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Robert Alexy e a vulgata da ponderação de princípios Por André Karam Trindade No início de novembro, Robert Alexy esteve em Porto Alegre, onde recebeu o título de doutor honoris causa na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Durante sua visita, o renomado professor da Cátedra de Direito Público e Filosofia do Direito da Universidade Christian-Albrechts de Kiel, na Alemanha, também proferiu a conferência internacional “Direitos Fundamentais, Proporcionalidade e Argumentação”, realizada em sessão dupla na sede do auditório do Ministério Público do Rio Grande do Sul. Como se sabe, Alexy é considerado um dos principais pensadores do Direito da contemporaneidade. Suas obras — especialmente Teoria da argumentação jurídica e Teoria dos direitos fundamentais — foram traduzidas para diversas línguas e influenciaram de maneira decisiva a produção jurídica brasileira nas últimas décadas, o que se pode verificar tanto pela publicação de centenas de livros e artigos científicos, seja mediante a recorrente citação de suas ideias nas decisões judiciais. Em sua conferência, o ilustre jurista alemão apresentou sua proposta teórica para aplicação dos direitos fundamentais mediante a máxima, ou princípio (sic), da proporcionalidade. Sua fala foi importante, sobretudo, para esclarecer a imbricação entre os direitos fundamentais, a proporcionalidade e a argumentação jurídica. O tom foi enfatizar a importância da racionalidade dos juízos de ponderação entre os princípios jurídicos. Isto porque, para Alexy, nos casos em que o direito positivo não fornece a resposta para os problemas concretos, surge a exigência de uma decisão judicial que considere os princípios jurídicos envolvidos. Neste contexto, Alexy desenvolve um sistema para combater o argumento da irracionalidade das decisões: a argumentação jurídica seria, portanto, a forma de demonstrar a correção da decisão que pondera princípios jurídicos. Para tanto, o grau de racionalidade adviria da estrutura lógica decorrente de juízos quanto à correlação entre intervenção e satisfação dos princípios jurídicos envolvidos (tecnicamente, conhecida como a “lei de sopesamento”), bem como da certeza sobre as questões fáticas. Assim, além do juízo sobre a 1

Robert Alexy e a Vulgata Da Ponderação de Princípios

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a Vulgata Da Ponderação de Princípios

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Robert Alexy e a vulgata da ponderao de princpiosPorAndr Karam TrindadeNo incio de novembro, Robert Alexy esteve em Porto Alegre, onde recebeu o ttulo dedoutor honoris causana Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Durante sua visita, o renomado professor da Ctedra de Direito Pblico e Filosofia do Direito da Universidade Christian-Albrechts de Kiel, na Alemanha, tambm proferiu a conferncia internacional Direitos Fundamentais, Proporcionalidade e Argumentao, realizada em sesso dupla na sede do auditrio do Ministrio Pblico do Rio Grande do Sul.Como se sabe, Alexy considerado um dos principais pensadores do Direito da contemporaneidade. Suas obras especialmenteTeoria da argumentao jurdicaeTeoria dos direitos fundamentais foram traduzidas para diversas lnguas e influenciaram de maneira decisiva a produo jurdica brasileira nas ltimas dcadas, o que se pode verificar tanto pela publicao de centenas de livros e artigos cientficos, seja mediante a recorrente citao de suas ideias nas decises judiciais.Em sua conferncia, o ilustre jurista alemo apresentou sua proposta terica para aplicao dos direitos fundamentais mediante a mxima, ou princpio (sic), da proporcionalidade. Sua fala foi importante, sobretudo, para esclarecer a imbricao entre os direitos fundamentais, a proporcionalidade e a argumentao jurdica.O tom foi enfatizar a importncia da racionalidade dos juzos de ponderao entre os princpios jurdicos. Isto porque, para Alexy, nos casos em que o direito positivo no fornece a resposta para os problemas concretos, surge a exigncia de uma deciso judicial que considere os princpios jurdicos envolvidos. Neste contexto, Alexy desenvolve um sistema para combater o argumento da irracionalidade das decises: a argumentao jurdica seria, portanto, a forma de demonstrar a correo da deciso que pondera princpios jurdicos.Para tanto, o grau de racionalidade adviria da estrutura lgica decorrente de juzos quanto correlao entreintervenoesatisfaodos princpios jurdicos envolvidos (tecnicamente, conhecida como a lei de sopesamento), bem como da certeza sobre as questes fticas. Assim, alm do juzo sobre a intensidade de interveno/satisfao dos princpios jurdicos, Alexy tambm refere que a intensidade da confiana sobre as premissas fticas permitiriam expressar a famosa frmula de peso:Wij=Ii- Wi- SiIj- Wj- SjI = interferncia ou satisfaoW = peso abstrato do princpioS = confiana na premissa fticaConsiderando os elementos lgicos explicitados na frmula, a deciso pode ser considerada aceitvel se racionalmente fundamentada mediante a utilizao de argumentos que suportem a atribuio de valores aos elementos da interveno/satisfao e certeza quanto s premissas fticas.Nessa atribuio de juzos de ponderao ao texto constitucional que o direito expressaria a sua conexo necessria com a moral, aproximando a dimenso real do direito (direito posto ou a deciso judicial) sua dimenso ideal (pretenso de correo). Tal aproximao, entretanto, sustentar-se-ia to-somente mediante a demonstrabilidade argumentativa da pretenso de correo.A parte mais interessante da conferncia, a meu ver, foi quando, ao final, abriu-se espao para perguntas. Ento, um estudante questionou se Alexy tinha conhecimento acerca da aplicao que os tribunais brasileiros, especialmente o Supremo Tribunal Federal, fazem da aplicao da proporcionalidade.Alexy agradeceu a pergunta, respondendo que, atualmente, inmeros tribunais constitucionais aplicam a proporcionalidade. Em relao ao Brasil, disse que j teve a oportunidade de conversar com o presidente do Supremo Tribunal e que sabe da existncia de acrdos que aplicam sua teoria. Deixou claro, todavia, que desconhece o teor das decises. E este me parece o ponto mais relevante.Alis, sobre essa questo no se pode deixar de referir os resultados da pesquisa de Fausto Santos de Morais, em cuja tese de doutorado intitulada Hermenutica e Pretenso de Correo: uma reviso crtica da aplicao do princpio da proporcionalidade pelo Supremo Tribunal Federal foram examinadas as 189 decises do STF, ao longo de uma dcada, que fazem meno proporcionalidade. Entre outras concluses, o autor constata o seguinte fato: mesmo havendo referncia expressa proporcionalidade pelos ministros do STF, sua aplicao no guarda qualquer relao com o sistema Alexy, sendo apenas uma vulgata da proposta do jurista alemo. Em outras palavras, tudo indica que o STF aplica uma proporcionalidadesui generis, visto que empregada sem a mesma preocupao com a racionalidade argumentativa to estimada por Alexy. Como se isto no bastasse, o modo como o STF aplica a proporcionalidade resulta, ao fim e ao cabo, na institucionalizao de uma violncia simblica retrica que se utiliza do argumento de autoridade do princpio da proporcionalidade. A tese tambm aponta outro problema: a aplicao da teoria alexyana emterrae brasilisrefora a discricionariedade judicial maquiada pelo princpio da proporcionalidade, o que somente poderia ser combatido atravs de uma teoria da deciso, tal qual propem, por exemplo, Lenio Streck e Rafael Tomaz de Oliveira.Assim, se Alexy preocupa-se tanto em demonstrar a racionalidade das decises judicias que usam a ponderao pela extensa argumentao dos nveis de intensidade de questes jurdicas (interveno/satisfao dos direitos fundamentais) e cognitivas, tudo indica que o mesmo no verifica no STF e, certamente, nos demais tribunais, como se pode observar na jurisprudncia brasileira. Isto fica evidente pelas reiteradas decises cujas fundamentaes apenas indicam a incidncia do princpio da proporcionalidade, aplicado somente como recurso retrico.Para ilustrar este problema, aproveito alguns casos concretos trabalhos na referida tese. Em algumas decises, o princpio da proporcionalidade foi invocado por mais de um ministro, levando, contudo, a posies absolutamente antagnicas. Isso pode ser visto, por exemplo, no julgamento do conhecidocaso Ellwanger(HC 82.424/RS) criticado duramente por Marcelo Cattoni , ou, ainda, na deciso relativa (i)legalidade na quebra do sigilo bancrio (AC 33 MC/PR). Alis, por falar em quebra de sigilo bancrio, difcil engolir o argumento sustentado no HC 90.298/RS, em que se invocou a proporcionalidade para quebrar o sigilo bancrio sempre que a utilizao da prova ilcita servir para realizaroutro valor fundamental mais revelante(sic).Mas qual o valor fundamental relevante o bastante? Quem define esse valor? Trata-se de um juzo discricionrio? O juiz pode escolher o valor que mais lhe aprouver? Me parece pouco democrtico, no?Em outras oportunidades, no a divergncia no posicionamento dos ministros que chama ateno, mas o prprio descumprimento da lei (nesse sentido, verSenso Incomum) e o (ab-)uso destandardsjurdicos consolidados. Esse problema foi detectado no julgamento do RHC 88.371/SP, em que o deferimento de interceptao telefnica ocorreu margem da Lei 9.296/96. Nesse caso, a ponderao permitiu que a interceptao fosse considerada legal, via proporcionalidade, eis que estava presente a necessidade de valorar questes como segurana, proteo vida e patrimnio.Muitos outros casos poderiam ser trazidos. Em nenhum deles, houve a aplicao da talfrmula do peso. Vamos aguardar pela publicao da tese. De todo modo, no difcil observar que o principal problema decorrente do diagnstico do uso da proporcionalidade implicaria num reforo discricionariedade judicial. Se, por um lado, a teoria alexyana busca conferir maior racionalidade s decises judiciais; de outro, na prtica, o que se verifica nos tribunais ptrios precisamente o oposto.Observa-se, em suma, que os princpios tornaram-se uma espcie demscara da subjetividade, na medida em que passaram a ser aplicados como enunciados performativos que se encontram disposio dos intrpretes, permitindo que os juzes, ao final, decidam como quiserem. Neste contexto, os princpios jurdicos, especialmente a proporcionalidade, exercem a funo de verdadeiros curingas, servindo de muleta para imposio de todo e qualquer argumento.Desse modo, considerando que no interior da dogmtica jurdica a interpretao continua a ser entendida como a escolha de um sentido que advm da conscincia do julgador, o que se verifica que, no Brasil, a vulgata da ponderao no est aumentando o grau de racionalidade das decises judicias, mas potencializando o subjetivismo e, sob o libi terico da proporcionalidade, instituindo uma justia cada vez mais lotrica.

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