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21 Psicologia & Sociedade; 17 (2): 21-25; mai/ago.2005 A PSICOLOGIA E O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE: QUAIS INTERFACES? ¹ Regina Benevides Universidade Federal Fluminense RESUMO: Discute-se a relação da Psicologia com o Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil tomando-se como ponto de partida uma crítica à separação entre clínica e política fortemente presente na formação e na prática profissional dos Psicólogos. Indicam-se três princípios para a construção de políticas públicas em saúde: o da inseparabilidade, o da autonomia e co-responsabilidade e o da transversalidade, estando a contribuição da Psicologia no entrecruzamento do exercício destes três princípios. O artigo destaca, ainda, a importância dos modos de fazer acontecer as políticas públicas, indicando a urgência na criação de dispositivos que dêem suporte à experimentação das políticas no jogo de conflitos de interesses, desejos e necessidades dos diferentes atores que compõem a rede de saúde. Palavras-chave: Políticas públicas; psicologia; Sistema Único de Saúde. PSYCHOLOGY AND PUBLIC HEALTH SYSTEM: WHAT ARE THE INTERFACES? ABSTRACT: The Psychology and Public Health System relation is discussed having as a starting point a criticism to the gap between the clinic and politics strongly present in the formation and in the professional practice of the psychologists. Three principles are suggested to the construction of public politics in the health system, which are the inseparability, the autonomy and co-responsibility and the transverseness, being the contribution of Psychology the interchange of these three principles. This paper also emphasizes the importance of the ways to make happen the public politis, pointing out the urge to create some devices which will give support to these politics in the game of conflicts and interests, desires and needs of the different actors who are part of the public health network. Key-words: Public Politics; Psychology; Public Health System. O título do artigo já indica um ponto de par- tida lamentavelmente pouco encontrado no campo da Psicologia: a preocupação com a saúde pública, com a inserção do trabalho do Psicólogo no debate sobre modos de intervenção que se façam para além dos enquadres clássicos de uma clínica individual e pri- vada, ou mesmo de uma psicologia social que man- tém a separação entre os registros do individual e do social, tal como a ainda predominante em nossos cur- sos de formação. Digo isso para que fique logo claro que não acredito numa crítica à Psicologia e às suas diversas áreas pela identificação de uma face conser- vadora, porque cuidando do indivíduo, e uma face emancipadora, porque voltada para o social, para a comunidade, para os processos educacionais ou de trabalho. Como pretendo aqui sustentar, trata-se de não se iludir com esta solução de compromisso da Psicologia. Especialmente quando queremos pensar as interfaces da Psicologia com o Sistema Único de Saú- de (SUS) urge que problematizemos o que podemos, o que queremos e, principalmente, como fazemos para contribuir na construção de um outro mundo possí- vel², de uma outra saúde possível e, digo logo, de uma saúde pública possível. Convocada ao debate e em sintonia com o movimento de resistência que institui o Fórum Social Mundial desde sua primeira versão em 2001, fiquei me perguntando por onde nele entrar. Poderia reto- mar a história da Psicologia indicando suas alianças com as ciências positivistas ou com as filosofias subjetivistas. Poderia apontar para a tradição humanista que amarra a Psicologia ao campo das Ciências Humanas, tornando-se separada das ciênci- as da saúde. Poderia, ainda, rastrear as inúmeras ci- sões entre correntes da Psicologia ou entre estas e a Psicanálise, cada uma delas marcando e se apropri- ando do sujeito como seu objeto de investigação. Não é preciso ir muito longe para perceber- mos que o discurso sobre o sujeito tem vindo acompa- nhado, no campo das práticas psi, de um processo de despolitização destas mesmas práticas. No mesmo movimento em que o sujeito é tomado como centro (ou mesmo eventualmente descentrado) opera-se uma dicotomização com o social que se acredita circundá- lo.

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Psicologia & Sociedade; 17 (2): 21-25; mai/ago.2005

A PSICOLOGIA E O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE:QUAIS INTERFACES? ¹

Regina Benevides

Universidade Federal Fluminense

RESUMO: Discute-se a relação da Psicologia com o Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil tomando-se comoponto de partida uma crítica à separação entre clínica e política fortemente presente na formação e na práticaprofissional dos Psicólogos. Indicam-se três princípios para a construção de políticas públicas em saúde: o dainseparabilidade, o da autonomia e co-responsabilidade e o da transversalidade, estando a contribuição daPsicologia no entrecruzamento do exercício destes três princípios. O artigo destaca, ainda, a importância dosmodos de fazer acontecer as políticas públicas, indicando a urgência na criação de dispositivos que dêemsuporte à experimentação das políticas no jogo de conflitos de interesses, desejos e necessidades dos diferentesatores que compõem a rede de saúde.Palavras-chave: Políticas públicas; psicologia; Sistema Único de Saúde.

PSYCHOLOGY AND PUBLIC HEALTH SYSTEM: WHAT ARE THE INTERFACES?

ABSTRACT: The Psychology and Public Health System relation is discussed having as a starting point a criticismto the gap between the clinic and politics strongly present in the formation and in the professional practice ofthe psychologists. Three principles are suggested to the construction of public politics in the health system,which are the inseparability, the autonomy and co-responsibility and the transverseness, being the contributionof Psychology the interchange of these three principles. This paper also emphasizes the importance of the waysto make happen the public politis, pointing out the urge to create some devices which will give support to thesepolitics in the game of conflicts and interests, desires and needs of the different actors who are part of the publichealth network.Key-words: Public Politics; Psychology; Public Health System.

O título do artigo já indica um ponto de par-tida lamentavelmente pouco encontrado no campo daPsicologia: a preocupação com a saúde pública, coma inserção do trabalho do Psicólogo no debate sobremodos de intervenção que se façam para além dosenquadres clássicos de uma clínica individual e pri-vada, ou mesmo de uma psicologia social que man-tém a separação entre os registros do individual e dosocial, tal como a ainda predominante em nossos cur-sos de formação. Digo isso para que fique logo claroque não acredito numa crítica à Psicologia e às suasdiversas áreas pela identificação de uma face conser-vadora, porque cuidando do indivíduo, e uma faceemancipadora, porque voltada para o social, para acomunidade, para os processos educacionais ou detrabalho. Como pretendo aqui sustentar, trata-se denão se iludir com esta solução de compromisso daPsicologia.

Especialmente quando queremos pensar asinterfaces da Psicologia com o Sistema Único de Saú-de (SUS) urge que problematizemos o que podemos,o que queremos e, principalmente, como fazemos paracontribuir na construção de um outro mundo possí-

vel², de uma outra saúde possível e, digo logo, deuma saúde pública possível.

Convocada ao debate e em sintonia com omovimento de resistência que institui o Fórum SocialMundial desde sua primeira versão em 2001, fiqueime perguntando por onde nele entrar. Poderia reto-mar a história da Psicologia indicando suas aliançascom as ciências positivistas ou com as filosofiassubjetivistas. Poderia apontar para a tradiçãohumanista que amarra a Psicologia ao campo dasCiências Humanas, tornando-se separada das ciênci-as da saúde. Poderia, ainda, rastrear as inúmeras ci-sões entre correntes da Psicologia ou entre estas e aPsicanálise, cada uma delas marcando e se apropri-ando do sujeito como seu objeto de investigação.

Não é preciso ir muito longe para perceber-mos que o discurso sobre o sujeito tem vindo acompa-nhado, no campo das práticas psi, de um processo dedespolitização destas mesmas práticas. No mesmomovimento em que o sujeito é tomado como centro(ou mesmo eventualmente descentrado) opera-se umadicotomização com o social que se acredita circundá-lo.

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Duas realidades (interna/externa) em cons-tante articulação, mas sempre duas realidades dadasa serem olhadas com seus específicos instrumentos deanálise. Esta operação não se faz sem conseqüênciase uma delas tem sido, justamente, a de manter emdois registros separados: o sujeito/indivíduo(Benevides, R, 2002) e o social, o desejo e a política(Guattari & Rolnik, 1986).

Assim é que não causa espanto, entre muitos,a afirmação de que Psicologia e Política não se mistu-ram, ou, de que, quando somos psicólogos não somosmilitantes e se somos militantes não devemos sê-loenquanto psicólogos.

O paradigma que está norteando tais afirma-ções é o de que ciência e política são duas esferasseparadas e de que as práticas psi ao se encarregaremdo sujeito não devem tratar de questões políticas.

Tal ascese, pretendida por muitos e, afirma-da por tantos outros como alcançada, tem sistemati-camente colocado o desejo como algo da ordem doindividual, ou como questão do sujeito e a políticacomo da ordem do social, ou como questão do coleti-vo. O efeito-despolitização neste tipo de análise é no-tório, posto que as práticas psi passam a se ocupar desujeitos abstratos, abstraídos/alienados de seus con-textos e tomam suas expressões existenciais como pro-dutos/dados a serem reconhecidos em universaisapriorísticos. Digo despolitização para marcar o lu-gar exterior, separado, em que a política, em suasmais variadas formas, é lançada quando se trata daanálise das questões subjetivas. Entretanto, o maiscorreto seria dizer que aí também há a produção deuma certa política: aquela que coloca de um lado amacropolítica e, de outro, a micropolítica; de um lado,o Sistema Único de Saúde como dever do Estado edireito dos cidadãos, como conquista garantida pelalei, pela Constituição e, de outro, os processos de pro-dução de subjetividade. Aqui, me parece, há uma pis-ta importante para seguirmos, pois é a partir da fun-dação da Psicologia nestas dicotomias que o indivi-dual se separou do social, que a clínica se separou dapolítica, que o cuidado com a saúde das pessoas seseparou do cuidado com a saúde das populações, quea clínica se separou da saúde coletiva, que a Psicolo-gia se colocou à margem de um debate sobre o SUS.

A pergunta, então, insiste: quais as interfacesda Psicologia como campo de saber e, mais precisa-mente, dos psicólogos enquanto trabalhadores, como Sistema Único de Saúde? Mais do que fazer umadiscussão de conteúdos curriculares, ou mesmo indi-car disciplinas a serem incluídas e/ou excluídas dos

cursos de formação devemos nos perguntar sobre quaispráticas tais psicólogos têm efetuado, quais compro-missos ético-políticos têm tomado como prioritáriosem suas ações. É claro que isto não se separa dosreferenciais teórico-conceituais que dão suporte a es-tas práticas e, é claro também, que se trata de umatomada de posição, de atitude, quanto ao que se defi-ne como objeto e campo de intervenção da Psicolo-gia. Trata-se, então, de uma discussão ética, melhordizendo, ético-política. Se não aceitamos as posiçõesabstratas, transcendentes, descoladas de onde a vidase passa, precisamos, imediatamente, trazer ao deba-te questões sobre o contemporâneo, tanto em sua di-mensão transnacional, mundial, quanto local, brasi-leira.

Para seguir neste caminho não podemos nosfurtar, portanto, de outras perguntas: O que será queos novos tempos do Capital reservam ao Psicólogoquanto à sua tarefa profissional? Será possível e/oudesejável continuarmos na busca de uma identidadepara o Psicólogo, definida a partir de uma formaçãoassentada na dicotomia entre o subjetivo e o político?Como romper com a tradição de uma Psicologia cujahistória, datada do final do século XIX, atrela-se oraa uma perspectiva objetivo-positivista, ora a uma pers-pectiva interno–subjetivista, mantendo, de todo modo,a separação em registros excludentes, das esferas in-dividual, grupal, social? Como pensar nas práticasdos psicólogos ainda classificadas em áreas de atua-ção que se definem pela separação e, muitas vezes,pela desqualificação umas das outras: escolar, comu-nitária, clínica, do trabalho, judiciária? Como pensara formação do Psicólogo em tempos de banalizaçãoda injustiça social? (Dejours, 1999)4 O que proporcomo diretrizes para sustentar uma posição ética quenão se abstraia de seus compromissos políticos? Comopensar na atuação dos psicólogos ou nas contribui-ções da Psicologia se não incluirmos o mundo em quevivemos o país em que habitamos? Como pensar numaPsicologia que não tome como seu objeto, sujeitosabstratos? Como fortalecer práticas profissionais quese co-responsabilizem com a saúde de cada um e coma saúde de todos sem separá-las?

Cabe-nos, portanto, a pergunta sobre quaisrelações há entre o capitalismo contemporâneo, oexercício da clínica e a produção de subjetividade.Isto nos obriga a discutir o plano da clínica na suainseparabilidade da filosofia, da arte, da ciência, e,em especial, da política. E por que esse destaque dainterface clínica-política? Porque aí nos encontramoscom modos de produção, modos de subjetivação e nãomais sujeitos, modos de experimentação/construçãoe não mais interpretação da realidade, modos de cri-ação de si e do mundo que não podem se realizar emsua função autopoiética5, sem o risco constante da

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experiência de crise. O que queremos dizer é que de-finir a clínica em sua relação com os processos deprodução de subjetividade implica, necessariamente,que nos arrisquemos numa experiência de crítica/aná-lise das formas instituídas, o que nos comprometepoliticamente.

A forma subjetiva, o sujeito, é produtoresultante de um funcionamento que é de produçãoinconclusa, é heterogenético, nunca havendoesgotamento total da energia potencial de criação dasformas. É por isso que dizemos que a subjetividade éplural, polifônica sem nenhuma instância dominantede determinação.

O que mais interessa aqui destacar é este as-pecto de produção do sujeito, de um sujeito autônomo(Eirado & Passos, 2004) e, mais ainda, o que histori-camente vem se dando como efeito das modulaçõesdo capitalismo, a saber, a separação entre produçãoe produto, portanto, entre processo de subjetivação esujeito. Esta separação tem como conseqüência a cap-tura da realidade em uma forma dada, tida comonatural, mas que deve ser entendida como forma-sin-toma6 a ser posta em análise. O sintoma se apresentaem duas dimensões: forma e força. Sua face instituí-da, face-forma, é aquela que se vê aprisionada nocircuito de repetição fechada sobre si. O trabalho daanálise deverá incidir neste circuito, de modo a neleproduzir desvios que forcem a repetição a diferir Aoperação analítica freqüente nas intervenções clíni-cas não é outra coisa senão a desestabilização destasformas, permitindo o aparecimento do plano de for-ças de produção a partir do qual tal realidade se cons-tituiu.

E aqui já podemos enunciar que entendemosa experiência clínica como a devolução do sujeito aoplano da subjetivação, ao plano da produção que éplano do coletivo. O coletivo, aqui, bem entendido,não pode ser reduzido a uma soma de indivíduos ouao resultado de um contrato que os indivíduos fazementre si. Coletivo diz respeito a este plano de produ-ção, composto de elementos heteróclitos e que experi-menta, todo o tempo, a diferenciação. Coletivo émultidão, composição potencialmente ilimitada deseres tomados na proliferação das forças. No coletivonão há, portanto, propriedade particular,pessoalidades, nada que seja privado, já que todas asforças estão disponíveis para serem experimentadas.É aí que entendemos se dar a experiência da clínica:experimentação no plano coletivo, experimentaçãopública.

A pista que segui, a que indicava a fundaçãoda Psicologia assentada na separação entre a macroe a micropolítica, abre-se, então, em alguns desviosque tomarei como princípios éticos que, acredito,possam contribuir para o debate sobre as interfaces

da Psicologia com o SUS:

– Princípio da inseparabilidade: se tomamos aPsicologia como campo de saber voltado paraos estudos da subjetividade e se esta é enten-dida como processo coletivo de produção re-sultando em formas sempre inacabadas eheterogenéticas, é impossível separar, aindaque distinções haja, a clínica da política, oindividual do social, o singular do coletivo;os modos de cuidar dos modos de gerir; amacro e a micropolítica. Fazer política pú-blica – e o SUS é fundamentalmente políticapública, porque de qualquer um -, é tomaresta dimensão da experiência coletiva comoaquela geradora dos processos singulares.Neste sentido, pensar a interface da Psicolo-gia com o SUS se dará exatamente por esteponto conector: os processos de subjetivaçãose dão num plano coletivo, plano demultiplicidades, plano público. O SUS, en-quanto conquista do povo brasileiro, da hu-manidade, se faz como política pública desaúde.

– Princípio da autonomia e da co-responsabili-dade: assim sendo, também é impossível sepensar em práticas dos psicólogos que nãoestejam imediatamente comprometidas como mundo, com o país que vivemos, com ascondições de vida da população brasileira,com o engajamento na produção de saúde(Campos, 2000). que implique a produçãode sujeitos autônomos, protagonistas, co-partícipes e co-responsáveis por suas vidas.Aqui, a interface da Psicologia com o SUS sedá pela certeza de que o processo de inven-tar-se é imediatamente invenção de mundo evice-versa.

– Princípio da transversalidade: a Psicologia,tal como qualquer outro campo de saber/poder não explica nada. É ela mesma quedeve ser explicada e isto só se dá numa rela-ção de intercessão com outros saberes/pode-res/disciplinas. É no entre os saberes que ainvenção acontece, é no limite de seus pode-res que os saberes têm o que contribuir paraum outro mundo possível, para uma outrasaúde possível.A contribuição da Psicologia no SUS pode

estar justamente no entrecruzamento do exercício destestrês princípios.

Mas, é, sobretudo num certo método, numcerto modo de operar que acreditamos poder estarnossa maior contribuição e também nosso maior de-safio. De nada adiantam tais princípios se eles não

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Benevides, R. “A Psicologia e o Sistema ùnico de Saúde: quais interfaces?”

forem imediatamente ação política, ação sobre a polis,ação sobre os processos de constituição da cidade edos sujeitos. O que queremos ressaltar é que os eixosda universalidade, equidade e integralidade,constitutivos do SUS só se efetivam quando consegui-mos inventar modos de fazer acontecer tais eixos. In-teressa perguntar o como fazer e, aqui, nossa experi-ência indica que a construção das redes, dasgrupalidades, de dispositivos de co-gestão, de aumen-to do índice de transversalidade, de investimento emprojetos que aumentem o grau de democracia e parti-cipação institucional, são alguns dos caminhos a se-rem percorridos.

Em nossa recente, e já finda, experiência naSecretaria Executiva (SE) do Ministério da Saúde (MS)(www.saude.gov.br)7, coordenando a Política Nacio-nal de Humanização e a Política Nacional de Promo-ção à Saúde, nos vimos frente ao desafio de constru-ção de políticas públicas que estivessem comprometi-das com os princípios que acima enunciamos. Estarna máquina do Estado num cenário contemporâneoque naturaliza o capitalismo neoglobaliberal impôs,o tempo todo, movimentos de resistência àquilo quese apresentava como inexorável: programas, proje-tos, secretarias e processos de trabalho fragmentados,separação dos regimes de atenção e de gestão da saú-de.

Mais ainda, o desafio se colocava em exercitarcom os trabalhadores e gestores do próprio MS umoutro modo de construir políticas públicas. Nãoqueríamos, de fato, apenas uma outra política degoverno. Queríamos avançar numa outra direção denosso modo de fazer e, para isso, não nos bastavaapenas concordar com os eixos do SUS:universalidade, integralidade, equidade. Precisávamosousar estabelecer na máquina do Estado, políticas deprodução de autonomia e emancipação social.Precisávamos redimensionar as políticas de saúde detal forma a criar espaços de gestação, difusão econtaminação de novas alternativas societárias ecivilizatórias (cf. Eixo 1 do V FSM emwww.forumsocial.org). Pensávamos dar outros rumospara a própria Secretaria Executiva do MS que atéentão apenas executava políticas formuladas poroutras Secretarias. Precisávamos efetivar a co-gestãocom a qual dizíamos concordar, co-formulandopolíticas e não simplesmente reproduzindo tolosespaços de disputa de territórios de saber/poder.Apostamos em políticas transversais e que nãoseparassem atenção/gestão/formação e participaçãosocial. Apostamos, enfim, num outro modo de pensare de fazer política.

Pensar-fazer políticas de saúde exige, então,criação de dispositivos, exige criação de espaços decontratualização entre os diversos atores que compõem

as redes de saúde, exige um estar com o outro: usuá-rio, trabalhador, gestor. Aqui certamente a Psicologiapode estar, aqui ela pode fazer intercessão. Insisti-mos, não basta à distância formular, regular, contro-lar políticas, é preciso criar modos, criar dispositivos(Benevides, R, 1997)dispositivos8, que dêem suporte àexperimentação das políticas no jogo de conflitos deinteresses, desejos e necessidades de todos estes ato-res.

Os rumos tomados desde o final de 2004 nosinquietam na medida em que o MS decide, dentreoutras medidas, mudar o perfil da SE deslocando taispolíticas transversais para outras Secretarias.

A experiência na coordenação destas políti-cas no MS nos impôs, então, uma modulação daquiloque já afirmávamos anteriormente. Se antes faláva-mos da inseparabilidade entre a clínica e a política(ver Passos & Benevides, 2004), agora podemos dizerda inseparabilidade entre modos de atender, de cui-dar e modos de gerir, inseparabilidade entre atençãoe gestão, portanto. Aí está um caminho a ser traçado,percorrido, inventado, se queremos, também nós, psi-cólogos, nos aliar aos movimentos de resistência queapostam na construção de um outro mundo possível.

Por último vale lembrar que o SUS nasce comomovimento, conhecido como Reforma Sanitária, ali-ado a outros movimentos sociais, na luta contra aditadura militar e em prol da democracia, da garan-tia dos direitos do homem. Estávamos nos anos 1970/80, onde também se organizava em nível internacio-nal a grande onda neoliberal. O SUS foi, sem dúvida,durante estes anos, o movimento que se firmou comoresistência à privatização da saúde. Resistir àprivatização, da saúde, da vida é tarefa para muitos,é tarefa para todos nós. Cabe a nós, psicólogos, deci-dir com que movimento nos aliamos, quais movimen-tos inventamos, quais intercessões fazemos entre aPsicologia e o SUS, entre a Psicologia e as políticaspúblicas.

NOTAS¹ Versão revisada do trabalho apresentado no V FórumSocial Mundial, Porto Alegre, janeiro de 2005 na mesaredonda A Psicologia no Sistema Único de Saúde, or-ganizada pelo Conselho Regional de Psicologia (CRP-07), pelo Sindicato dos Psicólogos do Rio Grande doSul e pela Sociedade de Psicologia do Rio Grande doSul, como parte da Atividade: Psicologia e saúde naspolíticas públicas: estratégias e esferas de ação/ Eixo:Defendendo as diversidades, pluralidade e identida-des.² A alusão se refere à convocação que instituiu o FórumSocial Mundial desde sua primeira versão em 2001quando, num movimento de resistência à globalizaçãoe ao Capitalismo Mundial, organizações não–gover-

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namentais e redes sociais de toda ordem propuseramo encontro em Porto Alegre/Brasil em contraposiçãoao Fórum Econômico Mundial realizado na mesmaépoca em Davos/Suíça.³ Sabemos que os termos aqui referidos têm diferen-ças a depender do enfoque teórico aos quais estãofiliados. Não é preocupação do presente artigo se de-ter nestas diferenças. O que queremos sobretudoproblematizar é a separação entre os registros subje-tivo e objetivo da experiência. A esse respeito verBenevides (2002).4 Título de um livro de Christophe Dejours, inspiradoem termo utilizado por H. Arendt – banalidade domal. Dejours (1999) procura investigar as motivaçõessubjetivas da dominação, tomando o trabalho e o cha-mado novo capitalismo na sociedade contemporânea,como eixo condutor de suas análises.5 Uma importante contribuição sobre o tema daautopoiese pode ser encontrado em Kastrup (1999).E, sobre a questão da autonomia, ver Eirado e Passos(2004).6 Trabalhamos aqui com a idéia de que o sintoma seapresenta em duas dimensões: forma e força. Sua faceinstituída, face-forma, é aquela que se vê aprisionadano circuito de repetição fechada sobre si. O trabalhoda análise deverá incidir neste circuito, de modo anele produzir desvios que forcem a repetição a diferir.7 Sugiro o site www.saude.gov.br para melhorentendimento da estrutura, atribuições eresponsabilidades das instâncias do MS.8 Em artigo publicado anteriormente discutimos o dis-positivo grupal como um importante mecanismo deresistência às políticas individualizantes presentes nocontemporâneo. Neste mesmo artigo trabalhamos anoção de dispositivo a partir das contribuições de G.Deleuze como emaranhado de linhas, enfatizando oplano de constituição do dispositivo (Benevides deBarros, 1997).

REFERÊNCIASBenevides de Barros, R. (1997). Dispositivos em ação:o grupo.Em A Silva & cols. (Orgs.), Cadernos de Sub-jetividade (pp. 183-191). São Paulo: Hucitec.

Benevides, R. (2002). Clínica e Social: polaridadesque se opõem/complementam ou falsa dicotomia? EmC. Rauter, E. Passos & R. Benevides (Org.), Clínica ePolítica: subjetividade e violação dos Direitos Huma-nos. Rio de Janeiro: Te Cora.

Campos, G. W. S. (2000). Um método para análise eco-gestão de coletivos – a construção do sujeito, aprodução de valor de uso e a democracia em institui-ções: o método da roda. São Paulo: Hucitec.

Dejours, C. (1999). A banalização da injustiça social.Rio de Janeiro: FGV.

Eirado, A. & Passos, E. (2004). A noção de autonomiae a dimensão do virtual. Psicologia em Estudos, 9,77-85.

Guattari, F. & Rolnik, S (1986). Micropolítica; carto-grafias do desejo. Petrópolis, RJ:Vozes.

Kastrup, V. (1999). A invenção de si e do mundo. Cam-pinas, SP: Papirus.

Passos, E. & Benevides de Barros, R. (2004). Clínica,política e as modulações do capitalismo. Lugar Co-mum, 19/20, 159 -171.

Regina BenevidesPsicóloga; Professora do Dep de Psicologia da UFF;Doutora em Psicologia Clínica; Pós-Doutorado emSaúde Coletiva. Entre janeiro de 2003 e janeiro de

2005 foi Diretora de Programas da Secretaria Execu-tiva do Ministério da Saúde, coordenando a Política

Nacional de Humanização e aPolítica Nacional de Promoção à Saúde.

End. para correspondência: Mestrado em Psicologia.Universidade Federal Fluminense. Campus doGragoatá, s/n, bloco O, sala 214 - Gragoatá -Niterói - RJ . E-mail: [email protected]

Regina BenevidesA psicologia e osistema único de saúde:quais interfaces?Recebido: 01/03/20051ª Revisão: 03/10/2005Aceite Final: 11/10/2005