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APRESENTAÇÃO 

Elaborar teologia ainda hoje, em pleno século 21, étarefa inacabada. Apesar de o termo teologia muitasvezes evocar a dogmática, na verdade a elaboraçãoteológica busca novos caminhos de expressão. Sua maiornecessidade é a relevância e a contemporaneidade.

 Neste opúsculo, Teologia Cristã em Poucas Palavras,o autor elabora um projeto admirável por sua profundidade e, ao mesmo tempo, conciliatório dediversos enfoques teológicos. Consciente dadependência histórica da escolástica de grande parte dateologia evangélica e católica, o autor, E NIO MUELLER ,  procura afastar-se de tal "aprisionamento sistemático".Sua elaboração criativa busca raízes na teologia bíblica,

interage com o existencialismo de PAUL TILLICH eutiliza-se também de enfoques libertários. Ao mesmotempo, MUELLER foge de um "pragmatismo" meramente"ortoprático" e estabelece uma ponte histórico-hermenêutica com o cristo-centrismo luterano clássico.A sugestão é que Was Christum treibet deve ser fiocondutor de uma leitura bíblica adequada.

Se pudermos definir a proposta teológica criativa aquiesboçada, diremos que se trata de uma "ortodopodiaagápica", que traduzida em miúdas, seria uma"caminhada marcada pelo amor". A idéia é construir umateologia que não se fundamente em categoriassistemáticas helênicas, nem caia numa pragmáticahistoricista, mas sim em categorias bíblico-existenciais.Verdade está portanto mais próximo de "coerência de

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vida conduzida pelo amor", do que de "definições

cognitivas". Por isso o autor dará uma atenção definidaà ética.

A publicação de uma obra como esta tem grandeimportância em nossos dias. Em primeiro lugar,escancara-se a necessidade de uma elaboração teológicaque enfrente todas as questões epistemológicas ehermenêuticas com coerência e equilíbrio, sem ser

meramente repetitiva. Além disso, a necessidade de umadevida interação entre o enfoque bíblico e filosóficoainda tem um vasto campo pela frente. Por fim, umaelaboração teológica adequada deve interagir com arealidade brasileira de fato. Geralmente temos reflexostardios de perspectivas americanas e europeias,fortemente condicionadas a modelos filosóficos

sepultados e moribundos.Cremos que Teologia Cristã em Poucas Palavras 

 pode ser uma semente poderosa que provoquequestionamentos, reflexão, dúvidas e suficientedinamismo teológico para que se construa uma teologia profunda, coerente, bíblica e que produza impacto nocenário nacional.

Luiz Sayão

 Professor da Área Bíblica do Seminário Servo de Cristo, e da FaculdadeTeológica Batista de São Paulo.

 Professor Visitante do Gordon-Conwell Theological Seminary em Boston.

Coordenador de Tradução da Nova Versão Internacional.

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PREFÁCIO 

O propósito deste livro é ser uma pequena introdução à

teologia cristã. Tem um capítulo para cada uma das divisõesclássicas da Teologia Sistemática. Tentei me concentrarnaquilo que, ao meu ver, é fundamental e mais necessário.

Os três textos aqui reunidos foram originalmente preparados para ocasiões bem concretas e específicas, e posteriormenteretrabalhados numa perspectiva de conjunto. No processo,

 perderam também parte de seus contornos intraeclesiais,assumindo um horizonte de ecumenicidade a partir dofundamento comum do evangelho.

É sempre um risco para a teologia, se perder nos meandrosde uma multidão de detalhes e obscurecer a percepção do que érealmente essencial. Por isso, vale a pena fazer o exercício de

tentar captar este essencial e dizê-lo em poucas palavras.São Leopoldo, julho de 2005.

 Prof. Dr. Enio R. Mueller 

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CAPÍTULO I

A PERGUNTA PELA VERDADE 

Teologia tem a ver com a verdade. Isso ela compartilha tantocom a religião como com a filosofia. Mas o que é a verdade?Isso parece uma coisa tão óbvia. Quando usamos esta palavrano dia a dia, geralmente queremos indicar duas coisas.Primeiro, que algo que foi dito "é verdade", o que significa "nãoé mentira". Segundo, que uma coisa realmente aconteceu, quenão é invenção, que "é verdade". A verdade, então, quer dizerque o que se diz corresponde à realidade do assunto sobre o qualse está falando. Ou, que o que se está dizendo realmenteaconteceu, que a fala corresponde aos acontecimentos aos quaisse refere.

A partir desta noção de verdade, nada mais justo do que

 perguntar se ela própria "é verdade". Que ela representa averdade em alguns aspectos essenciais, não tem dúvida. Porém,quando a gente começa a descer um pouco, rumo às dimensõesmais profundas da vida, esta noção revela uma certasuperficialidade. Ela é basicamente correta, mas insuficiente.Justamente as coisas mais importantes da vida não se deixamenquadrar completamente neste tipo de verdade. Não dá para

dizer que são verdade porque correspondem à nossa fala sobreelas, e nem porque "aconteceram".

Quando Pilatos faz a pergunta pela verdade ele está fazendouma pergunta fundamental, da qual depende tudo o mais quevenhamos a dizer. Em João 18:37-38, no diálogo entre Jesus ePilatos pouco antes da crucificação, Jesus diz que veio ao

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mundo "para dar testemunho da verdade", e que "quem é daverdade" vai reconhecê-la. Ao que Pilatos retruca: "O que é averdade?". Para Jesus, portanto, estar   na verdade é condição

 para conhecer  a verdade. Isso é coisa bem diferente do que oque normalmente aprendemos, e que inclusive as nossasteologias nos ensinam. E este não é um problema de teologia"liberal". Às vezes são justamente as teologias mais "bíblicas"que por alguma razão têm dificuldade neste ponto.

Um problema com a teologia cristã sempre tem sido o risco

de ficar atrelada a uma noção não adequada de verdade. Comrelação ao que diz na Bíblia, por exemplo, parece, então, que a pergunta mais importante é se as coisas realmente aconteceramconforme se fala delas nos textos. Será que a verdade cristã é primeiramente uma verdade deste tipo? Se fosse, a fé nãoficaria reduzida a um acreditar? Na Carta de Tiago tem uma palavra bastante dura sobre este tipo de fé neste tipo de verdade:

"Crês tu que Deus é um só? Fazes bem. Até os demônios crêeme tremem" (Tiago 2:19).

Qual é, exatamente, o problema com esta noção de verdade?O problema é que ela transforma a verdade numa coisa "dacabeça", numa coisa racional. Esta verdade, seja das palavrasou dos fatos, nós a percebemos com a nossa cabeça, com anossa razão. Verdade, então, acaba limitada a algo com que arazão pode concordar. Não se trata de excluir o elementoracional, que chamarei de cognitivo, da verdade. Trata- se, sim,de ampliar a percepção da verdade de modo que ela incluaoutras dimensões. A Bíblia, como ainda veremos, enfatiza umanoção existencial de verdade, que inclui o aspecto cognitivo

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mas vai além dele.

1. Verdade como conhecimento e como existência 

Podemos, para simplificar as coisas, falar em verdade comoconhecimento e verdade como existência. Elas não se excluem,mas se completam. Comecemos, então, pelo aspecto cognitivo,da verdade como conhecimento.

Tanto pela Bíblia como por estudos atuais na área dacognição, que trata de como os seres humanos chegam a

conhecer, nossa percepção cognitiva da verdade pode se dar emdois níveis. O primeiro é, por assim dizer, o nível da superfície,do consciente, do conteúdo propositivo de uma formulação, deuma fala, de um texto. Verdade, nesse sentido, é a exatidão dedeterminadas formulações em contraste com outras.

Mas há um segundo nível, mais profundo, que opera nochamado "inconsciente cognitivo". Refere-se às metáforas básicas que moldam nossa apreensão do que compreendemoscomo verdade. Quando concentramos nossa atenção nelas, percebemos que já nossas aproximações aos conteúdos podemser diferenciadas. Estas metáforas são como que as estruturassubterrâneas que dirigem e organizam o nosso pensamento. As

formulações do nosso pensamento, que dão origem aosdiscursos, às doutrinas e às teologias, vêm organizadas a partirde certas metáforas fundantes que presidem as formas como pensamos.

Esta distinção, então, se refere à dimensão cognitiva da

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verdade, da verdade como conhecimento. Além dela, comovimos, devemos falar da dimensão existencial, da verdadecomo modo de existência. Estas duas dimensões muitas vezes

têm sido separadas e até tratadas como alternativas. Mas não éassim. O que as une é justamente o nível "subterrâneo" dadimensão cognitiva, o nível do inconsciente cognitivo. Ali sesedimentam as metáforas que não só guiarão o nosso jeito deconhecer as coisas, mas também as nossas avaliações e asdireções que daremos à nossa existência.

Feita esta introdução, podemos agora perguntar pela noção bíblica de verdade.

2. Verdade no Novo Testamento 

Partindo da distinção acima, quero perguntar pela noção deverdade que encontramos nos textos bíblicos. Minha proposição é, primeiramente, que o Novo Testamentoreconhece a noção cognitiva de verdade propositiva, mas quenesta dimensão ele situa a pergunta pela verdadefundamentalmente no segundo nível. Ou seja, verdade nãoestaria primeiramente relacionada com conteúdos propositivos,mas com as metáforas profundas sobre as quais tais conteúdos propositivos são construídos.

Podemos ver isso, por exemplo, na linguagem dos profetas e,de um jeito quase que auto evidente, nas parábolas de Jesus.Elas são um bom exemplo de que também o Novo Testamentositua a pergunta pela verdade, em última análise, no nível dasmetáforas fundantes. Desta perspectiva, o sentido das parábolasàs vezes pode ser justamente a recusa em decidir questões aonível propositivo, e o apontar para o nível mais profundo, como

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no caso da história dos dois irmãos que disputavam sobre umaherança (Lucas 12.13- 21). Parábolas, então, representam aforma que Jesus usava para chamar a atenção de seus ouvintes para as metáforas originárias de seu pensamento e conduta,

colocando-as em questão e desafiando à sua adaptação ousubstituição por novas metáforas que representem mais adequa-damente a proposta do Reino de Deus.

Assim, na dimensão cognitiva Jesus aponta para o nível mais profundo do inconsciente cognitivo, das metáforas que dãoorigem ao nosso pensamento e que o presidem. E é deste nível

 profundo que emana, por sua vez, a dimensão existencial daverdade, em que a verdade deixa de ser predominantementeuma questão de conhecimento e se torna uma questão de modode existência, de jeito de viver. E é aí que o Novo Testamentoconcentra a pergunta pela verdade. Isso é bem colocado emJoão 7.17: "Se alguém quiser fazer a vontade dele, conhecerá arespeito da doutrina". Fazer a vontade de Deus, aqui, nãosignifica tanto fazer coisas, mas viver de um determinado jeito.Aqui a dimensão cognitiva é atrelada à dimensão existencial. Otipo de conhecimento de que aqui se trata só é possível a partirde determinada postura existencial.

Isto dito, podemos agora examinar algumas passagenscentrais para a compreensão da noção de verdade no NovoTestamento. Começamos com uma passagem de Paulo: Gálatas

2.11-21. Trata-se do famoso encontro entre Pedro e Paulo emAntioquia, e da discussão pública entre os dois. Segundo Paulo,quando ele chegou a Antioquia ficou sabendo que Pedro, antesda chegada de alguns irmãos da parte de Tiago, comia com oscristãos gentios, e que com a chegada deste grupo passou a seisolar, como eles, não mais tendo comunhão de mesa com os

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cristãos não-judeus. Para Pedro, aparentemente, isso nada tinhaa ver com a verdade do Evangelho, que para ele pelo jeito estavaem outro lugar. Já para Paulo, tratava-se aqui de uma ofensa

grave ao próprio centro do Evangelho, de um falseamento daverdade do Evangelho.

Segundo Paulo, Pedro e os outros que o acompanharamestavam sendo "hipócritas", a mesma coisa que Jesus dizia dosfariseus e dos escribas. Barnabé, o companheiro de Paulo,também foi compelido a se "conipocritar", a "se tornar hipócrita junto" ( synypokrínesthai)  com Pedro e os demais (2.13).

Hipocrisia é um falseamento de atitudes, não propriamente umfalseamento de conteúdos cognitivos. Para o nosso conceitonormal de "verdade", hipocrisia seria um desvio de conduta quea rigor não toca na questão da verdade.

Ainda segundo Paulo, quando viu isso ele percebeu que seuscompanheiros "não caminhavam retamente segundo a [ou: em

direção à] verdade do evangelho" (2.14), e assim ele se viucompelido a repreender Pedro na frente de todos. Estas palavrasde Paulo encerram uma compreensão de verdade que à primeiravista parece estranha. Duas palavras gregas usadas por Paulorevelam isso. Primeiro, tomando a preposição grega  pros  emseu sentido mais normal, as palavras do texto refletem umametáfora de fundo que é bastante conhecida: a metáfora docaminho. Há um caminho que leva à verdade. A verdade, então,não é algo de que se tem posse, mas um rumo em direção aoqual se anda. Alternativamente, o  pros  poderia ser tomadocomo preposição de relação, no sentido do coram  latino.Verdade, então, seria um caminhar numa relação com oevangelho. Não vejo as duas possibilidades como excludentes,

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mas complementares: a verdade do evangelho é um caminhoandado dentro de uma relação com o mesmo, por um lado, e poroutro lado é o rumo, a meta deste caminho.

Significativo para o esclarecimento desta metáfora nestetexto é o verbo usado por Paulo: orthopodéo,  que significaliteralmente "andar retamente". Isto tem implicações teológicasde grande relevância para os nossos dias. Em termos clássicos,a teologia tem definido sua verdade como "ortodoxia". NaAmérica Latina em anos recentes se falou, em contraste comisso, em "ortopraxia" como critério de verdade; quer dizer, não

o que se pensa é a verdade, mas o que se faz. Tanto uma comoa outra têm, direta ou indiretamente, apoio na Bíblia. Paulointroduz aqui uma terceira opção: "ortopodia". Não tanto o quese pensa, nem mesmo o que se faz, mas o jeito que se anda éque define a verdade.

Esta é a única "orto-alguma-coisa" que o Novo Testamento parece conhecer, ao menos em relação explícita com a verdade.Tanto o que entendemos como "ortodoxia" como o que en-tendemos como "ortopraxia" são conceitos cunhados na históriado cristianismo e da teologia. E provavelmente ambos têm seulugar próprio, não há porque dizer que não. Mas nesse caso, seunorte e princípio definidor terá que ser sempre a "ortopodia" doevangelho. Doutrina e prática têm sua verdade definida por suarelação com "o caminho".

Há que advertir de riscos que imediatamente afloram. Estessão: primeiro, o risco de tornar a "ortopodia",imperceptivelmente, num enunciado do âmbito cognitivo,tornando-a um princípio e assim, finalmente, subsumindo-a noâmbito da ortodoxia. O segundo é o risco de tomá-la, de novo

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de forma imperceptível, refém de uma prática, subsumindo-ano âmbito da ortopraxia. Tanto a justificação pela reta doutrinacomo a justificação pelas obras da fé são um constante risco no

cristianismo, e o perigo de tornar a ortopodia  algo a ser provado, ou no âmbito das afirmações de fé ou no âmbito da práxis cristã, sempre de novo nos assedia.

3. Verdade como caminho 

Como definir melhor esta ortopodia? Em primeiro lugar, me parece fundamental o fato de, na dimensão cognitiva, ela se

encontrar no nível das metáforas fundantes do pensamento e da prática, e não ao nível de um ou outro destes. Esta percepçãotem grande importância para as nossas teologias e o nosso fazerteológico, além de, é claro, deslocar a própria noção de verdadee de sua apreensão. Talvez, de todas as questões normalmentetratadas na "teologia fundamental", ou nas questõesintrodutórias a uma teologia sistemática, esta seja hoje a mais

importante e de maior gravidade.O começo da percepção da verdade, então, se dá num

 processo de conversão radical, que atinge as metáforasfundantes do nosso pensar e do nosso agir, que são entãoconfrontadas com esta metáfora do caminho como "ambiente"onde mora a verdade. Segundo esta metáfora, a verdade não éum resultado que possamos já ter em mãos, nem pelo reto

 pensar nem pelo reto agir (sendo que o que é "reto", neste caso,seria definido de antemão por esta "verdade"). A verdade é,uma vez, algo que está adiante de nós; e, outra vez, o caminhoque leva para lá, bem como a relação que nos define nestecaminho. Saímos, então, de concepções estáticas para umaconcepção dinâmica da verdade. Verdade é mais processo que ponto de partida ou resultado, pelo menos do ponto de vista do

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ser humano envolvido em sua apreensão.

 Não há de ser por acaso que os primeiros cristãos eramconhecidos como "os do caminho" (Atos 9.2), e que o próprio

evangelho era chamado por eles simplesmente de "o caminho"(Atos 19.9,23; 24.22).

É possível ilustrar isto melhor. Primeiro, o que está adiantede nós. Poucas passagens do Novo Testamento apresentam issotão claramente e de forma tão expressiva como Hebreus 12.1-2. Aqui temos novamente a metáfora do caminho, e o que estásendo descrito é a caminhada da fé, aquela fé antes definida

 pelo autor como "a certeza do que se espera, a convicção do quenão se vê" (Hebreus 11.1). E esta caminhada é descrita comoum desembaraçar-se de todo peso supérfluo queconstantemente somos tentados a adquirir e carregar, e "correr perseverantemente" o trajeto que nos é proposto, de olho fixono alvo. O alvo desta caminhada é descrito como "o autor econsumador da fé, Jesus". Jesus, então, é o que está no início da

caminhada da fé e ao mesmo tempo é seu alvo; assim, sua presença e a relação com ela determinam a qualidade docaminho.

Podemos lembrar aqui o dito paulino: "a partir dele, por meiodele e para ele são todas as coisas" (Romanos 11.36). A fé édada por ele, é constantemente mediada por ele, e a ele se diri-

ge. Jesus, então, é a verdade para onde o caminho se dirige. Neste texto aparecem as mesmas qualificações do textoanterior: Jesus é o ponto de partida; é o fim; é a mediação, o queestá entre o começo e o fim da caminhada; é, portanto, ocaminho.

O próprio Jesus disse: "Eu sou o caminho" (João 14.6). Este

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texto joanino é de especial importância por relacionardiretamente a metáfora do caminho com a verdade. Logo aseguir, Jesus diz também: "Eu sou a verdade". E a terceira

definição que segue é: "Eu sou a vida". Compreendendo-se istoa partir da estrutura de paralelismo própria do pensamentohebraico, estes três termos devem ser vistos um à luz do outro,remetendo todos à mesma realidade.

A verdade, então, é o caminho. A verdade é a vida. Se pensarmos em termos de paralelismo, "vida" aqui é o caminho

que é a verdade. A verdade se encontra no processo de vidaentendido como caminho. Creio que, em termos conceituais, oque mais se aproxima disso no Novo Testamento é o conceitode "discipulado". A verdade é o processo do discipulado,iniciado por Jesus, mediado continuamente por ele econduzindo a ele. E quero parar por aqui para não incorrer norisco acima advertido de, imperceptivelmente, tornar tudo

novamente uma questão de conceitos ou de práticas. A verdadesó se faz e só se deixa apreender no próprio caminho, não emconceitos sobre o mesmo e nem em práticas que supostamentedevem mostrar que estamos no caminho. É a mudança demetáfora que importa aqui.

PAUL TILLICH expressou muito bem esta noção de verdadecomo caminhão, em uma prédica em que a certa altura ele dizo seguinte: 

Cara comunidade! Não esqueçamos jamais, nem para nós, nem para os outros a quem queremos ajudar a chegar à verdade. Se averdade fosse uma doutrina, teriam razão os zombadores que dizem:o que é a verdade? Pois toda doutrina pode ser contradita, e o será.

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Todas têm seu tempo, e então passarão. Outras virão em lugar delas.Quem busca a verdade em uma doutrina, ainda não se elevourealmente por sobre aquilo que é transitório, ainda não sabe do queé eterno. A verdade não é doutrina, mas vida. A verdade não é uma

coisa, mas uma pessoa. O Deus vivo e eterno, que zomba de todadoutrina, ele é a verdade. E quem o tem, tem a verdade, tem umafonte inesgotável de vida, sempre nova, sempre mais rica. E estemovimento eternamente renovado, nunca parado, de pessoa a pessoa, isto é a verdade. E é por isso também que não existem váriasverdades, duas ou três ou sete, que se poderia receitar; mas uma únicaverdade, que se deve viver. E mesmo que pudesses recitar a Bíbliatoda, se não tivesses nada desta vida [que é a verdade]; e uma outra

 pessoa soubesse apenas uma palavra bíblica e a tivesse vivido, elateria a verdade e tu a mentira. A verdade não se deixa ensinar, nãose deixa imprimir, não se deixa ler, porque Deus não se deixaensinar, nem imprimir e nem ler. A vida é a verdade. A pessoa, oespírito é a verdade, e não uma letra. Deus é a verdade. O que é averdade?, ressoa a pergunta ansiosa de quem busca. Nãodeterminado conteúdo discursivo, não uma doutrina, mas Deus, oDeus vivo e pessoal, ressoa a resposta1.

4. Verdade e verificação

O que foi dito até aqui pode ser confrontado com a exigênciade validação ou de verificação da verdade. Esta questão é séria,e já a Bíblia a coloca, em relação, por exemplo, com a profecia.A profecia autêntica deve se verificar na história, e este é o seu

critério de autenticidade. Naturalmente, os critérios sãoteológicos e podem não ser os mesmos que a ciência usa paraverificar a sua noção de verdade. Não colocar esta questão seriacorrer o risco de uma relativização completa da verdade.

1 Paul Tillich, Frühe Predigten, 1909-1918 (Ergänzungs- und Nachlassbände zu den GW 7), p.193.

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Verdade, nesse caso, seria simplesmente o caminho de vida decada um/a, sem quaisquer referenciais externos que pudessemservir de parâmetro.

É importante que se diga que, da maneira como a questãovolta aqui, ela não representa simplesmente o retorno da antigaquestão filosófica e científica da relação entre verdade objetivae subjetiva, ou seja, verdade que independedo que nós pensamos do fato e verdade que depende do que nós pensamos.Esta relação, como dito acima, permanece sempre no âmbito

cognitivo, do conhecimento como ele se dá na superfície danossa mente, seja por sua afirmação ou por sua negação.Quando aqui falamos em caminho,  falamos de algo que vaialém do âmbito da objetividade ou da subjetividade. Não setrata da forma como fazemos as coisas ou de como pensamosou sentimos, e sim de como caminhamos, como somos, comovivemos.

O pólo "externo" ao caminho pessoal não se confunde comuma objetividade em relação a uma subjetividade. Trata-se,antes, de um caminho em confronto com, ou à luz de, outrocaminho. Trata-se do caminho de Jesus como paradigma dosnossos caminhos, da humanidade de Jesus como representaçãode nossa própria humanidade essencial. O que o caminho é, issonos foi mostrado exemplarmente por Jesus; aí temos mostradodiante de nós o que é a vida e o que é, finalmente, a verdade. 

A questão da verificabilidade da verdade teológica cristã é

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 bem tratada por PAUL TILLICH em sua Teologia Sistemática2. "Verificação", segundo ele, é "um método que nos permita de-cidir sobre a verdade ou a falsidade de um julgamento". A

verificação "pertence à natureza da verdade". Sem ela, os juízosque fazemos são simplesmente "expressões do estado subjetivode uma pessoa".

A partir de sua distinção entre razão técnica e razãoontológica, ou das atitudes "controladora" e "receptiva" darazão, TILLICH mostra que devemos reconhecer dois métodos

de verificação. Um é o método experimental, científico; o outroé experiencial, "é verificado pela união criativa de duasnaturezas, a daquele que conhece e a daquilo que é conhecido".Este teste é realizado no "próprio processo da vida”3.

O racionalismo e o pragmatismo, segundo TILLICH, discutema questão da verificação da verdade "de tal forma que ambos

omitem o elemento de união cognitiva e conhecimento recep-tivo". O racionalismo só aceita como verdade o que pode serverificado experimentalmente, levando assim a umreducionismo científico. Já para o pragmatismo, verdade é "oque funciona" na prática. "Ambos estão amplamente de-terminados pela atitude de conhecimento controlador e presosàs alternativas implícitas nele.

Em oposição a ambos, deve-se dizer que a verificação dos princípios da razão ontológica não tem nem o caráter de auto-

 

2 Paul Tillich, Teologia Sistemática (5. ed. Revisada), p. 113-18.3 Id., p.115.

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evidência racional nem de teste pragmático''4. Sua verificação é

"sua eficácia no processo vital da humanidade"

5

.A razão científica, portanto, deve usar métodos experimentais

de verificação para determinar o que é verdade ou não. Já no casoda razão que usamos no dia a dia, e que inclui intuição, afetos, etc.,esta verificação não pode se dar deste jeito. Ali a verdade severifica dentro do processo da vida. Isso pode levar tempo, pois a

vida é que vai mostrar a verdade. E sempre será parcial e relativo,enquanto estivermos a caminho.

 Na sequência, TILLICH vai falar da revelação, que introduz uma base mais segura de verificabilidade, sem, no entanto, retirá-la dointerior do processo vital, é importante insistir nisso. A revelação,tal como testemunhada na Bíblia, inclui proposições, sim. Mas já

no âmbito cognitivo estas proposições devem ser examinadasdesde o seu fundamento metafórico, ou seja, nas metáforasfundantes que as organizam. E a verificação da verdade destas proposições também não se dará somente ao nível do processocognitivo.

Em oposição a ambos, deve-se dizer que a verificação dos

 princípios da razão ontológica não tem nem o caráter de auto-evidência racional nem de teste pragmático"6. Sua verificaçãoé "sua eficácia no processo vital da humanidade"7.

A razão científica, portanto, deve usar métodosexperimentais de verificação para determinar o que é verdade

4 Id., p.117.5 Id., p.ll8.6 Id. .117.

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A PERGUNTA PEIj\ VERDADE 41  

ou não. Já no caso da razão que usamos no dia a dia, e que

inclui intuição, afetos, etc., esta verificação não pode se dardeste jeito. Ali a verdade se verifica dentro do processo da vida.Isso pode levar tempo, pois a vida é que vai mostrar a verdade.E sempre será parcial e relativo, enquanto estivermos acaminho. Na sequência, TILLICH vai falar da revelação, queintroduz uma base mais segura de verificabilidade, sem, noentanto, retirá-la do interior do processo vital, é importanteinsistir nisso. A revelação, tal como testemunhada na Bíblia,inclui proposições, sim. Mas já no âmbito cognitivo estas proposições devem ser examinadas desde o seu fundamentometafórico, ou seja, nas metáforas fundantes que as organizam.E a verificação da verdade destas proposições também não sedará somente ao nível do processo cognitivo que acontece na

superfície da razão. A verdade delas se verificará no nível dasmetáforas que orientam a nossa vida e que se transformam emvivências concretas.

Com isso, temos os elementos para tentar agora definirmelhor o que significa a ortopodia em relação com, ou emdireção à verdade do evangelho, bem como sua

verificabilidade.

5.  O caminho de Jesus como critério de verificação da verdade cristã

O "caminho de Jesus" introduz, desde a revelação, umcritério de verificabilidade, que, no entanto, não elimina averificação da verdade em nossa própria vida. Trata-se de umavida no espelho da outra, e há que advertir que temos aí umamão dupla, pois em última análise nossa percepção da vida de

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Jesus não vem somente dos textos que dela dão testemunho,

mas seria impossível sem nossa percepção de vidas reais de pessoas reais em nosso próprio tempo e espaço, que nos dá pressupostos sem os quais a leitura da vida de Jesus não poderia fazer sentido real para nós.

Creio que um dos que melhor percebeu isso na tradiçãocristã foi MARTIM LUTERO.  Para ele estava meridianamenteclaro que aqui vale o solus Christus, o "só Cristo". A fé é dada por Jesus, em graça, é alimentada em graça por ele ao longo davida, e a fé tem Jesus por alvo. E Lutero soube também tirar asconsequências disso para a compreensão da verdade: verdadeé was Christum treibet, "o que leva a Cristo"; talvez melhor, "oque se impõe como representação adequada do Cristo paranós". Este era o seu critério soberano na leitura da Bíblia, e

assim também critério soberano na leitura de textos dou-trinários e dos escritos confessionais. É diante deste critérioque todos os textos e todas as proposições devem ser justificadas. Aqui temos o Evangelho, critério soberano naconfrontação com todos os textos da tradição cristã.

Este Cristo é essencialmente o da cruz, o Cristo que se

colocou como nosso representante sob o juízo e a graça deDeus e que por isso foi morto e ressuscitado, o Cristo no qualsomos inseridos pelo batismo de modo a vivermos en Xristô, "em Cristo". Morte e ressurreição são o distintivo do caminhode Cristo. Esta é, segundo Paulo, a essência do evangelho queele recebera e que pregava. Passei a vocês (...) o que recebi:

que Cristo morreu (...) e que ressuscitou" (1 Coríntios 15.3-4).

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Certamente não é acidental que ele usa a mesma fórmula

 para falar da eucaristia, também ela recapitulação doevangelho: "Recebi do Senho o que também passo a vocês (...);anunciam a morte do Senhor, até que ele venha" (1 Coríntios11.23-26). A morte e a ressurreição de Cristo são tambémanunciadas no batismo. Ser batizado em Jesus Cristo significaser batizado em (ou, para dentro de) sua morte e ressurreição(Romanos 6.3-4). E é justamente o batismo que representa o ponto de intersecção entre a vida de Jesus e a nossa vida,colocadas a partir daí nesta relação de espelho, à luz da qualPaulo podia, no texto de Gálatas com que iniciamos estareflexão, falar de si como "não vivendo mais eu, mas Cristo emmim" (Gálatas 2.20).

6. 

O caminho de Jesus e o nosso Assim, o caminho cristão se dá no espelho do caminho do

Cristo. Aqui temos que ter uma extrema atenção para evitar aarmadilha da colocação de uma alternativa entre a fé na obrasalvífica irrepetível de Cristo por nós, de um lado, e a imitatiochristi, a imitação de Cristo, de outro lado. Um acento

exclusivo num ou noutro pode pôr o mais importante a perder.Pois é justamente na inteireza do processo que inicia com aencarnação de Deus, sua morte e ressurreição e segue com a proclamação disto no evangelho e a apropriação/extensão disto para dentro de vidas humanas a partir do batismo que está ainteireza da verdade do evangelho. Por vezes demais temoscorrido o risco de reduzi-lo ou a uma pura fé no que se deu em

Cristo no passado, ou a um puro refazer de sua práxis no

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 presente. Os perigos de ambos têm a ver com sua

unilateralização racional ou pragmática.A verdade do evangelho, portanto, se vive e se verifica na

vida das pessoas que com ela se relacionam. Toda a vida deuma pessoa, sob esta ótica, é um constante atualizar daexperiência batismal, que só se completa plenamente na morte,com justeza interpretada pela igreja antiga como o dia do novo

nascimento.

Só assim podemos compreender com a devida profundidadeo que LUTERO quis dizer em sua conhecida afirmação de que"é vivendo, sim, morrendo [e sendo julgado] que se faz umteólogo, e não compreendendo, lendo e especulando". O vivere o morrer da pessoa no evangelho atualizam a morte e a

ressurreição de Cristo para ela e marcam sua identidade comele. Poderíamos imaginar o caminho da pessoa no evangelhocomo repetindo o de Cristo, mas numa direção inversal. É a partir de sua morte e ressurreição que podemos experimentarem nossa vida esta morte e ressurreição, o que é o sentido do batismo; e a partir dela, a sua/nossa vida-verdade.

Com isso também fica assegurada a unidade entre a fé noque Cristo fez por nós e a vivência na qual ela introduz.

A verdade do evangelho, portanto, se decide no caminho noevangelho, caminho marcado por morte e ressurreição como aexperiência constante do juízo e da graça de Deus, experiênciaque atualiza diariamente a morte e a ressurreição do batismo e

à qual remete também a eucaristia, "até que ele venha". Nesta

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experiência constante somos sempre de novo libertados de nós

 próprios e colocados a serviço do nosso próximo, sob o signodo Jesus que deu sua vida neste serviço.

Desta verdade do evangelho a Bíblia quer testemunhar, edela e do testemunho bíblico acerca dela querem testemunhartambém as doutrinas e as confissões cristãs. Na medida em queo fazem, a verdade está também nelas. Nunca, porém, como

verdade própria, originária, mas sempre como verdadederivada, testemunhada. Sua verdade está em apontar para averdade do evangelho, que se faz vivência concreta. Aquitalvez fosse adequado introduzir um terceiro elemento naclássica relação entre norma normans  (norma normativa) enorma normata  (norma normatizada). A própria Bíblia, em

relação ao evangelho de que testemunha, deve ser vista em doismomentos cuja dialética nunca deve ser rompida: em relaçãoao evangelho a Bíblia é norma normatizada, em primeiro lugar,subordinada à norma primeira que é o evangelho; só emsegundo lugar também norma normativa, pois o que podemossaber do evangelho vem nela registrado. E é destes dois, emsua dialética, que as confissões cristãs devem dar conta sempre

de novo.

7. Concluindo

Trazendo isto para a nossa realidade, devemos lamentar queas igrejas cristãs não têm conseguido, até hoje, sair de um processo de mútua exclusão. Seja por motivo da

superestimação do universo conceitual, dogmático, seja por

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motivo da superestimação de determinadas concepções da

 prática do cristianismo: localizar a verdade em qualquer umdos dois é não encontrá-la como a entende o Novo Testamento.A concepção neotestamentária da verdade, nesse sentido,chega a nós primeiramente como juízo, como juízo sobre anossa falsa imaginação do que seja a verdade e de como nosrelacionamos com ela. Apreensões parciais do processo daverdade, seja como reto pensar, seja como reto agir, são pornós unilateralizadas, e assim absolutizadas. E assim, em nomede tal verdade, excluímos quem pensa localizar a verdade emlugar diferente.

 Nossas igrejas e nossas teologias devem perceber que o problema não está simplesmente no outro e que nós é que

temos o conceito certo da verdade. Por caminhos diferentes,todas parecem estar constantemente arriscadas a cometer omesmo deslize em relação à verdade tal como a concebe aBíblia. E, como é da verdade que aqui estamos falando, já étempo de parar de contemporizar como se se tratasse dequestão eletiva ou periférica. E do cerne do cristianismo queaqui estamos tratando. Isso exige conscientização,

arrependimento e desejo de mudança. Não cada um querendomudar o vizinho, mas cada um vendo como deixa mudar a si próprio, na expectativa de que o vizinho faça o mesmo.

Que a verdade, para nós, seja o caminho de vida aberto porCristo, continuamente alimentado na comunhão com ele, e aele conduzindo. E para que o conteúdo ou a forma de expressão

desta verdade não fique em abstrato, o próprio Novo

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Testamento nos indica no que ela consiste: "verdadeando em

amor" (Efésios 4.15). Aqui, surpreendentemente, o substantivoalétheia, "verdade", é transformado em verbo, expressandoassim com toda a clareza a metáfora do caminho: "fazendo averdade, "verdadeando". E isso só se faz com amor, comagápe, o supremo critério tanto para o conhecimento da própriaTrindade divina, seja em suas obras ad intra (no seu própriointerior) ou ad extra (o que ela realiza no mundo), como parao conhecimento da verdade do Evangelho. A verdade doEvangelho não é primeiramente proposição cognitiva, nem padrão de prática, mas sim jeito de caminhar, jeito de caminharmarcado pelo amor.

Que nossas igrejas e nossas teologias, ainda em processo de

exclusão mútua por motivo de suas verdades, possam seconverter à verdade do Evangelho, e que na vivência destaaprendamos a nos incluir em amor. E de novo a advertência:que isso não se dê tão somente a nível de enunciados teóricosou de compreensões de prática, mas sim na caminhadaconjunta em Jesus, sabedores de que é dele que vem a nossa fécomum e que é para ele que nos dirigimos. E se assim é, que

no caminho nos deixemos alimentar pelo mesmo Jesus de suamesa comum. Nesse sentido, voltando ao texto inicial, quedeixemos de ser como Pedro, excluindo da mesa da comunhãoirmãos que pensam diferente e agem diferente, para que nãotenhamos que ouvir também a acusação de Paulo: "não estaiscaminhando retamente na verdade do Evangelho". A

 possibilidade de fazê-lo é graça; a negativa é juízo, juízo que

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deve ser anunciado em nome desta graça e de sua vivência

concreta neste mundo.

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27 Capítulo II 

Capítulo I I

TEOLOGIARaras vezes na história do cristianismo os fundamentos da

teologia cristã foram tão intensivamente discutidos como naReforma do século 16. Os questionamentos levantados porLutero não ficavam em questões de superfície, mas iam às próprias raízes da teologia. E isso também vale para outrosreformadores, como Calvino. E vale, não por último, para a

Reforma católica, que foi tão profunda que faz da IgrejaCatólica pós-Reforma uma instituição bastante distinta da dos primeiros 15 séculos de cristianismo.

Quando Lutero,  diante do que ele sentia comoambiguidades da teologia e prática do catolicismo de seusdias, define a sua teologia a partir da afirmação dos chamados

"princípios exclusivos" (só Cristo, só a graça, só a fé, só aEscritura) ele, LUTERO, está convencido de que recupera umfundamento da teologia católica. Não uma teologia nova, portanto, mas a teologia evangélica que é a base da igrejauniversal, católica. Poderíamos, assim, chamar estas quatroafirmações de os pontos cardeais da teologia cristã.

1. 

Os quatro pontos cardeais da teologia cristã

Hoje em dia a afirmação, por parte das teologias protestantes, destes princípios exclusivos, destes pontoscardeais, precisa ser olhada com mais atenção. Mesmo querepitam as palavras dos reformadores, talvez elas estejammais longe da intenção deles do que elas próprias supõem.

Minha sugestão aqui é que não é simplesmente a afirmaçãodestes princípios exclusivos em sequência que, como tal,

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define a identidade teológica cristã. Solus Christus, sola scriptura, sola gratia, sola fide tomados separadamente têmsido, a rigor, afirmações teológicas praticamente comuns atoda a tradição cristã desde os primórdios do cristianismo.Também o catolicismo e a ortodoxia grega e oriental, a seumodo, sustentam estas afirmações como fundamento de suateologia.

Quer me parecer que o que de fato distingue uma tradiçãoda outra é a forma como se relaciona (ou não) estes pontoscardeais uns com os outros. E que o decisivo não é aafirmação sequencial dos mesmos, em separado, mas justa-mente uma determinada correlação entre eles, que gera umdeterminado perfil teológico no conjunto. O que identifica ateologia evangélica católica é uma hermenêutica dos  sola que, ao insistir em sua exclusividade, paradoxalmente insiste

em sua simultaneidade. Exclusividade parece sempre, dentrode nossa lógica "normal", a afirmação de um princípio e aexclusão de outros. Afirmar a simultaneidade de quatro princípios exclusivos, nesse sentido, seria ilógico. Paradoxal,na verdade. O paradoxo não é ilógico, mas tem sua lógica própria, que vai contra a opinião (doxa) normal e corrente.

Como explicar esta simultaneidade dos princípiosexclusivos? Quero primeiro apresentar dois jeitos de explicarque têm marcado a teologia cristã até aqui e que não me parecem completamente adequados, exatamente por nãofazerem jus aos aspectos mais caracteristicamente evangéli-cos do cristianismo. Depois quero trazer a minha contribuição

a esta questão teológica fundamental, descrevendo de quemaneira percebo esta hermenêutica correlativa dos princípiosexclusivos como um dos elementos centrais da identidade da

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teologia cristã, ou seja, evangélica católica.

Uma maneira de explicar a simultaneidade dos princípios

exclusivos seria dizer que todos eles representam uma e amesma coisa, talvez vista desde diferentes ângulos. Masinsistir na sua unidade substancial. Nesse caso,substancialmente não seriam quatro princípios, mas um só, ea rigor não deveríamos mais falar em simultaneidade, já queesta pressupõe coisas diferentes colocadas lado a lado. Estamaneira de explicar tem sido tentada na teologia por séculos.E ela tem seu momento de verdade, ancorado na unidade deDeus e do seu propósito salvífico. A substância seria unidade,a diversidade estaria nas formas e na nossa percepção desdea realidade do mundo e talvez do pecado. Mas esta maneirade ver, como já foi dito, não expressa adequadamente asimultaneidade dos distintos princípios. Representa já um

certo falseamento, a partir da não-percepção ou do não levarem conta que a teologia cristã se sustenta em uma lógica para-doxal.

Uma segunda maneira de explicar a coexistência dos sola seria considerá-los desde o ponto de vista de uma divisão detarefas. Se trataria de quatro princípios, mas cada um é o 

 princípio no âmbito em que vigora. Assim, p. ex., Cristo seriao mediador da salvação, a  Escritura  o meio cognitivo peloqual podemos ter acesso a ela, a Graça a forma pela qual elanos é concedida, a Fé a forma de apreensão da salvação. Umavariante se originaria da percepção de uma primazia do soluschristus, já que este é na verdade o conteúdo da salvação, sua

substância própria. Assim, a Escritura seria o meio cognitivo pelo qual sabemos de Cristo, a graça a forma como ele nos éconcedido e a fé o modo de sua apreensão. Também este jeito

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de explicar tem seu claro momento de verdade. O não-adequado nele me parece estar um pouco abaixo dasuperfície. No fundo ele reflete um certo escolasticismo, tantono método como nas categorias, que é estranho ao modo defazer teologia tipicamente bíblico e evangélico. E convémaqui insistir em que uma tendência escolasticizante se verificanão só no meio católico, mas também nas teologias da Refor-ma, como o mostra a escolástica protestante do imediato pós-Reforma. A simultaneidade como um dado real, dinâmico e

tensionador se perde neste esquema.

O terceiro jeito de explicar que aqui apresento quer ser,então, minha perspectiva de uma hermenêutica de correlaçãoque consiga preservar tanto a unidade dos  sola  como suadiversidade e sua simultaneidade viva e em tensão. E o que passo a desenvolver agora com mais detalhes.

2. 

 Só o Cristo

Dentro desta proposta hermenêutica, o que significaexatamente só o Cristo será percebido quando este princípiofor colocado em correlação com os outros três. Além disso, para podermos avaliar a extensão da compreensão

caracteristicamente evangélica, e, portanto, católica, deste princípio, podemos tentar vislumbrar alternativas  a ele, possíveis e sempre de novo realizadas historicamente portendências da teologia cristã, se não como afirmaçõesexplícitas, ao menos como tendências implícitas de certasteologias.

O que significa Cristo  como conteúdo e mediador dasalvação, então, nos é cognitivamente revelado na Escritura. Isso não necessariamente significa que Cristo não possa se

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revelar ou que não se revele de outras maneiras, p.ex., nossacramentos ou mesmo na história e na criação inteira. Massignifica, sim, que na Escritura nos são dados os critérios pelos quais sempre de novo precisamos medir e avaliarsupostas revelações de Cristo. A partir daí podemoscompreender a importância da Bíblia para a teologia, e a partir daí devemos insistir hoje sempre de novo na im- portância fundamental do estudo da Bíblia. É nela que temoso meio cognitivo privilegiado para sabermos quem é Cristo e

termos acesso a ele.

A identificação, por parte do cristianismo primitivo, deJesus de Nazaré com o Cristo prometido nas Escrituras,indica uma direção fundamental da cristologia. E indicatambém uma direção fundamental para o próprioconhecimento de Deus. A antiga distinção, novamente enfa-

tizada na Reforma, entre o Deus abscôndito ou oculto e oDeus revelado, tem aqui uma de suas raízes. De Deus só podemos saber o que ele próprio nos revelou. E ele revelou asi próprio. Jesus é o rosto de Deus para nós, e as Escriturascontêm o registro do testemunho deste rosto de Deus paranós.

O que significa Cristo é, em segundo lugar, revelado pela graça como o modo pelo qual ele se dá a nós. Uma vez issosignifica que o próprio Cristo é essencialmente graça, mesmoquando vem envolto em lei e juízo. E significa também que ofato de ele se dar a nós é graça, não necessidade histórica. Esignifica ainda que nossa percepção de Cristo é sempre graça,

não resultado de obediência moral ou de capacidadeintelectual. Sempre de novo a teologia e a espiritualidadecristã têm se inclinado perigosamente nestas direções,

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terminando com imagens de Cristo que não correspondem ásua correlação com a graça.

O que significa Cristo é, em terceiro lugar, revelado pela fé como o modo de sua apreensão.

Isso significa, por um lado, que a teologia cristã nunca temgarantias ou salvaguardas. Seu centro e conteúdo, e com issoseu conjunto, só se deixa apreender pela fé. Para entendermoso que significa fé, o que também não é consenso na teologia

cristã, teríamos que correlacioná-la com os outros três princípios, o que será feito mais adiante. O mesmo vale paraa graça.

O objeto de toda a vida e teologia cristã, então, só se deixaapreender pela fé. Não é um dado, acessível por quaisquercapacidades ou possibilidades da espiritualidade ou da razão

ou da moralidade, riscos sempre presentes quando o princípioda fé na prática nos sufoca pela insustentável leveza do seuser. Significa, por outro lado, sempre de novo resistir àstendências de tornar Cristo palpável e "concreto", seja por práticas de espiritualidade, seja por ideologias culturais ou políticas. O que significa  só o Cristo  nos é mostrado na

Escritura que nos remete à graça e à fé como modos de dádivae apreensão de Cristo.

Outro ângulo de apreensão do significado do solus christusé  colocá-lo diante das possíveis alternativas que lhe sãoinerentes na teologia cristã. Duas dessas possíveisalternativas seriam as outras duas pessoas da Trindade. Uma

teologia que, na prática, transfere a centralidade de Cristo para a primeira pessoa da Trindade, não seria novidade nahistória da teologia cristã e nem nos diálogos ecumênicos

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contemporâneos. A própria teologia trinitária sempre esteveameaçada de uma certa hierarquização onde a primeira pes-soa de Deus na prática assume a centralidade. Antigas emodernas tentativas de construir teologias trinitárias que nãosucumbam a isto mostram o quanto este risco é real. Estatendência se mostra especialmente forte em igrejas ou círcu-los cristãos organizados de forma hierárquica ou baseados em princípios autoritários.

Em outra direção, a possibilidade de transferir acentralidade para a terceira pessoa da Trindade tambémsempre de novo se faz presente na teologia e naespiritualidade cristã. Desde o cristianismo antigo,concepções evolucionárias da história da salvação têm vistona era do Espírito o auge da revelação cristã, e na práticatornado o Espírito Santo o elemento central em Deus.

Movimentos carismáticos e de renovação muitas vezes têmcorrido este risco.

Tal como na correlação dos sola, uma correlação entre as pessoas da Trindade que mantenha sua unidade e suadiversidade viva, sem desconsiderar um ou outro e sem searriscar a fazer de Deus um princípio escolástico, requer uma

 perspectiva de simultaneidade e ao mesmo tempo um foco. Ateologia cristã tem se caracterizado por reconhecer este focoem Cristo, que lhe abre a compreensão da salvação e tambémdo ser de Deus. Manter este foco numa verdadeira perspectivade simultaneidade dinâmica em tensão, é o constante desafiotanto da teologia como da espiritualidade. 

3. 

 Só a Escritura

Desde a percepção básica da correlação entre os distintos

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 princípios exclusivos da teologia cristã, o que significa sola scriptura,  só a Escritura, ficará claro à luz dos outros três sola. A exclusividade da Bíblia para a teologia e a espiritua-lidade cristã precisa ser bem definida, e de uma forma quenão suprima a exclusividade de Cristo, da graça e da fé. Estesempre tem sido um risco em construções teológicas que não percebem a dialeticidade e especialmente a paradoxalidadeda teologia cristã.

Como manter a exclusividade da Escritura sem suprimir aexclusividade de Cristo? Creio que esta é uma das questõesmais básicas de uma teologia e de uma hermenêutica cristã.E sempre lembrando, a esta altura, que o significado de só oCristo por sua vez já foi melhor iluminado e esclarecido porsua correlação com os outros três princípios.

Uma das percepções fundamentais de Lutero 

foi justamente a radicalidade com que amarrou o princípio daexclusividade da Bíblia com Jesus Cristo. Cristo se torna, para ele, princípio, centro e fim das Escrituras, como aliás detudo o mais (cf. Romanos 11.36). Isto certamente tem gravesimplicações para o modo como se compreende o papel daBíblia na igreja e na teologia, e especialmente a maneira

correta de interpretá-la. Cristo é a chave. Desde o começo,tudo tem sua fonte nele.

Isso significa algo para os textos reunidos na Bíblia.Significa, desde logo, uma razão para estarem aí. Quando estanão for bem percebida à luz da exegese histórico-crítica, este princípio teológico poderá orientar nossa leitura. Significa,

também, que tudo na Bíblia gira em redor de um centro,oculto na maioria dos textos, mas perceptível para quemcom reendeu a necessária correla ão do texto bíblico com

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Cristo. Significa, por último, que Cristo é também o alvo dainterpretação do texto bíblico, que nas suas profundezas écomo que sustentado por esta escatologia invisível, masdiscernível na teologia como um todo.

 Na prática diária da leitura da Bíblia, o moto de LUTERO: "bíblico", no sentido de evangélico, é was Christum treibet  (oque propulsiona para Cristo), é revolucionário para a teologiacristã. Infelizmente, nem sempre a teologia e a piedade têmse orientado nesta direção. E isto certamente se pode dizertambém das igrejas luteranas. E talvez possa se dizer tambémdos diferentes princípios hermenêuticos que governam asnossas leituras da Bíblia e que, por essa via, sustentam asnossas teologias.

Em segundo lugar, o que significa só a Escritura deve ser

entendido à luz da exclusividade da graça. Mais uma vez, oque parece simples de afirmar é, na prática, muito difícil demanter. Desde os primórdios do cristianismo, provavelmente já dentro do próprio Novo Testamento, percepções sobre ostatus da Bíblia e sua correta interpretação têm se fundadonão sobre a graça, ou pelo menos não sobre a graça somente. A compreensão do evangelho cristão como nova lei parece

desde sempre inerente ao cristianismo, mais forte em algumasde suas tendências internas do que em outras. Traços disso seencontram espalhados pelos próprios textosneotestamentários.

Certamente a lei tem um papel importante na teologiacristã. Um lugar exclusivo, poderíamos até dizer. Mas isso só

 poderá ser devidamente compreendido dentro da dinâmica desua correlação com a graça. E os riscos de, em algummomento do rocesso, esta dinâmica ser rom ida, são

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grandes, como a história da teologia e da espiritualidadecristãs tem demonstrado. E esta dinâmica pode ser rompidaem ambas as direções, é necessário dizer. Lei sem graça nãoé lei evangélica, graça sem lei não é graça evangélica. Aquitemos, provavelmente, um dos melhores testes para a nossateologia ou as nossas teologias. Conseguem elas manterevangelicamente a dinâmica paradoxal da correlação entre leie graça?

Para a leitura da Bíblia e interpretação do  sola scriptura este é o segundo princípio hermenêutico fundamental: ostextos bíblicos representam e têm em sua profundidade esteduplo caráter de mandamento e promessa, de exigência edádiva, de juízo e graça. E este duplo caráter deve sercompreendido dentro do paradoxo que faz ver que não se tratade uma duplicidade, e sim de uma unidade indissolúvel. Juízo

e graça são, juntos, evangelho. Dito de outra maneira, juízo egraça juntos são graça. Ela é a "obra própria" de Deus. A leie o juízo, bem entendidos, são expressão da mesma graça.Assim mantêm-se a exclusividade da graça sem perder nadada força da lei e do juízo.

É esta percepção que deve governar basicamente nossa

leitura da Bíblia. E não é assim, que certos textos sejam textosde lei ou juízo e outros de graça, como uma hermenêuticadesatenta poderia afirmar. Todo texto bíblico, à luz de suaancoragem profunda no  solus christus, é ao mesmo tempoexpressão de juízo e graça, pois é só assim que o sola gratia se deixa compreender evangelicamente. Para a hermenêutica

 bíblica, isso tem mais uma consequência fundamental.Significa que, pelo menos a partir de um momento do processo interpretativo, já não somos mais nós que lemos o

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texto, mas ele que, pelo movimento inerente do EspíritoSanto, se faz novamente história e passa a nos ler. Significaque juízo e graça na leitura do texto bíblico são experiênciasexistenciais de ser interpelado pela palavra do Deus vivo em juízo e graça.

Por fim, o significado de só a Escritura se deixará discernirà luz do  só a fé.  Isto, mais uma vez, tem profundasconsequências para a teologia cristã. Não raro, mesmo etalvez especialmente em suas correntes maisfundamentalistas, a teologia tem feito da afirmação daexclusividade da Bíblia um princípio racional. Ela tem sidoescolasticamente desenvolvida e desmembrada numa série deafirmações que tanto visam esclarecê-la e aprofundá-la comotambém defendê-la diante dos ataques de racionalidadesoutras. Talvez até contrariamente à intenção, a razão tem sido

esticada até onde pode para justificar tais afirmações.

Onde ocorre uma certa percepção deste fato, apelos têmsido feitos a uma razão regenerada, uma razão convertida,neste caso propriedade dos cristãos e teólogos renascidos.

A incongruência desta linha de procedimento com a

afirmação do sola fides só raramente tem sido percebida. E écertamente uma terceira característica central da teologia e dahermenêutica evangélica católica a percepção deste fato e suaconsequente aplicação para o conjunto da teologia. Comotodos os eventos fundantes do cristianismo, também o caráterda Bíblia é paradoxal. E tem que ser. A vinda de Deus aomundo não seria vinda de Deus ao mundo se não fosse

 paradoxal. Certas teologias que se apercebem disso têm, nãoobstante e de forma inesperada, suspendido a afirmação daaradoxalidade uando che am ao momento de ex licar o

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caráter e a interpretação da Bíblia. Isso, provavelmente, noafã de preservar a sua divindade e inspiração. Não percebendo que justamente neste movimento lógico se abremão, de fato, de se pensar a Bíblia como divina.

Como toda a revelação e dádiva divina, também a Bíblia é paradoxal. Isso significa que sua compreensão deve se guiar pela compreensão da manifestação salvífica de Deus emCristo, onde o divino e o humano se unem da forma mais paradoxalmente imaginável, sem perder suas característicasde divino e de humano, pelo contrário. O divino desde semprecontém o humano em si e não pode ser entendido (pelo menos por nós) sem ele, e o humano só pode ser compreendidorealmente desde sua união com o divino. Isso nos foimostrado em Jesus Cristo, e daí sua centralidade efundamentalidade para a teologia cristã.

 Na leitura concreta da Bíblia, o princípio da exclusividadeda fé se revela como olhar aberto para a paradoxalidade, porum lado, e por outro lado como postura hermenêuticafundamental. Olhar aberto para a paradoxalidade é um jeitode dizer em outras palavras o que a Carta aos Hebreus dizsobre a fé em 11.1: fé faz com que o futuro se torne presente,

faz com que o invisível se concretize. Tal presença e talconcretude, por outro lado, continuam somente perceptíveis pela fé, não se tornando possibilidades do olhar (isso seriadestituí-las de seu caráter paradoxal). Por outro lado, fé como postura hermenêutica fundamental significa não só aaproximação ao texto na esperança de que pela porta de

entrada de sua letra se consiga chegar ao espírito do mesmo,mas na abertura para que tal processo se torne encontro reale existencial com o Deus vivo através do texto bíblico. Por

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fim, deve-se acentuar que tal postura é desde sempre dádivadivina e não atributo nosso, e que muitas vezes o momentode sua criação ou revitalização em nós é justamente omomento da nossa presença nua diante da palavra do Deusvivo lida ou proclamada.

Por fim, podemos agora pensar em alternativas prováveisou viáveis ao  sola scriptura.  Mesmo ali onde, na tradiçãocristã, a exclusividade da Bíblia tem sido mantida, nemsempre na prática este é o caso. Outros princípios, que inicial-mente têm como que uma função "protetora" justamente daexclusividade da Escritura, acabam por se firmar ao seu ladonuma posição de concorrência que, sem uma cuidadosacorrelação, acaba sendo nefasta para a interpretação da Bíbliae para a teologia.

Em um extremo, temos aí todas as formas de "iluminaçãointerior" que têm se instalado no imaginário cristão comofontes de revelação ao lado da Bíblia. Geralmente issoacontece sem qualquer percepção de que as duas fontes seencontrem em tensão. O que o Espírito revela para os crenteshoje está obviamente em consonância com a Bíblia, este é o pressuposto. Forma-se assim, na melhor das hipóteses, um

círculo hermenêutico consciente onde um é lido à luz do ou-tro. No mais das vezes, contudo, as tensões daí decorrentesnão são percebidas como tais, e a prática do cristianismoacaba abrigando um sem-número de incoerências. Enquantoisso fica dentro do mesmo círculo de incoerências comparti-lhado por todos, não há problema. E no contato com os de

fora do círculo, sempre há a possibilidade de considerar estesoutros menos crentes ou menos iluminados, justamente porafirmarem que aí há incoerências.

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Pode-se, assim, continuar afirmando a exclusividade daBíblia, até fazendo-o com apelo a formulações teológicasaltamente ortodoxas, e ao mesmo tempo abrigar uma fonteconcorrente de revelação, alimentada pelo "contato direto"com o Espírito Santo. Não que tal presença diária erevelatória de Deus conosco pelo seu Espírito não sejam umaverdade do discipulado cristão. Nisso os movimentos derenovação têm uma grande contribuição às igrejas. A questãoé como correlacionar adequadamente tal presença revelatória

com a revelação e as chaves de interpretação contidas naEscritura, de forma a não suprimir a exclusividade desta.

 No outro extremo, temos a força da tradição, ondegradualmente vão sendo depositadas as percepções e asexperiências de comunidades cristãs, e que tende sempre,com a passagem do tempo, a assumir uma certa sacralidade.

Compreensível até, pelo que representa como testemunhohistórico de identidade e de luta das comunidades. Aconstituição de tradição é um dado humanamente inevitável.E não se encontra aí o seu problema, pelo contrário. O problema é, desde logo, a relação, também inevitável, entre anorma da tradição e a norma da Escritura. Para os de dentro

e que vão crescendo nesta dupla cidadania, é difícil atéimaginar uma não-concordância entre os dois princípios. Novamente, na melhor das hipóteses constitui-se um círculohermenêutico consciente e controlado, enriquece- dor e fontede sempre nova criatividade teológica e prática. Muitas vezes,contudo, tradição e Escritura acabam tendo sua concordânciadogmaticamente afirmada, o que significa que é impossível

 pensar em uma não-concordância. Na prática, a sugestão detal é considerada como agravo para a fé e acompanhada deestos de exclusão.

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O que acontece, geralmente na melhor das intenções, é quea tradição acaba se impondo como princípio concorrente daexclusividade da Escritura, que passa a ter na tradição seuguardião e seu intérprete correto, em última instância.Revelação direta do Espírito Santo, por um lado,compreensão da Bíblia e da prática cristã determinados pelatradição, por outro. Dentro desse arco a afirmação do sola é,devidamente compreendida, ato de fé que se sabe fruto dagraça revelada por Jesus Cristo. Ato temerário, pois as

 possibilidades de que nossa prática tendam para a afirmaçãode princípios concorrentes é sempre presente e muitas vezesoculta à melhor das nossas intenções. Ato, porém, sempre denovo a ser repetido e refletido e desde aí (re)constituído comonorma exclusiva da teologia cristã, mesmo que já normanormatizada, quando vista à luz do princípio central destateologia, a suprema norma normativa da revelação de Deusem Jesus Cristo por graça para a fé. 

4.  Só a graça

Prosseguindo, devemos agora tentar entender o quesignifica a afirmação da exclusividade da graça quandocolocada em correlação com o Cristo, a Escritura e a fé.

Desde logo, a correlação com Cristo  impede uma simplescompreensão de uma graça "de graça" (grátis).Evangelicamente, compreender a graça é compreender omistério de Cristo. É só nele que ela se mostraautenticamente. Isso significa como que dar-lhe um rosto.Graça não como um princípio abstrato, mas como uma

existência concretamente vivida. E no caso do Cristo, deve-se logo acrescentar "e concretamente morrida". Falar da graçasignifica fazer o que Paulo fez para os gálatas: "pintar" diante

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dos olhos o Cristo crucificado (Gálatas 3.1).

 Não fazer esta conexão entre a graça e o Cristo resulta no

que se tem chamado de "graça barata". Uma graça que nãoresulta das entranhas misericordiosas de Deus, da compreen-são do universo como sua criação, de sua inserção na históriae de sua morte assumida como meio de liberar a graça dasamarras que sempre de novo tentam prendê-la e torná-la ine-ficaz. Uma graça custosa, portanto. Mas custosa para Deus, justamente para torná-la sem custo para nós. Só a percepçãoda radicalidade do custo da graça para Deus pode nos levar à percepção da radicalidade de sua gratuidade para nós. Agora,sim, podemos falar de gratuidade. Mas aí também no sentido pleno da palavra, não como as pseudo-gratuidades, sempreinteresseiras, que diariamente nos são oferecidas e a partir dasquais aprendemos a colorir o significado da palavra "graça".

O "quadro" desta graça a nós revelada no Cristo seencontra pintado na  Escritura.  Mais do que simplesmenteafirmada em trechos específicos, ele se mostra no movimentogeral, na grande narrativa de que o texto bíblico dátestemunho. E aqui se deve insistir em que uma compreensãoadequada disto se dá numa leitura da Bíblia dentro dos

referenciais acima refletidos, onde o  sola scriptura  foiexaminado à luz dos demais princípios exclusivos. Pois umacompreensão inadequada desta emolduração da graça pelostextos bíblicos poderia torná-la outra coisa. Sutilmente, umacompreensão mais legalista, uma mesmo que leve juridicização dos textos bíblicos poderia levar a uma

compreensão da graça que a tornasse refém de mecanismoscondicionantes que são incompatíveis com sua radicalidade eincondicionalidade.

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Por fim, a graça deve ser compreendida na sua correlaçãocom a  fé.  Isto significa, como enfatizaremos mais adiante, primeiramente que a fé é criação da graça. Isso dito, pode-seagora enfatizar que a fé é aquilo em nós que pode estabeleceruma correta relação com a graça. Significa que a graça nuncaserá compreendida pelas potencialidades da razão. Nossarazão, em sua autonomia em parte divinamente assegurada,está aí diante de seus limites. A graça evangélica lhe éincompreensível porque extrapola todos os princípios desde

os quais ela aprendeu a se organizar e referenciar, e comsucesso, no âmbito que lhe é próprio. Para ela a graça só podeser um paradoxo. Paradoxo para a apreensão do qualrecebemos a fé, que justamente nos abre a possibilidade decompreender o mundo e nossa vida a partir do paradoxodivino.

A percepção desta íntima conexão entre a graça e a fé temrepercussões para toda a vida. Ela significa uma capacidade,ou melhor, uma sempre renovada possibilidade, de percebera graça também lá onde esta não é visível na superfície. Só afé pode fazer alguém exclamar como o salmista: "foi-me bomter passado pela aflição, para que aprendesse os teus

decretos" (Salmos 119.71). Enxergar a graça onde, na su- perfície, ela se manifesta sob a forma de seu contrário. Temosaqui o lado mais experiencial da correlação entre a graça e afé, cujo resultado é sabedoria de vida.

A ênfase na exclusividade da graça, mesmo que afirmadana superfície pelo cristianismo como um todo, tem estado

continuamente em tensão com possibilidades alternativas quesempre de novo emergem na prática cristã. Correlaçõesinadequadas, ou a ausência das correlações certas, têm feito

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com que a graça acabe obscurecida por uma compreensão prática do cristianismo em que obras desempenham um papelque de alguma forma extrapola o seu âmbito. E não precisamos aqui nos fixar numa certa caricaturização docatolicismo medieval bastante comum nos meios protestantes. "Obras" remetem para o papel ativo do serhumano no que diz respeito à salvação. E certamente um dosmaiores desafios da sabedoria cristã é manter um nívelintenso de atividades motivadas pela fé, sem cair numa

imperceptível depreciação da graça como o motor principaldo discipulado cristão.

 Num outro extremo, a graça tem tido sempre de novo quecompetir com a santidade. Enquanto que o apelo a obras nosimpele para fora de nós, buscando ver sinais da salvação noque fazemos, o apelo à santidade leva o nosso olhar para

dentro de nós próprios. A santidade tem uma relação inerentecom a fé. Evangelicamente, ela é crida antes de ser vista. Masna prática cristã normal isso é difícil de ser mantido. Vivemosnum mundo que desde sempre nos molda no sentido de buscaimediata de resultados. E assim buscamos também resultadosde santificação em nossa vivência da fé.

A relação entre a justificação e a santificação tem sido umfator teológico que muitas vezes põe lenha nesta fogueira. Atendência a interpretá-las como momentos separados temlevado a um desequilíbrio que ameaça a saúde de toda ateologia. Neste caso, a tendência é de tornar a experiência da justificação um ponto na trajetória pessoal, enquanto que a

experiência da santificação se toma uma linha que, desdeaquele ponto, se estende ao resto dos anos da vida. Assim a justificação fica como que só na lembrança como um ponto

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no passado, enquanto que o presente é todo ele movido pela preocupação com a santificação.

Quando este fenômeno se junta ainda a uma certa "divisãode tarefas", ao que somos levados sempre de novo pelas próprias estruturas de pensamento de nossa sociedade, há umgrande risco de se conceber a justificação como obra de Deuse a santificação como a nossa parte no processo. Assim,rompe-se nas profundezas o vínculo entre a santificação e afé. E a santidade acaba tomando o lugar da graça nodiscipulado cristão. Evidentemente isso não se dá ao nível dodiscurso, mas no nível mais profundo dos verdadeirosmotivos e propósitos de nossos pensamentos e ações.

5. Só a fé

O enunciado do "somente pela fé" parece ser o mais

característico da Reforma. Mas devemos ter cuidado aointerpretá-lo. Separá-lo dos outros enunciados poderia levara uma compreensão de fé que justamente não é a de LUTERO

e dos outros reformadores, nem a da mais autêntica tradiçãocatólica.

A fé evangélica está determinada do início ao fim pelo

 solus christus. É fé em Jesus como o Cristo de Deus. Comisso ela ganha um objeto concreto. Fé evangélica é "fé em”,não a fé tomada por si, como característica pessoal ou capaci-dade de acreditar, de mostrar uma força positiva interior. Afé é determinada por aquilo em que é depositada, por aquiloa que reage. Quando dizemos que a fé salvífica é fé em Cristo 

estamos reconhecendo na encarnação de Deus aquilo que nosliberta e nos salva. A rigor, toda a Bíblia, como já vimos, podeser lida desde o viés de um único e grande testemunho da

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vinda de Deus a nós. Mas é justamente aqui que devemos tercuidado.

A história desta salvação vinda a nós pode nos ser contadaou ser por nós lida de modo a perder aquilo que mais acaracteriza e a distingue de processos humanos ou feitosheroicos, mesmo que de "heróis da fé". Enquanto não per-cebermos que esta vinda de Deus se dá de uma formacontrária ao que normalmente suporíamos, temos que perguntar se Cristo aí é realmente o Cristo  do testemunho bíblico. O Cristo do testemunho bíblico é sempre para nós,antes de ser o Deus vivo (ressurreto), o Deus morto (crucifi-cado). É no paradoxo da cruz e em tomar rigorosamente todasas suas implicações para a fé, a teologia e a vida que vamosaprender o que significa o "somente pela fé". Pois o paradoxo, justamente, não se deixa apreender de nenhuma outra

maneira. Ele será sempre também a cruz da nossa razão e danossa capacidade de apreender e receber Deus. O quesignifica que é o próprio Deus em Cristo que terá que abrir ocaminho para chegar a nós.

Que ele realmente o fez, este é o resumo de todo otestemunho da Sagrada Escritura. Ela conta deste caminho de

Deus a nós, e como ao concretizá-lo o próprio Deus foifazendo-o de modo a desmascarar todas as falsas possibilidades dos caminhos que construímos em direção aele. Ao fazer seu próprio caminho, foi mostrando a inu-tilidade e falsidade de todos os nossos. E por causa destetestemunho que a Bíblia é o nosso livro sagrado. Não por si

 própria, por sua capacidade inerente enquanto livro. Não,inclusive esta possibilidade de um livro "mágico" ou sagradonesse sentido era uma das falsas possibilidades que tinham

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que ser mostradas nesta narrativa do Caminho. E o caminhoe sua revelação a nós que importam, o livro é a mediação paratanto.

Ao ser lida assim, a Bíblia nos revela a verdade da fé. Averdade da fé, como vimos no primeiro capítulo, não ésimplesmente alguma proposição em forma de frase oudoutrina que a gente tivesse que reconhecer como "falando averdade". A absolutização deste tipo de verdade é outra dasfalsas possibilidades que o testemunho do Cristo veiodesmascarar. A verdade aqui é o próprio caminho, comoJesus mesmo o afirma em João 14.6. A verdade é o próprioCristo enquanto o Deus que fez seu caminho até nós.Reconhecer isso significa também permitir uma transfor-mação no conceito de verdade na outra ponta. Verdade não ésó o caminho de Deus a nós, é também o nosso próprio

caminho com ele em nossa vida neste mundo. Ao narrar ashistórias do povo de Deus da antiga e da nova aliança, ahistória "dos do caminho" (Atos 9.2), a Bíblia mostra o que averdade evangélica é e como ela vai se construindo. É nessesentido que a compreensão do  sola fides depende muito dacompreensão do sola scriptura. A Escritura contém os relatos

originais desta verdade-feita-caminho. E por isso que semprede novo temos que voltar a ela e meditar nas histórias que elaconta, mesmo aquelas aparentemente mais insignificantes.

Se o "somente por fé" é o mais característico dosenunciados da Reforma, não podemos nunca esquecer queele, de certa forma, é derivado de um enunciado ainda

anterior: o do "somente pela graça". O que estava em jogo lá, primeiramente, era uma compreensão de graça que nãocorrespondia à graça evangélica, como mostrada pelo Cristo

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e testemunhada pela Escritura. Uma compreensão da graçaque de alguma maneira retira dela sua incondicionalidade, aofazer algum aspecto dela depender de nós: é contra isso quesempre de novo o protesto evangélico deve ser levantado.Uma graça assim violentada acaba inevitavelmente gerandouma compreensão de fé igualmente violentada. É só quandoa graça se revela em toda a sua paradoxalidade que o paradoxo da fé pode ser bem compreendido.

A grande insistência dos reformadores foi a depuração dafé de todo e qualquer resquício de capacidade ou obrahumana. A fé que salva não é produto disponível na criação,no universo criado. Ela é um constante milagre trazido a nósdesde fora de nós. E criação da graça. E neste sentido que acompreensão correta do  sola gratia  é condição para acompreensão correta da fé. Como todo o lidar de Deus

conosco é graça do começo ao fim, também a fé é produtodesta graça. Quando ela vem fazer morada em nós, peloanúncio gracioso da vinda de Deus em Cristo a nós, comocontada na Sagrada Escritura, um dos seus resultados será justamente combater as falsas noções de fé que nos habitam.

Uma alternativa ao "somente por fé" geralmente tem sido

a razão. Naturalmente, pouquíssimas vezes isso tem sidoapresentado explicitamente, ou mesmo entendido, comoalternativa. A relação entre fé e razão geralmente tem sidoentendida como de complementaridade. Quando, porém, talcomplementaridade não é bem definida, ou quando a paradoxalidade do evangelho e da fé é rompida, aí na prática

a razão pode acabar funcionando como alternativa à fé.A relação entre a fé e a razão é uma das mais fundamentais

ara a teolo ia. Por isso é tão im ortante ue ela se a feita de

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maneira adequada. As disputas sobre isso na história do cris-tianismo têm sua origem em duas questões vinculadas uma àoutra. A primeira questão diz respeito à compreensão do pecado e de como ele afeta o ser humano. Basicamente háduas alternativas. Uma é de conceber a queda no pecado deforma tão radical que inclua a razão humana com todas assuas possibilidades, levando assim a uma desconfiançaradical nas suas capacidades, no que diz respeito àcompreensão de Deus e da revelação. Nesse sentido uma

razão "caída" vai antes perverter o entendimento do queajudá-lo. A outra alternativa, na prática, concede sempre umlugar de onde a razão poderia ao menos fazer um primeiroesforço na busca de Deus, se não de chegar a ele por seusmeios. Mesmo que pensemos que esta seja a alternativa"católica", ela é muito comum nas teologias protestantes.

A segunda questão diz respeito ao que se espera da razãoem termos de uma teologia cristã. Geralmente pensamosteologia como "dar respostas" aos grandes problemas da vida.E aí, com razão, duvidamos da capacidade da razão para isso, já que ela própria faz parte do problema. Mas isso nãosignifica que não se possa reconhecer uma capacidade da

razão ao nível das perguntas, enquanto se duvida de suasrespostas. Parece haver no ser humano algo que, de dentro, omove a se perguntar pelas coisas últimas. É como que algoem nós que se estica em direção à transcendência, a aquiloque está adiante de nós ou em nossa origem última, aquiloque representa o fundamento último nas nossas profundezasou o mais elevado por cima de nós. A fé faz bem em atentar

 para esta inquieta busca que o ser humano acaba expressando,direta ou indiretamente, de muitas maneiras. A fé deverocurar reconhecer aí um anseio, um emido, muitas vezes

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distorcido e quase irreconhecível, mas que atesta que Deusnão se deixou ficar sem testemunho também em nossa razãoe nossa consciência.

Uma teologia construída a partir da fé na revelação devecaptar estes anseios e responder a eles. Deve identificar adignidade humana neles embutida, e reconhecer que a própriarevelação divina tem como propósito último exatamente virao encontro destes anseios, ajudando-os a se formularem emostrando como o Deus que se revela no evangelho respondea estes anseios e vem em busca "do que é seu" (João 1.11).Deve aprender a reconhecer no incessante movimento darazão humana uma forma de "tatear" (Atos 17.27) à procurade algo que a própria razão nem sequer pode definir direito,mas que pela luz da revelação nos é mostrado.

Esta solução não resolve todos os problemas,naturalmente. Sempre há um espaço intermediário, fluido,onde perguntas já são respostas. E sempre deve-se perceberque a própria revelação vem a nós com novas perguntas oucom recolocações das nossas perguntas. Mas ao menos assimrespeitaremos as capacidades da razão, sem confundi-las como milagre da fé e as novas perspectivas que ele abre, sem

esquecer que para entrar no Reino de Deus é preciso se tornarcriancinha e reaprender a aprender (Mateus 18.3).

A afirmação da exclusividade da fé sempre esteveameaçada também pela nossa natural tendência a considerarcomo verdadeiro aquilo que vemos e que podemos tocar. OEvangelho de João inteiro pode ser lido desde a perspectiva

desta tensão entre o crer e o ver. E se considerarmos a beladefinição de "fé" em Hebreus 11.1, a fé é ela própria um novomodo de ver. Fé faz ver tudo diferente, do eito ue Deus vê.

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Aprender isso, este é o caminho e o discipulado da fé. Jesus,quando viu Pedro pela primeira vez, pode dizer: "Tu és Pedro,serás chamado Simão" (João 1.42). O olhar da fé faz ver láadiante, não se prendendo ao momento. Para Natanael, quecreu porque Jesus disse que o tinha visto, Jesus pode dizer:"se por isso crês, coisas maiores ainda verás" (João 1.50). Ea seguir definiu o objeto desta visão da fé: o céu aberto e oCristo como intermediador entre ele e nós. E o Evangelhosegue mostrando o conflito entre a fé e o ver, até chegar à

conhecida história de Tomé, a quem Jesus diz: "porque meviste, creste? Felizes são os que, sem ver, creram" (João20.29).

Ainda hoje, entre nós, há uma constante insistência em "ver para crer". Mas expressa de forma piedosa e espiritual. Oevangelho da graça invisível recebida por uma fé invisível

sempre parece pouco. Por isso, temos sempre de novo buscado, mesmo que isso não esteja claro para nós, modos devisibilização. E, quando estes são encontrados, sãoreverenciados como grandes expressões de espiritualidade.

As visibilizações da graça e da fé, entre nós, acabam por setornar motivo de divisão. Onde elas ocorrem, pensamos

encontrar um cristianismo melhor. Onde elas não ocorrem,temos um cristianismo frio ou até morto. E pouco percebemoso quanto a nossa infantilidade cristã é revelada com isso. Poisa fé evangélica é aquela que aprende a ver com o olhar deDeus. E, amadurecida no contato com a Escritura, já aprendeuque o Cristo que veio a nós veio escondido, de um jeito

 paradoxal, justamente para tornar-nos todos iguais em nossaincapacidade de apreendê-lo. E percebeu que ele continuafazendo assim ainda hoje. E que é no seu escondimento que

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o recebemos, e que caminhar com ele nessa apreensão darevelação oculta é que é a verdadeira característica dodiscipulado cristão.

Deus mesmo, quando se fez visível, nos mostrou como equando o devemos acolher em sua visibilidade. Ossacramentos do cristianismo são o ponto de concentraçãodisto. São os lugares privilegiados desta visibilização.Privilegiados, não exclusivos. Uma compreensão nãoadequada e por demais eclesiocêntrica dos sacramentos tiroudeles sua representatividade e o "simbolismo do simbólico"neles. São símbolos de todos os outros símbolos que querem para nós mediatizar e visibilizar a presença de Deus, e que podem em última análise englobar a criação inteira, que parao olhar da fé mediatiza a presença de Deus para nós. Naverdade o cristianismo não carece de visibilidades. Nós é que

carecemos da fé para percebê-las, e por isso acabamos achan-do que percebemos visibilizações de Deus onde o que ocorresão simplesmente processos humanos, nos quais Deus vezque outra pode estar, mas justamente não pela inerência dos processos, mas por sua decisão de ali se revelar a nós. Fazerde tais visibilizações um critério para a autenticidade do

discipulado e da salvação, é demonstrar que também nós,como Tomé, precisamos sempre de novo da graça de "crersem precisar ver".

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CAPÍTULO III

ÉTICAQuestões éticas sempre estiveram no centro das preocupações

cristãs. Estamos hoje num momento histórico em que a sociedadetoda discute com muito empenho a questão da ética. É apropriado, portanto, que numa introdução à fé cristã não deixemos de lado estetema. Precisamos fazê-lo, uma vez, para o nosso próprio es-clarecimento, e outra vez para que possamos contribuir

conscientemente para as discussões em andamento. A sociedade,geralmente, espera da religião e da teologia uma contribuição ética,vendo-a como depositária não só de tradições de pensamento commarcadas consequências éticas, mas também da energia necessária para traduzi-las em posturas e ações concretas.

Quero aqui refletir sobre os fundamentos de uma ética em

 perspectiva cristã. Quero fazê-lo desde um duplo lugar. É nainteração entre estes dois "lugares" que proporei a minha contribui-ção ao tema.

Começarei examinando uma metáfora que capta numa imagem aessência da perspectiva ética do cristianismo. Depois, tratarei dosfundamentos da ética a partir de um texto que é provavelmente o mais

influente na configuração da ética tanto na tradição cristã como natradição judaica: os Dez Mandamentos. A interpretação dosMandamentos no espírito do mandamento do amor de Jesus tem sidoum referencial na produção de parâmetros éticos na tradição cristã,numa constante busca de equilíbrio entre o reconhecimento de uma"ética impossível" e, portanto, do fato de estarmos constantemente

sob o juízo de Deus, e a afirmação de uma "ética possível", a partirda força do Espírito que anima a descobrir nos mandamentosorientações positivas para o comportamento cristão.

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1. O ponto de partida: uma metáfora que capta os fundamentos da

ética

Justamente a percepção da paradoxalidade dos Mandamentos e daLei divina como tal, que é característica de sua interpretação cristã, étambém seu ponto vulnerável. As divergências desde um duplo lugar.E na interação entre estes dois "lugares" que proporei a minhacontribuição ao tema.

Começarei examinando uma metáfora que capta numa imagem a

essência da perspectiva ética do cristianismo. Depois, tratarei dosfundamentos da ética a partir de um texto que é provavelmente o maisinfluente na configuração da ética tanto na tradição cristã como natradição judaica: os Dez Mandamentos. A interpretação dosMandamentos no espírito do mandamento do amor de Jesus tem sidoum referencial na produção de parâmetros éticos na tradição cristã,numa constante busca de equilíbrio entre o reconhecimento de uma

"ética impossível" e, portanto, do fato de estarmos constantementesob o juízo de Deus, e a afirmação de uma "ética possível", a partirda força do Espírito que anima a descobrir nos mandamentosorientações positivas para o comportamento cristão.

1.  O ponto de partida: uma metáfora que capta os fundamentos da ética

Justamente a percepção da paradoxalidade dos Mandamentos e daLei divina como tal, que é característica de sua interpretação cristã, étambém seu ponto vulnerável. As divergências internas nas tradiçõescristãs, entre o significado da Lei e de sua relação com o Evangelho, já se fazem sentir desde o início da história do cristianismo, e têmsido sempre um dos fatores que dificultam uma plena integração das

diferentes correntes do mesmo.Portanto, faz-se necessário desde logo encontrar uma perspectiva

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adequada, que leve a sério esta paradoxalidade e suas conseqüências para a teologia e o discipulado cristão, e as desdobre numafundamentação de uma ética no espírito evangélico da catolicidade

cristã. Melhor que procurar esta perspectiva no nível do discursoteológico ou doutrinário é procurá-la nas metáforas fundantes destediscurso, naquelas imagens que muitas vezes os governam sem quea percepção disto seja sempre explícita. O poder das metáforasfundantes sobre o nosso imaginário e sobre as estruturas básicas donosso pensamento tem sido demonstrado nas últimas décadas por

 pesquisas no âmbito das chamadas Ciências da Cognição, comovimos acima. Leitores/as atentos/as da Bíblia, porém, já estãoacostumados/as com isso desde sempre. A força das grandesmetáforas bíblicas na configuração da teologia e da espiritualidadetem sido, às vezes, subestimada, como também as consequênciasepistemológicas daí advindas.

Uma primeira possibilidade seria partir da metáfora, comum natradição cristã, das "duas mãos" de Deus. Esta imagem temgovernado muitas das construções éticas do cristianismo. Teríamosaí uma ética "espiritual" e uma ética "secular". Quando associada àimagem dos Dois Reinos, ou das Duas Cidades, ela ganha força e vaise tornando uma espécie de metáfora fundante, aquelas que estão por baixo do pensamento mesmo que este nem se aperceba disso. Nestecaráter ela acaba influenciando também a interpretação dos Manda-mentos. A associação desta metáfora com as duas tábuas da lei équase inevitável. Como resultado, temos uma interpretação dosMandamentos que os divide em "espirituais" (os relacionados aDeus) e "seculares" (os relacionados ao próximo), e os entende como passíveis de serem cumpridos, o que na verdade se espera de todo

"bom cristão". Mesmo que isso não seja dito deste modo, o efeitodirecionante da metáfora leva a isto.

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 Não quero me deter por mais tempo na análise deste modelo deinterpretação dos Mandamentos que, por extensão, acaba se tomandotambém modelo da ética. Em vez de uma abordagem desconstrutiva,

opto por uma abordagem construtiva ao tema. Para isso, começo buscando uma outra imagem para a perspectiva fundamental destaética.

Esta imagem encontra-se no Tratado acerca da Liberdade Cristã,de LUTERO. Lá ela aparece num contexto de referência a João 1.51,que representa o Filho do Homem como "escada" entre o céu e aterra. 

Vê, de acordo com esta regra, os bens que temos de Deus devem fluirde um para o outro e tornar-se comuns, de sorte que cada qual assuma seu próximo e proceda com ele como se estivesse no lugar dele. Eles fluíramde Cristo e fluem para dentro de nós, ele que nos assumiu de tal modo e procedeu conosco como se ele fosse o que nós somos. De nós eles fluem para dentro daqueles que deles necessitam, a tal ponto que inclusive minhafé e justiça têm que colocar-se perante Deus, para cobrir e interceder pelos pecados do próximo que devo tomar sobre mim, e neles labutar e servircomo se fossem meus próprios, pois foi isso que Cristo fez a nós. Este é, portanto, o verdadeiro amor  e a regra sincera da vida cristã. (...)

Concluímos, portanto, que a pessoa cristã não vive em si mesma masem Cristo e em seu próximo, ou então não é cristã. Pela fé é levada para oalto, acima de si mesma, em Deus; por outro lado, pelo amor desce abaixo

de si, até o próximo...8 

Com certeza podemos fazer um retoque nesta imagem, dentro doespírito do próprio LUTERO.

Podemos imaginar o cristão com a mão direita estendida para oalto, em direção a Cristo, e a esquerda para o lado, em direção ao

 próximo. A referência "para baixo" não é tão feliz, e certamente foi

8 MARTIM LUTERO, Tratado acerca da Liberdade Cristã (1520), em Obras Selecionadas 2: 456.

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induzida pela imagem da escada do texto de João 1.51. Ou podemossimplesmente imaginar uma corrente: o cristão segura na mão deCristo com uma das mãos e na do próximo com a outra.

A associação a que LUTERO é induzido pela imagem de Jesus comoa escada do sonho de Jacó tem amplas consequências teológicas. Seutema, no contexto, é a pessoa cristã. Sem dúvida, ele entende a pessoacristã numa posição como a de Cristo, ou seja, como escada que deum lado toca em Deus e do outro toca o próximo. O fato de eletransferir a posição de Cristo para a pessoa cristã é aquilo em quequeremos aqui meditar. Que esta é a intenção de LUTERO nesta passagem, não há dúvida. Trata-se de uma extensão, de fundamentalimportância para a compreensão da ética cristã, da metáfora docasamento entre Cristo e a pessoa crente, da "alegre permuta", queLUTERO havia usado um pouco antes no mesmo escrito. Ah é ditoque tudo que é de Cristo passa para nós, tal como tudo que é nosso

 passa para Cristo. Nesta relação, como já foi dito, a pessoa cristã representa Cristo,

ela é "Cristo para o próximo".

O cristão é mediador da ação de Deus para o próximo. E aquidevemos notar um segundo detalhe na imagem: o lugar de Deus notexto bíblico é ocupado agora por Cristo, o "Deus para nós", arevelação da graça e misericórdia divina para conosco. Os bens deCristo fluem para o cristão, e dele para o próximo. Neste sentido,LUTERO fala com propriedade de a pessoa cristã "ser Cristo para o próximo". Ele/ela será a mediação através da qual Cristo estenderáos seus bens para o próximo. E o "próximo" aqui inclui toda ahumanidade, sem restrições, mas com uma clara acentuação: é o ser

humano necessitado que se encontra próximo a mim.

Aqui temos, portanto, o fundamento teológico da ética: a

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identificação da pessoa cristã com Cristo, a partir da identificação deCristo com a pessoa cristã. Tal como Cristo foi "o livre" e nestacondição se fez "servo" de todos, também a pessoa cristã é "livre" e

nesta condição se faz "serva" do seu próximo. O que vale de Cristo,vale do cristão, que a partir do evangelho se torna "Cristo para o próximo". E não deveríamos ver nisso simplesmente uma figura delinguagem. Cristo vem ao próximo através de nós, essa é a grandezada nossa vocação, e também sua suprema responsabilidade. A pessoacristã faz a ponte entre Deus e o próximo.

 Nesta metáfora temos também claras indicações a respeito dafonte, do "motor" da ética. Esta questão é da maior importância nodebate ético. Por que ser ético? De onde nos advém a exigência deou a motivação para uma existência ética? Aqui esta fonte é dupla.De um lado, é a energia do amor de Deus que flui para a pessoaatravés da fé. Um dos braços se estende para Deus, e possibilita o

livre fluir da energia amorosa divina que sustenta a existência ética.O reconhecimento disto tem sido sempre o fundamento da éticacristã. De outro lado, o outro braço se estende para o próximo, e é do próximo que vem o segundo apelo a uma postura ética. O próximo, por sua presença, é interpelação ética. E não se trata, como vimos, deum próximo indiferenciado. E o necessitado que aqui está em vista,e que em sua necessidade irrompe em minha existência, vindo aomeu encontro. Sua presença é interpelação, e esta interpelação setorna fundamento da ética.

Esta imagem corresponde ao supremo mandamento de Jesus:"amarás o Senhor teu Deus sobre tudo, e o próximo como a timesmo". E o mesmo duplo movimento. Uma questão que tem preocupado a teologia é o que significa exatamente o amor  de que setrata aqui. A palavra grega agape poderia ser plasticamente definidacomo um movimento de dentro para fora, em direção ao objeto do

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amor; um movimento centrado no objeto, com o propósito devalorizá-lo e afirmá-lo.

Talvez a palavra "amor", hoje tão indiferenciada, devesse sersubstituída por outra que captasse melhor e mais definidamente omovimento de agape. A tradição católica, a partir da Vulgata latina,instituiu por muito tempo o sentido de "caridade". Caridade, porém,também se tomou inadequado, dados os sentidos que o termo possuino português de hoje. No contexto latino-americano dos anos 80 e90, foi sugerido "solidariedade" como boa tradução. Porém,solidariedade sempre tem o risco de ser entendido como uma certadisposição de espírito para com os outros, sem implicarnecessariamente numa prática ativa. Por isso, quero sugerir queinterpretemos agape  como cuidado, de "cuidar", significando umadisposição ativa e benigna na relação com o próximo.

Chegamos, assim, à definição da ética cristã como "ética docuidado"9. "Cuidado" inclui simultaneamente os dois momentos doagape, o da disposição interior e o da mobilização ativa. O acentuarmais um ou outro destes momentos depende um pouco da tradiçãoonde a gente se situa. Enquanto a tradição católica muitas vezes precisa insistir na disposição interior, provavelmente na tradição protestante devemos insistir na mobilização ativa. Importante é que

ambos os momentos se concretizem em sua simultaneidade einterpenetração.

Quais seriam os objetos, ou as destinações do cuidado? A síntesede Jesus indica: Deus, o próximo, nós próprios. Certamente não édemais insistir em que o cuidado em relação a Deus, ao próximo e a

9 O tema de uma ética do cuidado tem sido explorado recentemente por Leonardo BOFF, especialmentenos livros Saber Cuidar   (1999) e  Ethos Mundial   (2003). Possíveis concretizações de uma tal éticaencontramos no livro de Sidnei Vilmar NOÉ, Amar é Cuidar  (2005).

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nós próprios inclui todo o ecossistema em que estas relações são possibilizadas, preocupação que em nosso mundo atual é muitoimportante.

Voltando, então, à nossa metáfora: o cristão, objeto do cuidado deCristo, torna-se cuidador do próximo. E este tornar-se não é optativo,voluntarístico. Ele representa uma transformação interior que faz docristão a imagem de Cristo, ao receber de Cristo os seus benefícios."Para que sejamos Cristos um para o outro", diz LUTERO

10. Trata-sede algo constitutivo. O cuidado que Cristo tem para com toda ahumanidade é, agora, o cuidado que a pessoa cristã tem para comtodo ser humano e com toda a criação.

A partir desta metáfora, então, e retendo suas percepções maisfundamentais, quero me aproximar da interpretação dos DezMandamentos. Nesta interpretação se faz necessário, logo de saída,uma segunda "análise desconstrutiva", desta vez sobre a história dainterpretação dos Mandamentos na tradição cristã. Novamente,tentarei ser breve neste movimento de desconstrução, para depois poder me aprofundar mais no momento positivo da construção. 

2.  A interpretação dos Mandamentos na tradição cristã

A interpretação dos Mandamentos na tradição cristã muitas vezes

carrega consigo um sério problema, não por último desde a perspectiva da ética. Não pelo que diz, mas pelo que deixa de dizer.Quero ilustrar este problema aqui referindo-me à tradição luterana,da qual provenho, fazendo assim uma auto-crítica. E faço-o analisan-do a interpretação dos Mandamentos nos Catecismos de LUTERO. Pelo fato de este problema muitas vezes sequer ter sido percebido,ele acabou gerando uma interpretação dos Mandamentos que passa

10 M. LUTERO, Tratado acerca da Liberdade Cristã, em Obras Selecionadas 2: 454.

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ao largo da questão mais fundamental dos mesmos, quando lidos emseu contexto bíblico original. E este passar ao largo acabouresultando numa tradição ética que, em relação a este problema

fundamental, muitas vezes correu o risco de gerar uma prática cristãdiferente e talvez contrária à intenção original dos Mandamentos.

O problema fundamental a que me refiro está na ausência dequalquer referência ao prólogo aos Mandamentos, por exemplo naforma como os temos no Catecismo Menor de LUTERO.  Ali, ainterpretação começa direto com "O Primeiro: Não terás outrosdeuses. Que significa isso? etc.". Para LUTERO isso não é problema, pois o manejo constante da Bíblia toda faz com que as palavras do prólogo estejam em sua mente e lhe sirvam de constante referência,mesmo que não explícita. Para a tradição luterana que assimaprendeu a ler os Mandamentos, isso veio a representar um sério problema. Uma vez, porque muitas vezes não se seguiu o sempre de

novo reiterado conselho de LUTERO de buscarmos diretamente na Es-critura a orientação divina, uma vez que ela contém as chaves de sua própria interpretação. Outra vez, porque cortando o vínculo entre osDez Mandamentos e seu prólogo se corre sérios riscos de não captaraquilo que é precisamente o ponto hermenêutico e ético principal dosMandamentos.

Há consenso na exegese bíblica de que as palavras do prólogo nãosó situam os Mandamentos num contexto sócio-histórico e tambémteológico, mas que lhe dão as coordenadas para a sua interpretação11.O texto do prólogo é sucinto: "Eu sou o Senhor, teu Deus, que te tireida terra do Egito, da casa da servidão" (Êxodo 20.2). A estas palavrasseguem-se, então, os mandamentos: "Não terás outros deuses, etc."

11  Esta questão está bem analisada no livro de Frank Crüsemann,  Preservação da Liberdade: o Decálogo mima perspectiva histórico-social  (1983, 1993). 

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(Êxodo 20.3-17).

Sem me deter em considerações de caráter sócio-histórico, vou

direto à questão teológica deste enquadramento dos Mandamentos noagir libertador de Deus na história. Os israelitas, até então escravosno Egito, foram poderosamente libertados por Deus. Saindo do Egito,dirigiram- se ao deserto, onde recebem os Mandamentos divinos. Aquestão teológica que aqui se põe é a seguinte: qual é a relação entrea libertação e os mandamentos? Na resposta a esta questão se decidea questão hermenêutica mais fundamental dos Mandamentos.

Muitas vezes na história do cristianismo, e exemplarmente na doluteranismo, não se ficou longe de uma interpretação legalista dosMandamentos. Pelo menos na prática, às vezes até contra asintenções dos/as catequistas. O fato de a interpretação de LUTERO, nos Catecismos, sempre incluir um elemento de positividade em cadamandamento, acabou ajudando para isto. Na prática da catequese, osmandamentos eram interpretados como lei divina possível de sercumprida. O objetivo era, na verdade, inculcar nas pessoas anecessidade de cumprirem esta lei, nem sempre deixando claro quaisseriam as penas pelo seu não-cumprimento. Com isso, a práticacatequética, no fim, acaba não diferindo muito da interpretação e prática dos fariseus do tempo de Jesus, com todos os vícios e

 problemas daí decorrentes para a teologia, a espiritualidade e odiscipulado cristão.

Como a relação entre os mandamentos e a libertação não era feita,o problema não aparecia em sua gravidade teológica. A quem se per-guntasse por esta relação, sobraria a pergunta: então Deus libertou osisraelitas para logo a seguir colocá-los sob novo jugo? Pois uma inter-

 pretação legalista sempre representa um "jugo", como aliás osfariseus do tempo de Jesus reconheciam, chamando a lei de "jugo".E se a palavra "escravidão" neste contexto nos soa pesada demais, é

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 porque talvez não chegamos a compreender e "sofrer junto" comPaulo e LUTERO suas angústias sob a opressão da lei. E não só da leimosaica em termos mais amplos como dos Mandamentos em sentido

estrito, como Paulo deixa claro em Romanos 7.7-10.

A resposta a esta questão tem que ser encontrada na relação, feita pelo texto bíblico, entre os Mandamentos e a libertação. Os Manda-mentos foram dados para a preservação da liberdade recémconquistada. Portanto, seu tema é a liberdade e não um jugo ou umanova escravidão. Os Mandamentos não querem ser lei que engessa,mas instruções para a preservação da liberdade contra os inimigos damesma.

Assim colocado, a dádiva dos Mandamentos visa aprofundar o processo de libertação iniciado no Egito. A frágil e ameaçadaliberdade ali conquistada precisa ser preservada, aprofundada,solidificada. Este é o referencial bíblico para a leitura e interpretaçãodos Mandamentos.

A importância do prólogo para a interpretação do conjunto dosMandamentos foi sempre enfatizada pelo próprio LUTERO, que emoutros escritos inclui no Primeiro Mandamento as palavras do prólogo. Contudo, mesmo que o problema fundamental de queestamos tratando seja, nestes casos, um pouco amenizado pelainsinuação do caminho certo, ainda continua a persistir. O fato é queLUTERO geralmente, se limita à referência ao início do prólogo "Eusou o Senhor, teu Deus", deixando de lado justamente a referência àlibertação e ao êxodo. Efeitos práticos disto se mostram sempre denovo na teologia, na ética, na compreensão de espiritualidade ediscipulado na tradição luterana. Talvez devêssemos nos perguntar

seriamente as razões desta sonegação do texto bíblico.

Cabeçalho de cada mandamento deveria, então, ser: "Eu sou o

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Senhor, teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa da servidão - Não farás para ti imagens, etc."12. Assim teremos sempre em vista o propósito de Deus na dádiva dos Mandamentos. A liberdade

conquistada deve ser agora preservada e aprofundada. E para tantoDeus nos dá instruções.

3. Os Mandamentos como fundamento ético da teologia cristã

A imagem da pessoa cristã com um braço voltado para Deus e ooutro para o próximo sugere uma dupla leitura dos Mandamentos, em

que uma exige a outra e as duas são complementares, formando umasó leitura em dois momentos. Esta leitura conjunta em doismomentos é sugerida pela própria imagem, que coloca a pessoa cristãcomo epicentro de duas relações: a relação com Deus e a relação como próximo.

O primeiro momento da leitura dos Mandamentos, então, diz

respeito à relação com Deus. Poderíamos defini-la como "leitura dafé". Nesta, somos colocados diante de Deus e de sua exigência paracom a sua criação. Reconhecemos o direito divino de fazer isso, sim,reconhecemos mesmo a necessidade disto, dado o pecado quesubjugou, com a humanidade, a criação inteira. Nesta leitura,reconhecemos primeiramente o caráter  positivo dos Mandamentos,como a exegese bíblica recente tem feito. Depois, reconhecemostambém nossa incapacidade, por força do mesmo pecado, de cumpriros Mandamentos, e assim a nossa posição como culpados sob o juízodivino. Por fim, reconhecemos também que a partir da graça de Deusno evangelho somos salvos da condenação, por meio da fé. É por issoque essa leitura é finalmente chamada de "leitura da fé", porque édesde esta situação final que, retroativamente, o processo todo é

12  Isto é feito exemplarmente por CRÜSEMANN no livro acima citado. A interpretação de cadamandamento acontece num capítulo intitulado "Qual é a relação dos mandamentos com o tema doPrólogo?" (op. cit., p. 36-68).

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elucidado e compreendido.

O segundo momento da leitura dos Mandamentos pressupõe o

 primeiro. Será, então, uma "leitura do amor", ou melhor, para usaruma concepção tradicional, uma "leitura da fé ativa no amor". Nele,neste segundo momento interpretativo, os Mandamentos são vistosdesde a nossa relação com o próximo. Nele a posição da pessoa cristãé essencialmente diferente da sua posição no primeiro momento daleitura. Aqui a pessoa cristã representa o próprio Cristo em suarelação com o próximo. Este momento interpretativo, infelizmente,muitas vezes tem sido deixado de lado, quando ele representa, defato, o fundamento da ética cristã.

4. O primeiro momento da leitura

Situar os Mandamentos em seu contexto original é recuperar paraa sua interpretação um elemento dinâmico na relação com Deus. O

Deus que faz exigências éticas é o Deus que antes libertou o povo daescravidão. As exigências éticas, então, devem ser vistas como partedo processo de libertação. Num primeiro momento, Deus libertou o povo da escravidão social, política e cultural que o Egito lhe haviaimposto. A graça que ele demonstrou para com os israelitas semanifestou em juízo contra os egípcios e seu sistema imperialista.

Hoje devemos reaprender o papel paradigmático do êxodo nahistória de Deus com a humanidade. E não só no sentido ético, dasrelações humanas, mas também no sentido propriamente teológico.A teologia latino-americana das últimas décadas tem nos ajudado a perceber isso. No evento paradigmático da páscoa, da libertação e dasaída do Egito, Deus se revela a nós como o Deus que ele é, e revelaa sua vontade acerca da coexistência humana neste mundo. Revela asua vontade para com a humanidade que criou, no mundo que criou.Esta revelação do êxodo é a moldura mais ampla dentro da qual a

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revelação da sua vontade nos mandamentos faz sentido.

 No êxodo Deus se revela como o Deus vivo que atua

 poderosamente em juízo e graça. O Deus que não suporta a idolatriados falsos deuses e a opressão do ser humano pelo ser humano. ODeus que julga o pecado até as últimas consequências, e que ao fazê-lo revela o seu grande amor para com a humanidade. Quando osmandamentos são introduzidos pela apresentação do Deus libertador,isto significa que é nesta perspectiva do Deus vivo que nos confrontaativamente em juízo e graça que os mandamentos devem serrecebidos e compreendidos. Assim eles próprios se tornam media-dores deste juízo e desta graça, trazendo ambos até nós.

Este duplo caráter dos mandamentos é percebido por LUTERO noCatecismo Menor. A última pergunta, "Que diz Deus de todos essesmandamentos?", é respondida com um trecho que no texto bíblico é parte do primeiro mandamento, e que anuncia o juízo de Deus, que"visita a iniquidade" daqueles/as que "o aborrecem" (literalmente, "oodeiam"), e a sua graça, a sua misericórdia para com aqueles/as queo amam e guardam os seus mandamentos.

Mas de novo temos aqui um problema. Ao mesmo tempo em queo Catecismo adverte sobre juízo e graça, poderia ser lido como dandoa entender que é possível "guardar os mandamentos" e assim obter ofavor divino. Naturalmente, LUTERO sabe muito bem que isso não éassim. No Catecismo Maior ele observa que "homem nenhum podechegar a cumprir, da maneira devida, um só que seja dos Dez Manda-mentos"13.

Em seu  Prefácio ao Antigo Testamento,  LUTERO mostra que aquestão realmente é perceber a "intenção da lei". E para ele, "a

13 M. LUTERO, O Catecismo Maior (1529), no Livro de Concórdia, p. 444.

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verdadeira intenção de Moisés é a de revelar o pecado por meio dalei" e assim "causar vergonha a todo o atrevimento das capacidadeshumanas". Por isso é que Paulo, em suas cartas, falava do ministério

da lei como "ministério do pecado" e "ministério da morte". "Pois,através da lei, Moisés não consegue fazer mais do que indicar o quese deve fazer e deixar de fazer. Mas ele não dá a força e a capacidadede fazer e deixar de fazer isso, e assim nos deixa atrelados ao pecado". E assim "a morte se atira sobre nós". Um pouco adiante issoé resumido nas seguintes palavras: "O fato de que o pecado é

encontrado em nós e que tão poderosamente nos entrega à morte,resulta da ação da lei, a qual nos revela e ensina a reconhecer o pecado". Quem percebe a intenção da lei aprende no contato com elaa "reconhecer o pecado e suspirar por Cristo"14.

O primeiro momento da leitura dos Mandamentos é, então, o da percepção da impossibilidade de cumpri-los e de, por isso, estar sob

a condenação de morte. Tal percepção nos leva a desesperar de nós próprios e a "suspirar por Cristo". O encontro com Cristo mostraráque, paradoxalmente, este juízo divino já é o movimento da suagraça, e assim também a dádiva dos mandamentos.

5. O segundo momento da leitura

Como já vimos, o propósito divino com os mandamentos é decontinuar o processo de libertação iniciado no êxodo. A liberdadeconquistada precisa agora ser preservada, protegida de seus muitosinimigos. Os próprios mandamentos mostrarão que esta liberdadeainda é frágil e parcial.

É preciso ir um passo adiante, para que mesmo a busca de preservação da liberdade não volte a se tornar um novo tipo de

14 M. LUTERO, Prefácio ao Antigo Testamento (1545), em Obras Selecionadas 8: 26-28.

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escravidão. Se cada um/a se empenhar por si na preservação destaliberdade, logo teremos novas escravidões de todo tipo. Valem aqui,em transposição, as palavras de Paulo: "Para a liberdade foi que Cris-

to nos libertou. Permanecei, pois, firmes e não vos submetais, denovo, a jugo de escravidão" (Gálatas 5.1). Segundo Paulo, o problema dos gálatas era que, "tendo começado no Espírito", estavamagora "se aperfeiçoando na carne" (Gálatas 3.3). A exegese atual temreferendado aquilo que também LUTERO sabia bem: "carne" nosentido bíblico se refere não a um aspecto do ser humano, mas "a

tudo que é nascido da carne, a pessoa inteira, com corpo e alma, arazão e todos os sentidos, isto pelo motivo de que tudo nela procura pela carne"; carne "é uma pessoa que interior e exteriormente vive eatua de forma a servir ao proveito da carne e à vida temporal"15."Carne", então, é o buscar as coisas para si, para o seu próprio proveito, é uma determinada postura em relação à vida e às coisas.

O apelo de Paulo aos gálatas, então, é: "Porque vós, irmãos, fosteschamados à liberdade; porém não useis da liberdade para dar ocasiãoà carne; sede, antes, servos uns dos outros, pelo amor" (Gálatas 5.13).E segue confrontando-os com o sentido profundo da lei, que eleinterpreta na mesma linha de Jesus, reduzindo-a para efeitos pedagógicos a um único mandamento, o do amor ao próximo. Estaconexão entre os mandamentos e a liberdade é de vital importância.Ela se encontra também no fundamento da compreensão ética deLUTERO.  O Tratado acerca da liberdade cristã  é uma longameditação sobre a liberdade, sua origem, suas consequências e aquiloque a ameaça. Tal como Paulo, LUTERO coloca a liberdade emrelação dialética, paradoxal, com a escravidão. E este é justamente,como vimos, o tema do prólogo aos Mandamentos.

15 M. LUTERO, Prefácio à Epístola de S. Paulo aos Romanos (1546), em Obras Selecionadas 8: 134.

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Para Paulo, por paradoxal que isto pareça, a preservação daliberdade consiste em, voluntariamente, tomar sobre si um novo tipode escravidão". Ser "servos uns dos outros, pelo amor (Gálatas 5.13)

é o meio mais eficaz de preservar a liberdade a nós conquistada porCristo. Da mesma forma os Mandamentos querem ensinar osisraelitas a "serem servos uns dos outros, pelo amor", assim preservando a liberdade conquistada no êxodo.

Mas é aqui, justamente, que temos que nos dar conta da grandevirada implícita na interpretação dos Mandamentos feita por Jesus e por Paulo. Começo pela descrição do problema. Normalmenteinterpretamos os Mandamentos como tendo o foco em nós próprios. Eu não devo fazer isto, eu não devo fazer aquilo. E temos dificuldadede perceber que justamente aí é que está o problema. Nesta perspectiva, que é a mais normal entre nós, nosso foco continua "nacarne". Pois é justamente aí que nos defrontamos com a maior de

todas as escravidões: nossa escravidão a nós mesmos, à nossa"carne".

E desta segunda e mais profunda escravidão que os Mandamentosquerem, fundamentalmente, nos libertar, completando assim alibertação iniciada no êxodo. O próprio povo judeu teve dificuldadede perceber isto. Mas há uma tradição profética que perpassa as

Escrituras hebraicas que dá mostras de o ter percebido.Jesus, como o grande profeta prometido na tradição judaica,

certamente o percebeu em toda a sua profundidade e radicalidade.

E neste ponto que percebemos a necessidade de se ler osMandamentos em dois momentos, exigida pela dupla relação de queeles tratam. Esta dupla relação comanda a síntese dos mandamentosfeita por Jesus, e comanda também a metáfora com a qual iniciamos

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nossa meditação. O que acontece entre as duas leituras é de funda-mental importância. O primeiro momento interpretativo termina coma pessoa cristã fora de si, não no sentido de uma perturbação mental,

mas no sentido de ser tirada de si para ser depois devolvida a si própria num processo de conversão.

 Na relação com Deus, em juízo e graça, temos exposta nossacondição de escravidão ao nosso próprio eu. O juízo divino, querealiza a morte do pecador, nos arranca desta condição, nos colocanuma posição "extática" no sentido de ex stasis, fora de nossa posiçãoanterior. E é nesta condição que o movimento da salvação secompleta, nos extra nos,  fora de nós. O novo eu que emerge nestacondição é assim descrito por Paulo: "logo, já não sou eu quem vive,mas Cristo vive em mim" (Gálatas 2.20). O eu escravo do pecado éaniquilado pelo juízo divino, ressurgindo um novo eu "à imagem deCristo" (2 Coríntios 3.18).

Este novo eu refeito à imagem de Cristo não é um monstro semfeições próprias. E, na verdade, o nosso eu mais próprio, que foraobscurecido, reprimido, soterrado pela experiência contínua do pecado. É o nosso ser mais autêntico, agora devolvido a nós pelagraça divina. E só à luz deste evento que podemos compreenderadequadamente a parte da síntese dos mandamentos feita por Jesus

que fala de amar ao próximo "como a si mesmo". Este "si mesmo" éa "nova criatura" de que Paulo fala em 2 Coríntios 5.17, que resultada reconciliação efetuada por Cristo.

Este novo eu que emerge do encontro com o Deus vivo em juízo egraça é, então, identificado com Cristo. E nesta identificação eleagora assume a sua relação com o seu próximo. Só aqui se completa

a conversão de que falamos acima. O que vai entre as duas leituras éum processo de conversão, que só neste contexto recebe seu plenosentido. Trata-se de um duplo movimento. Uma conversão a Deus

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 pelo confronto com ele em juízo e graça é só metade da conversão.A segunda metade é o movimento de retorno, em direção ao próximo.

A partir desta relação com o próximo inaugura-se, então, nainterpretação dos Mandamentos, o segundo momento interpretativo,uma segunda leitura. Nesta a pessoa cristã já não atua como o serhumano sob a impossível exigência divina, mas como o "Cristo parao próximo", o seu cuidador, responsável pela preservação de sualiberdade e humanidade.

E importante mencionar que não se trata aqui de uma perspectivasimplesmente linear, nem da primeira para a segunda leitura e nemda mudança de condição da pessoa cristã, que está em seufundamento. Vale aqui sempre a intuição antropológica fundamentaldo simul justus et peccator, do ser humano ao mesmo tempo justo e pecador. Esta marca tanto o primeiro como o segundo momento, etambém a relação entre eles. Em nossa relação com Deus, estamossempre entre a postura do cuidado de deixá-lo ser Deus e a posturado assalto à sua divindade em nome da ilusão da nossa própria. E emnossa relação com o próximo somos ao mesmo tempo seu cuidadore seu opressor. Não só cuidamos em preservar sua liberdade, mastambém a ameaçamos constantemente. Por isso, a conversão é sem- pre um movimento renovado, diário, parte de uma "batalha

espiritual", se assim o quisermos. Nesta segunda leitura dos Mandamentos, então, perceberemos

nossa responsabilidade para que o nome de Deus não seja confundidoou usado falsamente, de modo que o nosso próximo, por causa disso,venha a encontrar obstáculos para crer em Deus e adorá-loadequadamente. Nossa responsabilidade em relação a jornadas de

trabalho que não onerem a possibilidade de descanso e o tempo paracuidar das necessidades espirituais. Nossa responsabilidade para comas pessoas na terceira idade. Nossa responsabilidade para com os

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 próximos mais próximos de nós, no sentido de protegê-los daviolação das relações pessoais, de preservar uma base mínima deconfiança recíproca que assegure um mínimo de estrutura social e

impeça um caos onde nenhuma palavra vale mais nada. Nossaresponsabilidade para com todos/as, ao terem ameaçadas ascondições materiais de vida que lhes assegurem o desenvolvimentode sua humanidade.

O cuidar do próximo inclui necessariamente o horizonte sócio- político. Como vimos, o próximo é em primeiro plano o necessitado. Sem dúvida, podemos e devemos interpretar isto da forma maisampla possível, como é feito pelo próprio LUTERO em vários lugaresde suas explicações dos Mandamentos. Tomo como exemplo aexplicação do Quinto Mandamento: "lhe ajudemos e o favoreçamosem todas as necessidades da vida". Ou, mais especificamente aindano Sétimo Mandamento: "Devemos temer e amar a Deus, de maneira

que não tiremos ao nosso próximo o dinheiro ou os bens, nem nosapoderemos deles por meio de mercadorias falsificadas ou negóciosfraudulentos, porém o ajudemos a melhorar e conservar os seus bense o seu ganho"16.

 Na mesma linha vão as referências a "se apoderar da herança oucasa do próximo sob aparência de direito" (na explicação do Nono

Mandamento)13

. As explicações mais abrangentes do CatecismoMaior aprofundam este tema com riqueza de detalhes. Certamentetemos nestas linhas de LUTERO farto material para uma "teologia dalibertação". Não seriam os juros da dívida externa dos países doTerceiro Mundo hoje uma forma de tirar do próximo o seu dinheiroe bens? Uma análise das origens do endividamento destes paísescertamente revelaria ah "negócios fraudulentos". E tudo "sob

16 M. LUTERO, O Catecismo Menor (1529), em O Livro de Concórdia, p. 368.

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aparência de direito". Isso vale não só para as relações entre os países,mas também para as relações de classe internas aos mesmos.

A extensão do conceito de "roubo" ao mercado, como LUTERO fazna explicação do Sétimo Mandamento no Catecismo Maior 17, temsurpreendente atualidade para uma tal teologia da libertação, comotambém sua referência aos "piratas de gabinete", os "larápiosgraúdos", que "refestelam-se na cadeira e se chamam grandesfidalgos e cidadãos honrados e íntegros, e rapinam e furtam comaparência de direito"; os "maiúsculos e poderosos arquilarápios" quediariamente saqueiam o país inteiro, que "transformam o livre mer-cado público em esfoladouro e antro de salteadores, onde diariamentese defraudam os pobres e se inventam novos ônus e altas de preços".

É tarefa da teologia cristã, à luz dos Mandamentos e de suainterpretação no espírito do êxodo, dos profetas e de Jesus, a qualecoa em Paulo e em LUTERO,  e movida pelo enternecimento pelasituação de miséria e injustiça em que vive boa parte da humanidade, pensar como fica concretamente hoje o cuidar do nosso próximo.

 Na metáfora da escada, o cristão estende uma mão para o Cristoacima ou ao lado dele, e a outra para o próximo do outro lado. Dizía-mos que de ambos os lados nos vêm uma interpelação ética. Airrupção do outro em nosso horizonte de vida, e as exigências éticasdaí advindas, são um dos temas mais caros na discussão éticacontemporânea. A teologia latino-americana teve aí também uma percepção teológica. Na conhecida parábola do juízo, de Mateus25.31-46, Jesus insinua que na pessoa do próximo necessitado, quetem fome, sede, que não tem roupa e nem abrigo, ele próprio podeestar vindo a nós.

17 M. Lutero, O Catecismo Maior, em O Livro de Concórdia, p. 428-33.

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Temos, assim, uma presença explícita de Cristo num dos lados danossa existência cristã, e a possibilidade de sua presença velada a partir do outro lado, do lado do próximo. A percepção do Cristo

escondido no necessitado que nos interpela deve nos levar a ver esteem toda a sua dignidade que lhe é conferida por Deus e em suahumanidade que foi assumida por Cristo.

6. Concluindo

Uma ética em perspectiva cristã é, assim, ética da fé ativa no

amor, ética do cuidado, ética da liberdade. Seu fundamento estána percepção das relações concretas da vida como geradoras ecomo foco da existência ética. É destas relações, mais precisamente, do Deus e das pessoas com as quais nosrelacionamos na concreticidade da existência que nos vem ainterpelação ética. A dinâmica destas relações, baseadas no amorque tem origem na fé no amor que Deus demonstrou pelahumanidade, é incorporada de tal modo que dali surge a energiaque se transforma em existência ética, a qual, citando LUTERO umaúltima vez, "não pergunta se há boas obras a fazer, e sim, antesque surja a pergunta, ela já as realizou e sempre está a realizar"18.