imprio, e a guerra funciona como instrumento de
domnio.
O foco deste livro a multido, alternativa viva que construda dentro do Imprio. A
globalizao tem duas faces, em uma delas o Imprio dissemina em carter global sua rede de
hierarquias e divises que mantm a ordem atravs de novos mecanismos de controle e
permanente conflito. Na segunda face vemos a criao de novos circuitos de cooperao e
colaborao que se propagam pelo mundo, facultando uma quantidade infinita de encontros,
com o objetivo de que os pontos em comum sejam descobertos, para que haja comunicao e
para que todos possam agir conjuntamente.
3
A multido tambm pode ser vista como uma rede aberta e em expanso na qual todas
as diferenas podem ser expressas livre e igualitariamente, esta rede proporciona os meios de
convergncia para que possamos trabalhar e viver em comum. Devemos distinguir a multido
de outras naes de sujeitos sociais. A multido mltipla, composta de inmeras
diferenas internas que nunca podero ser reduzidas a uma unidade ou identidade nica.
Multido uma multiplicidade de todas as diferenas singulares (culturas, raas, etnias,
gneros, etc). Na multido as diferenas sociais permanecem diferentes, o desafio fazer com
que um multiplicidade social seja capaz de se comunicar e agir em comum, ao mesmo tempo
em que se mantm internamente diferente. A multido tambm um conceito aberto e
abrangente que tenta apreender a importncia das recorrentes mudanas nas economia global.
A multido se compe de todas as diferentes configuraes da produo social.
Podemos destacar duas caractersticas da multido que deixam claro a sua
contribuio possibilidade de democracia hoje. A primeira seria o seu aspecto "econmico",
desfalecendo a separao entre as realidades econmicas e os outros terrenos sociais. Tambm
h a "produo biopoltica" que afeta e produz todas as facetas da vida social e. tambm um
dos principais pilares em que se assenta hoje a possibilidade da democracia global. A segunda
caracterstica, de grande importncia para a democracia, a sua organizao "poltica", que
pode ser vista na genealogia das modernas resistncias, revoltas e revolues, que evidencia
uma tendncia para a organizao cada vez mais democrtica, das formas mais centralizadas
de comando ou ditadura revolucionria para organizaes em rede que deslocam a autoridade
para relaes colaborativas. A democracia vem se tornando uma exigncia cada vez mais
disseminada em escala global. Porm desejar e reivindicar a democracia global no assegura
sua concretizao.
Por fim, podemos observar tambm que o livro trar inmeros exemplos de maneiras
como as pessoas trabalham atualmente para pr fim guerra e tornar o mundo mais
democrtico. E o principal objetivo deste livro desenvolver as bases conceituais sobre as
quais se possa assentar um novo projeto de democracia, entender a natureza da formao da
emergente classe global, a multido e, convencer o leitor de que uma democracia da multido
no s necessria, mas possvel.
1. GUERRA
1.1 Simplicissimus
4
Excees
O mundo est novamente em guerra, porm de um modo diferenciado.
Tradicionalmente, a guerra um conflito armado entre entidades polticas soberanas (Estados-
Nao). Ao passo que a autoridade desses Estados vem declinando, comeando a se
manifestar, em sentido inverso, um Imprio Global, a natureza da guerra e da violncia
poltica e suas condies esto mudando, transformando-se a guerra num fenmeno global,
geral e interminvel. (p.21, 1)
Muitos conflitos manifestam-se atualmente por todo o planeta, e talvez muitos desses
no devessem ser encarados como casos de guerra, mas sim de guerra civil, que o conflito
armado entre combatentes soberanos e/ou no-soberanos dentro de um mesmo territrio
soberano. Deixando de ser o espao nacional a unidade efetiva de soberania, essa guerra civil
deveria ser entendida no mbito global. Todos os conflitos atuais devem ento ser entendidos
como guerras civis imperiais, mesmo em casos de envolvimento dos Estados, logo todos esses
conflitos existem no interior do sistema imperial global, condicionando-o e por ele
condicionado, no significando que qualquer um deles mobilize todo o Imprio. Cada guerra
local deve ser encarada como parte de uma grande constelao, ligada em variados graus a
outras zonas de guerra e a reas atualmente em paz. A pretenso de soberania desses
combatentes duvidosa, pois eles esto, na realidade, lutando por um domnio relativo no
interior dos nveis mais altos e baixos das hierarquias do sistema global. (p.22, 1)
No h como fugir desse estado de guerra no interior do Imprio. Os atentados de 11
de setembro de 2001 no criaram nem alteraram fundamentalmente a situao global em
questo, mas podem ter sido responsveis por nos obrigar a reconhecer seu carter geral; eles
inauguraram uma nova era de guerra. A guerra transformou-se em condio geral, podendo
haver cessao de hostilidades em alguns lugares em dado momento, entretanto a violncia
letal sempre est presente, pronta para irromper em qualquer lugar. No se trata de guerras
isoladas, mas sim de um estado de guerra generalizado e global, tornando menos distinta a
diferena entre paz e guerra e impossibilitando pensarmos em uma paz verdadeira ou ter
esperanas nela. (p. 22, 2)
O atual mundo de guerra se assemelha em parte ao do heri campons Simplicissimus,
do romance escrito por Johann Grimmelshauser, no sculo XVII. O heri nasceu na
Alemanha da guerra dos Trinta Anos, guerra esta em que morreu um tero da populao
alem. Seu prprio nome indica que enxerga esse mundo com olhos simples e ingnuos, nico
5
modo de entender semelhante estado de interminvel sofrimento, conflito e devastao. Para o
heri, os diversos exrcitos que passam por ele, indiferentemente de suas convices
religiosas ou virtudes, so todos iguais: roubam, matam, estupram. Diante das interminveis
batalhas atuais, deveramos adotar alguma perspectiva semelhante de Simplicissimus,
inocente e ingnua? (p.23, 2)
Para entender nosso brutal estado de guerra global, temos a primeira chave como o
conceito de exceo, ou melhor, especificando, duas excees, uma americana e uma
germnica. Para melhor entender, devemos voltar ao processo de modernizao da Europa,
onde a guerra era expulsa do mbito interno do campo social nacional, sendo reservada a
conflitos externos entre Estados, visando sempre acabar com as guerras civis, limitando as
guerras h tempos excepcionais e isolando-as nas margens da sociedade. A guerra seria,
ento, uma exceo, sendo a paz a regra, e os conflitos internos seriam pacificamente
resolvidos pela interao poltica. (p. 24, 2)
Apesar dos pensadores modernos teorizarem que a guerra era um limitado estado de
exceo, essa estratgia de isolamento da guerra nos limites dos conflitos entre Estados no
mais to vivel atualmente, pois muitas guerras civis globais surgiram ultimamente, da frica
Central Amrica Latina, da Indonsia ao Iraque e ao Afeganisto. Tal estratgia
prejudicada tambm pelo fato da soberania dos Estados-nao estar em declnio, em
detrimento ao surgimento, em nvel supranacional, de um Imprio global, uma nova
soberania. Ao invs de nos movermos em direo paz na realizao do sonho do fim das
guerras entre Estados soberanos ser o fim da possibilidade pura e simples de guerra, parece
que voltamos ao pesadelo da guerra perptua e indefinida, suspendendo-se o imprio
internacional do direito e sem uma clara distino entre a manuteno da paz e os atos de
guerra. O estado de guerra deixou de ser exceo, tornando-se permanente e generalizado.
Para entender esse estado atual, devemos relacionar o conceito jurdico de estado de
exceo com o excepcionalismo dos Estados Unidos, outra exceo e a nica superpotncia
restante. Por um lado, desde sua criao os estados Unidos se apresentam como uma exceo
corrupo das formas de soberania europeias, comportando-se como paradigmas de virtude
republicana no mundo. Por outro lado, seu excepcionalismo tambm significa exceo diante
da lei, ao eximirem-se de acordos internacionais (meio-ambiente, direitos humanos, tribunais
penais, etc.) e considerarem que seus militares no so obrigados a obedecer s regras a que
os outros esto subordinados, como exemplo ataques preventivos, detenes ilegais e controle
de armas, sendo sua exceo, nesse sentido, um dois pesos, duas medidas de que se
6
prevalecem os mais fortes. So indispensveis, segundo Albright, porque so os mais fortes.
(p.25-28)
Golem
Somos assombrados por um Golem, que se transformou num smbolo de destruio
indiscriminada, de guerra ilimitada e da monstruosidade desta. Na tradio mstica judaica, o
Golem um homem de argila, nascido atravs de ritual cumprido por um rabino. Traduzindo
literalmente, Golem significa matria amorfa, e segundo a tradio mstica da cabala, sua
animao repete o processo de criao, por Deus, do mundo, relatado no Gnesis. Criar um
Golem perigoso, pois h o risco da idolatria; como Prometeu, o criador de um Golem est se
arvorando de Deus, criador da vida, logo tal arrogncia deve ser punida. Nas diversas verses
da lenda, contadas e ambientadas ao longo da histria, os beneficirios da criao do Golem
acabam sendo por ele destrudos. Talvez a lenda sirva de parbola sobre a perda de controle
do mundo pelos seres humanos e sua conquista pelas mquinas, bem como dos riscos de
instrumentalizao na sociedade, de formas tecnolgicas descontroladas e principalmente da
cegueira da guerra e da violncia. (p.30-31)
Contudo, necessrio ateno mensagem passada por essas lendas. Muitas das
verses modernas enunciam no o carter brutal ou instrumental do Golem, mas sua
capacidade de afeto e sua carncia emocional, pois ele apenas quer amar e ser amado, no
quer matar. Contudo, muitas de suas manifestaes de amor so rechaadas, assim como o
monstro do doutor Frankenstein, que s queria afeto e encontra obstculos nessa iniciativa.
Nessas histrias, os monstros evidenciam riqueza emocional e grande potencial de
sentimento, enquanto os humanos so frios, sem corao e aleijados emocionais. Talvez o que
tais monstros estejam tentando nos ensinar seja um ensinamento sobre a monstruosidade da
guerra e a grandeza do amor, bem como sua possibilidade de redeno. (p.32, 1-2)
O estado de guerra global
Tratemos novamente dos elementos estruturais de nosso estado de guerra global.
Quando o estado de exceo torna-se regra e a guerra torna-se interminvel, a distino entre
poltica e guerra fica obscura, ocorrendo a transformao desse fenmeno numa relao
social permanente. Os tericos da insurreio e da poltica revolucionria vm, h muito
tempo, defendendo teses acerca da impossibilidade de diferenciar poltica de guerra,
7
entretanto tratavam de perodos sociais excepcionais, em pocas de revoluo e insurreio.
Segundo Foucault, a guerra transformou-se na matriz geral de todas as tcnicas de dominao
e relaes de poder, envolvendo ou no o derramamento de sangue; transformou-se num
regime de biopoder, forma de governo com o intuito de produzir e reproduzir todos os
aspectos da vida social, no apenas de controlar a populao. (p.33-34)
Como sintoma da mudana da natureza da guerra atualmente, basta observar a
alterao no emprego do conceito de guerra entre o fim do sculo passado e o incio do atual,
com a utilizao da retrica da guerra ao descrever atividades muito diferentes dela
propriamente dita, mesmo no ocorrendo derramamento de sangue ou violncia letal, como
por exemplo, nos esportes, no comrcio e na poltica interna dos pases. Tal emprego como
metfora chama a ateno aos riscos, ao conflito e competio envolvidos nessas atividades.
H tambm outros casos desse uso metafrico, como o de mobilizao das foras sociais para
um objetivo de unio, tpico de esforo de guerra, usado na guerra contra a pobreza lanada
na dcada de 60 nos Estados Unidos, que usou desse discurso de guerra para evitar choques
partidrios e unificar foras nacionais em torno de um objetivo nico. Outros casos so o da
guerra contra as drogas, de 1980, e a guerra contra o terrorismo no incio desse sculo, mas
estes assumem um carter menos abstrato (pobreza) e mais concreto de guerra. Uma das
consequncias desse indito tipo de guerra que seus limites tornam-se indeterminados,
espacialmente e temporalmente, podendo se expandir em qualquer direo por perodos
indeterminados. Assim, no h como vencer uma guerra assim, ela deve ser vencida
diariamente: tornou-se impossvel diferenciar a guerra da atividade policial. (p. 34-36)
Outra consequncia desse novo estado de guerra manifesta-se no campo das relaes
internacionais e da poltica interna, com essas tornando-se cada vez mais parecidas e
misturadas. As atividades militares e policiais se entrecruzam para garantir segurana, sendo
gradativamente menor a diferena entre o que est dentro do Estado-nao e o que est fora,
acontecendo o choque entre a guerra de baixa intensidade e as aes policiais de alta
intensidade. Agora o inimigo e as classes perigosas, tradicionalmente visto fora e dentro,
respectivamente, tornam-se difceis de diferenciar, servindo ambos em conjunto como objeto
do esforo de guerra. (p.36, 2)
A terceira consequncia seria a reorientao da concepo das condies de inimizade
ou dos lados da batalha: sendo o inimigo abstrato e ilimitado, as relaes de aliana entre
amigos so universais e expansivas. Devemos atentar ao fato que o conceito moderno de
guerra no se liga ao de justia, ou seja, no h uma guerra justa, embora esse conceito
tenha reaparecido no contexto da guerra ao terrorismo e das operaes militares na defesa dos
8
direitos humanos e independentemente das guerras justas do fim do sculo passado e incio
do atual apresentarem semelhanas com as velhas guerras de religio, como o do Ocidente
contra o Isl. Paralelamente ao conceito moderno de guerra justa surge o conceito afim de
mal, ao apresentar o inimigo como encarnao desse e torn-lo absoluto, assim como a guerra
contra ele, retirando-o da esfera poltica, pois o mal inimigo da humanidade. Tal
pensamento leva a uma caa s bruxas, simplesmente ignorando a tolerncia. (p. 36-38)
O conceito de terrorismo mudou desde o incio do sculo XX, quando designava
atentados bomba na Rssia, Frana e Espanha, transformando-se num conceito poltico
(conceito de guerra ou, na realidade, de guerra civil), remetendo a trs fenmenos distintos: a
revolta ou rebelio contra um governo legtimo; o exerccio da violncia poltica por parte de
um governo, violando os direitos humanos; e a prtica da guerra em violao das regras de
combate, contando at com ataques contra civis. A problemtica que surge acerca dessas
definies em relao a quem esteja definindo seus elementos primordiais: quem pode
determinar quais so as regras de guerra, o que so os direitos humanos e o que um governo
legtimo? Dependendo do definidor de tais elementos, at os Estados Unidos poderiam ser
considerados um Estado Terrorista. Logo, a definio de terrorismo no fornece base slida
para entender o estado atual de guerra global. (p. 38-39)
A verdadeira face das doutrinas de guerra justa e da guerra contra o terrorismo a de
um regime empenhado no controle social quase total, caracterizado por alguns como a
transio do Estado de bem-estar social para um Estado de guerra ou para uma sociedade de
tolerncia zero, onde o aumento do nmero de prises e a diminuio das liberdades civis
manifestam uma guerra social ininterrupta. Por fim, assim como a justia, a democracia nada
tem a ver com a guerra, pois essa exige uma hierarquia estrita e obedincia, logo causa a
suspenso parcial ou total das atividades democrticas. Na Era Moderna, a interrupo das
polticas democrticas em tempos de guerra eram tidas como temporrias, pois esses conflitos
eram considerados condies excepcionais. Portanto, se vivemos em um estado de guerra
global permanente, a suspenso da democracia tende a ser permanente tambm. (p. 39-40)
Biopoder e segurana
Voltando atrs para entender esse regime de biopoder, vemos que a guerra global
tende para o absoluto. Na Era Moderna, a guerra era vista sob a tica dialtica, no sentido de
que todo momento negativo implicava num positivo, de construo da ordem social.
Entretanto, na Era Contempornea, com o desenvolvimento tecnolgico de armas de
9
destruio em massa, ocorreu um rompimento dessa dialtica, pois tal capacidade de
genocdio e destruio atinge diretamente a prpria estrutura da vida, pervertendo-a e
corrompendo-a. Um poder soberano com controle de tais meios terrveis de destruio uma
forma de biopoder, um poder que decide diretamente sobre a morte, no apenas do indivduo
ou de um grupo, mas de toda a humanidade e tudo que existe. Ao colocarem suas prprias
vidas no centro do palco, o genocdio e as armas atmicas fazem a guerra tornar-se
propriamente ontolgica. Vale ressaltar que tal poder no exerce apenas o poder de destruio
em massa da vida, mas uma violncia individualizada, transformando-se em tortura, tornando-
se uma tcnica de controle mais generalizada, e banalizando-se cada vez mais. Segundo a
lgica do estado de exceo, a tortura constitui uma forma de poder inevitvel, essencial e
justificvel. (p. 40-42)
Um dos sinais do novo carter ativo da guerra a mudana das polticas de defesa
para de segurana propostas pelo governo americano, significando a mudana de uma
atitude reativa e conservadora para uma ativa e construtiva, dentro e fora das fronteiras
nacionais, saindo de uma atitude de preservao da atual ordem social para uma atitude ativa
destinada a prevenir ataques. O argumento utilizado que, a atitude da simples manuteno
da atual ordem, esperando para reagir s ameaas, perigosa, pois ao reagir a elas, pode ser
tarde demais. A segurana exige que, atravs de aes militares e/ou policiais, se esteja
condicionando o ambiente, constante e ativamente; um mundo, para ser considerado seguro,
precisa ser ativamente condicionado. Logo, este conceito de segurana uma forma de
biopoder, j que assume a misso de produzir e transformar a vida social em seu nvel mais
geral e global. Se entrarmos agora num estado permanente de guerra, torna-se necessrio que
esta no seja uma ameaa atual estrutura de poder, mas um mecanismo que esteja
ininterruptamente criando e reforando a ordem global atual. (p. 42-43)
Importante ressaltar que, para poder desempenhar seu papel social e poltico
fundamental, a guerra precisa ser capaz de realizar uma funo constituinte ou reguladora,
dever tornar-se uma atividade processual e reguladora ao mesmo tempo, criando e mantendo
hierarquias sociais, uma espcie de biopoder direcionada para a regulao e para o
condicionamento da vida social. (p. 44)
Sob a tica do biopoder e da segurana, a definio da guerra altera toda a sua
estrutura jurdica. Durante a Era Moderna, a guerra foi subordinada ao direito internacional,
sendo por ele legalizada, ou em outros casos, transformada em instrumento jurdico.
Entretanto, ao invertermos os termos e considerarmos a guerra como base da poltica interna
da ordem global, o modelo moderno de civilizao que constitua a base da guerra legalizada
10
entra em colapso, desaparecendo a estrutura jurdica para a declarao e conduo dos
conflitos. Contudo, ainda no chegamos a um estado de pura violncia. A guerra, como base
da poltica, deve conter formas legais, no podendo deixar de ser juridicamente reguladora e
ordenadora. Antigamente era regulada, agora reguladora, graas construo e imposio
de sua estrutura legal prpria. (p. 45)
Violncia legtima
O estado atual de guerra global mudou tambm a concepo de violncia legtima. O
monoplio da violncia legtima por parte do Estado um dos pilares da soberania moderna,
mas a partir da segunda metade do sculo XX seus mecanismos de legitimao comearam a
ser desmobilizados. Os grandes avanos do direito internacional e dos tratados internacionais
colocaram limites ao uso legtimo da fora entre Estados-nao, bem como acumulao de
armas. Como exemplos temos os acordos contra proliferao nuclear e contra o
desenvolvimento de armas biolgicas e qumicas, que condicionaram a superioridade militar e
o direito de fazer guerras a cargo das duas superpotncias dessa poca de Guerra Fria. J por
outro lado, os discursos dos direitos humanos em conjunto com intervenes militares e aes
legais neles baseados deslegitimaram a violncia exercida pelos Estados, at mesmo em seus
interiores, resultando num recuo desse uso legtimo, especialmente nas ltimas dcadas do
sculo XX. Atualmente, os Estados no mais podem, legitimamente, policiar e punir suas
populaes ou guerrear com base em leis prprias. Vale ressaltar, porm que o que diminuiu
no foi a violncia exercida pelos Estados contra outros Estados ou contra seus prprios
cidados, o que diminuiu foram os meios para legitimar tais aes. (p. 49-50)
Se o monoplio da violncia legtima decaiu, quer dizer que todas as formas de
violncia se tornaram igualmente legtimas? Aparentemente sim, pois ultimamente vemos
acusaes cada vez mais confusas de terrorismo, logo num mundo onde nenhuma violncia
pode ser legitimada, todas podem ser consideradas terrorismo. Como j citado, o conceito
atual de terrorismo variam muito de acordo com quem defina seus valores centrais (governo
legtimo, direitos humanos e normas de guerra), e a dificuldade em estabelecer um conceito
estvel e nico est intrinsecamente ligado ao problema de um conceito razovel de violncia
legtima. Tal razoabilidade difcil de ser encontrada, pois vrios polticos, acadmicos e
militares invocam valores e a moralidade como base dessa forma de violncia legitimada, fora
do mbito da legalidade, sendo ela legtima quando sua fundamentao for justa e moral e
ilegtima quando injusta e imoral. No entanto, a moralidade s pode formar uma base estvel
11
para legitimar a violncia, a dominao e a autoridade quando se recusar a admitir diferentes
julgamentos e pontos de vista, caso o contrrio tal estrutura entraria em colapso. (p. 50-52)
As estruturas legais tm proporcionado, tradicionalmente, um conjunto mais estvel
para essa legitimao, sendo que muitos acreditam que o direito nacional e internacional
continua sendo o nico modo vlido de legitimao da violncia. Entretanto, o direito penal
internacional composto por um conjunto incipiente de convenes e tratados, sem muitos
efeitos prticos. A aplicao internacional de punies a crimes cometidos dentro de Estados
soberanos que no consideram suas aes como criminosas demonstra o declnio do direito
internacional e a ascenso de uma forma imperial ou global de direito, que parece ter sido
criada para manter as hierarquias globais, ao invs de apenas legitimar a violncia do forte
contra o fraco, tpico do direito internacional no sculo XX. Enquanto os mais poderosos
continuarem ilesos em tais condenaes internacionais e os mais fracos continuarem
massacrados nas mesmas, os tribunais internacionais e as instituies da justia imperial que
punem crimes contra a humanidade apenas reproduziro a hierarquia poltica do Imprio. A
violncia legitimada aquela que reproduz a ordem imperial. (p. 52-55)
Samuel Huntington, Geheimrat
O Geheimrat a figura paradigmtica em que se tornou o cientista poltico, um assessor
secreto do soberano, percorrendo os corredores de suas universidades e as ante-salas do poder
tentando obter acesso ao ouvido do soberano para lhe sussurrar seus conselhos. O melhor
exemplo dessa figura pode ser considerado Samuel Huntington, o que mais alcanou xito em
alugar o ouvido do soberano. Juntamente com outros autores, o dito publicou para a Comisso
Trilateral, em 1975, um volume sobre a crise da democracia, dizendo que a partir de 1960 a
democracia havia sido posta em risco nos Estados Unidos pelo excesso de participao e de
exigncias do sindicalismo e de grupos sociais recm-ativados, como os afro-descendentes e
as mulheres. Para ele, democracia demais, paradoxalmente, deixou a democracia americana
doente. Tal discurso fazia sentido na poca da Guerra Fria, onde o capitalismo representava a
democracia contra o totalitarismo sovitico. Tal manifesto completamente anti-republicano
e antidemocrtico, pregando a defesa da soberania contra todas as ameaas dos movimentos
sociais, sendo contra o governo de todos e promovendo a autoridade contra certas parcelas da
populao, bem como o impedimento do acesso desses vida poltica. Sua consequncia foi a
destruio do Estado de bem-estar social pelo neoliberalismo. (p. 58-59)
12
Vinte anos depois, a Guerra Fria, que havia organizado os Estados entre aliados e inimigos,
acabou, e as necessidades do poder mudaram, bem como seus conselhos. Mas o assessor
Huntington volta a sussurrar no ouvido do soberano. No fim do sculo XX, com o declnio da
soberania dos Estados e a dificuldade em configurar a ordem global e exercer a violncia
necessria para mant-la, Huntington prope que os blocos que renem os Estados em
campos aliados e inimigos no sejam mais definidos por ideologia, mas como
civilizaes, que se definiriam em termos raciais e religiosos. A guerra teria ento um
carter de choque entre civilizaes. No entanto, apesar de adiantar-se s necessidades do
soberano na dcada de 1970, fornecendo antecipadamente um manual antidemocrtico,
Huntington agora errou o alvo, pois sua ltima teorizao antecedeu o 11 de setembro e a
consequente guerra ao terror, podendo esta ser at vista como um choque de civilizaes, mas
tal conceito demasiadamente limitado, ainda preso ao velho paradigma da ordem mundial,
enquanto que os atuais horizontes do Imprio so muito mais vastos. As civilizaes
imaginadas por ele e as fronteiras que as dividem no passam de obstculos, que sero todas
submetidas ao domnio do Imprio. (p. 59-61)
1.2 Contra-insurgncias
O nascimento da nova guerra
Sob vrios pontos, nosso estado de guerra global ps-moderno se assemelha s guerras
pr-modernas, onde havia um perodo de guerra permanente, traduzido em valores morais e
religiosos. Pode-se dizer que, desde o incio do sculo XX, o mundo no voltou a viver em
paz. A Primeira Guerra Mundial levou diretamente Segunda. Logo em seguida, entramos na
Guerra Fria, podendo ser entendida como a Terceira Guerra Mundial, para depois de seu
colapso, entramos no atual estado de guerra civil imperial, podendo ser encarada como a
Quarta Guerra Mundial. O estado atual de guerra interminvel j havia sido compreendido no
prprio conceito de Guerra Fria, onde a guerra tornou-se um estado normal das coisas, e nem
mesmo a pausa dos conflitos letais significava seu fim. Essa periodizao importante para
demonstrar a mudana na natureza da guerra: a Primeira foi um conflito entre Estados
europeus que se estendeu a muitas partes do mundo, assim como a Segunda, j agora centrada
tambm na sia; j a Guerra Fria foi o resultado das duas potncias que surgiram aps o fim
da guerra anterior, condicionando a maioria dos Estados do planeta a se alinharem com uma
ou outra; por fim, em nosso estado de guerra imperial os Estados soberanos no mais definem
13
basicamente os lados do conflito, pois hoje existem novos protagonistas no campo de batalha.
(p. 64-65)
Podemos dizer que a mudana da guerra como indicador essencial do poderio do
Estado-nao se iniciou com o Tratado de Msseis Antibalsticos, que regulamentava a
produo de armas nucleares. A estratgia de dissuaso recproca entre as duas superpotncias
pode ter durado por um tempo, mas a guerra em seu sentido estrito comeou a mudar, sendo
menos voltada para a defesa frente a uma mega-ameaa e centrada em mini-ameaas
nascentes, menos preocupados com a destruio total do inimigo, mas sim com sua
transformao e mesmo sua produo. Ao invs de combates totais em larga escala, as
superpotncias comearam a produzir aes policiais de alta intensidade, como o Vietn e o
Afeganisto, que mesmo com caractersticas de grandes guerras, nunca chegaram a ser to
abrangentes quanto as mobilizaes totais das duas Grandes Guerras. A guerra comeou a
tornar-se um elemento integral do biopoder, centrado em construir e reproduzir a ordem social
global. Vale ressaltar que tal perodo de mudana na guerra coincidiu com um de mudana na
economia, com crises monetrias e financeiras e com a destruio do Estado de bem-estar
social, sendo todos esses parte de um grande fenmeno de transformao social. (p.66- 67)
Revoluo nos assuntos militares
Aps o fim da Guerra Fria em 1989, teve incio a chamada revoluo nos assuntos
militares, com a sigla em ingls RMA, que se caracterizou por uma grande mudana na
estratgia militar dos Estados Unidos. Tal conceito possui trs premissas fundamentais: que
novas tecnologias possibilitam uma nova forma de combate; que os Estados Unidos exercem
um grande domnio em matria de poder militar; e que, juntamente da Guerra Fria, acabou o
paradigma da guerra como um conflito de massa previsvel. Ao invs de unidades com
milhares de soldados, teramos unidades de combate pequenas, com capacidade de atuar em
terra, ar e mar, devendo estar prontas para diversos tipos de misses, como ajuda humanitria
e busca e resgate, alm de fazer uso do mximo possvel de tecnologias de informao e
comunicao. Alm dessas caractersticas, a RMA proporciona uma imensa integrao entre
foras areas, navais, terrestres e de inteligncia, passando as operaes militares a comporem
um sistema de sistemas do poderio militar. Tal concepo, no entanto, entra em conflito
com a dos tradicionalistas, que entendem que, entre as virtudes da guerra est o conflito
corporal, enquanto que a RMA prega um uso intensivo de tecnologias para promover o
mnimo possvel de baixas, pelo menos entre os militares americanos. Segundo os
14
tecnologistas, essa seria a nica forma de guerrear atualmente, visto que aps o Vietn, o
povo americano no mais aceitaria um nmero elevado de baixas. Os tradicionalistas no
desejam que soldados americanos morram, mas consideram o preceito de que nenhum deva
morrem restritivo ao espectro das atividades militares. Por exemplo, alguns adeptos dessa
corrente esperavam que, com os atentados de 11 de setembro, fossem restabelecidas as
virtudes patriticas e a disposio para o sacrifcio nos Estados Unidos, consideradas por eles
como essenciais para a preservao do poderio de uma superpotncia global. (p. 69-71)
Vale ressaltar que as duas posies citadas esto relacionadas a recentes mudanas na
produo econmica, onde a tradicionalista corresponde aos modos de produo entre os
sculos XIX e XX, e a tecnologista ao modo de produo contemporneo, com uma grande
valorizao do soldado. A guerra tecnologista tornou-se virtual, sob o mbito tecnolgico, e
incorprea, sob o militar, como resultado da sofisticao militar norte-americana que usa de
armas de preciso para eliminar cirurgicamente, de uma distncia segura, tumores
cancergenos do organismo social global. (p. 72-73)
A viso tecnologista da RMA possui, entretanto, contradies: o nvel elevado de
danos colaterais e de fogo amigo e os problemas confrontados pelas foras militares no
que tange transio democrtica aps a mudana de regime. Em outro ponto, tal
ideologia desmentida pelo fenmeno crescente dos ataques suicidas, podendo ser vistos
como uma manifestao de uma contradio dessa concepo tecnologista de guerra
incorprea. A terceira contradio que surge num plano mais conceitual geral, na ideia de
guerra tecnolgica sem corpos. Baseando-se num episdio de Jornada nas Estrelas intitulado
Um toque de Armageddon, vemos que sem o horror da guerra o incentivo para seu fim
menor, e uma guerra sem fim a pior das barbries, sendo essa contradio maior ainda em
nossa sociedade pelo fato de no haver simetria entre os lados em conflito, ou seja, quando se
fala em guerra sem corpos, se fala em corpos de soldados americanos, sendo os corpos
inimigos, civis ou militares, destinados a morrer. Logo, apenas um dos lados possui incentivo
de pr fim guerra, enquanto o outro no possui nenhum incentivo para tal, j que no sofre
com ela. (p. 74-76)
Tais contradies podem ter sua origem no fato das teorias da RMA no considerarem
o sujeito social que guerreia. O ideal de uma guerra sem soldados aparenta impedir que se
leve em considerao os soldados que guerreiam ainda hoje. Em algumas ocasies, a maioria
dos soldados que correm risco no front no so americanos, mas de foras de pases aliados
ou de colaboracionistas. Segundo alguns, a relutncia em colocar tropas americanas em risco
compromete o xito das operaes militares, dando margem para seu fracasso, como a fuga de
15
Osama Bin Laden do Afeganisto em 2001, por exemplo. Outro fator importante a ressaltar
o crescente uso de empresas militares privadas, que so empresas, frequentemente dirigidas
por oficiais da reserva, que assumem funes operacionais e de apoio no campo de batalha, ou
seja, muitas vezes fazendo o trabalho sujo das foras armadas americanas. Entretanto, esse
tipo de contratao deixa turva a distino entre apoio de aluguel e soldados de aluguel
(mercenrios). Aparentemente a guerra ps-moderna em muito se assemelha da Roma
Antiga, onde os exrcitos mercenrios tornam-se as principais foras combatentes. (p. 76-77)
O mercenrio e o patriota
Entre muitos exemplos de triunfo dos mercenrios esto o fim do Imprio Romano e o
colapso do Renascimento italiano. O Imprio rui quando as foras armadas no so mais
compostas pelo povo em geral, pela populao em armas. Atualmente a figura dos condottieri
do Renascimento pode ser preenchida por um engenheiro ou algum vinculado a indstrias de
armas, etc. (p. 78-79)
Os mercenrios contemporneos devem ser soldados biopolticos aptos a dominar
capacitaes jurdicas, tcnicas, culturais e polticas. Suas relaes com as aristocracias
imperiais s vezes so prximas, outras vezes, distantes, mas o que mais se teme que o
condottieri se volte contra os aristocratas, como aconteceu com Saddam Hussein, aps servir
de guarda suo ante as ameaas iranianas, e com Osama Bin Laden, aps libertar o
Afeganisto dos soviticos. Segundo Maquiavel, quando o mercenrio conquista poder,
assinalado o fim da repblica, e comando mercenrio e corrupo tornam-se sinnimos. Para
ele, s as armas boas fazem boas leis, e os mercenrios so ms leis. Logo, a corrupo dos
militares corromperia toda a ordem poltica. (p. 79-80)
Alm desse caminho para a corrupo, outro caminho futuro para a humanidade seria
o ressurgimento do amor ptria, que nada teria a ver com nacionalismos ou populismos.
Segundo Kantorowicz, tal amor seria o sentimento de companheirismo e sintonia, que se
transformaria no amor humanidade, acima de toda e qualquer nao. Tal sentimento deve
existir de modo concreto e real, para se opor aos mercenrios e s suas apropriaes da ideia
de amor ptria. Eis o verdadeiro patriotismo, o dos que no tm nao, unindo-se a multido
pela resistncia e cooperao. (p. 80-81)
Assimetria e domnio de pleno espectro
16
As vantagens tecnolgicas das foras armadas americanas, alm de questes sociais e
polticas, levantam tambm questes militares: algumas vezes, tais vantagens no geram uma
vantagem efetiva, pois as armas tecnologicamente avanadas cumprem apenas tarefas muito
especficas, enquanto que as armas e estratgias convencionais mais antigas acabam sendo
necessrias em muitos casos. Tal questo aplicada especialmente em conflitos assimtricos,
pois num conflito simtrico, como o das duas superpotncias da guerra fria, as vantagens
tecnolgicas podem ser decisivas, enquanto que nos assimtricos, tais tecnologias podem ter
seu caminho barrado. Muitas vezes o inimigo sequer dispe dos recursos passveis de sofrer
risco pelas armas mais desenvolvidas, ou necessria outra forma de controle que no a fora
letal, entre outros exemplos. Uma superpotncia militar ver-se em desvantagem em conflitos
assimtricos constitui o grande objetivo da estratgia de guerrilha, ao inverter as relaes e
transformar o fraco em forte. Pegando os casos dos Estados Unidos no Vietn e dos
Soviticos no Afeganisto, vemos a superioridade dos fracos em conflitos assimtricos. As
foras guerrilheiras sobrevivem por meio do superior conhecimento do terreno fsico e social
e por apoio da populao, causando paranoia no poder militar dominante pelo fato de que seus
ataques podem vir de qualquer lugar, de qualquer modo, e qualquer um pode ser guerrilheiro,
demonstrando um carter imprevisvel. Isso obriga o poder superior a utilizar tticas de
contra-insurgncia, visando derrotar o inimigo no s militarmente, mas tambm socialmente,
ideologicamente, socialmente e psicologicamente. (p. 81-82)
Os Estados Unidos, superpotncia militar inquestionvel, delegam a seus militares
misses que variam entre fazer a guerra e fazer a paz, impor a paz, manter a paz ou construir
uma nao, muitas vezes causando uma dificuldade em diferenciar tais funes. A tendncia
de que, cada vez mais, sejam reduzidas as diferenas entre guerra e paz. (p. 83, 1)
Os analistas militares americanos reconhecem que o poder militar por si s no
suficiente, e seu reconhecimento da vulnerabilidade e das limitaes desse domnio levou-os a
propor uma forma ilimitada de domnio envolvendo toda a esfera do poder, um domnio de
pleno espectro, associando o poder militar ao controle econmico, poltico, social, etc. Na
realidade, esses tericos descobriram o conceito de biopoder. Para efetivamente combater
conflitos no-convencionais que ocupam uma zona cinzenta entre a paz e a guerra, esses
analistas propem uma estratgia tambm cinzenta. No entanto, h contradies no fato de
que, por mais multidimensional que seja nenhuma dominao poder ser completa e sem
resistncia. (p. 83-84)
Vemos ento um problema filosfico enfrentado pela estratgia militar: todo poder
dominante sempre depende da submisso ou do consentimento de seus dominados, logo o
17
poder do soberano limitado, dando margem para formas de resistncia, pontos de
vulnerabilidade, ameaas. Eis o limite ontolgico do biopoder. Em consequncia disso,
necessrio reconhecer que a vitria em termos de dominao plena no possvel em
conflitos assimtricos. Apenas o que se pode conseguir uma manuteno limitada e
temporria da ordem e do controle, necessitando de constante policiamento e preservao,
transformando a contra-insurgncia em trabalho de tempo integral. (p. 85, 1)
Vale ressaltar outro ponto interessante, agora a respeito dos inimigos da ordem
imperial. Como foi possvel observar no 11 de setembro, os inimigos no eram um Estado-
nao, mas sim uma rede disseminada, no sendo soberana e centralizada e sendo distribuda
de maneira indefinida, desigual e varivel. Logo, sua presena e sua ausncia so
indeterminadas, transformando as redes em estruturas efmeras e em constante fuga, podendo
num dado momento parecerem presentes e, no seguinte, desaparecerem. Tal mudana nos
conflitos assimtricos gera um problema de carncia de alvos, pois seus inimigos no
possuem fronteiras estveis nem um centro, e ainda por cima podem surgir em qualquer local
sob qualquer disfarce, levando as foras militares a estarem sempre preparadas para inimigos
e ameaas inesperadas, num estado de completa paranoia Vivenciamos esse estado durante a
guerra fria, onde o comunismo era um inimigo dual, manifestando-se na forma de Estado
soberano (Unio Sovitica, China, Cuba e outros) e na forma de inimigo em rede, com
exrcitos de insurreio, organizaes polticas, sindicatos, partidos revolucionrios, entre
outros. (p. 85-87)
O modelo em rede pode ser considerada uma evoluo da guerrilha: esta tem por
caracterstica a existncia de vrias unidades relativamente autnomas e centralizadas, onde
cada unidade comanda seus perifricos e se comunica com outras unidades, enquanto que
aquela no tem um centro e todos os nodos podem se comunicar diretamente com todos os
demais podendo ser vista como uma multiplicidade que aparenta ser amorfa, podendo atacar
de todos os lados um nico alvo, ou se dispersar e tornar-se praticamente invisvel. Portanto,
as antigas estratgias de contra-insurgncia no podem mais serem usadas atualmente. Um
exemplo delas a decapitao, onde ao cortar uma cabea, o corpo definhar e morrer, ou
seja, ao tirar de cena o lder rebelde, a organizao se desestruturar. Tal mtodo foi
amplamente usado contra movimentos guerrilheiros e exrcitos de libertao nacional.
Entretanto, no modelo de rede isso no possvel, pois ao se cortar uma cabea, uma nova
surge em seu lugar, como o monstro grego Hidra. Enquanto que uma organizao guerrilheira
possui muitas cabeas, uma rede no possui cabeas. (p. 88-89)
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Outro exemplo de mtodo j antiquado de contra-insurgncia o da privao de
ambiente, onde o poder superior reconhece que seu inimigo no est organizado como um
exrcito tradicional, e passa ento a minar os recursos ambientais, fsicos e sociais, como os
bombardeios indiscriminados no Vietn, Laos e Camboja, e as matanas, perseguies e
torturas aos camponeses nas Amricas do Sul e Central. Contudo, uma rede to disseminada
e complexa que tais ataques nunca surgem o devido efeito. (p. 89-90)
J est claro que as estratgias mais usadas de contra-insurgncia no funcionam
contra as redes. Resta ento uma nova estratgia: combater as redes com outras redes. Para
tal, seria necessria uma completa reestruturao das foras militares do poder soberano, a fim
de poder efetivamente criar no mais tcnicas negativas, como detenes em massa e
assassinatos, mas positivas, com o controle do ambiente, ao invs de destru-lo. Deve-se
enfrentar a rede no apenas em termos militares, mas tambm econmicos, sociais,
psicolgicos, polticos e ideolgicos. Vemos a o significado das estratgias de RMA de
contra-insurgncia, ao usar dos avanos tecnolgicos para informatizar as foras armadas a
fim de transform-las em redes disseminadas de matriz plena. (p. 90-91)
Aps essas explanaes, entendemos que o poderio americano em geral deve
transformar-se numa rede, renunciar a seu carter nacional e se tornar uma mquina militar
imperial, pois a forma de poder em rede hoje a nica apta a criar e manter a ordem. Isso se
baseia tambm na concepo de que, para levar adiante seus objetivos estratgicos,
necessrio levar em conta no apenas os termos nacionais, mas tambm os do resto do
planeta. Para controlar e combater inimigos em rede necessrio que os Estados Unidos e os
demais Estados dominantes tornem-se redes, com estruturas descentralizadas e disseminadas.
(p. 91-95)
1.3 Resistncia
O Primado da Resistncia
Segundo o autor, a resistncia no apenas uma resposta ou reao violncia, mas
um movimento primrio dentro do contexto poltico. O estado de guerra global e seu
desenvolvimento deve ser entendido sob a gide da genealogia dos movimentos sociais e
polticos dessa resistncia.
O trabalho imaterial quem dita as regras e cria novas formas de vida social, ele
molda a interao entre os indivduos e at a forma de encarar o mundo. Os movimentos de
19
resistncia ao estado global de guerra permanente so movidos pela capacidade do trabalho
imaterial de investir e transformar os aspectos da sociedade e sua forma em redes
colaborativas.
Pode-se dizer que as grandes guerras de libertao so esforos ativos no sentido da
busca pela paz, da luta conta a pobreza e da concretizao da democracia, destruindo o regime
de violncia que se perpetua.
No estudo da genealogia das formas de resistncia so revelados trs princpios: o da
oportunidade histrica, o de que o modelo de resistncia mais eficaz tem a mesma forma que
os modelos dominantes e, o de que cada nova forma de resistncia cria movimentos cada vez
mais democrticos ao passo que ataca as qualidades antidemocrticas dos modelos
precedentes.
Do Exrcito Popular Guerra de Guerrilha
A Modernidade colaborou para inovar as tcnicas de represso rebelies assim como
funcionou como modelo de desenvolvimento das resistncias transformando bandos de
camponeses armados em exrcitos, essa transformao que possibilitou a Moderna Guerra
Civil.
A movimentao que permitia s foras guerrilheiras isoladas se unirem em exrcitos
centralizados era elemento central da guerra civil. Essa mobilidade, alis, fez diferenciar as
revoltas camponesas das guerras civis. Ao mesmo tempo em que a movimentao colaborava
para a centralizao, tambm resultavam na perda de autonomia dos focos guerrilheiros e das
populaes rebeldes como um todo. O carter hierrquico e no democrtico do exrcito pode
ser tolerado at a fase da vitria, mas no quando se trata da definio da estrutura poltica
que o Estado dever seguir.
Na dcada de 60 verificou-se um renascimento das guerrilhas coincidindo com a
rejeio do modelo centralizado dos exrcitos populares. Os movimentos eram por maior
liberdade e democracia (p. 110).
Em muitos casos no ps-revoluo a liberdade e autonomia democrticas das unidades
guerrilheiras so reduzidos a partir do momento em que a estrutura horizontal de organizao
tem de se tornar estrutura vertical dentro do governo. Grupos sociais decisivos para a vitria
acabam sendo excludos do poder. O modelo de guerrilha cubano parecia ser a soluo
menos autoritria e mais democrtica que as resistncias estavam em busca. Mas em ltima
20
instncia essa definio caa por terra, pois a estrutura aparentemente plural e policntrica
reduzia-se na prtica, uma unidade centralizada.
Em suma, os movimentos guerrilheiros so formas transitrias que revelam a busca
por formas mais democrticas e independentes de organizao revolucionria.
A articulao entre o social e o poltico cada vez mais intensa. A origem das lutas e
das resistncias est na natureza poltica da vida social.
Inventando Lutas em Rede
O chamado povo uma forma de soberania que pretende tomar o poder substituindo
a autoridade do Estado.
Um modelo de legitimao da violncia o da luta de classes que culmina em atos
coordenados de resistncia, insubordinao e subverso das relaes de dominao na
sociedade.
A partir de 1968, ano de grande agitao mundial, a forma dos movimentos de
resistncia e libertao comeou a se modificar devido s mudanas na fora de trabalho e na
forma de produo social. As tcnicas de guerra de guerrilha se adaptaram de acordo com os
sistemas de informao e as estruturas em rede.
Nesse perodo muitos dos movimentos urbanos resolveram adotar o antigo modelo
hierrquico e centralizado dos exrcitos populares citados anteriormente (ANL no Brasil).
Os novos movimentos guerrilheiros comeam a ser definidos pelas redes de
informao, comunicao e cooperao. Pode-se dizer ento que a forma policntrica do
modelo guerrilheiro evolui para uma forma em rede, tornam-se verdadeiramente
descentralizadas, pois no podem se reduzir a um comando unificado como as antigas
guerrilhas citadas.
Essa luta em rede faz seus soldados no terem os moldes do passado, mas serem feitos
com valores da era ps-fordista, onde o fundamental a criatividade, a comunicao e a
cooperao auto-organizada.
Partimos para as ltimas dcadas do sculo XX, quando surgiu nos EUA movimentos
de poltica de identidade (nascidos das lutas feministas, lsbicas, gays e de fundo racial),
eles eram caracterizados pela insistncia na autonomia e a averso hierarquia centralizada.
Finalmente chegam os movimentos de globalizao que se relacionam antes de tudo numa
estrutura em rede, tendo por base os fruns sociais, os grupos de afinidade e outras formas de
21
processos decisrios democrticos. So o exemplo mais avanado do modelo de organizao
em rede.
Enfim, a genealogia das formas de resistncia evoluiu de revoltas e rebelies
disparatadas de guerrilha para modelo unificado, centralizado e hierrquico de exrcito
popular, para um exrcito policntrico de guerrilha, para enfim, uma estrutura em rede
disseminada. E essa ltima estrutura constitui modelo absolutamente democrtico que
corresponde s formas dominantes de produo econmica e social e tambm vem a ser
poderosa arma contra a estrutura de poder vigente (p. 126).
Nesse novo contexto contemporneo de luta, a legalidade tornou-se critrio menos
eficaz para distinguir os diferentes movimentos de resistncia. O primeiro (dentro da
legalidade) que era a resistncia que servia para neutralizar os efeitos repressores da lei, o
segundo (dentro e fora da legalidade) que era a criao de contra-poderes que desafiavam as
autoridades estabelecidas, e o ltimo (fora da legalidade), as formas organizadas de
resistncia que tentavam abrir espao para a construo de uma nova sociedade. A ineficcia
desse critrio se d pelo fato de os movimentos em rede serem capazes de absorver os trs
tipos citados anteriormente simultaneamente.
Caractersticas fortes do movimento da multido so a mobilidade, flexibilidade e
capacidade de desafiar as formas mutveis de represso e adaptar-se a elas de uma forma
radical.
Conclui-se ento que a legitimao da ordem global baseia-se na guerra e que a
produo capitalista e a vida da multido esto associadas de maneira cada vez mais ntima e
que se determinam.
Inteligncia de Enxame
Inteligncia de enxame so as tcnicas coletivas e disseminadas de soluo de
problemas sem controle centralizado, ou seja, so como foras independentes (baseadas
fundamentalmente na comunicao) que focam em um mesmo objetivo sem o
estabelecimento de um modelo global.
O ataque em rede parece semelhante ao ataque de um enxame, porm, ao ser analisada
a fundo, a rede efetivamente organizada, racional e criativa, diferentemente do enxame.
Do Biopoder Produo Biopoltica
22
Movimentos organizados em rede nem sempre so pacficos e democrticos.
A inovao tecnolgica no a fora fundamental que impulsiona a mudana social,
mas colabora para essa mudana juntamente com as transformaes do trabalho e das relaes
de produo, por exemplo.
Na produo contempornea so produzidas relaes sociais e formas de vida
concretas (biopoltico) e no apenas bens materiais.
O biopoder est acima da sociedade e impe a sua ordem, j a produo biopoltica
imanente sociedade e cria relaes e formas sociais atravs de formas colaborativas de
trabalho.
2. MULTIDO
2.1 Classes perigosas
O devir comum do trabalho
A multido um conceito de classe. As teorias de classe so principalmente duas, a da
Unidade (ligada s teorias de Marx) e a da Multiplicidade (ligada ao Liberalismo). O polo da
Unidade est associado tese de Marx de que na sociedade capitalista h um dualismo entre o
proletariado e o capitalista. J o polo da Multiplicidade prega uma pluralidade de classes
sociais. Ambas as teorias so verdadeiras, afinal na sociedade capitalista h a diviso entre
capital e trabalho, mas a sociedade contempornea compreende infinitas classes baseadas em
diferenas econmicas, raa, etnia, geografia, gnero, etc.
A classe determinada no s pela luta de classes como tambm pela proposta de
futuros possveis lineamentos de lutas coletivas. Logo a classe no apenas um conceito
econmico e poltico, mas um conceito biopoltico. A multido encarada como uma
multiplicidade irredutvel, baseada nas condies de possibilidade, dos que podem tornar-se
multido, levando em conta que tipos de trabalho, formas de vida e localizao geogrfica no
impedem a comunicao e a colaborao num projeto poltico comum. (146)
Hoje no existe uma prioridade poltica entre as formas do trabalho, todas so
socialmente produtivas, com iguais oportunidades de resistncia. Multido um conceito
aberto e expansivo. Entretanto sempre h um tipo de trabalho que exerce hegemonia entre os
outros, como j aconteceu com a agricultura e a indstria. Desde as ultimas dcadas do sculo
23
XX essa hegemonia exercida pelo trabalho imaterial, aquele que cria produtos como
conhecimento, informao, comunicao, relaes ou reaes emocionais, etc. Exemplo claro
desse tipo de trabalho est no setor de servios, trabalho intelectual e cognitivo. (149)
O trabalho imaterial pode ser dividido em duas formas fundamentais, o trabalho
intelectual ou lingustico e o trabalho afetivo. A primeira forma compreende trabalhos como a
soluo de problemas, tarefas simblicas e analticas e as expresses lingusticas; produzindo
assim ideias, smbolos, cdigos, textos, etc. J a outra forma produz ou manipula afetos, como
a sensao de bem estar, satisfao ou paixo. Exemplos de trabalho afetivo so o de
assessores jurdicos, comissrios de bordo, e atendentes em geral. A maioria dos empregos
que envolvem trabalho imaterial combina as duas formas.
O trabalho imaterial tambm pode ser chamado de biopoltico, pois cria no apenas
bens materiais como tambm relaes e a vida social. Ele constitui uma minoria do trabalho
global que se tornou hegemnico em termos qualitativos; encontrando-se hoje na mesma
posio em que estava o trabalho industrial h 150 anos. O trabalho afetivo tpico do trabalho
agrcola (classe subordinada poca da hegemonia industrial) so elementos importantes para
entender as caractersticas do paradigma imaterial. (152)
A hegemonia do trabalho imaterial tende a mudar as condies de trabalho, com
divises cada vez mais indefinidas entre horrio de trabalho e tempo de lazer. Com essa nova
hegemonia as relaes de trabalho mudaram a economia com empregos estveis de longo
prazo (fordismo) d lugar a relaes de trabalho flexveis, mveis e precrias (ps fordismo).
A produo industrial ps-moderna est sendo informatizada com integrao de tecnologias
de comunicao processos industriais existentes. A organizao da produo tambm tende
a ser alterada, de relaes lineares da linha de montagem s inmeras e indeterminadas
relaes das redes disseminadas. Nessas relaes h de um lado as redes tecnolgicas, e de
outro a cooperao dos sujeitos sociais que trabalham. Sendo assim, a principal caracterstica
do trabalho imaterial produzir comunicao, relaes sociais e cooperao. (156)
Os muitos casos singulares de processo de trabalho, condies produtivas, situaes
locais e experincias vividas coexistem com um devir comum, que tende a reduzir as
divises qualitativas no trabalho. Esse devir biopoltico da produo a demonstrao do
supremo papel dessa nova hegemonia, o de transformar toda a sociedade sua imagem.
O crepsculo do mundo campons
24
Os camponeses e seu estilo de vida no campo sempre foram entendidos como algo que
no tem mudado h sculos, ou at milnios. Entretanto devemos entender que nem todos os
agricultores so camponeses; esses so uma figura histrica que remete a certa maneira de
trabalhar o solo e produzir num contexto especifico e relaes sociais. O campesinato um
conceito tambm econmico: trabalho primordialmente para consumo prprio, integrao
parcial e subordinao num sistema econmico mais amplo, e deteno (os pelo menos
acesso) de terras e equipamentos necessrios. Os camponeses no esto isolados
economicamente, mas tambm no esto plenamente integrados aos mercados nacionais e
globais. (159)
Tambm no campesinato h diviso social; os camponeses ricos: donos de grandes
terras e equipamentos que contratam trabalhadores para ajud-los, os camponeses
intermedirios: donos de terras e equipamentos suficientes para sua subsistncia com trabalho
essencialmente familiar, e os camponeses pobres: que arrendam terras ou trabalham na dos
outros e que precisam vender parte de seu trabalho. Se aplicarmos a teoria marxista veremos
que os camponeses ricos esto muito prximos dos proprietrios e os pobre dos trabalhadores
agrcolas.
Essa tendncia histrica do campesinato se aplica tanto no modelo capitalista quanto
ao socialista. O programa de coletivizao de Stalin um exemplo disso. Em curto prazo no
foi um sucesso em termos de produtividade e eficincia agrcola e tampouco conseguiu lograr
economias de escala em longo prazo. A modernizao socialista da agricultura no s levou
os tratores para o campo como transformou irreversivelmente as relaes agrcolas de
produo e troca, eliminando o campesinato como classe econmica. Nos pases capitalista as
relaes agrcolas tomaram um rumo diferente, mas com resultados semelhantes. Nos EUA,
por exemplo, a produo em pequena escala foi declarada invivel provocando um enorme
xodo rural e consolidando assim as grandes fazendas e as corporaes agroindustriais. Esse
foi tambm o rumo de vrios outros pases capitalistas como Inglaterra e Frana, diferindo
apenas em datas. (162)
Os poderes coloniais destruram os sistemas de propriedade coletiva e introduziram a
propriedade privada capitalista. Apenas uma parcela muito pequena da populao rural da
sia, frica e Amrica Latina puderam se encaixar na categoria ideologicamente central do
campons intermedirio. Na Amrica Latina houve polarizao da propriedade da terra, numa
extremidade gigantescos latifndios empregando numerosas famlias, e na outra trabalhadores
ou agricultores sem terra, ou com terras insuficientes para se sustentarem.
25
Segundo essa ideologia econmica a agricultura de subsistncia economicamente
atrasada e ineficiente devido s suas limitaes tecnolgicas e mecnicas e precrias relaes
de troca. Com isso a figura do campons recuou para o pano de fundo da paisagem econmica
da agricultura. (165)
O desaparecimento da figura camponesa pode ser constatada no apenas
economicamente, mas principalmente de forma cultural. Na literatura a verso mais ntida de
mudana foi como nascimento do modernismo, onde o realismo morre e descobre um passado
antigo e imemorial, alm de seus aspectos econmicos e culturais o campons tambm ter
uma forma poltica, desencadeando assim vrias guerras camponesas voltadas para a
preservao do solo de sua tradio.
Alm dos aspectos econmicos e culturais o campons tambm uma forma poltica,
ou melhor, dizendo, desqualificada da poltica. Isso no significa que os camponeses no se
rebelem contra sua prpria subordinao e explorao; mas sim que o campesinato
fundamentalmente conservador, isolado e capaz apenas de reagir e no de uma ao poltica
prpria e autnoma. Segundo Marx a passividade poltica do campesinato deve-se a sua
carncia de comunicao e falha cooperao social em larga escala. Logo, o proletariado
quem lidera o campesinato e fala em seu nome, mas muitas vezes no representa os
verdadeiros interesses dos camponeses. Entretanto, na medida em que o campesinato se torna
comunicativo e ativo ele deixa de existir como categoria poltica distinta. Paradoxalmente, a
vitria final da revoluo camponesa o fim do campesinato. (169)
A antropologia global precisa superar este eurocentrismo, deixar de pensar a diferena
primordialmente como diferena em relao ao Europeu. Precisa encarar as singularidades
culturais do passado como participantes de nosso presente comum em p de igualdade. No
tendo s a Europa como referncia de modernidade. O par conceitual contraditrio, identidade
e diferena, no o contexto adequado para entender a organizao da multido. Em vez
disso, somos uma multiplicidade de formas singulares de vida e ao mesmo tempo
compartilhamos uma existncia global comum. A antropologia da multido uma
antropologia de singularidade e partilha. (172)
A riqueza dos pobres (ou Ns somos os pobres!)
Os pobres no so apenas vtimas da no insero do conceito de multido eles esto
sim includos; precisamos reconhecer que os pobres so tambm agentes poderosos dessa
falta de insero. Todos os destitudos esto na realidade excludos apenas em parte. Os
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pobres esto inseridos em todos os setores no conceito de multido, pois o esforo que fazem
para andar neste conceito imenso e por isso so adicionados independente da maneira em
todas as classes trabalhadoras tradicionais direta ou indiretamente e tende a evolver toda a
sociedade inclusive a si mesmo. (176)
Os pobres so vistos como uma espcie de refugo da histria a parte podre da
sociedade, onde movimenta a malandragem, os parasitas sociais improdutivos por serem
desorganizados, imprevisveis e tendentes ao reacionarismo. So vistos como um exrcito
industrial de reserva, pois os pobres desempregados so mo de obra barata e representam
grande ameaa aos trabalhadores, pois so alvos de suborno de seus patres. Essa forma de
pensamento considerada hoje antiga, equivocada, pois a diviso social entre empregados e
desempregados cada vez menos distinta. No ps fordismo a tal estabilidade de emprego no
mais garantia (flexibilidade do mercado de trabalho).
Na sociedade atual que se define cada vez mais por formas imateriais de trabalho
torna-se cada vez mais diretamente produtiva a atividade de todos, inclusive os pobres. Da
perspectiva da biodiversidade, por exemplo, algumas das regies mais pobres do mundo
dispem da maior riqueza natural, e de populaes que so capazes de viver harmonicamente
com ela.
A natureza comum da atividade social criativa ainda mais destacada pelo fato de que
hoje a produo depende cada vez mais de competncias e comunidades lingusticas. O
paradoxo entre hierarquias lingusticas e produo e partilha lingusticas ajuda a inverter a
imagem tradicional dos pobres. Como ajudam a gerar e participam da comunidade lingustica
pela qual so excludos ou subordinados, os pobres no s so ativos e produtivos como
tambm antagnicos e potencialmente rebeldes. (179)
Os migrantes podem ser considerados uma categoria especial dos pobres. Sua
mobilidade e diferenas culturais apartavam-nos das figuras estveis e centrais do trabalho.
Na economia contempornea, contudo, todas as categorias de trabalho tendem para essa
mobilidade e mistura cultural. Enquanto as grandes migraes europeias do passado
direcionavam-se para espaos considerados vazios e inexplorados, hoje muitas migraes
movem-se para grandes centros, regies mais ricas e privilegiadas. Essas regies, por sua vez,
precisam dos migrantes para sustentar suas economias.
As enormes diferenas de renda no devem ser vistas como uma questo de excluso,
mas de incluso diferencial, como hierarquias no interior da condio de pobreza. Toda a
multido produtiva, e toda ela pobre. Apesar de toda a pobreza e falta de recursos matrias
os pobres dispe de grande riqueza de conhecimento e poder de criao. (182)
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No h real diferena qualitativa separando os pobres do trabalhadores empregados; as
distines tem sido usadas apenas para excluir mulheres, desempregados e pobres dos papeis
polticos centrais, confiando o projeto revolucionrio aos homens, as trabalhadores produtores
primordiais.
Essa tese tem implicaes imediatas em matrias de organizao sindical. Os velhos
sindicatos no so capazes no so capazes de representar os desempregados, os trabalhadores
moveis ou flexveis do ps-fordismo. Os velhos sindicatos so divididos de acordo com os
diferentes produtos e tarefas definidos no apogeu da produo industrial; hoje, na medida em
que em que essas condies e relaes de trabalho tornam-se comuns, as divises tradicionais
j no fazem sentido. Os velhos sindicatos so organizaes puramente econmicas e no
polticas; adquiriram um status legal e constitucional em troca do compromisso de se
centrarem apenas em questes salariais, renunciando a exigncias sociais e polticas. Hoje se
faz necessrio a criao de sindicatos capazes de representar o comum do trabalho em toda
sua generalidade, econmica, poltica e socialmente; uma forma de sindicalismo dos
movimentos sociais. (185)
Todas essas classes citadas so consideradas perigosas da perspectiva do capital e da
estrutura do poder global, pois elas no esto excludas dessa estrutura. Os trabalhadores
imateriais, industriais, agrcolas e tambm os pobres e migrantes esto includos como
sujeitos ativos na produo biopoltica. Sua mobilidade e sua partilha so uma ameaa de
desestabilizao das hierarquias e divises globais de que depende o poder capitalista global.
Linguagens misturam-se e interagem para formar no uma linguagem nica, mas uma fora
comum de comunicao e cooperao entre uma multido e singularidades. (186)
2.2 De Corpore
Trabalhadores industriais, imateriais, agrcolas e desempregados compem a multido,
so figuras biopolticas que representam as diferentes formas de vida nos diferentes lugares
concretos e necessrio que se apreenda a especificidade material e a distribuio espacial de
cada uma.
As formas singulares do trabalho ps-moderno tendem a convergir em um ser social,
destitudo de forma, atravs da comunicao e da colaborao.
O Apartheid Global
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O corpo poltico a encarnao do direito como ordem social regulada. Existem duas
correntes de tradio acerca do assunto: uma delas a de que h um soberano acima da
sociedade que determina e garante a ordem do corpo poltico (nacional e absolutista). A
segunda corrente projeta o corpo poltico na repblica, a a produo de subjetividade toma a
forma do constitucionalismo.
Em ambas essas correntes, as teorias modernas do corpo poltico so formulaes
explcitas do biopoder, postulando um ordenamento absoluto e total da subjetividade social e
da vida social como um todo submetido a um poder soberano unificado (p. 211).
Alguns autores veem a sociedade global como regime de segurana global, ou seja, h
a necessidade de que se criem outras formas de soberania para preservar a ordem global j
que a velha ordem internacional e os Estados-nao por si s no so capazes de faz-lo.
Para esses autores, os Estados Unidos e seus aliados devem exercer a soberania que
assegurar a ordem da sociedade global como corpo poltico. Para os autores ditos
republicanos necessrio um novo contrato social entre sociedade e soberano (em nvel
global) para que os conflitos da nova ordem mundial sejam superados.
O corpo poltico global constitudo de divises e hierarquias igualmente econmicas
e polticas, ele no apenas um corpo nacional que tomou propores maiores, mas
formado por uma nova fisiologia.
Estamos vivendo num perodo de transio, onde os Estados continuam a
desempenhar importante papel na manuteno da ordem jurdica e econmica, mas suas aes
se determinam cada vez mais pela emergente estrutura de poder global e no para os
interesses nacionais. Pode-se falar em uma desnacionalizao.
A globalizao capitalista no s no tornou igualitrias as relaes trabalhistas
antagnicas nos diferentes pases do globo, como absorveu esse abismo para as fronteiras
nacionais ao longo do mundo. Agora no so mais pases subdesenvolvidos do Sul em
oposio aos pases desenvolvidos do Norte, mas estados e cidades de um mesmo pas em
contraposio uns com os outros.
O corpo poltico global definido pelas divises globais do trabalho e de poder. Essas
divises devem ser encaradas em conjunto. Esse conceito implica, principalmente, que no
possvel determinar de maneira fixa os graus de desenvolvimento e explorao, sendo
necessrio reconhecer a situao oscilante que pode haver entre as diversas reas geogrficas
e populaes (sobe e desce da situao econmica dos tigres asiticos entre as dcadas de 80 e
90).
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Por todos os fatos citados anteriormente podemos dizer que vivemos num Apartheid
Global, onde no h a excluso, mas a incluso hierrquica que perpetua a riqueza dos poucos
graas ao trabalho dos muitos.
Uma Viagem a Davos
Davos uma cidade na Sua onde todo ano oligarquias industriais, polticas e
financeiras se renem para decidir o destino a globalizao capitalista (Frum Econmico
Mundial).
O mercado econmico est sempre inserido em um mercado social e em estruturas
polticas de poder, essas relaes institucionais que exploram e regulam todo o sistema
poltico e econmico global podem ser observadas em Davos.
A realidade que apesar de se ouvir falar tanto em livre mercado, essa liberdade s
possvel graas a uma regulao poltica.
Nveis gerais da interao entre as foras do mercado global e as instituies legais ou
polticas: Acordos e formas privadas de autoridade no mercado global; mecanismos
regulatrios estabelecidos atravs de acordos comerciais entre Estados-nao; normas gerais
que funcionam no nvel internacional ou global, escorando-se em instituies supranacionais
ou internacionais.
Acordos internacionais de comrcio tendem a criar formas verdadeiramente globais de
autoridade (a exemplo disso est a OMC Organizao Mundial do Comrcio).
Nessa nova ordem econmica global que os novos acordos internacionais esto
consolidando esto presentes tendncias globalizantes e elementos nacionalistas ressurgentes
(medidas protecionistas), propostas liberais e perverses de ideais liberais em interesse
prprio (burla das leis antitruste), e ainda, solidariedades das polticas regionais e operaes
neocoloniais de dominao comercial e financeira (polticas monetrias restritivas).
As instituies supranacionais - com a finalidade de estabelecer uma ordem liberal
para o mercado capitalista global - exercem controles polticos e econmicos, como o FMI
que impe, em troca de ajuda, a minimizao dos gastos com o bem estar pblico,
privatizao da indstria e das riquezas pblicas e reduo da dvida pblica; e como o Banco
Mundial que focaliza problemas como a fome e a pobreza globais (p. 226 e 227).
O Estado Forte Est de Volta
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O Estado forte nunca desapareceu, somente voltou a figurar publicamente no ps-
crise. Com a crise, alis, mostrou o quo dependente do Estado, para manter o status quo e a
hierarquia do mercado, o sistema.
Esse Estado forte deve ser em parte poder militar para garantir a estabilizao da
ordem econmica global.
A fora militar, pois, deve garantir as condies de funcionamento do mercado
mundial, assegurando as divises de trabalho e poder do corpo poltico global (p. 231).
importante ressaltar que a volta desse Estado forte no representa a volta do
Keynesianismo, pois est a favor do capital e no se ocupa de mecanismos de mediao para
negociar os conflitos entre capital e trabalho.
Sempre que h momento de transio em que novas regras j no se aplicam e novas
regras ainda no esto consolidadas a corrupo triunfa.
Na transio da URSS para um regime democrtico, as foras atuantes faziam as
adaptaes na diviso do trabalho, negociavam as privatizaes, licenas, contratos, tudo com
grupos especficos, criando oligarquias e fortalecendo as mfias.
A Vida no Mercado
Uma das tarefas fundamentais do Estado forte a proteo da propriedade privada
(p. 233).
Nos tempos atuais, com o trabalho e a produo imaterial, comea-se a falar em um
novo tipo de propriedade a ser protegida, a propriedade imaterial, a qual, por ser voltil e
incontrolvel exige maior empenho por parte da autoridade soberana no que tange sua
proteo.
Essa propriedade imaterial sujeita a novos e agravados riscos de segurana: os vrus
(que no necessitam nem a proximidade fsica) e a reprodutividade (que ameaa o carter
privado da propriedade privada).
A fora a ser usada pelo Estado forte no mais primordialmente a fora fsica, a
fora policial, mas o direito, ou seja, uma estrutura jurdica que legitime as formas imateriais
de propriedade privada requerendo novos mecanismos jurdicos de proteo.
Hoje se fala muito na propriedade privada de organismos vivos, isso porque a partir do
momento em que estes so frutos do trabalho humano (assim como o direito tradicional da
propriedade capitalista tambm se baseia no trabalho), no sendo mais parte da natureza.
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O direito sobre essas novas formas de propriedade depende do reconhecimento de que
so produzidas como informao, conhecimento ou cdigo. Desse modo, aquele que produz
os cdigos que definem as formas de vida, tem direito propriedade dessas formas.
Por fim, a Organizao Mundial da Propriedade Intelectual da ONU quem tenta
promover a criatividade e inovao atravs da proteo da propriedade intelectual.
2.3 Os rastros da multido
Este captulo visa investigar a possibilidade de que a carne produtiva da multido
venha se organizar de outra maneira e descubra uma alternativa para o corpo poltico global
do capital, partindo do reconhecimento de que a produo de subjetividade e a produo do
comum podem formar juntas, uma relao simbitica em forma de espiral. Essa subjetividade
nasce da cooperao e da comunicao, vindo a produzir, a partir disto, novas formas de
cooperao e comunicao, que por sua vez produzem nova subjetividade, e assim
sucessivamente. neste processo de metamorfose e constituio que se d a formao do
corpo da multido, um corpo comum, democrtico, novo. Essa "multido de multides"
capaz de agir em comum como um corpo nico, ou seja, mesmo que a multido forme um
corpo continuar sendo uma composio plural e nunca se tornar um todo unitrio dividido
por rgos hierrquicos.
A Monstruosidade da Carne
A sociedade ps-moderna caracterizada pela dissoluo dos corpos sociais
tradicionais. Modernistas e ps-modernistas reconhecem essa dissoluo. A oposio que os
modernistas querem proteger ou ressuscitar os corpos sociais tradicionais enquanto os ps-
modernistas aceitam, ou at mesmo comemoram a sua dissoluo. Um exemplo colocado o
caso dos Estados Unidos, diante do colapso das organizaes sociais e tradicionais e da
ameaa de uma sociedade individualistas fragmentada, muitos autores abordam o tema da
nostalgia de formaes sociais do passado. Tais projetos de mudana so baseados na famlia,
na igreja e na ptria que, mesmo tendo uma viso de direita, surgem das correntes centrais de
esquerda. A nostalgia domina uma srie de estudos populares sobre as recentes mudanas
ocorridas no mundo do trabalho. As formas tradicionais de trabalho representavam emprego
estvel e uma srie capacitaes que permitiam aos trabalhadores desenvolverem-se. Porm a
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passagem do fordismo para o ps-fordismo na situao de trabalho destruiu essas formas
tradicionais de trabalho, juntamente com as formas de vida que geravam.
A manifestao do povo no cenrio social vista pelos lderes da esquerda
institucional como algo deformado e ameaador. Ameaador para eles, portanto so
incompreensveis, monstruosos. Porm todas essa nostalgia deve ser descartada, porque na
melhor das hipteses isso seria um sinal de derrota.
Assim, analisando nossa sociedade ps-moderna, podemos ver que o que estamos
vivenciando um espcie de carne social, uma carne que no um corpo, uma carne que
comum, substncia viva. Precisamos descobrir o que essa carne pode fazer. Segundo Maurice
Merleau-Ponty, "a carne no matria, no mente, no substncia". A carne da multido
puro potencial, uma fora informe de vida, e nesse sentido um elemento do ser social,
constantemente voltado para a plenitude da vida. uma fora elementar que constantemente
expande o ser social, produzindo alm de qualquer medida de valor poltico-econmico
tradicional. A carne elementar da multido desesperadoramente fugidia, pois no pode ser
inteiramente enfeixada nos rgos hierrquicos de um corpo poltico.
Para muitos, essas multides constituem mais um exemplo da insegurana e do caos
que resultaram do colapso da ordem social moderna. A monstruosidade da carne no um
retorno ao estado natural, mas um resultado da sociedade, uma vida artificial. Qualquer
referncia vida hoje deve ser apontada para uma vida artificial, uma vida social.
Tenhamos como exemplo o vampiro. Este um figura que expressa o carter
monstruoso, excessivo e rebelde da carne da multido. Uma ameaa ao corpo social,
instituio social da famlia. Um vampiro traz diversas ameaas, minando a ordem
reprodutiva da famlia. Atualmente os vampiros continuam sendo marginais na sociedade,
mas sua monstruosidade ajuda os outros a reconhecer que somos todos monstros. Estes
monstros comeam a formar novas redes alternativas de afeio e organizao social. O
vampiro, com sua vida monstruosa e seu desejo insacivel, acabou se tornando sintomtico
no apenas na dissoluo de uma sociedade velha, mas tambm da formao de uma nova. O
que preciso encontrar so justamente os meios de realizar esse monstruoso poder da carne
da multido de formar uma nova sociedade. Porm como Merleau-Ponty diz, a carne
comum. A carne como o ar, o fogo, a terra e a gua. Porm isso mostra que de fato somos
todos singulares. Nossas diferenas no podem ser reduzidas a um corpo social unitrio.
Spinoza coloca que a experincia da vida uma busca da verdade, da perfeio e da
alegria de Deus. Ele tambm nos mostra como podemos reconhecer atualmente essas
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metamorfoses monstruosas da carne como uma possibilidade de criar uma sociedade
alternativa.
Com o conceito de multido entramos num novo mundo no qual s podemos entender
a ns mesmo como monstros. Hoje precisamos de novo gigantes e novos monstros para juntar
a natureza e a histria, o trabalho e a poltica, a arte e a inveno, e com isto demonstrar o
novo poder que est nascendo na multido.
Invaso dos Monstros
A ascenso dos monstros ocorreu juntamente com a crise das antigas crenas de
eugenia, nos sculos XVII e XVIII, e acabou servido para minar as velhas pressuposies
teleolgicas nas cincias naturais que acabaram surgindo. Crenas de eugenia se refere ao
arcabouo filosfico que identifica tanto as origens dos cosmos quanto a ordem tica num
princpio metafsico. Quanto as pressuposies te