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Presidente Delmar Stahnke Vice-presidente Joseida Elizabete Timm DIREITO E DEMOCRACIA Indexador: LATINDEX Editora Elaine Harzheim Macedo Conselho Editorial Membros internacionais André-Jean Arnaud (Paris X-Nanterre) Etienne Picard (Université de Paris I/França) Reitor Marcos Fernando Ziemer Vice-Reitor Valter Kuchenbecker Pró-Reitor de Administração Levi Schneider Reitor de Graduação Ricardo Prates Macedo Pró-Reitor Adjunto de Graduação Pedro Antonio Gonzalez Hernandez Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação Erwin Francisco Tochtrop Júnior Pró-Reitor de Extensão e Assuntos Comunitários Ricardo Willy Rieth Capelão Geral Gerhard Grasel Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - CIP Setor de Processamento Técnico da Biblioteca Martinho Lutero Joaquín Herrera Flores (Universidad Pablo Olavide/Espanha) Luigi Ferrajoli (Roma Tre/Itália) Wanda Capeller (Toulouse/França) Membros nacionais externos Aldacy Rachid Coutinho (UFPR) Cláudio Brandão (UFPE) Cláudio Muradás Homercher Eduardo Reale Ferrari (USP) Ielbo Marcus Lôbo de Souza (UNISINOS) Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (UFPR) José Maria Rosa Tesheiner (PUCRS) Luís Afonso Heck (UFRGS) Miguel Reale Jr. (USP) Nereu José Giacomolli (PUCRS) Vladimir Passos de Freitas (UFPR) Membros nacionais internos Ângelo Roberto Ilha da Silva (ULBRA-Canoas) Gerson Luiz Carlos Branco (ULBRA- Canoas) Leonel Pires Ohlweiler (ULBRA-Canoas) Wilson Antônio Steinmetz (ULBRA-Canoas) EDITORA DA ULBRA Diretor: Astomiro Romais Coordenador de periódicos: Roger Kessler Gomes Capa: Everaldo Manica Ficanha Editoração: Rodrigo Saldanha de Abreu E-mail: [email protected] Solicita-se permuta. We request exchange. On demande l’échange. Wir erbitten Austausch. Endereço para permuta Universidade Luterana do Brasil Biblioteca Martinho Lutero Setor de aquisição Av. Farroupilha, 8001 - Prédio 05 92425-900 - Canoas/RS E-mail: [email protected] D598 Direito e Democracia: revista do Centro de Ciências Jurídicas / Universidade Luterana do Brasil. - Vol. 1, n. 1 (2000)- . - Canoas : Ed. ULBRA, 2000- . v. ; 23 cm. Semestral. A partir do vol. 1, n. 2 (2000), o subtítulo foi modificado para Revista de Ciências Jurídicas. ISSN 1518-1685 1. Direito - periódicos. 2. Ciências jurídicas. I. Universidade Luterana do Brasil. CDU 34(05) DIREITO E DEMOCRACIA Revista de Ciências Jurídicas - ULBRA o Vol. 11 - N 1 - Jan./Jun. 2010 ISSN 1518-1685 O conteúdo e estilo lingüístico são de responsabilidade exclusiva dos autores. Direitos autorais reservados. Citação parcial permitida, com referência à fonte.

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PresidenteDelmar StahnkeVice-presidente

Joseida Elizabete Timm

DIREITO E DEMOCRACIA

Indexador: LATINDEX

EditoraElaine Harzheim Macedo

Conselho EditorialMembros internacionais

André-Jean Arnaud (Paris X-Nanterre)Etienne Picard (Université de Paris I/França)

ReitorMarcos Fernando Ziemer

Vice-ReitorValter Kuchenbecker

Pró-Reitor de AdministraçãoLevi Schneider

Reitor de GraduaçãoRicardo Prates Macedo

Pró-Reitor Adjunto de GraduaçãoPedro Antonio Gonzalez Hernandez

Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-GraduaçãoErwin Francisco Tochtrop Júnior

Pró-Reitor de Extensão e Assuntos ComunitáriosRicardo Willy Rieth

Capelão GeralGerhard Grasel

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - CIP

Setor de Processamento Técnico da Biblioteca Martinho Lutero

Joaquín Herrera Flores (Universidad Pablo Olavide/Espanha)Luigi Ferrajoli (Roma Tre/Itália)Wanda Capeller (Toulouse/França)Membros nacionais externosAldacy Rachid Coutinho (UFPR)Cláudio Brandão (UFPE)Cláudio Muradás HomercherEduardo Reale Ferrari (USP)Ielbo Marcus Lôbo de Souza (UNISINOS)Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (UFPR)José Maria Rosa Tesheiner (PUCRS)Luís Afonso Heck (UFRGS)Miguel Reale Jr. (USP)Nereu José Giacomolli (PUCRS)Vladimir Passos de Freitas (UFPR)Membros nacionais internosÂngelo Roberto Ilha da Silva (ULBRA-Canoas)Gerson Luiz Carlos Branco (ULBRA- Canoas)Leonel Pires Ohlweiler (ULBRA-Canoas)Wilson Antônio Steinmetz (ULBRA-Canoas)

EDITORA DA ULBRADiretor: Astomiro RomaisCoordenador de periódicos: Roger Kessler Gomes Capa: Everaldo Manica FicanhaEditoração: Rodrigo Saldanha de AbreuE-mail: [email protected]

Solicita-se permuta.We request exchange.On demande l’échange.Wir erbitten Austausch.

Endereço para permutaUniversidade Luterana do BrasilBiblioteca Martinho LuteroSetor de aquisiçãoAv. Farroupilha, 8001 - Prédio 0592425-900 - Canoas/RSE-mail: [email protected]

D598 Direito e Democracia: revista do Centro de Ciências Jurídicas / Universidade Luterana do Brasil. - Vol. 1, n. 1 (2000)- . - Canoas : Ed. ULBRA, 2000- . v. ; 23 cm.

Semestral.A partir do vol. 1, n. 2 (2000), o subtítulo foi modificado para

Revista de Ciências Jurídicas.ISSN 1518-1685

1. Direito - periódicos. 2. Ciências jurídicas. I. Universidade Luterana do Brasil.

CDU 34(05)

DIREITO E DEMOCRACIARevista de Ciências Jurídicas - ULBRA

oVol. 11 - N 1 - Jan./Jun. 2010ISSN 1518-1685

O conteúdo e estilo lingüístico são de responsabilidade exclusiva dos autores. Direitos autorais reservados.Citação parcial permitida, com referência à fonte.

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Sumário

3 Editorial

Artigos

5 Estruturas sociais e políticas: problemas de mudança, comunicação e participação nos sistemas transicionais

Manoel Alexandre C. Belo

13 A proximidade do Direito a Distância: análise das controvérsias sobre a criação de cursos de graduação em Direito na modalidade EAD

André Trindade

19 Para uma hermenêutica do mercado ou “informes econômicos à academia” Augusto Jobim do Amaral

34 O “boring” dos textos jurídicos Marco Félix Jobim

43 O direito à saúde no Brasil e a teoria da reserva do possível como falácia à sua efetivação

Germano Schwartz; Vitor Rieger Teixeira 61 O direito de greve no serviço público brasileiro Marcelo Loeblein dos Santos; Rosemari Pedrotti de Ávila

76 Água, um direito fundamental Roberto Ferreira de Macedo

95 A sumarização do processo: o antes, o agora e o depois ou o ir e vir dos textos legislativos

Elaine Harzheim Macedo

117 Justiça Restaurativa e sistema penal: apontamentos para a construção de um novo modelo de justiça criminal no Brasil

Daniel Achutti

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Documento histórico

139 Sentença do caso “O sequestro dos uruguaios”

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EditorialEnsina a Filosofi a – a Mestre das Mestres – que a noção de espaço deu origem a três

ordens de problemas, a saber, a natureza do espaço, a realidade do espaço e a estrutura métrica do espaço. Por sua vez, as respostas encontradas a esses questionamentos não são nem simples, nem uniformes, gerando teses e discussões que atravessaram os séculos e que ainda representam, na contemporaneidade, águas tormentosas. Sem pretender simplifi car o que não é simples, curvamo-nos, nos limites deste editorial, à ideia difundida por Hegel, no âmbito da investigação da realidade, que o espaço não passa de forma, confi gurando-se como abstração da exterioridade imediata, negando, desta sorte, sua realidade e remetendo o espaço para um plano irreal, projetado pelo ser que o cria. A tese da subjetividade do espaço, é bom que se registre, fora lançada por Hobbes e perseguida por Locke, entre outros, representando, nas diversas facetas que a defenderam e ainda defendem, uma redução do espaço, mas, ao mesmo tempo, colocando nas mãos do homem toda a potencialidade do espaço.

Pois bem, a revista Direito e Democracia, com seu volume 11, nº 1, assume essa potencialidade e cria o seu espaço, partilhando e divulgando o conhecimento patrocinado por seus articulistas, no anseio de contribuir para a formação e o aperfeiçoamento jurídico de seus leitores.

Neste número, participando desta tarefa, Manoel Alexandre C. Belo, tendo como modelo a democracia participativa brasileira, sistematiza os traços dominantes e comuns insertos nos sistemas subdesenvolvidos ou transicionais relativamente à mudança societária e aos padrões de comunicação e participação política.

Com um pé no Direito e outro na Educação, André Trindade analisa as possibilidades dos cursos de graduação em Direito pelo sistema de ensino a distância na modalidade semipresencial ou bimodal.

De Augusto Jobim do Amaral vem o questionamento do papel central da instância mercadológica na estrutura de signifi cação social contemporânea, revelando a dinâmica que se estabelece entre a funcionalidade do mercado e o espaço puro de poder investido.

A tendência da produção de textos jurídicos entediantes, afastando o leitor em vez de cativá-lo, é o tema abordado por Marco Félix Jobim, que propõe uma revolução de técnica redacional e de apresentação visual, não só com foco no estudioso da área, mas atento à interação com outros ramos do conhecimento.

A polaridade que se estabeleceu no direito pátrio quanto ao direito social à saúde, garantido constitucionalmente, e a teoria da reserva do possível, como limitação por parte do Estado no cumprimento deste dever prestacional, é objeto do artigo de lavra de Germano Schwartz e Vitor Rieger Teixeira, que demonstram a falácia da argumentação que ganhou foro nos debates acadêmicos e nas práticas forenses, em detrimento à concretização de um direito ilimitado.

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Tema sempre inquietante, o direito de greve no serviço público brasileiro é analisado por Marcelo Loeblein dos Santos e Rosemari Pedrotti de Ávila, seja sob o aspecto legal-constitucional, seja sob o enfrentamento jurisprudencial, pondo em destaque o instrumento da negociação coletiva no serviço público, cujas características certamente não se igualam à que acontece no serviço privado.

A água como direito fundamental é o objeto do estudo realizado por Roberto Ferreira de Macedo em face da legislação pátria e das exigências do mundo pós-moderno.

A milenar, mas nem por isso esgotada, técnica da sumarização procedimental vem analisada por esta signatária com destaque para a sua adoção e prática no passado, no presente e sua proposição em projeto de lei que tramita no Congresso Nacional de um novo Código de Processo Civil, constituindo-se, na verdade, como um movimento circular ou de ir e vir, conforme os ventos das teorias predominantes que imperam na ciência processual.

Por derradeiro, Daniel Achutti presenteia-nos com um artigo versando sobre a crise do processo penal na sociedade contemporânea, avaliando seus pressupostos epistemológicos e apresentando a Justiça Restaurativa como uma alternativa concreta para o sistema de justiça criminal brasileiro.

No espaço Documento histórico, a Direito e Democracia oferece aos seus leitores importante peça jurídica dos anos setenta, a sentença criminal da lavra do Dr. Moacir Danilo Roij Rodrigues no processo crime que tratou do caso do “Sequestro dos Uruguaios”, quando Lilian Celiberti, seus dois fi lhos menores e o jovem Universindo Diaz foram vítimas de sequestro em operação executada pela repressão gaúcha.

A todos a quem esta revista chegar, nossas homenagens.

Elaine Harzheim MacedoEditora

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Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010 5Direito e Democracia v.11 n.1 p.5-12 jan./jun. 2010Canoas

Estruturas sociais e políticas: problemas de mudança, comunicação e participação

nos sistemas transicionaisManoel Alexandre C. Belo

RESUMOO texto busca sistematizar os traços dominantes e comuns que podem ser observados nos

sistemas subdesenvolvidos ou transicionais, especialmente no que concerne à mudança societária e padrões de comunicação e participação política. Ao final, reporta-se à teoria da democracia participativa, tomando por base a legislação brasileira.

Palavras-chave: Mudança societária. Comunicação política. Democracia participativa.

Social and politics structures: Problems of changing, communication and participations in transitional systems

ABSTRACTThe text aims systematizing the dominant and common traces which can be observed in the

underdeveloped or transitional systems, especially as far as the societary change and communication standards and political participation are concerned. In the end, it refers to the theory of participative democracy, based on Brazilian legislation.

Keywords: Societary change. Political change. Political communication. Participative democracy.

1 As instituições e os valores políticos mudam. Em algumas sociedades, mudanças consideráveis nas instituições e nos valores ocorrem de forma traumática. Em outras, a mudança acontece de maneira lentamente evolutiva, sem perturbações civis manifestas. Entre esses dois extremos, há gradações de estabilidade e instabilidade social. A mensuração de tais gradações continua a ser um problema importante para a pesquisa social e política.

A mudança política está claramente relacionada a um grande número de forças econômicas e sociais. O próprio governo, ao iniciar amplos programas de educação, saúde, previdência etc., pode se responsabilizar pelo início de movimentos sociais que acarretarão mudanças políticas. É facilmente demonstrável que a mudança política se situa em meio a uma gama de fenômenos: industrialização, urbanização, automação, educação, cibernética, aumento das comunicações, advento de novas instituições e desaparecimento

Manoel Alexandre C. Belo é Mestre em Direito (UFSC). Mestre e Doutor de Estado em Ciência Política (Universidade de Ciências Sociais de Toulouse, França). Professor Titular da Universidade Potiguar (UnP). Professor Aposentado da UFPB. Ex-professor visitante do Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da UFPB. E-mail: [email protected]

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de outras, dispersão de grupos raciais e outros. Dispor essas variáveis em esquemas analíticos relativamente claros, apropriados ao estudo da Política, enquanto diferente das demais ciências sociais, é infi nitamente mais complexo e difícil. Para responder a esse desafi o – apresentado aos estudos políticos comparados por um grande número de nações dedicadas à rápida mudança social – foi que a Ciência Política se desenvolveu. São, normalmente, os problemas dessas sociedades transicionais que se têm em conta, quando se cogita de desenvolvimento.

O sistema político, nas áreas em transição, distingue-se, em geral, por uma alta incidência de lideranças carismáticas, associadas a numerosas condições críticas. Ao mesmo tempo, as instituições formais de tomada de decisões gozam de muito baixa reputação, em razão dos níveis elevados de corrupção, e, evidentemente, de reduzido grau de credibilidade e legitimidade. É comum os interesses serem mal articulados e a organização dos grupos de pressão e dos partidos ser complicada por clãs, oligarquias, elites ou grupos étnicos. Existe também uma taxa muito alta de recrutamento para cargos administrativos, por motivos de clientelismo e apoio político. Muitas vezes o povo está votando, aderindo aos partidos políticos, envolvendo-se com a política, pela primeira vez. Em regra, há também um largo fosso entre a elite, relativamente sofi sticada e educada, e a massa popular, com altos índices de exclusão social, analfabetismo e alienação política.

2 Portanto, o processo político, nos sistemas transicionais, detém traços dominantes e comuns que podem ser observados nas formas mais concretas pelas quais se apresentam na maioria dos países. De modo geral, a natureza do Estado e algumas de suas mais importantes funções estão relacionadas com as seguintes condições estruturais:

I. O processo político formal (o jogo e a competição entre os partidos, o funcionamento do sistema parlamentar, o sistema eleitoral etc.) não se constitui no aspecto mais importante do sistema político geral. Em boa parte dos sistemas, a forma mais corrente – e também se poderia dizer: estatisticamente normal – de sucessão no poder é mediante golpes de estado. Em outros, os mecanismos constitucionais são débeis e se acham à mercê de forças que escapam ao seu controle efetivo. Essas forças, ou fatores decisivos de poder, representam poderosos grupos de pressão. Tampouco se pode ignorar a grande importância política das organizações religiosas, que, muitas vezes, se vinculam aos “fatores de poder”. O papel dos partidos políticos é variável, devido à sua estrutura débil, inadequada, artifi cial ou corrupta. Todas essas características traduzem a persistência, às vezes subterrânea, mas nem por isso menos real, do poder oligárquico, geralmente associado aos grandes grupos fi nanceiros nacionais e internacionais.

II. Por outro lado, importantes setores da população, de características acentuadamente tradicionais, como os camponeses, o operariado recentemente urbanizado, as populações indígenas, permanecem, por diversas razões, à margem do processo político formal: muitos são analfabetos e não compreendem os padrões eleitorais; a natureza do sistema de eleições soa, para outros, demasiadamente abstrata e confusa, sendo que a maioria continua ainda submetida a formas tradicionais de dominação (“caciquismo”,

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caudilhismo, paternalismo etc.). Isso faz com que sejam facilmente manipuláveis e que não possam chegar a constituir uma força política independente da estrutura de poder existente. Em tais circunstâncias, o apelo das ideologias tem consequências escassas; em compensação, as ligações pessoais e os fatores locais, mais concretos e efetivos, infl uenciam bastante no recrutamento dos eleitores e na orientação política.

III. A coesão política em torno do governo é geralmente fraca e seu nível de legitimidade real é baixo. Poderosos grupos de pressão mantêm-se vigilantes e em atividade “independente”; quando algum ato do governo atinge de maneira frontal os seus interesses, lançam-se imediatamente à conspiração para derrubá-lo ou questioná-lo. Assim sendo, uma alta proporção dos governos não pode concluir seus mandatos ou cede àqueles interesses, havendo, pois, uma subordinação real ou aparente dos governantes a tais fatores de infl uência.

IV. Desse modo, a estabilidade e continuidade dos governos tem dependido de sua capacidade em alcançar compromissos políticos que implicam no apoio dos mais importantes fatores de infl uência. Diante da inexistência de um consenso real e de um suporte generalizado ao poder formal, este é obrigado a se integrar aos grupos mais poderosos e melhor situados estrategicamente para conseguir certa permanência institucional. O procedimento seguido para angariar a simpatia desses grupos à política governamental e interessá-los em sua continuidade, tem relação com as circunstâncias mais concretas e peculiares de cada país e de cada momento histórico. Porém, em geral e quase sem exceção, consiste em alguma forma de privilégio ou benefício econômico que repercute negativamente sobre as possibilidades de desenvolvimento, sacrifi cando os estratos menos favorecidos da população. Portanto, a cooperação política tem sido alcançada seja mediante a utilização dos recursos orçamentários, seja da adequação da política econômica do Estado às necessidades de concessão de oportunidades excepcionais, ou através mesmo da transferência de recursos aos setores privilegiados. Diversos procedimentos práticos têm sido utilizados nessa política parcial: a infl ação, o controle do sistema de preços, a política fi scal, a fi xação de salários, a concessão seletiva e preferencial de crédito bancário, o controle de câmbio e a política alfandegária, as licitações, a concessão de serviços públicos etc. O grande crescimento de cargos na burocracia civil traduz igualmente o modo como importantes e numerosos setores médios têm sido incorporados para apoiar o governo. Cada mudança de poder signifi ca invariavelmente um aumento substancial dos cargos, empregos e funções públicas, independentemente das necessidades e exigências do desenvolvimento, que fi ca assim prejudicado pelas nomeações em massa realizadas por recompensa de “serviços políticos”. A malversação, o suborno e a corrupção no uso dos fundos públicos são frequentes e generalizados.

V. A situação atual dos sistemas transicionais, mesmo com o processo de globalização (que, certamente, não atenuou esses problemas) é crítica, em alguns sentidos. De um lado, se defrontam com massas marginalizadas que começam a se mobilizar social e politicamente, sendo que grande número delas está concentrada nos centros urbanos, onde pretendem alcançar um nível de vida mais elevado. Essas massas se encontram

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em condições de subconsumo e com aspirações crescentes, e, por estas e outras razões, revelam grandes possibilidades potenciais para se somarem a um movimento contrário ao status quo. Por outro lado, a estabilidade a curto prazo dos governos depende cada vez mais da cooperação e suporte dos grupos estratégicos, muito embora se torne progressivamente mais difícil conseguir sua integração em torno de uma política consistente e efi caz de desenvolvimento. A sucessão de golpes e as consequentes mudanças de governo assim produzidas desde o último pós-guerra, comprovam a debilidade crescente dos compromissos oligárquicos, que não conseguem estabilizar a situação política de modo duradouro. Revelam também a falta de substância das alternativas políticas substitutivas da decadente dominação oligarco-paternalista. Um dos principais paradoxos atuais do poder, nos sistemas transicionais, é a existência de governos frágeis e instáveis em Estados fortes. Poder-se-ia até mesmo afi rmar que a própria força dos Estados é uma das principais fontes de debilidade e instabilidade dos respectivos governos. Com efeito, são as possibilidades potenciais de ação à disposição do Estado que intensifi cam a competição para seu controle. O Estado tornou-se uma presa mais cobiçada que no passado – e daí a intensifi cação da luta política entre grupos poderosos para monopolizar o domínio da política econômica. Uma situação de tal tipo poderia ser estável se houvesse a possibilidade de conciliar os mais fortes interesses em confl ito, de modo a se conseguir um mínimo de cooperação entre eles. Mas isto se torna difícil, devido principalmente à situação geral de estagnação econômica na maioria dos sistemas transicionais. Conciliar interesses em meio a um processo de desenvolvimento acelerado é relativamente fácil, na medida em que é acompanhado de uma redistribuição progressiva da renda nacional e dos seus incrementos. Ao contrário, quando não existe essa redistribuição, perduram os confl itos, tornando o processo de desenvolvimento irregular e esporádico. Não resta dúvida que os incrementos de renda produzidos pelo desenvolvimento oferecem a perspectiva de melhorar a posição econômica de vastos setores sociais, e conformá-los. Entretanto, quando não há desenvolvimento, ou quando este benefi cia apenas pequenos segmentos da população, as escassas oportunidades econômicas existentes derivam forçosamente da ação direta ou indireta do Estado, mediante incipientes políticas redistributivas.

VI. Por fi m, a educação formal está, íntima e complexamente, envolvida com a estrutura sociopolítica. Um dos problemas mais graves dos sistemas transicionais continua a ser, ainda hoje, o do baixo nível de educação dos seus habitantes, considerados como fatores de produção. A educação, nessas áreas, funciona mais como meio para certas classes e grupos manterem vantagens sobre outros, e muito menos como um instrumento essencial ao processo de desenvolvimento, aqui considerado no seu aspecto geral.

Qualquer estilo de desenvolvimento exige mudanças de largo alcance nas formas de relacionamento entre as pessoas e entre elas e o Estado. O ideal seria que tais mudanças se orientassem no sentido de uma sociedade mais aberta e mais bem integrada, com opções mais livres e maiores perspectivas para o estabelecimento de vínculos associativos voluntários, a todos cabendo o direito de opinar sobre a composição dos governos locais e nacionais. O indivíduo e os grupos, sujeitos a uma gama mais extensa de obrigações para com o Estado, dele exigiriam maior espectro de serviços e de proteções. Para tanto

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seriam necessários canais institucionais, estabelecidos conforme as necessidades, visando uma interação cada vez mais complexa da informação, da persuasão, da negociação, das pressões, da resistência e do controle, entre os grupos locais e as autoridades. Em princípio, transformações dessa natureza deveriam corresponder a um critério básico para qualquer estilo de desenvolvimento admissível: o aumento da capacidade da sociedade para funcionar, a longo prazo, em benefício de todos os seus membros.

É óbvio que as atuais pautas de mudanças nos sistemas transicionais só parcial e deformadamente correspondem a esse quadro ideal. Quase por toda parte é visível o quanto estão alarmadas e insatisfeitas as autoridades nacionais com as defi ciências apresentadas pelos mecanismos de comunicação existente entre eles e a população. Essa insatisfação é ainda mais acentuada em países cujos dirigentes têm objetivos desenvolvimentistas coerentes e pressa em alcançá-los. Em nível de populações locais, observam-se, em diferentes contextos nacionais: a fé desmesurada na capacidade do Estado para satisfazer as necessidades sociais; um ceticismo marcado em relação à boa vontade e competência das autoridades públicas; a apatia em relação aos estilos de vida e formas de mobilização associadas a seu estilo de desenvolvimento, ou uma atitude de rejeição franca quanto a eles; surtos de violência muitas vezes centrados em problemas aparentemente alheios ao desenvolvimento ou ao bem-estar das pessoas nele envolvidas; e, fi nalmente, uma estrita concentração em certas pautas de “progresso” que geralmente vêm acompanhadas pela apropriação seletiva dos serviços supostamente colocados ao alcance de todos pelo Estado, em prejuízo do que pareceria constituir o mínimo de requisitos capazes de viabilizar uma ordem social e política mais aberta.

Em regra, o governo busca abrir e controlar canais de comunicação e de mobilização, mas, ao mesmo tempo, debilita ou domina as instituições que ameacem seus objetivos ou com ele rivalizem ao exigir apoios. Em toda parte tal luta se complica, se desvia ou é paralisada, em certa medida, pela interação nos planos nacionais dos diversos grupos de pressão potencialmente infl uentes; pela insufi ciência de informação e de compreensão, no seio do Estado, sobre a realidade das situações locais e sobre as consequências das ações que ele pode empreender; e pelas características especiais dos agentes burocráticos da Administração e de outras estruturas (políticos, empresários, proprietários, líderes de organizações etc.) que se interpõem entre a sociedade e o poder. As autoridades nacionais sempre necessitam de instituições e iniciativas locais articuladas para chegarem a objetivos inalcançáveis por decreto ou pela dotação direta de recursos. Os governantes têm alguma consciência dessa necessidade; ao mesmo tempo, costumam carecer de uma ideia clara do que pode ser conseguido e de como consegui-lo, vendo-se limitados pelo temor de perder o controle das iniciativas locais, ou de que estas imponham exigências indesejáveis ou, mesmo, de que caiam em mãos adversárias.

Na prática, alguns problemas implícitos no estabelecer contato com os centros superiores de poder tendem a desmembrar a unidade social, enquanto outros contribuem para uni-la; alguns só dizem respeito aos interesses de pequeno número dos membros da sociedade, outros atingem a maioria. É mais provável que a mobilização de toda a sociedade em torno de algum problema seja algo transitório e pouco frequente. A luta

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travada de baixo e os esforços que o Estado empreende de cima são inefi cazes, em grande parte errados e, até, contraproducentemente orientados, quanto a seu sentido, se ocorrem em circunstâncias típicas (confl ito de objetivos no centro da unidade social, cadeias de intermediários a deformar as mensagens transmitidas para cima ou para baixo, escassa informação e conhecimentos – no âmbito local – dos recursos de que o Estado dispõe sobre os grupos de pressão que o controlam etc.). Evidentemente, a capacidade de atuação coletiva e deliberada dos diferentes grupos, e dos elementos sociais que os integram, é muito variável; mas, em geral, se limitam a realizar tentativas esporádicas, mal focalizadas e fragmentadas, de enfrentar o Estado. Por último, é preciso considerar que as funções de qualquer instituição ou organização com infl uência real sobre o sistema político são vistas de modo diverso pelos vários interessados, os quais se esforçarão – de uma maneira ou de outra – para manejar a instituição ou organização, como também para evitar que elas os dominem.

A partir destas observações, é possível inferir que os fatores estruturais que prejudicam a mudança societária – bem como a mobilização e a participação das massas no processo político dos sistemas transicionais – são os seguintes: (a) incompatibilidade das estruturas de poder nacional e local com a participação autônoma e organizada da população; (b) incapacidade das pautas atuais de desenvolvimento econômico e mudança social – com seus aspectos de desigualdade crescente, exclusão e dependência – para darem lugar a tal participação; (c) inadequação dos valores e motivações dominantes da sociedade com as relações de participação construtiva ou de cooperação.

Em consequência, é preciso aperfeiçoar as instituições, de forma a propiciar a realização da democracia participativa. Do século XVIII ao século XXI, o mundo sofreu grandes transformações nesse sentido. Cada uma dessas transformações tentou tornar efetiva uma forma de organização estatal: primeiro, o Estado liberal; em seguida, o Estado marxista-leninista; depois, o Estado social das Constituições programáticas; por fi m, o Estado social dos direitos fundamentais, “este, sim, por inteiro capacitado da juridicidade e da concreção dos preceitos e regras que garantem estes direitos” (BONAVIDES, 2001:148).

3 Em todos esses momentos, a Democracia, enquanto método de governo, sofreu avanços e recuos, nos quais se questionaram, a todo instante, as formas de convivência social. Embora persista a difi culdade em conceituá-la, aceitando-a como sistema, processo, fi losofi a, ideal, crença, o importante é que ela, hoje, pressupõe a participação da sociedade na criação normativa e na gerência da coisa pública.

Porém, a participação efetiva e operante da sociedade civil na esfera pública não deve exaurir-se apenas na formação das instituições representativas. Como contraponto às falhas do sistema representativo, e até como alternativa natural, encontra-se sedimentada a ideia de democracia participativa, apoiada no interesse e na autodeterminação política dos indivíduos, possibilitando transformar a apatia concernente ao problema da relação Sociedade/Estado na conscientização da responsabilidade ativa da sociedade. A teoria da democracia participativa levanta,

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no fundo, os problemas da teoria da democratização: a realização do princípio democrático em todos os domínios da sociedade (CANOTILHO, 1993:409/410).

Por outro lado, a participação popular constitui um meio de se alcançar a estabilidade do sistema, visto que altera as relações de domínio e do estilo de decisão, pela conciliação entre representação e participação. Atualmente, não é possível vislumbrar a ideia democrática sem antever a necessidade de criação e de estruturação de mecanismos que ofereçam ao indivíduo meios para participar dos processos de decisão, assim como do controle do exercício do poder, embasado em informações precisas, considerações críticas e na diversidade de opiniões.

Dessa maneira, a democracia atual pressupõe referências a um processo que, além do aspecto político, alcança a vida social, cultural e econômica, como, por exemplo, no caso do Brasil, a participação na gestão democrática da cidade e a participação popular nos processos de elaboração e discussão dos planos, diretrizes orçamentárias e orçamentos. A Carta da República, ao declarar que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes eleitos ou diretamente...”, instaurou no país a democracia participativa, fazendo surgir no seu bojo formas de participação da sociedade na formação e controle dos atos de governo (plebiscito, referendo, iniciativa popular, ação popular, audiências públicas etc.). É possível observar, a partir disto, que o legislador constituinte superou o simples âmbito eleitoral, para projetar a participação democrática em todos os processos sociais e públicos.

Robert Dahl, ao conceber a democracia contemporânea, clama, entre outras coisas, pela participação efetiva, o entendimento esclarecido e o controle do programa de planejamento, ou seja: (a) antes de ser adotada uma política pela sociedade, todos os membros devem ter oportunidades iguais e efetivas para fazer os outros membros conhecerem suas opiniões sobre qual deveria ser esta política; (b) dentro de limites razoáveis de tempo, cada membro deve ter oportunidades iguais e efetivas de aprender sobre as políticas alternativas importantes e suas prováveis consequências; e, (c) os membros devem ter a oportunidade para decidir como e, se preferirem, quais as questões que devem ser colocadas no planejamento (2001:49).

Ora, ao se tomar como exemplo a Lei Complementar 101/00 (Lei de Responsabilidade Fiscal), na qual “a responsabilidade na gestão fi scal pressupõe a ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas..” (art. 1º, § 1º) e que isto também será assegurado “mediante incentivo à participação popular e realização de audiências públicas, durante os processos de elaboração e de discussão dos planos, lei de diretrizes orçamentárias e orçamentos” (art. 48 e parágrafo único), ter-se-á claramente defi nida a necessidade de se criar mecanismos que possibilitem tal participação.

O resultado disso tudo será, sem dúvida, o entrelaçamento entre a democracia (participação da sociedade na escolha dos rumos e destinos do país), a cidadania (acesso aos espaços públicos de defi nição de prioridades) e efetivação dos direitos fundamentais, núcleo intangível de uma ordem jurídica que se pretende justa, igualitária, solidária e pluralista.

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REFERÊNCIASBELO, Manoel Alexandre C. Os grupos de pressão e sua influência no processo do desenvolvimento (Dissertação de mestrado). Florianópolis: UFSC, 1978.BOBBIO, Norberto. Estado, Governo e Sociedade: para uma teoria geral da política. Rio: Paz e Terra, 1992.BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa. São Paulo: Malheiros, 2001.CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1993.DAHL, Robert A. Sobre a Democracia. Brasília: UnB, 2001.LEAL, Rogério Gesta. Estado, administração pública e sociedade – novos paradigmas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.PEREZ, Marcos Augusto. A administração pública democrática – institutos de participação popular na administração pública. Belo Horizonte: Forum, 2004. SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Cia das Letras, 2000.SILVA, Guilherme A. C. Direito ao desenvolvimento. São Paulo: Método, 2004.

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A proximidade do Direito a Distância: análise das controvérsias sobre a criação

de cursos de graduação em Direito na modalidade EAD1

André Trindade

RESUMOO presente ensaio aborda a possibilidade de criação do curso de Direito na modalidade a

distância. Adotou-se uma mescla do método analítico com o método comparativo. Avalia-se, de tal modo, a capacidade de atendimento das diretrizes impostas ao curso de graduação em Direito pelo sistema de ensino a distância na modalidade semipresencial ou bimodal. As opiniões aqui descritas não têm o objetivo de defender posições, mas apenas avaliar possibilidades.

Palavras-chave: Direito a distância. Educação. Cidadania.

The next coming of the distance law: Analysis of controversies about the creation of degree law courses in the way Distance

Teaching

ABSTRACTThis research is about the possibility of creating a law course in distance mode. It was adopted a

mixture of analytical method with the comparative method. It is estimated the ability to meet the guidelinesimposed to the degree law course by the system of distance learning in the way half attendance classroom or the semi bimodal. The views here analyzed are not intended to defend positions, but only to value the possibilities.

Keywords: Law distance. Education. Citizenship.

1 INTROITO O ensino a distância tem se demonstrado uma ferramenta de construção da cidadania

ao possibilitar o acesso ao ensino de qualidade em regiões que não possuem condições de oferta regular do ensino presencial. Além disso, possibilita ofertar formação de alta qualidade com renomadas autoridades científi cas. Tal é a importância do ensino a distância que o legislador autorizou sua oferta a todos os níveis de ensino, da educação básica ao doutoramento.

André Trindade é advogado, Mestre em Direitos Fundamentais, presidente do Instituto de Teoria do Direito, diretor do Centro de Pesquisa em Ciências Sociais Aplicadas da UNOPAR. E-mail: [email protected] Trabalho apresentado no VI Congresso Nacional da Associação Brasileira de Ensino do Direito.

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A modalidade de ensino a distância é regulada/autorizada pelo sistema educacional brasileiro e tem por objetivo ampliar a oferta do ensino a todos os níveis de instrução. É notório que o Estado não tem condições de adimplir na íntegra o direito à educação, impossibilitando, de tal modo, muitas pessoas de obter formação. A própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação afi rma que “o Poder Público incentivará o desenvolvimento e a veiculação de programas de ensino a distância, em todos os níveis e modalidades de ensino, e de educação continuada” (art. 80). Verifi ca-se, de tal modo, o interesse estatal no ensino a distância como instrumento de democratização do ensino.

A construção do conhecimento jurídico impõe, todavia, certos requisitos para que se garanta a qualidade do graduado. A Resolução CNE/CSE 09/2004 institui as diretrizes curriculares nacionais dos cursos de graduação em direito e delimita os elementos essenciais à manutenção da excelência na formação do jurista. É nesse contexto que o presente ensaio visa avaliar os pontos de contato e colisão entre a manutenção da qualidade do ensino jurídico e sua oferta na modalidade a distância. Para tanto, optou-se por realizar um estudo comparativo sob diversos aspectos.

2 É POSSÍVEL CRIAR UM CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO A DISTÂNCIA? COMO?O ensino jurídico hodierno deve ser pautado por uma aprendizagem que ultrapasse

as práticas fomentadas pela escola de Coimbra que centralizava seu modelo de ensino em “salas de aula lotadas com alunos silenciosos ouvindo longas explanações”.2 Para que o ensino jurídico acompanhe as evoluções da sociedade, deve atuar com o trabalho de grupos focado na solução de problemas.3 Nesse contexto, o ensino de direito a distância pode ser avaliado como uma modalidade adequada às novas necessidades pedagógicas?

O ensino a distância pode ser desenvolvido de diversas formas. A mais adequada à formação jurídica é o modelo Bimodal e Multimidiático. Nessa modalidade o acadêmico deve comparecer regularmente ao polo de apoio presencial para acompanhar as aulas ministradas no polo central da universidade. A interação entre o aluno e o professor é garantida pela possibilidade de contato durante a aula, através de áudio e perguntas dirigidas. Além disso, o aluno participa de chat para discutir os conteúdos ministrados e sanar dúvidas geradas. O contato do aluno com o professor também pode ser estendido após as aulas por sistema de tele ou vídeo conferência. Cada disciplina possui tutores com formação adequada que auxiliam o docente responsável pela disciplina e o aluno na construção do conhecimento.

Cada disciplina deve possuir material didático que possibilite o acompanhamento das aulas. Tal material não substitui a bibliografi a especializada nem deve ser um limitador

2 CARLINI, Angélica Lucia. In: TAGLIAVINI, João Virgílio (Org.). A superação do positivismo jurídico no ensino do direito. Araraquara: Junqueira & Marin Editores, 2008, p.212. 3 CARLINI, Angélica Lucia. In: TAGLIAVINI, João Virgílio (Org.). A superação do positivismo jurídico no ensino do direito. Araraquara: Junqueira & Marin Editores, 2008. p.218.

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do processo de busca do conhecimento, mas sim um norteador que elenca os conteúdos essenciais ao acadêmico. A bibliografi a deve comportar, além da básica e complementar, obras que aprofundem as especifi cidades do conhecimento jurídico.

As disciplinas que compõem uma proposta de projeto pedagógico de curso de graduação em Direito na modalidade a distância devem seguir as diretrizes previstas na Resolução CNE/CSE 09/2004. Para Machado, “o projeto pedagógico deve promover uma formação mais ampla, de cunho geral e humanístico, ao mesmo tempo em que deve propiciar o conhecimento técnico necessário ao desempenho efetivo da profi ssão jurídica.”4 Tal previsão pode ser perfeitamente adimplida pela modalidade a distância, uma vez que as tecnologias de informação e comunicação possibilitam as interações entre os participantes do processo de construção do conhecimento (alunos, professores, tutores...). Tais requisitos são atendidos pelo sistema de Ensino a Distância que possibilita a captação de aulas em diversas partes do globo. Esse facilitador permite ofertar aos alunos aulas com professores locados em centros de excelência acadêmica. Esse professor, todavia, deve possuir um perfi l adequado ao uso das tecnologias de informação e comunicação.5 É possível, com tal tecnologia, transmitir para todo o território brasileiro uma aula ministrada na Europa com uma diferença de apenas três segundos do tempo real. Essas inovações permitem a redução das barreiras do tempo e do espaço na prática pedagógica jurídica, mantendo sua qualidade.

O estágio de prática jurídica garante ao aluno a integração da formação acadêmica com a realidade profi ssional. O estágio é componente curricular obrigatório e deve ser desenvolvido em ambiente adequado à operacionalização das práticas inerentes ao perfi l profi ssional almejado pelo curso. A prática jurídica nos cursos de Direito, ofertados na modalidade a distância, deve ser desenvolvida nos polos de apoio presencial, com estrutura humana e física sufi ciente à integração dos conteúdos ministrados nos bancos escolares com as necessidades inerentes ao operador do direito. De tal modo, o polo de apoio presencial deve ofertar Núcleo de Práticas Jurídicas composto de docentes habilitados a orientar os acadêmicos nas práticas simuladas e reais. O conhecimento prático dos procedimentos inerentes ao direito adjetivo, aliado ao direito material, é indispensável ao referido docente e permite ao acadêmico a inserção de seus conhecimentos na realidade regional.

Além do Núcleo de Prática Jurídica, parte do estágio pode ser realizado, mediante convênio, em entidades e instituições que atuam diretamente no labor jurídico. Órgãos do Poder Judiciário, Ministério Público, escritórios de advocacia e demais instituições que permitam ao estudante realizar estágio de formação. Assim como no ensino exclusivamente presencial, o estágio realizado em convênio exige a supervisão das atividades realizadas e a apresentação de relatório que as descreva e as registre.

Outro elemento que compõe a formação do aluno são as atividades complementares. Tais atividades têm por objetivo enriquecer o currículo acadêmico possibilitando, ainda,

4 MACHADO, Antônio Alberto. Ensino jurídico e mudança social. 2.ed. São Paulo: Atlas, 2009, p.163. 5 BARRETO, Ricardo Menna; LOPES, Ana Paula de Almeida. A virtualização do ensino jurídico. In: TRINDADE, André. Direito educacional. Curitiba: Juruá, 2007, p.174.

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a interdisciplinaridade no processo de formação do aluno de direito. As atividades complementares compõem a parte fl exível do currículo acadêmico e permitem ao aluno compor o mosaico de sua formação.6 Tanto no ensino presencial como no ensino a distância, as atividades complementares desenvolvem habilidades que qualifi cam o currículo acadêmico. Nesse ponto, o ensino a distância pode ofertar atividades que difi cilmente seriam possíveis na modalidade presencial. Como, por exemplo, um debate envolvendo acadêmicos de diversas localidades sobre as práticas e inovações jurídicas de suas regiões. Nesse mesmo sentido é o desenvolvimento de atividades de extensão. Acima do assistencialismo encontrado em muitos ambientes educacionais, a extensão no curso de Direito tem por escopo a integração da comunidade acadêmica com a sociedade em que está inserida, utilizando os conhecimentos aferidos pela pesquisa e pelo ensino como elementos de transformação da realidade social. Nesse contexto é que o ensino a distância pode servir de facilitador ao criar projetos de extensão que ultrapassem a realidade local e contemplem os atores de todo seu território de inserção. O acompanhamento dos alunos pode ser realizado por meio do Ambiente Virtual de Aprendizagem que permite e favorece a interatividade necessária aos processos educativos.

A pesquisa no ensino de direito pode ser descrita como o processo de atividades voltadas para a construção do conhecimento jurídico através da solução de problemas.7 Também nessa seara o ensino a distância pode apresentar inovações. Isso decorre da facilidade em obter fontes através das tecnologias de informação e comunicação. Além do acesso facilitado às fontes, o pesquisador pode utilizar a rede de polos de apoio presenciais para executar pesquisas de campo com as regiões abrangidas pelo curso. A construção compartida do conhecimento, voltada para a solução de problemas que envolvem a sociedade, deve ser o ponto de partida de toda pesquisa científi ca, rompendo, assim, os grilhões que nos prendem a um “eurocentrimo” muitas vezes desconectado com as necessidades da terras brasílis. Uma proposta de pesquisa tupiniquim que procure sanar nossos problemas jurídicos e, mantendo os rigores científi cos, pode muito bem ser desenvolvida através do ensino a distância.

Ao término do curso, o aluno de Direito deve apresentar trabalho de conclusão. Tal trabalho tem por objetivo criar as competências para que o aluno gere conhecimento. A monografi a jurídica não é a única forma de apresentação do trabalho de conclusão de curso, apesar de ser a mais usual. Na modalidade a distância, o aluno pode desenvolver seu trabalho de conclusão de curso com as mesmas ferramentas adotadas no ensino presencial. Da discussão inicial do projeto com o orientador à defesa em banca. Possibilitando, ainda, a participação de pessoas de diversos locais na banca de avaliação e permitindo, assim, signifi cativas contribuições ao relatório fi nal.

O processo de avaliação dever servir como elemento de identifi cação do perfi l do aluno. A modalidade a distância permite um contínuo processo de avaliação, mesmo fora do horário de aulas, uma vez que disponibiliza um ferramental capaz de apoiar o processo de autoaprendizagem ao mesmo tempo em que permite aos docentes/tutores

6 VENTURA, Daisy. Ensinar direito. Barueri: Manole, 2004, p.87.7 BOOTH; COLOMB; WILLIANS. A arte da pesquisa. São Paulo: Martins Fontes, 200, p.7.

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avaliar o conhecimento auferido pelo aluno. A avaliação e a aprendizagem se fundem em um único processo cognitivo. Tal processo deve ser voltado para a formação jurídica, e não para a memorização de leis.8 De tal modo, a modalidade de educação a distância apresenta mais instrumentos de avaliação que a presencial, sem perder a capacidade de interação com o aluno.

Para o desenvolvimento do ensino jurídico na modalidade a distância, deve-se garantir uma estrutura física mínima. Além de salas de aula para os encontros presenciais, devem-se disponibilizar laboratórios de informática compatíveis com o número de alunos e núcleo de prática jurídica capaz de efetivar o atendimento das práticas reais e simuladas. As bibliotecas dos polos presenciais devem possuir uma vasta bibliografi a que permita o acesso aos manuais das disciplinas e à pesquisa em obras de aprofundamento do conhecimento jurídico. Outro facilitador nessa seara é a criação de bibliotecas virtuais com obras de domínio público, teses, dissertações e demais fontes de pesquisa.

O principal elemento para a viabilidade da criação do curso de Direito na modalidade a distância é o perfi l do aluno. O aluno deve possuir uma capacidade intelectual diferenciada para acompanhar o curso. A aptidão para autoaprendizagem é um elemento essencial ao perfi l do graduando em Direito. A postura crítico-refl exiva dos bacharelandos é pautada pelo fomento à aprendizagem autônoma e dinâmica como elemento imperioso ao processo de ensino continuado. Assim, a formação humanística e axiológica disseminada pelo curso deve nortear o caminho para a gênese de um profi ssional engajado com a prestação da justiça e o desenvolvimento da cidadania. O curso deve possibilitar a inserção do bacharelando no meio laborativo com as competências e habilidades necessárias para administrar os obstáculos e difi culdades atinentes à sociedade dotada de uma multiplicidade cultural e valorativa, de molde a possibilitar ao egresso a aplicar de tais competências.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS: QUEBRANDO PARADIGMAS Do todo analisado, resta a síntese de que a criação do curso de graduação em

direito na modalidade a distância é factível. Contemplando a tríade universitária – ensino, pesquisa e extensão –, a modalidade de ensino a distancia bimodal e multimidiática cumpre os desígnios normativos e pedagógicos propiciando elevar a formação dos acadêmicos ao maior grau de interação com a realidade social. Apregoa-se, ainda, que o projeto de curso em tal modalidade coaduna a formação humanística com foco na realidade regional.

O pensamento global com foco no desenvolvimento local deve ser a base formativa proposta pelo curso de direito na modalidade a distância, integrando Universidade e comunidade através de projetos que possibilitem o desenvolvimento regional. Cria-se,

8 CUNHA, Paulo Ferreira. Pedagogia, Poder e Direito: prolegómenos a todo o direito universitário futuro. In: TRINDADE, André. Direito universitário e educação contemporânea. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p.117.

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de tal modo, um fl uxo contínuo de interação entre os bancos escolares e a sociedade local que, acima de destinatária da atuação do egresso, é fomentadora principal das linhas valorativas e do perfi l profi ssional adotados pelo curso.

Como proclamou o poeta da revolução mexicana, “Caminante, no hay camino, se hace camino al andar”. O caminho do Direito passa pela adoção de novas modalidades de ensino. Assim como o próprio Direito, seus operadores e estudiosos são elementos que compõem um sistema em constante mutação. Devemos, assim, observar o curso de Direito como um instrumento de construção da cidadania que possibilite espraiar a toda a sociedade a voz da democracia. Se não estivermos aptos a criar essa modalidade de ensino agora, temos a certeza da proximidade do Direito a distância.

REFERÊNCIAS BOOTH; COLOMB; WILLIANS. A arte da pesquisa. São Paulo: Martins Fontes, 2000. MACHADO, Antônio Alberto. Ensino jurídico e mudança social. 2.ed. São Paulo: Atlas, 2009. TAGLIAVINI, João Virgílio (Org.). A superação do positivismo jurídico no ensino do direito. Araraquara: Junqueira & Marin Editores, 2008.TRINDADE, André. Direito educacional. Curitiba: Juruá, 2007.______. Direito universitário e educação contemporânea. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. VENTURA, Daisy. Ensinar direito. Barueri: Manole, 2004.

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Para uma hermenêutica do mercadoou “informes econômicos à academia”

Augusto Jobim do Amaral

Ficamos pobres. Abandonamos uma depois da outra as peças do patrimônio humano, tivemos de empenhá-las muitas vezes a um centésimo do seu valor para recebermos em troca a moeda miúda do “atual”.

(Walter Benjamin, “Experiência e Pobreza”)

RESUMO O artigo propõe questionar o papel central da instância mercadológica na estrutura de

significação social contemporânea. Para tanto, analisa o fundo constitutivo do pensamento único de mercado, desde sua montagem dogmática, que assola as relações humanas, e naturalmente se investe de local de crivo de sentido na formação da realidade. Enfim, perceber como opera esta dinâmica que faz o mercado funcionar confundindo-se com o espaço puro de poder investido.

Palavras-chave: Filosofia do Direito. Antropologia Dogmática. Psicanálise. Economia de Mercado.

Toward a hermeneutics of market: Economic reports to academy

ABSTRACT The article considers question the central importance of the capital instance in the significance

structure of social contemporary. For in such a way, it analyzes deep the constituent one of the thought of capital, since its dogmatic assembly, that devastates the relations human beings, and of course it invests of place of felt bolter of in the formation of the reality. At last, to perceive as it operates this dynamics that makes the market to function confusing itself with the pure space of power.

Keywords: Legal Philosophy. Dogmatic Anthropology. Psychoanalysis. Business Economy.

1 INTRODUÇÃO1

No universo de Jorge Luis Borges – anjo cego do bairro de Palermo – onde sonho e realidade se complementam e se suportam, encontramos um conto singular, que serve,

Augusto Jobim do Amaral é advogado. Especialista em Direito Penal Econômico e Europeu (COIMBRA). Especialista e Mestre em Ciências Criminais (PUCRS). Doutorando em Altos Estudos Contemporâneos (COIMBRA). Professor de Direito penal, Processo Penal e Criminologia da ESADE (http://www.esade.com.br/web_school/) e da ULBRA (www.ulbra.br). E-mail: [email protected] A temática encontrada no presente trabalho tem versão expandida e aprofundada no nosso “O Zahir de Borges e a Fantasia Ideológica do Mercado: um estudo de antropologia dogmática”. In: MARCELINO JR., Julio Cesar; VALLE, Juliano Keller do; AQUINO, Sérgio Ricardo Fernandes de; CADEMARTORI, Sérgio (orgs.). Direitos Fundamentais, Economia e Estado: refl exões em tempos de crise. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010, pp.37-85.

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para o momento, de espelho sobre nós mesmos. De máximo conteúdo no mínimo de expressão, como lhe aprazia ser, ali dentro de uma das suas obras primas, El Aleph, publicado em 1949, encontramos El Zahir:

pensé que no hay moneda que no sea símbolo de las monedas que sin fin resplandecen en la historia y la fábula. (...) pensé que nada hay menos material que el dinero, ya que cualquer moneda (una moneda de veinte centavos, digamos) es, en rigor, un repertorio de futuros posibles. El dinero es abstracto, repetí, el dinero es tiempo futuro.2

Borges escreve que fadado a quem o encontrá-lo a ter a visão absoluta, a compreensão total do universo. Está-se às voltas com a fabulação de um objeto que se tornou pura representação, materialidade quase incorpórea, que assume para si inclusive a possibilidade de futuro, deifi cação fantasmagórica de uma força que suga tudo o que a ele não se subjuga.

Sobre este lastro de realidade, levantado pela enorme força teórica da fi cção borgeana acerca de uma mente absoluta, é que nos servimos de sua literatura para questionar, mais por vontade que por talento, sobre o pensamento único que assola as relações sociais entregues aos ditames de uma ideologia de mercado. Quer dizer, como ele se investe de local de crivo da formação da realidade e como esta fantasia se comporta. Elaborar, pois, uma refl exão sobre a instância (mercadológica) enlouquecedora que tenciona engendrar o próprio homem no mundo a partir dela.

Para tanto, arriscam-se algumas questões incisivas: não terá, no atual horizonte social, o dinheiro, por seu fetiche no mercado, acabado por assumir a propriedade de deter a qualidade das coisas mesmas, humanas ou não, tornadas intercambiáveis, arrogando-se um papel central na estrutura de signifi cação social? Não terá encontrado o homem no mercado seu Zahir? Será o mercado aquilo que se põe como tal objeto absoluto diante de nós? Seremos crentes todos nós do seu poder de dar conta do mundo? Estará se operando no fantasma da ideologia do mercado o Zahir que nos faz esquecer o mundo e elaborar a realidade a seu preço? Viver só fará questão ao homem por ele; apenas desde ele a realidade será?

2 Descobre o narrador, o próprio escritor Borges, durante o conto que Zahir em árabe quer dizer notório, visível, en tal sentido, es uno de los noventa y nueve nombres de Dios; la plebe, en tierras musulmanas, lo dice de «los seres o cosas que tienen la terrible virtud de ser inolvidables y cuya imagem acaba por enlouquecer a la gente». Outro testemunho relatado é o do persa Lutf Ali Azur que atestava haver um astrolábio de cobre num colégio em Shiraz «construido de tal suerte que quien lo miraba una vez no pensaba en otra cosa y así el rey ordenó que lo arrojaran a lo más profundo del mar, para que los hombres no se olvidaran del universo». BORGES, Jorge Luis. El Aleph. Primera edición, revisada, en «Biblioteca de autor»: 1997. Decimocuarta reimpresión: 2008. Madrid: Alianza Editorial, 2008, pp.122-123 e p.127.

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2 A MONTAGEM DOGMÁTICA: SOBRE UMA ANTROPOLOGIA DO LIMITEAs premissas do contexto mercadológico confi guram de que maneira a nossa

grelha social? Antes mesmo, deve-se tentar lançar as bases, com Legendre, de um exame antropológico dogmático mais profundo do âmbito social e ver como ele se estrutura.3 De pronto, ao se falar em antropologia, não está aqui em causa seu uso desgastado e banalizado, mas importa considerar algo que ainda se conserva no termo: a montagem institucional de qualquer meio social. Seu teor semântico ainda convida a abrir um campo de interrogações muito relevante sobre a relação do homem com o logos, através do qual se privilegia propriamente o estudo da espécie humana que, dotada de palavra, faz viver a vida. O que se introduz nesta observação é uma simples e importante condição estrutural. Estrutura no sentido da instituição do animal falante pela linguagem, acompanhada em cada meio social pela função de fundar o sujeito – fundá-lo a viver – no vasto circuito que se forma no domínio palavra-sujeito-cultura.4

Fabricar o vínculo institucional agora é tarefa de um princípio genealógico5 – que ultrapassa, ao instituir o vivo, o mero elemento biológico – que se considera já como um segundo nascimento para o homem, aquele mergulho humano na palavra – humanidade como o vivo falante – fundamento do âmbito institucional. Vitam instituere, como afi rma Legendre.6 Expressão do direito romano que condensa o poder de evocação do conceito de instituição. Diz respeito, de forma geral, ao pacto comum da cidade, no sentido emblemático de institucionalidade. A (re)defi nição crítica da matéria antropológica passa assim pela questão desta genealogia, centro de procedimento de acesso à racionalidade e da

3 Há algo que perpassa a postura do artigo de maneira evidente com grande força sobre a qual não se poderia silenciar: as interfaces entre psicanálise e política. Não se quer retroceder aos primórdios deste tipo de abordagem, o que seria de difícil genealogia, apenas interessante que haja o afastamento da tediosa crítica padronizada da aplicação da psicanálise aos processos socioideológicos (seria a velha questão assim formulada: seria legítimo aplicar noções oriundas do tratamento de indivíduos para entidades coletivas?). O foco é outro. O Social, como campo de práticas e crenças socialmente alimentadas, não está de maneira alguma noutro registro da experiência individual, mas é com aquilo mesmo que o sujeito deve propriamente se relacionar. O problema não está, então, numa mudança de escala, mas repousa no ponto futuro da íntima imbricação a qual o indivíduo terá de experimentar com uma dimensão minimamente externalizada, ou seja, é elementar que a lacuna entre indivíduo e dimensão social “impessoal” já está inscrita no próprio indivíduo. Dirá Žižek: o problema é: ´como a ordem sociossimbólica externa-impessoal de práticas institucionalizadas e crenças deveria se estruturar quando o sujeito tem de manter sua “sanidade”, seu funcionamento “normal”?´ (...) ́ esta ordem “objetiva” da Substância social só existe na medida em que os indivíduos a tratam como tal, relacionando-se com ela como tal´. ŽIŽEK, Slavoj. A visão em paralaxe. Tradução de Maria Beatriz de Medina. São Paulo: Boitempo, 2008, p.17.4 LEGENDRE, Pierre. “Antropologia Dogmatica. Defi nizione di un Concetto” In: LEGENDRE, Pierre. Il Giurista Artista Della Ragione (a cura di L. Avitabile, saggio introduttivo di G. B. Ferri). Torino: G. Giappichelli Editore, 2000, pp.79-112.5 LEGENDRE, Pierre. El Inestimable Objeto de la Transmisión: Estudio sobre el principio genealógico en Occidente (Lecciones IV). Traducción de Isabel Vericat T. Núñez. Madrid: Siglo Veintiuno Editores, 1996, p.9-11.6 A formulação clássica (signifi cando estabelecer, regular e ordenar a vida) vai remontar Cícero e Salustiano. Já sua versão jurídica tem origem no fragmento de Marziano, jurisconsulto do século III, que cita em grego nas suas Institutiones um trecho de Demóstenes. Esta passagem é conservada e inserida no século VI no Digesto, grande compilação de fragmentos de diversos autores realizada pelo imperador Justiniano, ordenação que aportou no medievo um dos pilares do sistema jurídico ocidental. Legendre recupera as palavras, segundo ele próprio confessa, desde a tradução do Digesto feita pelo jurista humanista Godefroid, do século XVI, que recompõe o classicismo à fórmula latina: cio che è stato posto insieme nella città, secondo la qual cosa tutti devono vivere. LEGENDRE, Pierre. “Antropologia Dogmatica. Defi nizione di un Concetto”, p.110-112.

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própria demanda existencial do sujeito. É a abertura contemporânea à dimensão dogmática do homem, do sujeito antropológico sobre uma perspectiva hermenêutica, reconhecendo como base de refl exão a sociedade também como função para o sujeito falante.

Alguma reabilitação, alhures, passa também sobre o conceito de dogmática. Por certo, isto indica qualquer coisa absolutamente diversa da perspectiva usual do termo. Se o termo grego dogma reenvia àquilo que aparece, se faz ver, Legendre faz notar, desde outra palavra irmã (doxa), que dogma se refere ao discurso della ´verità legale e onorata como tale´, discorso di ciò che è detto ´perchè deve essere detto´.7 Dogmática, pois, implicará ter em conta o mecanismo de um discurso específi co, o qual requisita um espaço próprio de origem da mensagem, lugar de proveniência da verdade socialmente posta em cena. Em síntese, dogmática aqui equivale a percebê-la como uma cifra, ou seja, algo atinente à linguagem do transcendente. O acento é posto na refl exão sobre a ideia de um símbolo, tal como um emblema, que enfi m indica como se maneja com este lugar. O conceito de dogmática, neste viés, é visto como instrumento de análise da construção social pela palavra, quer dizer, tomar a sério a íntima imbricação homem-cultura (dell´intra-appartenenza tra l´uomo e la cultura8) para que as montagens culturais sejam postas à descoberto.

Desta maneira, a mola mestra do manejo com a institucionalidade pode ser resumida no vocábulo central para toda esta dinâmica, a palavra Interdito. Noção de imensa complexidade teórica, principalmente jurídico-política, todavia que, sob o aspecto antropológico que nos interessa, não dista da ideia de um dizer legalmente pronunciado, um poder que funciona com a interposição de uma autoridade para a condução, a bom termo, de certa controvérsia. Um dizer de interposição, dizer-entre, enquanto “terceiridade”: l´Interdetto ha come vocazione quella di notifi care al soggetto il limite.9 Representa a notifi cação ao sujeito do limite – vocação que já o constituirá como tal –, noção esta que não deve ser confundida meramente com a ideia de proibição, mas como fenômeno linguístico relativo à palavra que interrompe; sobremaneira, àquilo que comporta assumir como inaugural e que também o fará instaurar os vínculo sociais: a palavra ao sujeito. Um esquema estrutural, assim, poderia ser dado com os seguintes elementos: a) un dire di interposizione (all indirizzo di chi?), b) questo dire fa giocare il concetto di autorità (che cos´è l´autorità?), c) si tratta di portare al loro fi ne delle controversie (quale fi ne, quali controversie?).10

Sem dúvida alguma, tendo em conta este panorama, a antropologia se encontra solicitada a aprofundar a discussão sobre esta questão, que não cessa de se inscrever, e que envia mesmo ao poder social de instituir a Razão. Neste momento, estamos às voltas daquilo que não deve ignorar: o estudo sobre a cena inconsciente do homem – acolher o mistério e tentar compreender o que torna plausível este lugar postulado por Freud. É o Interdito que metaforicamente elabora a separação, cinde o sujeito, e permite o acesso humano a esta negatividade. Em outras palavras, a construção da linguagem – desde aquilo

7 LEGENDRE, Pierre. “Antropologia Dogmatica. Defi nizione di un Concetto”, p.82.8 LEGENDRE, Pierre. “Antropologia Dogmatica. Defi nizione di un Concetto”, p.84.9 LEGENDRE, Pierre. “Comunicazione Dogmatica (Ermete e la Struttura)” In: LEGENDRE, Pierre. Il Giurista Artista Della Ragione, p.38.10 LEGENDRE, Pierre. “Antropologia Dogmatica. Defi nizione di un Concetto”, p.85, nota11.

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que porta o Interdito – permite o acesso à outra parte, este fundo opaco incognoscível pelo sujeito. A instauração do não – l´écart – ilumina o sistema cultural, funda o centro da representação instituinte que aponta o porquê da lei,11 seja no âmbito individual do sujeito cindido, seja na exigência político-cultural de legitimação das categorias. L´écart – vazio constitutivo do lugar em que se inscreve o discurso do fundamento – sia il ́ terzo termine´che permette alla relazione umana di esistire come rappresentazione e nella sua realizzazione, qualunque siano i contenuti discorsivi. Qualquer montagem normativa que se tenha, apenas será possível pelo uso metafórico deste vazio que o Interdito impõe. Para melhor elucidar, Legendre evoca a “Divina Comédia” de Dante para precisamente mostrar “il principio che manca”, a aporia estrutural que somente pode ser metaforizada via linguagem, para que se torne possível e suportável viver. Apenas através de uma resposta, por assim dizer cifrada – não no sentido de uma solução científi ca, mas dogmática – que este caminho pode enfi m ser percorrido.12

Mergulhados que estamos na esfera do dizer, da escrita – ou seja, da não-presumida concretude mesma da coisa – é a partir desta própria exposição da palavra, debilidade própria de cada discurso, que se pode compreender o trato abstrato, fi ctício, a arquitetura teatral que rege cada discurso normativo. Como dito, o espaço da representação assim surgido, somente foi possível pela assunção do lugar fi ctício dado pela noção de Interdito. Daí a gênese da representação, fruto do espaço terceiro simbólico, que cada sociedade coloca em cena de uma forma, todavia conservando este espaço absoluto, de poder em estado puro, instância terceira.13

Haverá o que Legendre14 chama de teatralização do mundo exatamente por conta de tal exigência. O humano para viver necessita de uma cena – um lugar de sombra e medo que o separa do mundo e de si – da mesma maneira em que cada sociedade cria um espaço vazio no qual de inscreverá o discurso/cenário. A montagem/instituição desta cena constitutiva – pela palavra –, ao mesmo tempo em que rege o edifício social, faz com que a sociedade seja o lugar de ressonância, câmera de eco deste enigma. O mundo, assim, virá metaforizado no lugar do Outro – a sociedade como espaço de simbolização generalizada – no qual eu me (re)descubro, (re)encontro-me e me (re)invento.

A função da dogmática, pelo que se afi rmou, diz respeito ao estudo da entrada em cena da Referência terceira. Cada Referência terceira terá o papel – em cada teatralização social, na maneira como cada meio humano lidará com a outra cena – de discurso-credor, instância de valor místico, a qual sempre se deverá pagar o débito pela ritualidade, exatamente por ser o garante da imagem fundadora. Em razão disto, a entrada em cena desta imagem instituinte dá-se sempre de forma teatralizada – teatralização do último “por quê?”

11 LEGENDRE, Pierre. “Antropologia Dogmatica. Defi nizione di un Concetto”, p.88.12 LEGENDRE, Pierre. “Antropologia Dogmatica. Defi nizione di un Concetto”, p.89 e 105.13 LEGENDRE, Pierre. El Inestimable Objeto de la Transmisión: Estudio sobre el principio genealógico en Occidente (Lecciones), p.36-43.14 LEGENDRE, Pierre. “Teatralizzazione del mondo. La vibrazione soggettiva delle società” In: LEGENDRE, Pierre. Della Società Come Testo. Lineamenti di un´Antropologia Dogmatica (a cura di Paolo Heritier). Torino: G. Giappichelli Editore, 2005, p.45.

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La dimensione istituzionale del linguaggio e la questione del fondamento nell´intra-appartenenza del soggetto e della cultura conducono a studiare la struttura ternaria, di modo che appaia in primo piano l´interrogativo sulla legittimità, sul meccanismo della fedeltà a ciò che funge da legge per l´animale parlante.15

No empenho de (re)introduzir a questão do sujeito e da instituição da Razão no estudo do objeto antropológico é que o conceito de sociedade tomará novas tintas e será visto como uma função da palavra e, sob estas condições, que entrarão em jogo as montagens e as fi cções no jogo da teatralidade.

Assim, a sociedade pode ser considerada como um Texto, um edifício de linguagem – tese largamente defendida ao longo de toda a obra de Legendre que aqui apenas se ousa dar algum contorno – reconhecida como textualidade fundada na lógica instituída pela linguagem. Texto designando uma diferenciada visão do discurso instaurado socialmente que, sob o fundo do Interdito via linguagem, opera efeitos normativos que sustentam a constituição de uma cultura considerada. Põe em jogo, afi nal, o local de essência genealógico, o pacto dogmático que o Ocidente (re)produz historicamente. Isto equivale a dizer que a sociedade, por isso tudo, acaba por assumir uma função especular, de espelho, equivale assim a introduzir a teatralidade de que falamos. Para o autor francês, este universal do Texto permite discernir a presença de uma ordem de fundamento, vez mais se diga, a expressão da estrutura ternária fruto do jogo da linguagem que rendeu possível, sobretudo, separar o humano de si como separá-lo do mundo; fazer, suma, do homem e do mundo questão para si mesmo.

Disto tudo se depreende que o mundo por certo não é dado ao homem, contamos com uma relação não direta feita (pela) linguagem. Relação matricial, enigmática tensão entre a materialidade do mundo e o reino da imagem. É nesta estrutura dialetizada de alguma forma – montagem humana que ao mesmo tempo reúne e separa – que estamos metidos. Todavia, que não permite a coincidência perfeita de seus elementos heterogêneos (a materialidade do mundo e o reino des-conhecido da imagem), por conta disto porta um por que? sem resposta. Hiatus que a própria relação da linguagem supõe, cena de fronteira-passagem, destinada a faz viver, neste por que? infi nito, a enigmatização do mundo.16 Este por que? humano coextensivo à linguagem, nesta perspectiva, incorpora o registro do saber

15 LEGENDRE, Pierre. “Antropologia Dogmatica. Defi nizione di un Concetto”, p.91.16 LEGENDRE, Pierre. “La fi rma umana: il linguaggio e suoi effetti” In: LEGENDRE, Pierre. Della Società Come Testo. Lineamenti di un´Antropologia Dogmatica, p.41-44. Tutte le società hanno a che fare con la simbolizzazione come condizione stessa della vita. Il rapporto dell´uomo al mondo non si riduce a delle operazioni d´informazione, per la ragione che la logica della raprresentazione, dando al mondo statuto di ´altro immaginale´, iscrive questo rapporto nella dipendenza dalla divisione concernente il linguaggio. La prensione del mondo non è diretta, passando per la sua costruzione nella rappresentazione, e ciò fa sì che l´accesso umano all´universo materiale, così delimitato dall´apprensione animale, non raggiunga l´evidenza delle cose che se sostenuto dal ́ far tenere insieme´ costitutivo della mediazione simbolica. Per “enigmatizzazione” bisogna intendere che l´animale parlante riceve, dalla sua presenza al mondo, l´eco della sua divisione e che sostine, anche su questa scena, l´enigma dell´alterità (LEGENDRE, Pierre. “La fi rma umana: il linguaggio e suoi effetti”, p.55). Enigma literalmente no sentido de algo que se deixa entender/indicar de modo obscuro, em que verdade e engano são complementares e não excludentes.

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como questão, ou seja comporta o advento da dimensão, em escala cultural, do saber interrogar na sociedade.

É sobre a linguagem e seu fundo dogmático constitutivo que aqui se debate antropologicamente. Primordialmente – e isto interessa de maneira profunda quando repousamos sobre o pensamento monetário –, não há outro ponto mais importante que atentar para o poder que a linguagem tem, por óbvio, sobre a representação; da força que possui de pautar regimes de representações. Talvez aí se encontre a importância que justifi que todo o estudo sobre o circuito do discurso fi nanceiro. O enfoque deste escrito pretende minimamente se embrenhar nesta complexa formação do espaço normativo formado quando a questão monetária ganha posição central nos invólucros estéticos da civilidade. Se o discurso em si, costurado pela linguagem, comporta como vimos dois planos – seja o plano do Terceiro-garante (fi ador da crença no por que?) seja no patamar do indivíduo-sujeito-cindido – cada sociedade comportará uma estrutura de conservação do fundamento e da questão em si. O Texto é, pois, o lugar da projeção onde se prende a permanente Instância terceira e se inscreve o fundamento normativo.17 Cabe, então, atentar para como se dará a (re)construção social deste Terceiro historicamente.

3 A MONTAGEM ANTROPOLÓGICA DO MERCADOAssim, o sentido de que parte o presente ensaio deve ser visto não só desde um

trajeto frente o qual se pretende seguir, mas, sobretudo, possuidor de alguma direção de (re)signifi cação fundamental. Seguindo o itinerário de nosso esforço, em apertada síntese, a direção que se quer indicar é da necessidade antropológica do indivíduo contemporâneo ser notifi cado da fi gura do limite.

Uma antropologia do limite, como escreve Heritier.18 Se quisermos, trata-se da fi losofi a do direito disposta novamente ao seu nascedouro: como fi losofi a do limite – limite ao poder autoritário de qualquer entidade coletiva, ou em outro aspecto mesmo, limite a um sujeito pós-moderno – que via a ciência, a técnica e a economia – se vê onipotente e ilimitado. Não seria temeroso, tendo isto em conta, arriscar uma leitura da atual conjuntura mercadológica partindo daquilo que Legendre,19 renovando o estudo sobre o conceito de sociedade desde a antropologia dogmática, chamou de tecno-ciência-economia. Seja com o nome que se batize o atual momento histórico (globalização de mercado, era pós-industrial, hipermodernidade etc.), a questão do agir industrial, quer dizer, a interrogação sobre o fundamento da economia não cessa de primar. Mais precisamente, importa investigar como a dita ultramodernidade industrial mundializada entra em ressonância com o Texto

17 LEGENDRE, Pierre. “Antropologia Dogmatica. Defi nizione di un Concetto”, p.95.18 Indubitavelmente, será, pois, a tese permanente no trabalho realizado por Legendre. HERITIER, Paolo. “Introduzione”. In: LEGENDRE, Pierre. Della Società Come Testo. Lineamenti di un´Antropologia Dogmatica (a cura di Paolo Heritier). Torino: G. Giappichelli Editore, 2005, p.07.19 LEGENDRE, Pierre. “La tecno-scienza-economia e il potere di signifi care” In: LEGENDRE, Pierre. Della Società Come Texto. Lineamenti di un´Antropologia Dogmatica, p.93.

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ocidental. De grande valia seria – tal que pouco nos ocupamos dela – conhecer o valor dogmático desta tríade ciência-técnica-economia.20

Assim, é necessário que façamos uma maior digressão sobre o surgimento deste dispositivo original em nossa cultura ocidental que é a economia, para que se tenha claro o sentido do papel que é desempenhado por ela no atual contexto mercadológico. O signifi cado histórico-etimológico do termo dispositivo21 nos ajuda por demais a perceber para onde remete o termo economia, como prática e pensamento, tal como o aceitamos hoje em dia. Afi nal, antecipando a conclusão já trazida por Agamben:22 a tradução do termo fundamental grego oikonomia nos escritos dos padres latinos foi dada pela palavra dispositivo. Desta forma, uma genealogia teológica da economia apenas poderá ser empreendida tomando-se em conta alguns nuances.

Entre os séculos II e VI, o termo oikonomia desenvolveu, para a história da teologia cristã, uma função decisiva. A palavra, em grego, aludia uma atividade prática de administração, de gestão do oikos, da casa, ou seja, management doméstico. A necessidade

20 Para isto, há que se ter em vista a importância manifesta da técnica na conjuntura social. Mas não de uma forma já explorada até a exaustão sobre a sua onipotência, mas desde o viés do seu afrontamento com a linguagem, desde a lógica da representação. Assim, poderá se pôr: como ela se inscreve dogmaticamente? Ou seja, importa, sim, perceber que ela se insere socialmente na tensão entre a materialidade do mundo e o reino da imagem. Assumindo, assim, a técnica como um instrumento – por que não dizer um dispositivo, mais relevante será discutir sobre se há algo, pois, que su-porta esta instrumentalidade. Lendo Legendre, lo ́ strumento´ designa la prova delle prove (...); esso rinvia al ´potere di stabilire la verità´, di ´signifi carla´. Intesa così, la tecnica fa fede (LEGENDRE, Pierre. “La tecno-scienza-economia e il potere di signifi care”, p.95). Em outras palavras, por via de consequência, a técnica encontra lugar no sistema de representação – ocupa no estatuto estrutural com relação ao fundamento – a função de garante. A técnica, assim entendida, tem a ver com o discurso de fé em qualquer sociedade considerada, pois disposta no local de fi adora da origem, porque insiste metaforicamente em se colocar na articulação entre o agir e a verdade. Portanto, a técnica assume o relevo de ser como que uma outra parte de nós mesmos. Empenhamos fé nela porque temos fé em nossa própria imagem. Sob o ponto de vista estrutural, la tecnica porge all´uomo dell´ultramodernità ́ il nuovo Specchio del mondo´ – del ́ mondo che porta l´enigma dell´altro che mi svela (LEGENDRE, Pierre. “La tecno-scienza-economia e il potere di signifi care”, p.97). A técnica, suma, é vista como instrumento autenticado da fé na era da tecno-ciência-economia. Já, quanto ao fenômeno científi co, o estudo sobre sua estrutura dogmática vem bem a calhar. Pois, não havendo sociedade desligada da instituição linguística, não há também saber científi co apartado da dimensão normativa de sentido. Nenhuma civilização escapa da exigência de dar forma ao seu estatuto de interpretação do mundo desde uma ordem hermenêutica estabelecida. Assim, o homem, ao se interrogar sobre si e o mundo, por meio da ciência, acaba por elaborar uma inscrição de uma ordem ideal de saber, em que a ciência – investindo unidade à técnica – será dotada, sobretudo, do poder de signifi car (a verdade). Ao mesmo tempo, há um poder exercitado sobre a própria relação linguística e também um poder de fazer saber em que consiste a verdade da norma social. Ademais, será primordial neste foco entender, tal como hoje sucede, o momento em que este saber interrogar acaba por se converter em pura técnica. É a “Open Society” propagandeada num discurso sincrético (tecnociência) antilimite em que a completa “des-razão” imoral encontra-se legitimada pelo agir científi co-industrial. Constrói-se um saber divinizado, ininterrogável porque legitimado de antemão. Reproduz-se uma estrutura de crença fanática, exatamente por quem um dia outorgou-se o papel de representar a saída das “trevas”; otimismo prometeico absoluto – ode à liberdade científi ca – que esquece retumbantemente a experiência de um passado funesto (LEGENDRE, Pierre. “La tecno-scienza-economia e il potere di signifi care”, p.100-103).21 No viés consagrado por Foucault, um dispositivo deve ser visto como uma cadeia de variáveis relacionadas entre si que vai produzindo determinadas linhas de força e de rupturas. Para entender, resumidamente, deve-se ter claro três pontos inafastáveis: o dispositivo é uma rede que se estabelece entre elementos heterogêneos linguísticos e não-linguísticos (discursos, instituições, leis, medidas administrativas, enunciados científi cos, proposições fi losófi cas etc.); dotado de uma função estratégia que sempre repousa numa relação de poder; e, sobretudo, resulta de uma imbricação “saber-poder”. São, pois, estratégias de relações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por eles. FOUCAULT, Michel. “Sobre a história da sexualidade” In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 16ª ed.. Organização, Introdução e Revisão Técnica de Roberto Machado. São Paulo: Graal, 1979, pp.244-246.22 AGAMBEN, Giorgio. Che cos´è un dispositivo? Roma: Nottetempo, 2006, p.15-18.

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então de trazer a expressão, ao ponto de se falar numa “economia divina”, foi derivado do dever de enfrentamento com a questão da trindade da fi gura divina. O risco de ver a fé no pai-fi lho-espírito-santo transposta para um politeísmo e para convencer os teológicos da época fez surgir a necessidade de lançar mão de tal termo. Assim,

Dio, quanto al uso essere e alla sua sostanza, è, certamente, uno; ma quanto alla sua ́ oikonomia´, cioè al modo in cui amministra la sua casa, la sua vita e il mondo che ha creato, egli è, invece, triplice. Come un buon padre può affi dare al fi glio lo svolgimento di certe funzioni e di certi compiti, senza perdere per questo il suo potere e la sua unità, cosí Dio affi da a Cristo l´´economia´, l´amministrazione e il governo della storia degli uomini.23

A oikonomia foi o modo, o dispositivo24 encontrado para que o dogma trinitário fosse introduzido na fé cristã. A especifi cação do signifi cante a ligar-se com a encarnação do Filho (ho anthrōpos tēs oikonomias – o homem da economia), a re-presentar a economia da redenção – e fundamentalmente da salvação –, enfi m sua hereditariedade teológica, pois perde qualquer difi culdade de entendimento.

Agora sim, sem dúvida, com extremo ganho qualitativo, podemos avançar pondo de novo o que se labora permanentemente neste ensaio. Algo de essencial é necessário não se perder: o cenário da sociedade como assembleia de discurso (Texto). É acerca da montagem dogmática, mais exatamente sobre a desmontagem dogmática de uma sociedade que hoje opera via Mercado que nos debruçamos. Se, de uma parte, importa compreender o peso de Referência do Mercado, em nome d´o qual se organiza o efeito normativo das práticas sociais atuais, de outra, o horizonte de pensamento aqui lançado abre espaço para muito além dele e conduz a examinar diuturnamente os modos de interpretação, os processos de interrogação atinentes ao percurso cultural.

O apanhado feito até o momento não teve outro desejo senão, com o auxílio da letra de Borges, ampliar incomensuravelmente o horizonte de análise da questão monetária. Perceber pelo testemunho literário a tamanha abstração religiosa em que se assenta a técnica econômica. O autor portenho explora brilhantemente, para adiante da pura positividade econômica, aquilo que se torna primordial frisar, ou seja, a zona de

23 AGAMBEN, Giorgio. Che cos´è un dispositivo?, p.16-17.24 A terminologia dispositivo, usada a partir da metade dos anos 70 por Foucault, principalmente quando começava a ocupar-se da governabilidade, salienta Agamben, deve-se muito a Jean Hyppolite (até 1970, antecessor de Foucault na cátedra de História dos Sistemas de Pensamento no Collège de France com nome à época de História do Pensamento Filosófi co) e sua leitura sobre fi losofi a da história de Hegel, mormente da ideia hegeliana de positividade, termo que antes, ao invés de dispositivo, utilizava-se Foucault (AGAMBEN, Giorgio. Che cos´è un dispositivo?, p.08). A positividade era o elemento histórico (con tutto il suo carico di regole, riti e istituzioni che vengono imposti agli individui da un potere esterno, ma che vengono, per cosí dire, interiorizzati nei sistemi delle credenze e dei sentimenti. (AGAMBEN, Giorgio. Che cos´è un dispositivo?, p.11), segundo Hyppolite, considerado por Hegel como obstáculo à liberdade humana, ou seja, na oposição razão versus história, esta deveria ser reconciliada com aquela. O interesse de Foucault, por óbvio, nunca foi este, mas o de, no que dizia respeito aos seres viventes e o elemento histórico – toda a carga de instituições, de processos de subjetivação e de regras que se concretizam nas redes de poder –, investigar os modos concretos em que as positividades ou depois os dispositivos agem nas relações, nos mecanismos e nos jogos de poder.

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sombra do ritual monetário, o espaço mítico legitimador que se forma ao seu entorno e do qual dependem, por consequência, suas práticas. Como dirá Legendre: un divario si instaura, che permette di scorgere lo spazio mitico di pura rappresentazione del tempo, al quale sono appesi, al modo ignoto, i rituali monetari di oggi e le nostre pratiche di legittimazione degli scambi.25

Em especial, isto se percebe quando da análise acerca da temporalidade dos seus cálculos prognósticos e da sua inscrição numa perspectiva virtual. Ficção, abstração tamanha, onde o dinheiro representa o próprio tempo futuro, o porvir. Não precisaremos visualizar o mero exemplo da rotina de uma bolsa de valores (BM&F – Bolsa de Mercadorias e Futuros) em qualquer lugar do mundo para se ver evocado este edifício teatral do tempo idolatrado – edifício da imagem instituinte daquilo que o cristianismo, como vimos, chamava de “economia da salvação”. É assim que toda a dinâmica funciona. O tempo presente nesta lógica toma formas múltiplas, uma cena social infi nita que resgata, como assevera Legendre,26 o presente do futuro agostiniano. Há, pois, um jogo de puras representações com a construção de uma teatralidade do tempo – El Zahir. Assim se dá o funcionamento teórico do mercado: em sua composição ternária (oferta-demanda-preço) faz-se um apelo a uma essência dinâmica, capturando o tempo como um mero objeto do(e) mercado. Se mesmo o futuro já não é mais obstáculo (apenas uma variável) para os parâmetros mercadológicos, por certo a insignifi cância da fi nitude não é mais Limite. É da natureza normativa do mercado que se está a falar, disto importa tratar.

Novamente na cura de Legendre,27 desta forma, a ideia de limite deve ser entendida na perspectiva da representação, apenas isto conduziria a considerar a instituição monetária sob o ângulo dogmático. Normativo, como se disse, no sentido estrutural, tal como um tabu. A maneira como a sociedade dita globalizada vem lidando com esta montagem do mercado, sobretudo, traz à cena uma transcendentalidade de novo tipo, com efeito de intocabilidade. Indo mais concretamente ao ponto mesmo, se é na categoria preço (de equilíbrio) que há o ideal do ajustamento entre oferta e procura, escancaradamente salta aos sentidos que existe aí juntamente também a expressão monetária justa de um Terceiro, ou seja, impõe-se a postulação de uma posição de princípio, com todos os desdobramentos que isto implica.

Questão pertinente: há algum signifi cante que a isto refi ra – naturalmente usado – e posto em jogo ao longo da tradição ocidental? Por certo, é a própria metáfora da Justiça.28 Daí, enfi m, estará revelado o mercado como montagem antropológica. Não de outra forma a ordenação social poderia se dar neste con-texto senão pelo encontro essencial entre o crédito e o débito. O que se subentende desta metáfora é a assunção soberana e primeira da relação humana como encontro entre crédito e débito. Vez mais, o professor francês aduz que a dimensão monetária não faz mais que colocar em ordem a cena sacrifi cial inaugural; estabelece, como ordem (inicial) de justiça, a balança entre credor e devedor.

25 LEGENDRE, Pierre. “La tecno-scienza-economia e il potere di signifi care”, p.109.26 LEGENDRE, Pierre. “La tecno-scienza-economia e il potere di signifi care”, p.110-111.27 LEGENDRE, Pierre. “La tecno-scienza-economia e il potere di signifi care”, p.112.28 CORDERO, Franco. Che cos´è la giustizia? Roma: Luca Sossela Editore, 2007, p.05.

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Mas a questão fundamental – ética – vez mais retorna, o ponto nodal permanece e vem novamente posto: e aqueles – seja um indivíduo isolado seja um grupo ou uma classe – que nem mesmo pode(m) ter acesso a esta relação de crédito-débito? Como a negatividade desta relação será distribuída? Em outras palavras, o que fazer diante do sacrifício humano oriundo desta relação? Suma, arremata o autor: E ´nel montaggio gestionale, il terzo monetario tiene la funzione di um despota silenzioso´.29

O sentido do dinheiro (moeda, qualquer que seja sua fi gura), nesta perspectiva, é emblemático, recorrendo-se aqui ao sentido radical que a palavra emblema nos conduz. Mediante o emblema, o sujeito é lançado a entrar numa determinada montagem, sendo mais direto, em determinada versão de referimento, que desde o processo de simbolização ele é posto a crer. Aí o fundo manipulativo que pode se converter a dimensão da linguagem. O discurso sendo, pois, instrumento coercitivo e de poder, por natural, uma análise que se presta a estudar qualquer fenômeno social não pode perder de vista que estamos, em maior ou menor grau, falando da estória da transformação da comunicação dogmática, do uso da técnica de comunicação de um fundamento vazio. Tecnicamente, un sistema dogmático è un sistema di interpretazioni e socialmente si defi nisce dunque come organizzazione a piani di posizioni di interpreti.30 Assim, se o emblema-dinheiro acaba por conservar o poder de mostrar o fundamento e a dinâmica econômica, em primeiro lugar, de falar em nome do fundamento mostrado, é de estranhar então o peso de referência das relações econômico-monetárias atualmente? Talvez não possa existir maior poder que este. Poder – agora como instância entendida já em termos de institucionalidade dogmática – com função de ordenamento do mundo, quer dizer, mecanismo de legitimidade em primeiro lugar destinado a traduzir o impossível colocando então ciò che fa legge per il soggetto.31

Na perspectiva dogmática, ademais, quando lidamos com o olhar mercadológico, a interrogação por aquilo que podemos chamar de liberdade, passa, de alguma forma, pelo tema relativo a alguma margem de manobra32 que se pode ou não ter, seja na constituição de cada liame social seja mesmo na própria formação da signifi cação. Explico. Vimos antes como os contornos de uma realidade como subproduto das relações mercantis pode injetar características muito presentes nos mais diversos contextos sociais. Colocada, sobretudo, a anterioridade da liberdade de mercado à liberdade humana, ou seja, os homens serão livres tanto quanto os preços o são. Neste viés, a intervenção estatal no mercado é proibida em função deste princípio – argumento em nome da Liberdade (de mercado). Submetido a estes leis, não se poderá reconhecer nenhum direito humano senão derivado desta posição privilegiada (a característica não rara de inalienabilidade dada ao direito de propriedade para alguns, como referencial aos demais, bem pode ilustrar esta condição). Não obstante, há algo anterior e mais importante a se perceber. Trata-se do exame da comunicação dogmática, tal como já pudemos depreender, que acaba por carregar consigo a mensagem normativa em cada sociedade. Comunicar, etimologicamente, signifi ca

29 LEGENDRE, Pierre. “La tecno-scienza-economia e il potere di signifi care”, p.112.30 LEGENDRE, Pierre. “Comunicazione Dogmatica (Ermete e la Struttura)”, p.75.31 LEGENDRE, Pierre. “Il principio di delimitazione: lo spazio del mito e il luogo del potere” In: LEGENDRE, Pierre. Della Società Come Testo. Lineamenti di un´Antropologia Dogmatica, p.187-195.32 Tema que fazemos coro, ainda que noutro tom, com HERITIER, Paolo. “Introduzione”, p.26.

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“trocar de donos”, mas não de forma recíproca, mas levando em conta um desnível de planos, ou seja, a permanência de um espaço dogmático sobre o qual se organizará o movimento da palavra.33 Em outros termos, será desde esta diferenciação de planos que haverá a separação entre um mundo divinizado e outro humano, que permitirá a próprio jogo de subjetivação de cada ser vivente. Aqui está a tal margem de manobra subjetiva que qualquer sociedade deve consentir ao indivíduo, sob pena de irremediável totalitarismo. Quer dizer, estamos a elaborar a distância com o absoluto que permite propriamente o nascimento da posição do intérprete.34

E quando o absoluto é (pretensamente) tamponado, suprimido por um fl uxo monetário que não mais é delimitado, que não permite nada mais ser senão a sua própria realização de fé? E quando não há mais intérpretes, apenas uma adesão a uma demanda absoluta de poder? As consequências incalculáveis do totalitarismo em larga escala impulsionado por esta privação do écart – não separação com a instância inaugural – facilmente podem ser entre-vistas.

O que estamos tentando propor como hipótese – muito mais a ser colocada à prova cotidianamente em nossas vidas relações pessoais e mesmo institucionalmente mediadas – é o alerta para a circunstância de quando passamos a vivenciar uma falha no trabalho da metáfora da linguagem em resguardar esta diferenciação com o objeto absoluto, tal como a conjuntura mercadológica incentiva – com a demanda absoluta. A redução da própria ideia de liberdade ao mercado é grão de areia neste deserto que se alastra. Pouco importaria o objeto emblemático que estamos a tratar – aqui no caso o dinheiro (moeda). Instala-se uma relação monetária que de fato não é uma ligação, mas um estado de fusão – con-fusão ao absoluto. O Mercado, enfi m, opera – como se fosse possível estruturalmente, mesmo que funcione como tal e opere neste registro – confundindo-se, ocupando o (não)lugar da demanda absoluta, espaço puro de poder investido.35

Trata-se de resistir – o exemplo é de Legendre –36 ao que o mito de Narciso exprime: um grau zero deste terceiro, supressão da estrutura concernente à linguagem que

33 LEGENDRE, Pierre. “Supponendo che una parola o una famiglia di parole siano detestabili” In: LEGENDRE, Pierre. Della Società Come Testo. Lineamenti di un´Antropologia Dogmatica, p.33.34 L´interprète n´est pas celui qui adhère sur le mode de la colle adhésive, mais qui s´est montré capable de soutenir un écart entre lui-même et la Demande absolue du pouvoir. Au-delà de cette simple remarque, se profi le la notion même de normativité: pour qu´il y ait normativitè dans une société, c´est-à-dire pour que s´exerce la fonction humanisatrice de la légalité, il est nécessaire qu´il y ait «du jeu» entre le sujet et le pouvoir; à défaut de cela, il y a manipulation pure et simple ou duel à mort, l´instance souveraine ne fonctionnant plus comme tiers logique des relations juridiques. LEGENDRE, Pierre. Le Désir Politique de Dieu: Etude sur les montages de l´État et du Droit (Leçons VII). Paris: Fayard, 1988, p.172.35 Pour l´individu comme pour une organisation, le principe de Raison – la non-folie – se joue précisément par les grands moyens symboliques, c´est-à-dire par le travail institucionnel des métaphores destinées à imposer la différenciation d´avec l´Objet absolu – entendez d´abord: d´avec la Demande absolue. On peut être fou de Dieu, fou Hitler, de Mao, de la Science, de n´importe quel Objet emblématique promu en absolu. Le lien totalitarie n´est pás un lien, mais un non-lien, un état de fusion avec l´absolu, où la mort elle-même n´est pas représentable – faute d´avoir accès au vide qu´introduit la dimension structurale de l´énigme –, et les meurtres à tout-va ne sont qu´un effet dans une conjoncture non pas de dépersonnalisation, mais de dé-métaphorisation du langage et du support institutionnel de la vie. LEGENDRE, Pierre. Le Désir Politique de Dieu: Etude sur les montages de l´État et du Droit (Leçons VII), p.174. 36 LEGENDRE, Pierre. “Enigmatizzazione del mondo. L´avvento del saper interrogare” In: LEGENDRE, Pierre. Della Società Come Testo. Lineamenti di un´Antropologia Dogmatica, p.57.

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possibilita a questão da divisão, quer dizer, aquilo que dá acesso ao resguardo refl exivo. Narciso não se vê, mais exatamente, não sabe que se vê, não conquista aquele lugar que originará o questionamento, não supera sua loucura paranoica. As experiências totalitárias podem ser lidas de alguma maneira assim. O atual estágio do que se poderia chamar de capitalismo de desastre37 em sua vertente neoliberal nos dá adequadamente as tintas desta funcionalidade. Não será falso dizer que atualmente as práticas sociais em cada ponto vêm sofrendo o infl uxo maciço da montagem mercadológica, que assustadoramente mobiliza esta lógica ternária a serviço do seu discurso. Assim, este ideário assume a posição, no sentido dogmático, de discurso instituído. E como tal detém o posto de fi ador da fé do próprio homem em si mesmo e garante da verdade sobre a qual se pode deduzir toda a cadeia de signifi cantes que pautam, sobretudo, as relações humanas desde este âmbito de sentido. In altri termini, è sempre il ´posto del discorso´ in quanto tale che fa fede, il posto dell´´In nome di´...garante della verità delle immagini e garante della causalità, a partire del quale si svolge la simbolizzazione o ciò che ne tiene il posto: gli effetti del suo sviamento.38

O espaço de écart, inerente ao homem como animal falante, é o legado que permitirá a ele se colocar em questão, não dar a questão humana por resolvida; mas, sim, sempre uma interrogação a se responder.39 A interrogação permanente, o fato de inarredavelmente se pôr a questão, assume assim um caráter pleno de resistência a qualquer discurso – propriamente o econômico em questão – que se arvore titular da resposta total. Um curto circuito dogmático se implementa na medida em que o discurso do fundamento – próprio de cada comunicação dogmática – é apropriado literalmente, colonizado pela lex mercatoria. Se o animal humano falante assim se confi gura como um animal de por que?; se a representação do por que? é inseparável do fenômeno da palavra, o problema central está posto quando em algum momento a sociedade acaba por deixar de assumir a responsabilidade da representação desde por que?,40 por aceitar impávida o signifi cante-mestre do Mercado como representante do discurso fundador, com todos seus efeitos que sofremos na carne.

37 Em seu espetacular “A Doutrina do Choque: a ascensão do capitalismo de desastre”, Naomi Klein chama de “capitalismo de desastre” diretamente os ataques orquestrados à esfera pública, ocorridos no auge de acontecimentos catastrófi cos, e combinados ao fato de que os desastres são tratados como estimulantes oportunidades de mercado. Escreverá sobre a dita doutrina do choque exatamente fazendo referência à tática nuclear do capitalismo contemporâneo, a qual a pesquisadora identifi ca seus termos teóricos já no prefácio de “Capitalismo e Liberdade” de Milton Friedman: somente uma crise – real ou pressentida – produz mudança verdadeira. Quando a crise acontece, as ações que são tomadas dependem das ideias que estão à disposição. Esta, eu acredito, é a nossa função primordial: desenvolver alternativas às políticas existentes, mantê-las em evidência e acessíveis até que o politicamente impossível se torne o politicamente inevitável. KLEIN, Naomi. A Doutrina do Choque: a ascensão do capitalismo de desastre. Tradução Vânia Cury. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008, pp.15-16.38 LEGENDRE, Pierre. “Enigmatizzazione del mondo. L´avvento del saper interrogare” In: LEGENDRE, Pierre. Della Società Come Testo. Lineamenti di un´Antropologia Dogmática, p.57.39 Reprenant la subtile exégèse talmudique autour de: ´qu´est-ce que l´homme?´, qui répond en miroir par un: l´homme est «qu´est-ce que?», je dirai que la question existentielle, matrice de l´indéfi ni questionnement du sujet, ne connaît pas d´autre réponse que le ‹qu´est-ce que?›. Nous partons de cette mise, énigmatique, inépuisable, dont la nature nous éloigne défi nitivement de la tentation scientiste de faire de l´interrogation humaine une question à résoudre, c´est-à dire à dissoudre. LEGENDRE, Pierre. La 901 Conclusion: Étude sur le théâtre de la Raison (Leçons I). Paris: Fayard, 1998, p.250 e pp.227-297. Resumidamente, ainda em LEGENDRE, Pierre. El Inestimable Objeto de la Transmisión: Estudio sobre el principio genealógico en Occidente (Lecciones IV), pp.91-98.40 LEGENDRE, Pierre. “Comunicazione Dogmatica (Ermete e la Struttura)”, p.33.

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Temos perdido, em grande medida, a capacidade de continuar a nos questionar sobre as reais condições de legitimação de nossas vidas e mesmo de aceitação e repúdio delas. A interrogação acerca do fundamento tem sempre a necessidade de ser instituída – pois afi nal não lidamos com a coisa em si – daí a função eminentemente crítica da palavra. No universo de preservação da maleabilidade subjetiva, que permite a questão infi nita sobre o que pode se dizer do sujeito-cultura-sociedade, sobretudo, incluído está, enfi m, a complexa problemática de incansavelmente nos perguntar sobre as condições antropológicas nas quais a palavra pode manter um sentido. Responder vivendo41 – para isto e por isto que estamos, desde a primeira linha deste ensaio, preocupados em advertir sobre a importância de uma demanda antropologicamente fundada, ou seja – não como uma força realmente reacionária poderá contestar – uma dogmática atenta aos dispositivos que estejam a serviço da última forma de Poder absoluto da moda.

4 BREVE ABERTURA A TÍTULO DE CONSIDERAÇÕES FINAISDefl agrada qualquer análise sobre um pano de fundo que diga respeito à sociedade

de consumo (Baudrillard) ou mesmo à sociedade de espetáculo (Débord), importa frisar necessariamente o que pode dar sentido a estas afi rmações cotidianas. Para além do simplismo em dizer que isto se resume à voracidade com que nos deparamos com as mercadorias (consumismo), o que importa pinçar nestas práticas é a exatamente a crença das pessoas em se valorarem pelo que elas podem consumir, mensurar o sentido da vida, por assim dizer, pelo que podem adquirir. O valor dela e das outras pessoas se circunscrevem por esta crença no consumo. Algo muito claro, a uma primeira vista, mas que o artigo exatamente pretendeu ir por estas bandas de forma vigorosamente vertical.

Walter Benjamin, num curto, porém lapidar texto de 1933, chamado “Experiência e Pobreza”, vislumbra uma nova forma de miséria derivada do monstruoso desenvolvimento da técnica. Este profeta de nossa época aduzia que, ao contrário da riqueza de ideias que o século XX pôde nos oferecer, é a nova barbárie da pobreza de experiências que toma assento privilegiado. Nossa experiência foi sorrateiramente subtraída pela hipocrisia vigente e hoje em dia é prova de honradez confessar nossa pobreza. Somos de fato aquele contemporâneo nu, que o autor descreveu, deitado como um recém-nascido nas fraldas sujas da época. Não queremos mais a procura por alguma experiência, aspiramos nos livrar dela, sermos tocado pela realidade é um insuportável trauma radical que uma vivência pura e decente não pode tolerar. Uma existência transparente (Vattimo) que basta a si mesma é a nossa condição socialmente adequada a esta cultura do vidro. Escreve Benjamim, desde Scheerbart, que nada melhor, para modelar indivíduos a sua imagem

41 HERITIER, Paolo. “Introduzione”, p.28.

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que, em nossa época, a presença do vidro: material tão duro e liso que nada a ele se fi xa, despe qualquer coisa de sua aura, de todo o mistério.42

Estivemos às voltas com isto. Apenas procuramos dar alguma contribuição pontual a vasculhar mais detidamente alguns aspectos importantes quando do trato com a estrutura social, e seus movimentos hoje investidos pelo mercado. Agonicamente uma velocidade irreversível nos atravessa as entranhas (Virilio) e os fatos da vida passam a não mais serem vividos, acontecem meramente sem qualquer traço na experiência – tal qual os combatentes silenciosos dos campos de batalha que voltavam mais pobres em experiências comunicáveis, pois não traziam nada transmissível de boca em boca, tamanha a radicalidade das experiências desmoralizadas que viveram. A perda da experiência melancolicamente não cessa de dar as cartas numa existência depressiva. Lacan dava um nome a esta opção conformista que negocia permanentemente com as representações coesas da realidade, e dispersas a qualquer preço, na estabilidade da representação, a experiência do encontro: chamava canalhice. Mas isto é abertura para outro panorama...

REFERÊNCIASAGAMBEN, Giorgio. Che cos´è un dispositivo? Roma: Nottetempo, 2006.BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas Vol. I. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. 7.ed.. São Paulo: Brasiliense, 1994.BORGES, Jorge Luis. El Aleph. Primera edición, revisada, en «Biblioteca de autor»: 1997. Decimocuarta reimpresión: 2008. Madrid: Alianza Editorial, 2008.KLEIN, Naomi. A Doutrina do Choque: a ascensão do capitalismo de desastre. Tradução Vânia Cury. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.LEGENDRE, Pierre. Della Società Come Texto. Lineamenti di un´Antropologia Dogmática (a cura di Paolo Heritier). Torino: G. Giappichelli Editore, 2005.______. Il Giurista Artista Della Ragione (a cura di L. Avitabile, saggio introduttivo di G. B. Ferri). Torino: G. Giappichelli Editore, 2000.______. La 901 Conclusion: Étude sur le théâtre de la Raison (Leçons I). Paris: Fayard, 1998.______. El Inestimable Objeto de la Transmisión: Estudio sobre el principio genealógico en Occidente (Lecciones IV). Traducción de Isabel Vericat T. Núñez. Madrid: Siglo Veintiuno Editores, 1996.______. Le Désir Politique de Dieu: Etude sur les montages de l´État et du Droit (Leçons VII). Paris: Fayard, 1988.FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 16.ed. Organização, Introdução e Revisão Técnica de Roberto Machado. São Paulo: Graal, 1979.ŽIŽEK, Slavoj. A visão em paralaxe. Tradução de Maria Beatriz de Medina. São Paulo: Boitempo, 2008.

42 BENJAMIN, Walter. “Experiência e Pobreza” In: BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas Vol I. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. 7ª ed.. São Paulo: Brasiliense, 1994, pp.115-117.

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O “boring”1 dos textos jurídicos

Marco Félix Jobim

RESUMOEste artigo aborda a forma como vem sendo tratada a maioria maciça dos textos jurídicos

elaborados em nossa doutrina. Está-se criando uma cultura dos manuais que faz com que nossa capacidade intelectual seja uma quase cópia de outra personagem que escreveu anteriormente, e assim sucessivamente. Por esta razão, aborda-se uma nova concepção de textos jurídicos, calcados na inovação, trazendo de outras áreas exemplos como gráficos, capas e linguagem para fazer com que os textos jurídicos fiquem menos entediantes e que chamem a atenção do leitor de outras ciências para o debate jurídico acadêmico.

Palavras-chave: Texto. Jurídico. Entediante. Novas concepções.

The boring of the legal texts

ABSTRACTThis article deals with the way has been treated most massive of the legal texts prepared

in our doctrine. We are creating a culture of hand that makes our intellectual capacity is almost a copy of another character who previously wrote and so forth. For this reason, it approaches a new conception of legal text, which rely on innovation, bringing examples from other areas as graphics, covers and language to make the legal texts will be less boring and to draw the reader’s attention from other sciences to The academic legal debate.

Keywords: Text. Legal. Boring. New concepts.

1 INTRODUÇÃO

Em raras ocasiões o leitor de textos jurídicos se depara com alguma redação que lhe chame a atenção, quer em artigos quer em livros, e isso não ocorre somente pela falta de inovação de conteúdo, mas também pelo próprio modo como ele é apresentado àquele a que se destina a leitura.

Um dos textos que recentemente foi estudado para a disciplina de Interpretação Constitucional e Fundamentos do Direito Público e Privado no doutorado da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, sob orientação do professor Juarez Freitas,

Marco Félix Jobim é advogado e professor universitário. Especialista, mestre e doutorando em Direito. E-mail: [email protected]

1 A expressão é utilizada no contexto de “entediante”.

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denominado “The Citizenship Agenda”, de Bruce Ackerman,2 que faz parte de uma obra maior chamada “The constitution in 2020”, ainda inédita no Brasil, apenas sendo possível seu acesso mediante importação do produto, é um exemplo ao contrário do que foi relatado acima.

Para o deleite de alguns a que possa a curiosidade tomar conta após esta breve resenha, existem poucos artigos da referida obra que estão à disposição de todos no sítio www.constitution2020.org, sendo, felizmente, dentre eles, o ora analisado.

Diante disso, este pequeno ensaio se destina a trazer uma nova visão do que pode vir a ser um artigo jurídico, tomando como base o texto de Bruce Ackerman para que, no Brasil, se inicie a pensar diferente o modo que se quer passar ao leitor a matéria relacionada ao Direito.

2 OS TÍTULOS E SUBTÍTULOS: SEMPRE OS MESMOSUma das primeiras análises que se deve fazer sobre o referido artigo é a curiosidade

que seu nome desperta no leitor. “The Citizenship Agenda”, que signifi ca traduzido a “A agenda da cidadania”, o que faz, inevitavelmente, naquele que o lê, se questionar sobre o que deseja o articulista expor.

Isso é uma técnica que pouco existe no mundo jurídico, salvo raras exceções.3 Geralmente não há interesse de outras áreas nas leituras de textos de Direito, tendo em vista que os mais diversos títulos sempre têm sempre a mesma estrutura:4 geralmente se inicia com a história do instituto, a sua natureza jurídica, a legitimidade ativa e passiva, entre outros tantos títulos repetidos ao longo de trabalhos na área jurídica.

Na já referida disciplina, tem-se tentado introjetar esta ideia nos doutorandos de que os textos jurídicos chamem a atenção do leitor também pelos seus títulos, incentivando naquele que apenas lê o sumário, por exemplo, que se aventure na leitura do conteúdo do texto redigido.

2 Bruce Ackerman é professor de Direito Constitucional e de Ciência Política na Universidade de Yale. Sua linha de pensamento é procedimentalista, conforme explana Gisele Cittadino: “Desde a publicação de seus primeiros trabalhos, Ackerman, assumindo uma posição contrária ao liberalismo de John Rawls e Ronald Dworkin, defende a ideia de que os direitos fundamentais do cidadão não são direitos substantivos – igualdade ou igual respeito e consideração – mas procedimentais, pois todos os indivíduos têm o direito básico de participar de um processo político deliberativo no qual determinam o conteúdo substantivo dos demais direitos fundamentais, da mesma forma como defi nem os seus destinatários primordiais: ‘o primeiro, e mais fundamental, é o direito de cada indivíduo ao reconhecimento dialógico como um cidadão em uma conversação política em desenvolvimento’. É o diálogo social, portanto, que defi ne o conteúdo substantivo dos direitos fundamentais”. In: ACKERMAN, Bruce. Nós, o povo soberano: fundamentos do Direito Constitucional. Tradução de Mauro Raposo de Mello. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p.XV-XVI.3 Podem-se citar aqui obras como as de Ricardo Aronne: ARONNE, Ricardo. Direito civil-constitucional e teoria do caos: estudos preliminares. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. ARONNE, Ricardo. Razão & Caos no discurso jurídico e outros ensaios de Direito civil-constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. Também se podem citar aquelas obras destinadas ao novo movimento denominado Direito e Literatura. TRINDADE, André; SCHWARTZ, Germano. Direito e Literatura: o encontro entre Themis e Apolo. Curitiba: Juruá, 2008.4 Isso vem sendo discutido paulatinamente pelo professor Doutor Juarez Freitas na disciplina citada de como deixar os títulos mais chamativos ao leitor, ideia esta agora comprada pelo ora articulista que já tenta, no título, fazer um que denote este novo foco.

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Tome-se, como exemplo, a obra “A economia irracional: como tomar as decisões certas em tempos de incertezas”,5 organizada por Erwann Michel-Kerjan e Paul Slovic, um livro de artigos sobre economia. O próprio nome da obra já desperta, por si só, a curiosidade do leitor que, tão logo veja e assimile o título, já parte para o sumário.

Durante a leitura do sumário, o candidato à leitura se depara com os seguintes artigos a serem lidos: “Meteorologistas ensandecidos, concursos de beleza e maçãs religiosas na Wall Street”, de George A. Akerlof e Robert J. Shiller; ou “Metrôs, frutos do coqueiro e campos minados nublados”, de Robin M. Hogarth; ou “Riscos virgens versus riscos já vividos”; ou “Possibilidades terríveis, probabilidades negligenciadas”, entre tantos outros artigos da obra que poderiam ser citados.

Ora, o leitor, sem sombra de dúvida, obrigatoriamente terá que fazer alguns questionamentos ao ler os títulos da obra: o que tem a ver meteorologistas ensandecidos com concurso de beleza ou maçãs religiosas? O que é uma maçã religiosa? Ou ainda, noutros títulos: o que são riscos virgens? Ou probabilidades terríveis? Ou probabilidades negligenciadas? Todos esses questionamentos despertam a atenção do leitor, independente da área em que atue.

Em outro livro que não do contexto jurídico, cujo título é “Quente, plano e lotado: os desafi os e oportunidades de um novo mundo”,6 o autor Thomas L. Friedman assim dispõem alguns capítulos de sua obra: a primeira parte do livro se chama “quando o mercado e a mãe natureza chegam a um beco sem saída”, sendo que capítulo 1 desta parte o subtítulo é “porque o Citibank, os bancos da Islândia e os bancos de gelo da Antártida se derreteram todos ao mesmo tempo”, ou ainda, a quarta parte do livro que chama de “China”, tem como subcapítulo “a China vermelha poderá se tornar a China verde?”.

Talvez o exemplo que melhor conforme aquilo que se queira passar nesta parte do texto é a obra “Freakonomics: o lado oculto e inesperado de tudo que nos afeta”,7 onde a capa, instigante, mostra uma maçã cortada com gomos de laranja no seu interior, no melhor estilo de que nem sempre aquilo que está diante dos olhos é verdadeiro. O capítulo primeiro da obra lava o título de “O que os professores e os lutadores de sumô têm em comum?”. Ora, quem não deseja saber a resposta a essa questão? O capítulo segundo traz “Em que a Ku Klux Klan se parece com um grupo de corretores de imóveis?”, e o capítulo três questiona “Por que os trafi cantes continuam morando com as mães?”, demonstrando que a técnica de colocar questionamentos nos títulos dos capítulos torna, via de regra, o texto mais curioso.

Está-se falando de um sucesso inesperado da obra “Freakonomics” que já foi lançada “Superfreakonomics: o lado oculto do dia a dia”,8 uma continuação, e “Freedomnomics:

5 MICHEL-KERJAN, Erwann; SLOVIC, Paul. A economia irracional: como tomar decisões certas em tempos de incertezas. Beatriz Caldas (tradução). Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.6 FRIEDMAN, Thomas L. Quente, plano e lotado: os desafi os e oportunidades de um novo mundo. Paulo Afonso (tradução). Rio de Janeiro: Objetiva, 2010. 7 LEVITT, Stvene D.; DUBNER, Stephen J. Freakonomics: o lado oculto de tudo que nos afeta. Tradução de Regina Lyra. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007. 8 LEVITT, Steven D., DUBNER, Stephen. Superfreakonomics: o lado oculto do dia a dia. Tradução de Celso da Cunha Serra. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.

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por que o livre comércio funciona e pode resgatar a economia mundial”,9 que é uma resposta de discordância as obras supracitadas.

Para confi rmar o ponto de vista acima apresentado, temos também como paradigma a obra “P ponto de virada: como pequenas coisas podem fazer uma grande diferença”,10 de Malcolm Gladwell, cujo capítulo três é denominado de “O fator de fi xação: Vila Sésamo, as pistas de blue e o vírus educacional”; o capítulo seis chama-se “Estudo de caso: boatos, tênis e o poder da tradução”, e o capítulo sete “Estudo de caso: suicídio, tabagismo e a busca do cigarro sem poder de fi xação”.

Os exemplos acima são apenas alguns entre tantos outros que poderiam ser trazidos ao texto.11

Contudo, na área jurídica, os títulos dados às obras, aos artigos e aos mais diversos escritos continuam, em muitas ocasiões, do repetitivo ao sem inovação, deixando de incentivar, em muitas ocasiões, o próprio profi ssional do direito. O que se dirá dos leitores de outras áreas?

Assim, quando o leitor se depara com um texto como “A agenda da cidadania”, imediatamente nele desperta a curiosidade para a leitura do texto, quer seja jurídico ou de outra área qualquer, devendo ser ressaltado o bem que isso faria com a comunidade jurídica para que, passo a passo, consiga tornar o Direito mais globalizado e atrativo a leitores de outras ciências.

2 TEXTOS JURÍDICOS E A PREOCUPAÇÃO COMO PASSADOOutro tema importante a ser tirado do texto de Bruce Ackerman, mas aqui um

elogio a própria obra “The constitution in 2020”, é a preocupação com o futuro, ou seja, de como vai estar o mundo daqui algum tempo, no caso, em 2020.

Esta é outra crítica ao mundo jurídico que pouco pensa de como as coisas vão estar daqui há 10, 15, 20 anos, se preocupando em pensar as coisas no hoje em dia, ou, no mais das vezes, apenas se reportando ao passado.

Um exemplo, mais uma vez voltado à economia, de preocupação como vai fi car o futuro, pode ser lido na obra “Brasil pós-crise: agenda para a próxima década”,12 organizada por Fabio Giambiagi e Octavio de Barros, onde, no capítulo

9 LOTT, John. Fredomnomics: por que o livre comércio funciona e pode resgatar a economia mundial. Tradução de Ivan P. F. Santos. São Paulo: Saraiva, 2009.10 GLADWELL, Malcolm. O ponto de virada. Talita Macedo Rodrigues (tradução); Teresa Carneiro (tradução do posfácio). Rio de Janeiro: Sextante, 2009.11 Em outras áreas, como na história, temos: FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe. Então você pensa que é humano? Uma breve história da humanidade. Tradução de Rosaura Eichemberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. Na sociologia: CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. 6.ed. Tradução de Guy Reynaud. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.12 GIAMBIAGI, Fabio; BARROS, Octavio de (Orgs.). Brasil pós-crise: agenda para a próxima década. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009.

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2, num artigo de autoria de Antonio Delfi m Neto, chamado de “A agenda fi scal”, onde este traz inovações para que o Brasil não chegue a um défi cit irrecuperável fi nanceiro em alguns anos. Essa, e outras tantas ideias, são trazidas na primeira parte da obra.13

3 TEXTOS JURÍDICOS: MAIS IDEIAS, MENOS PÁGINASTrazer ideias inovadoras. Parece que o Direito está conformado onde está trazendo

uma produção bibliográfi ca cada dia mais baseada em outra já escrita e apenas reescrita de forma diferenciada, salvo raros casos, em especial com as publicações recentes de dissertações e teses dos programas de pós-graduação stricto sensu (mestrado e doutorado) das Universidades do país, ou alguma outra produção intelectual de algum jurista focado com a inovação.14

A onda dos terríveis manuais de direito que tomam conta a cada dia mais das Universidades tem sido como uma barreira do pensar do aluno, isso quando não estão de posse dos destemidos resumões de Direito que desafi am tudo o já escrito de complexo, numa fórmula mágica simplifi cada em três páginas dobradas e sobrepostas umas sobre as outras.

Bruce Ackerman, em 10 páginas apenas, revoluciona o mundo das ideias ao trazer três formas para construir novas bases de uma cidadania mais participativa nos Estados Unidos da América.

13 Já na apresentação da obra, pode-se notar a preocupação: “O livro está dividido em três grandes partes. A primeira trata, em linhas gerais, das reformas macroeconômicas. Nela, com nove capítulos, o denominador comum é o destaque à necessidade de que o país se empenhe na aprovação de reformas-chave, tantas vezes postergadas. No capítulo inicial, Octavio de Barros e Fabio Giambiagi falam de um Brasil pós-crise que precisa se adaptar às grandes transformações no cenário global, em um contexto no qual os desafi os mudam de natureza. Na sequência, Antonio Delfi m Netto apresenta os pontos do que poderia constituir uma espécie de ‘agenda fi scal’, incluindo a proposta de reduzir a taxa de crescimento das despesas primárias do governo central à metade da taxa de crescimento do PIB, bem como um conjunto de sugestões destinadas ao aprimoramento institucional relacionado com a elaboração do orçamento. John H. Welch faz uma leitura das mudanças no sistema bancário e fi nanceiro global no qual o Brasil está inserido. O capítulo de Octavio de Barros e Fernando Honorato Barbosa analisa os determinantes do resultado das contas externas do país e faz um exercício acerca de sua evolução nos próximos anos, apontando para a relação entre o que se pode esperar do saldo em conta corrente e o comportamento da absorção doméstica. Ernani Teixeira Torres Filho e Fernanda Puga discutem o desempenho e o cenário do comércio exterior brasileiro, sugerindo o que poderia vir a ser uma estratégia para as nossas exportações. Os ex-ministros Francisco Dornelles e José Roberto Afonso apresentam em linhas gerais e conceituais de quais teriam de ser os pontos principais de uma reestruturação do sistema tributário do país. Fabio Giambiagi expõe o que poderia ser defi nido como uma agenda realista de reformas no campo previdenciário. Wilson Ferreira Jr. mostra qual deveria ser a agenda de curto e de longo prazo do setor elétrico, para evitar que o país sofra com velhos (como em 2001) ou novos problemas (como a maior poluição da matriz energética). Alexandre Mathias, por sua vez, mesmo destacando o sucesso do regime, propõe alguns aprimoramentos a serem incorporados as sistema de metas de infl ação”. P. XI.14 Podem ser citadas as obras de Juarez Freitas que nunca caem na ordinariedade, sempre trazendo inovações no campo jurídico: FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do direito. 5.ed. São Paulo: Malheiros, 2010. FREITAS, Juarez. Discricionariedade administrativa e o Direito fundamental à boa administração pública. 2.ed. São Paulo: Malheiros, 2009.

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Apenas analisando o trecho do texto abaixo, notam-se as três soluções encontradas para uma cidadania mais participativa, a saber: os dólares patriotas, o dia da deliberação e a sociedade dos interessados

This has been the spirit of three collaborations with friends of mine that aim to kick off a new round of debate over the shape of the citizenship agenda: Voting with Dollars, with Ian Ayres; Deliberation Day, with Jim Fishkin; and The Stakeholder Society, with Anne Alstott (all Yale University Press paperbacks). In setting out three planks for a new citizenship agenda, we tried to rediscover the art of talking about big ideas in ordinary English, staying clear of Beltway techno-babble. This is the only way to convince millions of Americans that meaningful citizenship is a real-world possibility—if they only will take the future into their own hands.15

Isso continua sendo um equívoco nos textos jurídicos, acabando por se tornarem pernósticos, escrevendo-se muito e falando-se pouco. Com apenas 10 páginas alguém pode trazer ideias, ao menos discutíveis, para a comunidade jurídica, sem ter o seu texto de ser tachado de medíocre, entre outros adjetivos pejorativos, pelo número reduzido de páginas.16

4 TEXTOS JURÍDICOS: A FALTA DE GRÁFICOS, DE UMA LINGUAGEM ACESSÍVEL E DE NOVAS CAPASPor último, mas não menos importante, os textos jurídicos carecem de uma

linguagem17 mais acessível a seus leitores, quer por meio de gráfi cos explicativos,18 quer através da própria formalidade para se escrever neste meio que, a duras penas, quem foge da regra de um formalismo para a escrita resta alijado do mercado doutrinário.

O que fi ca para a comunidade jurídica é que os textos sejam feitos mais livremente, com o poder do articulista de não se amarrar às dogmáticas do formalismo na livre

15 www.constitution2020.org.16 Aliás, digno de nota, a tese de livre-docência onde Virgílio Afonso da Silva sagrou-se vencedor para professor titular da Universidade de São Paulo tem pouco mais de 150 páginas. AFONSO DA SILVA, Virgílio. A constitucionalização do Direito: os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2004, mostrando, mais uma vez, que não precisa falar muito para dizer algo de novo. Ainda, pode-se lembrar de: MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, que em pouco mais de 140 páginas defendeu tese brilhante de doutoramento perante a Universidade Federal do Rio Grande do Sul.17 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método II: complementos e índice. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2002, p.182. Disse o fi lósofo alemão: “A linguagem é, pois, o centro do ser humano, quando considerada no âmbito que só ela consegue preencher: o âmbito da convivência humana, o âmbito do entendimento, do consenso crescente, tão indispensável à vida humana como o ar que respiramos”.18 Exemplo disso pode ser analisado na obra: GARCIA, Márcio; GIAMBIAGI, Fabio. Risco e regulação: por que o Brasil enfrentou bem a crise e como ela afetou a economia mundial. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. No texto de Ricardo Weiss, denominado de “Fundos de pensão no Brasil: antes e depois da crise de 2008”, pode-se notar a facilidade com que o profi ssional de outra área entenda o texto pela forma gráfi ca imposta pelo autor.

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apreciação de sua obra a ser fi nalizada. Algo menos formal e que não traga críticas por essa informalidade necessária. Muitas vezes sequer o acadêmico pode agradecer de maneira livre,19 sem a represália de um professor orientador que consegue podar a livre manifestação de seu aluno. Raros são os casos no próprio texto deste tipo de exposição.20

Outra observação que merece destaque é a falta de capas chamativas ao leitor. Em que pese está-se diante de uma ciência que é o Direito, as obras não necessitam ser sempre as mesmas, onde o título, o autor e a editora geralmente preenchem um vazio que é a cor principal estampada na capa. Uma editora que vem fazendo mudança no gráfi co utilizado na capa é a Quartier Latin, onde, de algum tempo para cá, traz gravuras que auxiliam ao leitor em elucidar o que será lido na obra a ser adquirida.21

19 Um dos melhores exemplos de que o agradecimento pode e deve ser feito espontaneamente é lido na obra de Virgílio Afonso da Silva, onde assim faz o autor seus agradecimentos: “A Lennon, McCartney, Harrison e Starr, a Jagger, Richards, Wyman e Watts, a Page, Plant, Jones e Bonham, a Joey, Johnny, Dee Dee e Tommy e a todos os outros que me acompanham desde a infância, agradeço as horas intermináveis de muita música. O mesmo vale para Mingus, Miles, Coltrane e outros, descobertos um pouco mais tarde. Embora não exista melhor forma de liberar as tensões que antecedem a um concurso do que ouvir Wart Hog (Ramones), Holidays in the Sun (Sex Pistols) ou Helter Skelter (Beatles) no volume máximo, a elaboração deste trabalho ocorreu, em seus momentos decisivos, ao som de algo mais suave e quase minimalista: Alina, do estoiano Arvo Pärt. Em todos os casos, porém, é possível acompanhar Sancho Panza e afi rmar: Donde hay música no puede Haber cosa mala (Miguel de Cervantes, Don Quijote de La Mancha, II, XXXIV)”. In: AFONSO DA SILVA, Virgílio. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e efi cácia. São Paulo: Malheiros, 2009. p.18. 20 Note-se como, ao fazer a ilação de um fi lme de fi cção com a matéria relacionada à modulação de efeitos, Eduardo Appio consegue, de forma concisa e exemplifi cativa, fazer-se entender: APPIO, Eduardo. Controle difuso de constitucionalidade: modulação dos efeitos, uniformização de jurisprudência e coisa julgada. Curitiba: Juruá, 2009. “Ao defender a chamada efi cácia retroativa das decisões em controle difuso, o Supremo Tribunal assuma o papel de senhor absoluto do tempo das decisões. Assim como no fi lme De volta para o futuro, o personagem vivido nas telas por Michael J. Fox retorna para o passado, para consertá-lo, através de uma máquina criada por um genial cientista, os Ministros do Supremo embarcarão nesta inusitada viagem no tempo, retomando discussões já encerradas no passado, com a fi nalidade de alterar suas consequências. No fi lme, o personagem, insatisfeito com o atual estágio de sua vida e com a modesta condição econômica de sua família, decide voltar para o passado, alterando o curso de sua biografi a pessoal (e de seus familiares). Ao interferir no curso da história, o personagem, de forma inadvertida, produz inúmeras consequências indesejadas (efeitos colaterais), já que a dinâmica dos acontecimentos futuros acaba por ser totalmente alterada. A previsão sobre o que supunha iria acontecer no futuro acaba, no fi lme, converte-se em tormento para o personagem, já que sua família passa a gozar de alguns benefícios, mas, de outro lado, surgem novos problemas. O personagem, já ao fi nal do fi lme, dá-se conta de que, muito embora gozasse de uma situação privilegiada – pois sabia de antemão, as origens de sua desgraça e como consertá-la – ainda assim não tinha condições de determinar o fi nal da ‘estória’”. Após, continua o autor ao fazer a ilação fi nal ao STF: “O Supremo Tribunal Federal, ao modular os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, na via difusa, também goza, a exemplo do personagem, de uma posição privilegiada. Conhece as origens dos problemas criados por centenas ou mesmo milhares de decisões judiciais que não correspondem a sua própria interpretação constitucional. Ao redesenhar o sistema de controle de constitucionalidade no país, com especial ênfase na modulação dos efeitos no controle difuso, o Supremo está interferindo no curso de uma ‘estória’ já encerrada pela força da coisa julgada”. p.34. 21 Em recente obra jurídica publicada em homenagem à professora Elaine Harzheim Macedo, em sua capa, há uma fi gura de uma mulher entregando a um homem sentado algo envolto em bandagens. Isso desperta a curiosidade no leitor que, no prólogo, acha a resposta para aquela capa como sendo parte da mitologia grega onde Reia entrega uma pedra envolta de bandagens a Cronos, como se fosse seu fi lho, Zeus, para ser engolido pelo pai para que, no futuro, não fosse ele destronado pelo seu fi lho, visão esta que um oráculo teve. JOBIM, Geraldo C.; TELLINI, Denise Estrela; JOBIM, Marco Félix. Tempestividade e efetividade processual: novos rumos do processo civil brasileiro. Caxias do Sul: Plenum, 2010.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAISAssim, com base no texto “The Citizenship Agenda”, de Bruce Ackerman, roga-se

ao estudioso do direito que, no mais das vezes, siga os passos seguintes para a confecção do seu texto jurídico:

1. Torne atrativos os capítulos e subcapítulos dos trabalhos acadêmicos para despertar a curiosidade no leitor;

2. Não escreva somente com vista ao passado ou ao presente, mas com a cabeça visando às problemáticas e soluções para o futuro;

3. Escreva objetivamente, não necessitando de 100 páginas para dizer aquilo que se poderia fazer em 10;

4. No mais das vezes, inove. A ideia nova traz discussão e debates o que, na área jurídica, é uma das únicas formas de moldar novas mentes.22

5. Não fi que adstrito a uma linguagem formal nos textos por receio de ser criticado. Quando for possível, utilize gráfi cos, gravuras, charges, capas diferenciadas etc. para demonstrar seu ponto de vista, ou ainda, se utilize de um estilo próprio, que expresse aquilo que realmente deseja passar, sendo que, por obviedade, sem maltratar a língua que está sendo escrita.

REFERÊNCIASACKERMAN, Bruce. Nós, o povo soberano: fundamentos do Direito Constitucional. Tradução de Mauro Raposo de Mello. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.AFONSO DA SILVA, Virgílio. A constitucionalização do Direito: os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2004.______. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros, 2009.APPIO, Eduardo. Controle difuso de constitucionalidade: modulação dos efeitos, uniformização de jurisprudência e coisa julgada. Curitiba: Juruá, 2009.ARONNE, Ricardo. Direito civil-constitucional e teoria do caos: estudos preliminares. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.______. Razão & Caos no discurso jurídico e outros ensaios de Direito civil-constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. 6.ed. Tradução de Guy Reynaud. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

22 Para ver que a mudança de mentes está ao alcance de todos, recomenda-se a obra: GARDNER, Howard. Mentes que mudam: a arte e a ciência de mudar as nossas ideias e as dos outros. Tradução de Maria Adriana Veríssimo Veronese. Porto Alegre: Artmed/Bookman, 2005. Em especial da página 27 a 31 e os sete fatores que auxiliam na mudança da mente, sendo eles: razão, pesquisa, ressonância, redescrições representacionais, recursos e recompensas, eventos do mundo real e resistências. Também de grande auxílio para a complementação da obra recomendada é: THALER, Richard H.; SUNSTEIN, Cass R. Nudge, o empurrão para a escolha certa: aprimore suas decisões sobre saúde, riqueza e felicidade. Tradução Marcello Lino. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009.

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FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe. Então você pensa que é humano? Uma breve história da humanidade. Tradução de Rosaura Eichemberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do direito. 5.ed. São Paulo: Malheiros, 2010.______. Discricionariedade administrativa e o Direito fundamental à boa administração pública. 2.ed. São Paulo: Malheiros, 2009.FRIEDMAN, Thomas L. Quente, plano e lotado: os desafios e oportunidades de um novo mundo. Paulo Afonso (tradução). Rio de Janeiro: Objetiva, 2010. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método II: complementos e índice. 2.ed. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2002.GARDNER, Howard. Mentes que mudam: a arte e a ciência de mudar as nossas ideias e as dos outros. Tradução de Maria Adriana Veríssimo Veronese. Porto Alegre: Artmed/Bookman, 2005.GIAMBIAGI, Fabio; BARROS, Octavio de (Orgs.). Brasil pós-crise: agenda para a próxima década. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009.GLADWELL, Malcolm. O ponto de virada. Talita Macedo Rodrigues (tradução); Teresa Carneiro (tradução do posfácio). Rio de Janeiro: Sextante, 2009.JOBIM, Geraldo C.; TELLINI, Denise Estrela; JOBIM, Marco Félix. Tempestividade e efetividade processual: novos rumos do processo civil brasileiro. Caxias do Sul: Plenum, 2010.LEVITT, Steven D.; DUBNER, Stephen J. Freakonomics: o lado oculto de tudo que nos afeta. Tradução de Regina Lyra. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007. ______. Superfreakonomics: o lado oculto do dia a dia. Tradução de Celso da Cunha Serra. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.LOTT, John. Fredomnomics: por que o livre comércio funciona e pode resgatar a economia mundial. Tradução de Ivan P. F. Santos. São Paulo: Saraiva, 2009.MICHEL-KERJAN, Erwann; SLOVIC, Paul. A economia irracional: como tomar decisões certas em tempos de incertezas. Beatriz Caldas (tradução). Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.THALER, Richard H.; SUNSTEIN, Cass R. Nudge, o empurrão para a escolha certa: aprimore suas decisões sobre saúde, riqueza e felicidade. Tradução Marcello Lino. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009.TRINDADE, André; SCHWARTZ, Germano. Direito e Literatura: o encontro entre Themis e Apolo. Curitiba: Juruá, 2008.WEISS, Ricardo. Fundos de pensão no Brasil: antes e depois da crise de 2008. In: GARCIA, Márcio; GIAMBIAGI, Fabio. Risco e regulação: por que o Brasil enfrentou bem a crise e como ela afetou a economia mundial. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.

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O direito à saúde no Brasil e a teoria da reserva do possível como falácia à sua

efetivação1

Germano SchwartzVitor Rieger Teixeira

RESUMOO presente artigo tem como objetivo verificar como a teoria da reserva do possível vem

sendo utilizada, no Brasil, na efetivação do direito fundamental à saúde. A partir desse pressuposto, procura verificar as possibilidades de transplante de teorias oriundas de países estrangeiros para a realidade jurídico-social brasileira. Com isso, intenta demonstrar que o direito à saúde não pode ser limitado em função de um discurso jurídico que se baseia em uma falácia (a reserva do possível), preservando-se, assim, o sentido original do texto constitucional.

Palavras-chave: Direito à Saúde. Reserva do Possível. Teoria dos Sistemas Sociais Autopoiéticos.

The right to health care in Brasil and the reserve of the possible theory as a fallacy for its effectiveness

ABSTRACTThis paper’s purpose is to check the way the constitutional theory of the “reserve of

the possible” is being implemented in Brazil in regard to the fundamental right to health care. Based on this, it purports to verify the possibility of transplanting foreign theories to Brazilian socio-juridical reality. Its aim is to demonstrate that the right to health care cannot be limited by a juridical discourse based on a fallacy (“the reserve of possible”), thus preserving its original constitutional meaning.

Keywords: Health Law. Reserve of the Possible. Autopoietic Systems Social Theory.

Germano Schwartz Pós-Doutor em Direito (University of Reading). Doutor em Direito (Unisinos) com estágio doutoral na Université Paris X – Nanterre (Centre de Theorie du Droit). Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da ULBRA Canoas. Coordenador do Curso de Direito da ESADE – Laureate International Universities. Professor do Curso de Direito da Faculdade da Serra Gaúcha. Pesquisador da UnP. E-mail [email protected] Rieger Teixeira é bacharelando em Direito (ULBRA). Bolsista PIBIC/CNPq.

1 Artigo resultante de pesquisa fi nanciada pelo CNPQ em sede de PIBIC na Universidade Luterana do Brasil. Originou-se do projeto de pesquisa intitulado “A Teoria do Direito Aplicada aos Direitos Fundamentais: do positivismo à autopoiese do Direito”, vinculado ao grupo de pesquisa CNPQ “Constitucionalismo e Direitos Fundamentais” e à linha de pesquisa “Direito do Estado e Direitos Fundamentais” do PPGD-ULBRA/Canoas.

Direito e Democracia v.11 n.1 p.43-60 jan./jun. 2010Canoas

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1 INTRODUÇÃODesde sua positivação,2 enquanto direito fundamental no Brasil até o presente

momento, pode-se dizer que o direito à saúde passou por várias fases, típicas de sua jovialidade. Não se pode categorizá-las. Contudo, em função dos debates que seguiram à sua inclusão no texto constitucional, várias discussões/dúvidas foram resolvidas pelos Tribunais.

Paradoxalmente, o fato de os Tribunais terem atuado no sentido da preservação do direito à saúde, ao mesmo tempo em que contribuiu para sua maior efetividade, trouxe à tona um discurso de que essa mesma “judicialização da saúde” torna, hoje, inviável a atuação judicial sob pena de ruptura do Sistema Único de Saúde. Mostra da relevância dessa discussão foi a realização da Audiência Pública, promovida pelo Supremo Tribunal Federal,3 sobre a temática. A lista dos assuntos debatidos4 girou em torno da legitimidade da atuação dos magistrados (e de seus limites) na busca da efetivação da saúde por intermédio do Direito.

Sob o argumento irrefutável de que os direitos sociais necessitam de aportes fi nanceiros, a teoria da reserva do possível no direito à saúde assumiu grande espaço nos debates jurídicos. O propósito do presente artigo centra-se na análise das falácias construídas para desqualifi car a necessária intervenção do Judiciário – quando provocado – na proteção do direito fundamental à saúde.5

2 O USO DAS FALÁCIAS NOS ARGUMENTOS (JURÍDICOS) E A DISTORÇÃO DA REALIDADE O Direito pode ser entendido a partir de vários enfoques. Dentro da delimitação

objetivada, opta-se por analisar o papel da construção dos argumentos e suas consequências na (re)construção de uma “realidade” específi ca: o direito à saúde e sua necessária conexão com a fi nitude de recursos.

2 Para uma análise da evolução histórica da positivação do direito à saúde em solo pátrio, veja-se SCHWARTZ, Germano. Direito à Saúde : efetivação em uma perspectiva sistêmica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p.40 e seguintes.3 “A Audiência Pública, convocada pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ministro Gilmar Mendes, ouviu 50 especialistas, entre advogados, defensores públicos, promotores e procuradores de justiça, magistrados, professores, médicos, técnicos de saúde, gestores e usuários do sistema único de saúde, nos dias 27, 28 e 29 de abril, e 4, 6 e 7 de maio de 2009”. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=processo AudienciaPublicaSaude. Acessado em 09 de maio de 2009.4 Foram debatidos, entre outros, os seguintes pontos: (a) Responsabilidade dos entes da federação em matéria de direito à saúde; (b) Obrigação de o Estado fornecer prestação de saúde prescrita por médico não pertencente ao quadro do SUS ou sem que o pedido tenha sido feito previamente à Administração Pública; (c) Obrigação de o Estado custear prestações de saúde não abrangidas pelas políticas públicas existentes; (d) Obrigação de o Estado disponibilizar medicamentos ou tratamentos experimentais não registrados na ANVISA ou não aconselhados pelos Protocolos Clínicos do SUS; (e) Obrigação de o Estado fornecer medicamento não licitado e não previsto nas listas do SUS; (f) Fraudes ao Sistema Único de Saúde. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=processoAudienciaPublicaSaude&pagina=perguntas. Acessado em 30 de maio de 2009.5 Sobre a saúde enquanto direito fundamental, veja- se a obra de FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Direito Fundamental à saúde: parâmetros para sua efi cácia e efetividade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.

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É fato que, após longo período de naturalismo e empirismo absoluto no Direito, o estudo da argumentação vem tomando destaque6 com a abertura hermenêutica. A argumentação torna-se necessária ao operador do Direito. A simples aplicação da norma jurídica não satisfaz às expectativas normativas da sociedade.

A retórica tem como escopo o convencimento do interlocutor. Destarte, desde a antiguidade reconhece-se que a argumentatio é a parte mais importante da arte retórica, pois se destina a produzir credibilidade dos pontos de vista arrolados.7

Nessa linha de raciocínio, argumentar é a técnica (ou arte) em que se busca persuadir por intermédio do discurso, que, por seu turno, pode ser defi nido em três elementos: o locutor (a pessoa que fala), o interlocutor (ouvinte) e o assunto que se fala. Também pode ser dividido em três tipos: deliberativo, judiciário e demonstrativo. Embora apresentem peculiaridades diversas, por serem destinadas a públicos diferentes, essas três espécies de discurso têm como objetivo principal o ato de convencer, ou seja, de levar o ouvinte a crer no discurso proferido.

Há, ainda, correntes que afi rmam: o argumento possui uma função maior que apenas convencer. Seu real objetivo é levar o ouvinte a agir de acordo com o que lhe foi articulado. Esse entendimento é possível em alguns casos, principalmente no Judiciário. Ali os argumentos servem de instrumento para a decisão do juiz. Entretanto, Rodriguez8 ensina que há uma diferença relevante entre o crer e o agir a partir do discurso. É o exemplo do fumante. Mesmo convencido dos males do cigarro, segue com o hábito, visto que existem fatores externos (como a dependência química) que lhe fazem seguir com o uso do tabaco.

É necessário fazer algumas considerações entre o argumento e a verdade. Não se pode comparar o Direito a uma ciência exata. Na Matemática, por exemplo, é possível apenas um resultado verdadeiro para um determinado cálculo. A ciência jurídica não comporta a código verdadeiro/falso. Essa binariedade advém do sistema da ciência.9 O Direito opera, como quer Luhmann,10 sob o código Recht/Unrecht. Isso signifi ca, de antemão, que os problemas de direito à saúde, necessariamente, dentro do Poder Judiciário, devem ser decididos com base nos critérios de decisão do Direito.11

Rodriguez12 exemplifi ca a questão com um fato ocorrido em um plenário do Judiciário. Naquele local, o promotor exibia uma prova (um laudo da polícia técnica).

6 A Teoria da Argumentação Jurídica é especialmente profícua. Dentre vários autores, reporte-se, especialmente, ante sua grande repercussão no Direito, à obra de ALEXY, Robert. Teoria de la Argumentacion Juridica. trad. Manuel Atienza e Isabel Espejo, Centro de estudos Consticionales, Madrid, 19897 FERRAZ JR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito. São Paulo: Atlas, 2001. p.318. 8 RODRÍGUEZ, Víctor Gabriel. Argumentação jurídica: técnicas de persuasão e lógica informal. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p.24.9 LUHMANN, Niklas. La Ciencia de La Sociedad. Mexico : Iberoamericana, 1996, p.125.10 LUHMANN, Niklas. Das Recht der Gesellshalt. Frankfurt: Suhrkamp, 1997, p.165-170.11 SCHWARTZ, Germano. O Tratamento Jurídico do Risco no Direito à Saúde. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004,p.186-187.12 RODRÍGUEZ, Argumentação jurídica, 2005. p.21

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Ela demonstrava a existência de 99% de chances da culpa do réu. Então o defensor, em tréplica, pergunta aos presentes se eles comeriam uma bala de hortelã retirada de um pacote com outras cem, sabendo que dentre elas apenas uma continha um veneno letal. Nesse caso, pode-se perceber que não existe verdade absoluta. Ambos têm parcelas de verdade/observação. Existe um concurso de argumentos. Predomina o mais convincente.

É por isso que existem argumentos capazes de convencer embasados em premissas falsas. Desde os tempos de Aristóteles, estudiosos têm encontrado argumentos persuasivos que levam o interlocutor a conclusões falsas. São as falácias. Mauri Hartmann, a propósito, conceitua-as da seguinte forma

[...] Não há unidade de signifi cação do termo “falácia”. É comum usá-lo no sentido de crença, opinião ou juízo falso. [...] Há argumentos que são fl agrantemente incorretos e que não têm poder persuasivo algum. Porém, existem outros, de igual forma incorretos, que podem convencer quando não avaliados com a perspicácia lógica. Estes últimos são convencionalmente chamados de falácias.13

Uma das características do argumento é conter premissas verossímeis. A falácia, ou seja, a falha do argumento, ocorre com a quebra da verossimilhança. Nesse sentido, o uso de falácias no Direito tem a característica de afastar o ouvinte de uma conclusão. Desse modo, não é difícil perceber que as falácias, quando utilizadas, podem levar a conclusões (decisões) indevidas, que são produzidas e se reproduzem com base em uma distorção da realidade.

É correto que o Direito não comporta o código binário verdadeiro ou falso. Todavia, quando há teses concorrentes, a que se fundamenta em uma falácia resta desconectada de seu suporte fático. Assim, o argumento falacioso assume vantagem sobre os outros pela desnecessidade de possuir premissas verdadeiras. A falácia seduz o interlocutor desatento com um argumento que não corresponde à verdade. Faz com que esse ouvinte, quando Juiz, tome decisões incompatíveis com o entorno (Unrecht), quebrando a necessidade de uma unidade distintiva entre Direito e Não-Direito.

Defende-se, aqui, que uma falácia atualmente utilizada no direito à saúde é a denominada teoria da reserva do possível. Diz-se isso porque, da forma como ela vem sendo discutida no sistema jurídico, fi ca revestida de uma falsa lógica. Daí, portanto, o fato de que sua operatividade exige atenção do operador do Direito.

3 OS PRESSUPOSTOS DA TEORIA DA RESERVA DO POSSÍVELCom o fi m da ditadura militar, o Brasil iniciou a redemocratização. Como uma das

etapas da instalação da democracia, instalou-se Assembleia Constituinte que resultou

13 AZEREDO, Vânia Dutra de (coord.); PIOVESAN, Américo; SARTORI, Carlos Augusto; Hartmann, Mauri; TILLET, Paulo Cezar. Introdução à lógica. Ijuí: Unijuí, 2000. p.197.

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na Constituição Federal de 1988, acolhedora de vários e novos direitos individuais e coletivos. Visando a dar maior efetividade ao texto constitucional, o constituinte incumbiu ao Poder Judiciário a função de atuar, sempre que provocado, quando existir lesão ou ameaça de lesão a tais direitos.

Inegavelmente, os direitos sociais que a Constituição Cidadã abarcou geram custos. Diante dessa situação, passados mais de 20 anos da promulgação da Carta Magna, a reserva do possível vem ganhando destaque e protagonizando um debate bastante específi co na inovação da saúde enquanto direito fundamental consagrado pelo artigo 196 da Constituição Federal de 1988.

Segundo a teoria da reserva do possível, a satisfação dos direitos, especialmente os sociais, está relacionada com as possibilidades econômicas do Estado, tornando-se, assim, um limite para a efetividade dos direitos fundamentais prestacionais. O argumento é empregado no sentido de que o custo de determinados direitos supera os valores disponíveis pelo Erário.

A reserva do possível ganha fôlego com a tese da escassez de recursos.14 O argumento afi rma, em abreviado, que, enquanto as necessidades a serem satisfeitas são ilimitadas, os recursos – orçamentários – são fi nitos. São necessários critérios para efetivação dos direitos sociais. O Estado não tem como garantir “tudo a todos”.

Esses argumentos não são novos. Já constavam do texto de decisões judiciais, no mínimo, desde 1998

O direito à saúde previsto nos dispositivos constitucionais citados pelo agravante, arts. 196 e 227 da CF/88, apenas são garantidos pelo Estado, de forma indiscriminada, quando se determina a vacinação em massa contra certa doença, quando se isola uma determinada área onde apareceu uma certa epidemia, para evitar a sua propagação, quando se inspecionam alimentos e remédios que serão distribuídos à população, etc., mas que quando um determinado mal atinge uma pessoa em particular, caracterizando-se, como no caso, num mal congênito a demandar tratamento médico-hospitalar e até transplante de órgão, não mais se pode exigir do Estado, de forma gratuita, o custeio da terapia, mas dentro do sistema previdenciário.15

No julgado citado, percebe-se uma limitação da saúde em razão dos recursos fi nanceiros do Estado. Segundo o Relator, a preocupação do Estado deve estar centralizada apenas no que tange à proteção da saúde coletiva, obtida por meio de políticas públicas. Nesse entendimento a “judicialização da saúde” para casos particulares deveria ser afastada.

14 AMARAL, Gustavo. Direito, Escassez e Escolha. Em busca de critérios jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as decisões trágicas. Rio de Janeiro : Renovar, 2001.15 Agravo de Instrumento 48. 608-5/4, julgado em 11.02.1998, unânime. TJSP, 9ª Câmara de Direito Público, Des. Rui Cascaldi. Disponivel em: http://esaj.tj.sp.gov.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=1280378

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Verifi ca-se, pois, que o grande pressuposto da teoria da reserva do possível no direito à saúde é a alegação de que o Estado não possui recursos para fornecer determinada prestação positiva, em razão de um cenário de escassez. Dentro desse quadro, cabe a ele, o Estado, tentar fazer o máximo possível em um ambiente de impossibilidades fáticas.

3.1 A origem alemã da teoria É importante contextualizar as raízes do argumento utilizado pelos Tribunais

brasileiros. Ele veio de uma realidade diferente em um contexto específico e bastante próprio. A partir da década de 1950, a busca por cursos superiores cresceu exponencialmente na Alemanha, fazendo com que o Estado Alemão, que até então garantia acesso universal às universidades públicas, adotasse uma série de medidas para restringir o acesso às academias.

Uma das políticas implantadas pela República Alemã, em 1960, foi a denominada Numerus Clausus. Ela limitava o número de vagas em determinados cursos superiores como Medicina, Direito e Farmácia. Insatisfeitos, os estudantes que não lograram acesso a algumas faculdades de Medicina, ajuizaram ação contra o Estado, sustentando que a medida violava o artigo 12 da lei Fundamental Alemã,16 que protegia a livre escolha da profi ssão, local de trabalho e centro de formação.

A Corte Constitucional da República Federativa da Alemanha (Bundesverfassungsgericht) estabeleceu que as prestações exigidas do Estado pelos particulares estão condicionadas à razoabilidade, ou seja, aquilo que o indivíduo pode razoavelmente esperar da sociedade. O ato sentencial confi rmou que não era possível disponibilizar um número ilimitado de vagas nas Universidades, visto que ultrapassava os limites do possível obrigar o Estado a uma prestação acima do exigível.

Segundo Leivas,17 dois direitos podem ser identifi cados no decisum: o direito prima facie, de exigir o direito subjetivo ao ingresso; e o direito de requerer um aumento geral da capacidade das faculdades. Segundo o autor, a reserva do possível só desobrigou o Estado do primeiro direito, e não de todas as suas obrigações prestacionais.

Diante do exposto, pode-se asseverar que a teoria da restrição orçamentária aplicada no direito subjetivo brasileiro à saúde é uma adaptação da jurisprudência Constitucional Alemã (Der Vorbehalt des Möglichen), que, em julgamento (BverfGE nº 33, S. 333.) do numerus clausus I, reconheceu a reserva do possível quanto ao direito prima facie supracitado.

Desde já, é possível perceber as diferenças entre o introito e o cabo da aplicação da reserva do possível. Originalmente aplicada ao direito à educação – de nível

16 Artigo 12, alínea I: “Todos os alemães têm direito a escolher livremente sua profi ssão, local de trabalho e seu centro de formação. O exercício profi ssional por ser regulado pela lei ou com fundamento em uma lei.”17 LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo. Teoria dos Direitos Fundamentais Sociais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p.98.

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superior – em um país de primeiro mundo, é, atualmente, utilizada no direito à saúde de um país periférico. Dessa maneira, resta a pergunta: é possível tal “transplante” da teoria sem o uso de falácias?

3.2 Custos dos direitos sociais e a finitude dos recursosComo afi rmado anteriormente, a Constituição Federal de 1988 elencou diversos

direitos. Dentre eles, arrolou os direitos fundamentais sociais, inclusive, reconhecendo, pela primeira vez, o direito à saúde.18 Tais direitos foram integrados no capítulo II, do Título II da Carta Política.

A simples inserção da regra da saúde como direito de todos e dever do Estado não resolveu o problema da saúde no Brasil. Trouxe várias incertezas aos operadores do Direito, desacostumados com a novidade. Assim, por determinado período, prevaleceu o entendimento perante os Tribunais de que a saúde na Constituição Federal se tratava de mera norma programática, ou seja, que seu conteúdo apenas expressava um valor a ser buscado por toda a coletividade, sem possibilidade de modifi cação do status quo mediante intervenção do Poder Judiciário.

Entretanto, o direito à saúde é direito fundamental e, assim sendo, possui aplicabilidade imediata.19 Isso signifi ca que a saúde pode ser entendida também como direito subjetivo, capaz de ser pleiteada no Judiciário. No Brasil, o artigo 5º, §1º, da Constituição Federal, é o dispositivo que garante a imediata aplicabilidade dos direitos fundamentais. Esse é o posicionamento do Supremo Tribunal Federal:

PACIENTE COM HIV/AIDS – PESSOA DESTITUÍDA DE RECURSOS FINANCEIROS – DIREITO À VIDA E À SAÚDE – FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTOS – DEVER CONSTITUCIONAL DO PODER PÚBLICO (CF, ARTS. 5º, CAPUT, E 196) – PRECEDENTES (STF) – RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. O DIREITO À SAÚDE REPRESENTA CONSEQUÊNCIA CONSTITUCIONAL INDISSOCIÁVEL DO DIREITO À VIDA. – O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular – e implementar – políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, inclusive àqueles portadores do vírus HIV, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar. – O direito à saúde – além de qualifi car-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas – representa consequência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema

18 SCHWARTZ, Direito à Saúde..., 2001, p.40 e seguintes.19 Para análise mais completa do assunto, veja-se SCHWARTZ, Germano. O tratamento Jurídico... p.129.

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da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional. A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ- LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQUENTE. – O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política – que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro – não pode converter-se em promessa constitucional inconsequente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infi delidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado. DISTRIBUIÇÃO GRATUITA DE MEDICAMENTOS A PESSOAS CARENTES. – O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes, inclusive àquelas portadoras do vírus HIV/AIDS, dá efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5º, caput, e 196) e representa, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade.20

O acórdão, paradigmático, é muito criticado por ter sido a porta aberta para a “judicialização” sanitária. Gize-se, todavia, que essa não é uma característica exclusiva do Direito brasileiro. O direito à saúde está presente na maioria dos ordenamentos jurídicos. O problema não reside, portanto, na positivação ou na possibilidade de o Poder Judiciário colaborar na efetivação ao direito à saúde. Ele repousa no uso das falácias.

Nessa linha de raciocínio, concorda-se com Barreto,21 quando ele afi rma existirem três falácias políticas22 sobre os direitos humanos (saúde)23 e sociais, que, conjugadas com o que denominou de falácias teóricas, acabam por excluir os direitos sociais dos direitos fundamentais.

Essas falácias, em síntese, são argumentos que fazem os direitos sociais perderem sua característica de “valores supremos da ordem constitucional”. Dentre as falácias

20 RE 271286 AgR / RS – RIO GRANDE DO SUL. AG. REG. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. Relator Min. CELSO DE MELLO. Julgamento em 12/09/2000. Segunda Turma. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=REAgR.SCLA.%20E%20271286.NUME.&base=baseAcordaos 21 BARRETO, Paulo Vicente. Refl exões sobre os direitos Sociais. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org). Direitos fundamentais sociais: estudos de direito constitucional, Internacional e Comparado. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.22 As falácias políticas apontadas por Barreto são: (a)“os direitos sociais são direitos de segunda ordem”; (b)“os direitos sociais dependem de uma economia forte”; (c) “o custo dos direitos sociais supera os recursos orçamentários”.23 Como direito humano, a saúde está expressa no artigo 25 da Declaração dos Direitos do Homem: “Todo o homem tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, (...) em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda de meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle”. O conteúdo da declaração internacional levou o Brasil, bem como diversos outros países, a adotar a matéria no texto constitucional como uma obrigação do Estado, conforme preceitua artigo 196 da Constituição Federal, nos seguintes termos: “A saúde é direito de todos e dever do Estado”. Na mesma senda, o artigo 2º da Lei n.º 8.080/90, dispõe que “a saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício”.

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políticas evidenciadas pelo autor, encontra-se o argumento de que “o custo dos direitos sociais supera os recursos orçamentários”. Tal falácia trata exatamente da reserva do possível

[...] Outro argumento falacioso refere-se ao custo dos direitos sociais. Chamada, também, da falácia da “reserva do possível”, representa um argumento preponderante no projeto neoliberal contemporâneo. Vestida de uma ilusória racionalidade, que caracteriza a “reserva do possível” como limite factico à efetivação dos direitos sociais prestacionais, esse argumento ignora em que medida o custo é consubstancial a todos os direitos fundamentais.24

A partir da crítica de Barreto, pode-se perceber que a reserva do possível ataca apenas os direitos de segunda geração, embora os direitos civis e políticos – de primeira geração – também gerem custos. Nesse contexto, é possível concluir que a reserva do possível limita apenas os direitos que exigem prestações positivas por parte do Estado, e não a todos que causem custos, mostrando-se, preliminarmente, falaciosa.

A saúde, como direito social subjetivo, também gera gastos. Logo, está limitada pela reserva do possível. Convém, nesse ponto, elaborar um questionamento quanto à aplicação de um fator restritivo no direito à saúde: até que ponto o Estado pode-se omitir diante de um direito ligado à vida e à integridade do ser humano? Fazendo isso ele não deixaria de cumprir sua função original (ser um Estado Democrático de Direito)?

4 A FALÁCIA DA RESERVA DO POSSÍVEL NO DIREITOÀ SAÚDEA saúde está abraçada aos bens mais importantes do ser humano: a vida, a integridade

física e a dignidade. Por se tratarem dos bens máximos do homem, acabaram tornando-se os valores supremos do ordenamento jurídico brasileiro. Portanto, é dúbia a priorização da economia quando tais valores estão em risco. Procura-se, agora, a partir da teoria dos sistemas sociais autopoiéticos, evidenciar e atacar as falácias mais comuns que pretendem garantir a manutenção da grande falácia, a própria reserva do possível.25

A partir da teoria dos sistemas sociais autopoiéticos, a sociedade pós-moderna e hipercomplexa pode ser representada por um grande sistema social que engloba diversos subsistemas. Cada sistema busca reduzir a complexidade do ambiente, diferenciando um dos outros por meio de sua distinção entre unidade e entorno. Com isso, há diferenciação funcional e se torna possível a autopoiese.

24 BARRETO, Refl exões sobre os direitos Sociais... p.120-121.25 Há uma grande falácia: a própria teoria da reserva do possível. Com ela, reproduzem-se falácias menores. Revestem a primeira de uma falsa lógica. Esses “pequenos” argumentos falaciosos garantem a existência e a reprodução da teoria. Caso fossem percebidos, a reserva do possível seria refutada do sistema jurídico.

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Cada sistema autopoiético é fechado, e, em sua membrana, está localizado o código – clausura operativa – e os mecanismos que buscam reduzir a complexidade do entorno. Ocorre que os sistemas sociais, ao mesmo tempo, são abertos, pois há uma abertura cognitiva por meio da qual ocorre a comunicação entre os sistemas.

Assim, pode-se afi rmar que os sistemas sociais são abertos, pois se comunicam e dão sentido aos ruídos provenientes do exterior do sistema, contudo, simultaneamente, são fechados, pois o sentido dado a tal interação é fornecido por operação própria de cada sistema. São cognitivamente abertos e operativamente fechados.

A autopoiese de cada sistema constitui-se na capacidade de o sistema auto(re)produzir sua estrutura e seus elementos do interior, motivado pela comunicação do exterior. Assim, a autopoiese só é possível quando a comunicação penetra no sistema pela abertura cognitiva e, uma vez no interior, o sistema opera com base nos mecanismos e no código que cada sistema (re)produz, trabalhando em um ciclo constante.

Nessa ótica, na reserva do possível, verifi ca-se a interação entre três sistemas autopoiéticos: o sistema jurídico, o sistema econômico e o sistema sanitário. O Direito funciona sob o código Recht/Unrecht, ou seja, preocupa-se em defi nir aquilo que é Direito e o que não é Direito. O sistema jurídico recebe a comunicação proveniente dos outros sistemas. Atua, no entanto, com suas estruturas (Lei, Poder Judiciário), baseando-se em suas operações internas (jurisprudência, comunicações, discursos jurídicos.) a fi m de fornecer uma decisão que será o Direito de uma parte e, paradoxalmente, o Não-Direito de outra.

A decisão é o elemento básico do sistema jurídico, distinguindo o Direito dos demais sistemas e garantindo a autopoiese do sistema jurídico. A decisão só é possível a partir dos ruídos do entorno, da comunicação dada pela abertura cognitiva, que traz tudo o que deve ser decidido, e que somente é decidido com base em uma operação jurídica interna. Dessa forma, as questões do Direito são resolvidas/decididas com fundamento na operatividade interna do sistema jurídico.

No sistema econômico, a clausura operativa é o Pagamento/Não-Pagamento. Os pagamentos são rápidos e sucessivamente substituídos por outros pagamentos, já que só existirão pagamentos se houver outros para garantir os mesmos. Para a autopoiese do sistema econômico, é necessária a abertura cognitiva, confi gurada pela necessidade. O dinheiro – atualmente o crédito também possui a mesma função – é o que torna a reprodução do sistema econômico viável, visto que factibilza os pagamentos, a fi m de satisfazer as necessidades.

Observe-se que a função do sistema econômico não é a satisfação das necessidades, mas sim a manutenção dos pagamentos. Se fossem satisfeitas todas as necessidades, o sistema econômico (entendido como sistema de pagamentos) restaria extinto.

O direito à saúde surge do acoplamento estrutural entre o sistema jurídico e sanitário. Quando a Saúde integra o conteúdo das normas do Direito, nasce o direito à saúde, que deve decidir com a mesma operatividade do interior do Direito, devendo atuar sob o mesmo código, o Recht/Unrecht.

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Logo, a questão da escassez de recursos pertence ao sistema econômico, enquanto o direito à saúde, que surge da criação de normas que regulam a saúde, deve ser decidido com base na lógica do sistema jurídico. Essa é a dedução possível por intermédio da teoria dos sistemas sociais autopoiéticos,26 reforçando o caráter falacioso da teoria da reserva do possível aplicável ao direito à saúde no Brasil. Há outras.

4.1 Há falta de recursos?Quando se busca uma prestação sanitária pela via judicial, no Brasil, o argumento

da reserva do possível é empregado pelo Poder Público como forma de se desobrigar de fornecer acesso à saúde. Esse aspecto rotineiro por si só já gera dúvidas quanto à validade do argumento, pois leva a duas conclusões possíveis: o Estado não tem dinheiro para nenhuma prestação – mesmo aquelas de menor custo – ou que a falta de recursos é mero instrumento de retórica a fi m de exonerar o Estado de um dever constitucional.

Em que pese o Direito não ter a lógica de uma ciência exata, a ciência jurídica utiliza-se de um método especifi co relativo à sua operatividade sistêmica: a prova e a fundamentação. Ocorre que, do modo como vem sendo arguida, carecem as provas da falta de recursos orçamentários. Na mesma esteira, o Julgador tem que motivar sua decisão, fundamentar, sendo imprescindível que reconheça a escassez de recursos concretamente para cogitar a hipótese da aplicação da reserva do possível. E, aos que entendem que falta de recursos é fato incontroverso no Brasil, Sarlet averba que:

[...] Há estudos atuais comprovando, categoricamente, que a união não gasta em nenhuma rubrica orçamentária aquilo que foi disponibilizado pelo orçamento, inclusive na área da saúde. Há provas cabais de Estados que não investem naquilo que foi imposto pela união no direito à saúde.27

O fi nanciamento do setor público de saúde é, em sua maior parte, composto pela receita gerada por impostos e por contribuições sociais. O Brasil possui uma carga tributária elevada, chegando, em 2008, a 35,8% do Produto Interno Bruto Brasileiro. Contudo, relembra-se de que o Brasil não possui sistema de saúde de Primeiro Mundo, conforme demonstra a 125º (centésima vigésima quinta)28 posição no ranking mundial de saúde da Organização Mundial de Saúde de 2000, em um total de 193 países. Nesse

26 Para maiores detalhamentos sobre os a teoria dos sistemas autopoiéticos no Direito, consulte-se ROCHA, Leonel Severo; SCHWARTZ, Germano; JEAN, Clan. Instrodução à Teoria do Sistema Autopoiético do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. Para uma análise especifi ca da aplicação da teoria dos sistemas no direito à saúde veja-se SCHWARTZ, O Tratamento Jurídico do Risco no Direito à Saúde, 2004.27 Fala do especialista Dr. Ingo Sarlet, no discurso realizado em 27 de abril de 2009, contribuindo para a audiência pública de saúde promovida pelo STF. Disponível para download na íntegra em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=processoAudienciaPublicaSaude&pagina=Cronograma. Acessado em 30 de maio de 2009.28 SCHWARTZ, Direito à Saúde..., 2001, p.60 e seguintes.

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ranking, como na comparação de muitos critérios sociais, o Brasil fi ca atrás da maioria dos países da América do Sul.

Embora a carência do setor social, a economia segue em caminho inverso, pois a economia brasileira está entre as dez maiores do mundo, alcançando um PIB de quase um trilhão de reais. Ademais, o Brasil apresenta hoje a mais forte economia sulamericana. Assim, muito embora tenha uma economia em ascensão, a transferência de recurso ao setor social (sanitário) segue em baixa.

Muito se diz sobre os investimentos do setor público de saúde e, do modo como se argumenta, a saúde fi gura no papel de “devorador” dos orçamentos públicos. Entretanto, ao analisarem-se os dados do Ministério do Planejamento quanto à evolução dos gastos sociais, verifi ca-se que o gasto com a saúde, de 1995 a 2008, cresceu 298%, números menores que a cultura, que, por seu turno, cresceu 363%, e do que a previdência, o emprego e o trabalho, que evoluíram mais 400%.

Mais: para o orçamento da saúde, o artigo 55 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias obriga que 30% do valor arrecadado pela seguridade social devem ser destinados ao setor da saúde. Além disso, como parte da seguridade social, a saúde possui recursos alocados mediante o orçamento das esferas de governo e de contribuições sociais. Tais contribuições advêm: do empregador – da folha de salários e de outros rendimentos do trabalho pagos a empregado, mesmo sem vínculo empregatício, da receita ou faturamentos (COFINS) e do lucro; do trabalhador – e segurados pela previdência social; da receita de concursos e prognósticos (Loterias); e do importador – ou de quem a lei a ele equiparar.

Ressalta-se que mesmo com todas as todas as contribuições previstas, os dados atuais da Organização Mundial da Saúde demonstram que o Brasil está abaixo da média nas escalas mundial e americana de gasto em saúde em relação ao Produto Interno Bruto.29

Resta a dúvida: o Estado não tem dinheiro ou não repassa devidamente o dinheiro? Quem deve provar ausência? O Estado, como defende Sarlet: “...O ônus da demonstração, o ônus da prova da falta de recursos é do poder público; o ônus da necessidade do pedido é do particular.”30 No entanto, infelizmente, tal prova não é produzida nos processos judiciais brasileiros.

Como se vê, a ausência da comprovação da ausência de recursos estende ainda mais a falácia. De qualquer maneira, entende-se que o orçamento, mesmo se (as provas evidenciam o contrário) escasso, não se equipara à saúde em nível de importância, não podendo interferir na operatividade do Direito.

29 O último informativo da Organização Mundial de Saúde reporta que, em 2006, o gasto com saúde em proporção ao Produto Interno Bruto no Brasil alcançou 7,5%, enquanto a escala mundial é de 8,7%. A região das Américas obteve o maior nível de gastos em saúde, correspondente a 12,8% do PIB. Disponível em: http://www.who.int/whosis/whostat/ES_WHS09_Table7.pdf Acessado em 20 de Maio de 2009.30 Fala do especialista Dr. Ingo Sarlet, no discurso realizado em 27 de abril de 2009, para a audiência pública de saúde promovida pelo STF. Disponível para download na íntegra em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=processoAudienciaPublicaSaude&pagina=Cronograma

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4.2 É possível “transplantar” a realidade alemã ao Brasil?A reserva do possível, como já mencionado, é fruto da jurisprudência Constitucional

da Alemanha. No entanto, insta frisar que existem diferenças entre as realidades brasileira e alemã, que impossibilitam a aplicação da reserva do possível em terras Tupiniquins.

Salienta-se que o “transplante” de uma tese originalmente criada em outro país precisa ser “compatível” com a realidade do local adotante. Nesse sentido, já há crítica bem estruturada quanto aos riscos da aplicação de teorias estrangeiras no Brasil a partir do Direito Comparado, que foi desenvolvida, paradoxalmente, por Krell,31 um professor alemão radicado no Brasil. Veja-se a lição do autor

[...] A interpretação dos direitos sociais não é questão de “lógica jurídica”, mas de consciência social de um sistema jurídico como um todo. É questionável a transferência de teorias jurídicas que foram desenvolvidas em países centrais do chamado “Primeiro Mundo”, com base em realidades culturais, históricas e, acima de tudo, socioeconômicas completamente diferentes32

Embora o Direito brasileiro tenha-se espelhado diversas vezes no Direito alemão, o mesmo não pode ocorrer com os direitos sociais, visto que esses pouco se apresentam na Lei Fundamental Alemã. Dois são os motivos que fi zeram com que os Direitos Fundamentais Sociais não fossem positivados no ordenamento jurídico germânico: o primeiro está relacionado com à experiência negativa vivenciada com a Constituição de Weimar, onde, embora positivados, tinham pouca força, sendo cadeirados como de menor importância; o segundo, e mais importante, foi o equilíbrio entre liberais e social-democratas presentes no Conselho Constituinte à época, que tornou a Alemanha um Estado Social sem a positivação de direitos sociais.

Mais importante é referir que na Alemanha – e em demais países centrais –, onde há um sistema de saúde evoluído, combinado com efetivas políticas de bem-estar-social e uma sociedade mais igualitária, a presença dos direitos sociais – e do direito à saúde – na Constituição não se apresenta tão necessária. Sem embargo, Krell afi rma que “os problemas de exclusão social no Brasil de hoje se apresentam numa intensidade tão grave que não podem ser comparados à situação de países-membros da União Europeia”.33

Ocorre que o Estado Alemão não desenvolveu seus preceitos com base em uma realidade como a brasileira, de expressiva desigualdade social e na qual signifi cativa parcela da população não possui acesso a condições dignas de vida. No Brasil, torna-se necessária a possibilidade da “judicialização” dos direitos fundamentais

31 Tal crítica se encontra em: KRELL, Andreas Joaquim. Direitos Sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um direito constitucional comparado. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2002.32 KRELL, Andreas Joaquim. Controle judicial das serviços públicos básicos na base dos direitos fundamentais sociais. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). A Constituição Concretizada: construindo pontes com o público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p.51.33 Ibidem. p.53.

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para que o Poder Judiciário possa auxiliar na sua concretização quando o Executivo falha ou se omite.

De fato, a mera positivação do direito à saúde não gera garantia de efetividade. Contudo, segue-se aqui o mesmo entendimento de Luhmann.34 Um direito humano só é reconhecido através do seu descumprimento. A publicização da sua inefetividade gera a afi rmação futura do direito. É necessária a inscrição dos direitos humanos na Carta Politica, ainda que eventualmente – no Brasil o melhor termo seria “frequentemente”– sejam violados, pois tal ato enseja em uma busca por seu cumprimento no futuro. Em países periféricos como o Brasil, é fato que ocorre maior descumprimento dos direitos humanos, refl etindo-se em uma consequente/paradoxal maior busca pela concretização das garantias.

Ademais, faz-se necessário explanar quanto às diferenças entre as matérias em que foi utilizada a reserva do possível no Brasil e na Alemanha. Enquanto, no país europeu, a discussão se deu em torno do acesso à universidades, em solo brasileiro o Judiciário vem decidindo sobre uma questão muito mais importante: o direito à saúde. Óbvio está que o grau de importância é mais elevado, precipuamente, em razão da própria da relação saúde/vida.

Giza-se que o Estado fi cou obrigado com a saúde, nos moldes do artigo 196 da Carta Política. Quando o Poder Público fi ca omisso, a ponto de ensejar a morte dos titulares do direito à saúde, manifesta-se uma situação em completo descompasso com o ordenamento jurídico brasileiro, vedador da pena capital. Mesmo nos casos em que não leve à morte, a não-concretização do direito à saúde gera sofrimento e dor.

4.3 Há orçamentos acima do direito à saúde?A existência do argumento da reserva do possível depende, sobremaneira, de um

sistema social extrajurídico, a Economia. Embora as decisões de alocação de recursos para saúde pertençam ao sistema político, o cenário de escassez (fi nanceira) que pressiona o direito à saúde (decisões sobre a saúde) advém do sistema econômico. Surgem, assim, duas possíbilidades: o Direito pode ceder ou refutar a pressão do sistema econômico.

O movimento Law and Economics possui autores que afi rmam a necessidade de as questões do sistema jurídico serem decididas com base na Economia. Nessa ótica, a reserva do possível prospera no sistema jurídico, limitando até os direitos mais fundamentais do homem, como a saúde. Assim, o Direito cede à pressão proveniente do sistema econômico. Timm sintetiza

[...] em primeiro lugar, porque a Economia é a ciência que descreve de maneira superfi cientemente o comportamento dos seres humanos em interação no mercado,

34 LUHMANN. O Paradoxo dos Direitos Humanos e Três Formas de seu Desdobramentos. Traduzido por Ricardo Henrique Arruda de Paula e Paulo Antônio de Menezes Albuquerque. Themis, Fortaleza, v.3, n.1, 2000. p.158.

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que é tão importante para a vida real em sociedade. Em segundo lugar, porque a Economia é uma ciência comportamental que atingiu respeitável e considerável padrão cientifi co, sendo hoje uma das grandes estrelas dentre as ciências sociais aplicadas pelo grau de comprovação matemático e econométrico dos seus modelos. Em terceiro lugar, a Ciência Econômica preocupa-se com a efi ciência no manejo dos recurso sociais escassos para atender ilimitadas necessidades humanas – que é um problema-chave quando se falam de direitos sociais ou mais genericamente fundamentais.35

Permite-se discordar do entendimento fi rmado por Timm, quanto aos motivos apresentados para atar a Economia ao Direito. Em que pese a onipresença e a importância do mercado, entende-se, em uma perspectiva sistêmica, que a lógica do sistema econômico não pode interferir no sistema jurídico.

Diz-se isso porque cada sistema social deve manter a sua autopoiese. A autopoiese da Economia não pode ser a do Direito! A operatividade interna do Direito não é a mesma da Economia. O Direito deve decidir com base no Direito, devendo refutar a pressão econômica em suas decisões. Eis a impossibilidade da aplicação da reserva do possível através de uma observação autopoiética: a escassez é o ruido do sistema econômico dado pela abertura cognitiva. O Direito deve rechaçar tal ruído para proteger a saúde e a vida.

Contra a lógica autopoiética apresentada, mas seguindo a linha dos defensores do Law and Economics, Amaral36 defende que o direito à saúde deve considerar os custos ao fazer suas decisões. Sua proposta é que sejam feitas “decisões trágicas”, a fi m de maximizar os benefícios a um grande grupo de pessoas, enquanto parcela menor (cujas assistências demandam mais recursos fi nanceiros) deixariam de ser amparadas pelo direito à saúde.

A fórmula apresentada pelo doutrinador é simplista: se os recursos – fi nanceiros – são escassos, ou seja, se com eles não é possível satisfazer a todos, o Estado deve fi xar critérios para atender a um maior número de pessoas com o valor que seria gasto por poucos, admitindo que os que necessitam de tratamentos de alto custo são a minoria. Para essa minoria apontada as decisões tornar-se-iam trágicas.

Entretanto, pode-se demonstrar a falácia do argumento com uma situação hipotética: se o tratamento de uma pessoa alcançar o mesmo custo que o tratamento de dez pessoas, a quem o Estado deve fornecer assistência? A todos em função dos princípios da integralidade37 e igualdade do sistema de saúde brasileiro.

35 TIMM, Luciano Benetetti. Qual a maneira mais efi ciente de prover direitos fundamentais: uma perspectiva de direito e economia. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.); TIMM, Luciano Benetetti (org.). Direitos Fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p.55-68.36 AMARAL, Gustavo. Direito, Escassez e Escolha. Em busca de critérios jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as decisões trágicas. de Janeiro: Renovar, 2001, p.141-142.37 O princípio está expresso no artigo 198, inciso II, da Constituição Federal e no artigo 7º, inciso II, da Lei 8.080/90.

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Ademais, o cidadão não pode perder a tutela do direito à saúde apenas pela má sorte de possuir uma doença cujo tratamento é mais caro que a média. Nesse contexto, pode-se extrair da Carta Magna a ideia da “assistência aos desamparados”. Ela, contudo, em nenhum momento, utiliza a tese do “abandono dos mais desamparados”. Mas e se os recursos são insufi cientes? Krell responde à questão afi rmando que “se os recursos não são sufi cientes, deve-se retirá-los de outras áreas (transporte, fomento econômico, serviço de dívida) onde sua aplicação não está tão intimamente ligada aos direitos mais essenciais do homem: sua vida, integridade física e saúde.38

Resumindo: a economia não pode ser tratada como hierarquicamente superior à saúde, modifi cando e infl uenciando as decisões do Direito. O direito fundamental deve suplantar a lógica econômica, não por razões falaciosas e sim porque tal é a operatividade própria do sistema jurídico no Brasil.

5 CONSIDERAÇÕES FINAISA reserva do possível no direito à saúde consiste em uma teoria embasada por

argumentos falaciosos. Não se trata, por si só, de uma falácia una, mas sim, de uma reunião de argumentos falhos. Procurou-se evidenciar e atacar alguns dos argumentos menores que sustentam e permitem a reprodução da grande falácia – a própria teoria – nos Tribunais brasileiros.

A reserva do possível não expressa argumento tão robusto. Partindo da premissa de que a tese da escassez de recursos é o ponto de partida para a aplicação da reserva do possível, visto que se não existissem limites (escassez) não seria preciso defi nir aquilo que é possível, há que se admitir a necessidade da comprovação da ausência de recursos no caso concreto. Essa comprovação é necessária, em razão da instauração da dúvida quanto aos limites orçamentários do Estado.

Ainda que comprovada a ausência de recursos e, em entendimento divergente do posicionamento expressado aqui, se permitido o transplante da aplicação da reserva do possível ao Brasil, a teoria esbarraria em questão maior: a impossibilidade de limitação do direito à vida e à dignidade da pessoa humana. Ocorre que o cidadão já possui esses direitos como parte de sua fundamentalidade. O ordenamento jurídico não pode negá-los sob pena de retrocesso social.

Por fi m, a partir da análise dos sistemas sociais autopoiéticos, ainda que brevemente, só há um sistema social se ele possuir uma função única. O Direito deve dizer o que é Direito e o que não é Direito, e faz isso decidindo com base em seus critérios específi cos. A economia busca a constante manutenção dos pagamentos. Indevido é, portanto, que o Direito assuma a função do sistema econômico. Caso isso ocorra, haverá dois sistemas com a mesma funcionaliade e, com isso, a complexidade do sistema social, ao invés de diminur, restaria acrescida.

38 KRELL, Andreas J. Direitos Sociais e Controle Judicial..., 2002, p.52-53.

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O direito de greve no serviço público brasileiro

Marcelo Loeblein dos SantosRosemari Pedrotti de Ávila

RESUMO O presente estudo faz uma análise da possibilidade jurídica ou não do direito de greve no

serviço público estatutário brasileiro. Parte-se de uma abordagem histórica, conceitual e da natureza jurídica desse instituto, bem como da negociação coletiva no serviço público, para posteriormente adentrar ao aspecto das divergências doutrinárias e jurisprudenciais acerca do tema, mormente face à inexistência de lei específica que regulamente o art. 37, VII, da Constituição Federal de 1988.

Palavras-chave: Direito de greve. Servidor público. Negociação coletiva.

The right to strike in the Brazilian public service

ABSTRACT This study is an analysis of legal possibility or not the right to strike in the Brazilian public

service statutory. It starts with a historical, conceptual and legal nature of this institute, and collective bargaining in public service, later to enter the aspect of doctrinal and jurisprudential divergences, especially in the absence of specific law to regulate the art. 37, VII, of the Federal Constitution of 1988.

Keywords: Right to strike. Public servant. Collective bargaining.

1 INTRODUÇÃOPara estudar algumas questões referentes à greve, são necessárias algumas refl exões,

que se pretende trazer à tona ao longo deste artigo. Refl exões iniciais como a história da greve, seu conceito, sua natureza jurídica, a questão das negociações coletivas, para, posteriormente, enfrentar a temática objeto do estudo, referente à possibilidade jurídica ou não do direito de greve no setor público estatutário civil, tema bastante discutido no meio acadêmico, face à inexistência de lei específi ca que regulamente o art. 37, VII, da Constituição Federal de 1988 – CF/88.

Tal instituto pode ser considerado como uma das mais importantes e complexas manifestações coletivas produzidas pela sociedade, um fenômeno típico do mundo moderno, refl exo dos desequilíbrios econômicos e da falta de justiça nas relações laborais.

Marcelo Loeblein dos Santos é Mestre em Direito pela Universidade de Caxias do Sul. Professor na Faculdade de Itapiranga/SC. E-mail: [email protected] Pedrotti de Ávila é Mestre em Direito pela Universidade de Caxias do Sul. Professora de Direito do Trabalho na Faculdade da Serra Gaúcha, RS. E-mail: [email protected]

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Nessa linha de ideias, para Ruprecht (1995), a greve é a maneira pela qual a classe trabalhadora tem se valido para impor suas reivindicações numa sociedade capitalista que nem sempre atende a suas necessidades. Foi a greve, ao longo de sua evolução, ou seja, desde a proibição até transformar-se em um direito, a grande propulsora dos avanços sociais em prol da introdução do Direito do Trabalho.

O vocábulo greve é de origem francesa, segundo Martins (2001a), sendo usado pela primeira vez em uma praça de Paris, chamada de Place de Grève, onde operários se reuniam para discutir suas insatisfações com as condições de trabalho e com os baixos salários. Era também nessa praça que os empregadores buscavam mão de obra, quando necessário. Naquele local, acumulavam-se gravetos que vinham com as enchentes do rio Sena, daí surgiu o termo greve, originário de graveto.

2 BREVE HISTÓRICONo baixo Império Romano, segundo Bezerra Leite (2000), as greves eram

consideradas como um delito, especialmente se organizadas por trabalhadores livres, sendo objeto de repressão e proibidas as reuniões e a associação de trabalhadores.

No regime das corporações de ofício, antes da Revolução Francesa, os movimentos dos trabalhadores eram considerados infrações penais graves, segundo Martins (2001a), mesmo a Lei Le Chapellier, de 1791, proibia toda e qualquer forma de agrupamento profi ssional que visasse a interesses coletivos. O autor refere ainda que o Código Penal de Napoleão, de 1810, punia os trabalhadores grevistas com prisão e multa.

Já na Inglaterra, conforme Martins (2001a), por meio do Combination ACT, de 1799 e 1800, era considerada crime de conspiração contra a Coroa inglesa qualquer coalizão dos trabalhadores em busca de melhores condições de trabalho e melhores salários. Mas a partir de 1825, na Inglaterra e de 1864, na França, a coalizão dos trabalhadores deixa de ser considerada crime, porém a greve ainda continuou sendo tipifi cada como um delito penal.

Na lição de Bezerra Leite (2000), todos estes fatos históricos revelam as origens dos movimentos coletivos, porém juridicamente não podem ser caracterizados como greve. Na maioria destes movimentos não havia a estrutura moderna das relações de trabalho, afi nal o sistema social se organizava de forma escravista ou servil. A greve propriamente dita surge com o trabalho assalariado que decorre da Revolução Industrial. Assim, Bezerra Leite atribui aos movimentos sindicais dos trabalhadores ingleses o marco inicial da greve.

No Brasil, a greve era vista inicialmente como um delito, depois como uma liberdade e posteriormente como um direito do trabalhador. Segundo Bezerra Leite (2000), as Constituições brasileiras de 1891 a 1934 nada trataram sobre a greve, de tal sorte que ela se concretizava como um fato social tolerado pelo Estado.

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Mesmo proibida, a primeira grande greve brasileira aconteceu em julho de 1917 e fez parar a capital paulista; durante um mês a cidade de São Paulo viveu a agitação dos comitês de greves que, apesar de mostrar uma considerável capacidade de mobilização do operariado, não serviram para sensibilizar o Estado.

A Constituição de 1937, em seu art. 139, 2º parte, prescrevia a greve e o lokout como “recursos antissociais, nocivos ao trabalho e ao capital e incompatíveis com os superiores interesses da produção nacional”. No mesmo sentido, foi criado o Dec. Lei 431, de 18.05.1938, que tipifi cou a greve como crime. Bezerra Leite refere ainda que

O Dec. Lei 1.237, de 02.05.39, que instituiu a justiça do trabalho, previa punições em caso de greve, desde a suspensão e a despedida por justa causa até a pena de detenção. O código Penal, de 07.12.40 (arts. 200 e 201), considerava crime a paralisação do trabalho, na hipótese de perturbação da ordem pública ou se o movimento fosse contrário aos interesses públicos. (2000, p.15)

A Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, promulgada em 1943, estabelecia uma pena aos trabalhadores grevista, como afi rma Martins

Em 1943, ao ser promulgada a CLT, estabelecia-se pena de suspensão ou dispensa do emprego, perda do cargo do representante profi ssional que estivesse em gozo de mandato sindical, suspensão pelo prazo de dois a cinco anos do direito de ser eleito como representante sindical, nos casos de suspensão coletiva do trabalho sem prévia autorização do tribunal trabalhista (art. 723). O art. 724 da CLT ainda estabelecia multa para o sindicato que ordenasse a suspensão do serviço, além de cancelamento do registro da associação ou perda do cargo, se o ato fosse exclusivo dos administradores do sindicato. (2001a, p.753)

Ainda que considerada como um movimento ilegal, a greve, segundo Ruprecht (1995), pouco a pouco começou a ser tolerada pelos Estados. O direito natural garantia ao homem a liberdade de trabalhar ou não. É claro que esta não era a principal causa da tolerância da greve, mas uma delas, dentre as questões políticas, ideológicas, doutrinárias, jurisprudenciais, enfi m, a constante luta dos trabalhadores por melhores condições sociais.

Percebe-se que a greve emanou repercussões jurídicas e econômicas no mundo do Direito. Passou a ser tolerada a partir do Dec. Lei 9.070, de 15.03.1946, sendo admitida nas atividades acessórias, apesar da proibição na Constituição de 1937, continuando vedada nas atividades consideradas fundamentais.

Em 1946, o direito de greve foi reconhecido em sede constitucional, porém condicionado ao Dec. Lei 9.070, de 1946, tendo ainda a Constituição de 1946 determinado que a greve deveria ser regulada por lei ordinária, inclusive quanto a suas restrições.

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A lei de greve somente foi promulgada em 1964, através da Lei 4.330, conhecida por muitos juristas como a lei do delito da greve e não como a lei do direito da greve, pois colocava mais restrições aos trabalhadores do que direitos.

A Constituição de 1967 por meio de seus arts. 157, § 7º e 158, XXI, assegurou o direito de greve, não o estendendo aos serviços públicos e atividades essenciais.

Foi com a promulgação da Constituição Federal de 1988 – CF/88 que se consagrou o amplo direito de greve aos trabalhadores brasileiros, especialmente no art. 9º, que diz

Art. 9º. É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender.

§ 1º A lei defi nirá os serviços e atividades essenciais e disporá sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade.

§ 2º Os abusos cometidos sujeitam os responsáveis às penas da lei.

O art. 37, VII da CF/88 estende ainda o direito de greve aos servidores públicos civis, condicionando à edição de uma lei específi ca, que até os dias atuais não foi editada. Conforme Bezerra Leite (2000), a Emenda Constitucional nº 19, de 1998 alterou a redação do inciso, fi cando assim estabelecido o direito de greve ao servidor público civil: “o direito de greve será exercido nos termos e nos limites defi nidos em lei específi ca”.

Atualmente, vigora a Lei 7.783, de 28 de junho de 1989, que dispõe sobre o exercício do direito de greve, defi ne as atividades essenciais, regula o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, e dá outras providências. Entretanto, como refere Martins (2001b, p.295), a referida lei não trata da ilegalidade da greve e usa o termo abuso de direito para os casos de inobservância de suas prescrições.

Mais recentemente, com a Emenda Constitucional n.º 45, de 8/12/2004, modifi cou-se a competência de processar e julgar as ações que envolvam o exercício do direito de greve. Assim, através da reformulação do art. 114 da CF/88, a competência para julgar tais ações passa a ser da Justiça do Trabalho.

3 CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA DA GREVEA greve, antes de tudo, deve ser considerada um fato social, pois é estudada também

pela sociologia. Porém, como está sujeita às regulamentações jurídicas, ela precisa ser estudada pelo direito.

Martins (2001a) diz que o conceito de greve depende da legislação de cada país, se admite a greve como um direito ou liberdade do trabalhador ou se a proíbe, tipifi cando-a como um delito. Em um conceito amplo, greve pode ser considerada

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como um risco ao qual o trabalhador se sujeita em busca de melhores condições de trabalho e de salários.

A Lei 7.783/89, em seu art. 2º, conceitua greve como sendo a “ (...) suspensão coletiva, temporária e pacífi ca, total ou parcial, de prestação pessoal de serviço a empregador”.

Percebe-se que se trata de uma suspensão coletiva e não individual do trabalho, ou seja, a paralisação de apenas um trabalhador não constitui greve, cabendo neste caso a dispensa por justa causa. Assim, constitui greve quando for um movimento organizado de forma temporária e não defi nitiva, pacífi co, sendo vedada toda e qualquer forma de violência às pessoas ou ao patrimônio e, principalmente, uma paralisação parcial ou coletiva, não individual.

Para Ruprecht (1995, p.732), “a greve tem sido defi nida pela doutrina como a abstenção de trabalhar em certas condições e com determinados fi ns. Mas, onde não há sempre acordo é a respeito de todos os fenômenos complexos e diferenciados que se compreendem sob o nome de greve moderna”.

Dentre os inúmeros conceitos de greve, optou-se pelo de Ruprecht

(...) Consideramos que se deve entender por greve a suspensão de caráter temporário do trabalho, pactuada e acertada por um grupo organizado de trabalhadores, com abandono dos locais de trabalho, com o objetivo de fazer pressão sobre os empregadores, na defesa de seus interesses profi ssionais e econômicos. (1995, p.738)

Pode-se perceber que a greve atualmente nada mais é do que um direito do trabalhador, na luta por melhores condições sociais e de trabalho, uma luta pelo reconhecimento da dignidade do trabalhador.

Sobre a natureza jurídica da greve, como já se pode ver ao longo de sua história, ela já foi compreendida como delito, como liberdade e como direito. Para Martins (2001a), a greve pode ser vista como um ato de liberdade, decorrente de uma determinação lícita, garantida para uma coletividade, a saber

Pode-se analisar a natureza jurídica da greve sob os efeitos que provoca no contrato de trabalho: suspensão ou interrupção. Há suspensão se não ocorre o pagamento de salários e nem a contagem do tempo de serviço, e interrupção quando se computa normalmente o tempo de serviço e há pagamento de salários.

A greve envolve um fato jurídico. Não é uma declaração de vontade, mas um comportamento do trabalhador. Envolve um direito subjetivo.

A greve é, assim, um direito de coerção visando à solução do confl ito coletivo. (MARTINS, 2001a, p.758)

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Ainda em relação à natureza jurídica da greve, Ruprecht (1995, p.774) afi rma que “a natureza da greve um ato complexo. É evidente que se trata de um direito, mas como direito se exerce na condição de se cumprirem as formalidades legais, o que faz que seja um ato jurídico”.

Bezerra Leite (2000), concorda com as ideias de Martins e afi rma ainda que a greve é uma forma que o trabalhador usa para lutar por seus interesses, assumindo assim, um caráter instrumental, de acordo com o ordenamento jurídico de cada país, sendo um direito diretamente ligado ao princípio jurídico da igualdade, enfi m, o que busca é a igualdade e a liberdade de forma real e efetiva entre os integrantes dos mais diversos grupos sociais organizados.

Na lição de Martins (2001b), a natureza jurídica da greve pode ainda ser analisada sob o aspecto dos efeitos que provoca no contrato de trabalho, podendo ser causa de suspensão, se não ocorre o pagamento de salários e a contagem do tempo de serviço, ou causa de interrupção, quando há o pagamento de salários e se computa normalmente o tempo de serviço.

Torna-se ainda necessário fazer uma breve referência à negociação coletiva no serviço público, já que se relaciona com o direito de greve, e na lição de Martins, “a negociação coletiva é uma fase antecedente e necessária da greve, ou seja: é uma condição para o exercício do direito de greve” (2001b, p.298).

4 NEGOCIAÇÃO COLETIVA No direito do trabalho, as relações coletivas são primordiais, pois possuem um

cunho jurídico em que fi guram como sujeitos os sindicatos, tanto de trabalhadores como de empregadores, a fi m de defender os interesses coletivos e não interesses mediatos e individuais (GASPAR, 1995).

Segundo Maranhão (1993, p.301), as instituições do direito coletivo do trabalho são

a) Liberdade de coalizão: fundamento do direito coletivo, traduzindo a possibilidade jurídica da união em defesa de interesses comuns: o direito de greve é uma consequência do reconhecimento desta liberdade.

b) Associação profi ssional: signifi ca a organização permanente de empregados, ou de empregadores, em defesa dos interesses das respectivas categorias.

c) Convenção coletiva: o estabelecimento de normas sobre condições de trabalho pelas próprias categorias a que se destinam.

d) Dissídios coletivos de trabalho: reconhecimento pelo direito de que os confl itos entre interesses abstratos, de grupos, podem ser, processualmente, resolvidos.

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A partir dessas instituições, foi reconhecido ao trabalhador o direito de greve ou de pleitear melhores condições de trabalho ou outras reivindicações trabalhistas.

Uma das prerrogativas dos sindicatos é a realização da negociação coletiva, modalidade de autocomposição de confl itos que, no entender de Ruprecht (1995, p.265), “é a que se celebra entre empregadores e trabalhadores ou seus respectivos representantes, de forma individual ou coletiva, com ou sem intervenção do Estado, para procurar defi nir condições de trabalho ou regulamentar as relações laborais entre as partes.”

Na lição de Süssekind (2000, p.1164-1165), negociação coletiva caracteriza-se por ser um meio de transação que visa ao equilíbrio entre os interesses do trabalhador e os custos de produção. Assim refere Süssekind

a negociação coletiva caracteriza-se por ser um processo dinâmico de busca de ponto de equilíbrio entre interesses divergentes, capaz de satisfazer, transitoriamente, as necessidades presentes dos trabalhadores e de manter equilibrados os custos de produção. Negociar signifi ca, acima de tudo, disposição dos sujeitos coletivos de discutir certos temas com o objetivo de chegar a um consenso, a um ponto de convergência por suas próprias forças e num exercício de transigência recíproco.

Nesse sentido, a negociação coletiva, intermediada pelos sindicatos, deve ser um entendimento para se chegar a um acordo entre as partes, o qual deve ater-se a interesses recíprocos que se resumam em normas e condições de trabalho, para melhoria das condições de vida dos trabalhadores, para incremento da produtividade, visando à harmonia nas relações de trabalho (BARROS, 2010).

O objetivo desses entendimentos, para que seja uma verdadeira negociação coletiva, é tentar estabelecer condições de trabalho, isto é, o que integra o contrato de trabalho, a saber: salário, suspensões, jornadas de trabalho, forma de prestação de serviços, licenças, etc. Podem ser também estabelecidas relações de trabalho entre as partes, quer dizer, as vinculações com o sindicato, obras sociais, regime de dirigentes sindicais, solução dos confl itos coletivos, numa palavra, o que faz parte do campo do Direito Coletivo do Trabalho. Qualquer outra reunião de trabalhadores e de empregadores que não tenha como objeto esses fi ns não constitui negociação coletiva. (RUPRECHT, 1995, 265)

Como já referido, para que aconteça a negociação coletiva, é necessário que interajam empregadores e trabalhadores, ou seus representantes. Por meio desta negociação procura-se encontrar o bem comum, uma justiça social que leve ao binômio capital-trabalho e uma desejada convivência pacífi ca entre trabalhadores e empregadores (RUPRECHT, 1995).

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Nesse sentido, o objeto da negociação coletiva é busca condições dignas e humanas para os trabalhadores, sem deixar de lado o interesse dos empregadores. Consiste em uma arma poderosa para solucionar os confl itos de interesses e para resolver os problemas derivados desses confl itos (RUPRECHT, 1995).

A fi nalidade da negociação coletiva é a formalização de convenção ou acordo coletivo de trabalho. No entanto, malograda a negociação entabulada, é facultada aos Sindicatos ou empresas interessadas a instauração de dissídio coletivo, ou seja, a negociação coletiva constitui uma das condições para o ajuizamento do dissídio coletivo, inteligência do art. 616 da CLT.

Também se constitui a negociação coletiva fase que antecede a deliberação sobre a greve. Sempre deverá haver prévia negociação coletiva, na tentativa de solucionar o confl ito. É o que determina o art. 114, § 1º e 2º da CF/88, alterado pela Emenda Constitucional nº 45/2004.

Nesse norte, questiona-se: é reconhecida, no âmbito do setor público, a negociação coletiva? Registram Santos e Silva (2005), que há duas correntes doutrinárias, uma proclamando a total impossibilidade jurídica da negociação coletiva nesse âmbito, e a outra defendendo a possibilidade jurídica.

Para a primeira vertente, tendo em vista especialmente o princípio da legalidade da Administração Pública, preconizado no art. 37 caput da CF/88, é impossível a negociação coletiva no setor público.

Ensina Sundfeld (1998) que a Administração só pode fazer o que a lei permite, ou seja, todo ato da Administração tem que ter base na lei, sob pena de invalidade.

Sob o ponto de vista constitucional, não há referência no parágrafo 3º do art. 39 (que trata dos direitos sociais do servidor público) da aplicação do inciso XXVI, do art. 7º, ou seja, não há o reconhecimento constitucional de convenção coletiva e acordo coletivo para esses servidores.

A Súmula 679 do Supremo Tribunal Federal – STF refere que “a fi xação de vencimentos dos servidores públicos não pode ser objeto de convenção coletiva.”

Além disso, há dispositivos constitucionais que vedam à Administração Pública realizar despesas ou assunção de obrigações além das dotações orçamentárias, conforme os arts. 167, II e 169 da CF/88.

A Lei 8.112/90, no seu art. 240, d e e assegurava ao servidor público civil o direito à negociação coletiva. Entretanto, o STF declarou essa lei inconstitucional, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 492

CONSTITUCIONAL. TRABALHO. JUSTIÇA DO TRABALHO. COMPETÊNCIA. AÇÕES DOS SERVIDORES PUBLICOS ESTATUTARIOS. C.F., ARTS. 37, 39, 40, 41, 42 E 114. LEI N. 8.112, DE 1990, ART. 240, ALINEAS

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“D” E “E”. I – SERVIDORES PUBLICOS ESTATUTARIOS: DIREITO A NEGOCIAÇÃO COLETIVA E A AÇÃO COLETIVA FRENTE A JUSTIÇA DO TRABALHO: INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 8.112/90, ART. 240, ALINEAS “D” E “E”. II – SERVIDORES PUBLICOS ESTATUTARIOS: INCOMPETENCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO PARA O JULGAMENTO DOS SEUS DISSIDIOS INDIVIDUAIS. INCONSTITUCIONALIDADE DA ALINEA “e” DO ART. 240 DA LEI 8.112/90. III – AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE JULGADA PROCEDENTE. ADI 492 / DF – DISTRITO FEDERAL. Rel. Min. CARLOS VELLOSO, Julgamento: 12/11/1992, Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Publicação: DJ 12-03-1993.

O Relator da ADI-492-DF, Ministro Carlos Velloso assim se manifestou na conclusão de seu voto

(...) Não sendo possível, portanto, à Administração Pública transigir no que diz respeito à matéria reserva à lei, segue-se a impossibilidade de a lei assegurar ao servidor público o direito à negociação coletiva, que compreende acordo entre sindicatos de empregadores e empregados, ou entre sindicatos de empregados e empresa e, malogrado o acordo, o direito de ajuizar o dissídio coletivo. E é justamente isto o que está assegurado no art. 240, alíneas d (negociação coletiva) e e (ajuizamento coletivo frente à Justiça do Trabalho) da citada Lei 8.112, de 11.12.90.(...). (VELLOSO, 1998, p.567)

Leciona o Ministro Velloso, em sua obra, que a sistemática dos servidores públicos, regime jurídico, vencimentos e remuneração assentam-se na lei, portanto, “a negociação coletiva tem por escopo, basicamente, a alteração da remuneração. A remuneração dos servidores públicos, entretanto, decorre de lei e a sua revisão geral, sem distinção de índices entre servidores públicos civis e militares, far-se-á sempre na mesma data (CF, art. 37, X e XI).” (VELLOSO, 1998, p.566).

A Orientação Jurisprudencial nº 5 da SDC do TST segue a mesma tendência, inadmitindo dissídios tanto de natureza econômica como de natureza jurídica no âmbito do setor público,

DISSÍDIO COLETIVO CONTRA PESSOA JURÍDICA DE DIREITO PÚBLICO. IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA.

Inserida em 27.03.1998 Aos servidores públicos não foi assegurado o direito ao reconhecimento de acordos e convenções coletivos de trabalho, pelo que, por conseguinte, também não lhes é facultada a via do dissídio coletivo, à falta de previsão legal.

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Sendo assim a primeira corrente doutrinária vale-se do princípio da legalidade para defender a impossibilidade jurídica de negociação coletiva no âmbito do serviço público.

A segunda corrente, favorável à negociação coletiva no âmbito do serviço público, apregoa que o só fato de o art. 39 não fazer referência à convenção coletiva e ao acordo coletivo referidos no art. 7º, XXVI, não é motivo para impedir que o servidor público não usufrua desses direitos, e se assim fosse, haveria uma incongruência na legislação, já que há a admissão legal de esses servidores sindicalizarem-se, bem como há o reconhecimento do direito de greve, conforme preceitua o art. 37, VII da CF/88, que poderá ser exercido nos termos e limites defi nidos em lei específi ca.

Por isso, como referem Santos e Silva (2005), essa corrente defende que, para conciliar o princípio da legalidade com o direito à negociação coletiva no setor público, o instrumento que advém da negociação coletiva, ou seja, o acordo coletivo ou a convenção coletiva, teria um caráter político e moral, no qual a autoridade competente se comprometesse a propor o devido projeto de lei, nos termos do pactuado, para resguardar o que prevêem os arts. 167, XVI, e 169 da CF/88.

Porém o entendimento do STF não é esse, conforme a precitada ADI 492-1-DF, mas não encerra a discussão em torno da negociação coletiva no serviço público, mesmo porque o direito à sindicalização dos servidores continua (BARROS, 2010).

5 DIREITO DE GREVE NO SERVIÇO PÚBLICONo serviço público civil, o Direito de Greve, está assegurado no art. 37, VII da

CF/88, e será exercido nos termos e limites defi nidos em lei específi ca, sendo proibida aos servidores militares. Até os dias atuais, o Congresso ainda não editou a lei específi ca.

Essa inércia levou o E. STF a reconhecer a mora do Congresso Nacional em regulamentar o inciso VII do art. 37 da CF/88, ainda em 1996, por meio do julgamento do MI-20-DF, de relatoria do Ministro Celso de Mello

MANDADO DE INJUNÇÃO COLETIVO DIREITO DE GREVE DO SERVIDOR PÚBLICO CIVIL EVOLUÇÃO DESSE DIREITO NO CONSTITUCIONALISMO BRASILEIRO MODELOS NORMATIVOS NO DIREITO COMPARADO PRERROGATIVA JURÍDICA ASSEGURADA PELA CONSTITUIÇÃO (ART. 37, VII) IMPOSSIBILIDADE DE SEU EXERCÍCIO ANTES DA EDIÇÃO DE LEI COMPLEMENTAR OMISSÃO LEGISLATIVA HIPÓTESE DE SUA CONFIGURAÇÃO RECONHECIMENTO DO ESTADO DE MORA DO CONGRESSO NACIONAL IMPETRAÇÃO POR ENTIDADE DE CLASSE ADMISSIBILIDADE WRIT CONCEDIDO. DIREITO DE GREVE NO SERVIÇO PÚBLICO: O preceito constitucional que reconheceu o direito de greve ao servidor público civil constitui norma de efi cácia meramente limitada, desprovida, em consequência, de autoaplicabilidade, razão pela qual, para atuar plenamente, depende da edição da lei complementar exigida pelo próprio texto da

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Constituição. A mera outorga constitucional do direito de greve ao servidor público civil não basta ante a ausência de autoaplicabilidade da norma constante do art. 37, VII, da Constituição para justifi car o seu imediato exercício. O exercício do direito público subjetivo de greve outorgado aos servidores civis só se revelará possível depois da edição da lei complementar reclamada pela Carta Política. A lei complementar referida que vai defi nir os termos e os limites do exercício do direito de greve no serviço público constitui requisito de aplicabilidade e de operatividade da norma inscrita no art. 37, VII, do texto constitucional. Essa situação de lacuna técnica, precisamente por inviabilizar o exercício do direito de greve, justifi ca a utilização e o deferimento do mandado de injunção. A inércia estatal confi gura-se, objetivamente, quando o excessivo e irrazoável retardamento na efetivação da prestação legislativa não obstante a ausência, na Constituição, de prazo pré-fi xado para a edição da necessária norma regulamentadora vem a comprometer e a nulifi car a situação subjetiva de vantagem criada pelo texto constitucional em favor dos seus benefi ciários. MANDADO DE INJUNÇÃO COLETIVO: A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal fi rmou-se no sentido de admitir a utilização, pelos organismos sindicais e pelas entidades de classe, do mandado de injunção coletivo, com a fi nalidade de viabilizar, em favor dos membros ou associados dessas instituições, o exercício de direitos assegurados pela Constituição. Precedentes e doutrina. STF-MI-20/DF, Tribunal Pleno, Julgamento: 19-05-1994, DJ 22-11-1996, p.45690, Rel. Min. CELSO DE MELLO.

Pode-se dizer que, no âmbito da Administração Pública, não há como negar que a mora em regulamentar o inciso VII do art. 37 da CF/88 trouxe inúmeras discussões doutrinárias e jurisprudenciais. Para Bezerra Leite nessas discussões, há duas correntes que se destacam

A primeira sustenta a efi cácia contida do preceito em exame, pelo que possível o exercício do direito antes mesmo da edição de lei complementar, sendo aplicável por analogia, a Lei 7.783/89.

A segunda, entendendo ser referido dispositivo not self-executing, advoga no sentido de que o servidor público somente poderá exercer o direito de greve após editada a norma infraconstitucional complementar. (2001, p.39)

Para a primeira corrente referida por Bezerra Leite, é perfeitamente aplicável, por analogia, aos servidores públicos, a Lei 7.783/89, enquanto não for editada lei específi ca, assente na efi cácia contida do preceito do art. 37, VII da CF/88.

Sustenta Bezerra Leite (1998) que a greve é elemento essencial da negociação coletiva; sem direito à negociação coletiva, não há como exercer o direito de greve. Porém no mundo dos fatos a realidade é outra, pois paradoxalmente, a todo instante há inúmeras greves nos diversos setores da Administração Pública, que a exercem como meio de pressão política para que os Poderes Executivo e Legislativo editem ou se abstenham de editar leis de acordo com o interesse da categoria.

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Também Romita (1991, p.250) assevera que

Se se pretende implantar o método de negociação coletiva para solucionar confl itos de trabalho, será indispensável assegurar liberdade sindical: sem autonomia, os sindicatos de trabalhadores estão desarmados. Trata-se no caso, do postulado fundamental para a convivência democrática. E a greve é a arma de luta dos trabalhadores na negociação coletiva! Sem direito de greve não pode haver negociação coletiva digna desse nome.

Santos e Silva (2005), partindo do estudo da teoria da aplicabilidade das normas constitucional, são partidários dessa primeira corrente, sustentando que o preceito do art. 37, VII da CF/88 possui efi cácia contida, ou seja, é inteiramente aplicável; enquanto o legislador infraconstitucional não editar a nova lei, restringindo ou reduzindo o alcance do direito de greve do funcionário público, aplica-se na sua plenitude a Lei 7.783/89.

Concluem Santos e Silva que

Entender que o servidor público só poderá exercitar o direito de greve quando advier a mencionada lei signifi ca, na prática, inverter a hierarquia das normas, colocando a “lei específi ca”, infraconstitucional, em patamar superior ao da norma constitucional, o que não parece nem um pouco razoável, uma vez que a referida lei específi ca, quando editada só poderá estabelecer limites e termos para o exercício da greve no setor público, mas não poderá negar tal direito aos servidores públicos. (SANTOS, SILVA, 2005, p.605)

Sendo assim, essa corrente entende que a falta de regulamentação do art. 37, VII da CF/88 não pode ser motivo de detrimento dos direitos fundamentais dos servidores públicos à greve.

E esse foi o entendimento que se consolidou no STF, em 2007, por ocasião do julgamento dos Mandados de Injunção nºs 670, 708 e 712, impetrados pelo Sindicato dos Servidores Policiais Civis do Estado do Espírito Santo, pelo Sindicato dos Trabalhadores em Educação do Município de João Pessoa e pelo Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário do Pará, respectivamente.

No julgamento, o STF, por maioria, reconheceu a ausência de norma regulamentadora do direito de greve dos servidores públicos garantido no art. 37 VII da CF/88, com a fi nalidade de que fosse declarada a mora do Congresso Nacional, bem como efetivamente fosse assegurado o exercício de tal direito. Na sessão, deu provimento aos mandados de injunção supracitados e propôs a solução para a omissão legislativa com a aplicação da Lei nº 7.783, de 28 de junho de 1989, no que couber.

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Tal julgamento vem em boa hora, apontando para a tendência da E. Corte Suprema brasileira a dar concretude aos dispositivos alinhados na Constituição, independentemente de uma regulamentação específi ca.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS A greve é um direito de todo trabalhador para defender suas conquistas e de procurar

melhorar as condições em que desempenha suas atividades. Diante disso, não se pode negar que o servidor público tenha o direito de greve, como preconizado no art. 37, VII, da CF/88, não podendo a lacuna legislativa ser motivo de detrimento dos direitos fundamentais desses servidores públicos.

Percebe-se que a CF/88, apesar dos vários avanços em relação ao direito de greve dos trabalhadores, ainda possui algumas incongruências, especialmente no que tange ao setor público, afi nal as posições que vêm sendo adotadas pelas cortes superioras em relação ao direito de greve têm sido inadequadas à realidade brasileira. De fato, a greve no serviço público brasileiro, embora não tenha lei específi ca reguladora exigida pelo texto constitucional, tem ocorrido com alguma frequência.

A exigência constitucional da edição de uma lei específi ca que regulamente o direito de greve no serviço público não signifi ca que esse direito não deva ser reconhecido a esses servidores. A edição de lei específi ca pelo Congresso Nacional não poderá negar tal direito aos servidores públicos e deverá seguir uma visão sistêmica do texto constitucional, de modo a preservar os direitos fundamentais desses servidores.

E esse foi o entendimento que se consolidou no STF, em 2007, por ocasião do julgamento dos Mandados de Injunção nºs 670, 708 e 712, impetrados pelo Sindicato dos Servidores Policiais Civis do Estado do Espírito Santo, pelo Sindicato dos Trabalhadores em Educação do Município de João Pessoa e pelo Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário do Pará, respectivamente.

Foi nesse norte que o E. STF, por maioria, reconheceu, em boa hora, a ausência de norma regulamentadora do direito de greve dos servidores públicos garantido no art. 37 VII da CF/88, declarou a mora do Congresso Nacional, bem como efetivamente assegurou o exercício de tal direito.

Assim, com o provimento de tais Mandados de Injunção, a solução para a omissão legislativa é a aplicação da Lei nº 7.783, de 28 de junho de 1989, no que couber.

Evidentemente, o reconhecimento do direito de greve ao servidor público impõe limitações. Deverá ser exercido em harmonia com os interesses da coletividade, para evitar que os direitos de grupos determinados se sobreponham ao Direito Coletivo difuso, que se refere a toda a comunidade.

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Água, um direito fundamentalRoberto Ferreira de Macedo

RESUMO O presente artigo se propõe a apresentar que a água potável e de qualidade deve ser

considerada como um direito fundamental para a existência de toda e qualquer forma de vida existente no planeta, devendo seu acesso ser público e gratuito, considerando-se que qualquer forma de comercialização, alteração e poluição deste insumo constitui crime contra a humanidade. Dessa forma, a preocupação com o aumento populacional e com a quantidade e qualidade de água potável para consumo é crescente, revelando-se a necessidade de se considerar a água como um direito fundamental compatível com a dignidade da pessoa humana. Para tanto, apresenta-se uma análise em torno do direito de acesso à água e a problemática da escassez, exploração indevida e poluição. Em seguida, procura-se apontar os dispositivos jurídicos de proteção dos recursos hídricos, trazendo-se uma análise crítica sobre a eficiência dos mesmos e abordando a necessidade de inclusão social como forma de garantia dos mesmos.

Palavras-chave: Água. Direito Ambiental. Direito fundamental. Direito à água.

The water, a fundamental right

ABSTRACTThis article aims to provide the drinking water quality should be considered as a

fundamental right to existence of all forms of life existing on the planet, and its access is free and public, considering that any form of marketing, change and pollution of this input is a crime against humanity. Thus, the concern with population increase and the quantity and quality of drinking water for consumption is increasing, revealing the need to consider water as a fundamental right is compatible with human dignity. It presents an analysis around the right of access to water and the problem of scarcity, pollution and improper exploitation. It then attempts to point out the legal provisions for protection of water resources, bringing a critical analysis on their efficiency and addressing the need for social inclusion as a guarantee of the same.

Keywords: Water. Environmental law. The right to water.

1 INTRODUÇÃOA inauguração desse novo milênio veio acompanhada pela conscientização global

de que o processo de desenvolvimento dos países não pode mais ser feito apenas pelo aspecto econômico e à custa dos recursos naturais. No estágio atual em que vivemos, o desenvolvimento deve ser almejado de forma sustentável, onde exista a conciliação entre evolução integral, preservação do meio ambiente e qualidade de vida.

Roberto Ferreira de Macedo é bacharel em Direito pela Universidade Luterana do Brasil, Canoas/RS. E-mail: [email protected]

Direito e Democracia v.11 n.1 p.76-94 jan./jun. 2010Canoas

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Dentro dessa perspectiva é que se destaca a importância do Direito Ambiental, em normatizar e regular as novas relações em uma sociedade que vislumbre um desenvolvimento sustentável e a continuidade da vida humana de forma saudável.

Dessa forma, o Direito Ambiental deriva dos direitos fundamentais, no momento em que se propõe regular e garantir condições de vida para todos no planeta, conforme dispõe o artigo 225 da Constituição Federal de 1988.

A água, recurso natural, surge como direito fundamental essencial que é para a vida humana e para qualquer espécie de vida no planeta. Adquire natureza jurídica e valor econômico, aspectos necessários para qualquer tipo de existência. Preservar e conservar a qualidade e quantidade da água é proteger o direito à saúde, à vida e a dignidade da pessoa humana, em face da pouca disponibilidade frente a uma demanda crescente.

Cabe ao poder público e aos cidadãos o dever de precaução e resguardo dos recursos hídricos contra os efeitos poluidores, uso irracional, desperdício e, principalmente, a exploração comercial indevida da água, que se tem intensifi cado cada vez mais.

O desenvolvimento do Direito Ambiental deve conjugar esforços para ampliar a proteção em torno do direito à água.

A água é um bem ambiental, de uso comum da humanidade. É recurso vital. Dela depende a vida no planeta. Os demais valores têm de ceder espaço aos direitos humanos fundamentais que devem prevalecer acima de quaisquer outros interesses econômicos ou políticos.

2 CONSIDERAÇÕES INICIAISA questão da água, como elemento essencial à vida e sobrevivência dos seres

humanos e animais, insere-se no âmbito do Direito Ambiental, bem como parte dos direitos fundamentais.

O desembargador Wellington Pacheco Barros defi ne assim a água:

[...] fi sicamente, é um líquido transparente, incolor, com um matiz azulado quando visto em grande massa. Quando em sua forma pura não tem sabor. Apresentam-se nos três estados físicos: sólido, líquido e gasoso. Passando do estado líquido para o sólido a 0º, e, após a ebulição a 100º, a água vaporiza-se. Quimicamente, a água é um composto formado por dois elementos gasosos, em estado livre, o hidrogênio e o oxigênio (H²O). “A água é indispensável para a vida.” (BARROS, 2005, p.152)

A água é uma substância abundante que cobre 2/3 da superfície da Terra, aparentando ser infi nita para a vida humana, vegetal e animal. Em números, pode-se dizer que 71% da

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superfície terrestre é coberta por água. De toda essa quantidade, cerca de 97,3% é água salgada e apenas 2,7% é água doce, aproveitável para consumo e para a irrigação.

Do total de água doce disponível na Terra, 77,2% encontra-se em forma de gelo, 22,4% são águas subterrâneas, 0,35% se encontra em lagos e pântanos, 0,04% está na atmosfera e apenas 0,01% da água doce está nos rios. Apesar de cobrir quase a totalidade da Terra, o volume de água doce disponível é insignifi cante. Além da pouca disponibilidade, fatores como o aumento da população mundial, da poluição provocada pelas atividades humanas, do consumo excessivo e do alto grau de desperdício, fazem da água, hoje, um bem fi nito e escasso.

Os gráfi cos abaixo demonstram a evolução histórica da disponibilidade de água doce por Habitante/Região (1000 m³) – Gráfi co 1 – e como se encontra atualmente distribuída pelos continentes – Gráfi co 2:

Região 1950 1960 1970 1980 2000

África 20,6 16,5 12,7 9,4 5,1

Ásia 9,6 7,9 6,1 5,1 3,3

América Latina 105,0 80,2 61,7 48,8 28,3

Europa 5,9 5,4 4,9 4,4 4,1

América do Norte 37,2 30,2 25,2 21,3 17,5

TOTAL 178,3 140,2 110,6 89 58,3

GRÁFICO 1 – Evolução histórica da disponibilidade de água doce por habitante/região (1000 m³).

CONTINENTE ÁGUA DOCE

ÁFRICA 10,00%

AMÉRICA DO NORTE 18,00%

AMÉRICA DO SUL 23,10%

ÁSIA 31,60%

EUROPA 7,00%

OCEANIA 5,30%

ANTÁRTIDA 5,00%

GRÁFICO 2 – Distribuição atual da água pelos continentes.

Observa-se, além da nítida diminuição da disponibilidade da água doce ao passar dos anos, que a distribuição de água pelo mundo privilegiou alguns continentes em detrimento de outros. Já existem informações que dão conta da carência de água para 1,1 bilhões de pessoas ao redor do planeta.

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No Brasil, essa preocupação parece ainda não existir, talvez pelo fato de o país abrigar 13,8% das reservas mundiais de água doce e aqui se encontrar 71% dos 1,2 milhões de quilômetros quadrados do Aquífero Guarani, o maior reservatório subterrâneo de água doce das Américas e um dos maiores do mundo, envolvendo os Estados de Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Goiás, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul (BARROS, 2005, p.10).

3 IMPORTÂNCIA DAS ÁGUASA água é uma necessidade biológica do ser humano, visto que sem água não

sobrevivem o homem e todo e qualquer ser vivo parte da natureza. Entretanto, a consciência de tal fato não era presente à humanidade, pois a água era anteriormente vista como um recurso natural inesgotável. Porém, no decorrer de mudanças de circunstâncias e de fatos, resultantes do próprio agir humano na busca indiscriminada por recursos naturais, e sua constante infl uência nas alterações no meio ambiente, a questão da água tomou outra dimensão, mais realista e consciente. Passou-se a identifi car o manancial de água existente, mensurando-se as reservas e seu consumo no planeta.

Além de ser elemento imprescindível para todo e qualquer tipo de vida e sua manutenção, a água também é importante para o abastecimento doméstico e público, nos usos agrícolas e industriais e na produção de energia elétrica. No uso doméstico, ela serve para ser bebida (o que por si só justifi ca ser considerada como um direito fundamental do homem), no preparo de alimentos, higiene pessoal, limpeza na habitação, irrigação de jardins, criação de animais domésticos, entre outros. Em relação ao abastecimento público, utiliza-se a água nas moradias, escolas, hospitais, irrigação de parques e jardins, limpeza de ruas, combate a incêndios, navegação, etc.

Também é importante lembrar que diversas doenças podem estar associadas à água, como a cólera, hepatite, amebíase, dentre outras. Isso só reforça a ideia de que o abastecimento de água com qualidade própria para a ingestão, preparo de alimentos e higiene pessoal são elementos fundamentais para uma existência digna de todos os cidadãos.

Em relação à produção agrícola, a água é utilizada para tratamento de animais, lavagem de instalações, máquinas, etc. A agricultura é considerada a atividade que mais consome água. Ressalta-se que a água pode representar até 90% da composição física das plantas (BARROS, 2005, p.14).

Dentre as diversas utilidades da água na indústria, ela se destaca como matéria prima para a produção de alimentos e produtos farmacêuticos, gelo, etc.; para a refrigeração na metalurgia, para lavagem nas áreas de produção de papel, tecido, em abatedouros e matadouros, etc.; e em atividades em que é utilizada para a fabricação de vapor, como na caldeiraria.

Estatisticamente, a irrigação corresponde a 73% do consumo de água, 21% vão para a indústria e apenas 6% se destina ao consumo doméstico (BARROS, 2005, p.13, 14).

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Cabe ainda destacar a importância da água na produção de energia elétrica, através das usinas hidrelétricas, que utilizam a força e o movimento das águas para gerar essa energia. Cerca de 95% da energia elétrica brasileira provém dos rios (BARROS, 2005, p.15).

4 CRISE DA ÁGUAFatores naturais, aumento populacional, poluição provocada por atividades

humanas, consumo excessivo e o alto grau de desperdício de água prejudicam ainda mais a disponibilidade de água para o uso humano. Conforme ensina Luiz Antonio Timm Grassi, a crise da água doce pode ser compreendida pelos seguintes fatores:

a) agravamento da escassez quantitativa da água devido à competição com demanda de outros usos, como a irrigação;

b) aumento da escassez da água de boa qualidade, devido à degradação dos mananciais, pela poluição resultante de todas as atividades;

c) deterioração dos próprios corpos de água pelas intervenções intencionais ou não (barragens, retifi cações, desmatamento, mineração nos leitos, erosão, perfuração descontrolada de poços);

d) magnitude da demanda e os infi ndáveis recursos fi nanceiros, daí decorrentes, são cada vez maiores, devido à piora da qualidade dos mananciais ou da distância, além daqueles recursos que são apropriados, como os investimentos que são indispensáveis para a instalação de equipamentos e para sua operação;

e) desperdício em níveis preocupantes, seja por falhas operacionais dos sistemas de abastecimento, seja pelo uso descontrolado por parte dos usuários. (GRASSI, apud BARROS, 2005, p.42-43)

Segundo dados da Revista Expressão (EXPRESSÃO, 2007, p.125), o mundo já tem 2,4 bilhões de pessoas sem condições mínimas de saneamento. As doenças provocadas pelo consumo de águas contaminadas matam 5 milhões de pessoas anualmente (dez vezes mais do que as guerras). Estima-se, ainda, que 60% da mortalidade infantil decorrem desta mesma causa.

O autor Hinde Pomeraniec, no Fórum de Barcelona de 2004, ao abordar o problema do acesso da água potável, o que chama de “Ouro Azul”, afi rma que “mais de 1,2 bilhões de pessoas em todo o mundo não têm acesso à água potável” e, ainda, que “[...] a cada vinte e quatro segundos nascem cem crianças em todo o mundo. Sabe-se que vinte delas não terão acesso à água limpa (POMERANIEC, 2004, p.20)”. Nos Estados Unidos, segundo o Conselho de Defesa de Recursos Naturais, cerca de 53 milhões de americanos, praticamente 1/5 da população, bebem água de torneira contaminada com chumbo, bactérias fecais ou com outros poluentes sérios (BARLOW, 2004, p.22).

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A humanidade usa cerca de 54% da água disponível, e este percentual deverá, segundo as estimativas, chegar a 70% em apenas 25 anos.

A reportagem realizada pela Revista Época sobre a escassez e as condições atuais da água no Brasil e no mundo reporta que, “segundo as projeções mais recentes da ONU, no ritmo de uso e do crescimento populacional, nos próximos 30 anos a quantidade de água disponível por pessoa será reduzida a 20% do que temos hoje (LEAL; VICÀRIA, 2007, p.109). Ainda ressalta que a escassez de água não é somente em regiões desérticas, e que a questão da água está sendo o centro por trás dos grandes confl itos no planeta. No Brasil, temos um privilégio nesta questão, pois temos 14% de toda a água doce que circula pela superfície da Terra (LEAL, VICÀRIA, 2007, p.110), embora essa distribuição seja desigual.

Ainda o estudo feito pela ONU demonstra que a Região Sul do Brasil possui áreas de confl itos sobre água devido à “demanda para irrigar campos de arroz e da degradação da qualidade da água, principalmente nas áreas onde há criação de gado” (LEAL, VICÀRIA, p.110). Essa disputa engloba as cidades de Santo Antonio da Patrulha, Gravataí, Alvorada e Cachoeirinha, na região metropolitana de Porto Alegre.

No Oriente Médio, a água é considerada um produto raro, e considerado mais importante que o próprio petróleo. Sendo também fator determinante para situações de guerra e paz nas regiões. Foi a água o principal motivo que fez os israelenses se recusarem durante muitos anos a deixar os territórios ocupados. Atualmente, mais de dois terços da água consumida em Israel saem de lençóis subterrâneos localizados parte na Cisjordânia e parte em Golan (BARLOW, 2004, p.24).

Muitos países como a Inglaterra, a França e o Chile, tentam solucionar o gerenciamento da água através de concessionárias privadas. “Quase todo o negócio mundial de gestão de água está nas mãos de duas empresas francesas” (BARLOW, 2004, p.130).

No exemplo do Chile, no caso da privatização da água, há um sistema de gestão implantado de acordo com os princípios difundidos pelo Banco Mundial, pois a legislação chilena é bem liberal em relação à água, onde qualquer pessoa pode requerer ao Poder Público a concessão de direito de uso da água, e se houver disponibilidade de outorga, não poderá está ser negada. O direito de uso é um bem real do concessionário, podendo ser transmitido livremente; não há obrigatoriedade de uso do recurso concedido, que pode simplesmente constituir reserva de valor patrimonial. Isso, por conseguinte, criou uma nova forma de especulação, onde algumas companhias mineradoras controlam o mercado de água no país e simulam situações de falta de água, com o objetivo de aumentar os preços ou criar reservas de direitos para usos futuros, restringindo ou anulando a fl exibilização de uso (IRIGARAY, 2004, p.384).

Nos países pobres, onde os serviços de água foram privatizados, ocorreu substancial aumento das tarifas de água. Em Gana, as condições impostas pelo Banco Mundial e o FMI determinaram um aumento de 95% nas tarifas de água; em Cochabamba, Bolívia, as tarifas ascenderam ao ponto de consumir 25% da receita familiar de certos residentes

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empobrecidos, à semelhança do que ocorreu na Índia (BARLOW, 2004, p.86.). Na Califórnia, o comércio dos direitos da água já é um grande negócio, visto que, no ano de 1992, o Congresso Norte-Americano votou um projeto de lei que permite aos agricultores venderem seus direitos de água para as cidades. Em 1997, foi cogitada a ideia de abrir um mercado de água entre os usuários do Rio Colorado, possibilitando a venda da água do rio para os Estados do Arizona, Nevada e Califórnia (BARLOW, 2004, p.88).

Atualmente, muitas empresas que tratam a água, passam a enxergá-la como um novo negócio rentável no mercado econômico,

[...] o que vemos à frente é um mundo onde os recursos não são preservados, mas acumulados, para aumentar preços e lucros corporativos e onde os confl itos militares podem ocorrer por causa da escassez de água em lugares como o Vale Mexicano e o Oriente Médio. É um mundo no qual tudo estará à venda. (BARLOW, 2004, p.91)

Nesse sentido, as autoras Andreia Vieira e Ilma Barcellos colocam que

[...] silenciosamente as transacionais da água já estão explorando de diversas maneiras os nossos rios, lagos e demais fontes e mananciais de água e essa prática não é recente. Através de diferentes iniciativas, sejam individuais, políticas ou empresariais, esta se tornando cada dia mais visível, ainda que de forma disfarçada, a posse, propriedade oi controle privados da água. Exemplo disso é o que vem ocorrendo em algumas regiões do Estado de Minas Gerais. Desde 1992, a multinacional Nestlé assumiu a propriedade do Parque das Águas de São Lourenço e, consequentemente, a exploração comercial das fontes de água mineral da cidade de São Lourenço, onde passou a produzir a água Pure Life. Hoje, a Nestlé comercializa além da Pure Life, também as marcas Aquarel, Perrier, Petrópolis e São Lourenço. A exploração de água do Poço Primavera, que fi ca dentro do Parque das Águas de São Lourenço, além de não ter sido precedida de Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental, exigidos por lei, trava uma disputa judicial há anos, com controvérsias de pareceres dos seguintes órgãos: Departamento Nacional de Pesquisas Minerais (DNPM), Agência Nacional de Águas (ANA) e Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). (VIEIRA, BARCELLOS, 2009, p.80,81)

Nesse mesmo foco, de valor econômico da água e não como recurso natural essencial do ser humano, no Fórum Mundial da Água, em março de 2000, em Haia, houve um debate, no qual se questionava se a água deveria ser designada como uma “necessidade” ou um “direito”. Discutiu-se sobre quem deveria ser o responsável por assegurar às pessoas o acesso à água: o livre mercado ou o Estado, as corporações ou os governos? Foi então direcionada a questão para o lado mercantilista, sendo a água considerada uma “necessidade”, de forma que o setor privado teria o direito e responsabilidade de

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fornecer esse produto vital com base em fi ns lucrativos. Se tivesse a água sido reconhecida ofi cialmente como um direito humano universal, o que de fato não ocorreu naquele momento, então os governos seriam responsáveis por garantir o acesso á todas as pessoas igualmente em uma base não lucrativa (BARLOW, 2004, p.96).

É notável que, para as camadas sociais menos favorecidas, tais decisões têm efeitos desastrosos, tanto quanto ao acesso quanto ao extremo de ter de consumir água contaminada, pela falta de outra alternativa. É de conhecimento de todos que o livre mercado pode e deve ser apropriado para a negociação de bens opcionais, e nunca para aqueles imprescindíveis para a existência digna do ser humano, como é o caso da água. Nesse sentido, conforme Petrella (2002, p.84),

[...] ter acesso a água, no entanto, não é uma questão de escolha. Todos precisam dela. O próprio fato de que ela não pode ser substituída por nada mais, faz da água um bem básico que não pode ser subordinado a um único princípio setorial de regulamentação, legitimação e valorização; ela se enquadra nos princípios do funcionamento da sociedade como um todo. Isso é precisamente aquilo que se chama de um bem social, um bem comum, básico a qualquer comunidade humana.

No sentido contrário ao que foi decidido no Fórum Mundial da Água no ano de 2000, o Comitê das Nações Unidas sobre Direitos Econômicos, Culturais e Sociais considerou a água “fundamental para a vida e a saúde” (BARLOW, 2004, p.97). O direito humano à água é indispensável para se chegar a uma vida saudável e com dignidade, sendo um verdadeiro pré-requisito à realização de todos os outros direitos humanos, saindo daí a sua fundamentalidade. E, ainda, o mesmo Comitê diz que a água deve ser tratada como um bem social e cultural, não como um negócio econômico.

5 ÁGUA COMO UM DIREITO FUNDAMENTALOs sistemas internacionais de proteção dos direitos fundamentais e do meio

ambiente demonstram a existência de um paralelismo e de uma interação na evolução histórica desses sistemas, levando à conclusão de que ambos, no fundo, convergem para o objetivo maior de assegurar uma vida digna a todos os habitantes da Terra. Embora tenham sido historicamente abordados em perspectivas diferentes, é necessário buscar maior aproximação entre esse dois sistemas, principalmente pelo fato de que ambos tratam, em última análise, dos rumos e destinos do gênero humano.

De acordo com Pedro Lenza a doutrina, dentre vários critérios, costuma classifi car os direitos fundamentais em “gerações ou dimensões de direitos”, da seguinte forma

Direitos Fundamentais de primeira dimensão: alguns documentos históricos são marcantes para a confi guração do que os autores chamam de direitos humanos de

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primeira geração (séculos XVII, XVIII e XIX): (1) Magna Carta de 1215, assinada pelo rei “João Sem Terra”; (2) Paz de Westfália (1648); (3) Habeas Corpus Act (1679), (4) Bill of Rights (1688); (5) Declarações, seja a Americana (1776), ou a Francesa (1789). Mencionados direitos dizem respeito às liberdades públicas e aos direitos políticos, ou seja, direitos civis e políticos a traduzirem o valor de liberdade;

Direitos Fundamentais de segunda dimensão: o momento histórico que os inspira e impulsiona é a Revolução Industrial europeia, a partir do século XIX. Nesse sentido, em decorrência das péssimas situações e condições de trabalho, eclodem movimentos como o cartista – Inglaterra e a Comuna de Paris (1848), na busca de reivindicações trabalhistas e normas de assistência social. O início do século XX é marcado pela 1ª Grande Guerra e pela fi xação de direitos sociais. Isso fi ca evidenciado, dentre outros documentos, pela Constituição de Weimar, de 1919 (OIT). Portanto, os direitos humanos, ditos de segunda geração, privilegiam os direitos sociais, culturais e econômicos, correspondendo aos direitos de igualdade;

Direitos Fundamentais de terceira dimensão: marcados pela alteração da sociedade, por profundas mudanças na comunidade internacional (sociedade de massa, crescente desenvolvimento tecnológico e científi co), as relações econômico-sociais se alteram profundamente. Novos problemas e preocupações mundiais surgem, tais como a necessária noção de “preservacionismo ambiental e as difi culdades para a proteção dos consumidores”, só para lembrar aqui dois temas importantes. “O ser humano é inserido em uma coletividade e passa a ter direitos de solidariedade”. (LENZA, 2007, p.694-695)

Para Bobbio, “o mais importante dos direitos da terceira geração é o reivindicado pelos movimentos ecológicos: “o direito de viver num ambiente não poluído” (BOBBIO, 1992, p.6).

Foi a partir da Declaração de Estocolmo de 1972, realizada pela ONU, que as Constituições supervenientes passaram a reconhecer o direito ao meio ambiente como um direito fundamental de terceira dimensão. Passou-se a ter o consenso que o direito ao meio ambiente é ao mesmo tempo individual e coletivo e de interesse a toda humanidade, ou seja, a garantia desse direito passa por um esforço conjunto do Estado, dos indivíduos e das diversas Nações. Também foi despertada a consciência para a devida proteção jurídica em relação ao meio ambiente, justamente por seu caráter de fundamentalidade em relação à vida. Nesse sentido, passou-se a considerar que não há a possibilidade de concretização dos demais direitos fundamentais sem o direito ao meio ambiente, justamente por ser esse o próprio direito à vida, ou seja, direito à água em quantidade e qualidade adequadas para suprir as necessidades humanas fundamentais, o direito de respirar um ar sadio, o direito a que exista um controle de substâncias que comportem riscos para a qualidade de vida e o meio ambiente, entre outros aspectos a serem salvaguardados para a existência da própria vida. O direito ao meio ambiente confi gura-se, a partir de então, como a matriz de todos os demais direitos fundamentais.

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Ainda em relação ao reconhecimento do direito ao meio ambiente como direito fundamental de terceira dimensão, cabe referir o entendimento do Supremo Tribunal Federal brasileiro, em sua jurisprudência mais recente, como o revela o voto do eminente Ministro Celso de Mello, no Mandado de Segurança n. 22.164-0/SP, julgado em 30.10.1995.

Os preceitos inscritos no art. 225 da Carta Política traduzem a consagração constitucional, em nosso sistema de direito positivo, de uma das mais expressivas prerrogativas asseguradas às formações sociais contemporâneas.

Essa prerrogativa consiste no reconhecimento de que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Trata-se consoante já o proclamou o STF (RE 134.297-SP, rel. Min. Celso de Mello), de um típico direito de terceira geração que assiste, de modo subjetivamente indeterminado, a todo o gênero humano, circunstância essa que justifi ca a especial obrigação – que incumbe ao Estado e à própria coletividade – de defendê-lo e preservá-lo em benefício das presentes e das futuras gerações, evitando-se, desse modo, que irrompam, no seio da comunhão social, os graves confl itos intergeneracionais marcados pelo desrespeito ao dever de solidariedade na proteção da integridade desse bem essencial de uso de tantos quantos compõem o grupo social. (MIRRA, 2004, p.57-60)

A permanência da vida na Terra, tida como “Planeta Água”, porquanto 70% da superfície do nosso planeta é coberta por este precioso líquido, está intrinsecamente ligada à disponibilidade de recursos hídricos em qualidade e quantidades sufi cientes à satisfação das necessidades básicas dos seres vivos que nela habitam.

O direito à vida com qualidade compatível com a dignidade da pessoa humana é parte do sistema jurídico brasileiro como um direito fundamental da primeira geração. Deve-se enquadrar a água como um direito fundamental pelo simples fato de que sem água não se vive. De acordo com o ensinamento de André Ramos

[...] o direito à vida é o mais básico de todos os direitos, no sentido de que surge como verdadeiro pré-requisito da exigência dos demais direitos consagrados constitucionalmente. É, por isto, o direito humano mais sagrado, necessário também para assegurar um nível mínimo de vida, compatível com a dignidade (TAVARES, 2002, p.387)

Dessa maneira, não basta somente que a população tenha acesso à água doce permitindo-lhe apenas a continuidade da vida. É necessário mais que o mínimo, que a água seja potável e fornecida em quantidade sufi ciente para garantir às pessoas uma vida compatível com a dignidade humana (VIEGAS, 2005, p.25), direito este consagrado em

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nossa Constituição Federal (ARTIGO 1º, III, CF/88), considerado como um dos pilares do nosso poder constituinte.

Nesse mesmo sentido, o direito à água decorre também do direito à saúde, visto que a falta de saneamento básico, além de acarretar a proliferação de inúmeras doenças, causando aumento da mortalidade infantil, principalmente entre as camadas sociais menos favorecidas, é fator imprescindível para manter o bem estar e a higiene humana (IRIGARAY, 2003, p.384).

Para Jose Afonso da Silva, “[...] dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os demais direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida” (SILVA, 2003, p.105). Destarte, por ter a água sintonia estreita com direitos fundamentais como a vida, a saúde e a dignidade da pessoa humana, assume inegável contorno também de direito fundamental. Conforme o professor Carlos Irigaray, enquanto direito fundamental, o direito à água é inalienável e irrenunciável. A água é a fonte da vida, e ter acesso à água potável e em quantidade sufi ciente não é uma questão de escolha, mas uma necessidade (IRIGARAY, op. cit., p.384).

Em suma, por ser um recurso vital para sobrevivência de todo e qualquer ser vivo, a água não pode ser objeto de comércio e de lucro. Não se pode permitir qualquer tipo de apropriação e modifi cação deste insumo. Em nosso entendimento, comercializar um recurso vital para sobrevivência, visando ao lucro, assemelha-se a prática de crime contra toda a humanidade. Isso faz pressupor que aquele cidadão que não tem condições para pagar pela compra de uma água de qualidade terá de beber uma água ruim e até poluída prejudicando sua saúde e pondo em risco sua própria vida. Se o direito à vida com dignidade é um preceito fundamental constitucionalmente previsto, a água como recurso vital para manutenção da vida consequentemente também é um preceito fundamental.

6 COMPETÊNCIA LEGISLATIVA DAS ÁGUASAs Constituições Brasileiras anteriores à de 1988 nada ou pouco traziam sobre a

matéria específi ca referente à proteção do meio ambiente.

A Constituição Federal de 1988 foi a pioneira a dar um tratamento mais específi co, amplo e protetor à questão ambiental. Por disposição do artigo 225 da Constituição Federal, todos os cidadãos têm direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado e, com isso, conforme Weissheimer, “a Constituição disciplina o meio ambiente como um todo a que se atribui a natureza jurídica de bem público” (WEISSHEIMER, 2002, p.167).

Em decorrência disso, as águas também receberam uma nova regulamentação legal, a fi m de serem preservadas e conservadas para as gerações futuras. Como se pode notar, principalmente nos artigos 20, III e 26, I da Constituição Federal, passou-se a considerar as águas como bens do Estado, inexistindo, com o novo ordenamento jurídico, águas particulares ou até mesmo águas municipais (MACHADO, 2004, p.329).

A autora Maria Luiza Machado Granziera preconiza que a nova situação pós-Constituição Federal de 1988 deixa claro que não existem mais águas privadas e que

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não há qualquer indício de que o poder público deva indenizar aqueles particulares que tinham águas incorporadas ao seu patrimônio. Em suma, não mais subsiste o direito de propriedade relativamente aos recursos hídricos. Os antigos proprietários de poços, lagos ou qualquer outro corpo de água devem adequar-se ao novo regramento constitucional e legislativo passando à condição de meros detentores de direitos de uso dos recursos hídricos, assim mesmo desde que obtenham a necessária outorga prevista na lei citada (GRANZIERA, 2001, p.82).

Sendo o Brasil uma República Federativa, a Magna Carta de 1988 visa a uma distribuição harmônica na distribuição das competências legislativas. “Conforme Maria Luiza Machado Granziera, a competência legislativa pode ser privativa da União (artigo 22), concorrente entre União, Estados e Distrito Federal (artigo 24), dos Estados (artigo 25, §1º), dos Municípios (artigo 30, I e II) e do Distrito Federal (artigo 32, §1º)” (GRANZIERA, 2002, p.5).

De outra banda, embora possamos encontrar posições contraditórias, a competência para legislar sobre águas deverá ser entendida como privativa da União (artigo 22, IV, CF/88), quando se refere ao bem econômico água. Por exemplo: água para navegação, água para produção de energia elétrica, água como recurso mineral. Por outro lado, quando nos referimos sobre a proteção das águas como recurso natural (recursos naturais: ar, solo, subsolo, água, fl ora e a fauna), a competência será concorrente (artigo 24, VI, CF/88).

Em 1981, a Lei nº 6.938/81 institui a Política Nacional do Meio Ambiente, posteriormente alterada pela Lei nº 7.804. A água está enquadrada no conceito de recurso ambiental, conforme disposição do artigo 3º, V da referida lei, que também instituiu o Sistema Nacional do Meio Ambiente – SINAMA, cujo órgão superior é o Conselho Nacional do Meio Ambiente – CONAMA, ao qual compete, entre outras atribuições “estabelecer normas e critérios e padrões relativos ao controle e à manutenção da qualidade do meio ambiente com vistas ao uso racional dos recursos ambientais, principalmente os hídricos. A esse respeito, Edis Milaré afi rma

[...] note-se a ênfase dada aos recursos hídricos entre os demais recursos ambientais. Aliás, a mesma Lei também enfatiza as águas ao defi nir os recursos ambientais como sendo: “a atmosfera, as águas interiores, superfi ciais e subterrâneas, os estuários, o mar territorial, o solo, o subsolo, os elementos da biosfera, a fauna e a fl ora. (MILARÉ, 2000, p.387)

E ainda cabe referir que em 08 de janeiro de 1997 entrou em vigor a Lei Federal nº 9.433/97, conhecida como a “Lei das Águas”, com a função de instituir a Política Nacional de Recursos Hídricos e criar o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos.

A lei é composta de 57 artigos que traçam a Política Nacional de Recursos Hídricos, seus fundamentos, objetivos, diretrizes de ação e instrumentos, dando principal ênfase à outorga e à possível cobrança pelo uso desse recurso, além de especifi car quais são

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os órgãos que irão compor o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (BARROS, 2005, p.63).

Desse modo, por ter a Lei das Águas trazido transformações no tratamento legislativo da água, e também pela referência de que esse recurso natural não é infi nito, será tratada a referida lei no próximo capítulo.

7 POLÍTICA NACIONAL DE RECURSOS HÍDRICOS:LEI Nº 9.433, DE 08 DE JANEIRO DE 1997A Lei nº 9.433/97 regulamentou o artigo 21, XIX, da Constituição Federal de

1988, e instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos que cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos. A denominada “Lei das Águas” tem por fi m maior, a manutenção do desenvolvimento sustentável dos recursos hídricos, seguindo a própria orientação do artigo 225 da Constituição Federal. Além disso, visa dar uma qualidade de vida igual, ou melhor, para as futuras gerações, evitando que faltem recursos hídricos em um futuro próximo.

A Lei nº 9.433/97 tem como objetivos:

Art. 2º São objetivos da Política Nacional de Recursos Hídricos:

I - assegurar à atual e às futuras gerações a necessária disponibilidade de água, em padrões de qualidade adequados aos respectivos usos;

II - a utilização racional e integrada dos recursos hídricos incluindo o transporte aquaviário, com vistas ao desenvolvimento sustentável;

“III - a prevenção e a defesa contra eventos hidrológicos críticos de origem natural ou decorrentes do uso inadequado dos recursos naturais”.

Conforme ensina Paulo Affonso Leme Machado, a “Lei das Águas demarca concretamente a sustentabilidade dos recursos hídricos em três aspectos: disponibilidade de água, utilização racional e utilização integrada” (MACHADO, 2000, p.433).

Para Luís Paulo Sirvinskas: “busca-se, além disso, dar uma qualidade de vida igual, ou melhor, para as futuras gerações, evitando que esses recursos venham a faltar no futuro” (SIRVINSKAS, 2002, p.136).

Com base no artigo 1º da Lei nº 9.433/97, a Política Nacional de Recursos Hídricos tem, como fundamentos:

I – a água é um bem de domínio público; II – a água é um recurso natural limitado, dotado de valor econômico; III – em situações de escassez, o uso prioritário dos

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recursos hídricos é o consumo humano e a dessedentação de animais; IV – a gestão dos recursos hídricos deve sempre proporcionar o uso múltiplo das águas; V – a bacia hidrográfi ca é a unidade territorial para a implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos e atuação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos; VI – a gestão dos recursos hídricos deve ser descentralizada e contar com a participação do Poder Público, dos usuários e das comunidades.

Ao se observar o inciso I do artigo 1º da Lei, nota-se que a Constituição Federal de 1988 já havia defi nido a água como um bem público, inexistindo a partir de então, quaisquer águas privadas no âmbito do direito brasileiro.

Maria Luiza Machado Granziera explica a origem da tendência mundial à publicização dos recursos hídricos:

[...] quanto maior a importância de um bem à sociedade, maior a tendência a sua publicização, com vista na obtenção da tutela do Estado e da garantia de que todos poderão a ele ter acesso, de acordo com os regulamentos estabelecidos. No que se refere às águas, as coisas não passam de forma diferente. (GRANZIERA, 2001. p.88)

As águas são bens públicos e se classifi cam entre aqueles de uso comum do povo, um bem social. Conforme Paulo Affonso Leme Machado

se o legislador constituinte procedeu à classifi cação de meio ambiente, e sendo a água um de seus elementos constitutivos, a ela se aplica a mesma classifi cação, sendo, portanto, bem público de uso comum do povo, fazendo com que se aplique à água o enunciado do caput do artigo 225 da CF/88. (MACHADO, 2000, p.421)

Na análise do inciso II, do artigo 1º da Lei nº 9.433/97, percebe-se a conscientização de que além de ser um recurso fi nito, a água vem se tornando um bem escasso, situação já vista no fato de que, apenas 2,7% do total de água existente no Planeta Terra é água doce, aproveitável para consumo e para a irrigação. E segundo Luiz Antônio Timm Grassi

[...] hoje, com o crescimento demográfi co e econômico, multiplicam-se os usos das águas e crescem rapidamente suas demandas, embora a quantidade global disponível seja sempre a mesma. Abastecimento humano, dessedentação de animais, indústria, agricultura, navegação, geração de energia elétrica, pesca, esportes, e outros mais, são os usos que estão se intensifi cando cada vez mais tanto global quanto localizadamente. (GRASSI, apud BARROS, 2005, p.71)

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Vale lembrar também da questão da poluição dos mananciais, o que contribui para a escassez de forma qualitativa.

Com isso, por ser um recurso útil e escasso, a água passou a ter um valor econômico, propósito embasado constitucionalmente nos princípios gerais da atividade econômica, do artigo 170, VI da CF/88. A partir dessa realidade, o legislador dispôs no artigo 19 da Lei nº 9.433/97, a conexão com o dispositivo constitucional, através da cobrança obrigatória pelo uso dos recursos hídricos. Cabe esclarecer, que o que se paga, hoje, é o serviço de captação de água e seu tratamento, e não a utilização em si do recurso, apesar de ser essa a intenção maior do legislador. Ressalta-se aqui, que os valores atuais cobrados pelo serviço de tratamento e captação da água são acessíveis a todos e não são abusivos, servindo principalmente como estímulo à racionalização e como alerta ao usuário de que a água não é sua propriedade e sim um bem público comum.

O objetivo principal que se busca com o emprego da cobrança de uso dos recursos hídricos é “reconhecer a água como um bem econômico e dar ao usuário uma indicação de seu real valor” (art. 19, I, da Lei nº 9.433/97).

Nas palavras de Luis Paulo Sirvinskas: “[...] fazer com que o usuário não a desperdice, utilizando-a de forma racional. É uma forma de o Poder Público obter os recursos necessários para o fi nanciamento dos programas e intervenções contemplados nos planos de recursos hídricos (art. 19, II e III, da Lei nº 0.433/97)” (SIRVINSKAS, 2002, p.134).

A água como bem econômico está intimamente relacionada com a cobrança pelo uso dos recursos hídricos. Busca-se através deste instrumento uma maior conscientização por parte dos consumidores, utilizando-a de forma racional a fi m de que seja preservada para as gerações futuras (BARROS, 2005, p.73).

Outrossim, a cobrança pelo uso das águas, conforme o artigo 19 da Lei de Águas, possui os seguintes objetivos:

I – o reconhecimento da água como bem econômico, demonstrando ao usuário uma indicação do seu real valor (artigos 1º, II e 19, I da Lei nº 9.433/97);

II – o estímulo à racionalização do uso dos recursos hídricos (artigo 19, II, Lei nº 9.433/97);

III – a arrecadação de recursos, visando ao financiamento de programas e intervenções previstos nos Planos de Recursos Hídricos. (COMMETTI, GUERRA, VENDRAMINI, p.76)

Vem disposto nos artigos 11 a 18 da Lei nº 9.433/97 um tema de grande relevância na proteção das águas, “o direito de outorga sobre os recursos hídricos”, que regulamentam o artigo 21, XIX da Constituição Federal de 1988.

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Maria Luiza Granziera Machado defi ne que

[...] a outorga de direito de uso da água é o instrumento através do qual o Poder Público atribui ao interessado, público ou privado, o direito de utilizar privativamente o recurso hídrico. Esse instrumento de gestão tem assumido uma importância cada vez maior, à medida que a situação dos recursos hídricos, de poluição e escassez requer um controle maior por parte da União e dos Estados. (GRANZIERA, 2001, p.152)

Direito de uso é o instituto jurídico de Direito Administrativo pelo qual o poder público, União, Estados ou Distrito Federal, atribui a outrem, ente público ou privado, o direito de uso do bem público água de forma onerosa. Não se confunde com os contratos de locação, arrendamento, comodato ou até mesmo o direito real de uso que são contratos tipicamente privados (BARROS, 2005, p.86).

A água, como um bem de domínio público, deve, como princípio fundamental, ser administrada pelo próprio ente público a quem a Constituição Federal legitimou competência para administrá-la. A outorga é a faculdade de repassar esta administração a terceiros (BARROS, 2005, p.86).

O regime de outorga de direitos da utilização das águas possui dois objetivos, quais sejam garantir o controle da qualidade e da quantidade do uso dos recursos hídricos, e assegurar o exercício concreto dos direitos à acessibilidade de tais recursos naturais (artigo 11, Lei nº 9.433/97).

Em 27 de julho de 1999, na cerimônia de abertura do seminário “Água o desafi o do milênio”, realizado no Palácio do Planalto em Brasília, foram lançadas as bases do que seria a Agência Nacional de Águas – ANA: órgão autônomo e com continuidade administrativa, que atuaria no gerenciamento dos recursos hídricos.

A Agência Nacional de Águas (ANA) foi criada através da Lei nº 9.984/00, sendo uma autarquia sob regime especial com autonomia administrativa e fi nanceira e está vinculada ao Ministério do Meio Ambiente (MMA), cuja função principal é a de implementar os instrumentos da Política Nacional de Recursos Hídricos, outorgar, fi scalizar e cobrar o uso dos recursos hídricos de domínio da União (ANTUNES, 2002, p.604).

Compete à ANA criar condições técnicas para implementar a Lei das Águas (Lei nº 9.433/97), promover a gestão descentralizada e participativa, em sintonia com os órgãos e entidades que integram o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, implantar os instrumentos de gestão previstos na Lei nº 9.433/97, dentre eles a outorga preventiva e de direito de uso de recursos hídricos, a cobrança pelo uso da água e a fi scalização desses usos, e ainda, buscar soluções adequadas para dois problemas no país: as secas prolongadas (especialmente no Nordeste) e a poluição dos rios (ANTUNES, 2002, p.605).

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Conforme orientação institucional do Ministério do Meio Ambiente, a Agência Nacional de Águas tem como missão implementar e coordenar a gestão compartilhada e integrada dos recursos hídricos e regular o acesso à água, promovendo o seu uso sustentável em benefício da atual e das futuras gerações.

8 CONCLUSÃOAo concluir o presente estudo, são pertinentes algumas considerações sobre esse

importante e fascinante tema.

Apesar de todo o avanço tecnológico, de todo o conhecimento científi co adquirido durante séculos de existência, o ser humano, animal racional, não é diferente dos animais “irracionais”, e nem tão pouco superior a qualquer tipo de vida existente no Planeta Terra. Estudos científi cos comprovam que o ser humano pode viver até 28 dias sem a ingestão de alimentos, mas somente de 3 a 5 dias sem ingerir água.

Não se pode negar, que o tema “Meio Ambiente” está em voga, ou na vanguarda, como dizem alguns. Isso é salutar e visto com bons olhos por toda a sociedade. Espera-se, que assim como outros temas tido como importantes, que a preocupação ambiental não seja tema “da moda”.

A dinâmica do Direito na questão ambiental, e em particular, no que diz respeito à água, tem sido ágil no Brasil. Ao mesmo tempo em que se dispõe de uma legislação que parece adequada e aparelhada, com a criação de uma política e de órgãos competentes, a realidade demonstra a necessidade de uma ação educativa, que busque criar uma consciência coletiva de cultura prevencionista e preservacionista.

A Lei nº 9.433/97, que institui a Política Nacional de Recursos Hídricos é precisa ao considerar a água um bem de domínio público, e que está sujeita à outorga do órgão administrativo competente, concedendo-se apenas o direito de uso, com a exigência do dever de proteção. Lembra-se que outorga não signifi ca alienação, mas sim uma concessão sob determinadas condições.

A Agência Nacional de Águas (ANA), incumbida da gestão do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos como autarquia em regime especial, signifi ca um avanço capaz de garantir a implementação de uma política nacional, bem como a organização de um sistema nacional de informações sobre recursos hídricos.

A importância da instituição dos instrumentos de outorga e cobrança nas políticas de recursos hídricos no âmbito nacional e estadual, cujos propósitos principais são a racionalização, conscientização e multiplicidade de usos da água.

A cobrança do uso dos recursos hídricos dá ao usuário a real indicação de seu valor como um bem, além de incentivar o seu uso racional, coibindo o desperdício. É também uma forma de obter recursos fi nanceiros para os programas e intervenções

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contemplados nos planos de recursos hídricos. Lembra-se, que o que se paga no Brasil atualmente, são os serviços de captação e tratamento da água, diferentemente do que ocorre em países como Chile e Bolívia.

A mercantilização da água, assim como a privatização dos seus serviços de distribuição, se insere em um quadro de supremacia do capitalismo fi nanceiro internacional, que vê a água como um “novo negócio”, semelhante ao que ocorreu com o petróleo no século XX. Além dos prejuízos econômicos causados ao Poder Público, os mercados de direito de água constituem uma ameaça à própria existência dos excluídos das relações de propriedade do recurso, já que além de insumo, é um recurso vital para existência e manutenção de todo o tipo de vida.

O valor econômico adquirido pela água poderá levar, em um futuro próximo a disputas internas e externas pelo seu uso e apropriação, dado o seu caráter de bem de domínio público e de recurso natural limitado. O Brasil, por ter o privilégio de possuir uma das maiores reservas de água do planeta, poderá ser alvo de disputas e especulações, devendo estar atento à legislação em âmbito internacional.

A água, como bem de uso comum do povo, ou seja, um bem de domínio público é insuscetível de apropriação privada. Deve ainda ser usada de acordo com o interesse público e em conformidade com os critérios legislativos presentes. A União e os Estados, enquanto Poderes Públicos devem portar-se como gestores transparentes, prestando contas de sua gestão ambiental e de recursos hídricos a toda sociedade.

Também o cidadão comum deve demonstrar interesse de preservar e proteger o meio ambiente, tendo consciência de que se trata de um direito difuso, solidário, de titularidade indeterminada, que interessa às presentes e futuras gerações.

O reconhecimento da água como um direito fundamental decorre do direito à vida, constitucionalmente normatizado como o direito mais fundamental de todos os direitos do homem. O fato é que não existe vida sem água, em nenhum aspecto. A relação que existe entre o homem e a água antecede o Direito, por ser elemento intrínseco à sua sobrevivência.

E, enquanto direito fundamental, o direito à água potável e fornecida em qualidade e quantidade sufi ciente para garantir aos cidadãos uma vida compatível com a dignidade humana, é inalienável e irrenunciável. A água é a fonte da vida e seu acesso deve ser público e garantido a todos, uma vez que a água é um bem ambiental de uso comum da humanidade, prevalecendo acima de quaisquer outros interesses políticos ou econômicos.

Por fi m, como forma de incrementar a educação e estimular a conscientização sobre a importância deste tema, cabe mencionar a urgência de tornar obrigatória a disciplina de Direito Ambiental na grade curricular de todos os níveis de ensino no país, bem como do investimento em acervo bibliográfi co atualizado sobre o tema.

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A sumarização do processo: o antes, o agora e o depois ou o ir e vir dos textos legislativos

Elaine Harzheim Macedo

RESUMOA sumarização procedimental representa técnica de ajustar o processo às especificidades

do direito material, visando à justa composição do conflito. Experiências pretéritas não devem ser negligenciadas, podendo mostrar-se úteis na construção de novos mecanismos hábeis a produzir uma prestação jurisdicional efetiva e tempestiva. A secular tendência de encaminhar o processo à ordinariedade tende, periodicamente, a se fazer presente nos textos legislativos, revestidos do manto de reformas, seduzindo os operadores do direito em nome de uma simplicidade que, na essência, é e sempre será estranha ao processo, ainda que não o seja ao procedimento.

Palavras-chave: Sumarização procedimental. Técnicas de sumarização. Ordinariedade. Textos legislativos.

Shortening the duration of litigation: Before, now and after; the come and go of legislation

ABSTRACTThe shortening of the duration of litigation procedures represents a technique of adjusting

the litigation to the specificities of substantive law with the purpose of getting a fair resolution. Previous experiences should not be ignored and could be found useful when creating mechanisms to enable a more effective and timely adjudication. The trend of filling lawsuits in ordinary courts tends to be periodically seen in legislation, covered by amendments, enticing legal professionals by arousing a simplicity that is essentially not connected to the litigation process even though it is related to the procedures.

Keywords: Shorten duration of litigation. Techniques of shortening. Ordinariness. Legislation.

1 NOTAS INTRODUTÓRIASA ordinarização que inspira o processo pátrio foi e continua sendo o obstáculo, senão

principal, mais arraigado nas práticas forenses a ser vencido na construção de um novo paradigma de processo. De quatro ordens distintas são as alternativas que se revelam hábeis a produzir um processo que cumpra função jurisdicional construtiva, divorciando-se do padrão herdado da velha ordem. A primeira, que nos interessa mais de perto neste trabalho, envolve técnicas procedimentais comprometidas com a sumarização, que tanto pode atuar no plano formal do processo como no da atividade cognitiva. Comporta experiências já

Elaine Harzheim Macedo é Doutora em Direito pela UNISINOS, Mestre em Direito pela PUCRS. Professora do Curso de Graduação e Pós-Graduação lato sensu da ULBRA. Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.

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inseridas em nosso ordenamento jurídico, cuja revitalização, aperfeiçoamento e ampliação de incidência podem em muito contribuir para a viragem do processo. Quanto às demais, que aqui apenas comporta referir, ao efeito de respeitar a delimitação do tema proposto, registra-se a adoção do juízo de verossimilhança, como alternativa ao exercício do juízo de cognição e de valoração tradicionalmente identifi cado com a certeza e que reclama grau máximo de convicção (e, portanto, de conhecimento), que a tradição romano-canônica expurgou da atividade jurisdicional; a consagração da convivência, de forma equilibrada no âmbito procedimental, de duas atividades intrinsecamente distintas e que, em princípio, se excluem: a cognição e a execução; e, por derradeiro, uma radical inversão do atual sistema recursal, priorizando o juízo monocrático e as instâncias locais, e, via de consequência, reduzindo o campo de abrangência dos tribunais superiores bem como dos tribunais estaduais e regionais.

Tais plataformas não se encontram isoladas, estanques, divorciadas uma das outras, disputando, ao contrário, espaços, defi nições e instrumentos que se cruzam, encontrando pontos em comum, de modo que, na verdade, é a adoção do conjunto dessas medidas que poderá alcançar um resultado efi ciente. Algumas, como já registrado, contam com antiga tradição em nosso ordenamento jurídico e com práticas vigentes, embora aplicadas ou em caráter de exceção ou contaminadas pela ordinarização. Outras, ainda que não constituam novidades, estão desbotadas pelo desuso. Importante, contudo, registrar, que a consciência jurídica deste terceiro milênio já dá mostras, através de recentes revisões e reformas do ordenamento jurídico, da necessidade de se reverter o atual sistema. O que preocupa, ainda assim, é a que ponto tais conteúdos estão efetivamente comprometidos com a ética de mudança, sem a qual não basta alterar o texto legal, pois não raro o intérprete lê o novo com os olhos do velho, quando, fatalmente, o novo se tornará velho antes mesmo de ser novo. Ou, o que é mais grave, eventual retrocesso por força de novas leis descompromissadas com o mister de construir uma jurisdição afeita aos valores consagrados na Constituição Federal.

2 SUMARIZAÇÃO DO PROCESSOO vocábulo sumarização, no universo processual, pode traduzir dois aspectos

distintos do processo, ambos relativos a questões de técnica processual, se angularizada a questão sob a ótica de dinâmica do processo e de suas características de instrumentalidade. Na primeira acepção, a sumarização refere-se ao procedimento ou forma que o processo adquire, esgotando-se no plano processual, irrelevante a natureza do direito material tutelado. Sua utilidade está voltada, essencialmente, para a pouca expressão econômica ou menor complexidade fática do confl ito de interesses. Cuida-se de técnica processual stricto sensu, na medida em que sua adoção modifi ca os atos processuais que compõem o iter procedimental e sua tramitação, sem lhes alterar a essência. É conhecida como sumarização formal, resolvendo-se pela maior simplicidade e dispensa de requisitos na prática de certos atos processuais; pela observância, em maior grau, da oralidade; pela redução de prazos; pela concentração de atos, apenas para citar algumas previsões legislativas dessa alternativa.

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No direito pátrio a técnica de sumarização formal encontra sua principal incidência no procedimento sumário do processo de conhecimento, artigos 275 e seguintes do CPC, e nos procedimentos dos Juizados Especiais Cíveis. Além disso, sua utilização também se dá, de forma secundária, em procedimentos que se caracterizam pela segunda acepção do vocábulo, isso é, pela sumarização material, cumulando as técnicas de se desenvolver o processo. É o que ocorre, por exemplo, com os procedimentos que servem o processo cautelar, aonde o prazo de contestação vai reduzido para 5 (cinco) dias (art. 802, do CPC), além de agregar, também, uma maior concentração de atos, limitando as postulações à petição inicial e à contestação, ainda que tais simplifi cações formais decorram diretamente da limitação do debate posto, a saber, o bom direito e o risco ou prejuízo da demora (art. 801, inciso IV, CPC).

2.1 A sumarização formal goza de velha tradição no processo de origem romano-canônica, deitando suas raízes no Alto Medievo, quando o processo, desenvolvido pelos canonistas a partir da redescoberta e releitura do Corpus Juris Civilis, havia alcançado um grau de formalismo indesejado, exigindo reformas no sentido de simplifi car o seu procedimento, das quais, a mais signifi cativa, a protagonizada pelo Papa Clemente V, a famosa Saepe contingit. Fairen Guillén, destacando a importância desta obra, resumiu os princípios informantes desta sumarização de juízo em sete tópicos: a liberação da listis contestatio (que considera a medida mais importante, por razões a seguir abordadas); a limitação das apelações contra as decisões interlocutórias; a liberação da ordem legal dos atos (amplos no solemnis ordo iudiciarius); o encurtamento de prazos; poder ao Juiz de direção do processo para repelir o que fosse supérfl uo; poder de julgar, com encerramento da audiência, quando devidamente convencido; supressão de formalidades supérfl uas, priorizando a oralidade como meio de interação (1953, p.44-45).

O jurista de Valência aponta como principal causa da excessiva ordinariedade que passou a dominar o processo, a desencadear, como reação, a reforma por sua sumarização, a transformação que a litis contestatio, instituto da maior relevância no processo do direito romano clássico, sofreu ao longo dos tempos. Primeiro, por força da própria obra de Justiniano, permeada pela contradição entre homenagear a história e o passado, fazendo renascer o que já estava extinto, e a exuberante vontade inovadora que sinalizou seu império. Segundo, pela infl uência do trabalho dos glosadores, cuja insufi ciência de sentido histórico levou-os a considerar o Corpus Juris como uma unidade jurídica, dando ensejo a que os erros iniciais se sacramentassem, criando-se o mito (GUILLÉN, 1953, p.30-32).

Dessa sorte, o que era um instrumento útil especialmente nas actiones in personam, cujo direito material em jogo era o direito obrigacional, obrigando-se as partes à delimitação do objeto litigioso que pela litis contestatio se operava (cujo pronunciamento tinha presente as defesas deduzidas, limitando o debate àquelas aceitas e estabelecidas), aceitando a defi nição da fórmula imposta pelo pretor para gerir a fase subsequente do procedimento, e, como decorrência, sujeitando-se a res judicata da declaração emanada na segunda fase, culminou por imprimir ao processo que se praticou ao longo da Idade Média sua forma, despida, porém, de seu conteúdo, de sua aplicação e incidência a

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determinadas situações de direito material. Em suma, o que era especial, generalizou-se, tornando-se paradigmático, especialmente por sua adoção nas demandas reais, como explorou à saciedade Baptista da Silva em sua obra Jurisdição e execução na tradição romano-canônica.

Não se olvida, contudo, que as causas que levaram ao excessivo formalismo do processo desenvolvido na Idade Média são complexas e de diversas ordens, mas o caráter privado da jurisdição e da própria fi nalidade do processo, utilizado para confl itos de interesses privados (inexistia a noção de Estado e, portanto, o conceito de direito público era precário e pouco desenvolvido), a predominância do elemento lógico no exercício da atividade e a adoção do sistema da prova legal muito contribuíram para a ordinarização do processo e seu apego às formas.

De qualquer sorte, nessa primeira fase de adoção de formas sumárias, em contraposição ao solemnis ordo iudiciarius, as quais inúmeros estatutos medievais passaram a referir, utilizou-se o novo procedimento simplifi cado para compor confl itos que clamavam por soluções distintas, podendo ter como critério de incidência o pequeno valor da causa, a necessidade de tutela urgente, o estado de miserabilidade da pessoa, ou em razão do pequeno prejuízo. Especialmente com a Saepe contingit, foi, porém, ganhando maior abrangência o seu campo de incidência, passando a exigir um tratamento diferenciado, conforme o direito tutelado.

2.2 Tal não autoriza, porém, segundo o autor espanhol, a confundir o que ele denomina de juicios plenarios rápidos, de procedimento abreviado, e juicios sumarios, pois enquanto os primeiros se divorciam do ordinário por sua forma, atendendo demandas que, por sua índole, poderiam ser resolvidas pelo procedimento comum, isto é, o litígio sendo decidido defi nitivamente, submetendo-se ao debate e ao conhecimento toda a matéria de fundo, mas que, por traduzir pouco valor econômico ou por presumir singeleza na solução do confl ito, dispensam tratamento solene e formal, o segundo grupo contém mais do que alterações formais (que até podem estar presentes), implicando limitação em seu conteúdo, onde apenas um ponto, uma fatia, um aspecto da lide material é “recortada”, passando a conduzir o debate, a prova e a decisão. É o que nos ensina Fairen Guillén

Los medios de una simple aceleración formal del procedimiento, por su origen, estructura y fi nes, son tan diferentes de los aplicados para obtener un proceso sumario (restringiendo su contenido material a través de una limitación de los derechos de las partes con respecto a los medios de defensa), que el colocar a unos y a otros unidos como iguales enfrente del proceso declarativo ordinario, es científi camente imposible. Las pautas de “sumariedad” – evitaremos de aquí en adelante en lo posible esta equívoca palabra en cuanto referencia a los procedimientos plenarios rápidos – son perfectamente diversas en ambos grupos de tipos; no se trata de dos subgrupos yuxtapuestos bajo la denominación común de “juicios sumarios”; pues esta “sumariedad”, en los plenarios rápidos es simplemente de carácter formal, en tanto que en los sumarios propiamente dichos, tiene carácter material. De otra parte, por su fi nalidad, como hemos dicho, los

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procesos sumarios corresponden a una Parte específi ca de nuestra disciplina, en tanto que a los procedimientos plenarios rápidos no se les puede separar lógicamente del declarativo ordinario; ya que la aceleración del proceso es un principio que a todos ellos alcanza (1953, p.55-56)

Também Chiovenda distinguia, num primeiro plano, a cognição em plenária ou ordinária e sumária: no primeiro grupo a cognição se dá de forma completa, submetendo-se ao juiz o exame exauriente de todas as razões e defesas das partes; nos processos de cognição sumária este exame não é exaustivo, operando parcialmente. A partir dessa distinção, o mestre italiano classifi cava o processo de conhecimento, capaz de gerar sentenças declaratórias, constitutivas e condenatórias, como processo de cognição plenária, enquanto que a jurisdição com predominante função executiva e os respectivos processos (processos cambiais, procedimento monitório ou injuncional, processos que admitem condenação com execução provisória) eram situados no grupo da cognição sumária, distinguindo-os, contudo, do procedimento sumário, o qual identifi cava apenas como simplifi cação dos atos judiciários (1969 (I), p.236-237).

Kazuo Watanabe, aprofundando o tema da cognição, parte de uma sistematização mais ampla, distinguindo os planos horizontal, que traduz a extensão, a amplitude da cognição, e vertical, que diz com sua profundidade, a gerar combinações que podem ser concebidas em procedimentos diferenciados, conferindo ao processo um melhor desempenho voltado para a realização do direito material a ser tutelado, vinculando a cognição, o procedimento e a cláusula do devido processo legal

O direito à cognição adequada à natureza da controvérsia faz parte, ao lado dos princípios do contraditório, da economia processual, da publicidade e de outros corolários, do conceito de “devido processo legal”, assegurado pelo art. 153, § 4º, da Constituição Federal. “Devido processo legal” é, em síntese, processo com procedimento adequado à realização plena de todos esses valores e princípios.

É através do procedimento, em suma, que se faz a adoção das várias combinações de cognição considerada nos dois planos mencionados, criando-se por essa forma tipos diferentes de processo que, consubstanciando um procedimento adequado, atendam as exigências das pretensões materiais quanto à sua natureza, à urgência da tutela, à defi nitividade da solução e a outros aspectos, além de atender as opções técnicas e políticas do legislador. Os limites para a concepção dessas várias formas são os estabelecidos pelo princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional e pelos princípios que compõem a cláusula do “devido processo legal”. (1987, p.93-94)

Tais palavras, mesmo escritas sob a ótica da Constituição pretérita, em nada vêm diminuídas frente ao pacto de 1988, ao contrário, ganham maior relevância, considerando a hierarquia que os direitos fundamentais do homem alcançaram, entre os quais o próprio devido processo legal, a desafi ar o jurista e o intérprete na adoção, pelo processo, da carga de cognição adequada ao direito material em jogo.

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Sem embargo das nuanças que a sumariedade pode assumir no processo, passa a ser questão vital a adoção de um ou de outro critério (cognição plenária ou cognição sumária) para gerir o processo.

Com razão Fairen Guillén quando afi rma que a ideia de ordinariedade, em oposição à sumariedade, está atrelada ao desejo de acabar para sempre com o litígio entre as partes, orientação assimilada pelo nosso ordenamento jurídico, de modo que todas as defesas, todas as exceções, todos os debates (e, consequentemente, todas as provas: art. 332, CPC) sejam postos e explorados numa única relação processual, com pronunciamento judicial capaz de produzir o acertamento de todas as controvérsias, qualifi cando-se pela indiscutibilidade (instituto da coisa julgada: art. 474, CPC). Trata-se, contudo, de ideal infl uenciado pelo pensamento iluminista, tudo se resolvendo através da racionalização do conhecimento e mediante a adoção de métodos rígidos, formais e previamente conhecidos, implacavelmente afeitos a descobrir a verdade, que, em última análise, é o escopo, segundo tal padrão, da jurisdição porque o direito é preconcebido na lei. Tema recorrente, que traduz a predominância da generalização sobre o especial, pelas razões antes apontadas, e do qual tem se revestido à exacerbação o processo comum e sua ordinarização.

Sob o manto da priorização da verdade e da certeza, caiu em ostracismo uma relação indispensável para a efetividade do processo, que Marinoni, seguindo a linha de pensamento de Baptista da Silva, resume com precisão

Para que o processo possa, realmente, tutelar os direitos é necessário que a ação seja pensada na perspectiva de direito material. Se o processo objetiva tornar efetivo o direito material, o resultado da ação processual deve corresponder exatamente àquilo que se verifi caria se a ação de direito material (= o agir) pudesse ser realizada. A ação processual, em outras palavras, deve ser uma espécie de realização da ação privada, ou seja, da ação que foi proibida quando o Estado assumiu o monopólio da jurisdição. (1999, p.206)

Trata-se de orientação que resgata o princípio até então estabelecido pelo art. 85, do Código Civil revogado, o que não signifi ca comprometimento com a teoria civilista da ação, porque o direito afi rmado, sob cuja ótica deve ser interpretada a predita disposição, reclama, como sempre reclamará, de um reconhecimento, de um acertamento, implícita esta atividade judicial em qualquer pronunciamento, por maior ou menor extensão que possa ter. Entre o que se afi rma e o que se passa a ter como existente há um percurso que os fi liados à posição doutrinária aqui defendida não negam, ao contrário, reafi rmam.

A substancialidade que se pretende carregar para o processo não tem o condão de transformar a relação processual em relação de direito material ou mesmo em ação material, correspondendo a planos distintos, que se sobrepõem de forma paralela, jamais se interligando, isso é, sem operar entre os mesmos uma simbiose. Dizendo de outro modo, o processo, para que se torne efetivo, deve guardar correspondência ao direito material perseguido pela parte que se sentiu lesada e porque lhe foi retirado o poder de autotutela. E

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essa correspondência signifi ca assegurar não só a pretensão à tutela jurisdicional (nenhuma lesão ou ameaça a direito será subtraída da apreciação pelo Poder Judiciário), mas também à adequada tutela jurisdicional (ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal), cumprindo à legislação processual e aos intérpretes seguirem tais princípios consagrados como direitos fundamentais do homem pela Constituição. E, nas palavras de Marinoni, falar em tutela adequada é traduzir “a necessidade de procedimento, cognição, provimento e meios executórios adequados às peculiaridades da pretensão de direito material” (1999, p.215).

É preciso, porém, registrar que a sumariedade no processo vem abordada sob nuanças distintas, o que o tema até certo ponto permite. Assim, enquanto Kazuo Watanabe e Marinoni orientam-se pela sumarização procedimental, que ocorre no sentido de melhor instrumentalizar determinadas demandas de direito material, operando como técnica interna ao procedimento, Baptista da Silva vai além, defendendo a sumarização no processo comum, como forma de encurtar, diminuir, enxugar discussões e debates, remetendo parte da lide para eventual e futura oportunidade, a exemplo do que acontece com os procedimentos que transferem o contraditório para iniciativa do demandado e para momento posterior ao da ação promovida pelo autor. Trata-se, portanto, de propostas que não se excluem, mas, ao contrário, somam-se.

2.3 Neste universo, falar em cognição é conviver, também, com as técnicas que levam à sumarização da atividade cognitiva, priorizando, em razão do direito material subjacente, apenas algumas “fatias” do confl ito de interesses, em detrimento de outras, cuja apreciação, porque assegurado o livre acesso e a não exclusão de qualquer lesão a direito à apreciação pelo Poder Judiciário, até poderá ser objeto de pronunciamento judicial, mas em outro feito, em outro momento, em outro juízo. Pela ótica do corte de conhecimento avalia-se o confl ito de forma angularizada, limitando-se o debate, ao qual fi cam adstritas as alegações e defesas, as provas, o provimento judicial. O que escapa desse ângulo, não é acertado, não é declarado, não transita em julgado e poderá ser objeto de nova demanda, de outro acertamento, com ou sem refl exo sobre o primeiro pronunciamento.

É assim que acontece – ou deveria acontecer – com a tutela possessória, por exemplo. Ao tutelar-se a posse do possuidor agredido, ainda que o agressor tenha sido o proprietário do bem, não se retira desse a garantia de vir buscar em pleito próprio – demanda petitória – a tutela à sua condição de proprietário. Mas enquanto a posse, como exercício fático sobre a coisa, sofre agressão (esbulho, turbação, ameaça), tutela o sistema aquele que a exerce através dos interditos possessórios, tradicionalmente contemplados no direito positivo, o que perdura até que em ação própria venha a ser declarado que essa posse – fato assim reconhecido naquele feito – qualifi ca-se pela injustiça, ausente qualquer título que a legitime, face à propriedade de outrem.

Vale dizer, em ação possessória não se discute a justiça ou injustiça da posse, mas tão-somente sua existência fática agredida. Tais princípios – norteadores dos respectivos bens tutelados e contemplados pela legislação pátria – respondem a uma tradição milenar da dicotomia entre a tutela da posse e a tutela da propriedade, que a pós-modernidade não logrou substituir por outros valores. A posse – e, portanto, sua tutela – é ínsita a

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qualquer coletividade que pretenda ter um mínimo de convivência pacífi ca e harmônica. Já a propriedade é um direito que pode ou não ser reconhecido pela coletividade, a refl etir-se normativamente no respectivo ordenamento jurídico. Em sendo albergado, merece como qualquer outro direito assegurado, tutela, mas nem por isso restará a tutela da posse enquanto posse exercida diminuída em sua indispensabilidade à convivência do grupo social.

Quando se afi rma, como se afi rmou antes, que a ordinariedade avança e se sobrepõe à especialidade ou sumariedade, por força de ideias que permeiam o conhecimento e a prática jurídicos, contaminadas pelos princípios e dogmas racionalistas, também na questão da dicotomia posse e propriedade os exemplos se mostram apropriados, especialmente na interpretação que se deu e continua se dando ao art. 923 do código, quando teve sua segunda parte (“Não obsta, porém, à manutenção ou à reintegração na posse a alegação de domínio ou de outro direito sobre a coisa; caso em que a posse será julgada em favor daquele a quem evidentemente pertencer o domínio”) suprimida pela Lei nº 6.820/90. A drástica supressão, restabelecendo a sumariedade das ações possessórias, sempre encontrou forte resistência nos operadores do Direito, valendo-se da Súmula nº 487 do Pretório Excelso (“Será deferida a posse a quem, evidentemente, tiver o domínio, se com base neste for ela disputada”), ainda vigente e inspirando decisões, que não correspondem a meros casos isolados, podendo ser encontrados inúmeros exemplos em qualquer obra de comentários ou de anotação à legislação processual. As seguintes citações de Theotonio Negrão, entre outras, a propósito do art. 923, do CPC, dão conta disso

A consequência prática desta disposição será que o possuidor não proprietário, desde que ajuíze ação possessória, poderá impedir a recuperação da coisa pelo seu legítimo dono; fi cará este impedido de recorrer à reivindicação, enquanto a possessória não estiver defi nitivamente julgada.

Como esta conclusão parece absurda, embora fundada na letra clara da lei, a doutrina e a jurisprudência têm reagido contra ela.

Assim, em RT 507/194, por maioria, fi cou decidido que o réu na possessória pode ajuizar reivindicatória contra o autor desta (no mesmo sentido: TFR-2ª Turma, AC 59.378-RJ, rel. min. Gueiros Leite, j. 17.12.82, deram provimento, v.u. (DJU 7.4.83, p.3.996)

O próprio Supremo, afastando a pecha de inconstitucionalidade do art. 923, em sua primeira parte, âmbito a que se limitou o debate, deixou antever, principalmente no voto do Min. Cordeiro Guerra, que o art. 923 “tem que ser interpretado de modo a não privar o proprietário do seu direito à reivindicação”, orientando-se na linha do entendimento do SIMP, cuja conclusão LXXIII está assim ementada: “O art. 923, 1ª parte, só se refere a ações possessórias em que a posse seja disputada a título de domínio”.

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Da reunião da possessória e reivindicatória para igual tratamento à usucapião, a distância é mínima

Não há incompatibilidade entre a reintegração de posse e a ação de usucapião, podendo as duas ser movidas simultaneamente, se nesta o autor alega posse velha, sufi ciente para a aquisição por prescrição extintiva, e naquela declara que perdeu a posse depois de decorrido tempo sufi ciente para ter adquirido por usucapião (RJTJESP 124/297) (NEGRÃO, 1999, p.809)

Tais posições jurisprudenciais estão no alinhamento daqueles que veem a jurisdição como função declarativa (= dizer a vontade da lei), priorizando a certeza na busca da verdade (= como se tal fosse possível por obra humana), cujo espaço processual ideal se realiza pelo procedimento ordinário, onde se agrega à plenariedade formal a plenariedade substancial, possibilitando-se, no seu curso, a produção de todas e quaisquer defesas, sob pena até de se ter por deduzidas e conhecidas aquelas que poderiam, mas que não foram deduzidas (art. 474), bem como todos os meios de prova admitidos em direito, ainda que não expressamente previstos ou regulados pela lei processual (art. 332). Trata-se de posição que parte do pressuposto que a sentença, enquanto declaração, está revestida de plenitude, de exaurimento das questões submetidas a juízo, infensa ao erro, olvidando-se o intérprete que foram necessários mais de duzentos anos para que se concluísse que a lei não é plena, que a lei encontra limites, lacunas, contradições, imperfeições, que a lei pode ser injusta.

Repete-se, pois, em nome do apego ao pensamento fi losófi co racionalista, o mesmo equívoco, agora pretendendo que a sentença venha revestida daquelas características que fi zeram, até um passado ainda recente, afi rmar-se que o juiz é a boca da lei. Que tempo será necessário para concluir-se que também os pronunciamentos judiciais se revestem de limitações e contingências, caracterizando-se como produto humano emergente de um processo produzido pelos seus partícipes, sujeitos tanto o instrumento como o resultado ao erro, à falha, à limitação, à injustiça?

Mas o sistema está repleto de armadilhas que levam o operador a se comportar negando essa realidade, como se o processo pudesse reunir um conjunto de forças aptas, por si só, a resolver todos os confl itos e todas as questões de forma imaculada e perfeita para todo o sempre. E é sob essa ótica que se corre o risco de avaliar a garantia constitucional da plenitude de defesa, ínsita ao processo criminal, mas não necessariamente ao processo civil, atrelando-a como indispensável ao princípio do contraditório, o que deve ser fortemente rechaçado. É nesse diapasão a denúncia de Baptista da Silva

Ou seja, não nos limitamos a inserir em nosso ordenamento jurídico o instituto peculiar ao direito norte-americano conhecido como “devido processo legal”, senão que lhe adicionamos um ingrediente bem brasileiro: o due process of law, ao contrário do que ocorre na América do Norte, aqui exigirá “plenitude de

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defesa”, a impor a supressão dos juízos de verossimilhança; a cortar as liminares e a consagrar, portanto, a ordinariedade formal e a plenariedade da lide. Enquanto no direito americano, o princípio de “devido processo legal” nem de longe interfere com os juízos prima facie, permitindo e, mais do que isso, até estimulando a concessão de liminares, nosso “devido processo legal”, tal como está inscrito no texto constitucional, ao contrário, sugere que sua observância haverá de assegurar plenitude de defesa ao demandado.

[E prossegue:]

Devemos concluir que o legislador constituinte, ao transportar para o processo civil e administrativo o princípio que o direito brasileiro, até então, limitara exclusivamente ao processo penal, manteve-se fiel ao mesmo pressuposto ideológico que já havia, no Código de 1973, ceifado os procedimentos especiais e plenarizado todas as demandas.

Temos, assim, pelo que já fi cou dito, uma conjunção de fatores harmoniosamente orientados para o valor segurança ou, talvez, pudéssemos dizer, para o valor justiça-segurança, a ser obtida através de um processo – não importa qual o tempo que ele haverá de durar – orientado no sentido de uma composição plena, absoluta e defi nitiva da lide. (2001, p.98)

A frustração é dobrada: nem se logra celeridade, nem se alcança a pretendida perfeição. Toda a empreitada cai por terra, desencadeando um sentimento generalizado de fracasso. O preço pago é a não realização dos direitos fundamentais individuais e sociais do homem, criando-se um círculo vicioso cujo rompimento se mostra distante e inatingível. Daí porque afi rmarmos que a construção de um novo paradigma começa pela adoção da sumarização, a ser fi rmada e reafi rmada no processo vigente, resgatando-se o disposto no art. 75, do Código Civil de 1916, regra de natureza principiológica, desimportando, portanto, não ter sido expressamente contemplada pelo novel estatuto das relações civis, hoje em vigor.

Mas sumarizar a atividade cognitiva implica necessariamente reduzir as defesas e, via de consequência, rejeitar a incidência do princípio da ampla defesa. Não estaria essa afi rmativa contrariando o disposto no art. 5º, inciso LV, da Constituição Federal? E, dessa forma, contrariando tudo que se tem afi rmado, isto é, que a jurisdição, por força do pacto social, está e deve estar comprometida com os direitos fundamentais do homem? A resposta a essas perguntas passa por uma afi rmação do sentido histórico das expressões “ampla defesa” e “meios e recursos a ela inerentes”, bem como pela avaliação da compreensão dos direitos fundamentais dentro de um amplo espectro tal como ocorre com o art. 5º da Carta de 1988, cuja colisão não é descartada. Em outras palavras, há que se admitir que inexistam direitos, nem mesmo os fundamentais, absolutos.

No tocante à colisão de direitos, revela-se importante a lição que se extrai de Alexy sobre a colisão de princípios, expressão por ele contestada por entender que mais correto é reconhecer um “campo de tensão”, e que deve ser superado não pela simples sobreposição hierárquica de um sobre outro nem pela eliminação de um deles, mas sim pela limitação

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da possibilidade jurídica que um impõe ao outro, o que apenas as circunstâncias fáticas poderão indicar

La solución de la colisión consiste más bien en que, teniendo en cuenta las circunstancias del caso, se establece entre los principios una relación de precedencia condicionada. La determinación de la relación de precedencia condicionada consiste en que, tomando en cuenta el caso, se indican las condiciones bajo las cuales un principio precede al otro. Bajo otras condiciones, la cuestión de la precedencia puede ser solucionada inversamente.

[E continua:]

Esta ley, que será llamada “ley de colisión”, es uno de los fundamentos de la teoría de los principios aquí sostenidos. Refl eja el carácter de los principios como mandatos de optimización entre los cuales, primero, no existen relaciones absolutas de precedencia y que, segundo, se refi eren a acciones y situaciones que no son cuantifi cables. Al mismo tiempo, constituye la base para restar fuerza a las objeciones que resultan de la proximidad de la teoría de los principios con la teoría de los valores. (1993, p.92-95)

É ainda de Alexy o ensinamento que as disposições de direito fundamental podem ser consideradas não apenas como positivadoras de princípios, mas também como expressão de uma intenção de estabelecer determinações frente às exigências de princípios contrapostos, de sorte que aquelas (as disposições) adquirem um caráter duplo, traduzido em princípios e regras, sendo essas últimas, em geral, incompletas, nada impedindo, porém, a constituição de uma norma fundamental que goze das duas características, isto é, quando o enunciado inclua tanto o princípio, que é geral, como a cláusula restritiva,1 concluindo o professor de Gotinga que

No basta concebir las normas de derecho fundamental sólo como reglas o sólo como principios. Un modelo adecuado al respecto se obtiene cuando a las disposiciones iusfundamentales se adscriben tanto reglas como principios. Ambas pueden reunirse en una norma de derecho fundamental con carácter doble (1993, p.138)

Não se exaure aí o trabalho a ser desenvolvido para a concretização dos direitos fundamentais, pois também ganha relevância o reconhecimento de que princípios e valores estão relacionados entre si, podendo se falar, a exemplo da colisão dos princípios e indispensável ponderação dos mesmos, em colisão de valores e necessidade de serem os mesmos ponderados, o que demonstra a importância do trabalho do intérprete e sua infl uência sobre o resultado obtido, porque inegáveis o caráter deontológico dos princípios

1 Exemplo dessa situação o inciso LXVII do art. 5º da CF: “Não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infi el”.

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e o axiológico dos valores, ponto, aliás, que os distingue, segundo o autor referido, de modo que se pode admitir argumentação jurídica a partir de um ou de outro, embora a adoção dos princípios esteja mais afeita ao mundo do Direito, porque expressam claramente o caráter do dever ser e, também, porque restringem a produção de falsas interpretações (ALEXY, 1993, p.147).

Presentes essas objeções e limitações que subjazem no trabalho do intérprete, que interessa, no particular, quanto à ponderação dos princípios constitucionais da ampla defesa e do devido processo legal como inspiradores do processo, na medida em que admitida a técnica de sumarização como critério do devido processo legal ao efeito de produzir jurisdição adequada às especifi cidades das relações de direito material confl ituosas, impõe-se concluir que sumarização e ampla defesa não coabitam. Ao acolher-se uma, rejeita-se a outra. O embate, portanto, mesmo que se apresentando como confronto entre sumarização e ampla defesa, refl ete na verdade o confronto entre os princípios constitucionais do devido processo legal e da ampla defesa.

Ponto fundamental para a superação dessa discussão está em estabelecer qual sumarização deve ser adotada para o caso concreto ou, em outras palavras, qual o devido processo legal. Uma vez superada a forma de sumarização, a defesa passará a ser praticada amplamente, mas nos termos previamente limitados pela sumarização. Assim, por exemplo, quando nas ações possessórias, irrelevante se ação de força nova ou força velha, limita-se o debate às questões possessórias, de seu âmbito excluído tudo o que refere ao reconhecimento de domínio (arts. 923 e 924, CPC). Quanto à posse, porém, serão admitidas alegações e provas por todos os meios admitidos em direito, tais como documentais, periciais, depoimentos, testemunhas, etc., como também assegurados prazos e atos processuais comuns (art. 931, CPC). Em sendo possessória de força nova (art. 924, primeira parte, CPC), a antecipação de tutela cabível não é a do art. 273 do estatuto de formas, que requer para seu reconhecimento a prova inequívoca dos fatos alegados, a ensejar alto grau de verossimilhança, agregada à alegação e prova pelo autor do perigo da demora, mas sim a antecipação de tutela específi ca do art. 928, que pede tão-somente prévia instrução compatível com os fatos alegados (o texto fala “devidamente instruída”), que tanto pode ser através de documentos, a autorizar a liminar já com o recebimento da petição inicial, como mediante prova testemunhal, a ser produzida em sede de audiência de justifi cação, excluindo a discussão sobre o perigo da demora, irrelevante para a concessão do interdito.

O estabelecimento da sumarização por vezes vem contemplado, conforme exemplos referidos, expressamente no ordenamento jurídico vigente, correspondendo a tradicionais práticas processuais e até resistindo, não sem tropeços, à onda de ordinarização que o racionalismo jurídico impôs ao processo moderno, encontrando, mais precisamente no direito pátrio, sua principal incidência nos procedimentos especiais do Livro IV do CPC e também na legislação extravagante, cujo exemplo maior é o mandado de segurança.

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3 TÉCNICAS DE SUMARIZAÇÃO MATERIALRevela-se pertinente destacar quais as técnicas ou formas de sumarização mais

correntes em nosso direito, adotada uma abordagem conceitual e limitada à sumarização material, identifi cada pelos doutrinadores como caracterizadora das ações sumárias ou ações sincréticas, sem embargo do reconhecimento de outras técnicas, como ocorre na sumarização formal. Exatamente por estar se angularizando a problemática da cognição sob o enfoque procedimental, que Kazuo Watanabe destacou com tanta precisão (1987, p.13-14), se agrupará essas formas pelos procedimentos que as identifi cam:

3.1 Procedimentos interditaisOs procedimentos interditais deitam suas raízes no direito romano clássico se

confundindo, de um modo geral, no direito hodierno, com as tutelas de urgência ou pelo menos com um grupo delas. Seu principal traço estava em produzir um comando, positivo ou negativo, de cunho mandamental, a partir de determinados pressupostos de fato a serem oportunamente acertados, marcado por isso mesmo por características publicistas e pela maior intensidade de exercício de poder discricionário da autoridade pretoriana.

O direito brasileiro reconhece com características interditais os procedimentos que correspondem às seguintes ações: ações possessórias (reintegração, manutenção e interdito proibitório), ação de busca e apreensão do Decreto-lei nº 911/69, ação de desapropriação, para fi car com as mais tradicionais. Tais procedimentos têm em comum a previsão de liminar a ser concedida mediante o exercício de uma cognição sumária, limitada, que se apoia exclusivamente nos fatos alegados pelo autor e na prova que este produz, onde o contraditório ou não se faz presente ou se realiza de forma franciscana, como na hipótese do art. 928, do CPC, quando designada audiência de justifi cação para que o autor, sedizente possuidor agredido em sua posse, possa provar os fatos alegados através de prova testemunhal, para cujo ato o réu será citado, mas tão-somente ao efeito de comparecer e acompanhar a produção da prova oral requerida por seu adversário, não podendo ele, réu, deduzir defesas ou produzir provas em favor de suas teses.

Não é diferente com a liminar de imissão de posse na ação de desapropriação, que condiciona sua concessão à alegação de urgência, por parte da autoridade expropriante, não submetida ao crivo judicial (arts. 9º e 20, do Decreto-lei nº 3.365/41), e ao depósito do preço arbitrado pelo juiz, arbitramento este que tem por fundamento basicamente as alegações fáticas da parte autora, pois é emitido antes da instauração do contraditório, ou seja, juízo formado em cognição sumária e com forte grau de discricionariedade.

Por derradeiro a liminar da ação de busca e apreensão do Decreto-lei nº 911/69, cujo art. 3º, caput, é draconiano: “O proprietário fi duciário ou credor poderá requerer contra o devedor ou terceiro a busca e apreensão do bem alienado fi duciariamente, a qual será concedida liminarmente, desde que comprovada a mora ou inadimplemento do devedor”.

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As características dos procedimentos interditais não se esgotam na ordem liminar, que goza de império, força, comando, sujeito o seu cumprimento ao uso da força policial se necessário, também qualifi cando a sentença fi nal, prolatada após a abertura do contraditório e da defesa do demandado, cujo conteúdo maior deixa de ser o provimento declarativo tão típico da jurisdição tradicional para se amoldar à igual feição da liminar, isso é, qualifi car-se pela força executiva (executiva lato sensu, no dizer de Pontes de Miranda) ou mandamental, conforme a natureza do direito material tutelado exigir ou não a participação do réu em sua satisfação. Isso signifi ca dizer que os procedimentos interditais têm como função jurisdicional ordenar ou executar, divorciando-se da função declarativa ínsita ao procedimento plenário, compondo o confl ito de direito material de forma a disponibilizar desde logo o bem da vida perseguido pelo autor.

3.2 Procedimentos documentais Cuida-se de forma de sumarização que atua diretamente sobre os meios de prova,

limitando o debate aos fatos documentalmente demonstrados. Sua incidência reduz o iter procedimental à fase postulatória, tornando inócua e dispensável qualquer dilação probatória, o que já traduz por si só o ganho temporal que tais procedimentos autorizam, pois, cediço, no campo probatório assenta-se a fase mais morosa e também custosa do processo, dando margem a inúmeros incidentes, recursos, discussões periféricas. Sua origem remonta à Idade Média, época em que se desenvolveu o procedimento documental de maior signifi cado para o direito processual, qual seja, o processo cambiário, destinado a tutelar créditos privilegiados e cuja evolução desencadeou o atual processo de execução por créditos.

Merece, aliás, atenção a progressão do processo cambiário, inicialmente caracterizado pela cognição sumária, mas que culminou não só alcançando autonomia em relação ao processo de conhecimento, como também se fazendo defi nir por uma cognição rarefeita ou eventual, como reconhece Kazuo Watanabe (1987, p.83), ao contrário de Pontes de Miranda, que chegou a negar a presença de cognição em seu âmbito, remetendo-a integralmente às ações declaratória, de condenação, constitutiva ou de mandamento (1995 (I), p.112). A lição a ser extraída é que, ao efeito de tutelar adequadamente créditos – direito subjetivo da maior relevância numa sociedade inspirada pelos princípios do Estado liberal, onde imperam os interesses do capital – renunciou-se ao dogma de que a jurisdição é declarativa e que ao juiz é dado (apenas) o poder de declarar a lei, poder esse a ser exercido predominantemente em processo destinado a expurgar defi nitivamente o confl ito do seio social, atribuindo-lhe, pelo menos nos sistemas onde a execução é jurisdicional, o poder de expropriar o patrimônio do devedor, através de atos executórios, vedada a prática de alegações, defesas, dilações probatórias e consagrando o exercício de uma cognição tão restrita que os doutrinadores oscilam em qualifi cá-la como inexistente ou como tênue, rarefeita, eventual. Em suma, a técnica da sumarização levada ao extremo para tutelar créditos obrigacionais. A previsão de embargos não infere o que foi dito, ao contrário, confi rma-o, pois se trata de ação, a ser provocada pelo executado.

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Mas o ordenamento jurídico brasileiro não se ressente de previsão de procedimentos documentais, destacando-se, por sua importância no conjunto de tutelas dos direitos individuais e sociais, o mandado de segurança. É o próprio texto constitucional que impõe, como requisito de seu cabimento, a liquidez e certeza do direito alegado e, em tese, afetado por ato de ilegalidade ou abuso de poder de autoridade. Liquidez e certeza traduz-se por fato desde logo provado, demonstrado, fato inquestionável, ou seja, fato documentalmente provado.2

Essa sumariedade no campo probatório, reduzindo o debate àqueles fatos documentalmente demonstrados, autoriza procedimento que se exaure entre a postulação do impetrante, as informações do impetrado, o parecer do Ministério Público e a prolação imediata da sentença, atendendo a exigência de celeridade da tutela judicial contra ofensa praticada por autoridade a direitos subjetivos evidentes, pena de desequilíbrio no Estado de Direito. Por isso mesmo o mandado de segurança é considerado instrumento de freios e contrapesos no exercício dos poderes instituídos, conforme já tivemos oportunidade de afi rmar

O mandado de segurança não é apenas mais uma ação a enfi leirar as diversas ações jurisdicionais reguladas pela legislação ordinária. Cuida-se de instituto constitucional, confi gurando forma material de controle do poder político, não devendo os juristas que o enfocarem perder de vista essa natureza constitucional, sob pena de enfraquecimento do remédio histórico. Nesse sentido, a Carta Magna de 1988 avançou no tempo, ao criar a fi gura do mandado de segurança coletivo, que nada mais é que o velho mandado de segurança com legitimação substitutiva, na medida em que as instituições arroladas no inc. LXX do art. 5º da CF poderão propor o writ em nome próprio, mas em defesa de direito alheio, qual seja de seus associados, membros ou fi liados. Trata-se, sem dúvida, de forte progresso, na medida em que neste fi nal de século vimos, cada vez com mais frequência, a transmutação de direitos fundamentais da esfera exclusivamente individual para a esfera coletiva, estando à evidência, os organismos representativos mais aparelhados para enfrentarem demandas processuais de porte signifi cativo.

2 Sobre o sentido da expressão constitucional direito líquido e certo, importante lição vem de Costa Manso, em voto magistral proferido em 1936, venia concessa daqueles que defendem que a expressão liquidez e certeza está qualifi cando o direito positivo em abstrato, conforme cita Celso Agrícola Barbi, em sua obra monográfi ca Do mandado de segurança (1980: 88-81): “O remédio judiciário não foi criado para a defesa da lei em tese. Quem requer o mandado defende o ‘seu direito’, isto é, o direito subjetivo reconhecido ou protegido pela lei. O direito subjetivo, o direito da parte, é constituído por uma relação entre a lei e o fato. A lei, porém, é sempre certa e incontestável. A ninguém é lícito ignorá-la, e com o silêncio, a obscuridade, a indecisão dela não se exime o juiz de sentenciar ou despachar (Código Civil, art. 5º, da Introdução). Só se exige prova do direito estrangeiro ou de outra localidade, e isso mesmo se não for notoriamente conhecido. O fato é que o peticionário deve tornar certo e incontestável, para obter mandado de segurança. O direito será declarado e aplicado pelo juiz, que lançará mão dos processos de interpretação estabelecidos pela ciência para esclarecer os textos obscuros ou harmonizar os contraditórios. Seria absurdo admitir se declare o juiz incapaz de resolver ‘de plano’ um litígio, sob o pretexto de haver preceitos legais esparsos, complexos ou de inteligência difícil ou duvidosa. Desde, pois, que o fato seja certo e incontestável, resolverá o juiz a questão de direito, por mais intrincada e difícil que se apresente, para conceder ou denegar o mandado de segurança”.

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Entretanto, são ainda as características processuais de sumariedade procedimental que revestem esse instituto de natureza de direito constitucional-processual em forte instrumento de freios e contrapesos. (MACEDO, 1993, p.289-290)

O mandado de segurança não esgota sua especialidade procedimental na redução da prova, servindo-se também de provimento judicial de conteúdo mandamental, seja em sede de antecipação de tutela (art. 7º, inc. II, Lei nº 1.533/51), seja em sede de sentença fi nal, o que hoje é um consenso na doutrina pátria, mas que sempre foi defendido por Baptista da Silva

A ação de mandado de segurança, como vimos pelo que acaba de ser dito, é uma ação mandamental, criada pelo direito brasileiro, sem similar em outros sistemas jurídicos, por meio do qual todo aquele que se vê ofendido, ou ameaçado de sê-lo, em seus direitos, por ato arbitrário de uma autoridade pública, seja porque esse comportamento do agente confi gure uma ilegalidade, seja por caracterizar um abuso de poder, obterá uma sentença ordenando a imediata cessação do ato impugnado através da ação e, sujeitando o responsável, em caso de desobediência, a processo e condenação criminal, ou a outras consequências punitivas. (1990 (II), p.269)

A natureza mandamental constitui importante característica, que tanto encontra inspiração nos antigos interditos romanos como na fi gura do habeas corpus, de tradição anglo-americana, ao qual se assemelha como ação jurisdicional, mas que não decorre da redução probatória responsável pelo enquadramento do mandado na classe dos procedimentos documentais, razão pela qual será mais bem explorada em seção distinta, quando do enfrentamento das efi cácias sentenciais na instrumentalidade da função jurisdicional.

A Constituição de 1988 nos oferece outro instituto processual de defesa dos direitos individuais, o habeas data, que guarda ou deve guardar semelhanças procedimentais com o mandado de segurança, isso é, alimentar-se dos mesmos traços e características que se opõem à ordinariedade (procedimento documental e de efi cácia mandamental). Isso porque representa instrumento hábil a equilibrar o poder daqueles que detêm a informação sobre o particular, dela podendo fazer uso, e o particular, a quem é assegurado o direito de obter a informação ou de retifi cá-la, quando não corresponder à realidade dos fatos, na preservação de seu direito à privacidade e a tutela de seu nome na sociedade. Tal imposição (de sumariedade) vem do próprio texto constitucional, na medida em que se ressalva ao particular buscar o seu direito pelas vias ordinárias, se essa for sua opção, conforme dispõe o art. 5º, inciso LXXII, em sua alínea “b”, parte fi nal: “para retifi cação de dados, quando não se prefi ra fazê-lo por processo sigiloso, judicial ou administrativo”. Em outras palavras, o habeas data deve ser especial, sem prejuízo da parte buscar a tutela pelas vias ordinárias, que, rigorosamente, sempre estiveram a seu alcance, mesmo antes da previsão constitucional específi ca.

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Nesse diapasão, a Lei nº 9.507/97 estabeleceu procedimento administrativo prévio, bastante singelo e célere, como forma de documentar a recusa de fornecer a informação devida ou de retifi car registros equivocados, conforme arts. 2º a 4º, legitimando o interessado a se valer do procedimento sumário, documental e mandamental do habeas data, conforme art. 8º e parágrafo único do predito estatuto legal, isto é, fazendo-se a petição inicial acompanhar dos documentos comprobatórios ou da recusa ao acesso das informações, ou da recusa em fazer-se a retifi cação ou anotação pretendida pelo requerente.

Já a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça caminhava neste mesmo sentido, tanto é assim que foi editada a Súmula nº 2, com a seguinte redação: “Não cabe o habeas data (CF, art. 5º, LXXII, a) se não houve recusa de informações por parte da autoridade administrativa”. A exigência de prévia recusa tem o efeito maior exatamente de afastar a dilação probatória, que seria inevitável na hipótese de tornar-se fato controvertido.

3.3 Procedimentos monitórios ou injuncionais Trata-se de procedimentos desenvolvidos para tutelar direitos creditícios. Sua

principal tônica está em valorizar o juízo de verossimilhança do crédito alegado, o que se dá por três mecanismos distintos: o primeiro, emanação de ordem de pagamento, isto é, comando judicial impositivo; o segundo, inversão do contraditório, que passará a ser de iniciativa do réu, cabendo ao demandado o ônus de provocá-lo; e o terceiro, previsão de execução provisória, satisfazendo-se desde logo o crédito ou, na pior das hipóteses, antecipando parcialmente sua execução futura. Nesse sentido, a verossimilhança dos fatos alegados pelo autor tem o efeito de inverter as posições, colocando no pólo ativo a presunção da verdade, enquanto no procedimento comum essa presunção só é adquirida após o silêncio ou omissão do réu, ao deixar de contestar a ação que lhe é proposta (art. 319, CPC).

Se a natureza do ato judicial de ordem e a própria execução provisória constituem técnicas utilizadas em outros procedimentos sumários, não confi gurando propriamente uma novidade, a inversão do contraditório, especialmente se aliada a outros cortes de conhecimento, como a limitação do debate, excluindo-se da defesa determinadas questões, transforma-se em importante mecanismo em resgatar formas alternativas à atividade jurisdicional, divorciando-se do procedimento comum e de sua ordinariedade.

A bem da verdade, necessário registrar que o procedimento monitório que o direito pátrio passou a contemplar a partir da Lei nº 9.079/95, com a introdução dos artigos 1.102a, 1.102b e 1.102c no estatuto processual, também se maculou desse tratamento “ordinarizante”, em especial pela absoluta ausência de previsão de formas específi cas de execução provisória, negando a própria história e tradição do procedimento no direito europeu continental, onde, curiosamente, inspirou-se o modelo.3

3 O tema foi por nós explorado mais detalhadamente na obra Do procedimento monitório (1998).

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3.4 Procedimentos cautelares Talvez seja os procedimentos cautelares um verdadeiro ícone da sumarização

procedimental e, de todos os anteriores, os mais respeitados como tais pelos operadores do Direito, embora isso não signifi que dizer que estejam infensos a sofrer as infl uências da ordinarização. A função de garantir um bom direito posto sob ameaça de grave prejuízo sempre exigiu da jurisdição a devida adequação processual, que se faz tanto no plano material como no formal. Neste último, traduzindo-se por um iter célere e simplifi cado, com concentração de atos e prazos curtos. No plano material, a sumarização se dá quer no sentido vertical, ao prever liminar em favor do autor, como no horizontal, reduzindo o objeto cognoscível ao extremo, na medida em que remete para o processo principal, já instaurado ou a ser promovido, a discussão da demanda de direito material.

Também para Kazuo Watanabe as ações cautelares e seus respectivos procedimentos constituem modelo de cognição sumária, classifi cando-as na categoria de cognição superfi cial, tendo em vista o corte de conhecimento cujo fundamento é a urgência e o perigo de dano irreparável ou de difícil reparação, tanto no sentido da extensão ou amplitude como da profundidade do confl ito (1987, p.100-103).

3.5 Outras tutelas sumárias A exigência de se efetivar satisfatoriamente a prestação jurisdicional tem

convivido com a cultura da ordinarização do processo, de modo que as reações nunca deixaram de se fazer presentes, ora revitalizando antigas técnicas, ora reinventando-as, mediante a combinação de determinados mecanismos típicos de uma ou de outra ação sumária, produzindo modelos híbridos e aperfeiçoando os já existentes. Exemplos dessas tutelas sumárias, como denuncia Baptista da Silva, são as autotutelas judicializadas, representadas pela ação de busca e apreensão de bens objeto de alienação fi duciária em garantia (Decreto-lei nº 911/69) e a execução extrajudicial do Decreto-lei nº 70/66, que radicaliza afastando a atividade jurisdicional de seu âmbito. Na primeira hipótese, a sumariedade se faz presente na previsão da liminar, na redução do campo da contestação, na efi cácia executiva lato sensu da sentença, traços já conhecidos da dogmática processual e que não chegam a inovar, mas aos quais se agrega a defi nitividade material da antecipação de tutela com a venda, pelo credor, independentemente de qualquer intervenção judicial, do bem alienado fi duciariamente e retomado em sede de liminar. Na segunda, a execução se dá à revelia da intervenção do Judiciário, mediante leilão público do bem imóvel objeto de fi nanciamento pelo sistema habitacional, em caso de mora do mutuário devedor, equiparando-se, portanto, à execução privada, o qual só poderá se valer dos meios processuais ordinários na defesa de seus direitos, incidindo a velha regra, isto é, solvet et repete (1987 (I), p.113-114).

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4 O IR E VIR DOS TEXTOS LEGISLATIVOS O direito processual pátrio tem sido nas últimas décadas objeto de inúmeras reformas

legislativas, muitas delas, graças à combatente doutrina desenvolvida na comunidade jurídica, vindo ao encontro de um processo adequado ao nosso tempo e às nossas necessidades. Apenas para destacar alguns desses avanços, merece registro especial a reforma de 1994, através da Lei nº 8.952, que introduziu a antecipação de tutela (art. 273, CPC) e as ações/sentenças mandamentais nas obrigações de fazer, servidas também com especial tutela de urgência (art. 461, CPC); a Lei nº 10.444/02, que não só reformulou o sistema dos provimentos antecipatórios como introduziu as ações/sentenças executivas lato sensu para as obrigações de entrega de coisa (art. 461-A, CPC); e a Lei nº 11.232/05, que revogou a dicotomia cognição-execução nas obrigações de pagar quantia em dinheiro.

Trata-se de um conjunto de conquistas que respondem por mais de três décadas de intenso debate jurídico sobre a efetividade da prestação jurisdicional, que não pode ser negligenciado pela produção de novas leis, pena de um retrocesso na construção de um paradigma de processo voltado à jurisdição efetiva e tempestiva.

A proposta de um novo Código de Processo Civil, que hoje se encontra em tramitação junto ao Congresso Nacional,4 nos leva a avaliar até que ponto essas conquistas não só estão devidamente preservadas, como reforçadas e até ampliadas, ainda que o texto produzido não represente o resultado legislativo fi nal, porquanto se encontre sob debate nacional.

A Comissão responsável pela produção do anteprojeto afi rmou que “o novo Código de Processo Civil tem o potencial de gerar um processo mais justo, porque mais rente às necessidades sociais e muito menos complexo” (2010: Exposição de Motivos do Anteprojeto). Essa é, sem dúvida, a grande expectativa do povo brasileiro, até porque a proposta alcançou a grande mídia, não se duvidando, por certo, que tenha sido a principal inspiração do trabalho desenvolvido, mas nem por isso liberada está a cidadania não só de participar, mas principalmente de contribuir criticamente para o produto fi nal.

À sumarização do processo no novo texto, então, em breves linhas.

Relativamente ao sistema dos provimentos antecipatórios, a proposta legislativa cuida das tutelas de urgência, assim entendidas as satisfativas e as cautelares, e da tutela de evidência, em capítulo à parte.5 Sem embargo do tratamento efetivamente mais simplifi cado, introduzindo adequadamente o tema na parte geral do processo e pondo uma pá de cal na discussão estéril sobre as diferenças entre as tutelas satisfativas e as cautelares, o fato é que a previsão dessas tutelas, tão comprometidas com a sumarização procedimental, insiste na fi gura do dano (a exemplo, lesão grave, caução no art. 278;

4 Através do Ato do Presidente do Senado Federal nº 379, de 2009, foi constituída comissão de juristas destinada a elaborar Anteprojeto de Novo Código de Processo Civil, cujo texto foi entregue ao Senado Federal em data de 8 de junho de 2010.5 Arts. 277/285 do Anteprojeto.

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dano irreparável, no art. 283) para sua concessão, negligenciando o ilícito como forma de sustentação do provimento antecipatório, conforme atualmente previsto no art. 461, § 3º, do CPC, o que representa patrimonialização do processo, limitação de incidência do juízo de verossimilhança e empobrecimento da prestação jurisdicional de urgência.

No mesmo fio, em detrimento da sumarização processual, a supressão de procedimentos especiais, nitidamente sumários materiais, na sua grande maioria, conforme o restritivo rol dos arts. 505 a 652 do Anteprojeto, abortando da especialização de tratamento as ações de depósito, a nunciação de obra nova, a ação monitória, entre outros, o que signifi ca jogá-los na ordinariedade. Agrega-se a isso, a revogação do procedimento sumário, hoje tratado no art. 275, do CPC, abolindo-se a sumarização formal.

Em relação ao corte de conhecimento no âmbito do processo ordinário, conforme implicitamente autorizado pela atual redação do § 6º do art. 273, do CPC, permitindo que o juiz não só antecipe, mas julgue – com força de sentença – desde logo os pedidos incontroversos, cindindo o processo e remetendo as questões de fato e controvertidas para uma fase seguinte,6 o Anteprojeto é omisso. Contudo, em sentido contrário, são várias as disposições sobre a ampliação da ordinarização, como a cumulação de ações, conforme art. 312,7 que em seu caput dispensa a presença de conexão entre as ações a serem reunidas, espraiando, portanto, sua incidência, e no § 2º, quando admite expressamente a renúncia ao procedimento especial (leia-se, materialmente sumário) em favor da ordinariedade. No mesmo diapasão, o contrapedido, conforme art. 337 da proposta,8 cuja simplifi cação formal merece aplausos, mas também críticas por não construir o Anteprojeto medidas que representem antídoto à generalização do procedimento ordinário, sempre guardadas as especifi cidades que qualifi cam a relação de direito material confl ituosa.

Entre as perguntas que se impõem, até que ponto este consequente e sistemático fortalecimento do procedimento ordinário, que passa a recepcionar pretensões de direito material não mais merecedoras de tratamento diferenciado, também não se repercutirá sobre os procedimentos especiais que ainda permanecem assim tutelados pelo novo texto, representando um retrocesso nas conquistas antes defendidas?

E mais. Embora remanesça como válvula de escape o art. 107, inciso V, do Anteprojeto, que dispõe estar no poder do juiz “adequar as fases e os atos processuais às especifi cações do confl ito, de modo a conferir maior efetividade à tutela do bem jurídico, respeitando sempre o contraditório e a ampla defesa”, até que ponto essa regra genérica tem força sufi ciente para sustentar a sumarização do processo?

6 Para aprofundamento do tema, remete-se o leitor a MACEDO, Elaine Harzheim. Penhora on line: uma proposta de concretização da jurisdição executiva. Execução civil: estudos em homenagem ao professor Humberto Theodoro Júnior. Coord. Ernane Fidélis dos Santos...[et all]. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 465-475.7 Anteprojeto, art. 312: “É lícita a cumulação, num único processo, contra o mesmo réu, de vários pedidos, ainda que entre eles não haja conexão.” ...”§ 2º Quando, para cada pedido, corresponder tipo diverso de procedimento, será admitida a cumulação, se o autor empregar o procedimento comum e for este adequado à pretensão”.8 Anteprojeto, art. 337: “É lícito ao réu, na contestação, formular pedido contraposto para manifestar pretensão própria, conexa com a ação principal ou com o fundamento da defesa, hipótese em que o autor será intimado, na pessoa do seu advogado, para responder a ele no prazo de quinze dias”.

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De outra banda, em nome da simplifi cação do tratamento legislativo, senão única, principal razão arguida como motivação da supressão levada a efeito, representa ganhos reais revogar práticas que sustentam a efetividade da prestação jurisdicional?

Tais questionamentos, levantados a título de refl exão, não esgotam a problemática da sumarização no novo texto, mas visualizam o horizonte processual que está por vir, a exigir da comunidade jurídica muita atenção, pena de se abrir mão de conquistas legítimas de um passado recente.

5 À GUISA DE CONCLUSÃOA sumarização do processo representa milenar discussão envolvendo a efetividade e

tempestividade da prestação jurisdicional, desdobrando-se em inúmeras facetas distintas, tanto no âmbito formal como no material.

Percorrer o passado não é perda de tempo. É conscientizar e valorar conquistas e avanços, é construir o futuro sem repetir erros pretéritos.

Seu debate, portanto, se deu no antes, mas persiste se dando no agora e certamente se dará no depois. Experiências levadas a exaustivas práticas no cotidiano forense e consagradas em textos legislativos não podem ser simplesmente ignoradas, como se vazias de conteúdo ou de pragmatismo.

É relativamente fácil formatar textos legislativos, principalmente tratando-se de regras processuais, e lançá-los aos leões como um prato novo, apetitoso e diferente. Não se pode dizer o mesmo da construção de institutos que se eternizam, não apenas por estarem contemplados na lei, mas porque chegando às práticas forenses, já afi rmaram sua utilidade e sua funcionalidade na prestação jurisdicional.

Que a sumarização do processo não seja velada sob o manto de uma ilusionista simplifi cação procedimental que, no seu gênesis, está alimentada pela ordinariedade, tão nefasta à prestação jurisdicional concreta.

Não se pode olvidar que a simplicidade pode e deve alimentar as formas procedimentais, mas o processo, como espaço de construção do direito do caso concreto, não é e jamais será simples.

REFERÊNCIASALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Versión castellana: Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993.BAPTISTA DA SILVA, Ovídio A. Curso de processo civil. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Ed., 1987,1990, v. I-II. ______. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.

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______. Da sentença liminar à nulidade da sentença. São Paulo: Forense, 2001.BARBI, Celso Agrícola. Do mandado de segurança. 3. ed., 3. tir., Rio de Janeiro: Forense, 1980.CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Trad. de J. Guimarães Menegale. 3. ed., São Paulo: Saraiva, 1969, v.1. GUILLÉN, Victor Fairen. El juicio ordinario y los plenarios rápidos. Barcelona: Bosch, 1953.MACEDO, Elaine Harzheim. Do procedimento monitório. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998.______. O mandado de segurança como instrumento de freios e contrapesos. AJURIS: Revista da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, v.58, p.279-290, 1993.______. Penhora on line: uma proposta de concretização da jurisdição executiva. Execução civil: estudos em homenagem ao professor Humberto Theodoro Júnior. Coord. Ernane Fidélis dos Santos...[et all]. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 465-475.MARINONI, Luiz Guilherme. Novas linhas do processo civil. 3.ed. São Paulo: Malheiros, 1999.NEGRÃO, Theotonio (org.). Código de processo civil e legislação processual em vigor. 30. ed., São Paulo: Saraiva, 1999.PONTES DE MIRANDA. Comentários ao código de processo civil. 5.ed., Rio de Janeiro: Forense, 1995, t. I.WATANABE, Kazuo. Da cognição no processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987.

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Justiça Restaurativa e sistema penal: apontamentos para a construção de um novo

modelo de justiça criminal no BrasilDaniel Achutti

RESUMO O presente trabalho aborda a crise do processo penal na sociedade contemporânea a partir

de seus pressupostos epistemológicos para, então, apresentar a Justiça Restaurativa como uma alternativa concreta para o sistema de justiça criminal brasileiro.

Palavras-chave: Processo penal. Justiça Restaurativa.

Restorative Justice and penal system: Notes for the construction of a new model of criminal justice in Brazil

ABSTRACT The present paper addresses the crisis of penal procedure in the contemporary society from

its epistemological basis to, then, present the Restorative Justice as a real alternative to the Brazilian criminal justice system.

Keywords: Penal procedure. Restorative Justice.

1 INTRODUÇÃODesde que tivemos contato com as lições de Luigi Ferrajoli, começamos a pensar o

processo penal não como um simples meio para aplicar o direito penal e punir os cidadãos acusados da prática de um delito, mas, antes disso, como um instrumento imprescindível para a aplicação dessa punição, como o caminho necessário a ser percorrido quando se pretende acusar, condenar e punir alguém.

No entanto, estruturado em pressupostos modernos, nasceu fadado ao fracasso, uma vez que tais pressupostos estão ancorados epistemologicamente na Idade Média. Como se tentará demonstrar, uma “troca de embalagem” foi realizada, e as coisas continuam exatamente como sempre foram. E essa crise aponta, necessariamente, para novos pensamentos e novos caminhos. Se não foi possível produzir os efeitos desejados com a atual estrutura processual penal, o que nos impede de pensar em alternativas? Nada, entretanto, deverá ser colocado em prática antes de uma longa e séria discussão com os interessados: quanto a isso, concordamos com Jacinto Nelson de Miranda Coutinho:1 não é possível brincar com a liberdade dos cidadãos.

1 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Manifesto Contra os Juizados Especiais Criminais, pp.4-5. Daniel Achutti é advogado criminalista. Mestre e Doutorando em Ciências Criminais (PUCRS). Professor de Direito Penal na FACOS. Professor Convidado da Escola Superior de Advocacia da OAB/RS. Conselheiro do Instituto de Criminologia e Alteridade (ICA). Membro da Comissão de Mediação e Práticas Restaurativas da OAB/RS. E-mail: [email protected]

Direito e Democracia v.11 n.1 p.117-138 jan./jun. 2010Canoas

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Porém, pensamos também que não é mais possível nos mantermos passivos quanto a este problema: devemos pensar em novas e concretas alternativas ao processo penal. E é justamente isso o que tentamos fazer neste trabalho, em relação à Justiça Restaurativa, a fi m de iniciarmos uma discussão que, acreditamos, está apenas se iniciando.

2 O PROCESSO PENAL E A SUA ESTRUTURA:DA REVOLUÇÃO CIENTÍFICA DO SÉCULO XVI À CONTEMPORANEIDADEDe acordo com Ruth Gauer, a revolução científi ca do século XVI, uma das mais

importantes e infl uentes do pensamento humano, esteve indissoluvelmente ligada ao nome de Galileu Galilei, cujo “pensamento estruturou o pensamento moderno e abalou o suporte do saber medieval que tinha por base o critério da fé e da revelação.”2 Para Fritjof Capra, trata-se do “pai da ciência moderna”,3 que possibilitou aquilo que Max Weber chamava de “desencantamento do mundo”, ou seja, os fenômenos da natureza que antes eram explicados pela vontade divina e tinham como porta voz a Igreja, passavam a ser explicados por uma lógica racional.

Aos poucos a racionalidade científi ca foi adquirindo um grau extremo de legitimidade e, portanto, barreiras morais e éticas não poderiam servir de empecilho à construção do conhecimento. Sendo a natureza um mero objeto do conhecimento científi co, poderia ser utilizada como instrumento para a melhora da vida humana no mundo. Ao invés da contemplação, importava, então, a intervenção e a domesticação da natureza para melhorar as condições de vida. Refere Salo de Carvalho que

a racionalidade científi ca da modernidade postulou, desde seu nascedouro, através do controle da natureza, a criação de mecanismos capazes de gerar felicidade aos homens. O projeto da modernidade é centrado nesta busca do gozo constante e na satisfação ilimitada dos desejos, como se a possibilidade de supressão da falta gerasse (ou fosse sinônimo de) felicidade.4

Dessa forma, é possível afi rmar que

o racionalismo, poder exclusivo da razão de discernir, distinguir e comparar, substituiu o dogmatismo medieval, assumindo uma atitude crítica e polêmica perante a tradição. O antropocentrismo eliminou o pensamento teocêntrico, possibilitando ao homem moderno colocar-se a si próprio no centro alterando, assim, a visão de mundo.5

2 GAUER, Ruth Maria Chittó. A Construção do Estado-Nação no Brasil: a contribuição dos egressos de Coimbra, p.101.3 CAPRA, Fritjof. O Tao da Física. Um paralelo entre a física moderna e o misticismo oriental, p.25.4 CARVALHO, Salo de. Criminologia e Transdisciplinaridade, pp.311 e 312, respectivamente.5 GAUER, Ruth. A Construção do Estado-Nação no Brasil: a contribuição dos egressos de Coimbra, p.102.

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Desde que Descartes começou a questionar as formas de ver o mundo impostas pela Igreja Católica (fruto da ofi cialização da religião católica pelo Estado6 por volta do século IV7), o mundo não é mais o que era antes: questionando se o homem não poderia pensar o mundo e se pensar no mundo sem a infl uência das interpretações eclesiásticas das sagradas escrituras, o fi lósofo francês deu impulso a uma nova visão de mundo para os humanos.8 O pensamento moderno, portanto, foi construído sob uma lógica de dominação que possui como fundamento o esclarecimento, o conhecimento e a razão em detrimento da ilusão, dos mitos, da fé e da crença religiosas, produzidos fundamentalmente pelos católicos.

Conforme Franklin Baumer, de acordo com a visão de Galileu, “a natureza continuava a ser pictórica, mas era agora descrita, de modo crescente, não como um organismo, mas como uma máquina ou um relógio, que prendeu a imaginação europeia durante os duzentos anos seguintes.”9 Um determinismo rigoroso consolidou-se na visão que se tinha do mundo: “Tudo o que acontecia possuía uma causa defi nida e gerava um efeito defi nido: o futuro de qualquer parte do sistema poderia – em princípio – ser previsto com absoluta certeza se se conhecesse em todos os detalhes seu estado em determinada ocasião.”10 A base fi losófi ca originou-se a partir da divisão entre res cogitans e res extensa, realizada por Descartes: acreditava-se ser possível explicar o mundo sem qualquer infl uência do observador humano, de forma objetiva e universal.11

Essa cosmovisão mecanicista foi defendida por Isaac Newton, “que elaborou sua Mecânica a partir de tais fundamentos, tornando-a o alicerce da Física clássica. Da segunda metade do século XVII até o fi m do século XIX, o modelo mecanicista newtoniano do universo dominou todo o pensamento científi co.”12

Toda essa construção do pensamento e do conhecimento moderno (re)instaurou uma concepção de busca pela verdade de todas as coisas (já presente no período medieval) que, desde então, domina a prática científi ca do mundo ocidental, excluindo quaisquer outras formas de saber não racional e espalhando-se por todos os campos do conhecimento. Gauer salienta ainda que “a vinculação do conhecimento ao modelo galilaico-newtoniano e a consideração da ciência como campo privilegiado para a revelação da verdade fundam a matriz de conhecimento mais relevante da tradição ocidental moderna.”13

Ao desencantar o mundo e despi-lo dos mitos que o confi guravam, a ciência atribuiu a si o local privilegiado de revelação da verdade e ao fazer isso se mitifi cou. Substituiu

6 Note-se que o termo Estado, aqui, não deve ser conceituado da mesma forma como o é hoje, em virtude da separação temporal de mais de quinze séculos entre os séculos IV e XXI. 7 BATISTA, Nilo. Matrizes Ibéricas do Direito Penal Brasileiro – I, pp.169-173.8 Na esteira de Ruth GAUER, vale referir que “a obra de Descartes é aqui lembrada, pois foi incentivadora da criação de um sujeito racional, pensante, consciente, o centro do conhecimento, o chamado sujeito cartesiano.” (In: O Reino da Estupidez e o Reino da Razão, pp.139-140).9 BAUMER, Franklin L. O Pensamento Europeu Moderno. Vol. I, p.67.10 CAPRA, Fritjof. O Tao da Física, p.50.11 CAPRA, Fritjof. O Tao da Física, p.50.12 CAPRA, Fritjof. O Tao da Física, p.25.13 GAUER, Ruth. Conhecimento e Aceleração (mito, verdade e tempo), p.1.

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um mito por outro, a saber, de que a racionalidade científi ca podia dar conta e explicar todos os fenômenos do mundo. Conforme Ricardo Timm de Souza, “o ser humano acabou por fazer da ciência a sua verdade racional, tendendo, especialmente na cultura ocidental, a fazer dela o seu ídolo ao qual tudo mais – especialmente outras formas de racionalidade – é sacrifi cado.”14

O direito, por sua vez, operando dentro da mesma concepção cientifi cista e, para além disso, mantendo a mesma lógica que movia o processo inquisitorial do medievo, mas com a única diferença que, agora, havia uma justifi cativa racional para a realização do objetivo fundamental do instrumento, consagrou o processo penal como local privilegiado de revelação da verdade de um evento pretérito: com o processo de codifi cação e a consequente simplifi cação dos fenômenos sociais, nada mais poderia escapar ao projeto unifi cador e de coerência e completude da “ciência jurídica”.15

E é neste mundo que estamos contextualizados: o cientifi cismo moderno e a ciência jurídica deixando de dialogar com a incerteza e com o reino profano da desagregação. Se a totalidade16 é, também, o que sacraliza o direito, é possível dizer que desde sua capitulação moderna isso foi potencializado: nada mais importa(va), a não ser a própria norma e seus mandamentos, o que resultou na constituição de uma suposta ciência que basta(va) por si própria, independente de tudo o que poderia vir a lhe dar suporte. Qualquer elemento que estivesse fora dos pressupostos da racionalidade científi ca não tem (tinha) validade.

A transposição irrestrita dos conhecimentos e da metodologia das ciências naturais para a ciência do direito a condicionou e estabeleceu tetos epistemológicos de signifi cação e produção de sentido. Assim, a ciência jurídica passou a trabalhar numa concepção racionalista, mecanicista e meramente instrumental, ou seja, desvinculada de quaisquer outros fi ns que pudessem atrapalhar o progresso do conhecimento jurídico e, dentro do nosso tema, de elucidação da verdade no processo penal. O direito funciona(va) da mesma forma que a ciência: ele mesmo é a sua própria fonte de legitimação.

2.1 Da troca de embalagens no Processo Penal: o abandono das justificativas teológicas e a manutenção de sua finalidadeEmbora muito se fale de uma nova postura científi ca a partir dos séculos XVI e

XVII, parece-nos que pouco (ou nada) mudou em sede processual penal: as categorias hoje existentes refl etem nada mais nada menos do que traços medievais travestidos de cientifi cidade.

14 SOUZA, Ricardo Timm de. Ética como Fundamento: uma introdução à ética contemporânea, p.34.15 Citamos como exemplo o artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei nº 4.657/42), que dispõe: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.”16 As palavras totalidade e desagregação foram parafraseadas do trabalho de SOUZA, Ricardo Timm de. Totalidade e Desagregação: sobre as fronteiras do pensamento e suas alternativas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996.

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Com a laicização de determinadas práticas, pode-se dizer que o moderno direito processual penal apropriou-se da maneira de busca da verdade como a Igreja realizava nos períodos dos Impérios Merovíngio e Carolíngio: utiliza-se da visitatio, então realizada estatutariamente pelo bispo, quando percorria sua diocese: ao chegar aos locais, realizava a inquisitio generalis, que consistia em colher dados gerais acerca do que ocorrera na sua ausência e que pudesse confi rmar práticas delituosas;17 a seguir, no caso de uma resposta positiva, o bispo realizava a inquisitio specialis, “que consistia em apurar quem tinha feito o que, em determinar em verdade quem era o autor e qual a natureza do ato.”18 Esse método apresenta-se como uma espécie de instrumentalização do procedimento que viria a ser utilizado pela Igreja a partir do século XIII com os referidos Tribunais da Inquisição.

A justifi cativa predominante do processo penal no Brasil – apresentada como “o objeto” do processo penal por alguns autores e como a “fi nalidade”, por outros – não mudou essencialmente da justifi cativa apresentada pelos inquisidores na Idade Média, qual seja, a busca da verdade (real).

Exatamente como nos procedimentos utilizados pelos Tribunais da Inquisição, ainda se praticam os atos de interrogatório, de inquirição de testemunhas, de reconstituição de fatos, dentre outros. Para Salo de Carvalho, “na lacuna entre os projetos [medieval e moderno], pode-se perceber que não há, necessariamente, ruptura.”19 Alexandre Morais da Rosa, por sua vez, refere que “as matrizes do ‘Direito Canônico’ ganharam nova embalagem, mantendo, contudo, em seu hermetismo e multiplicidade de métodos (ditos) científi cos, a censura e o adestramento sobre o que pode e deve ser dito.”20 O que antes era dito/revelado pelo Papa, agora é traduzido pelos especialistas do Direito, ou pelos “juristas de ofício”.21

Com propriedade, Paolo Grossi afi rma que “simplismo e otimismo parecem ser os traços que mais caracterizam o jurista moderno, fortalecido no seu coração pelas certezas iluministas”:22 simplifi ca-se uma situação complexa e, ancorados no (moderno) aparelho jurídico-penal, emerge entre os juristas uma onda de otimismo, acreditando-se que o sistema penal possui condições, por si só (eis que é autojustifi cável), de dar conta dos problemas sociais contemporâneos.

17 FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas, p.70; BATISTA, Nilo. Matrizes Ibéricas do Direito Penal Brasileiro – I, p.234.18 FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas, p.70.19 CARVALHO, Salo de. Criminologia e Transdisciplinaridade, p.316.20 ROSA, Alexandre Morais da. Decisão Penal: a bricolage de signifi cantes, p.32.21 “Por possuir as ‘chaves do céu’, o Papa acomete o poder de julgamento a seus bispos, já que é detentor da ‘geração da palavra divina’ e seu avalista. A artimanha se completa porque ele assume o papel do ‘Ausente’, possuidor de qualidades plenas.” A seguir, o autor continua: “Os guardiães, os pastores, enfi m, os ‘juristas de ofício’ logo irão cercar as possibilidades interpretativas, garantindo por suas autoridades o verdadeiro sentido do texto, porque deles se afastar, lembre-se, é pecado. (...) O Direito, por seus especialistas, pretende possuir as chaves do céu e da produção de subjetividade, os únicos a revelar a palavra do Outro. (...) Resultado disso são os discursos jurídicos com pretensão de plenitude, que vendem a ideia de respostas corretas e seguras, promentendo a ilusão da segurança jurídica...” (ROSA, Alexandre Morais da. Decisão Penal: a bricolage de signifi cantes, pp.28 e 32-33, respectivamente). 22 GROSSI, Paolo. Mitologias Jurídicas da Modernidade, p.15. Segue o autor: “Mas são muitos os problemas evitados, as interrogações que não se quis pôr, assim como é muito fácil sentir-se satisfeito ao contemplar um mundo povoado por fi guras abstratas, projetadas por uma lanterna mágica muito bem manobrada.” (GROSSI, Paolo. Mitologias Jurídicas..., p.15.).

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E com esse latente amor à Lei23 e uma aparente ojeriza ao que lhe é estranho, o direito passa a operar em uma lógica de autossufi ciência, de autoprodução: códigos, leis e artigos (meros textos) como imperativos legais na aplicação do direito, resultando em pouca (ou nenhuma) refl exão acerca do fenômeno jurídico enquanto fato social, cultural, histórico, político, etc. Ou seja, enquanto um fenômeno essencialmente transdisciplinar. O ensino jurídico, por sua vez, é tomado pelas rédeas da codifi cação e levado a transmitir apenas “o que diz a lei”, levando muitos juristas de diferentes gerações a considerar a norma como a Justiça em si.

Em tal processo de autoenclausuramento do saber jurídico, o direito e o processo penal, justifi cáveis por si mesmos e autônomos em relação ao mundo real, seriam os mais efi cientes24 meios para se proteger a humanidade (e, para o seu futuro25).

No processo penal, especifi camente, os atores jurídicos, praticamente à unanimidade, não admitem a fragilidade epistemológica desse (in)falível método. Daí que se aceitam os resultados dos processos penais como verdades absolutas, “como se fossem a emanação daquilo que efetivamente ocorreu no mundo da vida, por ser o resultado de um método (dito) científi co, trazendo o selo de qualidade: cientifi camente comprovado.”26

Nesse contexto de pureza jurídica e soberba do direito para o enfrentamento dos problemas, o processo penal é, portanto, apresentado como a fórmula mágica para a solução dos confl itos na contemporaneidade: através de seu arcabouço teórico cientifi camente legitimado, assume lugar de destaque e habilita-se como meio efi ciente

23 Sobre o amor à Lei, conferir LEGENDRE, Pierre. O Amor do Censor: ensaio sobre a ordem dogmática.24 Importante mencionar a diferenciação entre efi ciência e efetividade, realizada por Jacinto Coutinho (In: Efetividade do Processo Penal e Golpe de Cena: um problema às reformas processuais, pp.145-146): enquanto a primeira está ligada aos meios utilizados para alcançar o resultado desejado, a segunda vincula-se aos fi ns visados. Para Gilberto Thums, “sustenta o professor Jacinto que a efi ciência, aliada ao tempo, pode ser sinônimo de exclusão de direitos ou garantias. Esta observação é precisa, visto que os recentes movimentos nos Estados Unidos encaminham-se para, em nome da pseudoefi ciência no combate ao terrorismo, suprimir direitos e garantias individuais (THUMS, Gilberto. Sistemas Processuais Penais, p.43) Nesse sentido, o Patriot Act, editado logo em seguida aos ataques de 11 de setembro de 2001 e, mais recentemente, o Military Comission Act, são exemplares, uma vez que, neste último, o procedimento secreto e até a tortura são autorizados para a malfadada busca da verdade. Sempre em nome da segurança da nação, ou para o bem da pátria... 25 Na esteira de Salo de Carvalho, lembramos Jorge de Figueiredo Dias, que pode ser considerado o carro-chefe dessa ode ao direito penal, quando menciona que “se cabe ao direito penal proteger os principais bens jurídicos da humanidade, como poderia eximir-se do enfrentamento de (possíveis) ações que colocam em risco o seu futuro? Como deixaria de atuar em situações limite que ameaçam as gerações vindouras?” (In: O direito penal entre a ‘sociedade industrial’ e a ‘sociedade do risco’, p.58. Apud CARVALHO, Salo de. A Ferida Narcísica do Direito Penal (primeiras observações sobre as (dis)funções do controle penal na sociedade contemporânea), p.200). Vale citar a crítica de Carvalho: “... a potência da fala tende a cegar o prolator, impedindo-o de perceber suas limitações e sua real capacidade de ação. O sonho narcísico de resolução das grandes questões da civilização, tutelando a Humanidade de sua própria extinção, ao mesmo tempo em que entorpece o pensamento jurídico-penal, ofusca a realidade, fornecendo elementos irreais para anamnese e, consequentemente, prognose. (...) Uma dupla falência na criticada sistemática do direito penal é gerada. À inefi cácia desnudada pelas ciências sociais do controle penal nas demandas relativas aos direitos liberais e sociais é agregada uma nova expectativa (tutela dos direitos transindividuais). O resultado parece anunciado: inefetividade operacional decorrente da falta de novos mecanismos para enfrentar novos problemas. Todavia, a narcose retórica impede o dar-se conta do problema, criando outra crise, desta vez na própria estrutura genealógica do direito penal liberal, pois, ao ser fl exibilizada para alcançar os novos fi ns, acaba por aumentar a inefi cácia primeira. Neste quadro, o discurso penal fi ca perdido, estagnado em uma crise circular.” (In: A Ferida Narcísica do Direito Penal (primeiras observações sobre as (dis)funções do controle penal na sociedade contemporânea), p.200).26 ROSA, Alexandre Morais da. Decisão Penal..., p.54.

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para a reconstrução de um evento pretérito, a atribuição de culpas no presente e a determinação de uma pena a ser cumprida no futuro.

Em um ambiente onde o indivíduo é pensado acima de tudo, nada mais lógico do que inverter a lógica do processo inquisitorial de proteção divina para se estabelecer a lógica da proteção individual. A inversão que a secularização propõe é visível no moderno processo penal, uma vez que deixa-se de lado a busca de uma verdade para se buscar a proteção do indivíduo face ao poder punitivo estatal. O perigo, no entanto, é deixar tal estrutura à mercê de uma pureza metodológica, como queria o positivismo jurídico.

Conforme Luigi Ferrajoli,

el proceso, como la pena, se justifica precisamente en cuanto técnica de minimización de la reacción social frente al delito: de minimización de la violencia, pero también del arbitrio que de otro modo se produciría con formas aun más salvajes y desenfrenadas.27

Nota-se que o processo penal, para o autor, teria uma fi nalidade protetiva dos acusados da prática de delitos, que não podem ser penalizados antes de serem processados. Não seria possível, portanto, efetivar-se a punibilidade de um acusado sem que, prévia e formalmente, tenha sido ele levado a julgamento. E mais: tal julgamento não pode ser realizado sem a observância dos instrumentos de proteção dos acusados – traduzindo: dos direitos e das garantias individuais, que, no caso brasileiro, podem ser encontradas na Constituição da República.

No entanto, embora o Código de Processo Penal brasileiro deva ser, necessariamente, compatibilizado com a Constituição, o que se percebe, na prática, é não só um enorme desrespeito pela Constituição por parte das regras do CPP, como também uma considerável não aplicação das regras constitucionais por parte dos juízes (em primeiro e em segundo graus, e também nos Tribunais Políticos). E partindo de uma leitura constitucional do processo penal, entendemos o mesmo como um espaço democrático de debates (acusação e defesa) e julgamento a que tem direito de ser submetido todo cidadão acusado da prática de um crime: trata-se, portanto, de um instrumento a serviço do cidadão (direito subjetivo) frente ao poder punitivo do Estado, e não de um método cientifi camente legitimado para se correr atrás da verdade.

3 O SÉCULO XX E O FIM DAS CERTEZASAcontece que, no direito – mormente nos direitos penal e processual penal – a

arrogância28 de seus operadores e doutrinadores impede o reconhecimento da falência do

27 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón, p.604.28 “... nas ciências sociais, notadamente nas jurídicas, o homem é arrogante, petulante, audacioso (soberbo) e ao mesmo tempo temerário, ao afi rmar que busca a verdade real absoluta no processo penal.” (THUMS, Gilberto.

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atual modelo estrutural de processo penal, baseado e fundado na lógica inquisitorial, e de difícil conciliação com o que dizem os críticos do modelo científi co moderno.

Conforme Ruth Gauer, ao fi nal do século XIX e “início do XX, várias foram as expressões sobre o horror trazido à humanidade pela ciência e pela técnica baseadas em um suposto império da razão, (...) o qual levaria a humanidade ao paraíso construído na Terra, pela racionalidade científi ca”.29 Porém, desde a chuva de bombas inaugural da Primeira Guerra Mundial, foi possível perceber que a técnica e a ciência não servem somente para a evolução da espécie humana, podendo servir, igualmente, para a sua aniquilação.

Tal percepção desvelou um mundo sujo, ganancioso, violento, que, antes, pensava-se poder ser corrigido com a ciência, em princípio somente pensada para o bem da humanidade. Mas a máscara caiu: o projeto moderno da salvação entrou em crise; não há mais que se pensar no futuro, mas no presente, viver cada minuto como se fosse o último. Para Edgar Morin, é preciso “ensinar e propagar a má notícia: não há salvação neste mundo”.30

Uma forma única de pensar foi imposta, excluindo-se as demais apenas por ser aquela considerada científi ca. Salo de Carvalho assevera que “a crença na unidade do discurso e na potência dos métodos científi cos forjados na modernidade ofusca o olhar do pesquisador, impedindo-o de perceber a dimensão das revoluções e dos desafi os (riscos) contemporâneos”.31

O velho paradigma newtoniano pressupunha um espaço absoluto, universal e estável. “Todas as mudanças verifi cadas no mundo físico, eram descritas em termos de uma dimensão separada, denominada tempo; essa dimensão, por sua vez, também era absoluta, sem qualquer vínculo com o mundo material e fl uindo suavemente do passado através do presente e em direção ao futuro”.32

Nesse sentido, acreditava-se que era possível, ao fazer história, poder “apreender um refl exo exato do passado. (...) Ao olhar para trás, o historiador apreendia os tempos dessas saliências, e o instinto da história era delimitado por esse eixo harmônico inalterável”.33 Ou seja: pensava-se ser possível apreender um determinado “espaço de tempo” do passado no presente e esmiuçá-lo, até que fosse revelada a verdade – autorizada porque científi ca.

Novamente lembrando Capra, percebe-se que “duas descobertas no campo da física, culminando na teoria da relatividade e na teoria quântica, pulverizaram todos os principais conceitos de visão do mundo cartesiano e da mecânica newtoniana”.34 Primeiramente, cumpre salientar que a partir do momento em que Einstein, percebendo

Sistemas Processuais Penais, p.186).29 GAUER, Ruth. O Reino da Estupidez e o Reino da Razão, p.137.30 MORIN, Edgar. Para Sair do Século XX, p.276.31 CARVALHO, Salo de. Criminologia e Transdisciplinaridade, p.312.32 CAPRA, Fritjof. O Tao da Física, pp.48-49.33 GAUER, Ruth. Falar em Tempo, Viver o Tempo!, p.18.34 CAPRA, Fritjof. O Ponto de Mutação, p.69.

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a impossibilidade de o observador estabelecer a ordem temporal dos acontecimentos no espaço – não havendo na natureza velocidade superior à da luz, para medir a velocidade faz-se necessário conhecer a simultaneidade dos acontecimentos –, põe em dúvida o caráter absoluto do tempo e do espaço, ele rompe com a cosmovisão moderna. Einstein demonstra que a simultaneidade dos acontecimentos distantes não pode ser verifi cada, tão-só defi nida e, dada a arbitrariedade das medições, a hipótese de contradição dos resultados é forçosamente incorporada. Sob esse aspecto, uma nova concepção de conhecimento afeta a visão do tempo que lhe será associada.35

Segundo Norbert Elias, “As correções trazidas por Einstein para o conceito newtoniano de tempo ilustram essa mutabilidade da ideia na era moderna. Einstein mostrou que a representação newtoniana de um tempo único e uniforme, através de toda a extensão do universo físico, não era sustentável”.36 Ao dizer que é impossível ao “observador estabelecer a ordem temporal dos acontecimentos no espaço (...) – põe em dúvida o caráter absoluto do tempo e do espaço”,37 rompendo incisivamente com a cosmovisão moderna: “o tempo no mundo, ao tornar-se incerto, torna-se, por consequência, diferente do tempo das ciências modernas, onde era defi nido pela possibilidade de defi nir leis universais e eternas da natureza”.38

Desde então, pensar o tempo como um fator absoluto, universalmente válido, tornou-se complicado, ocasionando importante ruptura com o modelo cosmológico newtoniano, em que o tempo era o mesmo para todos. “Em outras palavras, a teoria da relatividade sela o fi m do conceito de tempo absoluto!”,39 afi rma Stephen William Hawking, considerado por muitos o sucessor de Galileu, Newton e Einstein.

A história (e qualquer outra ciência) não pode mais ser produzida partindo da ideia de que irá relatar exatamente a “verdade” do que ocorreu naquele espaço-tempo pretérito, sendo forçada a assumir que resgatará apenas um fragmento do fato, a partir dos pontos de vista dos historiadores (e nas demais ciências, têm-se juristas, psicólogos, etc.). Tal consequência revela-se fundamental para o processo penal, quando a “pequena história” do confl ito em jogo40 não pode mais ser resgatada integralmente, como se fosse um mero objeto à espera de seus sujeitos.

E não podemos deixar de mencionar, ainda, o que foi percebido por Werner Heisenberg em 1926: o princípio da incerteza. Conforme Hawking,

a fi m de prever a posição e a velocidade futuras de uma partícula, devemos ser capazes de medir, com precisão, sua posição e velocidade atuais. O procedimento

35 GAUER, Ruth. O Reino da Estupidez..., pp.174-175.36 ELIAS, Norbert. Sobre o Tempo, p.35.37 GAUER, Ruth. Conhecimento e Aceleração (mito, verdade e tempo), p.6.38 GAUER, Ruth. Conhecimento e Aceleração..., p.6.39 HAWKING, Stephen William. Uma Breve História do Tempo: do big bang aos buracos negros, p.44.40 Nesse sentido, conferir PLETSCH, Natalie Ribeiro. Formação da Prova no Jogo Processual Penal: o atuar dos sujeitos e a construção da sentença. São Paulo: IBCCRIM, 2007.

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para se obter esta medição é projetar luz sobre a partícula. Algumas ondas de luz se dispersarão pela partícula indicando sua posição. Entretanto, não seremos capazes de determinar a posição da partícula de maneira mais precisa do que através da distância entre as cristas das ondas de luz, de forma que será preciso usar luz de ondas curtas para se ter um grau razoável de confi abilidade no resultado do experimento. Mas, segundo a hipótese quântica de [Max] Planck, não se pode usar uma quantidade arbitrariamente pequena de luz; temos que usar pelo menos um quantum. Este quantum perturbará a partícula e mudará sua velocidade de forma não previsível. Quanto mais precisamente se medir a posição, mais curto o comprimento de onda de luz necessário para atingir a mais alta energia de um único quantum. Assim, a velocidade da partícula será perturbada por uma quantidade maior. Em outras palavras, quanto mais precisamente se tentar medir a posição da partícula, menos precisamente se pode medir sua velocidade, e vice-versa.41

Em termos mais próximos à realidade, percebe-se que não seria possível prever as consequências de nossas ações. “O princípio da incerteza teve profundas implicações na forma de percepção do mundo que, mesmo ultrapassados cinquenta anos, ainda não foram completamente examinadas pelos fi lósofos e se mantêm na pauta de muitas controvérsias”.42

Nesse sentido, não há mais que se falar em previsibilidade de resultados, possibilidade de êxito e/ou derrota, etc.: o que há são probabilidades, e essas não são passíveis de previsibilidade ou determinação. Para Hawking,

o princípio da incerteza assinala o fi m do sonho de Laplace de uma teoria da ciência, um modelo de universo completamente determinístico; não se pode certamente prever eventos futuros com precisão, uma vez que também não é possível medir precisamente o estado presente do universo!43

Essas descobertas e observações não só colocam em xeque toda a estrutura do pensamento moderno como delineiam a urgente necessidade de se repensar o próprio pensamento, como quer Morin.44 A estrutura do pensamento jurídico, nesse contexto – e, dentro da nossa abordagem, a estrutura do processo penal – é colocada sob suspeita. Urge a necessidade de se repensar totalmente o que se pode entender por processo penal.

Como primeiros passos para se pensar em uma nova prática científi ca, Carvalho aponta “eximir-se da pretensão de busca de verdades defi nitivas e exortar as unidades totalizantes próprias dos projetos da Modernidade (...)”.45 Agindo de outra maneira, o cientista estaria voltando a incidir no mesmo problema dos modernos: pretender

41 HAWKING, Stephen William. Uma Breve História do Tempo..., p.87.42 HAWKING, Stephen William. Uma Breve História do Tempo…, p.87.43 HAWKING, Stephen William. Uma Breve História do Tempo..., pp.87-88.44 MORIN, Edgar. A Cabeça Bem-Feita: repensar a reforma, reformar o pensamento.45 CARVALHO, Salo de. Criminologia e Transdisciplinaridade, p.311.

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buscar apenas uma verdade e unifi car o método. A epistemologia da certeza com a qual trabalhamos resta, outrossim, questionável.

Dilui-se, assim, tudo o que é subjetivo e criador.46 A redução da complexidade mundana a meras leis matemáticas acaba por apresentar uma simplifi cação insustentável quando se trata de enfrentar uma ciência social aplicada, como o direito, cujos fenômenos não podem ser descritos através de fórmulas ou símbolos, sob pena de um reducionismo que beira a irracionalidade.47

Nesse sentido, pensar o processo penal como meio para se buscar a verdade real de um fato pretérito não só vai de encontro às últimas interpretações das ciências exatas como também evidencia o conservadorismo característico da dogmática atinente ao tema.48 A insistente natureza reveladora do processo penal submete os acusados em geral a um procedimento injustifi cável cientifi camente, sustentado apenas pela crença no que se pode chamar de ilusão moderna, qual seja, a de que o homem é capaz de reconstituir, através da memória (testemunhal e/ou documental) um fato pretérito e, ainda, formar um juízo de certeza acerca do mesmo, baseado (sempre) no método cartesiano.

O que seria o processo penal, afi nal, senão uma fórmula redutora de complexidade, ou exatamente aquilo que Salo de Carvalho chama de método de despedaçamento?49

3.1 A lógica da exclusão do Processo Penal: entre o cidadão e o estrangeiro Desde essa posição crítica, em que o processo penal tem suas raízes colocadas sob

suspeita, a necessidade de um (re)questionamento da estrutura (moderna) do próprio processo penal resta mais do que necessária: as pessoas diretamente envolvidas nos confl itos possuem uma função secundária, enquanto aqueles que nada podem fazer para solucionar o confl ito ou para, pelo menos, apaziguá-lo, emergem como protagonistas no cenário processual.

Acusado e vítima não possuem local de fala, enquanto juiz, acusador e defensor “dialogam” interminavelmente entre si, atribuindo àqueles um papel meramente

46 Esclarecedor é o que Morin traz em nota de rodapé: “O pensamento que recorta, isola, permite que especialistas e experts tenham ótimo desempenho em seus compartimentos, e cooperem efi cazmente nos setores não complexos de conhecimento, notadamente, os que concernem ao funcionamento das máquinas artifi ciais; mas a lógica a que eles obedecem, estende à sociedade e às relações humanas os constrangimentos e os mecanismos inumanos da máquina artifi cial e sua visão determinista, mecanicista, quantitativa, formalista; e ignora, oculta ou dilui tudo que é subjetivo, afetivo, livre, criador” (MORIN, Edgar. A Cabeça Bem-Feita, p.15.).47 “(...) a simplicidade das leis constitui uma simplifi cação arbitrária da realidade que nos confi na a um horizonte mínimo para além do qual outros conhecimentos da natureza, provavelmente mais ricos e com mais interesse humano, fi cam por conhecer.” (SANTOS, Boaventura de Sousa. A Crítica da Razão Indolente..., p.72.).48 “... o homem das ciências naturais a cada dia busca desvendar novos horizontes, eis que se encontra diante de desafi os constantes, enquanto o homem das ciências jurídicas ainda não acordou para os ‘novos tempos’. O Direito, como ciência social, apesar da necessidade de acompanhar a evolução da sociedade e de seus fenômenos que exigem normatização, não consegue cumprir o seu papel, manifestando exagerado apego ao conservadorismo, refl etido nas leis e nas decisões dos tribunais.” (THUMS, Gilberto. Sistemas Processuais Penais, p.8).49 In: Criminologia e Transdisciplinaridade, p.311.

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coadjuvante, pois não possuem o conhecimento técnico necessário para enfrentar o processo penal. Evidentemente que não possuem o referido conhecimento técnico, pois justamente não são técnicos em direito processual penal. Não poderia mesmo ser diferente. E essa exclusão, típica dos modernos e, especialmente, dos juristas, inviabiliza uma justiça criminal menos dolorosa e mais dialogal: a dor vem com a técnica, e o silêncio, com a desculpa do desconhecimento científi co. Como se vê, nada mudou nos últimos mil anos...

Albert Camus, do alto de sua fenomenal percepção mundana, demonstra perfeitamente o sentimento daquele que nada fala no processo penal:

Mesmo no banco dos réus, é sempre interessante ouvir falar de si mesmo. Durante as falas do promotor e do meu advogado, posso dizer que se falou muito de mim, e talvez até mais de mim do que do meu crime. Eram, aliás, assim tão diferentes estes discursos? O advogado levantava os braços e admitia a culpa, mas com atenuantes. O promotor estendia as mãos e denunciava a culpabilidade, mas sem atenuantes. No entanto, uma coisa me incomodava vagamente. Apesar das minhas preocupações, às vezes eu fi cava tentado a intervir e meu advogado dizia, então, ‘cale-se, é melhor para o seu caso’. De algum modo, pareciam tratar deste caso à margem de mim. Tudo se rolava sem a minha intervenção. Acertaram o meu destino, sem me pedir uma opinião. De vez em quando, tinha vontade de dizer: ‘Mas afi nal quem é o acusado? É importante ser o acusado. E tenho algo a dizer.’50

O que se percebe dessa narrativa é a absoluta falta de atenção para com aquilo que os envolvidos diretos no confl ito possuem e que pode (ou não) ser útil para o deslinde da causa. O olhar desconfi ado do cientista o impede de transcender a barreira da modernidade e, portanto, o iluminado não pode deixar o irracional participar do diálogo: impossível dar voz àqueles que não têm luz, os envolvidos, pois estes não possuem o afastamento necessário para não deixar as suas doces e desmedidas emoções atrapalharem a sua dura e quadrada Razão. Não é de se estranhar que todo aquele que tenta ultrapassar essa barreira – em qualquer área do conhecimento – é tratado como um poeta, como um artista, como um teólogo, ou ainda como um “sonhador”, e sempre de forma pejorativa, pois a rigorosa Razão não admite esse tipo de posicionamento.

Apesar da narrativa demonstrar o pensamento de um acusado, pode-se dizer que, muito mais do que esse, as vítimas nos processos penais, quando não são mortas, igualmente não possuem fala. E quando são chamadas a falar no processo penal, são consideradas como meras informantes, pois o seu “lado emotivo” estaria interferindo o seu “lado racional” e, certamente, irão querer vingança contra os acusados: seria a emoção (novamente) se sobrepondo à Razão... Como modernos que somos, isso não é possível de se admitir, por óbvio.

50 CAMUS, Albert. O Estrangeiro, p.102.

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Mas, para tentarmos dar um passo além de nossa arrogância jurídico-moderna, há outra alternativa que não o processo penal? É possível estabelecermos um diálogo no processo penal sem que com isso sejamos obrigados a abrir mão dos direitos humanos – tão duramente conquistados? É a que se propõe o debate em seguida.

4 A JUSTIÇA RESTAURATIVA E O RESGATE DO DIÁLOGO NA TENTATIVA DE ENFRENTAMENTO DAS SITUAÇÕES PROBLEMÁTICAS

Como conciliar o ato de justiça, que deve sempre concernir a uma singularidade, indivíduos, grupos, existências insubstituíveis, o outro ou eu como outro, numa situação única, com a regra, a norma, o valor ou o imperativo de justiça, que têm necessariamente uma forma geral, mesmo que essa generalidade prescreva uma aplicação que é, cada vez, singular?

(Jacques Derrida, in Força de Lei)

Nesse contexto de incessante questionamento de tudo aquilo que se entende por ciência moderna e, portanto, por todos os seus frutos, necessário pensarmos, relativamente à ciência jurídica e, mais especifi camente, quanto ao processo penal, formas alternativas à sua mecânica engrenagem.

Por esses motivos, importante começar a pensar a respeito do modelo conhecido como Justiça Restaurativa. Tal modelo surge como alternativa à falência estrutural do modelo tradicional de sistema criminal, tendo como desafi o retrabalhar os dogmas da justiça criminal, a fi m de restaurar o máximo possível do status quo anterior ao delito.

Frontalmente associada, em seu início, ao movimento de descriminalização, Mylène Jaccould refere que a Justiça Restaurativa deu

passagem ao desdobramento de numerosas experiências-piloto do sistema penal a partir da metade dos anos setenta (fase experimental), experiências que se institucionalizaram nos anos oitenta (fase de institucionalização) pela adoção de medidas legislativas específi cas. A partir dos anos 90, a justiça restaurativa conhece uma fase de expansão e se vê inserida em todas as etapas do processo penal.51

Segundo Howard Zehr,

o primeiro passo na justiça restaurativa é atender às necessidades imediatas, especialmente as da vítima. Depois disso a justiça restaurativa deveria buscar

51 JACCOULD, Mylène. Princípios, Tendências..., p.4.

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identifi car necessidades e obrigações mais amplas. Para tanto o processo deverá, na medida do possível, colocar o poder e a responsabilidade nas mãos dos diretamente envolvidos: a vítima e o ofensor. Deve haver espaço também para o envolvimento da comunidade. Em segundo lugar, ela deve tratar do relacionamento vítima-ofensor facilitando sua interação e a troca de informações sobre o acontecido, sobre cada um dos envolvidos e sobre suas necessidades. Em terceiro lugar, ela deve se concentrar na resolução dos problemas, tratando não apenas das necessidades presentes, mas das intenções futuras.52

Na justiça restaurativa, (a) a vítima poderá participar dos debates; (b) o procedimento poderá não resultar em prisão para o acusado, mesmo que ele venha a admitir que praticou o delito e provas venham a corroborar a confi ssão; (c) há a possibilidade de acordo entre as partes; (d) os operadores jurídicos deixarão de ser os protagonistas, abrindo espaço para um enfrentamento interdisciplinar do confl ito interpessoal; dentre outras características.

Vale o registro de André Gomma de Azevedo, para quem

a Justiça Restaurativa apresenta uma estrutura conceitual substancialmente distinta da chamada Justiça Tradicional ou Justiça Retributiva. A Justiça Restaurativa enfatiza a importância de se elevar o papel das vítimas e membros da comunidade ao mesmo tempo em que os ofensores (réus, acusados, indiciados ou autores do fato) são efetivamente responsabilizados perante as pessoas que foram vitimizadas, restaurando as perdas materiais e morais das vítimas e providenciando uma gama de oportunidades para diálogo, negociação e resolução de questões.53

Acreditamos, igualmente, que a Justiça Restaurativa “representa um novo paradigma aplicado ao processo penal, que busca intervir de forma efetiva no confl ito que é exteriorizado pelo crime, e restaurar as relações que foram abaladas a partir desse evento (VITTO, 2005, p.3)”. E a aparição do novo paradigma reside justamente na possibilidade concreta de instauração de um diálogo entre vítima, ofensor e quaisquer outros interessados no confl ito.54 Para Eduardo Rezende Melo,

o pluralismo que um modelo restaurativo de justiça nos permite entrever é este, de que as avaliações que realizamos não se remetem logicamente a valores dos quais deduzimos as condutas que haveremos de adotar, mas se referem, pelo contrário, a maneiras de ser, de viver, de sentir que haveremos, em nossa singularidade existencial, de procurar estruturar e justifi car, com tudo aquilo de que somos providos – sentimentos, paixões, razões –, para nos afi rmarmos

52 ZEHR, Howard. Trocando as Lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça, p.198.53 AZEVEDO, André Gomma. O Componente Mediação Vítima-Ofensor..., p.6.54 Conferir ACHUTTI, Daniel. Modelos Contemporâneos de Justiça Criminal. Justiça Terapêutica, Instantânea e Restaurativa. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.

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no mundo. E esta afi rmação há de ser feita perante um Outro concreto com o qual nos relacionamos, com seu modo de existência todo diverso, incapaz ele também de, por si, nos entender.55 (grifos nossos)

Vale citar novamente Melo, que sintetiza os motivos que demonstram, efetivamente, a emergência de um novo paradigma processual, a partir da Justiça Restaurativa, para o enfrentamento dos confl itos criminais: primeiramente, ela oportuniza uma outra percepção da relação entre o indivíduo e a sociedade “no que concerne ao poder: contra uma visão vertical na defi nição do que é justo, ela dá vazão a um acertamento horizontal e pluralista daquilo que pode ser considerado justo pelos envolvidos numa situação confl itiva”; em segundo lugar, salienta que a justiça restaurativa foca “na singularidade daqueles que estão em relação e nos valores que a presidem, abrindo-se, com isso, àquilo que leva ao confl ito”; em terceiro lugar, se o foco está mais voltado para a relação do que para a resposta punitiva estatal, o próprio confl ito e a tensão relacional adquirem outro estatuto, “não mais como aquilo que há de ser rechaçado, apagado, aniquilado, mas sim como aquilo que há de ser trabalhado, laborado, potencializado naquilo que pode ter de positivo, para além de uma expressão gauche, com contornos destrutivos”; em quarto lugar, “contra um modelo centrado no acertamento de contas meramente com o passado, a justiça restaurativa permite uma outra relação com o tempo, atenta também aos termos em que hão de se acertar os envolvidos no presente à vista do porvir”; e, em quinto lugar, “este modelo aponta para o rompimento dos limites colocados pelo direito liberal, abrindo-nos, para além do interpessoal, a uma percepção social dos problemas colocados nas situações confl itivas”.56

Para Antoine Garapon, a justiça restaurativa57 proporciona um verdadeiro “deslocamento do centro de gravidade da justiça”, pois “atribui um rosto novo à justiça: reconstruir a relação no que ela tem de mais concreto. Tem como vizinhos homens de carne e osso, não a lei!”58 Com a quebra da centralidade da justiça criminal no acusado, a vítima passa a ter papel fundamental neste novo cenário, de forma a intimar “o direito penal a reorganizar-se”: “quando nos concentramos na vítima e já não no autor, a malvadez como vontade má deixa de ser central, o que exerce uma infl uência considerável sobre o sentido da pena. Esta já não pode pretender apontar uma intenção culpada.”59 Ainda segundo Garapon,

55 MELO, Eduardo Rezende. Justiça Restaurativa e seus Desafi os Histórico-Culturais..., p.11.56 MELO, Eduardo Rezende. Justiça Restaurativa e seus Desafi os Histórico-Culturais..., p.7.57 Na tradução portuguesa, o termo justiça restaurativa foi traduzido como justiça reconstrutiva. Em inglês, restorative justice. O autor prefere a tradução “reconstrutiva” à “restaurativa” em virtude da ideia de busca de reconstrução de uma relação destruída, por um lado, e pelo espírito no qual ela deve fazer-se, por outro, no sentido de originar-se da noção de “construtivo”. Ainda, salienta que o adjetivo “restauradora” traz consigo a noção de “um retorno ao idêntico que (...) não está conforme a ambição desta forma de justiça.” (cf. nota n.1, p.250) Não desconhecemos essa diferença, mas, para não utilizar dois termos distintos, utilizaremos o termo mais conhecido, qual seja, justiça restaurativa.58 GARAPON, Antoine. Punir em Democracia. E a justiça será, pp.253 e 251.59 GARAPON, Antoine. Punir em Democracia..., pp.255 e 257.

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a vítima cessa o frente a frente secular entre o criminoso e o príncipe no qual ela fazia fi gura de convidada e sobrepõe-lhe um outro entre ela e o criminoso. Ela obriga assim a repensar a justiça como o local de articulação não entre dois (o criminoso e o príncipe), mas três protagonistas.60

Importante apontamento traz Leonardo Sica, quando afirma que “a justiça restaurativa é uma prática ou, mais precisamente, um conjunto de práticas em busca de uma teoria”.61 Raffaella Pallamolla, por sua vez, acentua que “a justiça restaurativa possui um conceito não só aberto como, também, fl uido, pois vem sendo modifi cado, assim como suas práticas, desde os primeiros estudos e experiências restaurativas”.62 E talvez essa construção ainda em aberto seja um ponto bastante positivo, uma vez que não há (ainda) engessamento das formas de controle social via justiça criminal e, portanto, os casos-padrão e as respostas-receituário permanecem indeterminadas – tal como devem, efetivamente, permanecer. Para Lode Walgrave,

Restorative Justice is an unfi nished product. It is a complex and lively realm of different – and partly opposite – beliefs and options, renovating inspirations and practices in different contexts, scientifi c ‘crossing swords’ over research methodology and outcomes. (...) It is a fi eld on its own, looking for constructive ways of dealing with the aftermath of crime, but also part of a larger socio-ethical and political agenda.63

Nesse contexto de enfrentamento do crime, a abordagem do agir criminoso – aquele atribuível apenas ao humano absolutamente racional, como uma ação que resulta de uma intenção livre e individual – pode deixar de isolar os demais integrantes do cenário social do sujeito e, assim, permitir que não se o responsabilize exclusivamente como culpado pelo crime. Não se pretende desvincular uma ação de seu autor, mas apenas ampliar a abordagem, de forma a tentar compreender o delito como algo maior e mais complexo do que apenas uma conduta humana livre e consciente direcionada a determinado fi m.

Isso não signifi ca que tudo será permitido, antes pelo contrário: a identifi cação de um determinado contexto para a ocorrência de situações problemáticas complexifi ca a situação e permite o abandono de modelo que se quer puro e autossufi ciente (teoria do delito) para buscar outra maneira de pensar tais condutas. E é nesse momento que se torna possível pensar na tradicional diferenciação entre ilícito civil e ilícito penal: a percepção, desde outros olhares, sobre o signifi cado atribuído a determinadas condutas, variando conforme a (sub)cultura em que estiverem inseridos os envolvidos é, talvez, um dos pontos centrais a ser ponderado. Como possível consequência de uma redução

60 GARAPON, Antoine. Punir em Democracia..., p.262.61 SICA, Leonardo. Justiça Restaurativa e Mediação Penal: o novo modelo de justiça criminal e de gestão do crime, p.10.62 PALLAMOLLA, Raffaella. Justiça Resturativa: da teoria à prática, p.54.63 WALGRAVE, Lode. WALGRAVE, Lode. Restorative Justice, Self-interest and Responsible Citizenship, p.11.

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do sistema penal e da ampliação da utilização de uma justiça restaurativa, em que o foco não é o enquadramento de uma conduta em determinado tipo penal, mas no dano causado, Ezzat Fattah é taxativo:

The measurement of harm: physical, material, and mental, will likely become the central component of social reaction to crime. The primary aims of such a response will be redress, reparation and compensation. My guess is that the arbitrary distinction between crimes and civil torts will disappear and that the artifi cial boundaries that have been erected over the years between criminal courts and civil courts will be removed.64

A superação das fronteiras artifi ciais entre as cortes cíveis e criminais, como refere Fattah, somente poderão ocorrer caso haja um novo olhar sobre a própria classifi cação das condutas danosas – de ilícitos penais para outro tipo de ilícito, precipuamente o civil. Tal superação permitiria, se bem estruturada, constituir-se em um freio à rotulação do ofensor como delinquente; resultar em uma decisão menos danosa individual e socialmente (diminuiria drasticamente as possibilidades de uma pessoa ser enviada à prisão); e, ainda, desencadear, ao fi nal, não mais em meras sentenças condenatórias como respostas ao crime, mas em ações coletivas voltadas para a reparação do dano causado.

A Justiça Restaurativa pretende, como se percebe, apoiar-se “no princípio de uma redefi nição do crime. O crime não é mais concebido como uma violação contra o estado ou como uma transgressão a uma norma jurídica, mas como um evento causador de prejuízos e consequências”,65 focando a atenção na possível solução do problema através do diálogo entre as partes (direta ou indiretamente envolvidas: agressor, vítima, amigos, parentes, pessoas importantes para as partes, etc.). A infração, então, deixa de ser um mero tipo penal violado e passa a ser vista como advinda de um contexto bem mais amplo, de origens obscuras e complexas, e não de uma mera relação de causa e efeito.

4 CONSIDERAÇÕES FINAISSegundo Jacques Derrida, “o direito não é a justiça. O direito é o elemento do

cálculo, é justo que haja um direito, mas a justiça é incalculável, ela exige que se calcule o incalculável (...).” Continua o autor

Cada caso é um caso, cada decisão é diferente e requer uma interpretação absolutamente única, que nenhuma regra existente ou codifi cada pode nem deve absolutamente garantir. Pelo menos, se ela a garantir de modo seguro, então o juiz é uma máquina de calcular (...).66

64 FATTAH, E. Victimology: past, present and future, p.42.65 JACCOULD, Mylène. Princípios, Tendências..., p.7.66 DERRIDA, Jacques. Força de Lei, pp.30 e 44-45.

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Para Garapon,

o importante não é tanto estabelecer os erros do passado quanto preparar o futuro, isto é, permitir a cada um refazer ou continuar a sua vida. Estas duas leis preferem, de seguida, o acordo à decisão imposta, sempre que possível. O juiz retira-se na ponta dos pés de certos confl itos, concebendo de futuro a sua intervenção como subsidiária. A intervenção do terceiro, dramatizada pelo processo, torna-se secundária em relação a uma justiça do frente a frente.67

A mofada pré-determinação, via códigos, do que é e do que não é crime diluiria-se aos poucos, dando espaço, tempo e lugar aos envolvidos no problema para que decidam o que fazer, abandonando que os conhecidos “terceiros” tomem os seus lugares e as suas dores e digam, a partir de seus locais de vida – evidentemente outros – o que e como deve ser feito.

Como refere Becker, “o grau em que um ato será tratado como desviante depende também de quem o comete e de quem se sente prejudicado por ele”.68 Com a devolução do confl ito às partes, pode-se romper com condutas a priori proibidas para pensá-las apenas a partir da interpretação dos envolvidos no episódio, de forma a se permitir a apresentação dos envolvidos e suas variáveis subjetivas que, na justiça penal tradicional, não encontram espaço de valorização.

Não se pretende, com isto, a abolição imediata da justiça penal, mas, quiçá, a sua signifi cativa redução. A justiça restaurativa, justamente por não ser um produto pronto e acabado, ainda não tem condições de ter uma pretensão puramente abolicionista, mas nada impede que seja utilizada com a fi nalidade de redução da atuação do sistema penal e de toda a dor que este proporciona às partes. Além disso, pode se constituir em importante ferramenta para a estruturação de um sistema de justiça criminal que propicie a instauração, entre os envolvidos, de um verdadeiro encontro.69 Concordamos com Garapon, para quem a justiça restaurativa não se funda nem exclusivamente no ato delitivo (violação da lei – modelo retributivo), nem na pessoa do autor visando a sua educação (modelo reabilitativo),

mas no evento do seu encontro, gerador em si mesmo de créditos e débitos novos.

O encontro não se reduz ao acto, que é o evento visto do agente, tal como não se confunde com o sofrimento, a sua vivência pelo paciente da acção, ou com a transgressão que lhe é a qualifi cação abstracta. Nenhuma dessas abordagens lhe esgota totalmente o sentido.

67 GARAPON, Antoine. Punir em Democracia..., p.261.68 BECKER, Howard S. Outsiders, p.25.69 Conferir SOUZA, Ricardo Timm de. Ética como Fundamento. Uma introdução à ética contemporânea.

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Com a sua parte de sorte, de imprevisto, de transcendência, com o acidente, a catástrofe, o encontro transcende a intenção de quem lhe tomou a iniciativa. Tal como as suas consequências para a vítima ultrapassam a unidade do tempo, de lugar e de acção na qual se queria contudo encerrá-la. Um encontro transborda sempre sobre si mesmo: é tão imprevisível para a vítima quanto, em certa medida, o é para o autor. A injustiça nasce aí, nesse mal-entendido da vida, nesta diferença entre a acção desejada e o drama calhado em sorte, entre duas versões do vivido que não podem conciliar-se. A justiça saberá encontrar equivalências satisfatórias para saldar esta conta que o acaso estabeleceu?70

Invariavelmente, refere Garapon,71 a ideia central da justiça restaurativa está na pretensão de atribuir aos principais interessados – vítima, autor e grupo social diretamente afetado pelo delito – os recursos sufi cientes para reagir à infração. Já que não é mais possível “pretender saber a priori melhor que os próprios interessados o que é bom para eles”, melhor então “despertar as suas competências particulares, adormecidas pelo paternalismo das instituições”.72

O que se quer, portanto, é oportunizar que se construa “uma resposta inteligente ao pluralismo moral próprio de toda a sociedade democrática”,73 ou seja, que esse novo modelo de justiça criminal permita pensar a questão para além do anacrônico modelo causal do crime-castigo.

Trata-se, essencialmente, de uma importante ferramenta, diversa ao processo penal tradicional, que opta por não tratar o acusado e os demais envolvidos no confl ito como Estrangeiros indesejados, mas como Estrangeiros-cidadãos, portadores de voz, direitos e humanidade. Tratá-los com dignidade e respeita os seus direitos é um pressuposto para a sobreposição de um novo modelo processual, para muito além do penal.

Assim, a Justiça Restaurativa, apesar de alguns problemas que devem ser discutidos, sinaliza para um novo caminho para o enfrentamento dos confl itos criminais, mas que, necessariamente, não poderá ser implementado sem uma mudança substancial no que se entende por direito penal e processual penal atualmente.

REFERÊNCIASACHUTTI, Daniel. Modelos Contemporâneos de Justiça Criminal. Justiça Terapêutica, Instantânea e Restaurativa. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.AZEVEDO, André Gomma. O Componente Mediação Vítima-Ofensor na Justiça Restaurativa: uma breve apresentação de uma inovação epistemológica na autocomposição

70 GARAPON, Antoine. Punir em Democracia..., p.269.71 GARAPON, Antoine. Punir em Democracia..., p.313.72 GARAPON, Antoine. Punir em Democracia..., p.318.73 GARAPON, Antoine. Punir em Democracia..., p.313.

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Sentença do caso “O sequestro dos uruguaios”1

Vistos etc...

PEDRO CARLOS SEELIG, brasileiro, desquitado, funcionário público estadual, desempenhando o cargo de Delegado de Polícia, fi lho de Reinaldo Seelig e de Adelaide Tortelli Seelig, residente e domiciliado nesta comarca de Porto Alegre; ORANDIR PORTASSI LUCAS, casado, brasileiro, funcionário público estadual, exercendo o cargo de Escrivão de Polícia, fi lho de Ervandir Alves Lucas e Romilda Portassi Lucas, alcunha “Didi Pedalada”, residente e domiciliado nesta capital e comarca de Porto Alegre, foram denunciados por infração aos artigos 3º, letras “a” e “b”; 4º, letra “a” da Lei 4898/65, com a alteração da Lei 5249/67, combinados com os artigos 25 e 44, II, letra “i” (criança) do Código Penal.

JANITO JORGE DOS SANTOS KEPPLER, brasileiro solteiro, maior, funcionário público estadual, exercendo as funções de Inspetor de Polícia, fi lho de Janito Feijó Keppler e Olinda dos Santos Keppler, residente e domiciliado nesta comarca, foi denunciado, em virtude de aditamento, por infração aos artigos 3º, letra “a”; 4º, letra “a”, da Lei 4898/65, combinado com os artigos 25 e 44, II, letra “i” (criança) do Código Penal; JOÃO AUGUSTO DA ROSA, brasileiro, casado, funcionário público estadual, exercendo o cargo de Inspetor de Polícia, como incurso nas sanções do artigo 3º, letras “a” e “b”; 4º, letra “a” e “c”, da Lei 4898, combinados com o artigo 25 do Código Penal, segundo adi tamento de Fls. 962/965 dos autos.

Segundo o Ministério Público: “No dia 12 de novembro de 1978, aproximadamente às 12 horas, na rua Botafogo, 621, bloco 3, apto 110, em Porto Alegre, onde residiam, quando as crianças Camilo e Francesca Casariego, com 8 e 3 anos de idade, respectivamente, preparavam-se para assistir um jogo de futebol, no Estádio Beira-Rio, foram detidos ilegalmente por diversos homens, que não possuíam qualquer mandado de prisão, nem mesmo as vítimas cometiam qualquer espécie de delito.

Pelo menos as duas crianças foram levadas e de imediato para o prédio da Secretaria de Segurança e ali permaneceram por um ou mais dias. Enquanto isto a uruguaia Lilian Elvira Celiberti, com permanência legal no Brasil, foi coagida

1 No ano de 1978, Porto Alegre foi palco de um crime político que teve repercussão internacional, praticado por policiais gaúchos e que passou a ser conhecido como o “Sequestro dos uruguaios”. O documento ora publicado é a sentença criminal, da lavra do Dr. Moacir Danilo Roij Rodrigues, proferida no processo crime que 4 policiais responderam, como incursos em artigos da Lei 4.898/65, representando importante peça jurídica da história daqueles difíceis tempos em que a democracia e as garantias da cidadania não eram respeitadas (nota da editora).

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a permanecer no referido apartamento, até o dia 17 do mesmo mês, sob a ameaça de armas, portadas pelos autores da prisão, sem que houvesse qualquer motivo autorizador para tal: fl agrante, mandado de prisão ou de busca e apreensão domiciliar e não comunicação posterior à autoridade judiciária.

No dia 17.11.78, o jornalista Luiz Cláudio Cunha, chefe da sucursal da Revista Veja, em Porto Alegre, recebeu um telefonema anônimo, procedente de São Paulo, de uma pessoa que dizia estar preocupada com a falta de informações de Lilian Elvira Celiberti e Universindo Rodriguez Dias, que poderiam estar detidos e solicitava uma verifi cação no endereço que forneceu. O jornalista mencionado, acompanhado pelo fotógrafo João Batista Scalco Pereira, foi ao local.

Foram atendidos por Lilian, através da porta entreaberta e após breve diálogo, em que ela se mostrava nervosa, a porta foi aberta de todo e dois homens armados de pistolas de grosso calibre, determinaram aos jornalistas que entrassem no apartamento, fazendo-os permanecerem encostados à parede, com as mãos para o alto, enquanto os revistaram e interrogaram, por um espaço de cerca de 20 minutos.

Após libertados, as jornalistas foram recomendados para que nada publicassem, nem mesmo informassem o ocorrido a são Paulo, demonstrando que pretendiam prender mais pessoas que, eventualmente, procurassem os uruguaios. Cunha e Scalco perceberam que lá se encontravam cinco ou seis homens, que pelo modo de agir e falar, denotavam ser policiais. Logo após a libertação, Scalco informou ao companheiro que um dos indivíduos armados se assemelhava com um ex-atleta do futebol, conhecido por “Didi Pedalada”.

Mais tarde, através de fotografi as, os jornalistas identifi caram, com segurança, o funcionário policial, Orandir Portassi Lucas, como um dos homens armados no apartamento de Lilian.

Uma Comissão da OAB, Secção do Rio Grande do Sul, esteve em Montevidéu, quando através de fotografi as, o menor Camilo reconheceu o prédio da Secretaria de Segurança Pública, como o local em que esteve recolhido, junto com Francesca e Lilian, reconhecido também, mediante fotos, pelo garoto, o Delegado Pedro Carlos Seelig, como um dos homens que estivera em sua residência na rua Botafogo.

Pelo aditamento de fl s 737/744, a participação de Janito Keppler no transporte coativo dos uruguaios até a fronteira, levados de automóvel, foi narrado pela irmã de Janito, Cecília Regina Keppler da Silva, ao advogado João Antônio Silveira de Castro, e informando que a operação fora comandada pelo Delega do de Polícia Pedro Seelig, superior hierárquico de Janito. Isto João Castro narrou aos advogados Mariano Beck, Hermínio Beck e Ornar Ferri, mas acabou posteriormente negando.

Igualmente, pelo aditamento de fl s. 962 a 965, diz o Ministério Público, João Augusto da Rosa participou do evento criminoso, porque reconhecido judicialmente pelos jornalistas Luiz Cláudio Cunha e João Batista Scalco Pereira, como a pessoa

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que apontou a pistola para o rosto daquele, imobilizando-os, fazendo com que ambos entrassem no apartamento. Era João Augusto que fazia as perguntas e, interrogando os dois, demonstrava ser o chefe da operação no interior do prédio.

Foi, inclusive, o homem que se afastou por alguns minutos, voltando após mais cordial, autorizando os jornalistas a se afastarem do local, após recomendação para que nada publicassem, nem avisassem a pessoa que telefonara.”

A denúncia contra os dois primeiros réus foi recebida em 05.03.79 – fl s. 317/318. O aditamento contra Janito Keppler em data de 15.10.79 – fl s. 752/753 e contra João Augusto em 07.04.80 – fl s. 966/967.

Citados, foram interrogados. Os dois primeiros em 10.04.79 – fl s. 497/5030. Os réus Janito e João Augusto em 09.11.79 (fl s. 781/783) e 08.05.80, conforme se vê de fl s. 1007/1009, respectivamente. Por defensores constituídos, apresentaram defesa prévia, arrolando testemunhas e requerendo diligências (fl s. 516 a 517, 518/519, 789 e 1010/1012, respectivamente) várias.

A primeira audiência, para inquirição de testemunhas da denúncia, foi realizada em 10.05.79, com a ouvida de três pessoas (fl s. 538/551). A segunda ocorreu em 11.06.79 (fl s. 624/630), tomados dois depoimentos. Mais três testemunhas foram ouvidas em 07.08.79 (à fl s. 662/671). A inquirição de mais quatro acontece em 10.09.79 (fl s. 689/694). Em 11.10.79 (fl s. 729/735) foram ouvidas mais cinco, com a desistência de uma requerida pela defesa de Seelig, com concordância e homologação. Em 13.11.79 (fl s. 793/800) mais uma. E em 31 de março de 1980 (fl s. 948/951) foi realizada a audiência em que Scalco e Cunha reconheceram João A. da Rosa.

Em virtude dos aditamentos contra Janito Keppler e João Augusto da Rosa, requereram seus defensores a reinquirição das testemunhas arroladas na denúncia e das que tiveram depoimentos determinados de ofício. Em despacho que se encontra à fl s. 1046/1049, foi deferido o pedido e determinado, ainda, a inquirição de mais 10 pessoas, todas referidas, além das oferecidas, por estes dois denunciados, em defesa prévia.

Desta forma, em data de 03.06.80, foram ouvidas seis testemunhas. Em 10.06.80, mais dez (fl s. 1182 a 1194). Em 17.06.80, mais quatro depoimentos foram colhidos (fl s. 1218/1225). Em razão de uma entrega de documento, por parte do Dr. Justino Vasconcellos, Presidente Regional da OAB, que correspondia a depoimento à OAB Nacional, por Hugo Walter Garcia Rivas prestado e alusivo ao fato, foi determinada a inquirição de mais pessoas.

Assim, em 03.07.80, foram ouvidos o Presidente do Conselho federal, Dr. Seabra Fagundes, do Presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, Jair de Lima Krische e dos jornalistas que realizaram reportagem com Hugo Rivas, que declarava ter integrado órgão de segurança do Uruguai.

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Finalmente, em data de 10.07.80, foi realizada a última audiência, com a inquirição de três testemunhas da defesa de Jaito Keppler, que desistiu de outras duas, com concordância e homologação.

Em debates orais o Ministério Público, entendendo provada a denúncia e os aditamentos, postula condenação de todos os réus

A defesa dos três primeiros denunciados, em preliminar, argui: a) cerceamento de defesa e consequente nulidade do feito, por desatendido requerimento no sentido de ser enviada carta rogatória para ouvida dos militares do Exército Uruguaio, referidos por Hugo Rivas.

b) cerceamento de defesa, por indeferida perícia sobre as assinaturas de Rivas, lançadas em seus depoimentos, no manuscrito publicado pelo Jornal “ZERO HORA”, em cotejo com as constantes das fotocópias de seus documentos.

c) inaplicabilidade da lei 4898/65 aos denunciados Orandir, Janito e João Augusto, por não serem autoridades policiais.

d) falta de justa causa para a ação penal dada a ausência da palavra das vítimas, na fase judicial, o que acarreta a nulidade do feito.

No mérito a defesa dos três primeiros alega que eles não cometeram o delito, examinando exaustivamente a prova, pedindo a absolvição.

A defesa de João Augusto, após se manifestar sobre o conjunto probatório, sustenta a inocência do réu, com o que deve ser absolvido.

Registre-se que, dada a complexidade da matéria e dos vários volumes existentes, as partes apresentaram memoriais, com conhecimento e concordância recíprocos.

Saliente-se, também, que além dos oito volumes, tombados em juízo existem mais quatorze apensos e representados pela CPI da Assembléia Legislativa do Estado, Relatório da Comissão da OAB e Sindicância levada a cabo na Secretaria de Segurança Pública e mais um apenso, referente a exceção de incompetência de juízo, num total, pois, de vinte e três volumes.

Face, portanto, a tão volumoso expediente e a heterogêneas fontes, não foi possível proferir sentença, em audiência, como expressamente determina a Lei 4898/65, entendendo aplicável, consequentemente, o Código de Processo Penal, que fi xa o prazo de 10 dias para proferir decisão, eis que se trata, neste caso, de processo com réus soltos.

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É O RELATÓRIO. DECIDO.Preliminares:

Aprecio, de logo, a preliminar de nulidade do feito, por cerceamento de defesa, que os réus arguiram desdobradamente: indeferimento da rogatória para inquirição dos militares uruguaios, citados no depoimento de Hugo Garcia Rivas, prestados a uma Comissão da OAB e ao Movimento de Justiça e Direitos Humanos e negativa de perícia grafotécnica nas assinaturas lançadas por Hugo Rivas nos referidos depoimentos e no manuscrito publicado pela imprensa, compativamente com as constantes de seus documentos.

Mantenho os despachos lançados nos autos à fl s. 1253v e 1311, referentemente ao indeferimento da rogatória, pelos próprios motivos ali expostos, isto porque:

Não constitui cerceamento de defesa, em regra, o fato de o juiz a quo indeferir pedido de testemunha referida, por isso que a teor do § lº, do artigo 209 do Estatuto processual penal, é medida facultativa. Revista dos Tribunais, 455/416.

No que diz respeito a negativa de perícia grafotécnica, permanecem os argumentos expendidos no próprio termo da audiência realizada em 10 do corrente, valendo acrescentar que, além de desnecessária, já que não se refere a exame de corpo de delito seria tecnicamente impossível, posto que os documentos originais certamente acompanharam Rivas, quando de sua saída do território brasileiro. Diz o artigo 18 do Código de Processo Penal:

Salvo o caso de exame de corpo de delito, o juíz ou a autoridade policial negará a perícia requerida pelas partes, quando não for necessária ao esclarecimento da verdade.

Rejeito, de outra parte, a preliminar de inaplicabilidade, aos três últimos réus, da Lei 4898, posto que não são autoridades.

Entendo que não se pode lançar névoa sobre o que está absolutamente claro, explícito na própria lei. Com efeito, o artigo 4º do mencionado diploma começa diferenciando atos de mando e de execução, ou seja, de superior e subordinado. Aquele manda e este executa. Porém ambos são sujeitos ativos do crime de abuso de autoridade. Vejamos:

4º Constitui, também, abuso de autoridade:

a) ordenar ou executar medida privativa de liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder.

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Logo após, nas letras “f” e “g” são feitas referências específi cas:

f) cobrar o carcereiro ou agente da autoridade policial.

g) Recusar o carcereiro ou agente da autoridade policial

E quem é, pela referida lei, considerado autoridade? Apenas o Delegado de Polícia? Não. A resposta é dada pelo seu artigo 5º:

Considera-se autoridade, para os efeitos desta lei, quem exerce cargo, emprego ou função pública, de natureza civil ou militar, ainda que transitoriamente e sem remuneração.

E o seu artigo 6º, § 5º liquida o tema:

Quando o abuso for cometido por agente da autoridade policial, civil ou militar, de qualquer categoria, poderá ser cominada a pena autônoma ou acessória, de não poder o acusado exercer funções de natureza policial ou militar no município da culpa, por prazo de um a cinco anos.

Basta, em conclusão, que seja funcionário público, ou exerça, mesmo que temporária e não remuneradamente, uma função pública:

Funcionário público é todo aquele que, embora em caráter transitório ou sem remuneração, exerce emprego ou função pública. RIBEIRO PONTES, C.P. B. 6ª edição, pg. 534.

O Código Penal, afastando as controvérsias terminou com segurança o que se deve entender, para fi ns do direito penal, “intra poenia juris poenalis”, por funcionário público que, embora transitoriamente e sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública... É realmente o exercício da função pública o que caracteriza o funcionário público perante o direito penal.

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H. FRAGOSO, Liç. Dir. Penal, IV/1062.

O conceito de funcionário público deve ser, assim, ligado à noção ampla de “função pública”. Este o critério prevalente.

N. HUNGRIA, in Comentários, IX/400/403.

Resta, por fi m, a preliminar de ausência de justa causa, para a ação penal, por não terem sido ou vidas as vítimas, na fase judicial. Quer a defesa que, com o advento da lei 5249, de 09.02.67, a ação penal, por crime de abuso de autoridade, passou de pública condicionada à pública pura.

Não havendo representação, com a expressa e cabal manifestação do ofendido ao fato e aos que o praticaram, sua inquirição é requisito essencial à ação. Inexistente, nulo o feito.

Com a vênia que me merece a fi gura ilustre do Dr. Lia Pires, com o respeito que tenho por sua sabedoria jurídica, não compartilho de seu ponto de vista. Não vejo necessidade em se tomar o depoimento do ofendido. Consequentemente, não há nulidade.

Como bem salientou sua excelência, trata-se aqui de uma ação pública. E, como tal, há uma duplicidade de sujeitos passivos: o Estado e o cidadão. Surgida a notícia do delito, concomitante ou separadamente poderão agir. Alias, o poderá é uma faculdade deste. Para aquele há uma imperatividade.

BILAC PINTO, autor do projeto de lei que se transformou na 4898, assim justifi cava sua iniciativa:

Previu a Constituição, ao instituir as regras fundamentais que caracterizam o estado de direito e ao inscrever no seu texto direitos e garantias individuais que abusos poderiam ser cometidos, pelas autoridades encarregadas de velar pela execução das leis e pela manutenção e vigência dos principias asseguradores dos direitos da pessoa humana.

Conferiu, por isso mesmo, a quem quer que seja, o direito de representar contra abusos de autoridades e de promover a responsabilidade delas por tais abusos.

O objetivo que nos anima é o de complementar a Constituição, para que os direitos e garantias nela asseguradas deixem de constituir letra morta em numerosíssimos municípios brasileiros.

ABUSO DE AUTORIDADE, de G. P. DE FREITAS e V. P. DE FREITAS – ed. Revista dos Tribunais/4.

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Sem dúvida nenhuma, uma grande conquista, especialmente quando se sabe que, a partir de sua vigência, autoridades arbitrárias foram chamadas à moderação, contando-se inúmeras condenações decorrentes.

Valeu ele por uma conquista de suma importância para nossa sociedade política na qual, segundo a inteligência fulgurante de ADAUTO LÚCIO CARDOSO, “para milhões de criaturas, os direitos e garantias individuais têm tido existência puramente nominal.” – Diário do Congresso Nacional, página 8.149.

Porém, como todo ordenamento jurídico se condiciona ao aperfeiçoamento, pouco mais de um ano após o seu advento, verifi cava-se uma porta larga, utilizada por aquelas autoridades (ou agentes seus) acostumadas ao arbítrio: a representação do ofendido. Pressionado, ameaçado, deixava de exercitar o direito, triunfando a impunidade.

Aí a razão da Lei 5249, dispondo que a falta de representação do ofendido não obstava a iniciativa do Estado. Conhecedor este de um fato que caracteriza-se abuso de autoridade, não só não deve, como não pode esperar a iniciativa do cidadão prejudicado ou lesado. Cumpre-lhe, de pronto, agir com fi rmeza.

Portanto, há que se repetir a existência de uma duplicidade passiva, no crime de abuso de autoridade:

Há dupla subjetividade passiva. Sujeito passivo mediato: é o Estado, titular da Administração Pública. Sujeito passivo imediato: o cidadão, titular da garantia constitucional lesada ou molestada.

D. EVANGELISTA DE JESUS – Do Ab. Aut. Justitia/j50

E sendo a Estado sujeito passivo, ainda que mediato, o exigir-se o depoimento das vítimas, como elemento essencial para a validade da ação, é subverter-se a norma processual norteadora da ação pública.

O Ministério Público ao oferecer denúncia arrolará testemunhas. Os artigos 19 e 23 da lei 4898 dispondo sobre a audiência, determina que serão ouvidos o réu, as testemunhas e o perito. Não refere o depoimento do ofendido.

Ofendido, vítima, não são testemunhas. TOURlNHO FILHO, in Processo Penal, vol 3º, ed. Jalovi/75, à pagina 157, conceitua testemunha:

Para ele, citando Von Kries, testemunhas são terceiras pessoas. Traz, ainda, a defi nição de Manzini de que “testemunho é a declaração, positiva ou negativa da verdade, feita ao magistrado penal por uma pessoa (testemunha) distinta dos sujeitos principais do processo.”

E se a lei 4898 exigisse, coma condição essencial, o depoimento do ofendido, tê-lo-ia dito, expressamente. No mesmo sentido a lei 5249, que tornou pública a ação

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penal, procederia. Não fi zeram porque, como acima foi dito, seria uma subversão a todas as regras de procedimento, posto que, em ação pública, o depoimento da vítima, ou do ofendido, jamais foi erigido em condição para validade do feito.

Aliás, se fosse levado a rigor tal pretensão chegar-se-ia a impunidade do agente que subornasse a sua vítima, ou que a escondesse até o fi nal da instrução, o que é positivamente inadmissível.

Rejeito, pois, esta arguição de nulidade.

DO MÉRITOCumpre examinar, por primeiro, a ocorrência, a existência do fato, após a sua

tipicidade e, fi nalmente, a autoria.

Lilian Elvira Celiberti Rosas de Casariego e seus dois fi lhos, Camilo e Francesca, com oito e três anos, respectivamente, ingressaram em território brasileiro, via Rio de Janeiro, em 17.10.78, chegando a Porto Alegre no mesmo dia, em viagem aérea. Isto está provado pela certidão de fl s. 33 da Polícia Federal.

Ainda nesse dia teria procurado o cidadão Jaime Plavinik, a fi m de alugar um imóvel por ele administrado, já que pretendia permanecer três meses aqui. No dia imediato, ou seja, 18.10.78, celebrou contrato de locação, passando a ocupar o apartamento 110, bloco 3, da rua Botafogo, 621. Fazia-se acompanhar de seus dois fi lhos e de um rapaz de aproximadamente 30 anos, falando em espanhol.

O prazo do contrato era de três meses e o locativo mensal de Cr$. 5.000,00 e, como consta no documento fi rmado entre Jaime e Lilian, aquele recebeu uma caução de Cr$ 5.000,00. Trinta e dois dias após, isto é, a 20.11.78, cerca das 12 horas, na residência de Jaime este recebe a visita de um rapaz, de mais ou menos vinte e cinco anos que, apressado, entrega-lhe um envelope contendo um bilhete de Lilian e as chaves do apartamento, dizendo-se emissário dela.

Estes fatos estão devidamente comprovados, através dos depoimentos de Jaime Plavinik, do contrato de locação e do mencionado bilhete, todos nos autos. Afi rma o administrador que, logo após o recebimento do bilhete, foi ao apartamento, onde achou as roupas do dormitório do casal fora do lugar, com o lençol e o cobertor jogados ao chão.

Observou muito lixo, em um saco de papel, circunstância que causou estranheza, pois normalmente os detritos eram colocados na lixeira. Na cozinha encontrou louças, com restos de comida, que não tinham sido lavadas. Cerca de cinco tampas de luz estavam fora de lugar. E a caução de Cr$ 5.000,00 jamais foi reclamada.

Luiz Cláudio Fontoura da Cunha, chefe da sucursal da Revista Veja, em Porto Alegre, declara que estava em seu local de trabalho quando, por volta das 11 horas do dia 17.11.78, recebeu um telefonema de são Paulo, de uma pessoa do sexo masculino,

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sotaque espanhol, afi rmando que um casal de estrangeiros, juntamente com duas crianças, havia desaparecido de seu aparta mento à rua Botafogo, 621, bloco 3, em Porto Alegre.

Segundo esta pessoa, que permaneceu no anonimato, o desaparecimento teria ocorrido no dia 12 de novembro, um domingo, admitindo que pudessem se encontrar detidos, pois era improvável que tivessem viajado da capital do Estado. Negou-se a fornecer o número de seu telefone, dizendo que faria outra ligação.

Luiz Cláudio, cerca das 16 horas do mesmo dia e acompanhado pelo fotógrafo João Batista Scalco Pereira, da Revista Placar que pertence ao mesmo grupo da Revista Veja, deslocou-se ao local indicado. Tocando a campainha e aguardando cerca de um minuto, “a porta se abriu’ e apareceu o rosto de Lilian. Apareceu apenas o rosto dela com um semblante assustado.”

Falando em espanhol, Luiz Cláudio perguntou à mulher se Universindo ali morava. Ela confi rmou, mas fazia movimento com os olhos, como se desejasse olhar para o lado, para ver alguém que estivesse por lá, ou indicar alguém. Ainda em língua espanhola o jornalista informou que recebera um telefonema de são Paulo e queria saber se tudo estava bem.

Antes que ela respondesse a porta foi escancarada, Lilian retirada, aparecendo um homem que lhe apontou a arma junto aos olhos, indagando: “San Pablo? Outro elemento, igualmente armado, procedeu da mesma forma com Scalcog Foram obrigados a entrar, voltando-se para a parede, braços erguidos sobre a cabeça e as pernas afastadas.

Após um diálogo, quando Luiz Cláudio passou a se expressar em português, a pessoa que o questionava e ainda com a arma apontada, afastou-se do apartamento retornando cerca de cinco minutos após. Estava mais gentil, afi rmando que tudo estava bem com os jornalistas e fazendo com que baixassem as mãos.

Luiz Cláudio indagou-lhe o que estava acontecendo, pois parecia ter entrado numa fria. Nesse momento a pessoa que apontara a arma para Scalco disse: “uma baita fria, cara.” O jornalista voltou a questionar aquele que lhe parecia ser o chefe do grupo, o único que fi zera perguntas, que saíra do apartamento, sobre o que acontecia, obtendo como resposta: é, estrangeiros ilegais no país, essas coisas.” Recomendou que não publicassem qualquer noticia a respeito.

João Batista Scalco Pereira, o fotógrafo que acompanhava Luiz Cláudio, confi rma integralmente este fato.

Em investigações posteriores, levadas a efeito em Montevidéu, o jornalista declara ter ouvido do menor Camilo, na residência dos avós deste, que ele e um amigo – informações posteriores dirão ser Universindo Diaz – se preparavam para assistir uma partida de futebol, no estádio Beira-Rio, entre as equipes do Internacional e do Caxias, no dia 12.11.78, cerca das 13 horas e 30 minutos, quando foram presos e levados para um prédio onde, na frente, encontravam-se carros da polícia. Existiam duas ruas, separadas por um riacho.

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Mostradas fotos do prédio da Secretaria de Segurança Pública, ao menino, por intermédio de sua avó, ele confi rmou que lá estivera preso. Mediante indagações, Luiz Cláudio entendeu que Elenira Severino, policial do DOPS, poderia ter cuidado das crianças, pelo que conseguiu uma fotografi a dela, tendo Camilo confi rmado tal fato, quando a foto lhe foi mostrada pelo magistrado italiano Luigi Araceni.

O Dr. Marcus Soibelmann Melzer (fl s.538/542) que chefi ou a Comissão de Advogados da OAB regional à Montevidéu, confi rma que ouviu de Camilo referência sobre o fato e que sua avó, Lilia, declarou que tudo que sabia sobre o episódio fora por intermédio do neto. Assim, segundo o garoto, ele, sua mãe e a irmã estiveram presos em local que coincide com o relato de Cunha.

Declara, ainda, o advogado Melzer, que dona Lilia narrou ter Camilo lhe transmitido que os três foram retirados do prédio em referência e levados de automóvel, por três homens, até a fronteira, quando ele e Francesca passaram para outro veículo e sua mãe para um terceiro. Então perderam o contato com Lilian.

O Dr. Omar Ferri, em seu depoimento prestado a fl s. 626, conta que por volta das 15 horas do dia 17.11.78, recebeu um telefonema de seu colega Eduardo Greenhalg, que integra um Comitê Para Defesa de Direitos Humanos, ligado à Cúria Metropolitana Paulista, afi rmando que há vários dias estava encontrando difi culdades para contactar com Lilian.

Cerca das 20 horas deste dia, Ferri esteve no apartamento da rua Botafogo, não encontrando pessoa alguma. Deixou um bilhete sob a porta. La retornou no sábado e no domingo. Voltando no dia 20.11.78 encontra Jaime Plavinik, arrumando o apartamento que se encontrava nas piores condições, com cinzeiros cheios de tocos de cigarro, roupas e revistas pelo chão e louças não lavadas.

Diz Ferri que através de uma irmã de Lilian residente em Milão, Mirta Adonai e por telefone, tomou ciência de que a prisão das vitimas ocorreu em 12 de novembro, fi cando todos no apartamento. No dia imedia to foram levados até a fronteira, mas enquanto os demais eram enviados a Montevidéu, Lilian era trazida de volta para Porto Alegre, no apartamento da rua Botafogo, até que no dia 17 chegaram os jornalistas e seus captares decidiram encaminhá-la ao Uruguai.

O Dr. Seabra Fagundes, como Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e o Dr. Justino Vasconcellos, Presidente da OAB Gaúcha, depuseram informando que em São Paulo tomaram depoimento de uma pessoa que se dizia ex-integrante do Exército Uruguaio e que desde 1976 fazia parte da Companhia de Contra Informações daquele paIs.

Segundo aquelas duas altas autoridades da OAB, esse elemento, que se chamava Hugo Valter Garcia Rivas, teria participado, como subalterno, de missão conjunta da mencionada Companhia e policiais brasileiros, na operação de busca de Lilian, seus dois fi lhos e Universindo Diaz, que foram presos em Porto Alegre e levados para a fronteira do Chuí.

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O Presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, de Porto Alegre, Jair de Lima Krische confi rma as informações Hugo Rivas, bem como os jornalistas Kolecza e Maciel, do Jornal Zero Hora, que o entrevistaram, publicando reportagem a respeito.

Os depoimentos são chaves? São, sem dúvida nenhuma, os prestados pelos jornalistas Luiz Cláudio Cunha e João Batista Scalco Pereira. Testemunhas não contraditadas. Encontraram Lilian prisioneira. O Dr. Ornar Ferri, quatro horas depois, lá esteve e não encontrou quem o recebesse.

Os advogados Marcus Melzer, Mariano Beck e Brochado da Rocha, são pessoas por demais conhecidas e nada contra eles foi alegado. E confi rmam ter ouvido a avó de Camilo dizer que este declarara terem sido presos no dia 12 de novembro em Porto Alegre.

Mas, se não bastassem os depoimentos, ainda teríamos a pesar outras circunstâncias que merecem ser examinadas. Como o contrato de locação, por três meses e o depósito de uma caução de Cr$ 5.000,00. De repente e não mais do que de repente, Jaime Plavinik recebe um bilhete, encaminhando as chaves, entregues por pessoa desconhecida.

Dado ao inusitado do fato, Jaime se desloca, de pronto para o apartamento. Descobre que a inquilina fora embora, deixando roupas usadas, livros, a casa em desordem e, principalmente, sequer pensa em recuperar, como normal, a caução de Cr$ 5.000,00.

Ora, quem se obriga a fi car hospedada no Hotel Atlântico, como Lilian se hospedou, meses antes em passagem pelo Rio Grande (fl s. 871) não se pode dar ao luxo de abrir mão de Cr$ 5.000,00. Não em 1978. Ainda se leve em conta que ela tinha difi culdades fi nanceiras a ponto de pagar apenas uma matrícula, na Escola onde os dois fi lhos estavam estudando.

De outro lado, a perícia no mencionado bilhete (fl s.868), realizada por perito da Justiça do Trabalho, é concludente:

É do mesmo punho escritor a assinatura constante do corpo do bilhete e a assinatura (Lilian EIvira CeIiberti) constante ao pé do bilhete?

R – Os exames grafoscópicos realizados sobre o bilhete evidenciam que o grafi smo contido no corpo do contexto – independentemente de qualquer apreciação sobre sua autenticidade – foi ali lançado sem qualquer preocupação de reproduzir os característicos gráfi cos do material padrão...

É do mesmo punho escritor a assinatura constante no contrato de locação – Lilian Elvira Celiberti – e o constante no corpo do bilhete dirigida ao locador Jaime PIavinik?

R – Seguramente não. Tanto o grafi smo do corpo do contexto documental do bilhete, como a própria assinatura lançada ao pé do mesmo, discrepam acentuadamente não só da assinatura contida no contrato de locação, como das demais assinaturas e grafi smos do restante material padrão.

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Em resumo: Lilian não escreveu o bilhete a Jaime Plavinik e nem o assinou!

Nem se alegue que o perito (que também é ofi cial, pois que pertence a Justiça do Trabalho) realizou tarefa calcado em documentos e material padrão insufi cientes. Isto porque, quando a Polícia Federal determinou a realização de perícia, por seu órgão próprio, o resultado que se encontra à fl s. 213/215 é:

Valendo-se de equipamentos adequados (lentes de pequeno aumento, microscópio, lupa com iluminação, etc) os peritos procederam a minucioso confronto entre questionada e padrão. Durante os exames os signatários constataram diferenças de ordem morfogenéti cas, idiográfi cas, no calibre, bem como retoques na assinatura Questionada, que não existem nas assinaturas padrões. Entretanto, face a escassez de padrões fornecidos ao confronto, os peritos não podem concluir pela inautenticidade do material questionado, apesar das divergências constatadas...

Para a perícia elaborada pelo perito da Justiça do Trabalho mais material padrão foi-lhe fornecido, como consta de seu relatório. Dessa forma pode o perito realizar a tarefa, que já fora iniciada, no inquérito da Polícia Federal. Deu-se ele por satisfeito com os elementos de que dispunha. E ofereceu inestimável colaboração à Justiça.

Só para o Instituto de Criminalística, da Polícia Gaúcha, e que os documentos a serem periciados, em especial o material padrão, não foram sufi cientes, pois consta à fl s. 705/706 uma exigência de “um ditado, uma cópia e de quinze a vinte assinaturas colhidas em papel com características físicas semelhantes a do papel sobre o qual foi composto o bilhete incriminado e com o objeto escritor de natureza esfereográfi ca, abastecido com tinta de coloração azul.”

Repita-se, a própria Polícia federal, com menos elementos, ao menos tentou colaborar com a Justiça e se não pode concluir com segurança, ao proceder o exame constatou muitas divergências.

Porem, não e só a perícia que demonstrou não ter Lilian escrito nem assinado o bilhete, o que prova que alguém o fez por ela. Aliás, se os nossos policiais denunciados não falam e não escrevem em língua espanhola, como afi rmam, fortalece-se a crença, (ou a certeza?) da participação conjunta de brasileiros e uruguaios em tão deprimente empreitada.

Há outra prova documental, talvez mais forte e pouco observada. Com efeito, no dia 23 de outubro de 1978, Francesca e Camilo começaram a frequentar as turmas maternal e jardim, respectivamente, do Jardim de Infância Cisne Branco, localizado à Avenida Getúlio Vargas, nº 908. Pelas folhas de presença das crianças, que se encontram de fl s. 53 a 56 assistiram ininterruptamente as aulas até o dia 10 de novembro de 1978, uma sexta-feira. Considerando-se que no sábado não há expediente nos colégios, via de regra, deveriam ter retornado dia 13, uma segunda-feira. Mas não voltaram mais.

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Há referências de que Lilian seria uma mãe irresponsável, que se escondia à sombra dos fi lhos, que com sua vida traumatizara os fi lhos, especialmente Camilo. À Justiça impõe que as coisas sejam colocadas em seus devidos lugares. Lilian estava com sua permanência legal no Brasil. Como estrangeira, deixando sua segunda pátria, a Itália, por certo veio confi ando na bandeira, na Nação Brasileira.

E tão logo chegou (locou o apartamento dia 18 de outubro) tratou de colocar seus fi lhos na Escola. E tanto levou a sério que as crianças, enquanto Lilian esteve livre, não faltaram à aula um só dia. Desnaturados é imperativo proclamar, são aqueles que arrancam os fi lhos para jogarem na masmorra uma mãe que não cometeu segundo o comunicado das Forças Conjuntas do Uruguai, nenhum delito no seu país. Ou não foi esta a declaração ofi cial?

Ah’ David Canabarro, como puderam os teus patrícios de hoje olvidar a mensagem magistral que a pena de Arthur Ferreira Filho registrou para sempre. Assim, quando no ardor da Guerra farroupilha Rosast o ditador da Argentina, mandou oferecer apoio contra o Império em troca de uma aliança com os farroupilhas, Canabarro, comandante em chefe alertou o emissário estrangeiro: “Ide dizer a vosso chefe que o primeiro soldado que cruzar a fronteira, fornecerá o sangue com que será assinada a paz com os imperiais. Porque, acima de nosso ideal pela República, está o nosso amor pelo Brasil.”

Quer a defesa ilustre dos réus que Lilian e Universindo, como militantes do Partido pela Vitória do Povo – PVP – nitidamente de contestação ao regime vigente no Uruguai, tenham se reunido no apartamento, com outros companheiros de ideologia. E como no dia e hora já mencionados, ali dessem chegada os jornalistas, descobrindo seu paradeiro, receberam ordens superiores para abandonar o local, rumando ao Uruguai.

Por vários motivos esta tese não pode prosperar. Em primeiro, que correligionários seriam estes que mantinham Lilian cativa, que prenderam os jornalistas, com dois deles, ao menos, falando português e agindo não como estrangeiros? De outro lado, sendo eles integrantes do Partido de contestação ao regime uruguaio, bem sabiam que Lilian havia sido deportada e lá não poderia voltar.

Vale notar que Universindo e Lilian já eram conhecidos de Luiz Cláudio, sendo que aquele chegara até a fornecer documentos sobre a situação de sua pátria, para este jornalista. Ora, certamente não iriam se assustar a tal ponto, com a chegada de um conhecido e, se lhe haviam entregue documentos é porque lhe depositavam confi ança. Logo, não havia porque a desabalada pressa de fugir do local, abandonando roupas e a própria caução. E correrem exatamente para o único lugar onde não poderiam ir, o Uruguai?

E como explicar que durante toda a semana de 13 a 17, portanto desde segunda até aquela sexta feira, não tenham as crianças, antes tão assíduas, comparecido a um só dia de aula? A tese da defesa é de que o pânico se estabeleceu por volta das 16 horas de sexta-feira. Então não havia razão para a ausência de Camilo e Francesca da Escola!

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Sem sombra de dúvida, a ausência das crianças à aula, no período de 13 a 17, consubstanciada na prova documental examinada, conduz a conclusão defi nitiva da que disse Camilo, ou seja, que foram presos no dia 12, um domingo.

E como referiu Mirta Adonai a Omar Ferri, levados à fronteira onde Universindo e as crianças acabaram entregues de volta aos uruguaios e Lilian trazida de volta ao apartamento, onde fi cou presa, pois que seus captores queriam esperar para efetuar outras prisões, pessoas que ali fossem procurá-la.

Não fora assim, porque teriam deixado que ela abrisse a porta aos jornalistas? E como Luiz Cláudio estivesse falando em espanhol, acreditaram que podia ser o contato aguardado. Infelizmente para ele, felizmente para a Justiça, cometeram uma falha.

Tentaram, de todas as formas, de todos meios, reparar o erro, mas o fato se tornou público e a ação penal não estava condicionada à representação das vitimas, encarceradas no Uruguai.

Tenho, pois, por tudo o que restou examinado, que o fato narrado na denúncia e aditamentos, aconteceu, isto é, Lilian Elvira Celiberti Rosas de Casariego e seus dois fi lhos, Camilo e Francesa e ainda Universindo Diaz, foram presos em Porto Alegre e ao menos por algum tempo mantidos sob prisão, para depois serem levados para o Uruguai.

Este fato, seja que nome se lhe queira dar, ocorreu. Disse, várias vezes, o ex-governador Sinval Guazzelli, que o esclarecimento era questão de honra para o seu governo. Acrescente-se que o repúdio a tal procedimento deve ser almejado por todo brasileiro que admite viver apenas sob um império: o da lei!

Embora a conotação político-ideológica com que foi encarado este fato, ao Judiciário cabe apenas, e tão somente, saber se houve o delito, não importando as fi guras dos sujeitos ativo e passivo, nem as causas a que estejam engajados. Só há uma causa maior: a verdade! Se as vitimas se encontravam no Brasil de forma ilegal, caminhos existiam, legais também, como a própria expulsão, com normas especifi cas a serem seguidas.

O Judiciário é apenas um instrumento da lei cumprindo-lhe cuidar seja ela observada, punindo com imparcialidade quem ouse violá-la. O juiz ao julgar não pode ter a preocupação de agradar ou de não melindrar. O dia em que tiver de decidir sob pressão, ou infl uência de qualquer ordem, ou ainda, receoso de qualquer consequência, melhor será que se exonere para não conspurcar a dignidade do cargo.

Nunca é demais lembrar a lição extraordinária de JOHN MARSHALL, Presidente da Suprema Corte Americana, sobre os deveres do Juiz:

Atentai, senhores, para os deveres de um juiz. Tem ele de pronunciar uma sentença entre o governo e o homem a quem o governo está perseguindo; entre o mais poderoso individuo da República e o mais pobre e impopular. É

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da mais alta importância que, no exercício, desse dever, observe ele a mais absoluta imparcialidade. O Poder Judiciário penetra, por seus efeitos no lar de cada cidadão; e infl ui sobre os seus bens, a sua reputação, a sua vida, tudo. Eu sempre pensei, desde a minha mocidade até hoje, que o maior fl agelo com que a divindade irritada pode punir um povo ingrato e pecador é uma justiça ignorante, corrupta ou dependente. AJURIS – Trabalhos Jurídicos (Sentenças).

O conceito de uma Nação entre as demais também decorre da forma com que ela trata os outros nacionais, que eventualmente dela se socorram, especialmente quando se trata de convicções políticas.

Narrou Luiz Cláudio que em certa ocasião ao chegarem na sucursal da “Veja”, Lilian e Universindo disseram-lhe do encantamento com a liberdade vigente no Brasil. Será que hoje, com tudo e depois de tudo, conservarão eles a mesma imagem de nossa pátria?

Vale a pena transcrever aqui trecho da carta que o Senador Wilson Ferreira Aldunate, candidato à Presidência do Uruguai, enviou ao Presidente da Argentina, onde se encontrava, momentos antes de buscar asilo em outra embaixada, ameaçado que estava de ser preso em Buenos Aires e deportado para o Uruguai, que se encontra à fl s. 193/207 do VoI. I da CPI da Assem bléia Legislativa:

Há quase três anos, em consequência dos acontecimentos políticos ocorridos no Uruguai, Hector Gutierrez Ruiz, Zelmar Michelini e eu, os três de nacionalidade uruguaia, confi amos, como uma multidão de outros compatriotas, nossa segurança e a de nossas famílias à proteção da bandeira Argentina.

Pouco ou nada nos importou então, nem depois, qual fosse o governo ou o regime político imperasse neste país, pois em quem depositamos nossa confi ança foi na própria Nação.

Pois bem, admitido o fato e a sua tipicidade, necessário que se perquira sobre a autoria. Quatro são os denunciados. Necessário o exame da prova em relação a cada um. Comecemos indagando sobre os elementos que se encontravam no apartamento de Lilian naquela tarde do dia 17.11.78, de acordo com as descrições feitas pelos jornalistas.

Luiz Cláudio Cunha, depondo pela primeira vez, na Polícia Federal, à fl s. 16/19, informa:

O elemento que parecia ser o chefe da equipe era de cor branca, magro, cerca de 1,74m de altura, cabelos ruivos, bigodes espesso e comprido, trajando roupa esporte.

O outro, com estatura de 1,70m, aproximadamente, possuía cabelos castanho escuros, curto, muito forte, até musculoso, cor branca. Depondo novamente na Polícia Federal, referindo-se sobre o que presumia ser chefe, dizia ser magro,

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altura de 1,72m, cabelos entre castanho e ruivo, cobrindo as orelhas e sem barba, com bigode passando da beirada da boca, falando português típico do Rio Grande do Sul.

Declara que entre os presentes havia uma pessoa alta, forte, cabelos curtos – pixaim – roupa esporte, sem barba e sem bigode e que identifi ca como Orandir Lucas, conhecido como Didi Pedalada, que foi identifi cado através de uma foto de arquivo (166).

Depondo na CPI da Assembléia Legislativa e referindo-se outra vez ao líder do grupo, a pessoa evidentemente que comandava, que o calçou com a arma, declara-o de altura mediana, entre 1,70m a 1,75m, cerca de 30 anos, cor branca, cabelos lisos de cor entre castanho e ruivo, repartido do lado, bigodes longos, caindo sobre os lábios, sem barba, trajando roupa esporte. O segundo elemento, o que exclamou “uma baita fria, cara”, reconhecia como Didi (fl s. 26).

Ao ser ouvido na sindicância da Polícia Estadual, à fl s. 226 do apenso I, da SSP, descreve o chefe da equipe como magro, branco, altura entre um metro e setenta e dois a um metro e setenta e quatro com cabelos relativamente longos, entre castanho e ruivo, sem barba, bigodes longos passando da linha da boca. O outro reconhecera como Orandir.

Em seu depoimento em juízo, à fl s. 1159, dá o primeiro, já reconhecido ofi cialmente pelos dois jornalistas, como João Augusto da Rosa. Volta novamente a apontar Orandir como o que apontou a arma para seu companheiro Scalco.

João Batista Scalco Pereira ouvido pela Polícia Federal, pela primeira vez, à fl s. 20, descreveu o líder como homem de estatura média, cabelos claros, de bigode, pele clara, bem vestido, falando português, com, entradas laterais no cabelo, nariz afi lado. O segundo tinha cor morena, bem escura, cabelos ondulados de cor castanha.

Reinquirido na Polícia federal, à fl s. 190, reitera que o homem que apontou a arma para seu colega Luiz Cláudio, tinha cerca de 1,75m, bigodes passando da borda da boca, cor branca e cabelos lisos. O outro, o que lhe colocara a arma próximo ao rosto, era moreno escuro, com altura entre 1,75m a 1,80m, cabelos pretos e enroladinhos.

Esta descrição Scalco reiterou quando prestou depoimento à CPI da Assembléia Legislativa, às folhas 222, na Sindicância da SSP – fl s. 274 – e em juízo, no auto de reconhecimento de João Augusto e novamente no depoimento (fl s.1162).

Efetivamente, requereu o Ministério Público, a realização de um reconhecimento, o que foi feito, observadas as formalidades devidas, oportunidade em que Scalco e Cunha reconheceram, sem hesitação, a João Augusto da Rosa, como o elemento líder do grupo na casa de Lilian (fl s.948/95l).

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Deve ser ressaltado que os jornalistas são as únicas testemunhas presenciais, mas que durante o longo período que medeou entre 17.11.78, até o último depoimento prestado (03.06.80), mantiveram-se inabaláveis na denúncia do fato e na acusação a policiais gaúchos, descrevendo sempre e com mínimas variações os dois principais elementos incriminados.

Exceção feita ao primeiro depoimento à Polícia Federal, em todos os demais Luiz Cláudio referiu que, ao saírem do apartamento, Scalco já referia ter a impressão que o elemento que lhe apontara a arma se tratava do ex-jogador do Internacional, Didi Pedalada. A confi rmação de Scalco sempre ocorreu, porém, por ter verifi cado uma fotografi a de arquivo, que se encontrava borrada, descartou esta possibilidade, até que foi procurado por Luiz Cláudio, com outras fotografi as do suspeito e, então não teve mais dúvidas, apontando-o à opinião pública e às autoridades.

É fundamental esclarecer que Luiz Cláudio sempre declarou que suas atividades não estavam ligadas à área esportiva, como Scalco, mas sim à política. Ora, se não tivesse Scalco, a salda do apartamento, declarado a Cunha a impressão de reconhecer Didi, como teria o último jornalista se empenhado em descobrir fotos do ex-atleta colorado, se Scalco não estava no Rio Grande, a ponto de Cunha viajar a São Paulo com as fotos?

Pretende a defesa de Didi existir contradição nos depoimentos de Scalco e Cunha, como o fato de ter este, no primeiro depoimento, dado o elemento armado e mais tarde identifi cado como Orandir, como pessoa de cor branca. Ora, este réu não é negro. Note-se que os jornalistas tiveram contato com ele em circunstâncias anormais, sob a mira de armas, de surpresa, tomados os seus pertences, postados contra a parede, mãos erguidas e a iluminação não era das melhores.

Então o que se dizer do Delegado Federal, que em situação bem diferente, com a pessoa à sua frente, até submissa como ocorre quando de inquirição de suspeitos, possivelmente durante horas, ao qualifi cá-lo, como se vê da qualifi cação de fl s. 138, deu-o como “brasileiro, branco...”

Scalco, todavia, que observou melhor, porque foi contra ele que o réu apontou a arma, sempre disse em todos os depoimentos, inclusive no primeiro à polícia federal, que se tratava de elemento de cor morena, bem escura.

Esta diferença entre dois observadores é absolutamente normal. Desconfi e-se, isto sim, de duas pessoas que descrevem um fato, uma pessoa, uma paisagem de maneira absolutamente idêntica. O eminente processualista TOURINHO FILHO, na obra já citada, a página 158, ensina:

Há ainda, o problema da duração dos estímulos. São estes que determinam as sensações, e aquele que mira um quadro durante 10 minutos tem melhores condições de descrevê-lo do que o outro que o olhou por dois minutos. O grau de iluminação também altera as percepções sensoriais.

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Outro fato, alegado pela defesa, é que Orandir, em virtude de acidente automobilístico, teve afundamento do frontal. E mais, uma grande cicatriz no braço direito que é, inclusive, um pouco torto.

O sentido de observação varia muito de pessoa para pessoa. Um indivíduo observa de uma maneira abrangente, global. O outro poderá fazê-lo de forma detalhada. Comparativamente, em termos de observação, homem e mulher se distinguem, aquele com abrangência e esta detalhista.

Sob a ameaça de uma arma, emocionalmente desequilibrados pelo inusitado do fato, temerosos inclusive (e por que não?) por sua segurança, normal que não se apegassem a detalhes. Vale referir que não recordam se os réus estavam com camisa com ou sem mangas. Reitere-se que as condições de iluminação eram defi cientes.

Outra nuance, focada pela defesa, e de que os jornalistas, por entenderem normal o ocorrido, voltaram à redação de Revista Veja, somente voltando a tratar do assunto no início da outra semana. Ora, como já foi por eles explicado, estavam envolvidos com o resultado das eleições de dois dias antes. Como a sua revista circula no início da semana, claro que o resultado do pleito, na época em que se anunciava a abertura política, era o fato mais importante a ser noticiado. E a imprensa trabalha em cima de acontecimentos. Natural portanto que só no início da semana, liberados profi ssionalmente, passaram a investigação efetiva do acontecido no apartamento da rua Botafogo.

Quanto ao co-réu João Augusto da Rosa, duas são as questões levantadas, em especial, pela defesa no sentido de invalidar o reconhecimento feito pelos elementos da imprensa já mencionados. Uma delas é que quando de ato de identifi cação acontecido na Assembléia Legislativa, não o identifi caram. Em lista encaminhada consta o nome de João Augusto, mas embora lá tenha estado, diz a defesa, Scalco e Cunha não o apontaram.

Os jornalistas negam que o réu tenha comparecido ao ato, porque, do contrário, o identifi cariam. Declara o deputado Romildo Bolzan que a tarefa conjunta, com o deputado Cícero Vianna, era de examinar a cédula de identidade, confrontando-a com a fi sionomia do policial e conferir se o nome estava na lista.

Diz o parlamentar Cícero Viana que, embora a prioridade fosse para a carteira de identidade, ocorreram casos em que estas eram velhas, ou ligeiros desencontros entre os nomes nelas constantes e os que a lista registrava.

Examine-se, agora, a versão dos réus, iniciando por Orandir Portassi Lucas, que nega sua participação no fato. Embora lotado no DOPS estava a disposição da Escola de Polícia, realizando sindicâncias. E talvez lá estivesse no dia 17, fazendo triagem. Lembra, vagamente, ter conhecido a testemunha Scalco quando ele, réu, jogava futebol.

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Tácito Oliveira (fl s. 730) testemunha arrolada pelo réu Orandir, afi rma que de longos anos é o cabeleireiro deste que sempre usou bigode. Em meados de 1978 passou a usar barba, dizendo que se tratava de uma promessa, por ter concluído o curso e ingressado na polícia.

Este depoimento confl ita, fl agrantemente, com a declaração do réu, de que estava usando barba “a uns três meses”. E esta revelação foi feita perante a Polícia Federal, pelo próprio réu, quando acareado com Luiz Cláudio (fl s. 173) no dia 09.01.79, com o que se conclui ter sido, segundo ele, em outubro de 1979. Não em meados daquele ano, como afi rmou Tácito, numa tentativa evidente de favorecer seu amigo Orandir.

É claro que Orandir não diria que fora após o fato que começara a deixar sua barba crescer, porque evidenciaria a tentativa de evitar ser reconhecido. Nem poderia ser diferente, posto que se observa através das fotografi as juntadas pelos jornalistas, à época da identifi cação, com barba curta e rala.

É ainda o réu que se encarrega de desmentir outra testemunha sua, o delegado Arthur Torelly Martins (fl s. 731), quando este declara, com absoluta certeza, que quando Orandir veio de outro Departamento e “parece que do DOPS”, já estava com a barba crescida.

Mas não é apenas no aspecto da barba que o réu desmente Torelly. Em seu interrogatório Orandir apresenta indecisão, ao afi rmar onde se encontrava na tarde de 17.11.78 mas “talvez estivesse executando serviço burocrático na própria Escola de Polícia...”

Torrely, que não é réu e, como tal, não pode ter a mesma preocupação em buscar um álibi, teve memória (?) mais aguçada que Orandir, pois declara em seu depoimento: “quanto a data de 17 de novembro de 1978, Orandir exerceu normalmente suas funções.” Aquela data, uma segunda-feira afi rma Torelly, passou toda a tarde na Escola de Polícia e marcou a data posto que fazia 40 anos que seu pai falecera.

Mas a certeza da testemunha já não era tanta, ao fi nal de seu depoimento, porque já passa a declarar que naquela tarde, uma sexta-feira, realizavam-se provas na própria Escola de Polícia. Porém, naquele dia 17.11.78, segunda ou sexta, sem livro ponto e com 50 a 60 funcionários sob suas ordens, com vários professores aplicando provas, centenas de alunos presentes, esta testemunha que não lembra de que Departamento veio Orandir, mas que já veio barbudo, tem certeza de que o réu estava lá...

E as testemunhas de Orandir continuam acumulando contradições, quando seus colegas Golbery, Caetano e Ubirajara Silva (fl s. 732v 734v) ora afi rmam que “em setembro sua barba já estava crescendo”, ora declaram que “antes de 17.11.78 notava-se que ele estava deixando a barba crescer. E logo depois “escalam” o réu para outra tarefa, que ele nega e Torelly, como Diretor da Escola nada fala, ou seja: Golbery, Ubirajara e Orandir “fi scalizava os locais das provas...”

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A última testemunha da defesa do réu, delegado Antônio Goularte (fl s. 735) lotado no DOPS, conta que ele estagiou naquele Departamento, de fi ns de julho até fi ns de agosto de 178 e que neste período Didi já estava deixando crescer a barba, o que confl ita com a versão do réu, pelo menos por alguns meses.

Especificamente, pois, em relação a Orandir Portassi Lucas, temos o reconhecimento dos jornalistas, testemunhas contra as quais nada foi alegado, em termos de idoneidade. Não tinham eles razões para dirigirem uma acusação falsa, sabendo que atrairiam toda uma campanha dos organismos policiais e interesses a eles ligados. Nem escolheriam caminhos tão difíceis para uma eventual promoção.

Os jornalistas viram e reconheceram Orandir como um dos homens armados que mantinham Lilian presa. Hugo Rivas declarou que Orandir foi um dos homens que levou as vítimas à fronteira do Chuí. Os advogados Seabra Fagundes e Justino Vasconcelos e mais Jair de Lima Krische tomaram o depoimento e, sob compromisso, transmitiram a informação para as autos.

Porém, como quer a defesa deste réu, os depoimentos de Rivas não devem ser considerados coma provas. Nem é necessário. Bastam os depoimentos de testemunhas não contraditadas, como Luiz Cláudio Cunha, João Batista Scalco, Seabra Fagundes, Justino Vasconcelos, Jair Krische para concluir, sem sombra de dúvida, que Orandir Portassi Lucas cometeu o delito que a denúncia lhe imputou.

Busca, ainda em reforço desta convicção trecho da manifestação do Dr. Renato Maciel de Sá Júnior, Conselheiro Relator da Sindicância realizada:

Desde quando examinei esta sindicância e mais o inquérito da Polícia Federal, e os relatórios da Comissão da OAB-RS, entre oito e vinte de fevereiro últimos, convencera-me que havia indícios sufi cientes, até veementes, no que concerne a participação do escrivão Orandir Portass1 Lucas, no episódio do apartamento da uruguaia Lilian, em 17.11.78...

O hoje brilhante Juiz de Alçada, dr. Ruy Rosado de Aguiar, em voto que proferiu no Conselho Superior de Polícia, examinando a participação de Orandir no evento, demonstrou toda convicção dizendo:

A prova de que Orandir praticou os fatos referidos e capitulados na citação inicial, está nos depoimentos dos jornalistas João Batista Scalco Pereira e Luiz Cláudio Cunha... os depoimentos destas duas pessoas são harmônicos entre si, convergentes com as demais provas e sempre se repetiram com integral concordância.

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E prossegue o então Conselheiro:

O álibi de que Orandir estaria na tarde daquele dia, na Escola de Polícia, auxiliando na fi scalização dos exames, contraria suas próprias declarações, que afi rmou neste processo e em juízo, ter estado naquele dia desempenhando suas atividades normais, burocráticas, no serviço de sindicância dos antecedentes dos alunos que fazem o concurso da escola e que “no desempenho de suas funções o depoente sai normalmente durante o dia para cumprir as investigações.” Em nenhum dos interrogatórios o indiciado mencionou a hipótese de ter fi scalizado a aplicação de exames.

Conclui o dr. Rui Rosado de Aguiar:

Contudo, foi o próprio Orandir quem declarou perante a Polícia federal, em janeiro de 1979, que há três meses estava com a barba crescida, o que aproxima, de forma indefi nida, a início da barba com a data dos fatos. – Apenso II, 390 e seguintes.

O Procurador da República, examinando o inquérito da Polícia federal, declarou em seu parecer:

Esse, portanto, é o primeiro dos pontos devidamente provado nos autos: o policial apelidado de “Didi Pedalada” estava no apartamento de Lilian Celiberti, fazendo parte do grupo armado que ali se instalara.

Quanto a João Augusto da Rosa, os jornalistas Scalco e Cunha, desde o início e sempre, o descreviam como o chefe do grupo, caracterizando-o fi sicamente como magro, altura entre 1,70m e 1,75m, cor branca sem barba, com bigodes caídos pelos cantos da boca, cabelos castanhos como sempre declarou Scalco, ou entre castanho e ruivo, como chegou a dizer Cunha. E falava português típico do Rio Grande do Sul.

Luiz Cláudio é jornalista experiente, tanto que chegou a chefe da sucursal da Veja, culto, inteligente e observador. Esteve com esta pessoa e com esta dialogou. Teve tempo para observá-la, enquanto ela pedia seus documentos, fazia perguntas e anotações.

Razão assiste ao promotor público quando a fi rma que João Augusto disfarçou sua fi sionomia, raspando o bigode e deixando crescer a barba, cortando o cabelo curto. Se Orandir deixou crescer a barba para impedir uma identifi cação, normal que seu companheiro de arbitro usasse o mesmo expediente.

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Esta conclusão decorre das inúmeras e absurdas mentiras contadas pelo réu, mas que foram descobertas a tempo. Quando interrogado (fl s. 1007/1009) afi rmou que desde 1968 ou 1969 usava óculos sistematicamente, quando em todas as fotografi as que vieram aos autos, quer quando ingressou na Polícia, quer como funcionário do Unibanco e Banrisul, ou ainda, pelas que foram juntadas pela própria defesa à fl s. 1291, se apresenta sem óculos.

E quem poderá negar que usasse ele lente de contato. As receitas óticas apresentadas (e uma delas merece especial referência) denunciam ser mínima a sua defi ciência visual. E quantas pessoas devem mas não usam óculos, ou só os utilizam para ler ou escrever?

O réu continuou mentindo quando declarou em seu interrogatório que nunca usou bigodes. Ora, na fotografi a de fl s. 1266 aparece de bigode e, o que é fundamental, na foto constante da fi cha de exame médico para ingresso na Polícia, à fl s. 1269, também estava bigode, aliás, bigode correspondendo com exatidão ao descrito por Scalco e Cunha.

E prosseguiu mentindo, ao afi rmar que nunca usara cabelo comprido. Ora, nas fotografi as enviadas pelo Banrisul vê-se que seu cabelo caía sobre os ombros (fl s. 1130) e na própria foto de 1269 (folhas) o cabelo lhe cobria as orelhas.

Ele mesmo declara ter sido nomeado para o DOPS em janeiro de 1978, época portanto que ingressou, como afi rma, na Polícia Civil. Ora, é sabido que uma pessoa, ao ser nomeada e antes de assumir sua função pública, submete-se a exames médicos. Daí a razão da fi cha de fl s. 1269, onde o réu aparece exatamente como os jornalistas sempre o descreveram.

Certo o promotor público ao afi rmar que o réu provocou a calvície, juntando como prova do alegado a ampliação de uma fotografi a colhida do réu em audiência e, portanto, recente (fl s. 1274) onde se vê que realmente, por um descuido, os cabelos da parte superior do crânio estavam crescendo, esparsos, é claro, mas existentes, não raspados.

Como somente este ano os jornalistas conseguiram chegar ao réu, teve ele tempo de transformar o aspecto físico de sua cabeça, no cabelo e nos pelos do rosto. E novamente um cabeleireiro vem a juízo, arrolado por Joao Augusto, vem a juízo. Desta vez é um funcionário da Secretaria da Saúde, que nas horas vagas faz barba e cabelo, inclusive do réu.

Afi rma que há cinco anos o réu é praticamente calvo e tem a barba crescida. Há dois anos e meio ou três, raspou o bigode. Só que ele esqueceu que seu cliente cursou a Escola de Polícia há menos de três anos, onde é proibido usar barba. Mas diz que o réu já usou bigode, raspando-o posteriormente. Novamente a testemunha confl ita com a versão de quem a arrolou.

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Celívio Werb (fl s. 1337) não sabe há quanto tempo o réu usa óculos. E que só constatou que ele usava barba quando tomou conhecimento pela imprensa de que João Augusto era um dos acusados. Antes disso não prestara atenção. Ora, sabe-se que os noticiários de imprensa, a respeito, começaram em fi ns de 1979. Teve o réu um ano, após o episódio, para operar a sua metamorfose. E quase conseguiu.

Outro dado incriminador contra este réu é que no fi m de 1979, por certo já sentindo que a mão da Justiça se aproximava, com as especulações da imprensa, novo aditamento contra Janito Keppler, mudou todos os documentos. Qual o objetivo? Certamente fazer desaparecer as fotografi as da carteira de identidade mais antiga, da carta de habilitação que, àquela época estampava a foto do possuidor...

O policial José Leal Lourenço, que exerce suas funções junto com João Augusto, no Gabinete do Secretário de Segurança, declara que logo depois que o réu começou a trabalhar no DOPS já tinha sinal de calvície, usava óculos e uma barba bem rala. Logo, não era calvo, no início do ano de 1978.

Resta examinar porque os jornalistas não reconheceram o réu no ato de identifi cação na Assembléia Legislativa. Existe nos autos da CPI uma relação de nomes, fornecida pelo DOPS. Segundo os deputados Bolzan e Cícero, à medida que os policiais passavam pelas salas onde se encontravam os jornalistas vinham em grupos onde se encontravam estes dois parlamentares, que conferiam o documento de identidade com os nomes constantes da relação.

Lembra, no entanto, o deputado Cícero Viana, que muitas carteiras de identidade eram velhas e até pequenas divergências entre nomes constantes das cédulas identifi catórias e os que estavam no documento fornecido pelo DOPS. Ora, quem diz que não houve uma manobra do réu para não comparecer, sendo substituído por um colega.

Afi nal, não houve tanta solidariedade entre os colegas, em servindo de testemunhas de defesa, que chegaram a afi rmar que Didi usava barba quando este nega? Ou que o viram fi scalizando os locais de prova, quando este não refere isto? Ou do barbeiro de João que o via barbudo, embora as normas da Escola de Polícia proibissem?

Ora, quem mente que nunca usou bigode e fi cou sobejamente provado que usou; quem afi rma que nunca teve cabelos compridos e comprovadamente os teve; Quem alega que nos últimos onze anos usou óculos sistematicamente e todas as fotografi as demonstram o contrário; quem apresenta uma receita para uso de óculos datada de 13.09.76, num talonário impresso em 1979...

Quem faz tudo isto e ainda encontra solidariedade certamente encontrou uma forma de não comparecer à Assembléia Legislativa, para não ser identifi cado. Note-se que era tão grande o número de policiais que se dirigiram à Assembléia que, conforme diz João Augusto, em seu interrogatório, foram necessários seis ou oito ônibus para transportá-los. Um fato que merece ser destacado é que, por ocasião do ato de identifi cação que deveria ser realizado na Secretaria de Segurança Pública, mas que não ocorreu porque a

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autoridade policial encarregada recusou-se a cumprir a ordem do então Governador em exercício, o nome de João Augusto da Rosa, subvertendo toda a hierarquia, fi gurava em primeiro lugar na lista. Depois dele é que vinham o próprio Diretor do DOPS e demais delegados.

Tenho, pois, que os depoimentos dos jornalistas, coerentes e seguros, convergentes com as demais provas existentes nos autos, mais as mentiras e contradições do réu, fornecem a convicção plena de que João Augusto da Rosa, praticou juntamente com Orandir Portassi Lucas o delito de abuso de autoridade a eles imputado pela acusação pública. Como consequência, merecem a devida responsabilização.

No que tange a Pedro Carlos Seeli, Diretor de um Departamento da DOPS, existe o reconhecimento que teria feito o menino Camilo, uma das vítimas, no apartamento de sua avó, em Montevidéu. Narra o jornalista Pedro Maciel (fl s. 1183) que esteve na capital uruguaia e deixou com dona Lilia cerca de doze fotografi as, entre elas de cidadãos comuns e de alguns policiais, para que ela as mostrasse ao menino, posto que impossível falar com ele, traumatizado e arredio com brasileiros.

No dia seguinte, em companhia do fotógrafo Lamas, lá retornou. “quando dona Lilia, mostrando uma foto do delegado Seelig teria repetido a frase de Camilo: “parece que já esse aqui”. Um fi lho de Lilia, de 14 anos, interferiu para dizer que o garoto afi rmara conhecer Seelig. Dona Lilia corrigiu, repetindo a frase do neto: “parece que já esse aqui.”

Quando a Comissão de Advogados compareceu no apartamento da genitora de Lilian Celiberti, foram levadas fotos do réu Seelig. Prestando depoimento à fl s. 539/542, o advogado Marcus Melzer, que presidia a Comissão, informa que Camilo estava perturbado, não conversava com ninguém, até que o dr. Ferri começou a falar, brincando, e o garoto sentou a seu lado.

Em dado momento o dr. Melzer retirou de um envelope quatro fotografi as, indagando se o menino reconhecia alguma pessoa. Ele apontou, com o dedo, em duas fotos, a pessoa de Seelig. Indagado respondeu que o conhecera de seu apartamento em Porto Alegre. Este é um fato confi rmado pelos demais advogados e jornalistas que estavam presentes.

Segundo o advogado francês Jean Louis Weil, à fl s. 794, possuía informações, procedentes de fontes uruguaias que não podia revelar, de que o fato descrito na denúncia ocorrera e que nele estava Seelig envolvido. Foi, em resumo, o que declarou esta testemunha.

Hugo Garcia Rivas, já exaustivamente referido, disse que através de um sargento soube que Seelig era uma pessoa muito importante na estrutura do DOPS e, que havia participado e colaborado na captura das vítimas uruguaias.

Embora existam fundadas suspeitas do envolvimento deste policial no fato, a prova de sua participação não me parece sufi ciente para concluir pela sua condenação.

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Baseia-se especialmente no depoimento de Camilo. Acontece, como bem ponderou a ilustre defesa, que antes da Comissão viajar ao Uruguai, jornalistas efetivamente já haviam levado fotografi as de Seelig e entregues a dona Lilia para que as mostrasse ao neto.

O que se passou no contato que ambos tiveram examinando as fotografi as, ninguém sabe. E quando a Comissão lá esteve o menino não foi pego em estado de isenção de ânimo. Psicologicamente poderia estar condicionado a uma acusação adredemente estabelecida, embora todo o cuidado e lisura da comissão ao questioná-lo. Efetivamente as controvérsias, tanto na Doutrina coma na Jurisprudência, a respeito do valor do depoimento infantil, são muitas.

A criança pode ser infl uenciada negativamente quer pela imaginação criadora, quer pela sugestão. Não foi de forma espontânea, como seria ideal, a informação que Camilo prestou, mas ao contrário, quase que través de um processo de interrogatório.

Novamente busco auxílio, neste ponto de vista, no já citado voto do dr. Ruy Rosado de Aguiar:

Assim, o testemunho infantil deve ser avaliado atendendo-se as condições pessoais da criança, da ocasião e do ambiente em que ele se desdobra e da maneira como foi colhida a informação.

No caso dos autos – conforme esclarecem todas as testemunhas que o viram – Camilo era uma criança traumatizada, olhando seus interlocutores de esguelha, não podendo sequer ouvir falar o português, pois atribuía aos brasileiros os males porque passam ele e sua família.

Considerando, também, que as declarações de Rivas foram genéricas e não prestadas em juízo e que o depoimento do jurista Jean Louis Weil faz referência a uma fonte não identifi cada, não há prova sufi ciente para responsabilizar Pedro Seelig.

Agora, que a partir da conclusão de que Orandir e João Augusto praticaram o fato, fi ca evidente estarem a mando de superiores, isto é claro. Um inspetor e um escrivão, recém ingressando na carreira policial, jamais agiriam por conta própria. Não em um caso como este, que fugia aos padrões da normalidade. Mas daí, e só por isso, concluir-se que essa autoridade superior era o delegado Pedro Seelig, é uma temeridade. Assim como ele, poderia ser qualquer outra autoridade, a seu nível ou maior, quer civil, quer militar.

Quanto a Janito Jorge dos Santos Keppler tudo começou quando o advogado Mariano Beck encontrou uma pessoa que o conhecia mas não era sua conhecida. Se tratava do advogado João Castro que, a certa altura, solicitou que se comunicasse com

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o colega comum, Omar Ferri, para que este avisasse Lilian de que não deveria dar qualquer declaração sobre o episódio, pois estava sujeita a ser morta.

Transmitido o aviso, comparecem ao escritório de João Castro os advogados Ferri, Mariano e Hermínio, que ouvem daquele o seguinte: uma cliente de Castro lhe dissera que possuía um irmão, que trabalhava no DOPS e que participara do chamado sequestro, porém o mencionado bacharel negou-se a fornecer o nome da cliente e de seu irmão policial.

Investigações decorrentes demonstraram que Cecília Kepler havia procurado, profi ssionalmente aquele advogado. Silvânia Pompermeyer, também funcionária do DOPS, estabeleceu a ligação, pelo que o irmão de Cecília era Janito e trabalhava naquele departamento. Em diversos depoimentos, inclusive acareações, Castro nega tenha feito tal referência aos advogados acima nominados, embora estes, com fi rmeza, sempre confi rmem.

Desta forma, não existem elementos nos autos, para responsabilização de Janito Keppler, já que mesmo que Castro tenha dito, como creio que disse, da existência de uma cliente com um irmão envolvido, não mencionou Cecília.

Cabe aqui, como registro, destacar a enorme e inestimável contribuição dada à elucidação dos fatos, pela Assembléia Legislativa, através de sua Comissão Parlamentar de Inquérito e pela Ordem dos Advogados do Brasil, Secção do Rio Grande do Sul, que investigou a denúncia.

Sem dúvida nenhuma prestimosa foi sua participação na tarefa nada fácil de levantar a densa nevoa, consciente e calculadamente lançada para assegurar a impunidade de infratores da lei.

Por derradeiro, para que também sirva de exemplo a tantos que não se envergonham em mentir à Justiça, determino que, transitada em julgada esta decisão, sejam extraídas peças necessárias para remessa à Coordenadoria das Promotorias Criminais, com fi ns de denúncia, por falso testemunho, contra o advogado João Antônio Silveira de Castro, Jorge Alves dos Santos, testemunha de defesa de João Augusto da Rosa, Oswaldo Biaggi de Lima e Patrocínio Lugo Acosta, residentes, os dois últimos, na comarca de Bagé, cujo procedimento delituoso foi tão bem apanhado pelo Deputado Ivo Mainardi, Relator da CPI:

Acontece, porém, que uma perícia solicita da por esta Comissão e realizada nas segundas vias das passagens vendidas pela Rodoviária de Bagé, concluiu pela afi rmação de que, no mesmo dia em que Osvaldo Lima e Patrocínio Acosta informam ter viajado quatro passageiros, cujos nomes e identidades fi guram na lista de passageiros de fl s. 123 dos autos do processo, somente viajou um passageiro.

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ISTO POSTO, julgo procedente, em parte a denúncia de fl s. 02/07 e procedente o aditamento de fl s. 966/967, para:

1) – Com fundamento nos artigos 4º, letra “a” (executar), 6º, § 3º, letra “b”, da Lei 4898, de 09.12.65, combinados com os artigos 25, 44, II, i, primeira parte e 51, § 1º, do Código Penal, c o n d e n a r

a) ORANDIR PORTASSI LUCAS, alcunha “Didi Pedalada”, já qualifi cado, a cumprir a pena de seis (06) meses de detenção.

Fixei a pena base para este réu em três meses de detenção, considerando que embora primário, antecedentes abonados, personalidade normal, o dolo com que agiu foi intenso, executando uma medida de prisão contra estrangeiros, com risco de provocar, até, incidente diplomático entre dois países vizinhos. Os motivos com que agiu altamente censuráveis e egoísticos, em circunstâncias de local totalmente desfavoráveis às vítimas.

Graves as consequências de sua conduta antijurídica, posto que, resultante de seu ato, Lilian e Universindo que não tinham contas a acertar com a Justiça do Uruguai, segundo declaração ofi cial daquele País, existente nos autos, estão lá encarcerados há mais ou menos um ano e oito meses.

Não militam, em seu favor, atenuantes, mas sim a agravante do artigo 44, 11, letra “i”, primeira parte, do Código Penal, pois como refere a denúncia Camilo e Francesca são crianças. Como consequência, elevo aquela pena base de três meses de detenção em (1) um mês, com o que a pena passa a ser de quatro meses de detenção.

Embora a denúncia não tenha, em sua capitulação, referido aplicável o disposto no § 1º do artigo 51 do Código Penal, descreve que o delito do réu praticado contra quatro vítimas, de forma ampla, pelo que teve ele plenas condições de defesa.

Desta forma, com fundamento no § 1º do artigo 51 do Código Penal, aumento aquela pena de quatro meses em metade, ou seja, dois meses, resultando a pena defi nitivamente imposta a este réu em seis meses de detenção.

b) – JOÃO AUGUSTO DA ROSA, já qualifi cado, a cumprir a pena de seis (6) meses de detenção.

Fixei a pena base para este réu em três meses de detenção, considerando sua primariedade e os antecedentes testemunhalmente abonados, personalidade dentro de padrões normais. O dolo com que agiu, no entanto, foi intenso, executando uma prisão de estrangeiros com risco de provocar, inclusive, incidentes diplomáticos entre dois países vizinhos. Motivos altamente censuráveis e egoísticos, em circunstâncias totalmente desfavoráveis às vítimas.

Graves as consequências de sua conduta antijurídica, pois, resultante de seu ato, Lilian e Universindo, que não tinham nenhuma pena a cumprir no Uruguai segundo

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declaração ofi cial de suas altas autoridades, e que se encontra no processo, estão presas há cerca de um ano e oito meses.

Intimamente ligado as consequências próprias às vitimas, está o fato, há muito, a criar uma imagem totalmente negativa do Brasil, inclusive no exterior.

Inexistem atenuantes, mas sim a agravante do artigo 44, 11, letra “i”, primeira parte, do Código Penal, pelo que aumento aquela pena base de três meses em um mês, elevando-se a cominação imposta para quatro meses de detenção.

Embora a ocorrência do concurso formal não esteja capitulada na denúncia, é descrita com absoluta clareza, ao mencionar que a ação delituosa teve quatro vítimas.

Desta forma, com fundamento no artigo 51, § 1º, do Código Penal, aumento aquela pena de quatro meses em metade, ou seja, em dois meses, resultando a pena defi nitivamente imposta a este réu, em seis (06) meses de detenção.

Por todas as nuances do fato, exaustivamente examinadas, inclusive na fundamentação para aplicação da pena, o que denota que os réus Orandir Portassi Lucas e João Augusto da Rosa, embora recém ingressando nos quadros da Policia Civil, se envolveram e executaram medida violenta, de alta repercussão, até internacional, entendo necessária, cabível e até e exigível a aplicação da pena acessória prevista no diploma penal que violaram.

Assim, com fundamento no artigo 6º, § 5º da Lei 4898/65, aplico a cada um dos réus condenados a pena acessória de não poderem exercer funções de natureza policial, no município de Porto Alegre, pelo prazo de dois (2) anos.

2) – Com fundamento no artigo 386, VI, do Código de Processo Penal, absolvo, Pedro Carlos Seelig e Janito Jorge dos Santos Keppler, já qualifi cados, da imputação que lhes foi feita.

Determino o lançamento, no rol de culpados, dos nomes dos réus condenados.

Custas na proporção de 25% para cada réu apenado e de 50% para o Estado.

Com fundamento no artigo 57 do Código Penal suspendo a execução da pena privativa de liberdade imposta aos réus, pelo prazo de dois (2) anos, desde que cumpram as seguintes condições:

1º – Apresentarem-se de quatro em quatro meses em cartório;

2º – Comunicarem ao Juízo das Execuções eventual mudança de endereço;

3º – Pagarem as custas, na proporção já fi xada, no prazo de 60 dias.

Marco audiência admonitória para o dia 11 de agosto de 1978, às 16 horas. Requisitem-se. Intimem-se. Publique-se.

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Transitada em julgado, comunique-se à Superintendência dos Serviços Policiais e ao Serviço de Informática da Polícia Civil.

Porto Alegre, 21 de julho de 1980

Moacir Danilo Roij Rodrigues

Juiz de Direito