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1 Revista Eletrônica “Fórum Paulo Freire” Ano 2 Nº 2 Agosto 2006 CARTAS PEDAGÓGICAS, HUMANIZAÇÃO E DIÁLOGOS: EXPERIÊNCIAS DE APRENDIZAGEM NA VISÃO DE EDUCADORAS Gisele Ramos Lima 1 [email protected] Josiane Beloni da Cruz 2 [email protected] Resumo Este texto é uma reflexão sobre o trabalho realizado com as cartas e a correspondência inter-escolar no ensino fundamental. A aprendizagem que as crianças e as educadoras adquirem através desse expediente pedagógico nos levam a anunciar a humanização e a dialogicidade, como sinais dessas experiências de sucesso, em escolas públicas. Promover a auto-estima, o respeito à diferença, a compreensão dos contextos distintos também fazem parte da tarefa de ser professor e educar de maneira permanente nossos alunos e alunas. Palavras-chave: correspondência inter-escolar; diálogos; humanização INTRODUÇÃO Quando iniciamos nossa trajetória como educadoras? Esta é uma reflexão que fiz algumas vezes. Acredito que o primeiro passo foi no momento em que tive um filho, uma única pessoa por quem passo a ser responsável por sua educação e formação no sentido mais amplo da palavra. Durante dez anos de nossas vidas juntos desconhecia a teoria de Freire, descobrindo mais tarde que estávamos mais próximos do que eu mesmo imaginava. As minhas propostas de vida e os meus ideários de educação estavam e estão estreitamente ligados a Freire, quando pensamos e procuro agir, possibilitando ao meu filho e hoje aos meus alunos liberdade sem licenciosidade, respeito ao outro sem acomodação, na vida como possibilidade e não com fato determinado, na formação dos sujeitos com construtores ativos de suas histórias. Nesta reflexão me encontro hoje com Freire em vários momentos de seus escritos e em especial quando ele nos diz: 1 Professora de Ensino Fundamental na Rede Pública de Pelotas. Licenciada em Pedagogia, inicia em 2006 dois cursos de Pós-Graduação. Um em Alfabetização e Letramento (UFPel) e outro em Informática e Educação (UFRGS). Atua no Grupo Rede Sul de Educadores Freinet. 2 Bacharel e Licenciada em Ciências Sociais. Professora da Rede Pública de Pelotas. Atua no Grupo Rede Sul de Educadores Freinet.

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Revista Eletrônica “Fórum Paulo Freire” Ano 2 Nº 2 Agosto 2006

CARTAS PEDAGÓGICAS, HUMANIZAÇÃO E DIÁLOGOS: EXPERIÊNCIAS DE APRENDIZAGEM NA VISÃO DE EDUCADORAS

Gisele Ramos Lima1 [email protected]

Josiane Beloni da Cruz2 [email protected]

Resumo Este texto é uma reflexão sobre o trabalho realizado com as cartas e a

correspondência inter-escolar no ensino fundamental. A aprendizagem que as crianças e as educadoras adquirem através desse expediente pedagógico nos levam a anunciar a humanização e a dialogicidade, como sinais dessas experiências de sucesso, em escolas públicas. Promover a auto-estima, o respeito à diferença, a compreensão dos contextos distintos também fazem parte da tarefa de ser professor e educar de maneira permanente nossos alunos e alunas.

Palavras-chave: correspondência inter-escolar; diálogos; humanização

INTRODUÇÃO

Quando iniciamos nossa trajetória como educadoras? Esta é uma reflexão que

fiz algumas vezes. Acredito que o primeiro passo foi no momento em que tive um filho,

uma única pessoa por quem passo a ser responsável por sua educação e formação no

sentido mais amplo da palavra. Durante dez anos de nossas vidas juntos desconhecia a

teoria de Freire, descobrindo mais tarde que estávamos mais próximos do que eu mesmo

imaginava. As minhas propostas de vida e os meus ideários de educação estavam e

estão estreitamente ligados a Freire, quando pensamos e procuro agir, possibilitando ao

meu filho e hoje aos meus alunos liberdade sem licenciosidade, respeito ao outro sem

acomodação, na vida como possibilidade e não com fato determinado, na formação dos

sujeitos com construtores ativos de suas histórias. Nesta reflexão me encontro hoje com

Freire em vários momentos de seus escritos e em especial quando ele nos diz:

1 Professora de Ensino Fundamental na Rede Pública de Pelotas. Licenciada em Pedagogia, inicia em 2006 dois cursos de Pós-Graduação. Um em Alfabetização e Letramento (UFPel) e outro em Informática e Educação (UFRGS). Atua no Grupo Rede Sul de Educadores Freinet. 2 Bacharel e Licenciada em Ciências Sociais. Professora da Rede Pública de Pelotas. Atua no Grupo Rede Sul de Educadores Freinet.

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“O que me interessa não é o que meus filhos e minhas filhas nos imitem como pais e mães, mas refletindo sobre nossas marcas, dêem sentido a sua presença no mundo. Testemunhar-lhes a coerência entre o que prego e o que faço, entre o sonho do que falo e a minha prática , entre a fé que professo e as ações em que me envolvo com eles e com elas, educá-los numa perspectiva ética e democrática”. (Freire, 2000, p.38).

Sendo assim minha trajetória enquanto educadora não se inicia quando concluo o curso do magistério em 1998 ou quando assumo o concurso público em 2000 no Estado do Rio Grande do Sul, e sim em 1988 quando nasce esta criança maravilhosa com quem percorro longo caminho e muitos dos ensinamentos que dei a ela e aprendi com ela levo hoje comigo no momento de olhar para cada criança que me é confiada na escola. Sempre penso que aquele menino ou menina ali sentado, convivendo comigo quatro horas diárias levarão marcas deixadas pelas trocas estabelecidas e pelos exemplos por mim deixados.

INICIO DE UMA TRAJETÓRIA PROFISSIONAL Assumo concurso público no Estado do Rio Grande do Sul, em um momento

que considero privilegiado, ano de 2000, em que se discutiam mudanças nas diretrizes das escolas estaduais gaúcha. As discussões travadas naquele momento e as práticas que se tentava implementar na escola eram realizadas a luz dos ensinamentos deixados por Paulo Freire. Ali grande parte da teoria era novidade para mim, mas tive a certeza que aqueles ensinamentos iriam gradativamente nortear o meu trabalho, considerando a carga de humanismo, preocupação e respeito com o ser humano que continham, tendo em vista que sempre procurei nortear minha vida por estes caminhos.

No ano de 2003, trabalhando em uma escola pública da periferia da cidade de

Pelotas, onde a grande maioria das crianças provinham de famílias com baixo poder aquisitivo, poucos anos de instrução escolar, quase nenhum acesso as “maravilhas” tecnológicas do mundo moderno, sendo muitos filhos de pais analfabetos e onde a cultura valorizada na escola não era exatamente a cultura que eles traziam de seus lares, e por esta e outras razões não encontravam motivação para se dedicarem ao aperfeiçoamento da língua escrita e da leitura tão importante no mundo grafocêntrico que vivemos hoje passei a procurar práticas pedagógicas que me permitissem trabalhar em sala de aula com a leitura e a escrita significativa, ou seja, escrevemos para alguém ler, e lemos o que é significativo para nós. Surge ai a idéia de fazer amigos através de cartas. Aqui ainda tinha uma visão estreita, trabalhar a qualificação da produção textual considerando ortografia, escrita coesa, uma escrita para que quem lesse entendesse. Inicia-se aí uma caminhada com trabalho de correspondência inter-escolar, o qual gradativamente vai sendo ampliado e tendo como âncora a pedagogia dos teóricos Freire e Freinet3.

A CORRESPONDÊNCIA INTER-ESCOLAR À LUZ DE FREIRE E FREINET

3 Celestin Freinet um educador que, como prioridade pedagógica, procurava caminhos que correspondessem às expectativas de todas as crianças considerando suas diferenças de inteligência, caráter e posição social. Assim nos deixa uma diversidade de práticas que ele próprio usou em sua escola, escola esta com dificuldades não muito diferentes das que enfrentamos hoje na escola pública, considerando seus especificidades em relação ao tempo histórico, político e cultural.

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Freire nos encaminha para um olhar voltado para a valorização do ser humano,

para a descoberta e valorização da cultura em que está inserido o educando. Passamos então a deixar de ser meros reprodutores de conhecimento em nossa sala de aula para junto com nossos alunos conhecer a sua realidade e permitir que partindo dela eles construam e entendam o significado dos conhecimentos universalmente valorizados, conhecimentos estes indispensáveis para possibilitar aos sujeitos interagirem no mundo atual tendo consciência da importância do seu papel social, frente a isso Freire nos fala:

“...toda prática educativa libertadora, valorizando o exercício da vontade, da decisão, da resistência, da escolha; o papel das emoções, dos sentimentos, dos desejos, dos limites; a importância da consciência na história, o sentido ético da presença humana no mundo, a compreensão da história como possibilidade jamais como determinação, é substantivamente esperançosa e, por isso mesmo, provocadora de esperança”.(Freire, 2000, p.48).

A correspondência inter-escolar nos provoca essa esperança citada por Freire, pois interliga a vivência humana dos educandos e educadores mexendo com seus desejos, emoções, sentimentos e suas histórias. Com Freinet nos apropriamos da prática pedagógica da correspondência inter-escolar onde ele acreditava que “Através de suas emoções, a criança transfere as ações do meio sobre si própria, e também , transfere suas ações ao meio”. (Sampaio, 2002.p.23).

Na busca de novas interações reflexivas com profissionais da área de educação para ampliar o trabalho em sala de aula, a convite da professora Rita Medeiros da Universidade Federal de Pelotas, passo a integrar o Grupo Rede Sul de Educadores Freinet, local onde conheço as professoras do Ensino Fundamental Josiane Beloni da Cruz e tenho a oportunidade de conhecer via Internet a professora Angelita da cidade de Capão da Canoa. Passo então a trocar correspondências com as turmas das duas colegas.

Encontro do Grupo da Rede Sul Freinet. MOMENTOS DE ENCONTROS REFLEXIVOS A professora Josiane está frente a uma turma de 1ª série no município de Pelotas

e eu da 2ª série no município de Capão do Leão no turno da tarde. Além da troca de cartas entre os alunos tínhamos a oportunidade de nos encontrar semanalmente, nas nossas conversas semanais relatamos nossas ansiedade, sucessos e fracassos em relação à alfabetização das crianças, com isto este passa a ser um momento de reflexão sobre a prática e procura de caminhos para o sucesso de todos.

Com a professora Angelita tinha um contato mais restrito, ela no município de Capão da Canoa com uma turma de 4ª série e eu no município de Pelotas também com

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uma turma de 4ª série no turno da manhã. Tínhamos uma distância de quase 500 Km nos separando. Algumas vezes nos comunicávamos pela Internet mas a troca significativa ocorreu mesmo entre os alunos através das correspondências coletivas e individuais.

Nós, alfabetizadoras, agora unidas e comprometidas com a formação do ser humano enquanto sujeito e com a necessidade de tornar a sala de aula um espaço de ensino aprendizagem significativo na vida dos nossos educandos, num mundo onde a tecnologia bate a todo o instante em nossas portas e a escola parece não ouvir ou não ter condições econômicas para introduzi-la no seu dia-a-dia, nos juntamos e trabalhamos unidas ao pensamentos de Freire quando afirma:

“Uma das coisas mais significativas de que nos tornamos capazes mulheres e homens ao longo da longa história, que feita por nós, a nós nos faz e refaz, é a possibilidade que temos de reinventar o mundo e não apenas de repeti-lo, ou reproduzi-lo”. (Freire, 2000, p.121)

As práticas pedagógicas preconizadas por Freinet quando nos acena que o real interesse dos educandos está do lado de fora dos muros escolares, nas brincadeiras, na natureza, na realidade de suas vidas vividas, passamos então a re-significar as correspondências escolares via correio como possibilidade de comunicação viável e de sucesso, pois apesar de vivermos no mundo da Internet as correspondências ainda estão presentes em nossa sociedade. O educando e o educador não podem ignorar os avanços tecnológicos, mas podem e devem tornar-se critico para perceber por que nem todos têm acesso a ele, e esta falta não pode ser uma barreira intransponível para a não aprendizagem e o progresso intelectual dos menos favorecidos, aqui mais uma vez lembramos de Freire quando nos alerta que “Nenhuma realidade é assim por que assim tem que ser. Esta sendo assim porque interesses fortes de quem tem poder a fazem assim”. (Freire, 2000, p.123)

A partir desse encontro no grupo passamos a estudar e refletir conjuntamente

sobre nossas práticas pedagógicas, nossas inquietudes, em fim nossos sonhos com uma escola melhor e inclusiva para todos, aqui mais uma vez nos apoiamos nos pensamentos de Freire “Sem sonho e sem utopia, sem denúncia e sem anúncio, só resta o treinamento técnico a que a educação é reduzida” (Freire, 2000, p.124) e nas práticas de Freinet que acreditava na participação dos educandos como sujeitos ativos no processo de ensino aprendizagem possibilita alargar o universo infantil, motivar as atividades humanas, responder a afetividade afetiva das crianças, trazer unidade de trabalho e de comportamento em classe.

A seguir vamos relatar um pouco da nossa prática com a correspondência inter-

escolar. Primeiro teremos o relato da troca de correspondência das turmas das 4ª séries que culminou com uma viagem dos alunos do município de Pelotas para conhecerem seus correspondentes no município de Capão da Canoa. Logo a seguir vamos ter um dialogo entre a professora Josiane Beloni e professora Gisele Lima, contando as suas praticas pedagógicas com as correspondências inter-escolares.

UM SONHO REALIZADO NA 4ª SÉRIE

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No decorrer do ano de 2005 (de abril a dezembro), minha turma de 4º série da

E.M.E.F Ferreira Vianna localizada no município de Pelotas, trocou correspondência com a turma de 4º série da E.M.E.F Mário Curtinova, localizada no município de Capão da Canoa. Após várias correspondências surge a possibilidade de viajarmos para conhecer nossos correspondentes, junto com esta possibilidade vem um grande desafio, superar a pobreza, pois as crianças desta comunidade são desprovidas economicamente e a direção da escola e os colegas que me cercavam também não acredita que a viagem fosse viável, parecia que só eu acreditava nesta possibilidade e no merecimento daquelas crianças em realizar este sonho, talvez a única oportunidade de muitos deles em conhecer outra realidade.

Mais uma vez aqui me apoio em Freire quando ele diz “Querer é fundamental, mas não é suficiente. É preciso também saber querer, o que implica saber lutar politicamente com táticas adequadas e coerentes com os nossos sonhos estratégicos.” (Freire, 2003, p.70), fui a luta então, procurei o Secretário de Educação apresentei e defendi o meu projeto pedagógico e finalmente conseguimos viajar para conhecer nossos correspondentes, e realizar o sonho meu e dos alunos, é um pouco desta prática pedagógica que vou relatar a seguir.

No dia 14/12/2005 realizamos o sonho de viajar para Capão da Canoa e encontrar os nossos correspondentes. Esse trabalho de correspondência começou com o sítio da ABDEPP, no setor TROCAS. Ali a professora Angelita se cadastrou procurando parceiros, no RS, para trocas de correspondências. No grupo Rede Sul, eu que já havia feito uma experiência semelhante, então, aceitei o desafio.

Pelotas é uma cidade de porte médio, é pólo do extremo-sul do Brasil, enquanto Capão da Canoa é uma cidade-balneário, com características que mesclam o rural e o urbano e está localizada no litoral norte do RS.

Assim, nossas dinâmicas culturais são diferenciadas. Estilos de vida, horas e tipos de lazer são outros. Além disso somos banhados pela Lagoa dos Patos (nosso mar de água doce, santuário de espécies) e eles pelo Oceano Atlântico (representando o encontro com o imigrante, com o descobridor).

Essas correspondências foram importantes para demarcar, no meu próprio trabalho, o quanto as atividades extra-classe fazem a diferença na construção cotidiana de um currículo. A novidade, a incerteza, as pesquisas, as respostas não homogêneas só tem lugar num trabalho em que as crianças possam ter suas próprias idéias e visões sobre os acontecimentos. Para essa turma de quarta série, o Rio Grande do Sul saiu dos livros e das páginas dos cadernos para ganhar cor, cheiro, e tantas outras sensações experimentadas.

Saímos da escola as 6:30 da manhã e chegamos lá na hora do almoço. Foram 434 quilômetros de alegria e expectativas. À medida que se dirige do sul do RS ao norte, pelo Litoral, a paisagem vai se alterando. È menos frio e os campos limpos vão dando lugar aos vales, além disso a visão das paisagens é linda. A viagem foi ótima, as crianças ficaram encantadas com a diversidade de lugares. Nossa primeira parada foi no restaurante Grill, que fica cerca de 90 quilômetros de Pelotas, nas imediações das Cidades de Cristal e Camaquã. Ali fizemos um lanche e brincamos um pouco em uma pracinha.

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Momento de descontração na pracinha do restaurante. Quando passamos por Porto Alegre elas ficaram perplexas com a quantidade de

prédios que se via da estrada e com a ponte do Rio Guaíba. Neste momento o aluno Guilherme, menino que tem vários problemas de comportamento na escola e se comportou muito bem na viagem, falou emocionado: “professora eu nunca tinha saído de Pelotas, não sabia que existiam lugares tão bonitos”. Só o brilho no olhar deste menino já compensou o esforço que fizemos para realizar este passeio. A paisagem da estrada, em especial a da BR 101, que beira o litoral, deixou todos encantados.Quando passamos pelos postos de pedágio alguns alunos perguntaram o que era, ficando espantados com o fato de termos que pagar para usar as estradas.

Chegando na E.M. Mario Curtinove fomos recebidos com muito carinho, as crianças tinham preparado cartazes de boas vindas que iam da entrada até o refeitório, local onde almoçamos juntos, o cardápio era um excelente e farto risoto com salada de diversos sabores, a recepção foi perfeita.

Em cada frase sentíamos o carinho da recepção. Após o almoço passamos para a sala de aula deles, sentamos em circulo e

conversamos. Muitos já tinham descoberto quem eram os seus correspondentes.

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Roda de conversa e descontração À tarde fomos até a praia... As crianças molharam os pés, brincaram, correram,

mais uma vez um aluno me emocionou, o Wendel, ele corria e pulava dentro da água dizendo : “que coisa boa, deixa eu tomar banho”. Foi difícil tirar ele da beira do mar.

Um dos momentos mais emocionantes para todos. Depois fomos numa pracinha onde eles brincaram, esta pracinha foi construída em

homenagem a uma criança deficiente pelos seus pais e doada para a cidade. Fomos ao centro de Capão da Canoa na sorveteria, lá todos tomaram sorvete.

Retornamos então para a escola onde nos esperava um lanche da tarde. Na despedida os alunos que estavam nos recepcionando apresentaram uma música e nos entregaram presentes que eles tinham confeccionado, certamente com muito carinho. Eram presépios dentro de caixas de presentes. Nós levamos para eles doces (biscoitos enfeitados).

Este foi um dia muito especial para todos. Poder promover o encontro entre as crianças após termos nos correspondido no decorrer do ano letivo de 2005 , foi algo mágico, foi um momento em que o sonho, a utopia virou realidade.

Na viagem me acompanhou a colega Josiane, parceira e companheira de trabalho, estudos e reflexão das práticas pedagógicas.

A CORRESPONDÊNCIA NA 2ª SÉRIE: MOMENTOS SIGNIFICATIVOS

DE APRENDIZAGEM4

4 Esses são excertos das conversas reflexivas entre nós. Esse intercâmbio entre as crianças acabou gerando novas inserções nas problemáticas educacionais vividas por nós.

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Professora Gisele: “Josi nos conta um pouco das características da tua turma, e

como foi teu primeiro contato com as correspondências.

Professora Josiane: Quando cheguei no grupo Freinet, passei a ter contato com

as praticas pedagógicas preconizadas por Freinet, entre elas os trabalho com a

correspondência inter-escolar, então surge na escola a oportunidade de trocar cartas

com uma professora de 1ª série. Com a turma motivada pela idéia de fazer amigos por

cartas escrevemos a primeira carta coletiva, a qual nunca foi respondida. Esta

frustração levei para o grupo, e lembro que bem neste momento que nos conhecemos e

tu me falaste que estava procurando uma professora para trocar correspondência com

a tua turma de 2ª série.

Professora Gisele Lima: Josi, lembro deste encontro inicial. Como tu aceitaste,

no outro dia mesmo contei para as crianças o que ocorreu com as correspondências

que vocês tinham enviado para a outra turma, que os teus alunos estavam tristes e

perguntei o que eles achavam de mandar uma carta para eles, todos adoraram a idéia.

Falei então que íamos nos corresponder com colegas que recém estavam iniciando o

aprendizado da língua escrita, assim como eles no ano anterior. Então escrevemos a 1ª

carta, foi um texto coletivo, escrevemos com letra cursiva e sem desenho, na verdade foi

escrita nos moldes em que eu estava acostumada a fazer com as crianças de 4ª série.

Enviamos a carta contando um pouco de nós, fazendo perguntas e com a lista dos

nomes de todos, ficamos aguardando a resposta. Eu fiquei ansiosa para saber como

seria a receptividade de todos.

Nossa primeira carta que escrevemos

Professora Josiane: Uns dias antes de chegar a carta contei aos educandos que

eles teriam uma surpresa todos ficaram curiosos e ansiosos para saber o que era.

Quando a carta chegou foi uma euforia só, à primeira carta que receberam gerou na

sala de aula uma série de questionamentos como: para que servem as cartas e para

quem escreveriam, trabalhando aí a questão das emoções e do uso social da escrita.

Quando propus que respondessem, os educandos no início da alfabetização

questionaram, que na carta que receberam não havia desenhos, mas se podiam fazê-

los, pois ainda não sabiam escrever e também usávamos outra letra, ou seja a letra

bastão. No decorrer desse processo as cartas passaram a ser motivadoras no processo

de aquisição da leitura e escrita, pois a escrita passa a ter uma razão para escrever,

alguém lerá o que foi escrito e a leitura da mesma forma, pois precisa ser lida a carta

recebida.

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Nossa carta coletiva de resposta - escrita com letra “bastão” e com desenhos.

Professora Gisele Lima: Recebemos a resposta com muita alegria e curiosidade.

Além da carta coletiva cada criança recebeu uma carta individual, eles notaram que as

cartas tinham mais desenhos do que palavras, lembrando então de seu período de

alfabetização que eles também antes mais desenhavam do que escreviam e que os

colegas um dia iriam saber escrever como eles, observaram também que a letra usada

era a bastão a mesma que eles usavam na 1ª série. Na carta coletiva teve um

diferencial, ela era cheia de desenhos, o que as crianças acharam lindo, e a letra do

texto era bastão. Então no momento de responder tanto as cartas individuais como a

coletiva todos fizeram questão de escrever com a letra bastão e desenharem, pois

ressaltaram que os novos amigos só poderiam ler se fosse assim. Nesta atitude da

turma ficou muito claro o respeito deles pelos novos colegas e a importância de se

fazerem entender em seus escritos. A prática da correspondência foi muito significativa

na solidificação do processo de alfabetização da minha turma e na tua turma que

influências ela teve?

Leitura das cartas recebidas

Professora Josiane: Meus alunos que pouco liam e escreviam passaram a se

interessar por esta prática pedagógica, gradativamente foram rompendo as barreiras

da não aprendizagem, lembra que em uma das cartas vocês nos contam que estavam

trabalhando os animais e isso motiva meus alunos a quererem estudar os animais,

partindo daí introduzi este contudo. Gisele tu poderia detalhar um pouco mais os

acontecimentos da tua sala de aula advindo das correspondências.

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Professora Gisele Lima: Bom, no decorrer da troca de cartas as crianças foram

gradativamente melhorando suas escritas e percebendo o progresso de seus

correspondentes, com isso os desenhos permaneceram, mas os textos foram

aumentando, contendo cada vez mais trocas de informações sobre o modo de vida de

cada um. A empolgação das crianças no momento de receberem e responderem as

cartas era algo que não tenho como expressar com palavras, os olhos brilhavam e a

euforia e o silêncio se confundiam na sala. Com a correspondência passei a ter um rico

material para desenvolver os conteúdos partindo dos conhecimentos e das inquietudes

que as crianças apresentam. Freire me acompanha na necessidade do diálogo, para

superar a visão autoritária do conhecimento e do papel do professor, bem como no uso

de temas geradores que surgem a partir das trocas de correspondências entre os

alunos, como foi o caso dos animais na tua aula por exemplo, um assunto curricular

que surgiu a partir de uma troca de informações entre eles. .

Concentração no momento da resposta. Bem Jose, o projeto todo foi maravilhoso e só o fato de no final do ano letivo

realizar o sonho do encontro valeu o nosso emprenho, não é? Tua turma sai do nosso imaginário, ultrapassam as palavras e os desenhos e vem nos conhecer. As crianças se organizam para recebê-los com uma festa. Quando o ônibus chega na frente da escola é uma euforia só, os alunos e eu queríamos conhecer pessoalmente vocês, eu no caso os teus alunos. Passamos uma tarde de confraternização com muitas brincadeiras e um lanche especial. Na escola houve um envolvimento muito grande de funcionários e outros professores para receber tornar vocês. O encontro foi um sucesso. Josi e para os teus alunos como foi este encontro, quais os momentos mais significativos?

Hora da brincadeira

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Lanche com os amigos. Professora Josiane: Para nós foi uma aventura inesquecível, pois fizemos alguns

passeios durante o ano, mas este era especial íamos conhecer nossos amigos iam sair

do papel e se tornarem pessoas concretas, já ao entrar no ônibus começa a emoção,

olhar a estrada ir a outra cidade, ao chegar querer ver tudo. O momento mais

marcante e comentado foi o que mostra a foto abaixo, as alunas anfitriãs tinham

organizado aquele dança para apresentar para nós e três das minhas alunas,

espontaneamente, saem da platéia e se integram ao grupo de apresentação, lembra

deste fato? A meu ver, naquele momento passa a ocorrer uma grande integração

durante a apresentação conjunta para os demais alunos das turmas..

As meninas se integram. Professora Gisele: Não podemos nos estender mais, quero dizer que foi um

prazer realizar este projeto conjunto, onde a distância nos separou, mas nossas

praticas se entrelaçaram com objetivos em comum, promover a alfabetização de

nossos alunos de forma inclusiva, respirando seus tempos, seus interesses, suas

culturas, suas histórias, suas infâncias.

Vendo cada individuo como sujeitos de possibilidade, que constróem a sua

história, e nesta linha de pensamento-ação me aproprio das palavras de Freire. “Para

mim, uma das bonitezas do anúncio profético está em que não anuncia o que virá

necessariamente, mas o que pode vir ou não ... Na real profecia, o futuro não é

inexorável, é problemático” (Freire,2000, p.119). Com isso tenho sempre presente que

nossas crianças são seres humanos de possibilidade, e que muitas de nossas ações em

relação a sua educação vão nortear as possibilidades que virão, sendo assim direta ou

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indiretamente somos todos responsáveis pelo futuro de cada “pequeno ser” que habita

o nosso planeta.”

Conclusão

A humanização em Freire e o respeito às infâncias em Freinet nos ajudam a pensar

as escolhas pedagógicas que vamos fazendo e assim dando uma cara às nossas certezas e incertezas.

Neste diálogo com Freire e Freinet procuro encontrar um caminho humanizador para a educação através de uma prática reflexiva. O encontro com as educadoras que também buscam superar processos arraigados numa escolarização excludente, e de segregação, não apresenta apenas a possibilidade de trocar, mas de materializar os sonhos, antes pensados em esferas individuais, mas a partir do grupo, experimentados coletivamente, com todos os riscos que isso representa.

Sobre os pensamentos e práticas pedagógicas preconizadas por Freinet tenho

sempre presente que “O respeito ao ser humano, expresso pelo respeito a criança, era a garantia de uma realização futura, na certeza de que a criança quando adulta estaria pronta a defender os direitos de todos, aprendendo a trabalhar pela coletividade” (Sampaio, 2002,p.45). No que diz respeito a Freire estou constantemente com suas palavras ecoando em meus pensamentos e ações, teria muitas de suas palavras para encerrar este trabalho, mas escolhi uma frase que para mim é muito significativa “Sou professor a favor da esperança que me anima apesar de tudo” (Freire, 1997, p.115).

. Nesse movimento cotidiano entre a alfabetização, a correspondência e o conhecimento escolar, vamos construindo nossa trajetória de professoras.

Aprender passa a ter sentido de esperança. De luta, de compartilhamento, mas sobretudo de cri-ação pedagógica constante, frente aos desafios, ás distâncias e aos medos que nos põem dia a dia em situação de combate, enfrentamento em busca de um mundo melhor.

Referências Bibliográficas: FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à pratica educativa.2ª.ed. São Paulo/Rio de Janeiro: Paz e Terra,1997. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e outros escritos.5ª red. São Paulo:UNESP,2000. FREIRE, Paulo, Professora sim tia não: cartas a quem ousa ensinar.14ªed.São Paulo: Olho d’água,2003. SAMPAIO, Rosa, Freinet: Evolução histórica e atualidade. 2ª.ed. São Paulo: Scipione, 2002.