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Fato social, valor e norma. Teoria tridimensional. Miguel Reale
Sílvio de Salvo Venosa
(...) O arquiteto e estrategista definitivo da teoria tridimensional do Direito
foi, de fato, Miguel Reale, embora outros autores anteriormente a ela já tivessem feito
referência. O Direito evidencia-se perante a sociedade como normas, mas estas são
apenas uma das faces do fenômeno jurídico, o qual somente pode ser visto em conjunto
com outras duas dimensões: o fato social e o valor. Desde a década de 1940 o mestre da
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo vem estudando e estruturando essa
teoria, como ele mesmo confessa no prólogo de sua obra Fundamentos do direito
(1998:VIII), da segunda edição, que o tridimensionalismo já estava claramente
conceituado em suas aulas de 1945, quando já empregava a terminologia. A
originalidade de Reale reside na maneira como descreve o relacionamento entre os três
elementos: fato, valor e norma.
Em linguagem mais singela, ao fato social atribui-se um valor, o qual se
traduz numa norma. Nesse triângulo ou, mais propriamente, nessa dimensão
tridimensional, sob qualquer das faces que se analise, sempre haverá essa implicação
recíproca. Analisando-se pelo lado da norma, por exemplo, esta é fruto de um fato
social ao qual foi atribuído um valor. Esse valor pode não ser inclusive, o mais
adequado ou o que melhor atende à sociedade.
Sob o entendimento de Reale, há um mundo do ser que avalia a realidade
social como efetivamente é, há um mundo de ideias e valores e um mundo do dever-ser,
um modelo social almejado. Nunca esses três elementos se apresentarão desligados do
contexto histórico. Desse modo, nunca poderemos tachar uma lei do início do século
passado, o Código Civil de 1916, por exemplo, como piegas ou retrógrada, como já se
falou, porque essa lei somente pode ser analisada sob o prisma histórico em que foi
criada, isto é, fins do século XIX e início do século XX. Nessa época, para exemplificar,
os conceitos de família e propriedade privada eram totalmente diversos do pensamento e
da legislação atuais. Os valores, portanto, eram outros. Os valores se expressam,
portanto, dentro da história. Nossos próprios valores individuais alteram-se no curso da
vida; mais efetivamente ainda, alteram-se para a sociedade no curso da história.
Destarte, a cultura é dinâmica e vai assumindo variadas formas. (...) O
direito desenvolve- se num processo contínuo, sem prejuízo de seus valores
permanentes. Não há fenômeno ou instituto jurídico que possa ser analisado fora do seu
contexto histórico. Ainda que exista uma lei duradoura, vigente por muito tempo,
sabemos que sua interpretação jurisprudencial varia de acordo com o momento
histórico. Assim, por exemplo, ainda que nosso Código Civil de 1916 tenha tido
vigência por mais de 80 anos, a orientação dos tribunais no início do século XX não foi
a mesma dos últimos anos em inúmeros institutos, ainda que a lei tivesse se mantido sob
a mesma redação. Por igual forma, as decisões de primeira hora lastreadas no novel
Código de 2002 não terão certamente a mesma orientação dos anos do porvir. Qual será
o rumo a seguir nos próximos anos, por exemplo, quais os direitos que devem ser
atribuídos às uniões de pessoas do mesmo sexo, as denominadas uniões homoafetivas?
Somente o futuro nos responderá, traduzido pelas futuras decisões dos tribunais e pela
futura legislação. Essa é a evolução histórica que altera, expande ou restringe os valores
no curso da história.
Ao fato será sempre atribuído um valor, uma vez que a reprodução da
realidade social também é axiológica. O conteúdo do dever-ser será sempre um valor.
Assim, por exemplo, semelhante ao que já expusemos, o constituinte de 1988 entendeu
que os consumidores de nosso país estavam despojados de direitos e de meios de defesa
contra os fornecedores de produtos e serviços. Por essa razão, a Constituição vigente
entendeu que era oportuno e conveniente (juízo de valor) determinar que se elaborasse
uma Lei de Defesa do Consumidor (art. 52, XXXII), o que veio a efetivar-se com o
Código de Defesa do Consumidor (Lei n2 8.078, de 11 de setembro de 1990). Assim
devem ser vistas as normas e a própria estrutura fundamental de um ordenamento, suas
leis constitucionais.
(...) Nesse sentido, Miguel Reale destaca os valores da pessoa humana como
fonte primordial, destacando sua dignidade ética. Esse princípio da dignidade da pessoa
humana é o que tem, de fato, nas últimas décadas, norteado a legislação e a
jurisprudência. Não há que se aceitarem normas ou decisões judiciais que violentem
esse princípio fundamental. Em outra passagem, descreve Reale (2001:44):
“A historicidade do homem é de caráter axiológico, visto que a existência
humana se resolve numa contínua e renovada opção entre valores do mais amplo e
variado espectro. No fundo, viver é optar, escolher entre fins opostos ou conflitantes,
provendo-se de meios adequados à realização dos fins visados.”
Nem sempre, porém, haverá uma relação constante entre fato e norma. A
população poderá estar descontente, por exemplo, com um governante e com o regime
despótico e totalitário ou com uma democracia meramente temática e formal, o que
implica valores descompassados com o fato, mas impostos pela norma. Desse modo,
nem sempre o dever-ser está de acordo com as necessidades sociais. Quando os valores
desajustam-se a tal ponto de se tornarem intoleráveis, esgarçando-se os instrumentos
legais do direito positivo, haverá movimentos sociais e revoluções para fim de alterar o
ordenamento ou subverter o regime. Essa ideia, aliás, já exposta por Locke, séculos
atrás. Assim, a explicação da teoria tridimensional expõe uma realidade que transcende
o plano meramente normativo, situando-se também na esfera das ideologias e do poder,
“afastando o Direito da visão estreita da unidimensionalidade que o posiciona, de forma
extremamente simplória, como uma realidade que se explica por si mesma” (Friede,
2002:106). Tudo isso sobre o prisma histórico-cultural.
De acordo com a exposição de Reale (1981:67), todo fenômeno jurídico
traduz-se num fato subjacente, que pode ser de natureza econômica, social, demográfica
etc. Um valor confere determinada significação ou relevância a esse fato social, fazendo
com que a ação humana se incline para determinada finalidade ou objetivo. Nesse
diapasão, a regra ou norma representa a relação ou a medida que integra os outros
elementos, o fato e o valor. Esses três elementos, fato social, valor e norma, não existem
separados, mas coexistem numa realidade concreta, implicando-se reciprocamente. Não
se pode pensar num desses elementos sem que nosso raciocínio implique os outros. Essa
mesma relação de implicação e polaridade vai ocorrer na atividade do operador do
Direito e também dos operadores sociais. O juiz, advogado ou administrador interpreta
uma norma ou regra para dar-lhes aplicação. Daí por que pode ocorrer que ao mesmo
fato, à mesma questão jurídica e social vários juízes deem soluções diversas, pois
haverá uma diversa valoração do fato social e da norma para cada um deles. Caberá ao
ordenamento criar estruturas para que o entendimento jurisprudencial seja unificado e
outorgue-se segurança social. Há que se ter sempre em conta que a existência e o
raciocínio humanos são feitos de escolhas; a axiologia é a ciência das escolhas. (...)
Os valores atribuídos atualmente à preservação do meio ambiente, portanto,
ganham quadrantes mais elevados de importância, tanto que se refletiram na legislação
interna e estrangeira, com inúmeras normas editadas para sua proteção.
“ A essa luz, confirma-se o sentido transcendental do Direito Natural, o qual
deixa de fundar-se apenas na natureza qua talis, ou na hominis natura, a que se referia
Cícero, mas sim na complicação dialética entre Natureza e Cultura. É nesse quadro de
ideias que está-se desenvolvendo, sob várias formas, um ‘Direito pela natureza’ com a
finalidade de serem preservados os valores ecológicos” (Reale, 2001:57).
Desse modo, Miguel Reale mostra-se sintonizado na realidade, consciente e
presente aos fenômenos e dificuldades atuais do Direito e não desvinculado do
ordenamento. Sem dúvida, a pior filosofia é aquela que se mostra distante da realidade
ou incompreensível para o homem comum, defeitos que passam muito longe do
pensamento tridimensional ora exposto.
Sintetiza com felicidade Paulo Nader (2003:384):
“A influência de Miguel Reale na filosofia brasileira, de um modo geral, e
em particular na Filosofia do Direito, tem as suas causas, em primeiro lugar, na
precisão, rigor lógico e originalidade de sua extensa produção científica e, de outro, por
sua intensa participação na vida cultural brasileira, seja na condição de presidente do
Instituto Brasileiro de Filosofia, seja como professor titular de Filosofia e ex-Reitor da
Universidade de São Paulo.”
A essas palavras não podemos deixar de registrar o testemunho de quem foi
seu aluno na tradicional faculdade das Arcadas, no Largo de São Francisco, na capital
paulista, no último ano do curso de Direito: a exposição de Reale era mágica,
magnética; não havia como se desprender do seu raciocínio, claro, objetivo, enlevante,
inesquecível. Ter sido seu discípulo foi um privilégio.