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[ 97 ] Resumo: Partindo da idéia de que um mesmo referente estabelece sentidos diferentes, este trabalho trata de deslizamentos valorativos que modificam sentidos para atender a solicitações contextuais exigidas pelo sujeito. Apesar da gastura sofrida pelas palavras em uso de linguagem, o jogo metafórico vai permitir que se atinja o sensível do mundo. Palavras-chave: Sensível; referente; sentido. Abstract: Based on the idea that the same reference establishes different senses, this paper deals with value attribution gliding, which changes senses so they can meet contextual requests demanded by the subject. In spite of the friction words undergo in language usage, metaphorical play enables us to attain the sensitive component of the world. Keywords: Sensitive; reference; sense. 1. INTRODUÇÃO 1.1 Considerações gerais, uma pequena história, o empírico C om base no texto de Derrida (1991), a Mitologia branca, reutiliza-se uma série de idéias ali presentificadas não só para questionar a linguagem metafísica, proposta de Derrida, mas também para argumentar como a linguagem se relaciona com o sensível, como o olhar do sujeito altera o sen- tido dos objetos do mundo e como a natureza metafórica da linguagem se manifesta no deslocamento do sentido. O DISCERNÍVEL DA LINGUAGEM: VALORAÇÕES DE SENTIDO THE GLINT OF LANGUAGE VALUES OF MEARING Dina Maria Martins Ferreira* * Pós-doutora pela Universidade Estadual de Campinas/Unicamp, Instituto de Estudos da Lingua- gem, e doutora pela Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ; docente na Universidade Presbi- teriana Mackenzie, Faculdade de Filosofia, Letras e Educação. E-mail: [email protected] Revista Mack. Arte 11/8/05 06:34 PM Page 97

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    Resumo: Partindo da idia de que um mesmo referente estabelecesentidos diferentes, este trabalho trata de deslizamentos valorativos quemodificam sentidos para atender a solicitaes contextuais exigidas pelosujeito. Apesar da gastura sofrida pelas palavras em uso de linguagem, ojogo metafrico vai permitir que se atinja o sensvel do mundo.

    Palavras-chave: Sensvel; referente; sentido.

    Abstract: Based on the idea that the same reference establishes differentsenses, this paper deals with value attribution gliding, which changessenses so they can meet contextual requests demanded by the subject. Inspite of the friction words undergo in language usage, metaphorical playenables us to attain the sensitive component of the world.

    Keywords: Sensitive; reference; sense.

    1. INTRODUO

    1.1 Consideraes gerais, uma pequena histria,o emprico

    Com base no texto de Derrida (1991), a Mitologia branca,reutiliza-se uma srie de idias ali presentificadas no spara questionar a linguagem metafsica, proposta deDerrida, mas tambm para argumentar como a linguagem serelaciona com o sensvel, como o olhar do sujeito altera o sen-tido dos objetos do mundo e como a natureza metafrica dalinguagem se manifesta no deslocamento do sentido.

    O DISCERNVEL DA LINGUAGEM:VALORAES DE SENTIDO

    THE GLINT OF LANGUAGE VALUES OFMEARING

    Dina Maria Martins Ferreira*

    * Ps-doutora pela Universidade Estadual de Campinas/Unicamp, Instituto de Estudos da Lingua-gem, e doutora pela Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ; docente na Universidade Presbi-teriana Mackenzie, Faculdade de Filosofia, Letras e Educao.E-mail: [email protected]

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  • Uma pequena histria da prtica rotineira, com o devido humor advindo do sensvel, permite-nos partir do empricopara a abstrao do inteligvel:

    Vrios colegas e eu estamos retornando de um dia de trabalho. Utilizamos um nibus para voltar s nossas casas. nibusfretado, com banheiro ao fundo. Estou dormindo e os colegas conversando. Agora j semi-acordada, ouo vozes ao fun-do. De repente sinto movimentos: alguns tentando abrir as janelas cerradas, cujo empurra-empurra no alcanava suces-so; e outro colega retirando algo de sua pasta, no bagageiro acima dos bancos, ao mesmo tempo que reclamava do maucheiro. Acordada, ento, percebo que realmente havia um cheiro horrvel, desagradvel. Vrias pessoas reclamando. Con-tinuando seu movimento, o colega retira de sua pasta um frasco. um VickVapoRub!!!!. O blsamo estava chegando. Oscolegas em volta passaram a pasta em suas narinas. Ah! Que cheiro agradvel de hortel. Um estudioso da semntica pro-clama: j que no podemos mudar o referente mudamos o sentido. Termina nosso relato empirista.

    2. O REFERENTE E O SENTIDO

    Primeiro se faz necessrio, aqui, delimitar o que se entende por referente e o que se entende por sentido, dadas as ml-tiplas correntes semntico-filosficas a respeito. Chama-se referente o objeto a que o ato de referncia visa (ABBAGNA-NO, 2000, p. 837), o objeto que se est linguajando, que se est vendo pelo telescpio da linguagem. E sentido o sig-nificado que a linguagem/sujeito daria a esse referente, ou seja, faculdade de sentir, de sofrer alteraes por obra deobjetos exteriores ou interiores [...] o sentido compreende tanto a capacidade de receber sensaes quanto a conscinciaque se tem das sensaes e, em geral, das prprias aes (ABBAGNANO, 2000, p. 873-874).

    De posse das definies sentido e referente , passa-se a acreditar na metfora de Frege, o telescpio, veculo lingua-geiro entre sujeito e mundo. Levanta-se a questo da virada lingstica, em cuja proposta o sujeito acessa o mundo vialinguagem. Na primeira lente esto grudados os olhos do sujeito; a segunda lente do telescpio, com um certo distan-ciamento, pelo prprio formato do telescpio, a mais prxima do mundo. O mundo passa a existir pela tica da relaoentre as duas lentes, pelas lentes que muitas vezes podem estar opacas, mas que no impedem o acesso ao mundo. As len-tes so parte do que se chama mundo, do mundo que se v e sente. Entende-se ento que o mundo est para os olhos dosujeito nas lentes. No entanto, no se nega que h mais para alm dos meus olhos, para alm do que posso observar. Maso mundo aquele que vejo, que falo, que sinto.

    Neste alm-dos-meus-olhos, entra em questo o acesso essncia do objeto em si, a um todo no-dimensionado pelosmeus olhos. A crena, aqui, perceber que o telescpio no nos permite acessar um mundo fora do alcance das lentes, ouseja, no tem como acessar o objeto que estaria fora da posio em que o sujeito est diante das lentes. Como o sujeitoencontra-se em um espao e em um tempo determinado, est sempre pegando o bonde andando, tanto na linguagem/mun-do quanto em seu olhar no/pelo telescpio. Nesse sentido, Frege e para ampliar o pensamento e at Darwin, em suafilosofia da evoluo das espcies, no conseguem pontificar o Princpio, este por ter detectado o elo perdido entre huma-nos e macacos, o que j indica interrupo do processo contnuo, e aquele por circunscrever o mundo ao olhar do sujeitovia telescpio da linguagem, impedindo a ligao direta entre sujeito e mundo. Assim, s tenho como possvel o olhar parao recorte daquilo que determino como minha gnese em um espao e tempo determinados e no a Gnese em si.

    3. LINGUAGEM E AS REENTRNCIAS DO SIGNIFICADO PRIMITIVO

    No artigo referido, Derrida (1991) inicia a questo da usura por uma metfora. Faz a analogia da linguagem com umamoeda, de modo a mostrar o sensvel e o inteligvel. Utiliza-se das reentrncias da moeda, o exergo (local onde se colocaa data) e a efgie (a figura), como a moeda primeira, a que no foi ainda usada nem manipulada. A moeda, no seu momen-to primitivo, no qual o sensvel das reentrncias ttil, passa pelo uso no tempo, o que faz com que perca suas reentrn-cias e fique lisa. A lisura da moeda apaga o seu lado primitivo, o exergo e a efgie, mas que de alguma forma mantm osensvel pela representao que ali se estabelece. A relao se faz ao se pensar no olhar telescpico do sujeito, que podecaptar sentidos pelas representaes conferidas ao referente-objeto a que se dirige.

    Comea, ento, a desconstruo da histria emprica, a busca do sensvel que perpassa nas palavras horrvel e agrad-

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  • vel do primitivo dos seus significados , busca essa que pode at ser dificultada pela usura que atravessa o universo dapalavra. Derrida usa o termo usura sob dois aspectos: a usura da palavra na busca incessante do sensvel e a usura pelaspalavras que estabelece o vazio da linguagem metafsica; postula que seu papel deveria ser aquele que explica a vida, noseu ngulo mais sensvel:

    pode-se decifrar a dupla dimenso da usura: o apagamento por frico, por esgotamento, por esterilizao, certo, mastambm o produto suplementar de um capital, a troca que, longe de perder a entrada, faria frutificar a riqueza primiti-va, acrescentaria a paga sob a forma de lucros, de acrscimo de interesse, de mais-valia lingstica, permanecendo asduas histrias do sentido indissociveis (DERRIDA, 1991, p. 250).

    Mesmo pelo apagamento por frico, a linguagem frutifica, ou seja, mesmo em estado de usura da palavra e com suaslentes do telescpio at embaadas, a natureza da linguagem mostra seu universo metafrico, recurso re-vivificador paracontinuar a entrar em contato com a moeda original: o timo de um sentido primitivo permanece sempre, ainda quecoberto, assinalvel (DERRIDA, 1991, p. 251). No se est falando do processo metaforizador do filsofo, aquele que nasua metalinguagem est completamente distante do sensvel, pois apenas se coloca no plano metafsico; est se apontan-do para a metfora como jogo de linguagem que propicia deslizamentos de sentidos em prol do sensvel.

    4. A METFORA NO DESLIZAMENTO DO SENTIDO

    A apario da metfora, como natureza da linguagem, pressuposio continuista da usura de linguagem. A usu-ra de palavras to contnua que, muitas vezes, elas distanciam os sujeitos dos sentidos de seus referentes; a linguagem,ento, ficaria apenas a servio dos objetos da mente, o inteligvel em prol da metafsica, na qual os objetos do mundo(sensvel) no alcanariam os sentidos. Trata-se de uma eroso progressiva, de uma perda semntica regular, de um esgo-tamento ininterrupto do sentido primitivo (DERRIDA, 1991, p. 255). Nesse processo de gastura das palavras, as metfo-ras passam a ser um recurso de valor, valores que emergem dos contextos de uso, usos de sentido que se d aos referen-tes do mundo.

    O processo valorativo do metafrico est para dois eixos: o da semelhana e o da dessemelhana; ambos se constituemdo processo de deslizamento entre vocabulrios que vo ser trocados para mudar o sentir olfativo. Voltando empiria,mais especificamente ao jogo vocabular entre escatologia e VickVapoRub, o valor da semelhana se faz, porque ambosmostram os seus referentes partcipes do mundo olfativo, o olfato do desagradvel da escatologia humana que deslizoupara o do agradvel do hortel-VickVapoRub. A semelhana est na permanncia do olfativo, no importando a diferen-a de valores de cada um dos olfatos. E o eixo da dessemelhana pode ser percebido quando o vocabulrio agradvel transferido para o horrvel. O referente no foi excludo, pois o objeto escatologia ali continua, mas foi descentrado porum jogo relacional de odores a que se chama de sentido. O sentido de escatologia teve de sair de si prprio, buscar fora desi outro sentido para criar outro sentido: a escatologia com hortel, a escatologia agradvel. Houve uma deiscncia, umaseparao espontnea de suplementos de dois referentes o objeto escatologia e o VickVapoRub , que so manobradoscontextualmente para a criao de um sentido novo para o mesmo referente. O suplemento o odor de hortel se trans-feriu para o referente escatologia, criando o sentido de uma escatologia menos desagradvel.

    Nessa interseco de valoraes, h que se ter cuidado em no pensar que o referente escatologia, como objeto, ape-nas odor; odor um suplemento de sentido da escatologia, suplemento da ordem do olfativo que faz parte de sua consti-tuio significativa, mas que por necessidade de momento trocado por outro suplemento de outro referente, o objeto-referente VickVapoRub que, por sua vez, tambm no apenas odor.

    Nesse jogo que aqui fao no nvel do inteligvel, no patamar da prpria usura, toco outro sensvel, pois o primeiro meera insuportvel: uma palavra pode ser trocada por qualquer coisa dissemelhante: uma idia; por outro pode ser compa-rada com qualquer coisa da mesma natureza: uma outra palavra (DERRIDA, 1991, p. 258) (grifo nosso).

    O discernvel da linguagemDina Maria Martins Ferreira

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  • 5. O SENSVEL DA/NA METFORA E O REFERENTE

    O sensvel aqui se estabelece pela percepo olfativa, uma troca vocabular feita pela imaginao criativa, cuja metfo-ra tem o mrito de tornar sensvel toda a evoluo no emprego das metforas, mostrando as imagens novas que, de umdilogo para outro, podem aparecer na expresso de uma mesma idia (DERRIDA,1991, p. 263).

    Precisei sair para o exterior da idia desagradvel buscando outra idia agradvel, de modo que o valor da metfora se mani-festasse. Trabalhei com dessemelhana um odor agradvel em relao ao horrvel e com a semelhana por permanecer em ummesmo campo o do olfato. Precisei do exterior para criar metfora no seu prprio interior: que cheiro agradvel. Logo penso, ametfora mudana de referente? No, pois se negaria o jogo de significao instaurado sobre um mesmo objeto. Cria-se umeufemismo, metforico, da ordem do sentido e no do referente, no qual a significao no foi mudada apenas seu valor/sentido.

    A usura das palavras dessa experincia cotidiana no entrou no universo metafsico, no s pelo objeto de estudo nada maisprimitivo que a escatologia humana, mas tambm pela dinmica valorativa do sensvel olfativo. fala do colega da semntica,j que no se pode mudar o referente muda-se o sentido , no se nega o humor ornamental da retrica, mas o sujeito no seutelescpico linguageiro sentiu o exergo e a efgie da moeda, ou seja, mostrou pelo jogo de palavras um novo sentido, sem abrirmo do sentido primitivo do referente este, a escatologia humana horrvel, aquele, a escatologia mais agradvel. Em seu telesc-pio, o sujeito, ao ornamentar metaforicamente o referente pela troca de suplementos, tocou o sentido primitivo, deslocando ovalor/sentido e mantendo sua significao. No h como trabalhar com deslocamentos se no se conhecer o centro referencial. Pormais redutora que se pensa a linguagem como processo nomeativo, ela nos d a possibilidade de tocar o primitivo, o sensvel.

    Fura-se com a usura de palavras o inescrutvel da linguagem? Parece que sim, a metaforizao permitiu. Nesse senti-do, o inescrutvel no seria to inescrutvel, se o sujeito, em seu telescpio da linguagem, usar sua usura de palavras ten-tando fazer emergir o sentido primitivo, o sentido do sensvel. A metfora resume uma possvel e imensa descrio, poisse revela em um universo de semntica profunda. O discernvel venceu em relao ao inescrutvel.

    Logo, volto a perguntar sobre a relao entre referente/significao/valor-sentido e o processo de metaforizao. Des-locamentos h, mas a moeda e seu exergo permanecem. Como estudiosos da linguagem, no se deve sempre buscar essevalor que nos faz enxergar o exergo apagado pela gastura de uso de palavras?

    Fica registrado que:

    o mrito de tornar sensvel toda a evoluo no emprego das metforas, mostrando as imagens novas que, de um dilo-go para outro, podem aparecer na expresso de uma mesma idia. Numa palavra, no satisfaz apenas a necessidade declassificar, mas ajuda tambm a melhor penetrar o papel e o valor das imagens (DERRIDA, 2000, p. 263).

    6. CONCLUSES

    O referente passa a ter vida significativa o discernvel , se eu me utilizo de suplementos de outros referentes na consti-tuio de sentidos que me so pertinentes naquele instante. O sujeito, no instante do seu bonde andando, vai construindo omundo por sua linguagem. O objeto no linguajado em sua essncia, a talvez o inescrutvel no s da linguagem, mas tam-bm do prprio mundo, mas percebido pelos sentidos como visto e tocado. Se o meu olhar e a prpria linguagem me permi-tem atingir o sensvel, no seria o sensvel linguajado uma forma de tocar o mundo? Discernvel e inescrutvel convivem. Enfa-tizando: cada um est sempre em um bonde, em um tempo e um espao, com o telescpio, recebendo e produzindo mundo.

    Tanta usura de palavras para provar que se fala e sente o sensvel. E a aporia se presentifica, pois: reciprocamentesomos metafsicos sem o saber na proporo da usura de nossas palavras (DERRIDA,1991, p. 252).

    REFERNCIAS

    ABBAGNANO, Nicola. Dicionrio de filosofia. So Paulo: Martins Fontes, 2000.DERRIDA, Jacques. As margens da filosofia. So Paulo: Papirus, 1991.RAJAGOPALAN, Kanavillil. Reference: Fitzroy-Dearborn Encyclopedia of Linguistics. Chicago: no prelo. STRAWSON, Peter F. So Paulo: Abril, 1980. (Coleo Os Pensadores).

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