Rosseau - O contrato social

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  • 8/7/2019 Rosseau - O contrato social

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    JEAN-JACQUES ROSSEAU (1712-1778)

    O CONTRATO SOCIAL

    LIVRO I

    Quero indagar se pode existir, na ordem civil, alguma regra de administrao legtima esegura, considerando os homens tais como so e as leis tais como podem ser. Procurarei sempre,nesta investigao, aliar o que o direito permite ao que o interesse prescreve, a fim de que a justia ea utilidade no se encontrem divididas.

    Entro na matria sem provar a importncia de meu assunto. Perguntar-me-o se souprncipe ou legislador para escrever sobre poltica. Respondo que no, e que por isso mesmo escrevosobre poltica. Fosse eu prncipe ou legislador, no perderia meu tempo dizendo o que deve ser feito:ou o faria, ou me calaria.Nascido cidado de um Estado livre e membro do Soberano, por frgil que seja a influncia deminha opinio nos negcios pblicos, o direito de votar basta para impor-me o dever de instruir-me aesse respeito. Todas as vezes que medito sobre os governos, sinto-me feliz por encontrar sempre,em minhas reflexes, novos motivos para amar o do meu pas!

    CAPTULO I

    Objeto Deste Primeiro livro

    O homem nasceu livre e por toda parte ele est agrilhoado. Aquele que se cr senhor dosoutros no deixa de ser mais escravo que eles. Como se deu essa mudana? Ignoro-o. 0 que podelegitim-la? Creio poder resolveresta questo.

    Se eu considerasse apenas a fora e o efeito que dela deriva, diria: enquanto um povo obrigado a obedecer e o faz, age bem; assim que pode sacudir esse jugo e o faz, age melhor ainda;porque, recobrando a liberdade pelo mesmo direito que lha tinha arrebatado, ou ele tem razo emretom-la ou no tinham em lha tirar. Mas a ordem social um direito sagrado, que serve de basepara todos os demais. Tal direito, entretanto, no advm da natureza; funda-se, pois, emconvenes. Trata-se de saber quais so essas convenes. Antes de chegar a esse ponto, devoestabelecer o que acabo de adiantar.

    CAPTULO II

    Das Primeiras Sociedades

    A mais antiga de todas as sociedades, e a nica natural, a da famlia. Ainda assim, osfilhos s permanecem ligados ao pai enquanto necessitam dele para a prpria conservao. Assimque essa necessidade cessa, dissolvesse o vnculo natural. Isentos os filhos da obedincia que

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    deviam ao pai, isento o pai dos cuidados que devia aos filhos, voltam todos a ser igualmenteindependentes. Se continuam unidos, j no de maneira natural, lhas voluntria, e a prpria famlias se mantm por conveno.

    Essa liberdade comum decorre da natureza do homem. Sua primeira lei consiste em zelarpela prpria conservao, seus primeiros cuidados so aqueles que deve consagrar a si mesmo, e,to logo alcana a idade da razo, sendo o nico juiz dos meios adequados sua conservao,

    torna-se por isso seu prprio senhor. a famlia, pois, o primeiro modelo das sociedades polticas, o chefe a imagem do pai, opovo a dos filhos, e todos, tendo nascido iguais e livres, s alienam sua liberdade em proveito prprio.A diferena toda est em que, na famlia, o amor do pai pelos filhos compensa dos cuidados que lhesdedica, enquanto no Estado o prazer de comandar supre esse amor que o chefe no tem por seuspovos.Grotius nega que todo poder humano seja estabelecido em favor daqueles que so governados;como exemplo, cita a escravido. Sua maneira mais comum de raciocinar consiste sempre emestabelecer o direito pelo fato. Poder-se-ia empregar um mtodo mais conseqente, porm no maisfavorvel aos tiranos.

    pois duvidoso, segundo Grotius, se o gnero humano pertence a uma centena de homensou se essa centena de homens pertence ao gnero humano; e, ao longo de todo o seu livro, parece

    inclinar-se pela primeira hiptese; esta , tambm, a opinio de Hobbes. Eis, portanto, a espciehumana dividida em rebanhos, cada qual com seu chefe, que o guarda para devor-lo.

    Assim como um pastor de natureza superior de seu rebanho, tambm os pastores dehomens, que so os seus chefes, possuem natureza superior de seus povos. Desse modoraciocinava, segundo Flons, o imperador Calgula, concluindo comodamente, dessa analogia, que osreis eram deuses, ou os povos eram animais.

    O raciocnio desse Calgula remete ao de Hobbes e ao de Grotius. Tambm Aristteles,antes de todos eles, dissera que os homens no so naturalmente iguais, mas nascem uns para aescravido e outros para o domnio.

    Tinha razo Aristteles, porm tomava o efeito pela causal. Todo homem nascido naescravido nasce para a escravido: nada mais certo. Os escravos tudo perdem sob seus grilhes,at o desejo de libertar-se deles; amam a servido como os companheiros de Ulisses amavam o

    prprio embrutecimento Se h, pois, escravos por natureza, porque houve escravos contra anatureza. A fora fez os primeiros escravos, sua covardia os perpetuou.

    Nada disse do rei Ado, nem do imperador No, pai de trs grandes monarcas que dividiramentre si o universo, como o fizeram os filhos de Saturno, nos quais muitos acreditaram reconheceraqueles'. Espero que apreciem a minha moderao, pois, descendendo diretamente de um dessesprncipes, e talvez do ramo mais antigo, quem sabe se, pela verificao dos ttulos, eu no chegaria concluso de ser o legtimo rei do gnero humano? Seja como for, no se pode discordar de queAdo tenha sido soberano do mundo como Robinson foi de sua ilha, enquanto permaneceu como oseu nico habitante; e o que havia de cmodo nesse imprio era que o monarca, garantido em seutrono, no tinha a temer nem rebelies, nem guerras, nem conspiradores.

    CAPTULO III

    Do Direito do mais Forte

    O mais forte nunca bastante forte para ser sempre o senhor, se no transformar sua fora

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    em direito e a obedincia em dever. Da o direito do mais forte, direito tomado aparentemente comironia e na realidade estabelecido como principio. Mas ser que um dia nos explicaro essa palavra?A fora um poder fsico; no vejo que moralidade pode resultar de seus efeitos. Ceder fora um ato de necessidade, e no de vontade; , quando muito, um ato de prudncia. Em que sentidopoder constituir um dever?

    Suponhamos por um momento esse pretenso direito. Digo que dele s resulta um galimatias

    inexplicvel. Pois, to logo seja a fora que gera o direito, o efeito muda com a causa; toda foraque sobrepuja a primeira h de suced-la nesse direito. To logo se possa desobedecerimpunemente, torna-se legtimo faz-lo, e, como 0 mais forte sempre tem razo, basta agir de modoa ser o mais forte. Ora, o que um direito que perece quando cessa a fora? Se preciso obedecerpela fora, no h necessidade de obedecer por dever, e, se j no se forado a obedecer, tambmno j se obrigado a faz-lo. V-se, pois, que a palavra direito nada acrescenta fora; nosignifica, aqui, absolutamente nada.Obedecei aos poderosos. Se isso quer dizer; "cedei fora", o preceito bom, mas suprfluo; afirmoque jamais ser violado. Todo poder vem de Deus, reconheo-o, mas tambm todas as doenas.Significa isso que no se deva chamar o mdico? Quando um bandido me ataca num canto dobosque, no s preciso forosamente entregar-lhe minha bolsa, mas tambm, caso pudesse salv-la,estaria obrigado, em s conscincia, a entreg-la? Afinal, a pistola que ele empunha tambm um

    poder.Convenhamos, pois, que a fora no faz o direito, e que s se obrigado a obedecer aos

    poderes legtimos. Assim, minha pergunta inicial permanece de p.

    CAPTULO IV

    Da Escravido

    J que nenhum homem tem autoridade natural sobre seu semelhante, e uma vez que a forano produz direito algum, restam ento as convenes como base de toda autoridade legtima entreos homens.

    Se um particular, diz Grotius, pode alienar sua liberdade e converter-se em escravo de umsenhor, por que todo um povo no poderia alienar a sua e tornar-se sdito de um rei? H aqui muitaspalavras equvocas que exigem explicao, mas atenhamo-nos ao termo alienar. Alienar dar ouvender. Ora, um homem que se faz escravo de outro no se d, vende-se, pelo menos em troca desua subsistncia; mas um povo, por que se vende? Longe de prover subsistncia de seus sditos, orei apenas tira a sua deles, e, segundo Rabelais, um rei no vive com pouco. Os sditos, porconseguinte, do suas prprias pessoas sob a condio de que se tomem tambm os seus bens? Novejo o que lhes resta para conservar.

    Dir-se- que o dspota assegura aos sditos a tranqilidade civil. Seja. Mas que ganhameles com isso, se as guerras que sua ambio lhes acarreta, se sua insacivel avidez, se os vexamesde seu ministrio os desolam' mais que as prprias dissenses? Que ganham eles, se essa mesmatranqilidade uma de suas misrias? Vive-se tranqilo tambm nas masmorras, e isto bastar paraque nos sintamos bem nelas? Os gregos encerrados no antro do Ciclope viviam tranqilos ali,esperando a vez de serem devorados.

    Dizer que um homem se d gratuitamente dizer uma coisa absurda e inconcebvel; este ato ilegtimo e nulo, pelo simples fato de que quem o pratica no est em seu juzo perfeito. Dizer omesmo de todo um povo supor um povo de loucos: a loucura no estabelece o direito.

    Mesmo que cada um pudesse alienar-se a si mesmo, no poderia alienar os filhos; estesnascem homens e livres; sua liberdade lhes pertence e ningum, seno eles, tem o direito de dispor

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    dela. Antes de chegarem idade da razo, o pai, em nome deles, pode estipular as condies para asua conservao e bem-estar; mas no os dar irrevogvel e incondicionalmente, pois tal doao contrria aos fins da natureza e ultrapassa os direitos da paternidade. Seria necessrio, portanto,para que um governo arbitrrio fosse legtimo, que em cada gerao 0 povo fosse senhor deadmiti-lo ou rejeit-lo: mas ento esse governo j no seria arbitrrio.

    Renunciar liberdade renunciar qualidade de homem, aos direitos da humanidade, e at

    aos prprios deveres. No h nenhuma reparao possvel para quem renuncia a tudo. Tal renncia incompatvel com a natureza do homem, e subtrair toda liberdade a sua vontade subtrair todamoralidade a suas aes. Enfim, intil e contraditria a conveno que estipula, de um lado, umaautoridade absoluta, e, de outro, uma obedincia sem limites. No est claro que no se temobrigao alguma para com aquele de quem se tem o direito de tudo exigir? E esta simples condio,sem equivalncia, sem compensao, no acarreta a nulidade do ato? Pois que direito teria meuescravo contra mim, se tudo o que ele possui me pertence, se, sendo seu direito o meu, esse direitomeu contra mim mesmo uma palavra desprovida de qualquer sentido?

    Grotius e outros encontram na guerra outra origem do pretenso direito de escravido. Tendoo vencedor, segundo eles, o direito de matar o vencido, este pode resgatar sua vida a expensas desua liberdade, conveno tanto mais legtima quanto proveitosa a ambas as partes.

    Mas evidente que esse pretenso direito de matar os vencidos no resulta, de modo algum,

    do estado de guerra. Isto apenas porque os homens, vivendo em sua primitiva independncia, notm entre si uma relao assaz constante para constituir nem o estado de paz nem o estado deguerra; no so naturalmente inimigos. a relao das coisas, e no dos homens, que produz aguerra, e, como o estado de guerra no pode nascer das simples relaes pessoais, mas somente dasrelaes reais, a guerra particular, ou de homem para homem, no pode existir nem no estadonatural, em que no h propriedade constante, nem no estado social, em que tudo se acha sob aautoridade das leis".

    Os combates particulares, os duelos, os recontros so atos que no constituem um estado; e,quanto s guerras privadas, autorizadas pelas ordenaes de Lus IX, rei de Frana, e suspensaspela paz de Deus, so abusos do governo feudal, sistema absurdo como jamais houve outro,contrrio aos princpios do direito natural e a toda boa politia.

    A guerra no , pois, uma relao de homem para homem, mas uma relao de Estado para

    Estado, na qual os particulares s so inimigos acidentalmente, no como homens, nem mesmo comocidados, mas como soldados; no como membros da ptria, mas como seus defensores. Enfim,cada Estado s pode ter por inimigos outros Estados, e no homens, porquanto no se podeestabelecer nenhuma verdadeira relao entre coisas de diversa natureza.

    Esse princpio se conforma inclusive s mximas estabelecidas em todos os tempos e prtica constante de todos os povos civilizados. As declaraes de guerra so advertncias dirigidasmenos s potncias que aos seus sditos. O estrangeiro, seja rei, particular ou povo, que rouba, mataou detm os sditos sem declarar guerra ao prncipe, no um inimigo, um bandido. Mesmo emplena guerra, um prncipe justo se apodera de tudo o que pertence ao pblico em pas inimigo, masrespeita a pessoa e os bens dos particulares; respeita os direitos nos quais assentam os seus. Sendoo objetivo da guerra a destruio do Estado inimigo, tem-se o direito de matar seus defensoresenquanto estiverem de armas na mo; mas, no momento em que as depem e se rendem, cessando

    de ser inimigos ou instrumentos do inimigo, tomam-se outra vez simplesmente homens e j no setem direito sobre sua vida. Por vezes, pode-se matar o Estado sem matar um s de seus membros;ora, a guerra no d nenhum direito que no seja necessrio ao seu objetivo. Esses princpios noso os mesmos de Grotius; no se fundam na autoridade de poetas, mas derivam da natureza dascoisas e baseiam-se na razo.

    Sobre o direito de conquista, no tem ele outro fundamento seno a lei do mais forte. Se aguerra no d ao vencedor o direito de massacrar os povos vencidos, esse direito, que ele no tem,no pode servir de base ao direito de escraviz-los. S se tem o direito de matar o inimigo quandono se pode escraviz-lo; o direito de escraviz-lo no decorre, pois, do direito de mat-lo: portanto,

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    uma troca inqua faz-lo comprar, ao preo de sua liberdade, sua vida, sobre a qual no se temdireito algum. Quando se funda o direito de vida e de morte no direito de escravido, e o direito deescravido no direito de vida e de morte, no est claro que se cai num crculo vicioso?

    Mesmo admitindo-se como possvel esse terrvel direito de tudo matar, digo que um escravofeito na guerra ou um povo conquistado no tem nenhuma obrigao para com seu senhor, salvoobedec-lo enquanto a isso forado. Ao tomar um equivalente a sua vida, o senhor no lhe

    concedeu graa alguma: em vez de mat-lo sem proveito, matou-o utilmente. Longe, pois, de teradquirido sobre ele qualquer autoridade alm da fora, o estado de guerra subsiste entre eles comoantes, sua prpria relao um efeito desse estado, e o uso do direito da guerra no supe nenhumtratado de paz. Fizeram uma conveno; seja: mas essa conveno, longe de destruir o estado deguerra, supe sua continuidade.

    Assim, seja qual for o lado por que se considerem as coisas, o direito de escravizar nulo,no somente porque ilegtimo, mas porque absurdo e sem significao. As palavras escravido edireito so contraditrias; excluem-se mutuamente. Seja de homem para homem, seja de um homempara um povo, este discurso h de ser sempre igualmente insensato": Faio contigo uma convenoem que fica tudo a teu encargo e tudo em meu proveito, que observarei enquanto me aprouver, eque tu observars enquanto isso me agradar.

    CAPTULO V

    De Como Sempre Preciso Remontar a umaPrimeira Conveno

    Mesmo que eu concordasse com tudo o que refutei at aqui, os fautores do despotismo noestariam em melhor situao. Sempre haver grande diferena entre submeter uma multido e regeruma sociedade. Que homens isolados sejam subjugados sucessivamente a um s, qualquer que sejao sei nmero, no vejo nisso seno um senhor e escravos, e de modo algum hei de consider-los um

    povo e seu chefe. , talvez, uma agregao, mas no uma associao; no h nela nem bem publiconem corpo poltico. Ainda que esse homem houvesse subjugado metade do mundo, sempre seria umparticular; seu interesse, separado do interesse dos outros, ser sempre um interesse privado. Seesse mesmo homem vem a perecer, seu imprio, depois dele, fica disperso e sem ligao, como umcarvalho, depois de consumido pelo fogo, se desfaz e se converte num monte de cinzas.

    Um povo, diz Grotius, pode entregar-se a um rei. Segundo Grotius, portanto, um povo umpovo antes de entregar-se a um rei. Mesmo esse dom um ato civil, supe uma deliberao pblica.Portanto, antes de examinar o ato pelo qual um povo elege um rei, seria bom examinar o ato peloqual um povo um povo. Porque esse ato, sendo necessariamente anterior ao, outro, constitui overdadeiro fundamento da sociedade.

    Com efeito, se no houvesse conveno anterior, a menos que a eleio fosse unnime,onde estaria a obrigao de os menos numerosos se submeterem escolha dos mais numerosos, e

    de onde vem o direito de cem indivduos, que querem um senhor, votar por dez que no o querem?A lei da pluralidade dos sufrgios por si s um estabelecimento de conveno e supe, pelo menosuma vez, a unanimidade.

    CAPTULO VI

    Do Pacto Social

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    Suponho que os homens tenham chegado quele ponto em que os obstculos prejudiciais sua conservao no estado de natureza sobrepujam, por sua resistncia, as foras que cadaindivduo pode empregar para se manter nesse estado. Ento, esse estado primitivo j no podesubsistir, e o gnero humano pereceria se no mudasse seu modo de ser.

    Ora, como os homens no podem engendrar novas foras, mas apenas unir e dirigir as

    existentes, no tm meio de conservar-se seno formando, por agregao, um conjunto de forasque possa sobrepujar a resistncia, aplicando-as a um s mvel e fazendo-as agir em comumacordo''.

    Essa soma de foras s pode nascer do concurso de muitos; mas, sendo a fora e aliberdade de cada homem os primeiros instrumentos de sua conservao, como as empregar semprejudicar e sem negligenciar os cuidados que deve a si mesmo? Essa dificuldade, reconduzindo aomeu assunto, pode enunciar-se nestes termos:

    "Encontrar uma forma de associao que defenda e proteja com toda a fora comum apessoa e os bens de cada associado, e pela qual cada um, unindo-se a todos, s obedea, contudo, asi mesmo e permanea to livre quanto antes". Este o problema fundamental cuja soluo fornecida pelo contrato social.

    As clusulas desse contrato so de tal modo determinadas pela natureza do ato que a menor

    modificao as tornaria inteis e sem efeito, de sorte que, embora talvez jamais tenham sidoformalmente enunciadas, so em toda parte as mesmas", em toda parte tacitamente admitidas ereconhecidas; at que, violado o pacto social, cada qual retorna aos seus primeiros direitos e retomaa liberdade natural, perdendo a liberdade convencional pela qual renunciara quela.

    Bem compreendidas, essas clusulas se reduzem todas a uma s, a saber, a alienao totalde cada associado, com todos os seus direitos, a toda a comunidade. Pois, em primeiro lugar, cadaqual dando-se por inteiro, a condio igual para todos, e, sendo a condio igual para todos,ningum tem interesse em torn-la onerosa para os demais.

    Alm disso, como a alienao se faz sem reservas, a unio to perfeita quanto possvel, enenhum associado tem algo a reclamar, pois, se restassem alguns direitos aos particulares, como nohaveria nenhum superior comum capaz de decidir entre eles e o pblico, cada qual sendo em algumponto seu prprio juiz, logo pretenderia s-lo em todos; o estado de natureza subsistiria e a

    associao se tornaria necessariamente tirnica ou v.Enfim, cada um, dando-se a todos, no se d a ningum, e, como no existe um associado

    sobre o qual no se adquira o mesmo direito que se lhe cede sobre si mesmo, ganha-se o equivalentede tudo o que se perde e mais fora para conservar o que se tem.

    Se, pois, retirarmos do pacto social o que no de sua essncia, veremos que ele se reduzaos seguintes termos: Cada um de ns pe em comum sua pessoa e todo o seu poder sob a supremadireo da vontade geral; e recebemos, coletivamente, cada membro como parte indivisvel do todo.

    Imediatamente, em vez da pessoa particular de cada contratante, esse ato de associaoproduz um corpo moral e coletivo composto de tantos membros quantos so os votos da assemblia,o qual recebe, por esse mesmo ato, sua unidade, seu eu comum`, sua vida e sua vontade. Essapessoa pblica, assim formada pela unio de todas as demais, tomava outrora o nome de Cidade, ehoje o de Repblica ou de corpo poltico, o qual chamado por seus membros de Estado quando

    passivo, soberano quando ativo e Potncia quando comparado aos seus semelhantes. Quanto aosassociados, eles recebem coletivamente o nome de povo e se chamam, em particular, cidados,enquanto participantes da autoridade soberana, e sditos, enquanto submetidos s leis do Estado.Esses termos, porm, confundem-se amide e so tomados um pelo outro; basta saber distingui-losquando empregados em toda a sua preciso.

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    CAPTULO VII

    Do Soberano

    V-se, por essa frmula, que o ato de associao encerra um compromisso recproco dopblico com os particulares, que cada indivduo, contratando, por assim dizer, consigo mesmo ,acha-se comprometido numa dupla relao, a saber: como membro do soberano em face dosparticulares e como membro do Estado em face do soberano. Mas no se pode aplicar aqui amxima do Direito Civil, segundo a qual ningum est obrigado aos compromissos assumidosconsigo mesmo`; pois h uma grande diferena entre obrigar-se perante si mesmo e perante um tododo qual se faz parte.

    Cabe notar ainda que a deliberao pblica, que pode obrigar todos os sditos em face dosoberano, em virtude das duas relaes diferentes sob as quais cada um deles encarado, no pode,pela razo contrria, obrigar o soberano em face de si mesmo e que, por conseguinte, contra anatureza do corpo poltico impor-se o soberano uma lei que no possa infringir. No podendoconsiderar-se seno sob uma nica e mesma relao, encontra-se ento no caso de um particularcontratando consigo mesmo, por onde se v que no h, nem pode haver, nenhuma espcie de leifundamental obrigatria para o corpo do povo, nem mesmo o contrato social. Isto no significa queesse corpo no possa comprometer-se com outrem no que no derrogue esse contrato; pois, emrelao ao estrangeiro, ele se torna um ser simples, um indivduo.

    Mas o corpo poltico ou o soberano, tirando seu ser unicamente da santidade do contrato,jamais pode obrigar-se, mesmo em relao a outrem, a nada que derrogue esse ato primitivo, comoalienar uma parte de si mesmo ou submeter-se a outro soberano. Violar o ato pelo qual ele existeseria aniquilar-se, e o que nada nada produz.

    To logo essa multido se encontre assim reunida num corpo, no se pode ofender um dosmembros sem atacar o corpo, nem, muito menos, ofender o corpo sem que os membros disso seressintam. Assim, o dever e o interesse obrigam igualmente as duas partes contratantes a seajudarem mutuamente, e os mesmos homens devem buscar reunir, sob essa dupla relao, todas asvantagens que dela emanam.

    Ora, o soberano, sendo formado apenas pelos particulares que o compem, no tem nempode ter interesse contrrio ao deles; conseqentemente, o poder soberano no tem nenhumanecessidade de garantia em face dos sditos, porque impossvel que o corpo queira prejudicartodos os seus membros e veremos a seguir que no pode prejudicar ningum` em particular. 0soberano, s pelo fato de s-lo, sempre tudo aquilo que deve ser.

    O mesmo, porm, no ocorre com os sditos em relao ao soberano, por cujoscompromissos, apesar do interesse comum, ningum responderia se no encontrasse meios deassegurar-se de sua fidelidade.

    Com efeito, cada indivduo pode, como homem, ter uma vontade particular oposta ou diversada vontade geral que tem como cidado. Seu interesse particular pode ser muito diferente dointeresse comum; sua existncia absoluta e naturalmente independente pode lev-lo a considerar oque deve causa comum como uma contribuio gratuita, cuja perda ser menos prejudicial aosdemais do que ser o pagamento oneroso para ele; e, considerando a pessoa moral que constitui oEstado como um ente de razo, pois que no um homem, gozar dos direitos do cidado semquerer cumprir os deveres do sdito - injustia cujo progresso redundaria na runa do corpo poltico.

    A fim de que o pacto social no venha a constituir, pois, um formulrio vo, compreende eletacitamente esse compromisso, o nico que pode dar fora aos outros: aquele que se recusar aobedecer vontade geral a isso ser constrangido por todo o corpo - o que significa apenas que serforado a ser livre", pois esta a condio que, entregando ptria cada cidado, o garante contratoda dependncia pessoal, condio que configura o artifcio e o jogo da mquina poltica, a nica a

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    legitimar os compromissos civis, que sem isso seriam absurdos, tirnicos e sujeitos aos majoresabusos.

    CAPTULO VIII

    Do Estado Civil

    A passagem do estado de natureza ao estado civil produz no homem uma mudanaconsidervel, substituindo em sua conduta o instinto pela justia e conferindo s suas aes amoralidade que antes lhes faltava. S ento, assumindo a voz do dever o lugar do impulso fsico, e odireito o do apetite, o homem, que at ento no levara em conta seno a si mesmo, se viu obrigadoa agir com base em outros princpios e a consultar sua razo antes de ouvir seus pendores.Conquanto nesse estado se prive de muitas vantagens concedidas pela natureza, ganha outras deigual importncia: suas faculdades se exercem e se desenvolvem, suas idias se alargam, seussentimentos se enobrecem, toda a sua alma se eleva a tal ponto que, se os abusos dessa novacondio no o degradassem amide a uma condio inferior quela de que saiu, deveria bendizersem cessar o ditoso instante que dela o arrancou para sempre, transformando-o de um animalestpido e limitado num ser inteligente, num homem.

    Reduzamos todo esse balano a termos de fcil comparao. 0 que o homem perde pelocontrato social a liberdade natural e um direito ilimitado a tudo quanto deseja e pode alcanar; oque com ele ganha a liberdade civil e a propriedade de tudo o que possui. Para que no hajaengano a respeito dessas compensaes, importa distinguir entre a liberdade natural, que tem porlimites apenas as foras do indivduo, e a liberdade civil, que limitada pela vontade geral, e aindaentre a posse, que no passa do efeito da fora ou do direito do primeiro ocupante, e a propriedade,que s pode fundar-se num ttulo positivo.

    Sobre o que precede, poder-se-ia acrescentar aquisio do estado civil a liberdade moral, anica que torna o homem verdadeiramente senhor de si, porquanto 0 impulso do mero apetite escravido, e a obedincia lei que se prescreveu a si mesmo liberdade. Mas j falei muito sobreessa matria, e o sentido filosfico da palavra liberdade no aqui do mbito do meu assunto.

    CAPTULO IX

    Do Domnio Real

    Cada membro da comunidade entrega-se a ela no momento de sua formao, tal como seencontra naquele instante - ele e todas as suas foras, das quais fazem parte os bens que possui.No que, por esse ato, a posse mude de natureza ao mudar de mos e se tome propriedade nas do

    soberano, mas sim que, sendo as foras da Cidade incomparavelmente maiores que as de umparticular, a posse pblica tambm, na verdade, mais forte e mais irrevogvel, sem ser maislegtima, pelo menos para os estrangeiros. Porque o Estado, perante seus membros, senhor detodos os seus bens pelo contrato social, que no Estado serve de base a todos os direitos; mas no o perante as outras potncias seno pelo direito de primeiro ocupante que recebeu dos particulares.

    O direito de primeiro ocupante, embora mais real que o do mais forte, s se torna umverdadeiro direito aps o estabelecimento do direito de propriedade. Todo homem tem naturalmentedireito a tudo o que lhe necessrio; mas o ato positivo, que o torna proprietrio de qualquer bem, oexclui de tudo o mais. Tomada a sua parte, deve limitar-se a ela, e j no goza de nenhum direito

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    comunidade. Eis por que o direito de primeiro ocupante, to frgil no estado de natureza, respeitvel para todos os homens civis. Respeita-se menos, nesse direito, aquilo que pertence aoutrem do que aquilo que no se possui.

    Em geral, para autorizar o direito do primeiro ocupante sobre um terreno qualquer, sonecessrias as seguintes condies: primeiro, que esse terreno no esteja ainda habitado porningum; segundo, que dele s se ocupe a poro de que se tem necessidade para subsistir; terceiro,

    que dele se tome posse, no por uma cerimnia v, mas pelo trabalho e o cultivo, nicos sinais depropriedade que, na ausncia de ttulos jurdicos, devem ser respeitados pelos outros.Com efeito, atribuir necessidade e ao trabalho o direito de primeiro ocupante no ser

    lev-lo to longe quanto possvel? Poder-se- no estabelecer limites para esse direito? Bastar pros ps num terreno comum para logo pretender ser o seu dono? Bastar a fora, capaz de afastardele por um momento os outros homens, para tirar-lhes o direito de ali voltar? Como pode umhomem ou um povo apossar-se de um territrio imenso e privar dele todo o gnero humano, a noser por uma usurpao punvel, pois que tira ao resto dos homens o abrigo e os alimentos que anatureza lhes deu em comum? Quando Nunez Balboa tomou posse, no litoral, do mar do Sul e detoda a Amrica meridional em nome da coroa de Castela, ser que isso o autorizava a despojartodos os habitantes e excluir dali todos os prncipes do mundo? Em tais bases, tais cerimnias semultiplicavam inutilmente, e ao Rei Catlico bastaria, de seu gabinete, tomar posse de uma s vez de

    todo o universo, mesmo que tivesse de excluir em seguida de seu imprio o que antes pertencia aoutros prncipes.

    Concebe-se como as terras dos particulares, reunidas e contguas, se tornam territriopblico, e como o direito de soberania, estendendo-se dos sditos ao terreno por eles ocupado, setorna ao mesmo tempo real e pessoal, o que coloca os possuidores numa dependncia ainda maior efaz de suas prprias foras a garantia de sua fidelidade. Essa vantagem no parece ter sido bemcompreendida pelos antigos monarcas que, intitulando-se simplesmente rei dos persas, dos citas, dosmacednios, pareciam considerar-se mais como chefes dos homens que como senhores do pas. Osmonarcas de hoje, mais hbeis, chamam-se a si mesmos reis da Frana, da Espanha, da Inglaterra,etc. Dominando assim o territrio, sentem-se mais seguros de dominar os habitantes.

    O que h de singular nessa alienao que, aceitando os bens dos particulares, acomunidade, longe de despoj-los, s faz assegurar-lhes a posse legtima, transformando a

    usurpao num verdadeiro direito e a fruio em propriedade'. Passando os possuidores, ento, aserem considerados como depositrios do bem pblico, com seus direitos respeitados por todos osmembros do Estado e sustentados por todas as suas foras contra o estrangeiro, em virtude de umacesso vantajosa ao pblico e mais ainda a si mesmos, adquirem, por assim dizer, tudo quantoderam. Esse paradoxo se explica facilmente pela distino entre os direitos que o soberano e oproprietrio tm sobre os mesmos bens, como se ver adiante.

    Pode suceder tambm que os homens comecem a unir-se antes de possuir qualquer coisa eque, apossando-se em seguida de um terreno suficiente para todos, o desfrutem em comum ou opartilhem entre si, seja em partes iguais, seja em propores estabelecidas pelo soberano. Dequalquer forma que se faa essa aquisio, o direito de cada particular sobre seus prprios bens estsempre subordinado ao direito da comunidade sobre todos, sem o que no teria solidez o vnculosocial, nem fora real o exerccio da soberania.

    Encerrarei este captulo e este livro por uma observao que deve servir de base a todo osistema social:em vez de destruir a igualdade natural, o pacto fundamental substitui, ao contrrio, por umaigualdade moral e legitima aquilo que a natureza poderia trazer de desigualdade fsica entre oshomens, e, podendo ser desiguais em fora ou em talento, todos se tornam iguais por conveno ede direito.

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    LIVRO II

    CAPTULO I

    A Soberania Inalienvel

    A primeira e mais importante conseqncia dos princpios acima estabelecidos que s avontade geral pode dirigir as foras do Estado em conformidade com o objetivo de sua instituio,que o bem comum: pois, se a oposio dos interesses particulares tornou necessrio oestabelecimento das sociedades, foi o acordo desses mesmos interesses que o tornou possvel. Ovnculo social formado pelo que h de comum nesses diferentes interesses, e, se no houvesse umponto em que todos os interesses concordam, nenhuma sociedade poderia existir. Ora, unicamentecom base nesse interesse comum que a sociedade deve ser governada.

    Digo, pois, que a soberania, sendo apenas o exerccio da vontade geral, nunca podealienar-se, e que o soberano, no passando de um ser coletivo, s pode ser representado por simesmo; pode transmitir-se o poder no, porm, a vontade.

    Com efeito, se no impossvel que uma vontade particular concorde num determinadoponto com a vontade geral, pelo menos impossvel que esse acordo seja duradouro e constante,porque a vontade particular, por sua prpria natureza, tende s predilees, enquanto a vontade geralpropende para a igualdade. Mais impossvel ainda ' ter uma garantia desse acordo; ainda quehouvera sempre de existir, no seria um efeito da arte, seno do acaso. O soberano pode muito bemdizer: "Quero, neste momento, o que quer tal homem, ou, pelo menos, o que ele afirma querer". Nopode, porm, afirmar: "O que esse homem quiser amanh, tambm eu hei de querer" - porque absurdo submeter-se a vontade a grilhes futuros e porque no depende de nenhuma vontadeconsentir em algo contrrio ao bem do ser que quer. Se, pois, o povo promete simplesmenteobedecer, por esse mesmo ato ele se dissolve e perde sua qualidade de povo; no momento em que

    h um senhor, j no h soberano e, desde ento, destri-se o corpo poltico.Isto no significa que as ordens dos chefes no possam passar por vontades gerais,enquanto o soberano, livre para a isso se opor, no o faz. Em tal caso, pelo silncio universal deve-sepresumir o consentimento do povo. Isso ser mais amplamente explicado.

    CAPTULO II

    A Soberania Indivisvel

    Pela mesma razo por que inalienvel, a soberania indivisvel, visto que a vontade ou

    geral' ou no o ; ou a do corpo do povo, ou unicamente de uma parte. No primeiro caso, essavontade declarada um ato de soberania e faz lei; no segundo, no passa de uma vontade particularou de um ato de magistratura; , quando muito, um decreto.

    Mas, no podendo dividir a soberania em seu princpio, nossos polticos a dividem em seuobjeto; eles a dividem em fora e vontade, em poder legislativo e poder executivo, em direitos deimpostos, de justia e de guerra, em administrao interior e em poder de negociar com oestrangeiro; ora confundem todas essas partes, ora as separam. Fazem do soberano um serfantstico, formado de diversas peas entremeadas, tal como se formassem o homem de vrioscorpos, um dos quais tivesse olhos, outro braos, outro ps, e nada mais. Os pelotiqueiros do Japo,

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    segundo se conta, despedaam uma criana aos olhos dos espectadores e depois, jogando para o artodos os seus membros, um aps outro, fazem voltar ao cho a criana viva e totalmenterecomposta. Tais so, aproximadamente, os passes de mgica dos nossos polticos: depois dedesmembrar o corpo social por uma iluso digna das feiras, tornam a reunir as peas sabe-se lcomo.

    Decorre esse erro do fato de no disporem de noes exatas a respeito da autoridade

    soberana e de terem tomado como partes dessa autoridade o que no passava de emanaes dela.Assim, por exemplo, consideramos o ato de declarar a guerra e o de fazer a paz como atos desoberania, quando no o so, visto no ser cada um desses atos uma lei, mas apenas uma aplicaoda lei, um ato particular que determina o caso da lei, como se ver claramente quando definirmos aidia ligada palavra lei.

    Examinando-se de igual modo as demais divises, ver-se- que se incorre em erro todas asvezes que se acredita estar a soberania dividida, porquanto os direitos tomados como partes dessasoberania lhe esto todos subordinados e supem sempre vontades supremas, s quais tais direitosse limitam a dar execuo.

    Impossvel dizer o quanto de obscuridade essa falta de exatido lanou sobre as conclusesdos autores em matria de direito poltico, quando quiseram julgar os respectivos direitos dos reis edos povos com base nos princpios que haviam estabelecido. Pode-se ver, nos captulos III e IV do

    primeiro livro de Grotius, como esse sbio e seu tradutor, Barbeyrac, se confundem,embaraando-se em seus sofismas, temerosos de dizer demais sobre o assunto ou de no dizer obastante segundo seus pontos de vista, pondo em choque os interesses que deviam conciliar. Grotius,refugiado na Frana, descontente com sua ptria e desejoso de agradar a Lus XIII, a quem seu livro dedicado, nada poupa para despojar os povos de todos os seus direitos e para com eles revestir osreis com toda a arte possvel. Tal foi, tambm, o estilo de Barbeyrac, que dedicou sua traduo aorei da Inglaterra, Jorge I. Infelizmente, porm, a expulso de Jaime II, que ele denomina abdicao,forou-o a manter-se em reserva, a esquivar-se, a tergiversar, para no fazer de Guilherme umusurpador. Houvessem esses dois escritores adotado os verdadeiros princpios, todas as dificuldadesdesapareceriam e teriam sido sempre conseqentes; mas, nesse caso, diriam tristemente a verdadee no cortejariam seno o povo. Ora, a verdade no conduz fortuna, e o povo no concede nemembaixadas, nem ctedras, nem penses.

    CAPTULO III

    Se a Vontade Geral Pode Errar

    Decorre do exposto que a vontade geral invariavelmente reta e tende sempre utilidadepblica; mas da no se segue que as deliberaes do povo tenham sempre a mesma retido.Deseja-se sempre o prprio bem, mas no sempre que se pode encontr-lo. Nunca se corrompe opovo, mas com freqncia o enganam, e s ento ele parece desejar o mal.

    Via de regra, h muita diferena entre a vontade de todos e a vontade geral; esta se referesomente ao interesse comum, enquanto a outra diz respeito ao interesse privado, nada mais sendoque uma soma das vontades particulares. Quando, porm, se retiram dessas mesmas vontades osmais e os menos que se destroem mutuamente, resta, como soma das diferenas, a vontade geral.

    Se, quando o povo suficientemente informado delibera, os cidados no tivessem nenhumacomunicao entre si, do grande nmero de pequenas diferenas haveria de resultar sempre avontade geral, e a deliberao seria sempre boa. Mas, quando se estabelecem faces, associaesparciais a expensas da grande, a vontade de cada uma dessas associaes se faz geral em relaoaos seus membros, e particular em relao ao Estado; pode-se, ento, dizer que j no h tantos

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    votantes quantos so os homens, mas apenas tantos quantas so as associaes. As diferenastornam-se menos numerosas e do um resultado menos geral. E, por fim, quando uma dessasassociaes to grande que sobrepuja todas as demais, j no se tem por resultado uma soma depequenas diferenas, seno uma diferena nica; ento, j no h vontade geral, e a opiniovencedora no passa de uma opinio particular.

    Importa, pois, para se chegar ao verdadeiro enunciado da vontade geral, que no haja

    sociedade parcial no Estado e que cada cidado s venha a opinar de acordo com seu prprio pontode vista. Tal foi a nica e sublime instituio do grande Licurgo. Em havendo sociedades parciais,impe-se multiplicar-lhes o nmero a fim de impedir a desigualdade entre elas, como fizeram Slon,Numa e Srvio. Essas precaues so as nicas adequadas para que a vontade geral seja sempreesclarecida e o povo no se engane.

    CAPTULO IV

    Dos Limites do Poder Soberano

    Se o Estado ou a Cidade no constituem seno uma pessoa moral, cuja vida consiste naunio de seus membros, e se o mais importante de seus cuidados o de sua prpria conservao,torna-se-lhe necessria uma fora universal e compulsivas para mover e dispor cada parte damaneira mais conveniente ao todo. Assim como a natureza d a cada homem um poder absolutosobre todos os seus membros, o pacto social d ao corpo poltico um poder absoluto sobre todos osseus, e esse mesmo poder que, dirigido pela vontade geral, recebe, como ficou dito, o nome desoberania.

    Mas, alm da pessoa pblica, temos de considerar as pessoas privadas que a compem ecuja vida e liberdade so naturalmente independentes dela. Trata-se, pois, de distinguir entre osrespectivos direitos dos cidados e do soberano, e os deveres que os primeiros devem cumprir naqualidade de sditos, e o direito natural de que devem gozar na qualidade de homens.

    No tocante a tudo quanto cada um aliena, pelo pacto social, de seu poder, de seus bens e desua liberdade, convm-se que representa somente a parte de tudo aquilo cujo uso interessa comunidade, mas preciso convir tambm que s o soberano pode julgar desse interesse.

    Todos os servios que um cidado pode prestar ao Estado passam a ser um dever to logo osoberano os solicite; mas o soberano, de sua parte, no pode onerar os sditos com nenhuma penaintil comunidade; no pode sequer desej-lo, pois, sob a lei da razo, no menos que sob a danatureza, nada se faz sem causa.

    Os compromissos que nos ligam ao corpo social s so obrigatrios por serem mtuos, e suanatureza tal que, ao cumpri-los, no se pode trabalhar para outrem sem trabalhar tambm para simesmo. Por que a vontade geral sempre reta, e por que todos querem constantemente a felicidadede cada um, seno pelo fato de no haver ningum que no se aproprie da expresso cada um e nopense em si mesmo ao votar por todos? Eis a prova de que a igualdade de direito e a noo dejustia que ela produz derivam da preferncia que cada um tem por si mesmo e, por conseguinte, danatureza do homem, de que a vontade geral, para ser verdadeiramente geral, deve s-lo tanto emseu objeto quanto em sua essncia'; de que deve partir de todos, para aplicar-se a todos; e de queperde sua retido natural quando tende a algum objeto individual e determinado, porque ento,julgando aquilo que nos estranho, no temos a guiar-nos nenhum verdadeiro princpio de eqidade.

    Com efeito, desde que se trata de um fato ou de um direito particular sobre um ponto queno foi regulamentado por uma conveno geral e anterior, o caso torna-se contencioso. umprocesso em que os particulares interessados representam uma das partes e o pblico a outra, masno qual no vejo nem a lei que deve ser observada, nem o juiz que deve pronunciar-se. Seria ridculo,

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    ento, querer recorrer a uma deciso expressa da vontade geral, que no pode ser seno aconcluso de uma das partes e que, por conseqncia, no passa, para a outra, de uma vontadeestranha, particular, nessa ocasio induzida injustia e sujeita ao erro. Assim, do mesmo modo queuma vontade particular no pode representar a vontade geral, esta, por sua vez, muda de naturezaao ter um objeto particular e no pode, como geral, pronunciar-se nem sobre um homem nem sobreum fato. Quando o povo de Atenas, por exemplo, nomeava ou destitua seus chefes, concedia

    honrarias a um, impunha castigos a outro e, por um sem-nmero de decretos particulares, exerciaindistintamente todos os atos do governo, o povo no tinha mais vontade geral propriamente dita; jno agia como soberano, mas como magistrado. Isso parecer contrrio s idias comuns, masdem-me tempo para expor as minhas.

    Deve-se compreender, nesse sentido, que o que generaliza a vontade menos o nmero devotos que o interesse comum que os une, pois, nessa instituio, cada qual se submetenecessariamente s condies que impe aos demais: admirvel acordo entre o interesse e a justia,que d s deliberaes comuns um carter de eqidade que vemos desaparecer na discusso dequalquer negcio particular, pela falta de um interesse comum que una e identifique a regra do juizcom a da parte.

    Qualquer que seja a via pela qual se remonte ao princpio, chega-se sempre mesmaconcluso, a saber: o pacto social estabelece tal igualdade entre os cidados que todos eles se

    comprometem sob as mesmas condies e devem gozar dos mesmos direitos. Assim, pela naturezado pacto, todo ato de soberania, isto , todo ato autntico da vontade geral, obriga ou favoreceigualmente todos os cidados, de sorte que o soberano conhece somente o corpo da nao e nodistingue nenhum daqueles que a compem. Que , pois, propriamente, um ato de soberania? No uma conveno do superior com o inferior, mas uma conveno do corpo com cada um de seusmembros: Conveno legtima porque tem como base o contrato social, eqitativa porque comum atodos, til porque no pode ter outro objeto seno o bem geral, e slida porque tem por garantia afora pblica e o poder supremo. Enquanto os sditos s estiverem submetidos a tais convenes,no obedecem a ningum, mas apenas a sua prpria vontade; e perguntar at onde se estendem osrespectivos direitos do soberano e dos cidados perguntar at que ponto estes podemcomprometer-se consigo mesmos, cada um com todos e todos com cada um.

    V-se, assim, que o poder soberano, por mais absoluto, sagrado e inviolvel que seja, no

    ultrapassa nem pode ultrapassar os limites das convenes gerais, e que qualquer homem podedispor plenamente do que lhe foi deixado, por essas convenes, de seus bens e de sua liberdade; demodo que o soberano nunca tem o direito de onerar mais a um sdito que a outro, porque ento,tornando-se a questo particular, seu poder j no competente.

    Uma vez admitidas essas distines, to falso que no contrato social haja por parte dosparticulares qualquer verdadeira renncia, que sua situao, por efeito desse contrato, vem a serrealmente prefervel que havia antes dele, e, em vez de uma alienao, no fizeram seno umatroca vantajosa de um modo de ser incerto e precrio por um outro melhor e mais seguro, daindependncia natural pela liberdade, do poder de prejudicar a outrem pela prpria segurana, e desua fora, que outras podiam superar, por um direito que a unio social torna invencvel. A prpriavida, que devotaram ao Estado, por este continuamente protegida e, quando a expem para suadefesa, que fazem seno retribuir-lhe o que dele receberam? Que fazem que no fariam mais

    amide e com maior perigo no estado de natureza, quando, travando combates inevitveis,defenderiam com o risco da prpria vida aquilo que lhes serve para conserv-la? Todos tm decombater pela ptria quando necessrio, verdade; mas tambm ningum ter jamais que combaterpor si mesmo. No que respeita nossa segurana, no ganhamos ainda em correr uma parte dosriscos que precisaramos correr por ns mesmos to logo ela nos fosse retirada?

    CAPTULO V

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    Do Direito de Vida e de Morte

    Pergunta-se como os particulares, no tendo o direito de dispor de sua prpria vida, podemtransmitir ao soberano esse mesmo direito que no tm. A questo s parece difcil de resolver

    porque est mal colocada. Qualquer homem tem o direito de arriscar sua prpria vida paraconserv-la. Acaso j se disse que aquele que se lana por uma janela para escapar a um incndioseja culpado de suicdio? Acaso j se atribuiu tal crime quele que perece numa tempestade cujoperigo no ignorava ao embarcar?

    O tratado social tem por finalidade a conservao dos contratantes. Quem deseja os finsdeseja tambm os meios, e esses meios so inseparveis de certos riscos, e at de certas perdas.Quem deseja conservar sua vida a expensas dos outros tambm deve d-Ia por eles quandonecessrio. Ora, o cidado j no juiz do perigo ao qual a lei quer que ele se exponha, e, quando oprncipe" lhe diz: " til ao Estado que morras", deve morrer, pois foi somente graas a essacondio que at ento viveu em segurana e que sua vida j no apenas uma ddiva da natureza,mas um dom condicional do Estado.

    A pena de morte infligida aos criminosos pode ser encarada, de certo modo, sob o mesmo

    ponto de vista: para no ser a vtima de um assassino que algum consente em morrer, caso setorne assassino. Nesse tratado, longe de dispor de sua prpria vida, s se pensa em garanti-la, e no de presumir-se que, por isso, qualquer dos contratantes premedite fazer-se enforcar.

    Ademais, qualquer malfeitor, atacando o direito social, torna-se por seus crimes rebelde etraidor da ptria, deixa de ser um de seus membros ao violar suas leis e at lhe faz a guerra. Ento,a conservao do Estado incompatvel com a sua, sendo necessrio que um deles perea, e,quando se faz morrer o culpado, menos como cidado que como inimigo. Os processos e ojulgamento so as provas e a declarao de que ele rompeu o tratado social e, por conseguinte, deque j no membro do Estado. Ora, como ele se reconheceu tal, ao menos por sua residncia,deve ser afastado pelo exlio como infrator do pacto, ou pela morte como inimigo pblico; pois talinimigo no uma pessoa moral, um homem, e ento o direito da guerra o de matar o vencido.

    Mas, objetar algum, a condenao de um criminoso um ato particular. De acordo; por

    isso essa condenao no pertence ao soberano - um direito que ele pode conferir sem poder eleprprio exerc-lo. Todas as minhas idias so coesas, mas no posso exp-las todas ao mesmotempo.

    De resto, a freqncia dos suplcios sempre um sinal de fraqueza ou de preguia nogoverno. No h malvado que no se possa tornar bom para algo. No se tem o direito de matar,mesmo para servir de exemplo, salvo aquele que no se pode conservar sem perigo.

    Quanto ao direito de perdo, ou de isentar um culpado da pena imposta pela lei epronunciada pelo juiz, este direito no pertence seno quele que est acima do juiz e da lei, a saber,o soberano. Ainda assim, seu direito no est bem definido, e os casos de aplic-lo so muito raros.Num Estado bem governado poucas so as punies, no porque se concedem muitos indultos, masporque h poucos criminosos: a abundncia de crimes assegura sua impunidade quando o Estadodecai. Sob a Repblica romana, nunca o Senado nem os cnsules tentaram conceder indulto; nem

    sequer o povo o concedia, embora s vezes revogasse seu prprio juzo. Os indultos constantesanunciam que logo os delitos se tornaro impunes, e todos sabem aonde isso leva. Mas sinto quemeu corao murmura e detm minha pena. Deixemos a discusso destas questes para o homemjusto que nunca incorreu em falta e que jamais necessitou de indulto.

    CAPTULO VI

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    Da Lei

    Pelo pacto social demos existncia e vida ao corpo poltico. Trata-se agora de dar-lhe omovimento e a vontade pela legislao. Pois o ato primitivo, pelo qual esse corpo se forma e se une,

    nada determina ainda daquilo que lhe cumpre fazer para conservar-se.O que bom e conforme ordem o pela natureza das coisas e independente dasconvenes humanas. Toda justia provm de Deus, s ele a sua fonte; mas, se soubssemosreceb-la de to alto, no necessitaramos nem de governo nem de leis. H, por certo, uma justiauniversal que emana unicamente da razo, porm essa justia, para ser admitida entre ns, precisaser recproca. Se consideramos humanamente as coisas, desprovidas de sano natural, as leis dajustia so vs entre os homens. Produzem somente o bem do malvado e o mal do justo, quando esteas observa para com todos sem que ningum as observe para com ele. Por conseguinte, tornam-senecessrias convenes e leis para unir os direitos aos deveres e conduzir a justia ao seu fim. Noestado de natureza, em que tudo comum, nada devo queles a quem nada prometi, e noreconheo como de outrem seno o que me intil. O mesmo no se passa no estado civil, no qualtodos os direitos so estabelecidos pela lei.

    Mas que , afinal, uma lei? Enquanto nos contentarmos em ligar a essa palavra apenasidias metafsicas, continuaremos a raciocinar sem chegarmos a um acordo, e quando dissermos oque uma lei da natureza no saberemos melhor o que uma lei do Estado .

    J disse que no existe vontade geral acerca de um objeto particular. Esse objeto particular,com efeito, ou est no Estado ou fora dele. Se est fora do Estado, uma vontade que lhe estranhano geral em relao a ele; se est no Estado, faz parte dele. Forma-se, ento, entre o todo e suaparte, uma relao que os converte em dois seres separados, um dos quais a parte e o outro o todomenos essa parte. Porm, o todo menos uma parte no o todo, e enquanto subsistir essa relaono existe o todo, seno duas partes desiguais; donde se segue que a vontade de uma no geralem relao outra.

    Todavia, quando todo o povo estatui sobre todo o povo, no considera seno a si mesmo, enesse caso, se h uma relao, entre o objeto inteiro sob um ponto de vista e o objeto inteiro sob

    um outro ponto de vista, sem nenhuma diviso do todo. Ento a matria sobre a qual se estatui togeral quanto a vontade que estatui. a esse ato que chamo uma lei.Quando afirmo que o objeto das leis sempre geral, entendo que a lei considera os sditos

    coletivamente e as ales como abstratas, nunca um homem como indivduo nem uma aoparticular. Assim, a lei pode perfeitamente estatuir que haver privilgios, mas no pode conced-losnomeadamente a ningum. Pode criar diversas classes de cidados, e at especificar as qualidadesque daro direito a essas classes, porm no pode nomear os que nela sero admitidos. Podeestabelecer um governo real e uma sucesso hereditria, mas no pode eleger um rei nem nomearuma famlia real; numa palavra, toda funo que se refere a um objeto individual no est no mbitodo poder legislativo.

    Partindo dessa idia, v-se com clareza que j no preciso perguntar a quem competefazer as leis, visto serem atos da vontade geral, nem se o Prncipe est acima da lei, visto ser

    membro do Estado, nem se a lei pode ser injusta, porquanto ningum injusto para consigo mesmo,nem como se livre e ao mesmo tempo submisso s leis, j que estas so meras expresses denossa vontade.

    V-se, ademais, que, reunindo a lei a universalidade da vontade e a do objeto, o que umhomem, seja ele quem for, ordena por si mesmo no uma lei. O que ordena o soberano sobre umobjeto particular no , tampouco, uma lei, mas um decreto, nem um ato de soberania, mas demagistratura.

    Chamo, pois, Repblica a todo Estado regido por leis, qualquer que seja a sua forma deadministrao, porque s ento o interesse pblico governa e a coisa pblica significa algo. Todo

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    governo legtimo republicano: mais adiante explicarei o que governo.As leis no so, em verdade, seno as condies da associao civil.- O , povo submetido s

    leis deve ser o -autor delas; somente aos que se associam compete regulamentar as condies dasociedade. Mas como as regulamentaro? De comum acordo ou por sbita inspirao? O corpopoltico dispe de um rgo para enunciar essas vontades? Quem lhe dar a previdncia necessriapara formar-lhe os atos e public-los com antecipao, ou como os pronunciar no momento da

    necessidade? Como uma multido cega que muitas vezes no sabe o que quer, porque raramentesabe o que lhe convm, levar a bom termo uma empresa to grande e difcil como o um sistemade legislao? O povo, por si, quer sempre o bem, mas nem sempre o reconhece por si s. Avontade geral sempre reta, mas o julgamento que a guia nem sempre esclarecido. necessriofazer com que veja os objetos tais como so, s vezes tais como lhe devem parecer, mostrar-lhe obom caminho que procura, preserv-la da seduo das vontades particulares, relacionar aos seusolhos os lugares e os tempos, contrabalanar o atrativo das vantagens presentes e sensveis peloperigo dos males distantes e ocultos. Os particulares vem o bem que rejeitam, o pblico quer o bemque no v. Todos necessitam igualmente de guias. preciso obrigar uns a conformar suasvontades razo e ensinar o outro a conhecer o que deseja. Ento das luzes pblicas resulta a uniodo entendimento e da vontade no corpo social, da o exato concurso das partes e, enfim, a maiorfora do todo. Eis de onde nasce a necessidade de um legislador.

    CAPTULO VII

    Do Legislador

    Para descobrir as melhores regras de sociedade que convm s naes, seria necessriauma inteligncia superior, que visse todas as paixes dos homens e no experimentasse nenhuma,que no tivesse relao alguma com nossa natureza e a conhecesse a fundo, cuja felicidade fosseindependente de ns e, no entanto, admitisse ocupar-se da nossa; e que, enfim, no transcurso dotempo, contentando-se com uma glria longnqua, pudesse trabalhar num sculo e usufruir emoutro*. -Haveria necessidade de deuses para dar leis aos homens..

    O mesmo raciocnio que fazia Calgula quanto ao fato, fazia-o Plato quanto ao direito paradefinir o homem civil ou real, que ele procura em seu livro do reino, mas, se verdade que umgrande prncipe um homem raro, que dizer de um grande legislador? Ao primeiro basta seguir omodelo que o segundo deve propor. Este o mecnico que inventa a mquina, aquele no passa dooperrio que a monta e a faz funcionar. Na origem das sociedades, diz Montesquieu, so os chefesdas repblicas que fazem a instituiro e em seguida a instituio que forma os chefes dasrepblicas".

    Quem ousa empreender a instituio de um povo deve sentir-se capaz de mudar, por assimdizer, a natureza humana; de transformar cada indivduo que, por si mesmo, um todo perfeito esolidrio em parte de um todo maior, do qual esse indivduo recebe, de certa forma, sua vida e seuser; de alterar a constituio do homem para fortalec-la; de substituir por uma existncia parcial emoral a existncia fsica e independente que todos reebemos da natureza. Deve, numa palavra,arrebatar ao homem suas prprias foras para lhe dar outras que lhe sejam estranhas e das quaisno possa fazer uso sem o auxlio de outrem. Quanto mais mortas e aniquiladas so as forasnaturais, mais as adquiridas so grandes e duradouras, e na mesma proporo a instituio slida eperfeita. De sorte que, quando cada cidado nada e nada pode seno com todos os outros, equando a fora adquirida pelo todo igual ou superior soma das foras naturais de todos osindivduos, pode dizer-se que a legislao est no mais alto grau de perfeio a que pode chegar.

    O legislador , sob todos os pontos de vista, um homem extraordinrio no Estado. Se o por

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    seu gnio, no o menos por seu cargo. No se trata de magistratura, nem de soberania. Essecargo, que constitui a Repblica, no entra em sua constituio. uma funo particular e superiorque nada tem em comum com o imprio humano, porque, se aquele que manda nos homens nodeve mandar nas leis, aquele que manda nas leis no deve tampouco mandar nos homens; docontrrio suas

    leis, ministros de suas paixes, nada mais fariam, muitas vezes, do que perpetuar suas

    injustias, e ele nunca poderia evitar que opinies particulares alterassem a santidade de sua obra.Quando Licurgo deu leis sua ptria, comeou abdicando a realeza. Era costume damaioria das cidades gregas confiar aos estrangeiros o estabelecimento de suas leis. As Repblicasmodernas da Itlia imitaram freqentemente esse costume; a de Genebra fez o mesmo com bonsresultados. Roma, em seu fastgio, viu renascer em seu meio todos os crimes da tirania e viu-seprestes a perecer por ter reunido nas mesmas cabeas a autoridade legislativa e o poder soberano.

    No entanto, os prprios decnviros no se arrogaram jamais o direito de promulgar uma leiemanada apenas de sua autoridade. "Nada do que propomos", diziam ao povo, "pode transformar-seem lei sem o vosso consentimento. Romanos, sede vs mesmos os autores dasleis que devem fazervossa felicidade.

    Aquele que redige as leis no tem, portanto, ou nodeve ter nenhum direito legislativo, e nemo prprio povo pode, quando o quiser, despojar-se desse direito intransfervel porque, segundo o

    pacto fundamental, somente a vontade geral obriga os particulares, e s se pode assegurar que umavontade particular est de acordo com a vonfade geral depois de submet-la aos sufrgios livres dopovo. J disse isso, mas no intil repeti-lo.

    Assim, encontram-se simultaneamente na obra da legislao duas coisas que parecemincompatveis: uma empresa acima da fora humana e, para execut-la, uma autoridadeinsignificante.

    Outra dificuldade merece ateno. Os sbios que desejam falar sua linguagem ao vulgo noseriam compreendidos. Ora, h mil tipos de idias impossveis de traduzir lngua do povo. Osaspectos muito genricos e os objetos por demais afastados esto igualmente fora de seu alcance;cada indivduo, no experimentando outro plano de governo afora aquele que se refere ao seuinteresse particular, tem dificuldade em perceber as vantagens que deve tirar das privaescontnuas impostas pelas boas leis. Para que um povo nascente experimentasse as mximas ss da

    poltica e seguisse as regras fundamentais da razo de Estado, seria necessrio que o efeito seconvertesse na causa, que o esprito social que deve ser a obra da instituio presidisse prpriainstituio, e que os homens fossem antes das leis o que deveriam tornar-se por elas. Assim, pois,no podendo o legislador empregar nem a fora nem o raciocnio, precisa recorrer a uma autoridadede outra ordem, capaz de conduzir sem violncia e persuadir sem convencer.

    Eis o que obrigou, em todos os tempos, os pais das naes a recorrerem intervenoceleste e a honrar os deuses por sua prpria sabedoria, a fim de que os povos, submetidos s leis doEstado como s da natureza, e reconhecendo o mesmo poder na formao do homem e na dacidade, obedeam com liberdade e aceitem docilmente o jugo da felicidade pblica.

    Essa razo sublime, que se eleva acima do entendimento dos homens vulgares, aquela pelaqual o legislador pe as decises na boca dos imortais, para conduzir, atravs da autoridade divina,os que no seriam abalados pela prudncia humana. Mas nem a todo homem dado fazer os deuses

    falarem, nem ser acreditado quando se anuncia como intrprete deles. A elevao de esprito dolegislador o verdadeiro milagre que deve provar sua misso. Todo homem pode gravar tbuas depedra, ou comprar um orculo, ou simular um secreto comrcio com alguma divindade, ou adestrarum pssaro para falar-lhe ao ouvido, ou encontrar outros meios grosseiros para imporse ao povo.Quem no souber mais que isso poder at reunir ocasionalmente um bando de insensatos, masnunca haver de fundar um imprio, e logo sua extravagante obra perecer com ele. Vos prestgiosformam um vnculo passageiro, s a sabedoria pode torn-lo duradouro. A lei judaica sempresubsistente, a do filho de Ismael que h dez sculos vem regendo metade do mundo revelam aindahoje os grandes homens que as ditaram; e, enquanto a orgulhosa filosofia ou o cego esprito de

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    partido no v neles seno felizes impostores, o verdadeiro poltico admira em suas instituies ogrande e poderoso gnio que preside aos estabelecimentos duradouros.

    No se conclua, de tudo isso, como Warburton, que a poltica e a religio tenham entre nsum objeto comum, mas sim que, na origem das naes, uma serve de instrumento para a outra.

    CAPTULO VIII

    Do Povo

    Assim como o arquiteto, antes de construir um grande edifcio, sonda e examina o solo paraver se este pode sustentar o peso, o sbio instituidor no comea redigindo leis boas em si mesmas,mas verifica antes se o povo, ao qual so destinadas, est apto a suport-las. Foi por isso que Platorecusou dar leis aos rcades e aos cirenaicos, sabendo que esses dois povos eram ricos e nopodiam admitir a igualdade; foi por isso que se viram em Creta boas leis e homens perversos, porqueMinos s havia disciplinado um povo carregado de vcios.

    Brilharam sobre a Terra milhares de naes que nunca teriam podido suportar boas leis, emesmo as que teriam admitido duraram apenas um breve lapso de tempo para isso. Os povos, assimcomo os homens", s so dceis na juventude; ao envelhecer, tornam-se incorrigveis; uma vezestabelecidos os costumes e enraizados os preconceitos, empresa v e arriscada pretenderreformlos; o povo no pode sequer admitir que se toque em seus males para destru-los, comoesses doentes estpidos e pusilnimes que tremem simples presena do mdico.

    No quer isto dizer que, assim como certas doenas transtornam o juzo dos homens e lhestiram a lembrana do passado, no haja s vezes, na durao dos Estados, pocas violentas em queas revolues ocasionam no povo o mesmo que certas crises provocam nos indivduos, em que ohorror do passado ocupa o lugar do esquecimento e o Estado, incendiado pelas guerras civis,renasce por assim dizer de suas prprias cinzas e retoma o vigor da juventude, emergindo dosbraos da morte. Assim foi Esparta no tempo de Licurgo, assim foi Roma depois dos Tarqnios; eassim foram, entre ns, a Holanda e a Sua aps a expulso dos tiranos.

    Mas tais acontecimentos so raros; formam excees cujo motivo se acha sempre naconstituio particular do Estado que apresenta a exceo. Nem poderiam ocorrer duas vezes a ummesmo povo, porque ele pode tornarse livre enquanto apenas brbaro, mas no quando o aparelhocivil est gasto Ento, as agitaes podem destru-lo sem que as revolues sejam capazes derestabelec-lo; e, to logo seus grilhes se partem, o povo se dispersa e deixa de existir. Da pordiante, passa a necessitar de um senhor, e no de um libertador. Povos livres, lembrai-vos destamxima: pode-se conquistar a liberdade; nunca, porm, recuper-la.

    H para as naes, assim como para os homens, um tempo de maturidade que precisoaguardar antes de submet-las s leis; mas a maturidade de um povo nem sempre fcil dereconhecer, e, se for antecipada, a obra aborta. Tal povo disciplinveis ao nascer, outro no o serao cabo de dez sculos. Os russos no sero jamais verdadeiramente policiados, porque o foramcedo demais. Pedro tinha o talento imitativo, no o verdadeiro gnio, aquele que cria e faz tudo denada. Algumas coisas que fez foram boas, a maioria inoportuna. Viu que seu povo era brbaro, masno viu que no estava maduro para o policiamento; quis civiliz-lo quando s devia torn-loaguerrido. Quis, de incio, fazer alemes e ingleses, quando devia comear fazendo russos; impediuseus sditos de jamais se tornarem o que poderiam ser, persuadindo-os de que eram o que no so.Assim que um preceptor francs educa seu pupilo para brilhar por um momento durante suainfncia para, depois, no ser jamais ningum. O Imprio da Rssia poder querer subjugar aEuropa, mas ser ele prprio subjugado. Os trtaros, seus sditos ou seus vizinhos, se converteroem seus senhores e nos nossos. Essa revoluo parece-me infalvel. Todos os reis da Europa

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    trabalham de comum acordo para aceler-la.

    CAPTULO IX

    Continuao

    Assim como a natureza estabeleceu limites estatura de um homem bem-conformado, almdos quais s produz gigantes ou anes, fez o mesmo, com referncia melhor constituio de umEstado, limitando-lhe a extenso a fim de que no seja nem muito grande para poder ser bemgovernado, nem muito pequeno para poder se manter por si mesmo. H em todo corpo poltico ummximo de fora que ele no poderia ultrapassar, e do qual com freqncia se afasta medida quecresce. Quanto mais se estende o vnculo social, tanto mais se afrouxa, e em geral um pequenoEstado proporcionalmente mais forte que um grande.

    Mil razes demonstram essa mxima. Em primeiro lugar, a administrao torna-se maispenosa nas grandes distncias, assim como um peso se torna mais pesado na ponta de uma alavancamaior. Torna-se tambm mais onerosa medida que os escales se multiplicam; pois cada cidadetem, a princpio, a sua administrao, que o povo paga; cada distrito tem a sua, paga ainda pelo povo;em seguida cada provncia, depois os grandes governos, as satrapias, os vice-reinos, que se devepagar cada vez mais caro, medida que se sobe, e sempre custa do desditoso povo; vem, por fim,a administrao suprema, que tudo esmaga. Tantas sobrecargas exaurem continuamente os sditosque, longe de serem mais bem governados por essas diferentes ordens, o so menos do que sehouvesse apenas uma acima deles. Entretanto, mal restam recursos para os casos extraordinrios; e,quando preciso recorrer a eles, o Estado sempre se encontra beira da runa.

    E no tudo; no somente o governo tem menos vigor e rapidez para fazer observar as leis,impedir as vexaes, corrigir os abusos, prevenir as empresas sediciosas que possam ocorrer noslugares distantes, como tambm o povo tem menos afeio aos chefes, a quem nunca v, ptria,que aos seus olhos como o mundo, e aos concidados, cuja maioria lhe estranha. As mesmas leisno podem convir igualmente a tantas provncias diversas, com costumes diferentes e climasopostos, e que no podem admitir a mesma forma de governo. Leis diferentes s geram perturbaoe confuso entre povos que, vivendo sob a direo dos mesmos chefes, e em comunicao contnua,transitam de um lugar para outro ou se casam uns com os outros e, submetidos a outros costumes,nunca sabem se seu patrimnio realmente lhes pertence. Os talentos permanecem ocultos, asvirtudes ignoradas, os vcios impunes, nessa multido de homens desconhecidos uns aos outros, quea sede da administrao suprema rene num mesmo lugar. Os chefes, sobrecarregados de afazeres,nada vem por si mesmos; funcionrios governam o Estado. Enfim, as medidas necessrias manuteno da autoridade geral, qual tantos funcionrios afastados querem subtrair-se, ou mesmoludibriar, absorvem todos os cuidados pblicos; e nada mais resta para a felicidade do povo, salvo oindispensvel sua defesa, e assim que um corpo grande demais para sua constituio definha eperece, esmagado debaixo de seu prprio peso.

    Por outro lado, deve o Estado assegurar-se uma certa base para ter solidez, para resistir aosabalos que no deixar de experimentar e aos esforos que ser obrigado a fazer para se manter;pois todos os povos tm uma espcie de fora centrfuga, pela qual atuam continuamente uns contraos outros e tendem a expandir-se a expensas de seus vizinhos, como os turbilhes de Descartes'.Assim, os fracos correm o risco de ser engolidos, e nenhum pode conservar-se a no sercolocando-se, em relao aos demais, numa espcie de equilbrio, que em toda parte torna acompresso mais ou menos igual.

    V-se por a haver razes para expandir-se e razes para encolher-se, e no o menoraspecto do talento do poltico encontrar, entre umas e outras, a proporo mais vantajosa para a

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    conservao do Estado. Pode-se dizer, de um modo geral, que as primeiras, sendo apenas exteriorese relativas, devem ser subordinadas s outras, que so internas e absolutas; uma constituio s eforte a primeira coisa a procurar, e deve-se contar mais com o vigor nascido de um bom governoque com os recursos fornecidos por um grande territrio.

    De resto, viram-se Estados de tal modo constitudos que a necessidade das conquistas faziaparte de sua prpria constituio, e que, para se manter, eram forados a expandir-se sem cessar.

    Talvez muitos deles se felicitassem por essa feliz necessidade, que no obstante lhes mostrava, como termo de sua grandeza, o inevitvel momento de sua queda.

    CAPTULO X

    Continuao

    Pode-se medir um corpo poltico de duas maneiras, a saber: pela extenso do territrio epelo nmero da populao; e, entre uma e outra dessas medidas, h uma relao conveniente paradar ao Estado sua verdadeira grandeza. So os homens que fazem o Estado, e o terreno quealimenta os homens; essa relao consiste, pois, em que a terra baste para a manuteno de seushabitantes e haja tantos habitantes quantos a terra pode alimentar. nesta proporo que se acha omximo de fora de um dado nmero de populao; porque, se houver terreno em demasia, suaguarda onerosa, a cultura insuficiente, o produto suprfluo; e ser a causa prxima de guerrasdefensivas; se no houver terreno suficiente, o Estado se ver, para o suprir, entregue merc deseus vizinhos; e ser a causa prxima de guerras ofensivas. Todo povo que, por sua posio, s tema alternativa entre o comrcio ou a guerra fraco em si mesmo; depende de seus vizinhos, dependedos acontecimentos; jamais ter seno uma existncia incerta e breve. Subjuga e muda de situao,ou subjugado e no ser coisa alguma. S pode conservar-se livre fora de sua pequenez ou desua grandeza.

    No possvel calcular uma relao fixa entre a extenso de terra e o nmero de homensque se bastem um ao outro, no s por causa das diferenas existentes nas qualidades do terreno,em seus graus de fertilidade, na natureza de suas produes, na influncia dos climas, como poraquelas que se notam nos temperamentos dos homens que os habitam, uns consumindo pouco numpas frtil, outros muito num solo ingrato. Cumpre ainda considerar a maior ou menor fecundidadedas mulheres, o que o pas pode ter de mais ou menos favorvel populao, a quantidade com aqual o legislador pode esperar a concorrer por seus estabelecimentos, de sorte que no deve basearseu julgamento no que v, mas no que prev, nem se deter no estado atual da populao, mas no queela vir naturalmente a ser. Finalmente, existem mil ocasies em que os acidentes particulares dolugar exigem ou permitem que se abarque mais terreno do que parece necessrio. Assim aexpanso ser grande num pas montanhoso, onde as produes naturais, isto , os bosques, aspastagens, requerem menos trabalho, onde a experincia ensina que as mulheres so mais fecundasque nas plancies e onde um grande solo inclinado no fornece mais que uma pequena basehorizontal, a nica com que se pode contar para a vegetao. Ao contrrio, podemos comprimir-nosna orla do mar, mesmo em rochedos e areias quase estreis; porque a pesca a pode suprir emgrande parte as produes da terra, e os homens devem permanecer mais unidos para repelir ospiratas, e porque, de resto, mais fcil desembaraar o pas, por meio de colnias, dos habitantesque o sobrecarregam.

    A essas condies, para instituir um povo, necessrio acrescentar uma que no podesuprir nenhuma outra, mas sem a qual todas se revelam inteis: a de que se goze da abundncia dapaz, porque o tempo durante o qual se ordena um Estado , como aquele em que se forma umbatalho, o instante em que o corpo menos capaz de resistncia e mais fcil de destruir.

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    Resistir-se-ia melhor numa desordem absoluta que num momento de fermentao, quando cada qualse ocupa de sua classe e no do perigo. Se uma guerra, uma fome, uma sedio sobrevm nessetempo de crise, o Estado infalivelmente derrubado.

    Isto no significa que no haja muitos governos estabelecidos durante essas tempestades,mas ento so esses mesmos governos que destroem o Estado. Os usurpadores precipitam ouescolhem sempre esses tempos de perturbaes para promulgar, graas ao terror pblico, leis

    destrutivas que o povo jamais adotaria em situao normal. A escolha do momento da instituio um dos caracteres mais seguros pelos quais se pode distinguir a obra do legislador da obra do tirano.Que povo ,, pois, apropriado para a legislao? Aquele que, achando-se j ligado por algum

    vnculo de origem, de interesse ou de conveno,, no tenha ainda suportado o verdadeiro jugo dasleis; aquele que no tem costumes nem supersties bem arraigados; aquele que no teme seresmagado por uma invaso sbita e que, sem entrar nas querelas de seus vizinhos, pode resistirsozinho a cada um deles ou obter a ajuda de um para repelir o outro; aquele em que cada membropode ser conhecido de todos e no qual no se obrigado a fazer um homem carregar um fardo queno pode suportar; aquele que pode dispensar, os outros povos, e estes possam passar sem ele;aquele que no rico nem pobre e pode bastar-se a si mesmo; aquele, enfim, que rene aconsistncia de um povo antigo docilidade de um povo modemo. O que torna penosa a obra dalegislao no tanto o que cumpre estabelecer como o que cumpre destruir; e o que torna o

    sucesso to raro a impossibilidade de encontrar a simplicidade da natureza junto com asnecessidades da sociedade. Todas essas condies, verdade, dificilmente se acham reunidas. Eispor que se vem poucos Estados bem constitudos.

    Existe ainda na Europa um pas capaz de legislao: a ilha da Crsega. O valor e aconstncia com que esse bravo povo soube reconquistar e defender sua liberdade bem merecemque algum sbio lhe ensine a conserv-la. Tenho certo pressentimento de que um dia essa pequenailha haver de assombrar a Europa.

    CAPTULO XI

    Dos Diversos Sistemas de Legislao

    Se indagarmos em que consiste precisamente o maior de todos os bens, que deve ser o fimde qualquer sistema de legislao, chegaremos concluso de que ele se reduz a estes doisobjetivos principais:- liberdade e a igualdade. A liberdade, porque toda dependncia particular igualmente fora tirada ao corpo do Estado; a igualdade, porque a liberdade no pode subsistir semela.

    J disse o que a liberdade civil; a respeito da igualdade, no se deve entender por essapalavra que os graus de poder e riqueza sejam absolutamente os mesmos, mas sim que, quanto aopoder, ela esteja acima de qualquer violncia e nunca se exera seno em virtude da classe e dasleis, e, quanto riqueza, que nenhum cidado seja assaz opulento para poder comprar o outro, enenhum assaz pobre para ser obrigado a vender-se. O que supe, da parte dos grandes, moderaode bens e de crdito, e, da parte dos pequenos, moderao de avareza e de cobia.

    Essa igualdade, dizem, uma quimera especulativa que no pode existir na prtica. Mas, seo abuso inevitvel, segue-se que no se deva pelo menos regulament-lo? exatamente porque afora das coisas tende sempre a destruir a igualdade que a fora da legislao deve semprepropender a mant-la.

    Mas os objetivos gerais de toda boa instituio devem ser modificados em cada pas pelasrelaes que nascem tanto da situao local como do carter dos habitantes, e com base nessasrelaes que importa destinar a cada povo um sistema particular de instituio que seja o melhor,

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    no talvez em si mesmo, mas sim para o Estado ao qual se destina. Por exemplo, o solo ingrato eestril, ou o pas excessivamente exguo para os habitantes? Voltai-vos para a indstria e as artes,cujas produes trocareis pelos gneros que vos faltam. Viveis, ao contrrio, em ricas plancies eencostas frteis? Num bom terreno, faltam-vos habitantes? Dedicai todos os vossos cuidados agricultura, que multiplica os homens, e esquecei as artes, que s acabariam despovoando o pas,amontoando em alguns pontos do territrio os poucos habitantes que possui. Viveis em costas

    extensas e cmodas? Juncai o mar de navios, cultivai o comrcio e a navegao; tereis umaexistncia brilhante e fcil. O mar em vossos litorais no banha seno rochedos quase inacessveis?Permanecei brbaros e ictifagos"; vivereis mais tranqilos, talvez melhor, e seguramente maisfelizes. Numa palavra, alm das mximas comuns a todos, cada povo encerra em si alguma causaque os ordena de maneira particular e torna sua legislao apropriada unicamente a ele. Foi por issoque os hebreus outrora, e recentemente os rabes, tiveram como principal objeto a religio, osatenienses as letras, Cartago e Tiro o comrcio, Rodes a marinha, Esparta a guerra e Roma avirtude. O autor de O esprito das leis demonstrou com muitos exemplos com que arte o legisladordirige a instituiro para cada um de seus objetos.

    O que torna a constituio de um Estado verdadeiramente slida e duradoura o fato de asconvenincias serem de tal forma observadas que as relaes naturais e as leis esto sempre deacordo nos mesmos pontos, e estas ltimas no fazem, por assim dizer, seno assegurar,

    acompanhar e retificar as outras. Mas, se o legislador, enganando-se em seu objeto, tomar umprincpio diferente daquele que nasce da natureza das coisas, um tendendo para a servido e o outropara a liberdade, um para as riquezas e o outro para a populao, um para a paz e outro para asconquistas, veremos as leis se enfraquecerem gradualmente, a constituio se alterar, e o Estadono deixar de agitar-se at ser destrudo ou mudado e a invencvel natureza recuperar o seuimprio.

    CAPTULO XII

    Diviso das Leis

    Para ordenar o todo ou dar a melhor forma possvel coisa pblica, h que considerardiversas relaes. Primeiramente, a ao do corpo inteiro atuando sobre si mesmo, isto , a relaodo todo com o todo, ou do soberano com o Estado, e essa relao composta da relao dos termosintermedirios, como veremos mais adiante.

    As leis que regulam essa relao so denominadas leis polticas; chamam-se tambm leisfundamentais, no sem alguma razo, se forem sbias. Porque, se no h,. em cada Estado, senouma boa maneira de orden-lo, o povo que a encontrou deve conserv-la; mas, se a ordemestabelecida m, por que tomar por fundamentais leis que a impedem de ser boa? Alis, emqualquer situao, um povo sempre senhor de mudar suas leis, mesmo as melhores, pois, se lheagrada fazer mal a si mesmo, quem ter o direito de impedi-lo?

    A segunda relao a dos membros entre si ou com o corpo todo, e essa relao deve serno primeiro caso to pequena e no segundo to grande quanto possvel, de sorte que cada cidadoesteja em perfeita independncia de todos os outros e em excessiva dependncia da Cidade; o quese consegue sempre pelos mesmos meios, pois s a fora do Estado faz a liberdade de seusmembros. dessa segunda relao que se originam as leis civis.

    Pode-se considerar uma terceira espcie de relao entre o homem e a lei, a saber, a dadesobedincia penalidade, dando lugar ao estabelecimento das leis criminais, que no fundo somenos uma espcie particular de leis que a sano de todas as outras.

    A essas trs espcies de leis, junta-se uma quarta, a mais importante de todas, que no segrava nem no mrmore nem no bronze, porm nos coraes dos cidados; que faz a verdadeira

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    constituio do Estado; que ganha todos os dias novas foras; que, quando as outras leis envelhecemou se extinguem, as reanima ou supre, conserva um povo no esprito de sua instituio e substituigradualmente a fora da autoridade pela do hbito. Refiro-me aos usos, aos costumes e sobretudo opinio, parte desconhecida de nossos polticos, mas da qual depende o sucesso de todas as demais;parte de que o grande legislador se ocupa em segredo, enquanto parece limitar-se a regulamentosparticulares que no passam do cimbre da abbada, da qual os costumes, mais lentos para nascer,

    formam enfim a chave inabalvel.Entre essas diversas classes, as leis polticas, que constituem a forma do governo, so asnicas ligadas ao meu assunto.

    LIVRO III

    Antes de falar de diversas formas de gorverno, procuremos fixar o sentido preciso dessapalavra, ainda no perfeitamente explicado.

    CAPTULO I

    Do Governo em Geral

    Previno o leitor de que este captulo deve ser lido pausadamente, e de que no conheo aarte de ser claro para quem no deseja ser atento.

    Toda ao livre tem duas causas que concorrem para produzi-Ia, uma moral, a saber, avontade que determina o ato, e outra fsica, ou seja, o poder que a executa. Quando me dirijo a umobjeto, preciso, primeiro, que eu queira ir at ele e, em segundo lugar, que meus ps me levem atel. Que um paraltico queira correr, que um homem gil no o queira, ambos ficaro no mesmolugar. O corpo poltico tem os mesmo mveis; nele se distinguem a fora e a vontade, esta sob onome de poder legislativo e aquela sob o nome de poder executivo. Nada se faz nele, ou no se devefazer, sem seu concurso.

    Vimos que o poder legislativo pertence ao povo, e s a ele pode pertencer. fcil perceber,ao contrrio, pelos princpios anteriormente estabelecidos, que o poder executivo no pode pertencerao conjunto dos cidados como legislador ou soberano, pois que esse poder consiste apenas em atosparticulares que no so, em absoluto, da alada da lei, nem, por conseguinte, da do soberano, cujosatos s podem ser leis.

    Requer, pois, a fora pblica um agente prprio que a rena e a ponha em ao segundo asdirees da vontade geral, que sirva para a comunicao entre o Estado e o soberano, que faia decerto modo na pessoa pblica o que faz no homem a unio da alma e do corpo. Eis qual , noEstado, a razo do governo, confundido indevidamente com o soberano, de quem apenas oministro.

    Que vem a ser, ento, o governo? Um corpo intermedirio estabelecido entre os sditos e osoberano, para permitir sua mtua correspondncia, encarregado da execuo das leis e damanuteno da liberdade, tanto civil como poltica.

    Os membros desse corpo chamam-se magistrados ou reis, isto , governadores, e o corpotodo recebe o nome de prncipe. Desse modo, muita razo assiste aos que pretendem que o ato peloqual um povo se submete a chefes no um contrato. Isto no , absolutamente, seno umacomisso um emprego no qual, como simples oficiais do soberano, eles exercem em seu nome o

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    poder de que os fez depositrios, e que pode limitar, modificar e retomar quando lhe aprouver, sendoa alienao de tal direito incompatvel com a natureza do corpo social e contrria finalidade daassociao.

    Chamo, pois, governo ou suprema administrao ao exerccio legtimo do poder executivo, eprncipe ou magistrado ao homem ou ao corpo encarregado dessa administrao.

    no governo que se encontram as foras intermedirias, cujas relaes compem a do todo

    com o todo, ou do soberano com o Estado. Pode-se representar esta ltima relao pela dosextremos de uma proporo contnua, cuja mdia proporcional o governo. O governo recebe dosoberano as ordens que d ao povo, e, para que o Estado permanea em bom equilbrio, necessrioque, tudo compensado, haja igualdade entre o produto ou o poder do governo, tomado em si mesmo,e o produto ou o poder dos cidados, que par um lado so soberanos e, por outro, sditos.

    Ademais, no se poderia alterar nenhum dos trs termos sem romper instantaneamente aproporo. Se o soberano quer governar, ou se o magistrado quer promulgar leis, ou se os sditos serecusam a obedecer, a desordem toma o lugar da regra, a fora e a vontade j no agem de comumacordo e o Estado, dissolvido, cai assim no despotismo ou na anarquia. Enfim, como existe apenasuma mdia proporcional entre cada relao, no h, tampouco, mais que um bom governo possvelnum Estado. Como, porm, mil acontecimentos podem mudar as relaes de um povo, no somentediferentes governos podem ser bons para diversos povos, mas tambm para o mesmo povo em

    diferentes pocas.Para dar uma idia das vrias relaes que podem reinar entre esses dois extremos, tomarei

    como exemplo o nmero da populao, por ser uma relao mais fcil de exprimir.Suponhamos que o Estado se componha de dez mil cidados. O soberano s pode ser

    considerado coletivamente e como um corpo. Mas cada particular, na qualidade de sdito, considerado como indivduo. Logo, o soberano est para o sdito assim como dez mil esto para um,isto , cada membro do Estado tem como sua apenas a dcima milsima parte da autoridadesoberana, conquanto lhe esteja submetido por inteiro. Se o povo se compe de cem mil homens, oestado dos sditos no muda, e cada qual suporta igualmente todo o imprio das leis, enquanto seusufrgio, reduzido a um centsimo de milsimo, tem dez vezes menos influncia em sua redao.Ento, permanecendo o sdito sempre um, a relao do soberano aumenta em razo do nmero doscidados. Segue-se que, quanto mais o Estado aumenta, mais diminui a liberdade.

    Quando digo que a relao aumenta, entendo que ela se afasta da igualdade. Assim, quantomaior for a relao na acepo dos gemetras, tanto menor ser a relao na acepo comum; naprimeira, a relao considerada segundo a quantidade, mede-se pelo expoente, e, na outra,considerada segundo a identidade, estima-se pela semelhana.

    Ora, quanto menos as vontades particulares correspondem vontade geral, isto , oscostumes s leis; tanto mais a fora repressiva deve aumentar. Portanto, o governo, para ser bom,deve ser relativamente mais forte na medida em que o povo mais numeroso.

    Por outro lado, como o crescimento do Estado oferece aos depositrios da autoridadepblica maior nmero de tentaes e meios para abusar de seu poder, de mais fora precisa ogoverno para conter o povo e mais fora requer o soberano, por sua vez, para conter o governo.No falo aqui de uma fora absoluta, mas da fora relativa das diversas partes do Estado.

    Decorre dessa dupla relao que a proporo contnua entre o soberano, o prncipe e o povo

    no uma idia arbitrria, mas uma conseqncia necessria da natureza do corpo poltico.Segue-se ainda que, sendo um dos extremos, a saber, o povo como sdito, fixo e- representado pelaunidade, sempre que a razo composta aumenta ou diminui, tambm a razo simples aumenta oudiminui, e que, conseqentemente, o termo mdio se modifica, o que demonstra no haver umaconstituio de governo nica e absoluta, mas que pode haver tantos governos de distinta naturezaquantos Estados de diferentes grandezas.

    Se, ridicularizando esse sistema, se dissesse que para encontrar essa mdia proporcional eformar o corpo do governo no preciso, a meu ver, seno extrair a raiz quadrada do nmero dapopulao, eu responderia que s tomo aqui esse nmero a ttulo de exemplo, que as relaes a que

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    me refiro no se medem unicamente pelo nmero de homens, mas, em geral, pela quantidade deao, que se combina por uma infinidade de causa