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  • 1Revista Jurdica do Ministrio Pblico

    R. Jurdica do Ministrio Pblico. Joo Pessoa, ano 1, n. 1, jan./jun.2007.

    ESTADO DA PARABAMINISTRIO PBLICO

    PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIACENTRO DE ESTUDOS E APERFEIOAMENTO FUNCIONAL

    ISSN 1980-9662

  • 2REVISTA JURDICA DO MINISTRIO PBLICO DA PARABA Criada e publicada pelo Centro de Estudos e Aperfeioamento Funcional - CEAF

    JANETE MARIA ISMAEL DA COSTA MACEDOPROCURADORA-GERAL DE JUSTIA

    PAULO BARBOSA DE ALMEIDASUBPROCURADOR-GERAL DE JUSTIA

    JOS ROSENO NETOCORREGEDOR-GERAL

    DARCY LEITE CIRAULOSECRETRIA-GERAL

    RISALVA DA CMARA TORRESCOORDENADORA DO CEAF

    FREDERICO MARTINHO DA NBREGA COUTINHODIRETOR DO CEAF

    IMPRESSO: IMPRIMA - GRFICA E EDITORA

    EDITORAO ELETRNICA E CRIAO DE CAPA: RICARDO ARAJO - RP/DRT-PB 631

    REVISO: FLIX DE CARVALHO

    MINISTRIO PBLICO DA PARABACENTRO DE ESTUDOS E APERFEIOAMENTO FUNCIONAL - CEAF

    Rua Monsenhor Walfredo Leal, n 353 TambiCEP. 58.020-540Joo Pessoa - PB

    Fone: (083) 3221-0917e-mail: [email protected]

    Direitos reservados ao Centro de Estudos e Aperfeioamento Funcional do Ministrio Pblico do Estado da Paraba

    A responsabilidade dos trabalhos publicados exclusivamente de seus autores.

    Catalogao da publicao elaborada pela Biblioteca do MPPB

    Revista Jurdica do Ministrio Pblico Ministrio Pblico. Procuradoria-Geral de Justia / Centro de Estudos e Aperfeioamento Funcional. Joo Pessoa: MP/ PGJPB, CEAF, ano 1, n.1, (jan./jun.2007). Semestral 1.DIREITO peridicos I.Ministrio Pblico do Estado da Paraba. Procuradoria-Geral de Justia II.Centro deEstudos e Aperfeioamento Funcional/CEAF

    CDU 34(05) ISSN 1980-9662

  • 3REVISTA JURDICA DO MINISTRIO PBLICOPublicada pelo Centro de Estudos e Aperfeioamento Funcional - CEAF

    CONSELHO EDITORIAL

    Frederico Martinho da Nbrega CoutinhoPRESIDENTE

    Antnio Hortncio Rocha NetoSECRETRIO

    Bertrand de Arajo AsforaPROMOTOR DE JUSTIA

    Guilherme Costa CmaraPROMOTOR DE JUSTIA

    Lcio Mendes CavalcantePROMOTOR DE JUSTIA

    Oswaldo Trigueiro do Vale FilhoPROMOTOR DE JUSTIA

    Adriano D LeonPROFESSOR

    Eduardo Ramalho RabenhorstPROFESSOR

    Marcelo Weick PogliasePROFESSOR

    Mrcio Accioly de AndradePROFESSOR

    Rogrio Magnus Varela GonalvesPROFESSOR

    Rogrio Roberto Gonalves de AbreuJUIZ FEDERAL

  • 4APOIO EDITORIAL

    Lucelena Muniz FernandesCHEFE DO DEPARTAMENTO DE ESTUDOS, PESQUISA E PUBLICAO

    Nigria Pereira da Silva Gomes BIBLIOTECRIA E ESPECIALISTA EM ORGANIZAO DE ARQUIVO

    Edmilson Furtado Lacerda OFICIAL DE PROMOTORIA

    Franciraldo Miguel OFICIAL DE PROMOTORIA

    Maria da Conceio Morato TCNICO DE PROMOTORIA

    Maria Perptua Brasileiro TCNICO DE PROMOTORIA

    Srgio Tlio Bezerra Rodrigues de Lima OFICIAL DE PROMOTORIA

    Vnia Soares Beltro OFICIAL DE PROMOTORIA

    APOIO

    APMP - Associao Paraibana do Ministrio PblicoJoo Arlindo Corra Neto

    PRESIDENTE

    FESMIP - Fundao Escola Superior do Ministrio PblicoGuilherme Costa Cmara

    DIRETOR-GERAL

  • 5Janete Maria Ismael da Costa MacedoPresidente

    Jos Marcos Navarro Serrano Maria Lurdlia Diniz de Albuquerque Melo

    Snia Maria Guedes Alcoforado Lcia de Ftima Maia de Farias

    Joslia Alves de FreitasAlcides Orlando de Moura Jansen

    Antnio de Pdua TorresRisalva da Cmara Torres

    Ktia Rejane de Medeiros Lira Lucena Doriel Veloso Gouveia

    Jos Raimundo de Lima Paulo Barbosa de Almeida

    lvaro Cristino Pinto Gadelha CamposMarcus Vilar Souto Maior

    Jos Roseno Neto Otanilza Nunes de Lucena

    Francisco Sagres Macedo Vieira Nelson Antnio Cavalcante Lemos

    Janete Maria Ismael da Costa MacedoPresidente

    Jos Roseno NetoCorregedor-Geral

    Alcides Orlando de Moura JansenJos Raimundo de Lima

    lvaro Cristino Pinto Gadelha CamposMarcus Vilar Souto Maior

    Francisco Sagres Macedo Vieira

    COLGIO DE PROCURADORES

    CONSELHO SUPERIOR DO MINISTRIO PBLICO

  • 6MEMBROS DO MINISTRIO PBLICO

    PROCURADORES DE JUSTIA

    Jos Marcos Navarro Serrano; Maria Lurdlia Diniz de Albuquerque Melo; Janete Ma-ria Ismael da Costa Macedo; Snia Maria Guedes Alcoforado; Lcia de Ftima Maia de Farias; Joslia Alves de Freitas; Alcides Orlando de Moura Jansen; Antnio de Pdua Torres; Risalva da Cmara Torres; Ktia Rejane de Medeiros Lira Lucena; Doriel Velo-so Gouveia; Jos Raimundo de Lima; Paulo Barbosa de Almeida; lvaro Cristino Pinto Gadelha Campos; Marcus Vilar Souto Maior; Jos Roseno Neto; Otanilza Nunes de Lucena; Francisco Sagres Macedo Vieira; Nelson Antnio Cavalcante Lemos.

    PROMOTORES DE JUSTIA DE 3 ENTRNCIA

    Maria Regina Cavalcanti da Silveira; Jacilene Nicolau Faustino Gomes; Lcia Pereira Marsicano; Valberto Cosme de Lira; Manoel Henrique Serejo Silva; Newton Carneiro Vilhena; Maria Lcia Ribeiro Firemam; Lincoln da Costa Eloy; Joaci Juvino da Costa Silva; Wandilson Lopes de Lima; Victor Manoel Magalhes Granadeiro Rio; Vasti Cla Marinho da Costa Lopes; Marilene de Lima Campos de Carvalho; Maria das Graas de Azevedo Santos; Antnio Carlos Ramalho Leite; Jos Eulmpio Duarte; Herbert Douglas Targino; Snia Maria de Paula Maia; Afra Jernimo Leite Barbosa de Almeida; Francisco Antnio de Sarmento Vieira; Maria Ferreira Lopes Roseno; Ana Lcia Torres de Oliveira; Nilo de Siqueira Costa Filho; Scrates da Costa Agra; Berlino Estrela de Oliveira; Maria Salete de Arajo Melo Porto; Suamy Braga da Gama Carvalho; Maria do Socorro Silva Lacerda; Ana Raquel de Brito Lira Beltro; Flvio Wanderley da Nbrega Cabral Vasconcelos; Luciano de Almeida Maracaj; Arlan Costa Barbosa; Jos Guilherme Soares Lemos; Joo Geraldo Carneiro Barbosa; Aristteles de Santana Ferreira; Clark de Souza Benjamim; Francisco Paula Ferreira Lavor; Joo Arlindo Corra Neto; Dinalba Araruna Gonalves; Jos Farias de Sousa Filho; Osvaldo Lopes Barbosa; Eriosvaldo da Silva; Guilherme Barros Soares; Rog-rio Rodrigues Lucas de Oliveira; Arlindo Almeida da Silva; Noel Crisstomo de Oli-veira; Fernando Antnio Ferreira de Andrade; Larcio Joaquim de Macedo; Valdete Costa Silva de Figueiredo; Wildes Saraiva Gomes Filho; Aderbaldo Soares de Olivei-ra; Francisco Glauberto Bezerra; Rosane Maria Arajo e Oliveira; Alexandre Csar Fernandes Teixeira; Vanina Nbrega de Freitas Dias Vieira; Eny Nbrega de Moura Filho; Roseane Costa Pinto Lopes; Jonas Abrantes Gadelha; Soraya Soares da Nbre-ga Escorel; Alley Borges Escorel; Silvana de Azevedo Targino; Lus Nicomedes de

  • 7Figueiredo Neto; Cristiana Ferreira Moreira Cabral de Vasconcelos; Frederico Mar-tinho da Nbrega Coutinho; Catarina Campos Batista Gaudncio; Manoel Cacimiro Neto; drio Nobre Leite; Jllia Cristina do Amaral Nbrega Ferreira; Renata Carva-lho da Luz; Rodrigo Marques da Nbrega; Alexandre Jorge do Amaral Nbrega; Joo Manoel de Carvalho Costa Filho; Oswaldo Trigueiro do Valle Filho; Carlos Romero Lauria Paulo Neto; Gustavo Rodrigues Amorim; Antnio Hortncio Rocha Neto; Er-nani Lucena Filho; Alusio Cavalcanti Bezerra; Valfredo Alves Teixeira; Maria Socor-ro Lemos Mayer; Ronaldo Jos Guerra; Valrio Costa Bronzeado; Cludio Antnio Cavalcanti; Leonardo Pereira de Assis; Maria Edilgia Chaves Leite; Amadeus Lopes Ferreira; Dmitri Nbrega Amorim; Luiz Williams Aires Urquisa; Ivete Lenia Soares de Oliveira Arruda; Isamark Leite Fontes; Tatjana Maria Nascimento Lemos; Carla Simone Gurgel da Silva; Severino Coelho Viana; Priscylla Miranda Morais Maro-ja; Bertrand de Arajo Asfora; Octvio Celso Gondim Paulo Neto; Guilherme Costa Cmara; Hamilton de Souza Neves Filho; Darcy Leite Ciraulo; Francisco Serphico Ferraz da Nbrega Filho.

    PROMOTORES DE JUSTIA DE 2 ENTRNCIA

    Otoni Lima de Oliveira; Onssimo Csar Gomes da Silva Cruz; Pedro Alves da N-brega; Newton da Silva Chagas; Jos Raldeck de Oliveira; Carolina Lucas Ferrei-ra; Alexandre Jos Irineu; Edjacir Luna da Silva; Francisco Lianza Neto; Marinho Mendes Machado; Glucia Maria de Carvalho Xavier; Manoel Pereira de Alencar; Nara Elizabeth Torres de Souza Lemos; Glucia da Silva Campos Porpino; Henrique Cndido Ribeiro de Morais; Maria de Lourdes Neves Pedrosa Bezerra; Demtrius Castor de Albuquerque Cruz; Aldenor de Medeiros Batista; Francisco Brgson Go-mes Formiga Barros; Hermgenes Braz dos Santos; Patrcia Maria de Souza Ismael da Costa; Alyrio Batista de Souza Segundo; Lcio Mendes Cavalcante; Romualdo Tadeu de Arajo Dias; Norma Maia Peixoto; Anne Emanuelle Malheiros Costa Y Pl Trevas; Antnio Barroso Pontes Neto; Ismnia do Nascimento Rodrigues Pessoa Nbrega; Fabiana Maria Lbo da Silva; Anita Bethnia Rocha Cavalcanti de Mello; Jovana Maria Pordeus e Silva; Ricardo Jos de Medeiros e Silva; Dulcerita Soares Alves de Carvalho; Alessandro de Lacerda Siqueira; Ana Maria Frana Cavalcante de Oliveira; Mrcia Betnia Casado e Silva; Judith Maria de Almeida Lemos; Ana Cndida Espnola; Adriana Arajo dos Santos; Ana Maria Pordeus Gadelha Braga; Otaclio Marcos Machado Cordeiro; Artemise Leal Silva; Maricelly Fernandes Vieira; Adriana de Frana Campos; Adriana Amorim de Lacerda; Sandra Regina Paulo Neto de Melo; Rhomeika Maria de Frana Porto; Herbert Vitrio Serafi m de Carvalho; Ana Guarabira de Lima Cabral; Ana Caroline Almeida Moreira; Liana Espnola Pereira de Carvalho; Marcus Antonius da Silva Leite; Raniere da Silva Dantas; Dris Ayalla Anacleto Duarte; Juliana Couto Ramos; Andra Bezerra Pequeno; Gardnia Cirne de Almeida Galdino; Mrcio Gondim do Nascimento; Juliana Lima Salmito; Clstenes Bezerra de Holanda; Eduardo Barros Mayer; Rodrigo Silva Pires de S; Fernando Cordeiro Stiro Jnior; Jos Leonardo Clementino Pinto; Joseane dos Santos Amaral;

  • 8Alexandre Varandas Paiva; Sandremary Vieira de Melo Agra Duarte; Edmilson de Campos Leite Filho; Ricardo Alex Almeida Lins; Rafael Lima Linhares; Jos Bezerra Diniz; Abrao Falco de Carvalho; Elaine Cristina Pereira Alencar.

    PROMOTORES DE JUSTIA DE 1 ENTRNCIA

    Joo Ansio Chaves Neto; Mrcio Teixeira de Albuquerque; Jeaziel Carneiro dos Santos; Alcides Leite de Amorim; Rosa Cristina de Carvalho; Edivane Saraiva de Souza; Clu-dia Cabral Cavalcante; Miriam Pereira Vasconcelos; Luciara Lima Simeo Moura.

    PROMOTORES DE JUSTIA SUBSTITUTOS

    Caroline Freire de Moraes; Joo Benjamin Delgado Neto; Paula da Silva Camillo Amorim; Cludia de Souza Cavalcanti Bezerra; Fbia Cristina Dantas Pereira; Da-nielle Lucena da Costa; Leonardo Cunha Lima de Oliveira; Ismael Vidal Lacerda; Cassiana Mendes de S; Carmem Eleonora da Silva Perazzo.

  • 9SUMRIO

    EDITORIAL .............................................................................................................................. 8

    A APLICAO DA LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA, EM CASOS DE AFRONTA AO DEVER DE LICITAR ..................................................................................... 9Alba Lygia Ismael da Costa Macedo

    A INVESTIGAO CRIMINAL DESENVOLVIDA PELO MINISTRIO PBLICO E O PROBLEMA DAS CIFRAS NEGRAS .......................................................................18 Guilherme da Costa Cmara

    A LIBERDADE EM DESCARTES ........................................................................................ 31 Antnio Jorge Soares

    AS MEDIDAS RESTRITIVAS DA LIBERDADE DE LOCOMOO DAS CRIANAS E DO ADOLESCENTE .......................................................................................................... 40 Fabiana Maria Lbo da Silva

    CIDADANIA E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA ...................................................... 60 Severino Coelho Viana

    CRTICAS DOUTRINA DO DIREITO PENAL DO INIMIGO......................................... 85 Mrcia Betnia Casado e Silva

    DESCUMPRIMENTO DA TRANSAO PENAL.................................................................94 Gardnia Cirne de Almeida Galdino

    IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA...................................................................................122 Srgio Alexandre de Moraes Braga Jnior

    LEGITIMIDADE DOS CRIMES DE PERIGO ABSTRATO................................................146 Antnio Hortncio Rocha Neto

    LEI MARIA DA PENHA: ASPECTOS CONTROVERTIDOS.............................................163Amadeus Lopes Ferreira

    LIMITAES LIBERDADE EM FACE DA PRTICA DE TIPOS PENAIS..................169 Ricardo Alex Almeida Lins

    MEIO AMBIENTE, PATRIMNIO GENTICO E BIOTECNOLOGIA: NECESSIDA DE APLICAO DO PRRNCIPIO DA PRECAO ...............................190 Talden Farias

    NORMA PENAL: CONCEITO, FUNES E CARACTERSTICAS ............................... 210 Frederico Martinho da Nbrega Coutinho

    O CONTROLE JUDICIAL DAS POLTICAS PBLICAS E O PAPEL DO MINISTRIO PBLICA ............................................................................................... 219Marcos Alexandre Bezerra Wanderley de Queiroga

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    O DFICIT DE EFICCIA DO DIREITO DIFUSO A UMA SEGURANA PBLICA DE QUALIDADE E A AO DO PODER INVISVEL NO BRASIL...................................... 242Lcio Mendes Cavalcante

    O AMADURECIMENTO DOS DIREITOS SOCIAIS PRESTACIONAIS NO CENRIO JURDICO BRASILEIRO..................................................................................................... 252 Luciano Gomes Flix de Medeiros

    O PRINCPIO DA BOA-F OBJETIVA E A RESPONSABILIDADE PR-NEGOCIAL: PERSPECTIVAS DO SISTEMA ADOTADO PELO NOVO CDIGO CIVIL................... 264 Francisco Serphico da Nbrega Coutinho

    MAUS ANTECEDENTES E SUA REPERCUSSO NA PROPOSTA DE TRANSAO PENAL PELO MINISTRIO PBLICO.............................................................................. 282 Liana Espnola Pereira de Carvalho

    RESPONSABILIDADE DO PROFISSIONAL LIBERAL NO CDIGO CIVIL E NO CDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR ..................................................................... 299 Fernando Antnio de Vasconcelos

    VIOLNCIA DOMSTICA CONTRA A MULHER: O NOVO PERFIL JURDICO-PUNITIVO DA LEI N 11.340/06...................................................................... 323 Ana Carolina Almeida Moreira

  • 11

    EDITORIAL

    Um sonho realizado. Este o sentimento que, hoje, impe-ra no Ministrio Pblico da Paraba, com a edio da presente re-vista. Como se sabe, o campo acadmico de suma importncia para a atividade jurdica. A pesquisa nele desenvolvida faz crescer o conhecimento, dando uma viso mais aprofundada e qualifi ca-da acerca dos assuntos investigados. Assim, o profi ssional que se aperfeioa consegue desenvolver mais a contento os seus miste-res, elevando o conceito da instituio a que pertence. essencial tambm que se propicie aos demais operadores do direito o conta-to com o raciocnio desenvolvido na pesquisa, sua fundamentao e seus resultados, proporcionando o acesso a novos conhecimentos.

    Com essa preocupao, j h algum tempo, os membros do Ministrio Pblico Estadual ansiavam por um espao no qual pudes-sem externar os seus conhecimentos jurdicos, atravs de artigos que abordassem as mais variadas ramifi caes do direito. Agora, o antigo sonho tornou-se realidade. Esta revista disponibiliza aos membros do Ministrio Pblico Estadual a oportunidade de desenvolverem os seus pensamentos jurdicos, consubstanciados em anlises sobre os assun-tos mais polmicos, controvertidos e intrigantes dos diversos ramos do direito. Possibilita tambm a publicao de artigos escritos por outros operadores do direito, professores e pesquisadores, criando, com isso, um verdadeiro intercmbio entre as mais variadas esferas da atividade jurdica e o campo acadmico. Assim, com esta publicao, os Promo-tores e Procuradores de Justia do Estado da Paraba dispem de uma nova fonte de conhecimento e pesquisa, dotada de informaes relevan-tes acerca de assuntos de interesse direto da instituio e da sociedade.

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    Com a Emenda Constitucional n 45, que implantou a co-nhecida Reforma do Poder Judicirio, tornou-se mais evidente a ne-cessidade de aperfeioamento dos membros do Ministrio Pblico. Trata-se de uma exigncia essencial, inclusive, no que diz respeito promoo e remoo por merecimento, que sempre devero obedecer a critrios objetivos. Nesse contexto, a revista busca contribuir tam-bm para a obteno desse requisito, ao disponibilizar um novo espa-o para publicao das pesquisas elaboradas pelos membros da nos-sa instituio. Esta mais uma conquista que, com certeza, veio para fi car, engrandecendo, ainda mais, o Ministrio Pblico da Paraba.

    Conselho Editorial

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    A APLICAO DA LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA EM CASOS DE AFRONTA

    AO DEVER DE LICITAR

    Alba Lygia Ismael da Costa Macedo Advogada

    1. Introduo

    A Constituio Federal de 1988 traz, em seu art. 37, XXI, a regra da obrigatoriedade de licitao, tendo como fi nalidade preservar os princpios da legalidade, igualdade, impessoalidade, efi cincia, mo-ralidade e probidade. Licitao o procedimento administrativo atravs do qual um ente pblico, exercendo sua funo administrativa, abre aos interessados que se adequarem s condies fi xadas no instrumento convocatrio a faculdade de formularem propostas.

    Dentre as propostas apresentadas, ser selecionada a mais conveniente para a celebrao de um futuro contrato administrativo. A Lei de Licitao tambm obriga as entidades privadas que estejam no exerccio de funo pblica a cumprirem as regras ali estabelecidas. H duas fi nalidades para a realizao da licitao: obter o contrato mais vantajoso para a administrao pblica; cumprir os princpios inerentes ao procedimento licitatrio.

    O instrumento convocatrio, que contm as regras que vigora-ro durante o processo seletivo, assim como as normas que sero obser-vadas no contrato a ser celebrado, o meio solicitante dos interessados. A lei prev duas formas de convocao: o edital e a carta. Para contra-tar, a Administrao Pblica deve agir na conformidade da Constituio e das leis, no cabendo a ela nenhum poder discricionrio.

    A Constituio Federal acolheu a regra da presuno de que a licitao prvia induz melhor contratao, garantindo maior vantagem Administrao Pblica. Entretanto, esta presuno encontra excees na prpria Constituio, quando faculta a contratao direta nos casos previstos em lei. Essa hiptese est prevista no art. 37, XXI, da Carta Magna, que foi regulamentado pela Lei n 8.666/93 (Lei de Licitaes

    Revista Jurdica do Ministrio Pblico2007

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    e Contratos da Administrao Pblica).A Constituio Federal de 1988, em seu art. 22, XXVII, conce-

    deu competncia privativa Unio, para legislar sobre normas gerais de licitao e contratao (...). Entretanto, este dispositivo faculta aos Estados e, por via refl exa, ao Distrito Federal a edio de normas pe-culiares para suas licitaes e contrataes futuras (art. 22, pargrafo nico, e art. 32, 1, da Constituio Federal). Todavia, os Estados no podem contrariar as normas gerais, mormente no que tange ao procedi-mento licitatrio, na formalizao e execuo dos contratos, nos prazos e nos recursos admissveis.

    Com a edio da Lei de Licitao e Contratos (Lei n 8.666/93), a Unio e suas autarquias tm a obrigao de cumprir tudo o que se encontra disposto em suas regras. J os demais entes federados da ad-ministrao indireta devero cumprir somente as normas gerais. Como explicita Maria Sylvia di Pietro1, so (...) normas gerais, de mbito nacional, e normas especfi cas, de mbito federal, sem qualquer critrio orientador que permitisse distinguir umas das outras.

    2. Excludentes da obrigatoriedade licitatria

    A supremacia do interesse pblico fundamenta a exigncia da licitao prvia para contrataes com a Administrao Pblica, como regra geral. Entretanto, a Carta Magna prev hipteses taxativas possi-bilitando ao ente pblico contratar diretamente. Em tais hipteses d-se a dispensa ou inexigibilidade de licitao. Porm, a Administrao Pblica somente poder deixar de realizar a licitao, quando a lei a desobrigar, autorizando a sua dispensa, em decorrncia de uma situao particular. Ou, no caso de ser a licitao inexigvel, pela impossibili-dade de sua realizao. H tambm a hiptese de substituio de uma modalidade por outra.

    Esta exceo decorre do fato de que a exigncia do procedi-mento licitatrio pode contrariar o interesse pblico e no assegurar a contratao mais vantajosa. Desta forma, a Administrao Pblica est 1 PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Direito administrativo. 9. ed. So Paulo: Atlas, 2007. p. 293.

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    autorizada a adotar outro procedimento, cujas formalidades sero supri-das ou substitudas por outras. Convm frisar que tal fl exibilidade no foi dotada de discricionariedade.

    2.1 Licitao dispensada

    O art. 17 da Lei n 8.666/93 elenca as hipteses em que o pro-cedimento licitatrio dispensado: so os casos de alienao de bens e direitos. Apesar de a norma legal elencar essas hipteses como de lici-tao dispensada, Maral Justen Filho2 entende que alguns casos descri-tos no artigo referido (o inciso I, com exceo da alnea e, e o inciso II, alneas a, b e f) so qualifi cveis como de inexigibilidade. Entretanto, essa posio no consensual na doutrina.

    Alienao toda transferncia voluntria do domnio de um bem ou de um direito. Apesar de o instituto de compra e venda ser de direito privado, suas regras so utilizadas nas alienaes de bens pblicos. de se salientar que sero aplicados os princpios que regem o direito pbli-co sempre que o regime de direito privado for com eles incompatvel.

    No se aplica tambm clusula alguma ou regra peculiar a es-ses contratos, quando isso contrariar os princpios de direito pblico. No caso das alienaes, inexiste para o Estado a necessidade de se obter a colaborao de terceiros, como ocorre nas obras, servios e compras. O intuito do Estado abrir mo da titularidade de bens ou direitos, a fi m de receber a prestao econmica mais proveitosa.

    As hipteses legais so: contratao direta na alienao de im-veis; dao em pagamento; doao e permuta; investidura; alienaes para a Administrao Pblica; concesso de direito real de uso, aliena-o, locao ou permisso de uso de bens imveis; contratao direta na alienao de mveis; doao, permuta e venda de aes atravs da bolsa de valores; venda de ttulos e de bens produzidos ou comerciali-zados pela Administrao Pblica; venda de materiais e equipamentos; doao com encargo.

    2 JUSTEN FILHO, Maral. Comentrios Lei de Licitao e Contratos Administrativos. 6. ed. So Paulo: Dialtica, 1999.

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    2.2 Licitao dispensvel

    A licitao dispensvel permite Administrao Pblica, em sua anlise discricionria, abrir ou no a competio, analisar o que conveniente ao interesse pblico. Isso porque, em algumas hipteses, os custos necessrios licitao ultrapassariam os benefcios que dela poderiam advir. O art. 24 da Lei n 8.666/93 elenca vinte e quatro hip-teses de licitao dispensvel. Maria Sylvia Zanella Di Pietro3 reuniu todas essas hipteses em quatro categorias:

    a) Em razo do pequeno valor, englobando os incisos I, II e pargrafo nico do art. 24. b) Em razo de situaes excepcionais, nesta incluindo-se: guerra ou grave perturbao da ordem; emergncia ou calamidade pblica; licitao deserta; interveno no do-mnio econmico; licitao fracassada; risco segurana nacional, remanescente de obras; contrataes segundo acordos internacionais; e contrataes vinculadas a ope-raes militares.c) Em razo do objeto, incluindo-se: compra ou locao de imvel; compra de hortifrutigranjeiro; aquisio e restaurao de obras de arte; contratao acessria para manuteno de garantia; padronizao de material de uso militar; aquisio de bens para pesquisa cientfi ca.d) Em razo da pessoa, nos contratos com pessoa da Ad-ministrao Pblica; contratao no mbito da adminis-trao indireta; contrataes especiais com a Administra-o Pblica; instituio sem fi ns lucrativos; contratao com associao de portadores de defi cincia; contratao de energia eltrica; contratao com organizao social.

    2.3 Licitao inexigvel

    A inexigibilidade de licitao se d quando houver impossibi-

    3 PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Op. cit., p. 294.

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    lidade jurdica de competio entre os contratantes, acarretando a au-sncia de licitao e a contratao direta. Pode acontecer em razo da natureza especfi ca do objeto ou dos objetivos sociais buscados pela Administrao Pblica. Alm disso, a licitao no dever ser realizada quando a hiptese de inexigibilidade derivar da impossibilidade de so-luo satisfatria. Nesse caso, a licitao acarretaria desembolso intil de recursos e perda de tempo. As excees regra da obrigatoriedade licitatria previstas no art. 25 tm natureza apenas exemplifi cativa. So elas: produtor ou fornecedor exclusivo; servios tcnico-profi ssionais especializados; contratao de artistas; servios de publicidade.

    2.4 Formalidades necessrias para a contratao sem licitao

    A contratao direta feita mediante um procedimento admi-nistrativo, sem o carter rigoroso da licitao. Divide-se em duas eta-pas: interna e externa. Na etapa interna, a Administrao Pblica defi ne o objeto fruto do contrato e as condies contratuais a serem observa-das; na etapa externa, formaliza a contratao. Nesse caso, haver uma liberdade relativa na escolha da proposta, que deve ser a mais vantajosa possvel, e do contratante, que deve ser o mais qualifi cado.

    Como a Administrao Pblica tem a faculdade de escolha entre realizar ou no a licitao, a ela tambm cabe a deciso de, querendo, promover o procedimento seletivo. Ao invs de realizar a licitao se-gundo uma das modalidades previstas em lei, ela anuncia seu interesse de contratar, divulga as condies bsicas de contratao e convoca os interessados para formularem as suas propostas. Em seguida, examina os documentos e as propostas, escolhendo uma delas. Essa medida expressa o princpio da transparncia da atividade administrativa do Estado.

    3. Lei de Improbidade Administrativa e a obrigao de licitar

    A responsabilidade pela prtica de atos de improbidade admi-nistrativa tem raiz no artigo 37, 4, da Constituio Federal. Esse dis-positivo prev as sanes aplicveis a esta prtica, na forma e gradao previstas em lei, remetendo sua aplicao lei especfi ca. A Lei federal n 8.429/92 estabelece as sanes aplicveis aos agentes pblicos em caso de enriquecimento ilcito no exerccio de mandato, cargo, emprego

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    ou funo administrativa pblica direta, indireta ou fundacional.Para Alexandre de Moraes4, atos de improbidade administra-

    tiva so aqueles que, possuindo natureza civil e devidamente tipifi cada em lei federal, ferem direta ou indiretamente os princpios constitucio-nais e legais da Administrao Pblica. , num conceito mais especfi -co, a conduta de uma autoridade pblica, que exerce o poder indevida-mente, em troca de vantagem material, benefi ciando interesse privado.

    Como veremos adiante, a Lei de Improbidade Administrativa pretende punir, no a ilegalidade, mas sim a conduta ilegal ou imoral do agente pblico. Portanto, h duas caractersticas essenciais para se ca-racterizar o ato mprobo do agente pblico: a natureza civil da conduta e a tipifi cao em lei federal. Os atos mprobos compreendem trs moda-lidades, descritas nos arts. 9, 10 e 11 da Lei Federal n 8.429/92: os que importam enriquecimento ilcito, os que causam prejuzo ao errio e os que atentam contra os princpios da Administrao Pblica, respectiva-mente. Neste estudo, ser analisada apenas a segunda modalidade de ato de improbidade administrativa: o que causa prejuzo ao errio. Esse ato est previsto no art. 10, inciso VIII, da Lei n 8.429/92: frustrar a licitude de processo licitatrio ou dispens-lo indevidamente.

    Causar prejuzo ao errio diferente de causar prejuzo ao pa-trimnio pblico. Errio diz respeito ao aspecto econmico-fi nanceiro, ao tesouro da Administrao Pblica; j patrimnio pblico abrange, alm do aspecto econmico, o histrico, o paisagstico e o artstico. Desta forma, o art. 10 da Lei n 8.429/92 pretende proteger o conjunto de rgos administrativos encarregados da movimentao econmico-fi nanceira do Estado. Para sua tipifi cao, preciso haver a juno de cinco requisitos, quais sejam: conduta dolosa ou culposa do agente; conduta ilcita; existncia de leso ao errio; no exigncia de obteno de vantagem patrimonial pelo agente; existncia de nexo causal entre o exerccio funcional e o prejuzo concreto gerado ao errio pblico.

    O inciso VIII do art. 10 da Lei n 8.429/92 indica uma modali-dade de ato de improbidade administrativa que causa prejuzo ao errio, ao dispor: Constitui ato de improbidade administrativa frustrar a lici-tude de processo licitatrio ou dispens-lo indevidamente. A regra da obrigatoriedade licitatria exige que todas as obras, servios, compras, 4 MORAES, Alexandre de. Constituio do Brasil interpretada e legislao constitucional. 9. ed. So Paulo: Atlas, 2002. p. 2.610.

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    alienaes, concesses e locaes da Administrao Pblica, quando contratados com terceiros, devem ser precedidos de licitao. Exige-se, tambm, licitao para a contratao de servios de publicidade.

    No aspecto licitatrio, neste caso, imprescindvel fazer-se o estudo conjugado da Lei n 8.666/93 com a Lei n 8.429/92. Com base nessas duas leis, vedado ao agente pblico admitir, prever, incluir ou tolerar, nos atos de convocao, clusulas ou condies que compro-metam, restrinjam ou frustrem seu carter competitivo, como tambm as que estabeleam preferncias ou distines sob qualquer aspecto do objeto do contrato. H duas modalidades de fraude lesivas ao patrim-nio pblico bastante comuns: o superfaturamento e a contratao de servios fantasmas.

    4. Penalidades previstas na Lei n 8.429/92

    O art. 37, 4, da Carta Magna prev as sanes aplicveis aos agentes pblicos, em caso de cometimento de improbidade admi-nistrativa. Porm, remete a sua aplicao Lei n 8.429/92, que trata da questo em seu art. 12. O citado dispositivo constitucional enumera trs sanes: suspenso dos direitos polticos; perda da funo pblica e res-sarcimento ao errio. Estas tm natureza civil e no excluem as sanes penais eventualmente previstas em lei para a mesma conduta.

    Isto advm do fato de que so trs as jurisdies passveis de responsabilidade: a administrativa, a civil e a penal, as quais atuam com uma relativa independncia. O agente pode sofrer punies nas trs es-feras e tambm por improbidade, como estabelece o caput do art. 12 da Lei n 8.429/92. Esse dispositivo estabelece, de forma especfi ca, as sanes aplicadas ao agente que pratica ato de improbidade administra-tiva, que so as seguintes:

    - ressarcimento ao errio;- perda da funo pblica e suspenso dos diretos polticos;- perda dos bens acrescidos ilicitamente;- multa civil;- proibio de contratar com o poder pblico ou de rece- ber benefcios direta ou indiretamente.

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    Para a fi xao das penas, dispe o pargrafo nico do artigo 12: Na fi xao das penas previstas nesta Lei, o juiz levar em conta a extenso do dano causado, assim como o proveito obtido pelo agen-te. O rol dessas sanes no dever ser, obrigatoriamente, aplicado de forma cumulativa. Portanto, no est o Poder Judicirio compelido a aplicar todas as sanes em todos os casos de improbidade adminis-trativa. Isso ocorre, devido ao princpio da individualizao da pena, consagrado no art. 5, inciso XLVI, da Constituio Federal. Para tanto, o Poder Judicirio dever analisar o ato mprobo, para, nos limites e na extenso da lei, de forma fl exvel, equnime e criteriosa, aplicar, dentre as sanes legais, a mais adequada ao caso concreto.

    5. Consideraes fi nais

    Este estudo demonstrou a necessidade de os agentes pblicos estarem vinculados idia de irrestrita honestidade no trato da coisa p-blica. Signifi ca que devem atuar, com extrema cautela, nos julgamentos que possam motivar a contratao direta, por tratar-se de exceo ao princpio constitucional da licitao. O instituto da licitao nem sem-pre alcana o seu fi m, que a contratao. Esta, apesar de devidamente formalizada, no est imune a fraudes e desvios. Ao contrrio, pode constituir-se em uma forma mais proveitosa de se disfarar a improbi-dade, entabular conluios e consumar abusos, originando um enriqueci-mento ilcito por parte de administradores e de terceiros desonestos.

    Em face destes deslizes, o alcance e os diversos efeitos da Lei de Improbidade Administrativa na sociedade so altamente salutares e podero proporcionar soluo efi caz ao problema da fi scalizao da probidade administrativa. Nesse sentido, preciso lembrar aos opera-dores jurdicos que suas tarefas, mais que tudo, ligam-se a um contexto social. Eles tm a incumbncia de julgar com base na transparncia e no rigor, para o controle das administraes, em todas as suas esferas.

    Foi escolha da sociedade o caminho do rigoroso combate improbidade administrativa, em caso de locupletamento ilcito, s cus-tas dos cofres pblicos. H muito, a sociedade vem lutando pela mo-ralidade administrativa, pelo resgate de princpios ticos de lealdade, honestidade e probidade no trato da coisa pblica e no exerccio das funes pblicas.

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    Referncias bibliogrfi cas

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    FIGUEIREDO, Marcelo. Probidade administrativa: comentrios Lei n 8.429/92 e legislao complementar. 2. ed. So Paulo: Malheiros Editores, 1997.

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    MARINO FILHO, Pazzaglini et al. Improbidade administrativa: aspectos jurdicos da defesa do patrimnio pblico. 3. ed. So Paulo: Atlas, 1998.

    MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 25. ed. So Paulo: Malheiros Editores, 2000.

    MORAES, Alexandre de. Constituio do Brasil interpretada e legislao constitucional. So Paulo: Atlas, 2002.

    _____________________. Direito constitucional. 9. ed. So Paulo: Atlas, 2001.

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    Alba Lygia Ismael da Costa Macedo

    2007 Revista Jurdica do Ministrio Pblico

    Trata-se de um desafi o imperioso, porm inafastvel, dos que esto comprometidos com o bem-estar social e voltados a um objeti-vo fundamental: a promoo concreta da justia e a implementao da igualdade e dos valores constitucionais superiores, norteando o conv-vio numa sociedade mais justa, mais humana e mais fraterna.

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    1. Introduo

    Discute-se atualmente se o Ministrio Pblico brasileiro est ou no constitucionalmente autorizado a realizar investigaes crimi-nais autnomas. Trata-se de forte debate travado tanto no meio jur-dico-acadmico, como em diversos segmentos e instituies sociais. Essa controvrsia tambm objeto de anlise pelo STF1. Demais dis-so, inumerveis ensaios doutrinrios j foram publicados, nos quais possvel colacionar variegados argumentos, tanto favorveis como contrrios, a uma atuao proativa do dominus lites no campo inves-tigativo.

    Feitas estas brevssimas consideraes, cabe advertir que os trabalhos j elaborados voltam-se - no que no se pretende retirar-lhes s por isso a validade - para uma anlise positivo-legalista do proble-ma. O presente texto, todavia, tem o propsito de lanar alguma luz sobre um ngulo ainda no esquadrinhado: a relevncia funcional da atuao ministerial na reduo das impressionantes cifras negras que atingem a criminalidade estrutural.

    Como se sabe, as cifras negras2 dizem respeito intrans-parncia ou opacidade de determinados comportamentos delitivos. Convm observar que, em grande medida, so produzidas pelas instncias formais de controle social (principalmente pela polcia,

    1 Inqurito 1.968/DF. Rel. Ministro Marco Aurlio. Informativo STF-359.2 Cifras negras como elemento redutor dos contingentes de deviance. Cf. DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia: O homem delinqente e a sociedade crimingena. Coimbra: Coimbra, 1984. p. 367. Sobre a normalidade e funcionalidade das cifras negras, cf. ALBRECHT, Peter-Alexis, Kriminologie, 2. Aufl age, Muenchen: C.H. BECK, 2002. p. 134.

    A INVESTIGAO CRIMINAL DESENVOLVIDA PELO MINISTRIO PBLICO E O PROBLEMA

    DAS CIFRAS NEGRAS

    Guilherme Costa CmaraPromotor de Justia no Estado da Paraba

    Professor do Centro Universitrio de Joo Pessoa - UNIP

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    instituio que desempenha intenso papel seletivo)3, traduzindo a defasagem entre a criminalidade conhecida pelo sistema penal e a criminalidade real4. Representam, assim, a criminalidade ocul-ta, no registrada. Pode-se falar, portanto, de um efeito funil, pois apenas uma pequena parcela da criminalidade registrada no sistema5.

    Vale acentuar que, no tocante criminalidade de massas, a vtima6, juntamente com a polcia, contribui para a mortalidade de ocorrncias criminais, participando como importante fator etiolgico na construo das cifras negras. Assim, j no possvel responsabi-lizar a vtima ou atribuir-lhe um papel de destaque quando se faz aluso ao fenmeno da macrocriminalidade, em que de regra comparece uma vtima abstrata ou inconsciente (processos de vitimizao difusa).

    Nesse domnio da criminalidade, a interveno da polcia tem um peso decisivo7. Com efeito, a depender da rea da normatividade que se manifesta no nvel das cifras negras, o manto da invisibilidade que lanado sobre determinadas condutas pode ter como causa pri-mordial ora a vtima, ora a polcia.

    3 Inmeras pesquisas lograram demonstrar que a polcia realiza constantes escolhas, selecionando as causas penais que devero ingressar no sistema de justia penal. Este funciona em escala bastante reduzida, menos em razo do carter fragmentrio do direito penal e mais em funo do papel discricionrio desempenha por aquela instncia formal de controle social da criminalidade. Sobre as elevadssimas cifras negras decorrentes da atividade seletiva da polcia com base em investigaes realizadas na cidade de Detroit, cf. DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Op. cit., p. 445.4 Gassin reporta-se distino existente entre chiffre noir e chiffre gris. A ltima baseia-se no contingente de crimes em que apenas a autoria no foi identifi cada pela polcia. GASSIN, Raimond. Criminologie, 4. ed. Paris: Dalloz, 1998. p. 101. Quanto ambigidade que a expresso cifra negra carrega, cf. LDERSSEN, Klaus. Strafrecht und Dunkelziffer (Recht und Staat in Geschichte und Gegenwart, bd. 412), Tbingen: J.C.B. Mohr, 1972. p. 6. 5 A visibilidade da criminalidade um fenmeno altamente complexo, e no tendo nada de acidental ou contingente. Portanto, no se trata apenas de um fenmeno de ordem tcnica (no poltica). Trata-se de um processo estreitamente atrelado a estratifi caes sociais, econmicas e polticas de uma sociedade. Nesse sentido, cf. SACK, (1993. p. 106), ALBRECHT, Peter-Alexis, 2000, p.132).6 No se desconhece o papel relevante desempenhado pela vtima na produo do fenmeno em perspec-tiva. Como se sabe, o desinteresse pela sorte da vtima tende a desencoraj-la a dar publicidade acerca de infraes penais contra ela perpetradas. Desse modo, o desinteresse e a alienao da vtima provocam perigoso incremento da cifra negra. Cf. GARCA-PABLOS, Antonio. La resocializacion de la victima: victima, sistema legal y poltica criminal, Doctrina Penal, Teoria Y Prctica em las Cincias Penales. Buenos Aires: Depalma, 1990. p.176. 7 Cf. DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Op. cit., p. 448.

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    2. As cifras negras e o problema da criminalidade estrutural

    Nessa zona crimingena, malgrado a irrecusvel importncia (e a necessidade) de uma interveno dinmica da polcia, constata-se, inversa-mente, uma atuao negativa, de sentido contrrio. Essa atuao negativa no se restringe, simplesmente, a um no agir, isto , um no investigar. Tambm implica um ato falho ou imperfeito, decorrente de uma gama de fatores, den-tre os quais merecem destaque a ascendncia, a infl uncia e o prestgio social dos presumidos delinqentes. Tal atitude se revela decisiva para a solidifi ca-o de um nvel demasiadamente elevado de bitos de casos penais. Como resultado, apenas uma nfi ma parcela da ao macrodelitiva posta nas ma-lhas da justia pblica e tudo o que se v no seno a ponta do iceberg.

    Com isto, pe-se a descoberto a fragilidade da capacidade con-tramotivadora8 ou dissuasria do sistema de justia penal relativamente a uma ampla faixa delinqencial. Isso resulta em um severo compro-metimento da funo estabilizadora da pena. Essa fragilidade possui, todavia, aptido para projetar-se para alm do marco delitivo ora anali-sado, vindo a alcanar outras zonas de desvalor social. As normas pro-tetivas tambm ressentem-se de uma perda de densidade contraftica, colocando-se, drasticamente, em causa a opo da maioria em atuar em conformidade com elas. Assim, a inobservncia da norma em razo da no persecuo de condutas delitivas que permanecem fora do mbito de investigao policial reduz quantitativa e qualitativamente a efi ccia preventiva da lei penal, mitigando sua funo de garantir a paz social pela observncia do direito estabelecido para a sociedade.

    O elevado dfi cit de persecuo que as cifras negras ocul-tam, mxime no campo da criminalidade estruturada, atesta, de modo contundente, a realidade emprica9. Esse quadro afeta tanto o prestgio 8 O BverGE (Bundesverfassungsgericht) utiliza-se de uma linguagem em que aparece de modo bem desta-cado o aspecto positivo da preveno geral. Fala-se, assim, em conservao e fortalecimento da confi ana na capacidade da fora de estabilizao e de execuo da ordem jurdica. In: MLLER-DIETZ, Heinz. Integrationsprvention und Strafrecht Zum positiven Aspeckt der Generalprvention, Fests fr Jes-check, Berlin: Duncker & Humblot, 1985. p. 818. 9 Convm lembrar que criminologia incumbe reunir um ncleo de conhecimentos verifi cados empiri-camente sobre o problema criminal. Cf. GARCA-PABLOS, Antonio. Criminologia (trad. Lus Flvio Gomes), 4. ed., So Paulo: RT, 2002. p. 165.

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    (j demasiadamente comprometido) da atividade investigativa desen-volvida pela polcia brasileira10. Como, essencialmente, a prpria valida-de das normas. Por ausncia ou insufi cincia de reafi rmao, as normas penais podem atrair uma imagem translata. Elas prprias parecem reque-rer o auxlio de penas mais duras, como se sua implacabilidade pudesse de alguma forma reestabilizar o subsistema11 penal, vindo a contribuir, paradoxalmente, para a construo de um direito penal simblico.

    Tambm de uma evidncia palmar que incurses episdicas e de carter eventual no terreno extenso e frtil de uma zona delitiva, que tende ao controle social, evidencia uma atuao discricionria sensivelmente contrria ao princpio da legalidade em que ainda se fundamenta o direito penal mo-derno. Assim, em um mundo em que a no-criminalizao a regra e a crimi-nalizao uma exceo (fragmentariedade), pode-se questionar, at mesmo, sua legitimidade para resolver confl itos e promover a paz social (como o fazem, e de modo incisivo, os defensores das teorias abolicionistas)12.

    3. O Ministrio Pblico como instituio motivadora da transparncia

    Comungamos da idia de que nenhuma sociedade seria capaz de desocultar toda a delinqncia. Entendemos tambm que a busca

    10 No de hoje que as polcias (especialmente as estaduais) encontram-se imersas em uma crise estrutural insupervel, uma vez que so refns de um modelo autoritrio e centralizador. Faltam aos seus agentes auto-nomia e independncia, s vezes at legitimidade para atuar. Veja-se: dezesseis anos aps a promulgao da Constituio da Repblica ainda h governadores que designam, para o desempenho da funo de delegado de polcia, pessoas absolutamente despreparadas, que sequer se submeteram ao crivo de concurso pblico (delegados comissionados). De outro lado, os baixos salrios pagos no condizem com a relevncia do cargo; antes servem de incentivo a incontveis desvio de conduta e prtica de atos de corrupo.11 O controle social penal um subsistema dentro do sistema global do controle social; difere deste ltimo por seus fi ns (preveno ou represso do delito), pelos meios dos quais se serve (penas ou medidas de segu-rana) e pelo grau de formalizao que exige. Cf. GARCA-PABLOS, Antonio. Op. cit., p. 135. 12 Massimo Pavarini divide o abolicionismo em: a) abolicionismo institucional, voltado para a supresso da priso e dos manicmios judicirios como consequncias jurdicas do crime; b) reducionismo penal, cuja proposta envolve uma enrgica limitao da esfera jurdico-repressiva; c) abolicionismo penal radical, que se orienta em direo a uma abolio do prprio direito penal e do sistema que o comporta. PAVARINI, Massimo. Los confi nes de la crcel. Trad Roberto Bergalli. Montevideo: Instituto Ibero-Americano de Es-tudos Criminais, 1995. p. 125-126. Apud OLIVEIRA, Ana Sofi a Schmidt. A vtima e o direito penal: uma abordagem do movimento vitimolgico e de seu impacto no direito penal. So Paulo: RT , 1999. p. 107.

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    por uma transparncia absoluta13, numa tentativa v de erradicao das cifras negras, alm de inviabilizar o sistema judicirio-penal, levaria a um Estado totalitrio, de interveno mxima, logo, contrrio ao prin-cpio da dignidade humana. Porm, no estimamos como desarrazoa-do buscar-se reduzir o contingente excessivo de criminalidade oculta desvendado pela investigao criminolgica. Nesse desiderato, tem-se mostrado de fundamental importncia o papel do Ministrio Pblico brasileiro o principal interlocutor do sistema punitivo do Estado.

    A investigao da criminalidade estruturada14 sem disputa corporativa com eventuais investigaes realizadas pela polcia, antes com real desejo de que ela tambm passe a atuar cada vez mais em harmonia com os anseios sociais no pode desenvolver-se de forma semelhante a um trao (linear). Especialmente porque as evidncias das condutas lesivas a interesses comunitrios15 valorados como essenciais ao funcionamento racional do sistema social (da revestirem-se de um maior ndice de censurabilidade) no afl oram no mesmo nvel. E assim pelo motivo de que se trata de uma modalidade crimingena que no germina nas ruas, na superfcie do tecido social, mas nas suas camadas mais ocultas, sedimentadas nas entranhas do Estado. Nasce da prova da prtica de crimes que a polcia foi condicionada a investigar (pequenos furtos, roubos, leses corporais etc.). Tais condutas se ajustam, com freqncia, ao conceito de obra tosca da criminalidade.

    A delineao pelo Ministrio Pblico (no raro auxiliado pela

    13 Popitz afi rma que uma sociedade que estivesse em condies de descobrir e de sancionar toda a deviance destruiria simultaneamente o valor das suas normas. (Apud, DIAS, Jorge de Figueiredo; AN-DRADE, Manuel da Costa. Op. cit., p. 368). Todavia, preciso lembrar que in medius est virtus. Assim, no se pode recusar a idia de que a reduo da aplicao da norma a uma diminuta e insignifi cante expresso quanti-tativa pode, outrance, aniquilar por inteiro a sua funo contramotivadora e transform-la numa luxuosa inutilidade.14 Esquematicamente, como marcos distintivos, e.g., das organizaes criminosas, podemos destacar as seguintes caractersticas: a) estrutura hierarquizada; b) ausncia de orientao ideolgica; c) nmero limi-tado de integrantes; d) estrutura adotada com fi nalidade de durao e permanncia; e) ganhos obtidos de atividades ilcitas; f) instrumentalizao da prtica da corrupo colimando a neutralizao do aparelho repressivo do Estado; g) diviso de trabalho (especializao); h) inteno de monopolizao da atividade ilcita desenvolvida; i) discrio (opacidade, sigilo). Desta e de outras especifi cidades d-nos conta LAM-PE, Klaus. Organized Crime: Begriff und Theorie organisierter Kriminalitt. In: DEN USA, (Frankfurter Kriminalwissenschaftliche Studien, v. 67), Frankfurt am Main: Peter Lang, 1999. p. 162.15 Parodiando Toms de Aquino: Bonum commune majus est et divinius quam bonum privatum.

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    polcia) de estratgias investigativas mais elaboradas, com a intencio-nalidade de conferir um maior grau de efi cincia preventivo-repressi-va relativamente a uma zona delitiva (criminalidade organizada) - cuja plasticidade e capacidade de cooptao desafi am o prprio Estado - no pode realizar-se impunemente: s os ingnuos podem surpreender-se com os inevitveis ataques dos contrariados16.

    De outra parte, alguns esquecem que o resultado das investi-gaes em que se no imputa qualquer acusao, logo no se atribui culpa - conduzidas pelo Parquet17, tanto pode resultar em um arquiva-mento, solicitado por seus prprios agentes (ao participar diretamente da produo da prova os rgos ministeriais de persecuo, no raro, muito melhor habilitados encontram-se para discernir relativamente existncia de justa causa para a ativao de uma futura ao penal), como ativar uma persecuo criminal judicializada, agora sob o plio dos princpios e das garantias que informam o Estado Democrtico de Direito18

    Em um estgio evolutivo da dogmtica ptria, no qual no paira a mnima dvida de que o inqurito conduzido pela polcia, no obstante a sua relevncia, procedimento informativo dispensvel19. Alm disso, constitui apenas uma das variegadas espcies do gnero investigao criminal20. Nesse caso, caberia ao Ministrio Pblico, no entender de alguns doutrinadores, permanecer imperturbavelmente contemplativo (ou seja, no lugar de exercitar uma poese, isto , agir, caber-lhe-ia entoar um mantra que conduza ataraxia, i.e., quedar-se

    16 No queremos nos referir boa doutrina j produzida sobre o tema, que advoga, racionalmente, entendi-mento diverso ao ora esposado.17 Parece-nos revelador de uma viso monocular das coisas pretender-se recusar legitimidade ativa investi-gativa (inconfundvel, bem de ver, com o exerccio da presidncia de inquritos policiais), exatamente ao titular constitucional da ao penal pblica.18 Sistema poltico criminal de fi nalidade racional aquele que se fundamenta nos princpios de um Estado Social de Direito (...). A poltica criminal no tem por objeto a luta contra a criminalidade a qualquer preo, seno a luta contra o delito no marco de um Estado de Direito. ROXIN, Claus. La evolucin de la poltica criminal: el derecho penal y el proceso penal. Valencia: Tirant Lo Blanch, 2000. p. 70.19 MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo penal. 8. ed., So Paulo: Atlas, 1988. p. 77.20 J faz algum tempo que a prtica processual penal brasileira confunde a investigao criminal com o in-qurito policial, quando, na verdade, este apenas um modo de ser daquela. (Cf. CHOUKE, Fauzi Hassan. Garantias constitucionais na investigao criminal. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 55).

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    indiferente e alheio realidade). Dito de outro modo, os representan-tes do Ministrio Pblico deveriam permanecer incomovveis ou indiferentes prtica do crime e defesa da sociedade contra a ma-crocriminalidade. Ou abster-se de realizar qualquer investigao mi-nimamente operacional, mesmo quando estejam em causa interesses difusos e coletivos (e.g., patrimnio pblico).

    Assinale-se que o Ministrio Pblico brasileiro21, sem ilu-sionismos nem messianismos, apesar de no encontrar-se inteira-mente livre da imaturidade tardia daqueles que se deixam atrair pelo enganoso desejo de provocar admirao e simpatia atravs do apelo da mass media, tem contribudo sensivelmente para a reduo das extensivas cifras negras que assolam, por exemplo, a administra-o pblica municipal.

    4. A interveno da prtica (law in action) no domnio da teoria

    Passemos do discurso aos fatos: do Rio Grande do Sul22 ao Amap, investigaes ministeriais autnomas (sem quebra dos prin-cpios do contraditrio e da ampla defesa, pois estes postulados no se irradiam sobre procedimentos de cunho meramente informativo), mas com observncia da clusula de reserva de jurisdio, lograram desvendar, pela vez primeira, elevadssimos ndices de corrupo ad-ministrativa. E assim ps-se a nu a (i)responsabilidade de centenas de prefeitos rotineiramente violadores do princpio da probidade admi-

    21 Sem qualquer caracterstica capaz de ensejar uma aproximao com as atividades desenvolvidas pelas polcias secretas de regimes ditatoriais, os rgos do Ministrio Pblico que se dedicam diuturnamente ao controle da criminalidade organizada, alm de respeitarem o princpio da dignidade humana (no existe um nico episdio indicativo da prtica de coao ou tortura na obteno de prova), contam com um notvel manancial de recursos humanos em boa proporo refratrios, em razo da autonomia, independncia e comprometimento social de seus membros s infl uncias externas ou s foras contrrias ao rumo das investigaes eventualmente em curso. Demais disso, o Ministrio Pblico no exerce atividade judicante, logo no aplica punies; apenas prope a sua aplicao, exercendo parcela da funo persecutria estatal. Portanto, no se pode falar (sofi smadamente) em um superpoder, quando esto presentes mecanismos slidos de reciprocidade de controle, de que espcie instrumental a prpria rejeio da denncia. 22 A ttulo de demonstrao estatstica, veja-se que, apenas no ano de 2003, o MP gacho ajuizou sessenta e quatro denncias contra prefeitos municipais.

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    nistrativa23. De igual modo, o combate evaso de divisas e sonega-o fi scal24, imprescindveis higidez fi nanceira do Estado, s se tornou sistemtico a partir do momento em que o Ministrio Pblico25 passou a exercitar plenamente e com total independncia (mas sem exclusivis-mos) a atribuio investigativa que lhe inerente.

    V-se, pois, sem muita difi culdade, que retirar do Ministrio Pblico a competncia para realizar investigaes criminais autno-mas26, sob o insustentvel argumento de que esta tarefa constitui mo-noplio das polcias judicirias (ou, o que ainda mais excntrico, me-diante o raciocnio de que todos podem investigar, menos o Ministrio Pblico), poder importar em um perigoso recuo do Estado. Esse en-fraquecimento muito contribuir para estabilizar e solidifi car estruturas criminosas que passaro progressivamente a representar um genuno fator de poder27, sem que tal movimento de regresso ao passado impor-te em introduo de qualquer novel garantia para os investigados. E, o que mais grave, resultar no apenas em um retrocesso, mas tambm (sem catastrofi smo) atrair um caos auto-esterelizador. O sentido que se quer expressar funda-se na persuaso de que o organismo social ver-se- privado da proveitosa atuao de uma instituio - a experincia em-prica tem revelado - essencial para a reduo dos nveis indesejveis de impunidade que assolam o sistema de judicirio brasileiro.

    Tambm servir de estmulo polinizao de condutas ma-crovitimizadoras (vitimizao difusa e indiscriminada) que, como se sabe, atingem com maior intensidade o cidado comum. Nesse

    23 Estes tambm tm-se revelado de uma obedincia atvica prtica do favoritismo neptico, em frontal violao dos princpios democrticos (no devemos perder de vista que democracia signifi ca perfeita igual-dade de oportunidades) e da moralidade administrativa. 24 Sobre as discusses doutrinrias relativas criminalidade econmica, cf. DEODATO, Felipe. Direito penal econmico. Curitiba: Juru, 2003. p. 39. 25 Praticamente todos os Ministrios Pblicos estaduais, assim como o Ministrio Pblico federal, possuem agncias especializadas (Grupos de Atuao Especial), voltadas preveno e represso de comportamen-tos macrodelitivos como lavagem de dinheiro, trfi co de substncias entorpecentes, roubo e receptao de cargas, sonegao fi scal etc .26 Sobre a matria, cf. SANTIN, Walter Foleto. O Ministrio Pblico na investigao criminal. So Paulo: Edipro, 2001. p. 110-121; CHOUKE, Fauzi Hassan. Garantias constitucionais na investigao criminal. Op. cit., p. 36/52.27 KRZINGER, Josef. Kriminologie: Eine Einfhrung in die Lehre vom Verbrechen. 2. Aufl age, Stutgart-Mnchen-Hannover-Berlin-Weimar-Dresden: Richard Boorberg, 1996. p. 310.

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    sentido, de fundamental relevo reconhecer-se a legitimidade social e constitucional do Ministrio Pblico brasileiro para desempenhar funes investigativas, com nfase no enfrentamento sistemtico da criminalidade geradora de macrodesigualdades28 (vitimizao estru-tural).

    Acrescenta-se, por oportuno, que uma atuao mais orien-tada proteo de bens (jurdicos) coletivos tem sido no s admi-tida como considerada de superior dimenso, mesmo pela doutrina que se destaca por defender um direito penal mnimo. Logo est decididamente norteada pelo princpio da ultima ratio, vindo a reco-nhecer a existncia de uma zona socialmente nociva que precisa ser atrada para as malhas do direito penal, porquanto, em muitos casos, socialmente bastante mais danosas que a deviance crimina-lizada e perseguida29. Nessa seara, afi rmam Giorgio Marinucci e Emilio Dolcini30:

    O direito penal moderno deve corrigir-se com respeito sua natural tendncia hipertrofi a, mas deve ao mesmo tempo realizar uma tutela equilibrada de todos os bens fundamentais, individuais e coletivos; e a doutrina pena-lista, precisamente no momento em que a justia penal comea a dedicar sua ateno tambm s fi guras impo-nentes da economia e da poltica, no pode patrocinar, nem sequer involuntariamente, um retorno ao passado, algo que outra coisa no poderia signifi car do que uma restaurao do esteretipo do delinqente proveniente das classes perigosas.

    28 Detecta-se sutil contradio no discurso acrisolado daqueles que, com alguma freqncia, advogam que a preveno primria a ideal (e de fato o ). Mas, de outro lado, revelam, simultaneamente, uma hiperestesia em relao ao enfrentamento fi rme e inabalvel da criminalidade estrutural causa primordial do desvio e da dilapidao de recursos pblicos e tambm privados. Tais medidas, no h como objetar, no contribuem para a reduo das causas sociais da criminalidade endmica que nos engolfa. 29 BARATTA, Alessandro. Criminolga crtica y crtica del derecho penal: introduccin a la sociologa jurdico-penal. Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argentina, 2002. p. 209. 30 MARINUCCI, Giorgio; DOLCINI Emilio. Diritto penale minimo e nuove forme di criminalit. Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale. Milano: Giuffr, Luglio/Settembre, 1999. p. 802-820, p. 819.

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    5. Consideraes fi nais

    Entendemos que o enfrentamento do problema criminal no pode fugir da realidade social. Por outro lado no deve divorciar-se de nosso tempo histrico, nem desperspectivar um sentido de racionalida-de prtica31. Uma interpretao jurisprudencial contrria interveno proativa do Ministrio Pblico no campo investigativo ainda que ni-tidamente no seja a melhor - poder vingar em razo do nosso modo de ser e das caractersticas de nossa cultura: movedia, centrada na per-sonalidade individual, assaz suscetvel dupla moral dos governantes, permevel s interferncias metajurdicas do poder que, paradoxalmen-te, conseguem com relativa facilidade penetrar a blindagem do pen-samento positivista32 mais esterilizante33. O mal consiste exatamente no curto alcance de suas solues e no fato de desprezar a tenso entre a norma e a realidade34, para dele valer-se e obstar as transfor-maes necessrias ao progresso e bem-estar do conjunto da sociedade.

    31 O mundo da juridicidade (...) sustentado e fabricado pela razo prtica. COSTA, Jos de Faria. A linha: algumas refl exes sobre a responsabilidade em um tempo de tcnica e de bioetica. O homem e o tempo: Lber Amicorum para Miguel Baptista Pereira Porto: Fundao Eng. Antonio de Almeida, 1999. p.

    397-411. 32 Puramente normativo e incapaz de interagir com a realidade atual: polimorfa, fl uida e cambiante, em que o crime apresenta-se como fenmeno em constante mutao. Sem embargo, preciso sublinhar que argumentar-se no sentido de que a inexistncia de marcos temporais (decorrente da ausncia de lei regu-lamentadora) para a concluso das investigaes a cargo do Parquet inviabilizaria tal funo - no se sustenta. No prospera porque no se pode realizar interpretao que coarte a vontade da constituio; no procede, tambm, porque a prpria ordem normativa positivada no estabeleceu qualquer prazo fatal e inultrapassvel para a concluso do inqurito policial. Tanto assim que so rarssimas as ocasies em que a investigao concluda em 10 ou 30 dias. A bem de ver, o art. 16 do CPP, de modo induvidoso, permite concluir que no h um prazo certo ou inultrapassvel. De qualquer modo, vale registrar que, recentemente, o Conselho Superior do Ministrio Pblico Federal, atravs da Resoluo n 77, de 14 de setembro de 2004, ao regulamentar o art. 8 da Lei Complementar n 75/93, estabelecem diversos procedimentos a serem observados pelos procuradores da Repblica frente de uma investigao criminal, com destaque para os seguintes aspectos: a preservao do princpio da impessoalidade (art. 4. da Resoluo); prazo de 30 dias para encerramento passvel de prorrogao (fundamentada) em razo da imprescindibilidade da realizao ou concluso de diligncias (art. 12); adoo da publicidade no procedimento investigativo como regra (art. 13). 33 Tem como caracterstica uma forte aptido para engessar a realidade e domesticar a dvida, ignorando o senso heraclitiano de fl uxo e mudana.34 FARIA, Jos Eduardo. Poder e legitimidade. Op. cit., p. 42; DINAMARCO, Cndido. A instrumentalida-de do processo. 8. ed. So Paulo: Malheiros, 2000. p.153.

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    Tudo isso trar, ao contrrio do que se tem afi rmado, srias e danosas conseqncias.

    A prevalecer uma orientao jurisprudencial (STF) que invia-bilize o exerccio do poder investigador pelo Ministrio Pblico, divi-samos nocivos efeitos no apenas no plano criminolgico (disfuncional dilatao das cifras negras), como tambm no campo da dogmtica processual (problema da ilicitude da prova) e ainda da poltica criminal (especialmente no tocante ao enfrentamento da criminalidade estrutu-rada). O que h a necessidade de encontrar estratgias35 capazes de servir de elo entre as descobertas criminolgicas e a dogmtica, isto , de compatibilizar a realidade emprica denunciadora do grave pro-blema das cifras negras de que vimos falando, com futuras decises judiciais infl uenciadas por um acidental precedente jurisprudencial36, no vinculante, mas com aptido, como da natureza das coisas, de suplantar as mais consistentes lies doutrinrias.

    35 No se objete que teremos uma reformulao do nosso modelo de atuao e investigao policial - h s-culos falido - quando o Executivo for compelido a destinar macios investimentos com o escopo de realizar uma profunda reestruturao das polcias, algo ainda indito em nossa experincia jurdica como nao, de-certo esbarraria nos limites impostos pela construo terica da reserva do possvel (Cf. Informativo STF n. 345). Entretanto, entendemos que uma diretriz voltada para a realizao de uma poltica de segurana pblica sria, efi caz e responsvel acomode-se confortavelmente no conceito de mnimo existencial. 36 No de hoje que se reconhece o papel normofi ltico (de uniformizao da interpretao da legislao) desempenhado pelo STF, funo que se orienta no sentido de abrandar fl utuaes interpretativas (juris-prudncia errtica).

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    Guilherme Costa Cmara

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    1. Introduo

    Uma das caractersticas bsicas do pensamento racionalis-ta sua densidade. Ela no permite que se encontre lacuna alguma em sua textura, de modo que, para as possveis questes, j so ventiladas respostas. Todavia, h mentalidades simplistas que tm acesso s obras filosficas dos racionalistas. Porm, no seguem os conselhos dos filsofos, dentre eles Descartes, acerca da ne-cessidade de estudar seriamente seus escritos antes de aventurar uma opinio a respeito deles. E assim, terminam por se apressar em atribuir-lhes algo que, freqentemente, eles efetivamente no proferiram.

    Neste artigo, procuraremos explicitar a concepo de li-berdade em Descartes contida na obra a Quarta Meditao (1641). Todavia, como o pensamento denso do racionalista Descartes no permite que se analise um aspecto desvinculado de seus princpios fundantes, faz-se necessrio examinar a terceira parte de Discurso do Mtodo (1637). Nessa obra, ele trata da moral provisria que adotara, da carta endereada Princesa Isabel, da Bomia, onde ele trata das verdadeiras e das aparentes virtudes, e da carta dirigi-da ao tradutor francs do livro Princpios de Filosofia (1644).

    Descartes, dentre outras coisas, exige que seus leitores procurem ver que tudo que escrevera era para mostrar que a boa conduta deve vir sempre assentada nos primeiros princpios. Eles esto nas Regras para Direo do Esprito (1625-1628), especial-mente na Regra III, onde Descartes distingue a intuio da razo como duas vias de acesso aos primeiros princpios. Tal distino relevante para tratar da natureza da anlise no mbito do mtodo

    A LIBERDADE EM DESCARTES

    Antnio Jorge SoaresProfessor da Universidade Federal do Semi-rido-UFERSA

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    geomtrico grego por ele cultivado.

    2. Objeto maior da fi losofi a em Descartes

    Pouca gente conhece a obra de Descartes. Porm, muita gente se sente encorajada a falar depreciativamente dela, notadamente no que concerne sua concepo de universo, aps o advento do princpio da in-determinao de Heisenberg, vulgarmente conhecido como princpio da incerteza. Muitas dessas crticas so injustas, por provirem de pessoas que conhecem os escritos do fi lsofo apenas por ouvi dizer. Colocam na boca de Descartes palavras e interpretaes que ele efetivamente no proferiu, no obstante j houvesse alertado: Advertirei (...) de que at os espritos mais excelentes tero necessidade de muito tempo e de ateno de compreenderem todas as coisas que tive a inteno de abordar1. Mais adiante, dirigindo-se aos seus eventuais leitores, afi rma:

    Nunca me atribuam qualquer opinio que no encontrem expressamente em meus escritos, e que no aceitem ne-nhuma como verdadeira, quer nos meus escritos quer em outro lugar, se no verifi carem que claramente deduzi-das dos meus princpios2 .

    Menos gente ainda sabe que Descartes foi um daqueles espritos geniais que dominou o saber do seu tempo, a ponto de apresentar contri-buies originais. Com efeito, desde Aristteles, algum no era capaz ou no ousava ser capaz de construir e de propor um novo sistema de uni-verso; desde Euclides que algum no criava uma rea nova de pesquisa no campo das matemticas; desde Galeno que no se ousava descrever a fi siologia humana, especialmente a do corao, da circulao sangnea e da neurofi siologia; desde Aristteles que um novo sistema fi losfi co no era proposto; desde os esticos que um esforo para construir um

    1 DESCARTES, Ren. Carta ao tradutor francs. In: Princpio de Filosofi a. Lisboa: Edies 70, 1997. p. 21.2 Ibidem, p. 24.

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    novo sistema de lgica no era tentado; desde h muito que uma psico-logia, expressa num tratado sobre as paixes da alma, no era escrita. Descartes ousou apresentar e discutir os fundamentos de tudo isto.

    Mas o que pouqussima gente sabe que aquilo que Descartes se esforou por mostrar ou por fundamentar estava diretamente direcio-nado construo de um sistema moral, de posse do qual toda gente pu-desse ser capaz de justifi car seus atos e suas crenas perante os outros. Na carta endereada ao tradutor de Princpios de Filosofi a, aps elogiar a fi delidade da traduo do latim para o francs, Descartes procura ex-plicar o sentido da palavra fi losofi a, tomando-a como legtimo sin-nimo de sabedoria. Segundo ele, por sabedoria no se deve entender apenas a prudncia nos negcios, mas um conhecimento perfeito de todas as coisas que o homem pode saber, tanto para a conduta da sua vida como para a conservao da sade e inveno de todas as artes.3.

    Descartes, nesta passagem, primeiramente retrata aquilo que o homem comum de bom senso concebe como sendo o bem mais elevado advindo da sabedoria: prudncia nos negcios. Mas imediatamente o contrape ao que vem assentado num conhecimento perfeito, para a conduta da sua vida. Todavia, para que esse conhecimento perfei-to seja obtido, necessrio deduzi-lo das causas primeiras, de modo que, para obt-lo - e a isso se chama fi losofar h que comear pela investigao dessas primeiras causas, ou seja, dos princpios. Mas que princpios so estes e como deles pode ser deduzida a doutrina orien-tadora da boa conduta? Em resposta primeira parte desta indagao, Descartes explica:

    A Filosofi a como uma rvore, cujas razes so a Meta-fsica, o tronco a Fsica, e os ramos que saem do tronco so todas as outras cincias que se reduzem a trs prin-cipais: a Medicina, a Mecnica e a Moral, entendendo por Moral a mais elevada e mais perfeita, porque pres-supe um conhecimento integral das outras cincias e o ltimo grau da sabedoria4.

    3 Ibidem, p. 15.4 Ibidem, p. 22.

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    Neste texto, Descartes esclarece que as causas primeiras so ob-jetos de estudo da Metafsica, uma vez que ela a raiz da rvore do conhe-cimento. Desse modo, uma incurso Metafsica torna-se imprescindvel para a compreenso dos fundamentos da Moral. Alm disto, j no fi nal do texto, Descartes enfatiza que a Moral o fruto mximo que da sabedoria pode brotar. Diz-nos, porm, algo mais: a Moral o mais perfeito fruto, porquanto alicerada no contedo de todas as demais cincias. E esclarece: Como no das razes nem do tronco das rvores que se colhem os frutos, mas apenas das extremidades dos ramos, a principal utilidade da fi losofi a depende daquelas suas partes que so apreendidas em ltimo lugar.

    3. Necessidade temporria de uma moral provisria

    O fi lsofo sabe que a possibilidade de estar de posse do integral conhecimento das demais cincias uma grande utopia humana. Assim, enquanto esta utopia, um dia, no se tornar realidade, convm que se ado-te uma moral provisria. A esse respeito, Descartes confessa:

    A fi m de no ser irresoluto em minhas aes, enquanto a razo me obrigasse a s-lo em meus juzos, e de no de viver desde ento o mais felizmente possvel, formei para mim mesmo uma moral provisria (...) que eu quero vos participar (...). A primeira era obedecer s leis e aos costumes de meu pas (...) e governando-me (...) segundo as opinies mais moderadas e as mais distanciadas do excesso, que fossem comumente acolhidas, em prtica, pelos mais sensatos daqueles com os quais teria de vi-ver (...). Minha segunda mxima consistia em ser o mais fi rme e o mais resoluto possvel em minhas aes (...). Minha terceira mxima era a de procurar sempre antes vencer a mim prprio do que fortuna, e de antes mo-difi car os meus desejos do que a ordem do mundo (...). Enfi m, para concluso dessa moral, deliberei passar em revista as diversas ocupaes que os homens exercem nesta vida, para procurar escolher a melhor5.

    5 DESCARTES, Ren. Discurso do mtodo. In : Obras escolhidas. 2. ed. So Paulo: Difel, 1973. p. 59-62.

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    Entretanto, como a boa conduta est alicera-da na moral provisria, convm, na vida com e entre os homens, distinguir a natureza da vir-tude, uma vez que ela ser a meta que se deve almejar. Assim que, na carta dirigida Prin-cesa Isabel, fi lha de Frederico, Rei da Bomia, Descartes chama a ateno para o fato de que se deve ter cuidado a respeito das virtudes. Adver-te que umas advm do conhecimento - so as verdadeiras virtudes - e outras procedem de um erro ou de um pseudoconhecimento - so as vir-tudes aparentes. Estas, no sendo to freqen-tes como as outras que lhes so contrrias, cos-tumam ser mais estimadas. Assim, como h mais pessoas que receiam demasiado os perigos do que as que receiam pouco, freqente consi-derar-se que a temeridade uma virtude6.

    Enquanto essas virtudes que apresentam algum tipo de imper-feio recebem nomes diversos e diferem entre si, as verdadeiras virtu-des no diferem entre si nem recebem nomes diversos, mas um nico nome: sabedoria. Assim, s verdadeiramente sbio aquele que tem a vontade fi rme e confi ante de usar sempre a razo o melhor possvel e pratica, nas suas aes, o que julga ser o melhor, tanto quanto a natureza o permite. isto que o torna justo, corajoso e moderado7.

    Observemos que a vontade e a razo desempenham papel re-levante. De fato, as duas so exigidas sabedoria. Porm, enquanto a vontade , em grau, algo comum aos homens, a razo ou entendimento apresenta-se melhor em uns do que em outros. Esta condio da vonta-de em relao razo ou ao entendimento extremamente importante para a compreenso da concepo de liberdade em Descartes.

    Com efeito, na obra Meditaes, Descartes nos mostra quais so os princpios primeiros e de como chegou a eles. Na Primeira Me-6 DESCARTES, Ren. Carta ao tradutor francs. In: Princpios da Filosofi a. Lisboa: Edies 70, 1997. p. 11-12.7 Ibidem, p. 12.

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    ditao, consegue pr em dvida os trs princpios sobre os quais havia sido educado e sobre os quais forjara sua concepo de mundo e de homem8. Na Segunda Meditao, diz que existe como ser pensante, que tal ser tem sua existncia co-extensiva ao pensamento e que o esprito mais fcil de conhecer do que o corpo9. J na Terceira Meditao, so apresentadas duas provas de que Deus existe, como contedo da idia de perfeio e como conservador do ser pensante no tempo. E extrai, da, uma outra concluso: no pode haver em Deus qualquer sinal de imperfeio.

    Freqentemente, por preconceito, a fi losofi a de Descartes olhada com desdm por conter um princpio metafsico sobre Deus. De fato, , no mnimo, estranho que o pai do racionalismo aceite algo que , por natureza, objeto de culto e de f. Todavia, um olhar um pouco mais atento pode dissipar tal preconceito. Alis, para quem pretende extrair a concepo de liberdade no fi lsofo, torna-se imprescindvel demonstrar que, de fato, ela provm, dedutivamente, dos primeiros princpios, tal como Descartes exigira acima. Eis porque abriremos um espao para dedicar algumas palavras a isto.

    4. O papel do mtodo grego de resoluo

    Os antigos gemetras gregos partilhavam de um mtodo se-creto de encontrar resolues aos problemas que lhes eram propostos. Pappus de Alexandria, um antigo historiador das matemticas, lega-nos a obra Tesouro da Anlise, a mais completa descrio desse mtodo. Descartes, como profundo estudioso das matemticas, veio a conhec-lo e, tal como Plato10, aplicou-o na fundamentao de sua doutrina. Sobre esse mtodo afi rma Richard Robinson11:8 So eles: 1) nihil est in intellectu quod non fuerit prius in sensu (nada h no intelecto que no tenha estado antes nos sentidos). 2) Os resultados das matemticas so seguros e indubitveis. 3) H um Deus suma-mente bom que tudo pode.9 Esta ltima concluso ou verdade de Descartes aprofunda a dvida a respeito do primeiro princpio acima anunciado. Coloca a verdade no plano da introspeco do esprito, retirando-a das propriedades dos objetos como proferira Aristteles e toda a Escolstica. 10 Cf. SOARES, Jorge Antnio. Educao e poltica: uma releitura de Plato. So Paulo: Cortez Editora.11 ROBINSON, Richard. A anlise na geometria grega. In: Caderno de Histria e Filosofi a da Cincia. Campinas: UNICAMP, 1983. p. 7.

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    A anlise, ento, toma aquilo que procurado como se fosse admitido e disso, atravs de sucessivas conseqn-cias ( s ), passa para algo que admitido como resultado de sntese: pois, na anlise, as-sumimos aquilo que se procura como se (j) tivesse sido feito (s), e investigamos de que que isto resulta, e novamente qual a causa antecedente deste ltimo, e as-sim por diante at que, seguindo nossos passos na ordem inversa, alcancemos algo j conhecido ou pertencente classe dos primeiros princpios; e a tal mtodo chamamos de anlise, como soluo de trs para diante ( ). Mas na sntese, revertendo o processo tomamos como j feito o que se alcanou por ltimo na anlise, e, colocando na sua ordem natural de conseqncias o que eram antecedentes e conectando-os sucessivamente uns aos outros, chegamos fi nalmente construo do que era procurado; e a isso chamamos sntese.

    Uma longa discusso foi travada a respeito da natureza da an-lise, se ela seria dedutiva ou no, uma vez que a natureza da sntese j estava assentada como dedutiva. A concluso a qual se chega de que anlise no dedutiva, pois ela repousa em uma heurstica, em um processo de descoberta de passos seguidos na ordem inversa da snte-se. Est, por isso, mais prxima de uma intuio criadora. O prprio Descartes refere-se a ela na Regra III: preciso procurar (...) aquilo que podemos ver por intuio, com clareza e evidncia, ou aquilo que podemos deduzir com certeza: nem de outro modo, com efeito, que se adquire a cincia12.

    Ora, como o procedimento metodolgico da anlise no dedutvel e segue um processo de descoberta, suas verdades tm validades condicionadas a um princpio maior. Aristteles13, referindo-se dialtica, a qual, para ele, no deriva dos prin-cpios primeiros, d-nos uma pista valiosa. Os princpios da

    12 DESCARTES, Ren. Regras para a direo do esprito. In: Obras escolhidas. Lisboa: Editora Estam-pa,1987. p. 18.13 ARISTOTELES. Tpicos. So Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 20.

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    dialtica so aqueles que todo mundo admite, ou a maioria das pessoas, ou os filsofos. Em outras palavras: todos, a maioria ou os mais notveis e eminentes. Poderia, porm, ter Descartes tomado como princpio primeiro no um princpio primeiro, mas um princpio comumente aceito, como fora o caso de Deus em seu tempo? A questo delicada e convm que a examinemos com cuidado.

    Deus , de fato, um princpio aceito por todos ou pela maio-ria dos intelectuais do tempo de Descartes. O prprio fi lsofo era um convicto praticante catlico, educado num colgio jesuta em La Flche. Contudo, as duas provas de que Deus , apresentadas por Descartes na Terceira Meditao, so inteiramente racionais e provm das verdades anteriores, obtidas na Segunda Meditao pelo ser pensante.

    Com efeito, ao examinar a relao entre o contedo de uma idia e o ideado, objeto metafsico de onde proveria a idia, e ao admitir que o objeto metafsico teria, potencialmente, mais realidade objetiva do que os atributos que o ser pensante concebe como inerente ao con-tedo da idia, a idia de perfeio, na qual residia a suma bondade, a onipotncia, a oniscincia, a onipresena, a eternidade e a infi nitude, no poderia ser, jamais, mais perfeita, como seria natural em Plato, mas no em Descartes, do que o ideado. Logo, este ideado perfeito e existe. Portanto, Deus.

    Na segunda prova, o fi losofo afi rma que o tempo concebido como um eixo orientado e apontado para o futuro, constitudo de in-fi nitos e minsculos pedaos interligados, mas independentes. Desse modo, se algum existe num tempo qualquer, nada garante que ele con-tinuar existindo no tempo seguinte, salvo se algo o criar a cada instan-te. Ora, como criar a cada instante conservar no tempo e para realizar isto deve-se ter tanto poder quanto tirar do nada, dar existncia, s um deus poderia realizar tal tarefa. Logo, Deus existe, porquanto conserva o ser pensante no tempo.

    Eis, porque Deus tomado como o princpio primeiro dos

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    princpios primeiros em Descartes, algo que, nas palavras de Porfrio14, exerce o papel de gnero supremssimo: Defi nimos gnero supremo do seguinte modo: o que, sendo gnero, no espcie, e ainda, o que, acima do qual no pode haver outro gnero superior. Feito este escla-recimento, voltemos ao mtodo.

    As trs primeiras verdades so de carter subjetivo e tm suas respectivas existncias condicionadas ao tempo que o ser pensante per-manece pensando. por isso que elas devem ser entendidas como verda-des colocadas na ordem da descoberta e no na ordem da razo. As duas provas de que Deus , notadamente a primeira, inauguram a ordem da razo ou da justifi cao. Marcam o fi m da anlise e o incio da sntese, de onde a cadeia dedutiva partir, na ordem inversa da anlise, para construir os passos da sntese, da prova propriamente dita. Eis porque, ao tratar da origem dos erros humanos na Quarta Meditao, momento em que ser formulada a concepo de liberdade, Descartes o faz a par-tir dos primeiros princpios.

    5. Liberdade

    No fi nal da Primeira Meditao, buscando colocar em d-vida um dos princpios sobre os quais erigira suas antigas opinies, Descartes argumenta: h muito que eu tenho no meu esprito certa opinio de que h um Deus que tudo pode. Mas, se Deus tudo pode, pode enganar ao homem. Todavia, Deus a suma bondade, de modo que seria uma mcula em sua bondade enganar a algum. Entretanto, uma vez que todos os homens j experimentaram, pelo menos uma vez, o sabor amargo do erro, quem poder garantir que Deus no os engane sempre?15.

    Todavia, j na Quarta Meditao e de posse das provas de que Deus ser perfeito, nenhum sinal de imperfeio poder conter sua 14 PORFIRIO. Isagoge. Lisboa: Guimares Editores, 1994. p. 63.15 Um fato corrente no tempo de Descartes e, qui, tenha-o levado a formular a dvida a respeito da possi-bilidade de Deus levar o homem a incorrer no erro, diz respeito humanidade ter acreditado, induzida pela passagem bblica, em que Josu ordenara ao Sol parar. Com isso, durante mais de dois mil anos, admitia-se que o Sol girava em torno da Terra, at o advento de Coprnico.

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    natureza, de modo que o erro no poderia estar em Deus. Ademais, sendo a Suma Bondade, Deus no quis que o homem, cujas existncia e presena foram ddivas e, por isso delas no pode reclamar, no fosse provido de uma natureza susceptvel de compreender o erro e, tambm, de evit-lo. Mas, ento, de que forma o homem incorre no erro? Des-cartes volta exigncia acima citada a respeito da sabedoria: a distino entre a vontade e a razo ou entendimento:

    Sendo a vontade muito mais ampla e extensa que o en-tendimento, eu no a contenho nos mesmos limites, mas estendo-a tambm s coisas que no entendo; das quais, sendo a vontade por se indiferente, ela se perde muito facilmente e escolhe o mal pelo bem ou o falso pelo ver-dadeiro. O que faz com que eu me engane e peque16.

    A vontade de estabelecer uma extenso mais ampla excita o juzo ou o julgamento para alm daquilo que o entendimento garante, ao assegurar como verdadeiro somente aquilo que proveniente dos primeiros princpios, corrompendo, desta maneira, o entendimento. Assim, os juzos descuidados que seguem os ditames da vontade cor-rem srios riscos de erro. Isto implica que a liberdade de julgar e de executar aes, dentro dos parmetros da boa conduta, da conduta alicerada nos primeiros princpios, fi ca restrita aos limites da razo ou do entendimento.

    Entretanto, embora no cresa infi nitamente a ponto de atingir a sabedoria de Deus, o entendimento humano, seguindo estudos e experin-cias diligentes, gradativamente pode ir sendo ampliado. Mas, ao ser grada-tivamente ampliado, amplia tambm o campo de garantia do entendimento. Dessa forma, potencialmente, juzos que no recebiam tal garantia, agora, passam a ser assegurados, alongando, assim, o campo da liberdade.

    Isso signifi ca que os estudos e