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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Rodrigo Mendes Pereira
TERCEIRO SETOR E RELIGIÃO:
Investigando Afinidades e Relacionando Catolicismo, Ética, Direito,
Caridade e Cidadania
MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
Dissertação apresentada à Banca Examinadora
como exigência parcial para obtenção do título
de Mestre em Ciências da Religião, pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
sob orientação do Prof. Dr. Pedro Lima
Vasconcellos.
SÃO PAULO
2010
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________
_________________________________________
_________________________________________
3
AGRADECIMENTOS
Pela vida em abundância e pela gratuidade do amor, agradeço a Deus.
Por nossos olhares, toques, conversas, encontros..., agradeço a Deus.
Agradeço a todos – conhecidos e desconhecidos - pela inspiração, pelas orientações,
pelos ensinamentos, pelas informações, pelo apoio, pelas críticas, pelos incentivos, pela
ajuda..., especialmente agradeço pelo amor e solidariedade.
Os equívocos desta dissertação são meus. Os acertos e as contribuições para a
construção de uma sociedade livre, justa e solidária pertencem a todos nós.
4
RESUMO
Sob uma configuração interdisciplinar, o presente trabalho investiga a presença e a influência da religião na construção e funcionamento do terceiro setor, especialmente as afinidades eletivas entre a ética católica e o ativismo no setor social. Na averiguação da influência das motivações ético-religiosas, em especial da caridade e da solidariedade, no espaço ocupado pelas organização não-governamentais (ONGs), em especial pelas de assistência social em sentido amplo, relacionamos catolicismo, ética, direito, caridade e cidadania e investigamos os modelos de intervenção social em nossa sociedade de direitos.
Para tanto, revelamos a complexidade do terceiro setor, sua dimensão, suas características, suas faces, as pressões envolvidas, sua parte “lucrativa”, sua função em uma formação social capitalista, os “mitos” e os fatos. Também desvendamos o sentido e o significado da religião – inclusive no que crêem os que não crêem - e revelamos o incontroverso e as controvérsias da secularização. Tais questões são cruciais para a compreensão do lugar e do papel da religião na construção e funcionamento da sociedade civil, em um Estado Democrático de Direito Secular. Em seguida mostramos a racionalidade da articulação religião-ética-condução de vida e, para evidenciarmos a afinidade eletiva entre ética católica e ativismo no setor social, investigamos a doutrina social da Igreja Católica, suas tensões, conflitos, ambigüidades, complementaridades, articulações e fluidez envolvendo a forma de intervenção da Igreja nas questões sócio-econômicas. Finalmente, apresentamos os dados empíricos por nós coletados, com o intuito de ilustrar a dissertação.
Com isso pretendemos demonstrar que os fatores religiosos são importantes elementos de análise para uma compreensão ampla e realista do terceiro setor, inclusive que se contraponha às distorções conceituais e ideológicas que indicam os valores ético-religiosos como fatores negativos para o desenvolvimento social. A compreensão da influência da religião no funcionamento do terceiro setor pode ser um aliado na construção de uma sociedade livre, justa e solidária, conforme preceitua nossa Constituição Federal.
Palavras-chave: terceiro setor; religião; catolicismo; cidadania; ação social; ética
5
ABSTRACT
Under an interdisciplinary configuration, the herein work investigates presence and influence of religion in construction and operation of the third sector, specially the elective affinities between catholic ethics and activism in social sector. On the investigation of the influence of ethics-religious motivations, specially charity and solidarity , in the space ocupied by non governamental organizations (NGOs), specially by social assistance, in wide sense, we have listed catholicism, ethics, law, charity and citizenship and we have investigated the models of social intervention in our society of rights. Fot both, we have revealead the complexity of third sector, its dimension, its characteristics, features, involved pressures, its “profitable” side, its function in a social capitalist formation, “miths” and facts. We have also unveiled sense and meaning of religion – including what they believe and what they don´t believe – and we have revealed the uncontroversial and the controversies of secularization. These questions are crucial to understand the place and the role of religion on the construction and operation of civil society on a Democratic State of Secular Right. Then, we show the rationality of religion-ethics-life conduction articulation and in order to show the elective affinity between catholic ethics and activism in social sector, we have investigated the social doctrine of Catholic Church, its tensions, conflicts, ambiguities, complementarities, articulations and fluidity involving the way of intervention of the Church in socio economic issues. Finally we present empirical data we have colected in order to illustrate the dissertation. Thereby we intend to demonstrate that religious factors are important elements of analysis for a wide and realistic understanding of third sector; it is actually to counteract to conceptual and ideological distortions that indicate ethical-religious values as negative factors for social development. The understanding of influence of religion in operation of third sector might be an important ally for the construction of a free, fair and solidary society, as well as stipulates Federal Constitution. Key words: third sector; religion, catholicism, citizenship, social action; ethics.
6
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO . . . . . . . . . . 14
CAPÍTULO 1 – O TERCEIRO SETOR E A PRESENÇA DA RELIG IÃO . . 28
1. CONCEITOS, CARACTERÍSTICAS, NÚMEROS E DESACORDOS
NO TERCEIRO SETOR . . . . . . . . 28
1.1. Caracterização Primária do Terceiro Setor . . . . . . 28
1.2. Conceitos, Elementos e Características Gerais do Terceiro Setor . . . 29
1.3. Metodologia para a Identificação e Classificação das Organizações
do Terceiro Setor . . . . . . . . . . 32
1.4. Identificação ou Definição das Organizações do Terceiro Setor:
Critérios para a Inclusão ou Exclusão . . . . . . . 34
1.5. Particularidades das Cooperativas . . . . . . . 36
1.6. Particularidades das Organizações Religiosas . . . . . . 37
1.7. Classificação das Organizações do Terceiro Setor . . . . . 39
1.8. Os Números do Terceiro Setor no Brasil: o Tamanho e
a Presença da Religião . . . . . . . . . 40
1.9. Visão sob o Prisma Jurídico: Aspectos Gerais . . . . . . 44
1.10. Identificação das Organizações Sem Fins Lucrativos pela
Constituição Federal e pelo Código Civil . . . . . . . 50
1.11. Consensos e Desacordos: Conclusões . . . . . . . 53
2. A FACE AMOROSA DO TERCEIRO SETOR: ÉTICA, DIREITO,
CARIDADE E CIDADANIA . . . . . . . . 55
2.1. As Faces do Terceiro Setor: Idéia (Valores), Realidade (Mensuração)
e Ideologia (Mitos) . . . . . . . . . . 55
2.2. As Pressões Envolvidas no Terceiro Setor : De Baixo (Movimentos
Populares Espontâneos), Externas ou De fora (Igrejas, Ongs Internacionais
e Agências Oficiais) e De Cima (Políticas de Governo) . . . . . 61
2.3. Os Princípios Éticos Cardeais e o Terceiro Setor: Amor ou Caridade,
Justiça e sua Face Solidária e a Verdade como Valor Supremo . . . 64
2.4. Cidadania: Gênese Religiosa, Dimensão e Exercício . . . . . 72
7
2.4.1. Enfim, uma Constituição Federal Cidadã . . . . . . 72
2.4.2. Cidadania Ativa e Cidadania Passiva . . . . . . . 76
2.4.3. Dos Profetas Sociais à Teologia da Libertação . . . . . 78
2.5. As Revoluções Sociais, o Estado Democrático de Direito e os Processos
de Exclusão e Inclusão Sociais: Para Além do Neoliberalismo ou os
Implantes Socialistas no Capitalismo . . . . . . . 91
3. SABER DO QUE SE FALA SEMPRE AJUDA: ESCLARECENDO
CONCEITOS, SITUAÇÕES E CONFUSÕES . . . . . . 104
3.1. A Parte “Lucrativa” do Terceiro Setor: Responsabilidade Social
Empresarial, Investimento Social Privado e o Princípio da
Gratuidade na Atividade Econômica . . . . . . . 104
3.2. Caridade, Assistência, Assistência Social, Assistencialismos e Cidadania:
Caridade Sem Verdade e Valor Vira Equivocadamente Esmola . . . . 115
3.3. ONGs e Política de Governo: A Visão Restrita que Transforma o
Terceiro Setor em Ideologia . . . . . . . . . 130
CAPÍTULO 2 – A RELIGIÃO E A CONSTRUÇÃO E FUNCIONAME NTO DA
SOCIEDADE CIVIL, EM UM ESTADO SECULAR . . . . . 134
1. DESVENDANDO SIGNIFICADOS E SENTIDOS DA RELIGIÃO . . . 134
1.1. Conceitos de Religião e Metodologias de Pesquisa dos Fenômenos Religiosos . 134
1.2. Nova Consciência Religiosa, Novos Movimentos Religiosos (NMR) e
Conceitos Úteis para o Estudo da Religião . . . . . . . 144
1.3. Religião no Processo de Reencantamento da Vida e Transformação Social . . 147
2. RELIGIÃO, SOCIEDADE E TERCEIRO SETOR . . . . . 152
2.1. Secularização: o incontroverso e as controvérsias . . . . . 152
2.2. Religião e Construção da Esfera Pública Não-Estatal ou
Esfera Privada com Âmbito Público . . . . . . . . 156
2.3. A Fluidez das Lógicas do Terceiro Setor em uma Sociedade de Direitos:
Assistência, Promoção e Transformação . . . . . . . 165
8
CAPÍTULO 3 – A ORIENTAÇÃO ÉTICO-RELIGIOSA E O “ESPÍ RITO”
DO ATIVISMO NO SETOR SOCIAL . . . . . . . 184
1. FUNDAMENTOS METODOLÓGICOS PARA A COMPREENSÃO DA
ARTICULAÇÃO RELIGIÃO-ÉTICA-ATIVISMO NO SETOR SOCIAL . . 184
1.1. Por que Max Weber? A Sociologia Compreensiva de Weber e seus
Conceitos Fundamentais . . . . . . . . . 184
1.2. Religião, Ética e Condução da Vida: uma Escolha Racional . . . . 193
2. A RELAÇÃO ENTRE O ETHOS RELIGIOSO E O ETHOS DO ATIVISMO
NO SETOR SOCIAL: “AFINIDADES ELETIVAS” ENTRE A ÉTICA
CATÓLICA E O ATIVISMO NO SETOR SOCIAL . . . . . 203
2.1. Caridade e Solidariedade na Doutrina Social da Igreja e a Tensão entre a
Mensagem Original e a Preservação Institucional . . . . . . 203
2.2. A Ética Católica e o Espírito do Ativismo no Setor Social . . . . 215
CONSIDERAÇÕES FINAIS . . . . . . . . 226
APÊNDICE - AS ONGS E O BOM SAMARITANO: APRESENTAÇÃO DOS
DADOS COLETADOS EM ONGS INSCRITAS NO CMAS
DE JUNDIAÍ . . . . . . . . . . 237
A) Porque um Capítulo Virou um Apêndice e a Metodologia da
Coleta de Dados . . . . . . . . . . 237
B) Identificando o CMAS de Jundiaí e Apresentando as Tabelas
com os Dados dos Questionários . . . . . . . . 239
C) Identificando as ONGs e Apresentando os Dados das Entrevistas . . . 247
D) Apresentando os Dados das Entrevistas com Membros Titulares
do CMAS de Jundiaí, Representantes da SEMIS . . . . . . 271
BIBLIOGRAFIA . . . . . . . . . . 275
ANEXOS . . . . . . . . . . . 283
ANEXO 1 – Formulário de Questionário (Entidades) . . . . . 283
ANEXO 2 – Roteiro de Entrevista (Entidades) . . . . . . 297
9
ANEXO 3 – Formulário de Questionário (Conselheiros) . . . . . 299
ANEXO 4 – Roteiro de Entrevista (Conselheiros) . . . . . . 302
10
LISTA DE QUADROS
QUADRO 1 – Comparativo das FASFIL Envolvendo o Número, Classificação e
Percentuais de Entidades em 2002 e 2005 no Brasil . . . . . 42
QUADRO 2 – Abordagens sobre Projetos Sociais de Empresas . . . . 112
QUADRO 3 – Evolução de Paradigma (1) . . . . . . . 121
QUADRO 4 – Evolução de Paradigma (2) . . . . . . . 121
QUADRO 5 – Sociedade Civil Organizada em Evolução . . . . . 121
QUADRO 6 – Tipologia das Organizações Sociais por Períodos Históricos . . 171
11
LISTA DE TABELAS
TABELA 1 – Presença da Religião nas Entidades Inscritas
no CMAS de Jundiaí . . . . . . . . . 241
TABELA 2 – Membros das Entidades por Religião . . . . . 241
TABELA 3 – Membros das Entidades por Freqüência
nas Atividades Religiosas . . . . . . . . . 242
TABELA 4 – Membros das Entidades por Influência dos Ensinamentos
Religiosos nas Decisões em Geral . . . . . . . . 242
TABELA 5 – Membros das Entidades por Influência dos Ensinamentos
Religiosos na Atuação Social . . . . . . . . 243
TABELA 6 – Membros das Entidades por Escala de Importância de Motivações:
Amor ao Próximo . . . . . . . . . . 243
TABELA 7 – Membros das Entidades por Escala de Importância de Motivações:
Dever do Cidadão . . . . . . . . . . 244
TABELA 8 – Membros das Entidades por Escala de Importância de Motivações:
Ajudar os Pobres, Carentes e Necessitados . . . . . . . 244
TABELA 9 – Membros das Entidades por Escala de Importância de Motivações:
Construir uma Sociedade Livre, Justa e Solidária . . . . . . 245
TABELA 10 – Membros das Entidades por Escala de Importância de Motivações:
Minimizar Sofrimentos . . . . . . . . . 245
TABELA 11 – Membros das Entidades por Escala de Importância de Motivações:
Desenvolver Cidadãos . . . . . . . . . 246
12
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ABONG Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais
AL América Latina
ANAMEC Associação Nacional de Mantenedoras de Escolas Católicas do Brasil
CC Código Civil Brasileiro
CEB Comunidade Eclesial de Base
CEBAS Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social
CEMPRE Cadastro Central de Empresas
CF Constituição Federal do Brasil
CIC Catecismo da Igreja Católica
CMAS Conselho Municipal de Assistência Social
CMDCA Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente
CNBB Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
CNAE Classificação Nacional de Atividades Econômicas
CNAS Conselho Nacional de Assistência Social
CNES/MJ Cadastro Nacional de Entidades Sociais do Ministério de Justiça
CNPJ Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas
CNSS Conselho Nacional de Serviço Social
COFENEN Confederação Nacional dos Estabelecimentos Particulares de Ensino
COPNI Classification of the Purpose of Non-Profit Institutions Serving Households
ECA Estatuto da Criança e do Adolescente
EJA Educação de Jovens e Adultos
EUA Estados Unidos da América
FASFIL As Fundações Privadas e as Associações Sem Fins Lucrativos no Brasil
GIFE Grupo de Institutos, Fundações e Empresas
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
ICNPO International Classification of Nonprofit Organization
IPEA Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
ISER Instituto de Estudo da Religião
ISP Investimento Social Privado
LBA Legião Brasileira de Assistência
LDB Lei das Diretrizes e Bases da Educação Nacional
LOAS Lei Orgânica da Assistência Social
13
LSG Liga das Senhoras Católicas
OAB Ordem dos Advogados do Brasil
ONG Organização Não-Governamental
ONU Organização das Nações Unidas
OP Opção pelos Pobres
OS Organização Social
OSC Organização da Sociedade Civil
OSCIP Organização da Sociedade Civil de Interesse Público
PUC Pontifícia Universidade Católica
RSE Responsabilidade Social Empresarial
SAM Sistema de Assistência ao Menor
SEMIS Secretaria Municipal de Integração Social
SENAC Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial
SENAI Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial
SESC Serviço Social do Comércio
SESI Serviço Social da Indústria
STF Supremo Tribunal Federal
SUAS Sistema Único de Assistência Social
SUS Sistema Único de Saúde
UPF Utilidade Pública Federal
14
INTRODUÇÃO
O ano de 1994 foi crucial para o início deste projeto de pesquisa. Foi nesse ano que
comecei a participar do “itinerário de formação católica” denominado “Caminho
Neocatecumental”1; que entendi o significado cristão da caridade e da solidariedade em suas
dimensões de virtudes, princípios e valores sociais e éticos; que enxerguei com mais clareza e
consciência a dimensão dos inúmeros problemas sociais que vitimam e excluem a grande
maioria das pessoas de nossa sociedade, causados pela injustiça, desigualdade de
oportunidades, indiferença, corrupção, egoísmo etc.
A partir daí, consciente de minha responsabilidade pessoal e eticamente orientado
pelos universalmente aceitos mandamento do amor ou caridade - “ama a teu próximo como a
ti mesmo” - e princípio da reciprocidade - “trata os outros como gostarias de ser tratado” –,
passei a atuar no terceiro setor, que representa o conjunto de iniciativas da sociedade civil
organizada de interesse social.
Em outras palavras, por meio de minha experiência religiosa, percebi que ao se reduzir
a dimensão do amor e da solidariedade ao sentimento de afeição e responsabilidade a um
grupo restrito – familiares e amigos -, deixa de ser óbvio na experiência cotidiana que o
mandamento do amor e o princípio da reciprocidade são essenciais para a construção de uma
sociedade livre, justa e solidária. “Para tornar-nos solidários num sentido mais abrangente
precisamos ascender a um estágio de consciência e opção, que implica uma conversão a
valores, que não são óbvios em nossa experiência cotidiana” (ASSMANN e SUNG, 2000, p.
31).
E a atuação no terceiro setor colocaram-me diante de algumas circunstâncias, que
motivaram a execução do presente projeto de pesquisa. Destaco as seguintes:
a) constatação empírica de que, em nosso país, várias lideranças de “organizações não-
governamentais” (a partir de agora, ONGs) de assistência social em sentido amplo –
educação, saúde e assistência social - são motivadas e orientadas por valores ético-
religiosos, especialmente pela noção judaico-cristã de caridade;
1 Segundo seu Estatuto Social, aprovado definitivamente pelo Decreto do Pontifício Conselho para os Leigos de 11 de maio de 2008, o Caminho Neocatecumenal é um itinerário de formação católica como uma das modalidades de realização diocesana da iniciação cristã ou da educação permanente à fé, dotado de personalidade jurídica pública e definido como uma fundação de bens espirituais. Deste modo, o Caminho Neocatecumenal não é uma associação de pessoas nem um “movimento eclesial” de fiéis; é, sim, um “método de formação católica”: um programa de formação à vida cristã da pessoa, de base principalmente catequética e litúrgica dispensado em comunidade e conduzido segundo ritmos e métodos específicos.
15
b) percepção das tendências – dos meios acadêmicos, empresariais e governamentais e
dos militantes da “era do terceiro setor” – de descaracterizar o significado da caridade,
associando-a pejorativamente ao assistencialismo, como também de limitar a
influência da religião apenas ao processo histórico-sociológico da constituição das
redes sociais e ou assistenciais, tratando-a, agora, como um fator negativo para o
funcionamento dessas redes e como um elemento incompatível com o
desenvolvimento da cidadania, com a lógica de direitos e com a justiça.
Aqui abro parênteses. Embora não exista unanimidade no tocante ao conceito e à sua
abrangência, uma definição primária relaciona o terceiro setor ao espaço ocupado
especialmente pelas ONGs, sem fins lucrativos ou econômicos, de interesse social,
constituídas basicamente na modalidade de associações e fundações; assim como pelos
projetos, ações e atividades de indivíduos e empresas com o objetivo de promover o
desenvolvimento social.
Talvez a dificuldade em conceituar o terceiro setor deva-se à heterogeneidade das
organizações que o compõem e, conseqüentemente, às divergências e contradições que o
envolvem, retratadas de forma perspicaz por Maria da Glória Marcondes Gohn (2000):
o terceiro setor é um tipo de ‘Frankenstein’: grande, heterogêneo, construído de pedaços, desajeitado, com múltiplas facetas. É contraditório, pois inclui tanto entidades progressistas como conservadoras. Abrange programas e projetos sociais que objetivam tanto a emancipação dos setores populares e a construção de uma sociedade mais justa, igualitária, com justiça social, como programas meramente assistenciais, compensatórios, estruturados segundo ações estratégico-racionais, pautadas pela lógica de mercado. Um ponto em comum: todos falam em nome da cidadania... (GOHN, 2000, p. 60).
Por sua vez, Rosa Maria Fischer (2002), considerando o conceito amplo decorrente da
linha de pensamento americana preconizada por Lester Salamon, levanta questionamentos
sobre a identidade, a diversidade e a imprecisão conceitual do terceiro setor.
Pode-se detectar desde manifestações de desconfiança e rejeição, até o simples estranhamento na adoção de um conceito que, para abranger a amplitude e a diversidade da realidade que busca definir, tende a ser genérico e impreciso. O próprio nome atribuído a este espaço é alvo de uma disputa nas quais competem, mais do que conceitos e tradições acadêmicas, visões de mundo, valores e identidades dos próprios envolvidos nessas organizações. Assim, não-governamental, sem fins lucrativos, da sociedade civil, filantrópica e beneficente são termos que dividem os corações e mentes dos profissionais, militantes e voluntários que atuam nesse espaço (FISCHER, 2002, p. 45-46).
16
Destacamos que as colocações acima de certa forma sintetizam várias das questões
que motivam e que são abordadas nesta dissertação. Mais especificamente, além de
mostrarem a complexidade e diversidade - decorrentes de fatores históricos, visões de mundo
e ideologias - do terceiro setor, como conseqüência também nos indicam as tensões e
articulações envolvendo o relacionamento entre Estado, mercado e terceiro setor e as lógicas,
dimensões e formas de agir do ativismo no setor social (caritativa/assistencial,
cidadã/promocional e libertadora/transformadora).
O ponto de partida deste projeto de pesquisa são os dados e as análises da pesquisa
designada As fundações privadas e as associações sem fins lucrativos no Brasil: 2002, que
teve uma nova versão referente ao ano de 2005, identificada pela sigla FASFIL; como
também as informações do estudo denominado Doações e trabalho voluntário no Brasil –
uma pesquisa, realizado por Leilah Landim e Maria Celi Scalon, publicado em 2000.
O estudo designado FASFIL2 - a primeira versão publicada no final de 2004 e a
segunda em setembro de 2008 -, revelou que em 2002 e em 2005 havia, respectivamente,
275.895 e 338.162 fundações privadas e associações em nosso país, empregando 1,5 e 1,7
milhão de assalariados. Ele também revelou a substancial presença e indicou a influência da
religião no terceiro setor em nosso país, em síntese da seguinte forma:
a) Em 2002 e 2005, respectivamente, 70.446 (25,53%) e 83.775 (24,8%) das entidades
dedicavam-se diretamente a atividades confessionais (grupo religião). Observe-se que
as instituições de origem religiosa que desenvolvem outras atividades e que têm
personalidade jurídica própria - como, por exemplo, escolas, hospitais, creches etc -
foram classificadas e incluídas em grupos de atividades afins (educação, saúde ou
assistência social etc);
b) Em sua versão publicada em 2004 (dados de 2002), ela expressamente reconhece
que “a influência da religião no âmbito do FASFIL é bem mais ampla apesar de não
ser possível dimensioná-la com exatidão” (BRASIL, 2004, p. 29);
c) Em sua versão publicada em 2008 (dados de 2005), o estudo é ainda mais incisivo,
ao “assinalar que essas entidades, para além de desenvolverem atividades
2 Detalhes sobre os dados e metodologia da FASFIL encontram-se especificados no item desta dissertação denominado “Conceitos, características, números e desacordos no terceiro setor”. Porém, desde já alertamos o leitor que a FASFIL mensurou “unidades” e não “entidades” e que nela estão incluídas as organizações religiosas.
17
confessionais, ocupam novos espaços de debate e deliberação de políticas públicas,
como os conselhos, conferências e grupos de trabalhos governamentais” (BRASIL,
2008, p. 28, nota 7) e ao explicitar que a forte presença das ações de cunho religioso
não se restringe às atividades confessionais, que representam um quarto do total (Cf.
Ibid., p. 28), “posto que milhares de entidades assistencial, educacional e de saúde,
para citar apenas alguns exemplos, são de origem religiosa, embora não estejam
classificadas com tal, o que impede de dimensionar a abrangência efetiva das ações de
influência religiosa” (Ibid., p. 28).
Desta forma, da conjugação das percepções decorrentes de minha experiência pessoal
e dos dados estatísticos, nasceu o desejo de estudar a conexão entre o terceiro setor e a
religião, por meio da investigação das motivações ético-religiosas em ONGs.
Um desafio inicial foi compreender a complexidade do terceiro setor, sua dimensão,
suas características, suas faces, a pressões envolvidas, os mitos3 e os fatos, inclusive a parte a
“lucrativa” do terceiro setor, quando aproveitamos para tratar do princípio da gratuidade na
atividade econômica. Outros desafios foram desvendar o sentido e o significado da religião –
inclusive no que crêem os que não crêem - e revelar o incontroverso e as controvérsias da
secularização. Tais questões foram cruciais para a compreensão do lugar da religião na
construção e funcionamento da sociedade civil, em um Estado Democrático de Direito
Secular.
Uma aspecto preliminar que nos preocupou referiu-se ao fato de que existe muita
confusão terminológica, ou seja, cada um atribui um sentido à palavra conforme seus
interesses, sem a preocupação de verificar seu correto significado indicado pelos Dicionários.
Assim, objetivamos demonstrar as confusões e esclarecer alguns aspectos, pois saber do que
se fala sempre ajuda. No tocante aos princípio éticos, especialmente o amor ou caridade e sua
íntima relação com a justiça e sua face solidária e com a verdade, utilizamos o esplêndido
livro Ética: direito, moral e religião no mundo moderno de Fábio Konder Comparato (2006):
Ora, se a verdade, sob o aspecto ético, como será dito mais adiante, é o único caminho capaz de conduzir à felicidade sem desvios ou enganos, ela se liga necessariamente à justiça e ao amor, pois sem estes é impossível construir uma vida plenamente feliz, no plano individual e social. No tocante à relação específica entre justiça e amor, ela é propriamente indissolúvel. Entre esses valores e princípios éticos não há concorrência, mas complementaridade. A justiça tende a se estiolar e, portanto, a perder sua efetiva vigência, se não for incessantemente aprofundada pelo amor. Este, por sua vez, descamba em egoísmo
3 Aqui utilizamos a palavra em sua concepção negativa. No corpo da dissertação esclarecemos a questão.
18
disfarçado, ou um tíbio sentimentalismo, se não se fundar nas exigências primárias de justiça, das quais representa um aperfeiçoamento e jamais um sucedâneo (Ibid., p. 521).
Um exemplo da questão – da confusão terminológica – que muito repercute em nosso
estudo diz respeito à palavra “caridade”. Para uma diferenciação, no setor social, entre
práticas tradicionais relacionadas à simbologia religiosa (influenciadas por valores ético-
religiosos) e práticas modernas relacionadas à sociedade de direitos (vinculadas ao exercício
da cidadania), muitos – acadêmicos de várias áreas de conhecimentos, agentes
governamentais, empresários e militantes da “era do terceiro setor” – , em vez de adotarem o
principal significado da palavra “caridade” - “amor a Deus e amor ao próximo” -, retiram da
“caridade” seus principais elementos, fazendo com que ela se transforme – aí vejo um
processo de metamorfose ideológica que busca afastar elementos religiosos da sociedade - em
uma outra coisa, que ela efetivamente não significa.
A palavra “caridade” dissociada de seu valor ético – e também de seu elemento
teológico – fica esvaziada de seu real sentido e dimensão, o que leva à tendência de associá-la
pejorativamente à esmola – nesta situação, também descaracterizada em função da ênfase
dada a uma concepção assistencialista da palavra “esmola” - , de colocá-la em frontal
oposição à lógica dos direitos e da cidadania, de indicá-la como um fator negativo para o
desenvolvimento da sociedade e, conseqüentemente, de descartá-la como elemento de análise
e compreensão dos fenômenos sociais.
E aí, chegamos ao alerta de Peter Berger (2000). Comentando a relação entre a
ressurgência religiosa e alguns problemas que não são ligados à religião – política
internacional, guerra e paz, o desenvolvimento econômico e direitos humanos e justiça social
– ele conclui: “Mas há uma afirmação que se pode fazer com bastante confiança: arriscam-se
muito aqueles que negligenciam o fator religioso em suas análises das questões
contemporâneas” (BERGER, 2000, p. 23).
Embora o desejo fosse ampliar o estudo para muitos valores ético-religiosos
explicitados e particularizados por várias tradições religiosas e isto, ainda, em ONGs de
finalidades diversas, sempre tivemos consciência de que nos faltaria fôlego – conhecimento,
tempo, recursos – para tanto. Assim, restringimos o objeto, escolhendo, para o estudo e
pesquisa, a caridade e a solidariedade como os valores e as ONGs de assistência social em
sentido amplo (educação, saúde e assistência social propriamente), como as representantes do
terceiro setor. Também priorizamos a ética e os valores sob a ótica católica, o que, como
19
conseqüência, definiu a linha do estudo e o vínculo de algumas entidades que foram
investigadas.
Nosso principal referencial teórico para a compreensão do objeto de pesquisa –
aferição da relação (de uma “afinidade eletiva”) entre o ethos religioso e o ethos do ativismo
no setor social – é Michael Löwy (2000) e suas proposições sobre a afinidade negativa entre a
ética católica e o capitalismo e sobre a afinidade eletiva entre a ética católica e o ativismo no
setor social. Embora Weber não tenha feito em seus escritos uma avaliação sistemática das
relações entre o catolicismo e o ethos capitalista (Cf. LÖWY, 2000, p. 35), para o autor “há
um ‘subtexto’, um contra-argumento não escrito construído na própria estrutura de A ética
protestante: a Igreja Católica é um ambiente muito menos favorável – se não completamente
hostil – ao desenvolvimento do capitalismo que as seitas calvinistas e metodistas” (Ibid., p.
35).
Em síntese, Löwy (2000) nos referencia com as seguintes proposições extraídas da
estrutura da obra de Weber (2004) A ética protestante e o “espírito” do capitalismo, por ele
explicitadas em seu provocativo e sugestivo texto “A ética católica e o espírito do
capitalismo: o capítulo da sociologia da religião de Max Weber que não foi escrito”: a)
“haveria assim, entre ética católica e capitalismo, uma espécie de afinidade negativa...” (Ibid.,
p. 40); b) “em geral, podemos dizer que a Igreja nunca achou que seria possível ou desejável
abolir o capitalismo: seu objetivo sempre foi corrigir seus aspectos mais negativos através das
ações caritativas e ‘sociais’ do cristianismo” (Ibid., p. 41).
Desta forma, se Max Weber, sua obra, sua sociologia compreensiva foram a fonte de
inspiração de Michael Löwy, também o foram para nós, o que nos impeliu aos conceitos
fundamentais do grande sociólogo que giram em torno da ação social racional e dos tipos
ideais.
Aqui, alguns esclarecimentos se fazem necessários. O primeiro diz respeito ao objeto,
pois temos especial interesse na ética católica – e não na protestante – e no funcionamento do
ativismo no setor social – e não no do capitalismo, embora seu funcionamento influencie o
setor social e repercuta nas proposições de nossa pesquisa. Já o segundo, que também envolve
o objeto da pesquisa, diz respeito ao fato de que estamos buscando nesta dissertação
compreender a influência da religião, hoje, no terceiro setor, ou seja, não nos detemos na
formação e sim nos atrevemos a compreender as motivações ético-religiosas no
funcionamento do setor social, o que, diga-se, seria inviável ou irrelevante para Weber que
objetivou compreender as motivações psicorreligiosas na constituição (formação), e não no
funcionamento do regime capitalista.
20
Destacamos, também, que o fato de investigarmos motivações de fundo de ordem
pessoal e caráter ético-religioso do ativismo no setor social, não significa que negamos a
importância dos aspectos de ordem institucional – lógicas organizacionais (contábil/mercantil
e jurídica) e procedimentos fundados na racionalidade – das organizações não-
governamentais (ONGs). Visamos, entretanto, mesmo nesse segundo aspecto, verificar como
as motivações pessoais ético-religiosas influenciam os processos organizacionais, e isto fica
claro quando nos propusemos a investigar se atualmente existe a busca de um ponto de
convergência entre a racionalidade substantiva determinada pelos valores e a racionalidade
instrumental determinada pelos fins, objetivando compatibilizar a boa vontade com o
profissionalismo, a assistência caritativa (minimizar sofrimentos) com a cidadania
(desenvolver cidadãos), a boa intenção com resultados efetivos.
Outrossim, se as proposições de Löwy (2000) giram em torno do “capitalismo” e de
instituições anticapitalistas (implantes socialistas na formação social capitalista que objetivam
enfrentar e/ou compensar seus aspectos negativos) (Cf. SINGER, 1998, p. 132), nada mais
óbvio do que buscarmos compreender o capitalismo e sua relação com o crescimento e a
amplitude do terceiro setor.
E a compreensão do capitalismo como formação social se torna relevante, na medida
em que a dimensão do terceiro setor, inclusive a relação entre suas organizações sem fins
lucrativos e o Estado, é vinculada ao estado de bem-estar social (welfare state) - uma
manifestação do ou no capitalismo dirigido -, assim como a dimensão do setor social é
vinculada à crise do welfare state, representada pela ofensiva (contra-revolução) do
neoliberalismo face ao capitalismo dirigido – destaca-se que há uma grande e subsistente
resistência a essa ofensiva neoliberal –, objetivando a redução do tamanho do Estado e do
gasto social governamental mediante a destruição do welfare state e a conseqüente
privatização dos serviços sociais.
Como as proposições de Löwy (2000) se referem – na verdade são fundamentadas –
na doutrina social da Igreja Católica, tratamos de vários aspectos do ensinamento social da
Igreja, dentre os quais da relevância e centralidade do amor ou caridade e da solidariedade na
doutrina social, assim como indicamos ambigüidades referentes à compreensão desses
princípios éticos e mandamentos religiosos que repercutem no modo de interpretar as
orientações (a doutrina, a teologia) e na forma de atuar concretamente na sociedade (de fazer
“caridade”), pois a prática se espelha na doutrina. Também nos debruçamos na compreensão,
inclusive das tensões e ambigüidades, da afirmação de Herman Vos e Jacques Vervier (1995)
21
no sentido de que “o ensinamento social da Igreja condena com igual vigor – mas não com os
mesmo argumentos – o capitalismo e o comunismo...” (VOS e VERVIER, 1995, 69).
Para tanto, percorremos o período histórico dos profetas sociais à teologia da
libertação – Löwy (2000) associa o ethos anticapitalista da Igreja Católica com a emancipação
social dos pobres na América Latina – e chegamos aos nossos dias e ao nosso país. Neste
processo, também abordamos várias questões históricas particulares do Brasil – todas
envolvem a relação entre processos histórico-religiosos e o funcionamento do setor social
(terceiro setor) -, dentre as quais: o processo envolvendo o fim do Padroado e o início da
Romanização; o processo republicano de laicização do Estado e a participação da religião na
construção do esfera pública; tipologias, por períodos históricos, das organizações do terceiro
setor, de sua lógica (assistência/caridade, promoção/cidadania,
libertação/transformação/justiça social), de sua regulação (religiosa, estatal), de seus atores
sociais (Igreja, Estado, sociedade) e de seus paradigmas.
Destacamos que um dos principais fatores que gera ambigüidades e que está vinculado
às condições concretas em que se processam o pensamento e a prática da Igreja refere-se à
tensão entre a mensagem original de Jesus Cristo (do amor e fraternidade universais) e o
impulso de preservação institucional. Sobre a questão, fazendo uma aproximação entre o
continuum Seita-Igreja de Rodney Stark (2006) e as proposições de Michael Löwy (2000),
argumentamos – muitas aspas foram colocadas – que as tensões entre a “seita católica”
movida pela força original do mandamento da caridade ou “amor ao próximo” (da
fraternidade universal) ensinado por Jesus Cristo e as várias esferas da sociedade, em especial
a esfera econômica, vão sendo reduzidas – as tensões – na medida em que a “Igreja Católica”
vai se acomodando e se adaptando às estruturas e formações sociais, em especial às
econômicas, passando, assim, do confronto com a lógica capitalista para a correção de seus
aspectos negativos por meio de atividades caritativas sociais e/ou assistenciais. Aí, em vez da
tensão entre o mandamento da caridade ou amor da “seita católica” e as esferas da sociedade,
passa-se a uma tensão entre a mensagem original do amor e fraternidade universais e o
impulso de preservação institucional da “Igreja Católica”.
Finalmente, e com a intenção de sintetizar os aspectos teóricos, informamos que
fizemos um tentativa de relacionar (aproximar) a sociologia compreensiva da religião de Max
Weber – em especial seus elementos referentes à racionalidade das ações, à influência da
salvação na condução da vida e às tensões, e respectivos modos de dominá-las, entre religião
fraternal de salvação e as atividades, estruturas e esferas da sociedade – com as proposições
de Michael Löwy sobre a ética católica – afinidade negativa com o capitalismo e afinidade
22
eletiva com o ativismos no setor social -, com a teoria da escolha racional de Rodney Stark - o
processo de escolhas racionais por meio do qual os seres humanos valoram e intercabiam
esses compensadores” (STARK, 2006, p. 188), entendidos eles como o propósito concernente
à obtenção (o método de atingimento) da recompensa (da coisa desejada) (Cf. Ibid., 187) - e o
conceito de religião de Clifford Geertz – religião como articulação entre o ethos e a visão de
mundo - , todos eles nossos referenciais teóricos.
Passemos, agora, a explicitar nosso objeto e objetivos, que já estão implícitos nesta
apresentação da dissertação.
A dissertação Terceiro Setor e Religião: investigando afinidades e relacionando
catolicismo, ética, direito, caridade e cidadania é um projeto de pesquisa que tem como
objeto: averiguar a relação entre o ethos religioso e o ethos do ativismo no setor social
(terceiro setor), especialmente as afinidades eletivas entre a ética católica e o ativismo no
setor social, mediante os seguintes procedimentos: a) investigar se os valores ético-religiosos,
especialmente a caridade e a solidariedade em suas noções judaico-cristãs e prioritariamente
sob a ótica da doutrina social da Igreja Católica, ainda hoje influenciam o funcionamento de
ONGs de assistência social em sentido amplo (educação, saúde e assistência social
propriamente), como fatores de motivação e orientação de suas lideranças (dirigentes,
gestores e membros com atuação efetiva); b) investigar se atualmente essas ONGs estariam
buscando um ponto de convergência entre a racionalidade substantiva determinada pelos
valores e a racionalidade instrumental determinada pelos fins, objetivando compatibilizar a
boa vontade com o profissionalismo, a assistência caritativa (minimizar sofrimentos) com a
cidadania (desenvolver cidadãos), a boa intenção com resultados efetivos; c) averiguar a
articulação religião-ética-condução de vida em nosso atual Estado Democrático de Direito,
relacionando catolicismo, ética, direito, caridade e cidadania e investigando se existe uma
tendência à articulação e busca de compatibilização e complementaridade entre as lógicas e
dimensões assistencial, promocional e libertadora/transformadora no setor social (terceiro
setor), inclusive em função da fluidez das práticas (ações) no mundo real.
Já seus objetivos são: a) contribuir para despertar nos líderes de ONGs, nos
empreendedores sociais e nos acadêmicos, profissionais e financiadores do terceiro setor
reflexões sobre os seguintes aspectos: a.1.) a religião é um elemento de análise e compreensão
dos fenômenos sociais e, assim, “...arriscam-se muito aqueles que negligenciam o fator
religioso em suas análises das questões contemporâneas”(BERGER, 2000, p. 23); a.2.) a
coerência terminológica é um fator que evita confusões e equívocos na compreensão dos
fenômenos sociais, um vez que “’Saber do que se fala sempre ajuda’. Pés no chão do bom
23
senso, assim abriu Jürgen Habermas...” (PIERUCCI, 1998, p. 43); b) a investigação sobre a
influência dos valores ético-religiosos na constituição e funcionamento de ONGs, que
integram o denominado terceiro setor, objetiva, em última análise, revelar elementos
importantes para uma compreensão ampla e realista do terceiro setor, inclusive que se
contraponha às distorções conceituais e ideológicas que colocam os valores ético-religiosos
em frontal oposição à lógica dos direitos e da cidadania, que os indicam como fatores
negativos para o desenvolvimento da sociedade e, conseqüentemente, descartam-nos como
elementos de análise e compreensão dos fenômenos sociais. E isto é relevante, na medida em
que a nossa Constituição Federal reconhece o papel das ONGs na implementação – de forma
complementar e integrada com o poder público – dos direitos sociais e na realização do
objetivo constitucional que propõe a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. A
compreensão da influência da religião, de seus princípios e preceitos na construção e
funcionamento do setor social (terceiro setor) podem ser um grande aliado na realização
desses objetivos.
Com relação aos procedimentos metodológicos, esclarecemos que embora a idéia
inicial deste projeto envolvesse o estudo de casos, ou seja, a análise de dados empíricos
coletados pelo estudante-pesquisador, em seu desenvolvimento fomos envolvidos pelas
questões teóricas e por pesquisas já elaboradas, o que direcionou esta dissertação para a
análise e interpretação de argumentos extraídos de obras doutrinárias e de dados empíricos
extraídos de estudos consolidados. Assim, em vez de uma análise detalhada – de um estudo
de casos – fazemos uma apresentação e brevíssimas considerações sobre os dados empíricos
por nós coletados, com o intuito de ilustrar a dissertação. Disto, decorre também nossa opção
– esta decisão foi carregada de conflitos o que a adjetiva de angustiante, pois o desejo era
avaliar com profundidade os fartos e importantes dados coletados – de transformar um
possível “Capítulo” em um “Apêndice”.
Observe-se, também, que o envolvimento com as questões teóricas foi motivado pela
configuração interdisciplinar do estudo, que envolve várias áreas do conhecimento
(administração, direito, economia, história, sociologia, serviço social, antropologia, filosofia,
ética, teologia, ciências da religião etc) e que exigiu do estudante-pesquisador um grande
esforço para manter a coerência da argumentação. Nesse caráter de interdisciplinaridade
talvez esteja a maior contribuição do estudo.
Concluindo, extraímos do corpo da dissertação várias perguntas que indicam os
caminhos percorridos, a complexidade e interdisciplinaridade do estudo, as dificuldades
24
e obstáculos encontrados e as eventuais contribuições para a construção de uma
sociedade livre, justa e solidária:
•••• O que a religião – os valores ético-religiosos, sua linguagem simbólica –
representam em uma formação social capitalista, na qual existe um embate entre
dirigismo e neoliberalismo, ou seja, um embate entre as tendências do capitalismo
à exclusão social, concentração de renda e destruição criadora e os implantes
socialistas que objetivam modificar e/ou compensar essas tendência nocivas?
•••• Organizações do terceiro setor são meros instrumentos de política de governo de
Estados neoliberais, que objetivam destruir o estado de bem-estar social (welfare
state)?
•••• O neoliberalismo é uma realidade que se manifesta da mesma forma e dimensão
em todos os países, e assim é inevitável que suas estratégias de redução do Estado
vão privatizar os serviços sociais sem qualquer resistência?
•••• Nossa Constituição Federal Cidadã, e suas expressas determinações sobre o dever
do Estado implementar os direitos sociais (saúde, educação, assistência social etc),
não é uma resistência à privatização dos serviços sociais?
•••• As inúmeras disposições constitucionais cidadãs (direitos individuais, sociais e
políticos) que responsabilizam o poder público – com integração e
complementaridade das organizações do terceiro setor – na implementação dos
direitos sociais, não nos caracterizariam como um Estado Democrático de Direito
mais próximo do perfil do capitalismo dirigido do que do perfil neoliberal?
•••• No plano da efetiva realização dos direitos – não apenas no plano de um sistema
jurídico positivado – nosso país já viveu o estado de bem-estar social (welfare
state)?
•••• O surgimento de organizações do terceiro setor está vinculado a políticas de
governo (pressões de cima), ou elas nascem de processos autônomos - iniciativas
de âmbito privado envolvendo interesse social – que também sofrem pressões de
25
baixo (movimentos espontâneos pela melhoria de condições de vida e pela busca
de direitos) e externas (igrejas, ongs internacionais, agências oficiais de fomento
etc)?
•••• A produção pública – oferecimento de bens e serviços gratuitamente – realizada
pelo Estado através de repasse de recursos públicos a organizações do terceiro
setor com finalidades públicas, por meio de acordo públicos (convênios, termos de
parceria, contratos de gestão etc), representa uma privatização dos serviços
sociais?
•••• Implantes socialistas na formação social capitalista, objetivando combater e/ou
compensar a dinâmica capitalista da exclusão, concentração e destruição, não são
muitas vezes manifestados por meio de organizações do terceiro setor?
•••• Por que, quando tratamos de processos de exclusão e inclusão, a articulação
religião-ética-condução de vida surge como um elemento de contraponto à lógica
individualista e excludente do capitalismo, e isto inclusive na argumentação de
pesquisadores de várias áreas e sem vinculação religiosa?
•••• O que é esfera pública e esfera privada? Em que esfera se situa a religião?
•••• As idéias de secularização do Estado e da normatividade jurídica seriam
suficientes para explicar a construção da esfera ou espaço público no Brasil? A
religião continua a influenciar o funcionamento da sociedade civil organizada –
entendida como esfera pública não-estatal ou a esfera privada com âmbito público?
•••• Prestar serviço voluntário, fazer doações, constituir e dirigir ONGs são escolhas
racionais?
•••• A prática e ou o fomento de atividades sociais e ou assistenciais é um meio
(método, “caminho”) de respeitar e viver concretamente o mandamento do amor
ou caridade em nossa sociedade de direitos racional e capitalista?
26
•••• O que se espera com essas escolhas? Qual a recompensa? A própria salvação ou
uma sociedade mais justa, cidadã e solidária? Esses objetivos são incompatíveis?
•••• O que motiva essas escolhas? Mandamentos, teologias e doutrinas religiosos ou
princípios éticos e ideais humanitários? Em nossa sociedade ocidental, não existe
um entrecruzamento entre mandamentos religiosos e princípios éticos? Valores
como amor, justiça e solidariedade não são comuns a ambos?
•••• Além da assistência caritativa, os valores ético-religiosos legitimam e motivam a
promoção humana cidadã e a transformação das estruturas injustas? Existem
oposições e incompatibilidades intransponíveis entre essas práticas?
•••• Por que algumas ONGs com forte influência de valores ético-religiosos – sob a
mesma teologia e doutrina – fazem “caridade” de maneira diversa? Por que umas
confrontam a ordem existente e outras não?
•••• Motivado pelo mandamento do “amor ao próximo”, constituir uma ONG de
assistência social e geri-la de forma eficiente para que ela cumpra suas finalidades
e alcance os resultados propostos, não envolve tanto a racionalidade por valor
(cumprir o dever de amar o próximo, um mandamento religioso e um princípio
ético) quanto a racionalidade por finalidade (gerir e utilizar recursos financeiros,
materiais e humanos, inclusive cumprido toda a burocracia, para atender
adequadamente seu público-alvo, mediante o fornecimento se serviços)?
•••• Na situação acima, o fato de constituir e gerir uma ONG (dedicar-se a uma
“missão”, ser um instrumento de Deus), como um modo de viver concretamente o
“amor ao próximo”, não se caracteriza como uma escolha racional de um caminho,
um método, um compensador – na linguagem de Rodney Stark – para se alcançar
uma futura recompensa (vida eterna, salvação) e/ou uma atual recompensa (viver
de modo coerente com os valores ético-religiosos e, assim, experimentar a paz e a
felicidade ao fazer o bem)?
27
•••• Por que não existe clareza entre os fiéis leigos – a quem, movidos por valores
ético-religiosos, prioritariamente compete constituir e gerir ONGs – sobre a
complementaridade e integração entre assistência, promoção humana cidadã e
transformação das estruturas injustas no enfrentamento do problemas sócio-
econômicos?
•••• Essa falta de clareza é fruto do pouco conhecimento da doutrina social por parte
dos membros do clero que, assim, não divulgam e nem suscitam o
comprometimento dos cidadãos leigos a uma atuação que além de obras de
misericórdia (assistência que responde às necessidades do aqui e agora), também
envolva a organização e a estruturação da sociedade (remoção ou modificação de
fatores sócio-econômicos que ocasionam sistemas injustos)? Ou os membros do
clero conhecem, porém não priorizam a divulgação da dimensão cidadã e
transformadora da doutrina social? Ou os fiéis é que não escutam ou têm
dificuldade em aderir aos ensinamentos sociais em suas dimensões mais estruturais
e transformadoras?
E por aí vamos...
28
CAPÍTULO 1 – O TERCEIRO SETOR E A PRESENÇA DA RELIG IÃO
1. CONCEITOS, CARACTERÍSTICAS, NÚMEROS E DESACORDOS NO
TERCEIRO SETOR4
1.1. Caracterização Primária do Terceiro Setor5
Como ponto inicial, destaca-se que o terceiro setor é um campo e um conceito
recentes, que vêm sendo objeto de inúmeras discussões. Desta forma, como estamos no início
do processo de conhecimento das características, dos elementos e da própria essência e lógica
do terceiro setor, não existe unanimidade no tocante a seu conceito e abrangência, e isto
inclusive porque os conceitos variam conforme a ênfase dada a um dos elementos ou
características do terceiro setor, tais como: diferenciação dos “outros setores”, abrangência,
finalidade ou natureza jurídica das organizações que o compõem.
Pretende-se, num primeiro momento, tratar a questão da forma mais abrangente
possível, trazendo informações que levem a uma reflexão sobre o tema, ou melhor, que leve a
cada um chegar a suas próprias conclusões. Em síntese, serão desenvolvidos os seguintes
aspectos: conceitos (jurídicos e não-jurídicos) e características do terceiro setor; metodologias
e critérios para a identificação e classificação das organizações sem fins lucrativos, levando
em conta os dois principais estudos e pesquisas existentes em nosso país; a maneira como a
Constituição Federal e o Código Civil identificam e denominam as organizações sem fins
lucrativos.
Destacamos, e isto em função da investigação proposta por esta pesquisa, que
traremos um subitem específico designado sinteticamente como “Os números”. Além dele
mostrar o tamanho do terceiro setor no Brasil, ou seja, a “face do terceiro setor como
4 Este item “Conceitos, características, números e desacordos no terceiro setor” tem como base texto com título similar, escrito anteriormente pelo autor desta dissertação e já publicado conforme discriminado na “Bibliografia”. Esclarecemos que exclusões, inclusões e modificação foram realizadas no texto original para corrigi-lo e adaptá-lo a esse trabalho de pesquisa. 5 Informamos que no subitem desta dissertação denominado “A parte ‘lucrativa’ do terceiro setor: responsabilidade social empresarial, investimento social privado e o princípio da gratuidade na atividade econômica”, indicaremos que o papa Bento XVI, em sua recente carta encíclica Caritas in Veritate – sobre o desenvolvimento humano integral na caridade e na verdade, constata que nas últimas décadas surgiu uma área intermediária mais ampla e complexa do que o denominado terceiro setor. Essa área intermediária também envolve o privado e o público, porém o fato de distribuir ou não o lucro e de assumir uma ou outra das configurações jurídicas previstas, torna-se secundário em face da finalidade de conceber o lucro para finalidades de humanização do mercado e da sociedade (Cf. BENTO XVI, 2009, p. 55). Esta concepção se aproxima da definição de terceiro setor da corrente européia, que o identifica com a economia social, conforme indicado por Luiz Carlos Merege (2001) no subitem denominado “Particularidades das cooperativas”.
29
realidade” - este corte metodológico se deve a Lester Salamon (1997)6, que enxerga três faces
do Terceiro Setor: como idéia (valores), como realidade (mensuração) e como ideologia
(mitos) (Cf. SALAMON,1997, p. 91ss.) – , esse subitem também comprovará estatisticamente
a presença e a influência de fatores religiosos no terceiro setor.
Já nas conclusões, serão noticiados alguns pontos de consenso e desacordo na
identificação das organizações que integram o terceiro setor.
Entretanto, antes de começar esta empreitada, parece oportuno elaborar uma
caracterização primária.
A denominação “terceiro setor” é utilizada para identificar as atividades da sociedade
civil, que não se enquadram na categoria das atividades estatais (primeiro setor) ou das
atividades de mercado (segundo setor). Segundo o estudo As fundações privadas e as
associações sem fins lucrativos no Brasil: 2002, que teve uma nova versão referente ao ano
de 2005, identificado pela sigla FASFIL e abaixo detalhado, em 2002 e em 2005 havia,
respectivamente, 275.895 e 338.1627 fundações privadas e associações sem fins lucrativos em
nosso país, empregando 1,5 e 1,7 milhão de assalariados.
De fato, o terceiro setor é o espaço ocupado especialmente por: (a) organizações da
sociedade civil, sem fins lucrativos ou econômicos, de interesse social, constituídas
basicamente na modalidade de associações e fundações; (b) projetos, ações e atividades de
interesse social desenvolvidos por indivíduos e empresas; (c) alianças (parcerias) entre a
sociedade civil, poder público e empresas com o objetivo de promover o desenvolvimento
social. Caracterizam-se como entidades de interesse social, tanto as organizações sem fins
lucrativos de interesse ou caráter público (entidades assistenciais, beneficentes, filantrópicas,
de defesa de direitos etc.), quanto as organizações sem fins lucrativos de ajuda mútua ou de
auto-ajuda (associações de classe, clubes sociais, associações de moradores etc.).
1.2. Conceitos, Elementos e Características Gerais do Terceiro Setor
Diante da complexidade da questão, abaixo serão transcritos conceitos, elementos e
características ofertados por vários autores e organizações. Frise-se que a compilação dos
conceitos e elementos tem como finalidade possibilitar um fácil acesso aos vários
6 Este assunto será detalhado no subitem desta dissertação denominado “As faces do terceiro setor: idéia, realidade e ideologia”. 7 Para esclarecimentos sobre quais são as entidades – ou melhor, as unidades – que integram a FASFIL, remetemos o leitor ao subitem desta dissertação denominado “Os números do terceiro setor no Brasil: o tamanho e a presença da religião” e suas respectivas notas.
30
posicionamentos e pontos de vista, sobre esse recente campo de conhecimento, que está em
contínuo processo de busca e consolidação de sua identidade.
Segundo Luiz Carlos Merege (1999):
A denominação de Terceiro Setor para as atividades da sociedade civil surge de uma análise mais profunda das atividades organizadas por iniciativa da sociedade civil que as distingue das outras atividades econômicas. Recebeu essa denominação por englobar atividades que não estão dentro da órbita de atividades governamentais e muito menos se identificam com as atividades privadas, sejam do setor agrícola, industrial ou do setor de serviços, como são tradicionalmente definidas pela metodologia das contas nacionais. São organizações que não têm as características de apropriação privada de lucros, que prestam um serviço público e que sobrevivem basicamente da transferência de recursos de terceiros, sejam famílias, governo ou empresas privadas. Por não se enquadrarem dentro das categorias das atividades estatais ou das atividades de mercado, passaram a ser identificadas como um Terceiro Setor (MEREGE, 1999).
Mário de Aquino Alves (2001), além de ofertar sua própria definição para o terceiro
setor, explicita e tece algumas considerações críticas ao conceito proposto por Lester
Salamon, pesquisador da Johns Hopkins University e pioneiro na mensuração do terceiro
setor em nível mundial.
Já o pesquisador da Johns Hopkins University, Lester Salamon, preferiu desenvolver um conceito mais restrito que possibilitasse a mensuração do fenômeno em escala mundial. “Embora a terminologia utilizada e os propósitos específicos a serem perseguidos variem de lugar para lugar, a realidade social subjacente é bem similar: uma virtual revolução associativa está em curso no mundo, a qual faz emergir um expressivo ‘terceiro setor’ global, que é composto de: (a) organizações estruturadas; (b) localizadas fora do aparato formal do Estado; (c) que não são destinadas a distribuir lucros auferidos com suas atividades entre os seus diretores ou entre um conjunto de acionistas; (d) autogovernadas; (e) envolvendo indivíduos num significativo esforço voluntário”. Esta última definição, embora bastante útil para os pesquisadores que pretendam avaliar o tamanho e o peso que o setor tem na economia e na sociedade, incorre na seguinte distorção: ao restringir a composição do setor a organizações estruturadas, o autor americano dá uma ênfase maior na parte “formal” do Terceiro Setor, negligenciando um aspecto importante do associativismo que é a possibilidade da geração de ações informais e espontâneas. No nosso entendimento, este é um aspecto que não pode ser negligenciado. (...) gostaríamos de oferecer à apreciação um conceito de Terceiro Setor que nos parece mais abrangente e explicativo: Terceiro Setor é o espaço institucional que abriga um conjunto de ações de caráter privado, associativo e voluntarista, geralmente estruturadas informalmente, voltadas para a geração de bens e serviços públicos de consumo coletivo; se ocorrer excedentes
31
econômicos neste processo, estes devem ser reinvestidos nos meios para a consecução dos fins estipulados (ALVES, 2001)8.
Rubem César Fernandes (1997) também traz uma síntese sobre o terceiro setor, na
qual ressalta que um processo de mutação vem tentando compatibilizar as divergências entre
os elementos que o compõem.
Em resumo, pelo que foi visto até aqui, pode-se dizer que o Terceiro Setor é composto por organizações sem fins lucrativos, criadas e mantidas pela ênfase na participação voluntária, num âmbito não-governamental, dando continuidade às práticas tradicionais da caridade, da filantropia e do mecenato e expandindo o seu sentido para outros domínios, graças, sobretudo, à incorporação do conceito de cidadania e de suas múltiplas manifestações na sociedade civil (Fernandes, 1995 e 1996a)9. Essa definição soa um tanto estranha porque combina palavras de épocas e de contextos simbólicos diversos, que transmitem, inclusive, a memória de uma longa história de divergências mútuas. A filantropia contrapôs-se à caridade, assim como a cidadania ao mecenato. São diferenças que ainda importam mas que parecem estar em processo de mutação. Perdem a dureza da contradição radical e dão lugar a um jogo complexo e instável de oposições e complementaridades. Não se confundem, mas já não se separam de todo tampouco. Recobrem-se parcialmente, alterando situações de conflito, de cooperação e de indiferença. A irmã de caridade que defende sua creche como uma “ação de cidadania” ou o militante de organizações comunitárias que elabora projetos de mecenato empresarial tornam-se figuras comuns (FERNANDES, 1997, p. 27).
Dando continuidade a essa linha que enfatiza a heterogeneidade e as contradições do
terceiro setor, Maria da Glória Marcondes Gohn (2000) elabora a seguinte caracterização que
se torna adequada para definir o terceiro setor:
o terceiro setor é um tipo de ‘Frankenstein’: grande, heterogêneo, construído de pedaços, desajeitado, com múltiplas facetas. É contraditório, pois inclui tanto entidades progressistas como conservadoras. Abrange programas e projetos sociais que objetivam tanto a emancipação dos setores populares e a construção de uma sociedade mais justa, igualitária, com justiça social, como programas meramente assistenciais, compensatórios, estruturados segundo ações estratégico-racionais, pautadas pela lógica de mercado. Um ponto em comum: todos falam em nome da cidadania... (GOHN, 2000, p. 60).
Por sua vez, Rosa Maria Fischer (2002), considerando o conceito amplo decorrente da
linha de pensamento americana preconizada por Lester Salamon, levanta questionamentos
sobre a identidade, a diversidade e a imprecisão conceitual do terceiro setor.
8 Os grifos são do autor. 9 O autor identifica a seguinte referência bibliográfica: FERNANDES, Rubem César (1995). “Elos de uma Cidadania Planetária”, Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, ANPOCS; FERNANDES, Rubem César (1996a). Privado, Porém Público – O Terceiro Setor na América Latina. Rio de Janeiro, Relume Dumará.
32
Terceiro Setor é a denominação adotada para o espaço composto por organizações privadas, sem fins lucrativos, cuja atuação é dirigida a finalidades coletivas ou públicas. Sua presença no cenário brasileiro é ampla e diversificada, constituída por organizações não-governamentais, fundações de direito privado, entidades de assistência social e de benemerência, entidades religiosas, associações culturais, educacionais, as quais desempenham papéis que não diferem significativamente do padrão conhecido de atuação de organizações análogas em países desenvolvidos. Essas organizações variam em tamanho, grau de formalização, volume de recursos, objetivo institucional e forma de atuação. Tal diversidade é resultante da riqueza e pluralidade da sociedade brasileira e dos diferentes marcos históricos que definiram os arranjos institucionais nas relações entre o Estado e o Mercado. Os principais componentes do nonprofit sector americano – freqüentemente utilizado como parâmetro para compreensão do setor em outros países – podem ser encontrados na caracterização do Terceiro Setor no Brasil. Segundo a definição “estrutural/operacional” de Salamon e Anheir (1992), utilizada por Landin, essas organizações caracterizam-se por serem privadas, sem fins lucrativos, formais, autônomas e incorporarem algum grau de envolvimento de trabalho voluntário. Entretanto, o conceito de que tais organizações, em virtude dessas características comuns, constituem um “setor” diferenciado do tecido social, não está suficientemente consolidado, nem no ambiente acadêmico nem no universo das práticas cívicas, associativas e de solidariedade. Pode-se detectar desde manifestações de desconfiança e rejeição, até o simples estranhamento na adoção de um conceito que, para abranger a amplitude e a diversidade da realidade que busca definir, tende a ser genérico e impreciso. O próprio nome atribuído a este espaço é alvo de uma disputa nas quais competem, mais do que conceitos e tradições acadêmicas, visões de mundo, valores e identidades dos próprios envolvidos nessas organizações. Assim, não-governamental, sem fins lucrativos, da sociedade civil, filantrópica e beneficente são termos que dividem os corações e mentes dos profissionais, militantes e voluntários que atuam nesse espaço (FISCHER, 2002, p. 45-46).
Destacamos que as colocações de Rosa Maria Fischer (2002) de certa forma
sintetizam várias das questões que motivaram e que são abordadas nesta dissertação. Mais
especificamente, a autora mostra a complexidade e diversidade - decorrentes de fatores
históricos, visões de mundo e ideologias - do terceiro setor e, conseqüentemente, nos indica as
tensões e articulações envolvendo o relacionamento entre Estado, mercado e terceiro setor e
as lógicas, dimensões e formas de agir do ativismo no setor social (caritativa/assistencial,
cidadã/promocional e libertadora/transformadora).
1.3. Metodologia para a Identificação e Classificação das Organizações do Terceiro
Setor
Antes de se apresentar conceitos de autores que por sua formação enfatizam o aspecto
jurídico, oportuno se torna indicar dois estudos e pesquisas nacionais, que objetivaram
dimensionar – mensurar e classificar – o terceiro setor no Brasil, e cujas metodologias são
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baseadas em critérios e classificações internacionais, e isto porque eles visam possibilitar a
comparação dos dados em perspectiva nacional e internacional. Especificam-se, agora, os
estudos e pesquisas abordados:
a) The Johns Hopkins comparative nonprofit sector project, o Projeto comparativo
internacional sobre o setor sem fins lucrativos, coordenado pelo Institute for Policy
Studies da Universidade Johns Hopkins e que no Brasil teve a coordenação do
Instituto de Estudos da Religião (ISER);
b) As fundações privadas e as associações sem fins lucrativos no Brasil: 2002, que
teve uma nova versão referente ao ano de 2005, identificada pela sigla FASFIL, estudo
a partir dos dados contidos no Cadastro Central de Empresas (CEMPRE) e que tem
como objetivo apresentar um retrato das instituições privadas sem fins lucrativos no
Brasil, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em
parceria com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), a Associação
Brasileira de Organizações Não-Governamentais (ABONG) e o Grupo de Institutos,
Fundações e Empresas (GIFE).
Os dois estudos, em linhas gerais, observaram duas etapas. Uma etapa objetivou
definir e identificar quais seriam as organizações ou entidades sem fins lucrativos que
integram o terceiro setor. Para tanto, ambos os estudos utilizaram a metodologia que foi
consolidada no “Manual sobre as Instituições Sem Fins Lucrativos no Sistema de Contas
Nacionais” (Handbook on Nonprofit Institutions in System of National Accounts), elaborado
pela Divisão de Estatísticas da Organização das Nações Unidas (ONU), em conjunto com a
Universidade Johns Hopkins, em 2002, e recomendado pela ONU a seus membros, e que tem
como base o preenchimento simultâneo de cinco critérios que serão abaixo explicitados.
Observe-se, que estes critérios, embora consolidados no referido Manual em 2002, já eram
utilizados no primeiro projeto acima noticiado – ele levou em conta dados de 1995 e envolveu
22 (vinte e dois) países, inclusive o Brasil -, cuja instituição educacional americana
coordenadora participou da elaboração do Manual.
A outra etapa dos estudos envolveu a classificação das organizações ou entidades
enquadradas como “sem fins lucrativos”.
34
Assim, se uma etapa define o que as organizações sem fins lucrativos têm em comum,
a outra especifica de que forma, dentro do universo das entidades “sem fins lucrativos”, elas
se diferenciam umas das outras, levando em conta suas finalidades ou atividades principais.
1.4. Identificação ou Definição das Organizações do Terceiro Setor: Critérios para a
Inclusão ou Exclusão
Segundo os estudos, que, frise-se, utilizaram a metodologia acima especificada, para
ser caracterizada como sem fins lucrativos e integrar, assim, o terceiro setor, a organização ou
entidade deve preencher, simultaneamente, cinco critérios ou requisitos, assim explicitados
pelo FASFIL:
(i) privadas, não integrantes, portanto, do aparelho de Estado; (ii) sem fins lucrativos, isto é, organizações que não distribuem eventuais excedentes entre os proprietários ou diretores e que não possuem como razão primeira de existência a geração de lucros – podem até gerá-los desde que aplicados nas atividades fins; (iii) institucionalizadas, isto é, legalmente constituídas; (iv) auto-administradas ou capazes de gerenciar suas próprias atividades; e (v) voluntárias, na medida em que podem ser constituídas livremente por qualquer grupo de pessoas, isto é, a atividade de associação ou de fundação da entidade é livremente decidida pelos sócios ou fundadores (BRASIL, 2004, p. 15).
Embora ambos os estudos tenham utilizado a mesma metodologia para a etapa de
identificação – preenchimento simultâneo dos cinco critérios para a definição e identificação
– eles discordam em alguns aspectos, e isto devido à divergência na interpretação e aplicação
dos cinco critérios. Um bom exemplo é o fato dos sindicatos terem sido excluídos no FASFIL
e incluídos no Projeto Comparativo Internacional.
Aprofundando a questão, passa-se a detalhar alguns aspectos sobre a definição ou
identificação das “sem fins lucrativos” trazidas pelo FASFIL.
Optou-se por esse estudo, em suas duas versões, na medida em que ele foi realizado a
partir do Cadastro Central de Empresas (CEMPRE) do IBGE, para os anos de 2002 e 2005,
que cobre o universo das organizações inscritas no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas
(CNPJ), do Ministério da Fazenda, que no ano de referência declararam, ao Ministério do
Trabalho e Emprego, exercer atividade econômica no Território Nacional. Observe-se,
também, que o Cadastro abrange tanto entidades empresarias como órgãos da administração
pública e instituições privadas sem fins lucrativos, que foram o foco do estudo. Assim sendo,
por partir do CEMPRE, acredita-se que esse estudo é mais adequado à realidade brasileira,
35
especialmente no tocante à natureza jurídica das entidades sem fins lucrativos, nos termos em
que são definidas em nosso sistema legal. Ademais, os dados dessa pesquisa é que serão
indicados e utilizados nesta dissertação.
Conforme já mencionado, objetivando definir e identificar quais seriam efetivamente
as entidades “sem fins lucrativos” que integram o universo do terceiro setor, a FASFIL
utilizou um critério de exclusão de entidades que estavam enquadradas como “Entidades sem
Fins Lucrativos” no CEMPRE (código de natureza jurídica iniciada por 3). Em linhas gerais,
o critério utilizado consiste na exclusão das entidades que não preenchem simultaneamente as
cinco características acima explicitadas, quais sejam: privadas, sem fins lucrativos,
institucionalizadas, auto-administradas e voluntárias.
As cooperativas foram previamente excluídas, conforme detalhado em subitem
próprio.
Segundo esse critério, foram excluídas do universo das organizações “sem fins
lucrativos” que integram o terceiro setor, em síntese, as seguintes entidades pelos motivos
abaixo sintetizados:
•••• Entidades de Mediação e Arbitragem, que são essencialmente de cunho mercantil;
•••• Caixas Escolares e Similares, cemitérios, cartórios, conselhos, consórcios, e fundos
municipais, que são regulados pelo governo;
•••• Partidos políticos, sindicatos, entidades do sistema “S”, que são gerenciados e
financiados a partir de um arcabouço jurídico específico, não sendo, portanto,
facultada livremente a qualquer organização o desempenho dessas atividades (Cf.
Ibid., p. 49).
Note-se, que as entidades excluídas acima citadas que mais causam dúvidas –
entidades do sistema “S”, partidos políticos e entidades sindicais - não deixam de ser
entidades sem fins lucrativos. Deixam, sim, de integrar o terceiro setor, e isto levando em
conta a interpretação dada ao critério adotado, que é baseado no “Manual sobre as Instituições
Sem Fins Lucrativos no Sistema de Contas Nacionais” recomendado pela ONU e no conceito
de Terceiro Setor elaborado pelo pesquisador da Johns Hopkins University, Lester Salamon.
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Finaliza-se, com a seguinte conclusão da FASFIL10, que delimitou quais seriam as
espécies jurídicas existentes em nosso país que se enquadrariam no universo do terceiro setor,
levando em conta os cinco critérios de identificação. Elucida-se, que no tocante a natureza
jurídica, inclusive pela inexistência na época (2002) desta diferenciação, as instituições com
finalidade religiosa constituíam-se juridicamente sob a natureza de associações, o que
ocasionou, presumivelmente, a omissão dessa espécie jurídica de instituição no nome da
pesquisa, qual seja, “As Fundações Privadas e as Associações Sem Fins Lucrativos no Brasil:
2002”. Acrescenta-se, também, que embora a partir de 2003 tenha sido incluído na “Tabela de
Natureza Jurídica” do CEMPRE o item “organização religiosa”, tal fato ainda não ocasionou
novo enquadramento dessas organizações no CNPJ, mantendo-se, assim, na versão da
FASFIL de 2005, publicada em 2008, a mesma lógica e o mesmo nome.
No caso brasileiro, esses critérios correspondem a três figuras jurídicas dentro do novo Código Civil: associações, fundações e organizações religiosas. As associações, de acordo com o art. 53 do novo Código Civil regido pela Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, constituem-se pela união de pessoas que se organizam para fins não-econômicos. As fundações são criadas por um instituidor, mediante escritura pública ou testamento, a partir de uma dotação especial de bens livres, especificando o fim a que se destina, e declarando, se quiser, a maneira de administrá-la. E, também, as organizações religiosas que foram recentemente consideradas como uma terceira categoria. Com efeito, a Lei 10.825, de 22 de dezembro de 2003, estabeleceu como pessoa jurídica de direito privado as organizações religiosas, que anteriormente se enquadravam na figura de associação... (Ibid., p. 15).
1.5. Particularidades das Cooperativas
As cooperativas foram previamente excluídas, o que ocasionou, inclusive, a sua não
identificação na listagem das entidades excluídas do FASFIL. A exclusão prévia foi motivada
pelo fato delas terem um objetivo de caráter econômico, visando à partilha dos resultados, e,
assim, estarem classificadas no CEMPRE como “Entidades Empresariais” (código de
natureza jurídica iniciada por 2).
Detalhando a questão, transcrevem-se as explicações do FASFIL:
Cabe ressaltar que as sociedades cooperativas não foram incluídas na classificação das Fundações Privadas e Associações sem Fins Lucrativos, ou no universo das entidades sem fins lucrativos. Embora sejam estruturas híbridas, as cooperativas se organizam
10 Para esclarecimentos sobre o que foi considerado FASFIL, remetemos o leitor ao subitem desta dissertação denominado “Os números do terceiro setor no Brasil: o tamanho e a presença da religião” e suas respectivas notas.
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com um objetivo de caráter econômico, visando à partilha dos resultados dessa atividade entre seus membros cooperados... (Ibid., p. 14, nota de rodapé 4).
Observe-se, ainda, que embora as cooperativas tenham fins lucrativos, existe uma
certa tendência de incluí-las no terceiro setor, e isto em grande parte motivado pela definição
de Terceiro Setor ofertada pela corrente européia, que se contrapõe à definição proposta por
Lester Salamon, da linha de pensamento americana e cujos elementos foram absorvidos pelo
“Manual sobre as Instituições Sem Fins Lucrativos no Sistema de Contas Nacionais”,
utilizado como metodologia de identificação das organizações pelas pesquisas aqui noticiadas.
O professor Luiz Carlos Merege (2001), caracteriza a corrente européia e a diferencia
da corrente americana, da seguinte forma:
A corrente européia, identifica o Terceiro Setor com a economia social, que engloba os setores de cooperativismo (“onde se identifica a figura do trabalhador com aquela do empresário”), do mutualismo (“onde se identifica o uso de serviços com a adesão à organização”) e do associativismo (“onde predomina a forma livre de associação dos cidadãos”). Segundo Jacques Defourny (1999) a economia social compreende todas as organizações que por questões éticas seguem os seguintes princípios: “(1) de colocar a prestação de serviços aos seus membros ou à comunidade acima da simples procura por lucro; (2) de autonomia administrativa; (3) de um processo democrático na tomada de decisões e (4) a primazia das pessoas e do trabalho sobre o capital na distribuição dos resultados de atividades.(...) Uma primeira diferença entre os dois enfoques é que a definição da Johns Hopkins University por excluir a distribuição de lucros entre seus diretores, acionistas ou associados, não considera o sub-sistema das cooperativas e do mutualismo, centrando seu foco no associativismo. No caso do associativismo o excedente econômico não pode ser apropriado por dirigentes ou associados, devendo ser aplicado na atividade meio ou fim da organização... (MEREGE, 2001)11.
1.6. Particularidades das Organizações Religiosas12
As organizações religiosas foram incluídas no terceiro setor tanto pelo FASFIL quanto
pelo “Projeto comparativo internacional”, embora, frise-se, tenham finalidade específica e
tratamento e identificação individualizados pela Constituição Federal e pelo Código Civil. Por
outras palavras, embora as organizações religiosas preencham simultaneamente os cinco
requisitos, seu enquadramento ou não no terceiro setor é objeto de discussão, e isto em virtude
da especificidade de sua natureza, de sua regulamentação e de sua finalidade. Esclarece-se,
11 Os grifos são do autor. 12 Para outros esclarecimentos sobre como a FASFIL identifica e classifica as instituições religiosas, remetemos o leitor ao subitem desta dissertação denominado “Os números do terceiro setor no Brasil: o tamanho e a presença da religião” e suas respectivas notas.
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ainda, conforme detalhado abaixo, que o próprio Banco Mundial entende que não se incluem
entre as ONGs as igrejas, os sindicatos, os partidos políticos e as cooperativas.
Ambas as pesquisas, quando da classificação das organizações, deixaram claro que no
grupo religião foram agrupadas apenas as organizações que têm como finalidade cultivar
crenças religiosas e administrar serviços religiosos ou rituais, tais como igrejas, sinagogas,
mosteiros, ordens religiosas, templos, paróquias, pastorais, centros espíritas etc. Desta forma,
não foram incluídas no grupo religião as instituições de origem religiosa que desenvolvem
outras atividades e que têm personalidade jurídica própria, como, por exemplo, escolas,
hospitais, creches etc. Essas organizações foram classificadas levando em conta as atividades
que exercem e, assim, integraram os respectivos grupos de atividades afins (educação, saúde,
assistência social etc).
Sobre o assunto acima tratado, oferta-se parecer que consta como anexo da Carta
Circular nº 01/2004 da Associação Nacional de Mantenedoras de Escolas Católicas do Brasil
(ANAMEC), de autoria de seu consultor jurídico Eduardo de Rezende Bastos Pereira:
O Código Civil, na parte que trata das pessoas jurídicas de direito privado, não interferiu no funcionamento das “organizações religiosas” (Paróquias, Dioceses, Arquidioceses, Institutos de Vida Consagrada etc). O Professor Roberto Dornas, presidente da CONFENEN – Confederação Nacional do Estabelecimentos Particulares de Ensino, comenta em boletim daquela entidade que: “... Parece-nos surgir um problema quanto ao entendimento do que seja organização religiosa. A nosso ver, não se confunde com associação e sociedade. Entendemos que organização religiosa é estritamente igreja ou entidade destinada exclusivamente à profecia vocacional, a tratar e cuidar apenas de religião, crença e fé. As associações mantidas por entidades religiosas ou formadas por religiosos com outros objetivos – como escolas, hospitais, instituições de assistência social – não são organizações religiosas para os fins previstos na lei 10.825/2003. Em conseqüência, têm que adaptar seus estatutos ao novo Código Civil”. É este também o meu entendimento (ANAMEC, 2004).
Concluindo, destacamos e elucidamos os seguintes pontos que vêm gerando dúvidas e
confusões no tocante as organizações religiosas:
•••• Até o advento da lei 10.825/2003, que alterou a redação do artigo 44 do novo
Código Civil Brasileira (lei nº 10.406/2002) para incluir a espécie jurídica denominada
“organização religiosa” no rol de pessoas jurídicas de direito privados sem fins
lucrativos ou econômicos, as instituições que se dedicavam à finalidades religiosas
eram constituídas sob a natureza jurídica de “associações” – e/ou, antes da vigência do
novo Código Civil, de “sociedades sem fins lucrativos”, o que agora é vedado;
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•••• Muitas instituições religiosas - com uma única personalidade jurídica - não têm
exclusivamente finalidades confessionais, ou seja, elas possuem finalidades mistas
(confessional e assistencial). Essas instituições, como regra, utilizam a natureza
jurídica de “associações”;
•••• Ainda hoje, mesmo após a inclusão no novo Código Civil da espécie “organização
religiosa”, muitas das instituições religiosas mantém sua constituição original como
“associações”. Outrossim, embora a partir de 2003 tenha sido incluído na “Tabela de
Natureza Jurídica” do CEMPRE o item “organização religiosa”, tal fato ainda não
ocasionou novo enquadramento dessas organizações no CNPJ, que continua a tratar
tanto as “associações” quanto as “organizações religiosas” como “outras formas de
associação” (essas informações constam no campo “código e descrição da natureza
jurídica” do CNPJ);
•••• Algumas instituições religiosas – com uma única personalidade jurídica; sem
unidades filiais assistenciais - que possuem finalidades mistas (confessional e
assistencial), acabam sendo identificadas apenas como instituições confessionais, pois
constam em seus CNPJs como atividade principal “atividades de organizações
religiosas” (essas informações estão indicadas no campo “código e descrição da
atividade econômica principal” do CNPJ). Observe-se, outrossim, que pelo fato da
FASFIL incluir unidades locais - sede e filiais de uma mesma entidade – presume-se
que cada unidade é por esse estudo caracterizada como tendo uma personalidade
jurídica; disto decorre, também presumivelmente, que as filiais foram classificadas
levando em conta sua efetiva atividade (educação, saúde, assistência social etc.), desde
que indícios dessas atividades específicas da unidade filial – nome fantasia (título do
estabelecimento) e o código CNAE (atividade econômica principal) – constem
expressamente nas informações da filial.
1.7. Classificação das Organizações do Terceiro Setor
No tocante à classificação, o “Projeto comparativo internacional” utilizou o ICNPO
(International Classification of Nonprofit Organization), a “Classificação Internacional de
Organizações Sem Fins Lucrativos”, que distingue as organizações segundo áreas de
atividades em 12 itens. Para a coleta de dados no Brasil, esse critério classificatório sofreu
algumas adaptações, com a exclusão de dois itens - “Filantrópicas: intermediárias no
financiamento de projetos ou promoção de voluntariado” e “Internacionais” – e com a junção
40
de dois itens – “Desenvolvimento” e “Defesa de direitos civis e advocacy” – em um único.
Assim, restaram nove áreas assim distribuídas: 1) Cultura e Recreação; 2) Educação e
Pesquisa; 3) Saúde; 4) Assistência Social; 5) Ambientalismo; 6) Desenvolvimento e Defesa
de Direitos; 7) Religião; 8) Associações Profissionais e Sindicatos; 9) Outras.
Já a FASFIL adotou como parâmetro a “Classificação dos Objetivos das Instituições
sem Fins Lucrativos ao Serviço das Famílias” (Classification of the Purpose of Non-Profit
Institutions Serving Households – COPNI), de classificação definida e reconhecida como tal
pela Divisão de Estatísticas da ONU que, adequada às necessidades do estudo, representou
uma “COPNI ampliada”. Essa classificação sofreu um corte – exclusão das organizações que
não preenchem os cinco critérios -, restando, segundo esse parâmetro, a seguinte
classificação: 1) Habitação, 2) Saúde; 3) Cultura e recreação; 4) Educação e pesquisa; 5)
Assistência social; 6) Religião13; 7) Associações patronais e profissionais; 8) Meio ambiente e
proteção animal; 9) Desenvolvimento e defesa de direitos;10) Outras instituições privadas
sem fins lucrativos não especificadas anteriormente.
1.8. Os Números do Terceiro Setor no Brasil: o Tamanho e a Presença da Religião.
Para mostrar o tamanho – o terceiro setor como realidade – e a real presença e
influência da religião no terceiro setor, explicitaremos dados coletados pela pesquisa já
amplamente noticiada e utilizada nesta dissertação, designada As fundações privadas e as
associações sem fins lucrativos no Brasil: 2002, que teve uma nova versão referente ao ano
de 2005, identificada pela sigla FASFIL. Também serão descritos dados do estudo
denominado Doações e trabalho voluntário no Brasil – uma pesquisa, realizado por Leilah
Landim e Maria Celi Scalon, publicado em 2000, e cujos dados são resultados do survey
nacional encomendado pelo Instituto de Estudos da Religião (ISER) ao Instituto Brasileiro de
Opinião Pública e Estatística (IBOPE), realizado em maio de 1998 e que objetivou pesquisar
as doações e o trabalho voluntário em nosso país.
O estudo designado FASFIL - a primeira versão publicada no final de 2004 e a
segunda em setembro de 2008 -, que entendo ser mais adequado à realidade brasileira e cujos
dados são mais recentes, revelou que em 2002 e em 2005 havia, respectivamente, 275.895 e
13 Para esclarecimentos sobre a composição do grupo religião, remetemos o leitor ao subitem desta dissertação denominado “Os números do terceiro setor no Brasil: o tamanho e a presença da religião” e suas respectivas notas.
41
338.16214 fundações privadas e associações sem fins lucrativos15 em nosso país, empregando
1,5 e 1,7 milhão de assalariados.
O noticiado estudo apontou a enorme presença da religião no terceiro setor, ao
constatar que em 2002 e 2005, respectivamente, 70.446 (25,53%) e 83.775 (24,8%) das
entidades dedicavam-se diretamente a atividades confessionais (grupo religião). Esclarecendo
que no grupo denominado religião16 apenas foram incluídas as organizações que têm como
finalidade cultivar crenças religiosas e administrar serviços religiosos ou rituais (atividades
confessionais), como também que as instituições de origem religiosa que desenvolvem outras
atividades e que têm personalidade jurídica própria17 - como, por exemplo, escolas, hospitais,
14 Segundo informações prestadas ao estudante-pesquisador pelo IBGE, neste número de 338.162 entidades sem fins lucrativos estão todas as unidades locais, ou seja, estão incluídas sedes e filiais (Cf. IBGE, 2008). Disto, depreende-se que existem 338.162 unidades (sede e filiais) de entidades sem fins identificadas como FASFIL (Fundações Privadas e Associações Sem Fins Lucrativos). 15 Ressaltando que nos critérios para inclusão na FASFIL são enquadradas tão somente três figuras jurídicas brasileiras, associações, fundações e organizações religiosas, o estudo indica que “são consideradas como FASFIL, as entidades sem fins lucrativos enquadradas nas seguintes categorias da Tabela de Natureza Jurídica 2002 [2003]: 304-2: Organização Social; 305-0: Organização da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIP; 306-9: Outras Fundações Mantidas com Recursos Privados; 320-4: Filial, no Brasil, de Fundação ou Associação Estrangeira; 322-0: Organização Religiosa; 323-9: Comunidade Indígena; e 399-9: Outras Formas de Associação” (BRASIL, 2008, p. 16) . Destaca-se, mais uma vez, que apenas as associações, fundações e organizações religiosas são tecnicamente classificadas como “natureza jurídica”; as demais são qualificações ou especificações dessas figuras jurídicas. 16 Por sua clareza, transcreve-se a íntegra da nota de rodapé nº 7 do estudo, em sua versão publicada em 2008: “Encontram agrupadas nessa categoria as entidades que administram diretamente serviços religiosos ou rituais, incluindo: ordens religiosas, templos, paróquias, pastorais, centros espíritas, dentre outras. As demais instituições de origem religiosa que desenvolvem outras atividades e que têm personalidade jurídica própria (hospitais, colégios, creches, por ex.) estão classificadas de acordo com sua atividade fim. Por outro lado, cabe assinalar que essas entidades, para além de desenvolverem atividades confessionais, ocupam novos espaços de debate e deliberação de políticas públicas, como os conselhos, conferências e grupos de trabalhos governamentais” (BRASIL, 2008, p. 28, nota 7). 17 Pelo fato da FASFIL incluir unidades locais - sede e filiais de uma mesma entidade – presume-se que cada unidade é por esse estudo caracterizada como tendo uma personalidade jurídica; disto decorre, presumivelmente, que as filiais foram classificadas levando em conta sua efetiva atividade (educação, saúde, assistência social etc), desde que indícios destas atividades específicas da unidade filial – nome fantasia (título do estabelecimento) e o código CNAE (atividade econômica principal) – constem expressamente nas informações da filial. Esta presunção do estudante pesquisador foi levada ao IBGE na forma de um questionamento, tendo-se obtido a seguinte resposta: “...O seu questionamento é relevante e importante para o entendimento do estudo. Realmente, em um primeiro estágio, as entidades selecionadas como pertencentes da FASFIL foram selecionadas pela sua personalidade jurídica. No entanto, esta personalidade jurídica é um atributo da entidade como um todo e não apenas de unidade local. Em um segundo estágio, foram utilizadas as informações relevantes de Razão Social e Nome Fantasia da entidade e da unidade local, respectivamente, combinadas com o código CNAE da unidade local, para classificar as unidades locais das entidades. No entanto, a classificação COPNI tem um outro tipo de abordagem, cujo objetivo é atribuir a finalidade de uma instituição como um todo ou de suas unidades. Neste sentido, as unidades locais receberam códigos COPNI distintos, quando uma mesma entidade possuía mais de uma finalidade. Quando uma instituição possuía uma única finalidade, todas as suas unidades locais receberam o mesmo código COPNI. Um exemplo claro: Uma entidade na área de educação e religião pode possuir unidades locais classificadas em códigos COPNI distintos, na educação e na religião. Uma entidade de fomento a pesquisa científica pode possuir unidades locais que produzam ou vendam produtos, com a finalidade de subsidiar as suas verbas e pesquisas. Nesse caso, todas as unidades locais estarão classificadas no código COPNI destinado a atividade de pesquisa científica, pois a finalidade de suas unidades locais é fomentar a pesquisa científica, independente da atividade de cada uma delas individualmente. Este entendimento é resultado das amplas discussões entre as entidades envolvidas no estudo (GIFE/ABONG/IPEA) e o IBGE...” (IBGE, 2009)
42
creches etc - foram classificadas e incluídas em grupos de atividades afins (educação, saúde
ou assistência social etc), o estudo, em sua versão publicada em 2004, expressamente
reconhece que “a influência da religião no âmbito do FASFIL é bem mais ampla apesar de
não ser possível dimensioná-la com exatidão” (BRASIL, 2004, p. 29). Em sua versão
publicada em 2008, o estudo é ainda mais incisivo, ao “assinalar que essas entidades, para
além de desenvolverem atividades confessionais, ocupam novos espaços de debate e
deliberação de políticas públicas, como os conselhos, conferências e grupos de trabalhos
governamentais” (BRASIL, 2008, p. 28, nota 7), e ao explicitar que
Nas atividades desenvolvidas pelas instituições analisadas se observa, também, uma forte presença das ações de cunho religioso. Isoladamente, as entidades que desenvolvem diretamente atividades confessionais representam um quarto do total das FASFIL. Vale destacar que a influência da religião não se restringe a esse grupo de instituições, posto que milhares de entidades assistencial, educacional e de saúde, para citar apenas alguns exemplos, são de origem religiosa, embora não estejam classificadas com tal, o que impede de dimensionar a abrangência efetiva das ações de influência religiosa (Ibid., p. 28).
Vejamos, agora, os números da FASFIL de modo mais detalhado no quadro abaixo:
Quadro 1 – Comparativo das FASFIL Envolvendo o Número, Classificação e Percentuais de Entidades em 2002 e 2005 no Brasil
Classificação das Entidades Sem Fins Lucrativos
Fundações Privadas e Associações Sem Fins Lucrativos (número e percentual em relação ao total)
2005
2002
Total 338.162 (100,00%)
275.895 (100,00%)
Habitação 456 (0,1%)
322 (0,12%)
Saúde Hospitais Outros serviços de saúde
4.464 (1,3%) 3.798 (1,38%)
Cultura e Recreação: Cultura e arte Esportes e recreação
46.999 (13,9%) 37.539 (13,61%)
Educação e Pesquisa Educação infantil Ensino fundamental Ensino médico Educação superior Estudos e pesquisas Educação profissional Outras formas de educação/ensino.
19.940 (5,9%) 17.493 (6,34%)
Assistência Social 39.395 (11,6%)
32.249 (11,69%)
43
Religião18 83.775 (24,8%)
70.446 (25,53%)
Associações Patronais e Profissionais: Associações empresariais e patronais Associações profissionais Associações de produtores rurais
58.796 (17,4%) 44.581 (16,16%)
Meio Ambiente e Proteção Animal 2.562 (0,8%)
1.591 (0,58%)
Desenvolvimento e defesa de direitos: Associação de moradores Centros e associações comunitárias Desenvolvimento rural Emprego e treinamento Defesa de direitos de grupos e minorias Outras formas de desenvolvimento e defesa de direitos
60.259 (17,8%) 45.161 (16,37%)
Outras instituições privadas sem fins lucrativos não especificadas anteriormente
21.516 (6,4%) 22.715 (8,23%)
Fonte: Elaborado pelo autor a partir das FASFIL (Cf. BRASIL, 2004, p. 30, Gráfico: Tabela 9; Cf. BRASIL, 2008, p. 27, Gráfico: Tabela 7)
Já o estudo Doações e trabalho voluntário no Brasil – uma pesquisa, dentre outras
valiosas informações sobre as doações e o trabalho voluntário no Brasil, destaca a relevância
da religião, tanto como destino quanto motivação das doações e do trabalho voluntário. As
autoras da pesquisa realizada em 1998 e publicada em 2000, no artigo Quem dá e quem não
dá, eis a questão, sintetizam os seguintes dados e informações colhidos em uma amostra que
incluiu pessoas com mais de 18 anos e que vivem em cidades com mais de 10.000 habitantes,
em todo país.
No tocante às doações, 50% das pessoas fazem doações em dinheiro e bens para
instituições, totalizando cerca de 44.200.000 indivíduos, e se passarmos a doações para
pessoas, o percentual chega a 80%, cerca de 70 milhões de indivíduos. Estes dados
demonstram que 4 entre 5 indivíduos adultos doa algo para alguma entidade ou alguém, em
algum momento. O destino das doações para as entidades é o seguinte: 50% vão para
instituições religiosas (igrejas, paróquias, locais de culto – através das quais se fazem também
trabalhos sociais), 46% para instituições de assistência social (consideradas como tal
instituições dedicadas a práticas assistenciais diversas, como creches, abrigos, orfanatos, 18 O anexo 4 da FASFIL - “Estrutura Completa e Notas Explicativas da “COPNI Ampliada” – explicita a composição do grupo religião da seguinte forma: “Este subgrupo compreende: * As atividades de igrejas, paróquias, sinagogas, templo, tendas, mesquitas, santuários, mosteiros, conventos, lojas maçônicas, capítulos Rosa Cruz, centros espíritas, evangélico; * As dioceses, bispados, seminários ou organizações similares que promovem crenças religiosas e administram serviços religiosos e rituais. Este subgrupo compreende também: * As associações e auxiliares de congregações religiosas e organizações que promovem e dão apoio a crenças, serviços e rituais religiosos.(BRASIL, 2008, p. 155, anexo 4)
44
atendimento da população que vive na rua) e apenas 2,8% destinam-se a outras instituições
(de saúde, educação, defesa de direitos, ação comunitária) (Cf. LANDIM e SCALON, 2000
B, p. 4-5). Ter inspiração religiosa é a motivação principal das doações:
Mas conta, e muito, a prática religiosa efetiva: quanto maior a freqüência a cultos religiosos, maior a propensão a se fazerem doações, tanto em bens como em dinheiro. Assim, 53,3% dos que freqüentam cultos religiosos ao menos uma vez por semana fazem doações, proporção que vai decrescendo até os que participam de cultos algumas vezes por ano: 39% dentre esses doa algo, para instituições (Ibid., p. 5-6).
Quanto ao trabalho voluntário, “são as instituições religiosas e de assistência social as
que monopolizam a quase totalidade de voluntários: 57% e 17%, respectivamente (...) O
restante é distribuído em pequenas proporções entre as áreas de saúde, educação, defesa de
direitos e ação comunitária” (Ibid., p. 6). Aqui, também, a influência da motivação religiosa é
destacada:
... há um aumento contínuo na proporção de pessoas que exercem trabalhos voluntários, conforme cresce a sua freqüência a cultos religiosos. Se, dentre os que freqüentam cultos mais de uma vez por semana, 27,8% doa algum tempo de trabalho voluntário, entre os que afirmaram freqüentar somente algumas vezes por ano apenas 6,6% fazem trabalho voluntário. E apenas 1,4% trabalhou voluntariamente entre os que afirmaram não participar de cultos religiosos (Ibid., p. 7).
Já a influência da prática religiosa no trabalho voluntário a instituições é ainda mais
expressivo: 37,7% dos que freqüentam cultos mais de uma vez por semana já trabalhou
voluntariamente para instituições e assim respectivamente: 26,8% dos que freqüentam uma
vez por semana; 16,4% duas ou três vezes por mês; 9,3% uma vez por mês ou algumas vezes
por ano; apenas 0,5% dos que não participam / freqüentam cultos religiosos (Cf. Ibid.,
Gráfico: Trabalho Voluntário para Instituições por Freqüência a Culto Religioso).
1.9. Visão sob o Prisma Jurídico: Aspectos Gerais
Como preparação para uma oportuna abordagem jurídica do tema, ofertam-se
conceitos elaborados ou referidos por autores com formação e atuação na área jurídica, ou
ainda que dão ênfase a esse aspecto.
Maria Nazaré Lins Barbosa (2001) traz a definição legal do Banco Mundial:
45
Na terminologia do Banco Mundial, ONG é toda associação, sociedade, fundação, charitable trust, entidade ou outra pessoa jurídica que seja considerada parte do setor não governamental no sistema legal de que se trate e que não distribua lucros. Não se incluem entre as ONGs os sindicatos, partidos políticos, cooperativas ou igrejas. Nesse sentido lato, quaisquer entidades do terceiro setor são genericamente chamadas de ONGs (BARBOSA, 2001).
Outra valiosa contribuição da autora, inserta no mesmo texto, diz respeito à definição,
levando em conta a finalidade, dos tipos jurídicos fundamentais sob a ótica do Banco
Mundial, quais sejam: organizações de Benefício Mútuo e de Interesse Público. A distinção
entre os dois tipos fundamentais é extremamente relevante, uma vez que está relacionada com
a própria identidade do terceiro setor – quem é quem neste universo – e repercute na própria
relação financeira entre as organizações e o poder público, na medida em que dá parâmetros
para uma gradação clara de benefícios e incentivos fiscais e acesso aos recursos público, isto
é, maiores benefícios, incentivos e acesso aos recursos públicos devem ser concedidos às
entidades de interesse público.
É importante distinguir dois tipos de ONGs porque desta distinção dependem os direitos e as obrigações que a lei lhes assinala. Trata-se, de um lado, das ONGs que estão organizadas e que funcionam primordialmente para o benefício mútuo ou interno de um determinado grupo de indivíduos (que pertencem geralmente a uma organização manejada e controlada por seus próprios membros e por isso chamadas de memberships organization – “ MBOs”). De outro lado, estão as ONGs que têm por missão principal o benefício de toda a sociedade ou de segmentos do conjunto da sociedade (que correspondem, geralmente, às organizações de benefício público – “PBOs”). Essa distinção vem sendo proposta por estudiosos e consta do Manual de Práticas Construtivas em Matéria de Regime Legal aplicável às ONGs elaborado pelo Banco Mundial, e é importante para melhor delimitar a relação financeira entre as ONGs e o Estado. É necessário, principalmente, estabelecer uma gradação clara de incentivos entre entidades sem fins lucrativos de fim público – que complementam a ação do Estado – de outras que beneficiam principalmente seus próprios membros ou instituidores. Trata-se de aspecto relacionado com a própria identidade do terceiro setor (quem é quem neste universo), e que deveria ser relevante para efeitos fiscais. Deste modo, entidades que beneficiam principalmente seus próprios associados – tais como clubes recreativos ou literários – não deveriam poder usufruir dos mesmos benefícios fiscais previstos para entidades de perfil assistencial de interesse público geral. Seguindo essa tendência, no Brasil, a Lei 9.790/99 estabeleceu que apenas as entidades de interesse público teriam acesso a termos de parceria celebrados com o poder público (Ibid., 2001).
Continua Barbosa (2003), agora em conjunto com Carolina Felippe de Oliveira, dando
ênfase à natureza jurídica das organizações que compõem o terceiro setor e, assim,
demonstrando que são poucas as naturezas jurídicas – associações e fundações, não foi levado
46
em conta a nova espécie jurídica “organização religiosa” - para as muitas denominações
utilizadas – “institutos”, “ONGs”, “OSCs”, “OSs”, “OSCIPs”. Observe-se, também, que as
palavras “instituição” e “entidade”, utilizadas por nossa Constituição Federal para identificar
determinadas organizações sem fins lucrativos imunes de tributos, à luz de considerações
estritamente formais, são palavras destituídas de conceito jurídico-fiscal.
No entanto, com freqüência, pessoas reúnem esforços ou recursos não com a finalidade de obter resultados lucrativos ou financeiros para seus sócios, mas para atingir outros fins: lazer, cultura, recreação, estudo ou difusão de idéias, benemerência e tantos outros. Entidades dessa natureza podem ganhar reconhecimento jurídico ao registrarem seus estatutos (e não um contrato) em um cartório de registro civil de pessoas jurídicas. Essas entidades sem fins lucrativos constituem-se sob a forma de associações ou fundações. Tanto as fundações quanto as associações regem-se, assim, por estatutos registrados em cartório. Porém, as fundações caracterizam-se como um patrimônio afetado a um fim, estando submetidas à fiscalização do Ministério Público. As associações caracterizam-se por ser uma reunião de pessoas. Não precisam contar com um patrimônio prévio. E o que são institutos, organizações não-governamentais (ONGs), organizações da sociedade civil (OSCs), organizações sociais (OSs), organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIPs) etc.? Todas essas denominações referem-se a entidades de natureza privada (não-públicas) sem fins lucrativos, que juridicamente ou são associações ou fundações. Essas associações ou fundações, conforme o caso, podem pleitear a obtenção de determinados títulos ou qualificações (título de utilidade pública, qualificação como organização da sociedade civil de interesse público etc.). No entanto, sob o aspecto jurídico, a característica básica da entidade é ser associação ou fundação (BARBOSA e OLIVEIRA, 2003, p. 13-14).
Já José Eduardo Sabo Paes (2004), ressaltando que ao se procurar conceituar o terceiro
setor, faz-se normalmente referência à natureza e campos de atuação das organizações que o
integram, propõe um conceito que enfatiza a composição do terceiro setor. Ao incluir as
sociedades como integrantes das entidades de interesse social sem fins lucrativos que
compõem o terceiro setor, o autor o faz levando em conta as disposições do Código Civil
anterior – revogado pelo novo Código Civil (Lei 10.406/02) – que incluía entre as pessoas
jurídicas sem fins lucrativos, além das associações e fundações, também as sociedades civis.
Observe-se, que o novo Código Civil exclui da finalidade das sociedades as atividades sem
fins econômicos ou lucrativos, uma vez que determina que as sociedades prestam-se ao
desenvolvimento das atividades econômicas e à partilha dos resultados, ou seja, são pessoas
jurídicas com fins lucrativos.
Portanto, o Terceiro Setor é aquele que não é público e nem privado, no sentido convencional desses termos; porém, guarda uma relação simbiótica com ambos, na medida em que ele deriva sua própria identidade da conjugação entre a metodologia
47
deste com as finalidades daquele. Ou seja, o Terceiro Setor é composto por organizações de natureza “privada” (sem objetivo do lucro) dedicadas à consecução de objetivos sociais ou públicos, embora não seja integrante do governo (Administração Estatal) (...) Em termos do direito brasileiro, configuram-se como organizações do Terceiro Setor, ou ONGs – Organizações Não-Governamentais, as entidades de interesse social sem fins lucrativos, como as associações, as sociedades e as fundações de direito privado, com autonomia e administração própria, cujo objetivo é o atendimento de alguma necessidade social ou a defesa de direitos difusos ou emergentes. Tais organizações e agrupamentos sociais cobrem um amplo espectro de atividades, campos de trabalho ou atuação, seja na defesa de direitos humanos, na proteção do meio ambiente, assistência à saúde, apoio a populações carentes, educação, cidadania, direitos da mulher, direitos indígenas, direitos do consumidor, direitos das crianças etc (PAES, 2004, p. 98/99).
Outro aspecto destacado por Paes (2004), que está em conformidade com o
entendimento do Banco Mundial, é a opção dos países anglo-saxões, cuja legislação é o
resultado de séculos de experiência social e jurídica, em distinguir em duas categorias as
organizações do ventilado setor, tendo como parâmetro as suas finalidades.
Nesse sentido, o autor aponta a primeira categoria formada por organizações de
interesse (ou caráter) público, que são aquelas que objetivam o benefício de toda a sociedade
ou de segmentos do conjunto da sociedade. Ela incluiria as organizações assistencialistas ou
de caridade no sentido tradicional – abro parênteses: percebe-se, aqui, a tendência de se
confundir assistência com assistencialismo e, como conseqüência, de se associar
equivocadamente caridade ao assistencialismo - , assim como as denominadas ONGS,
dedicadas à defesa de direitos sociais, difusos e emergentes, que buscam resolver as causas e
não apenas os sintomas dos males sociais (Cf. Ibid, p. 100).
Entendemos que também se pode incluir na categoria de interesse público as
organizações sem fins lucrativos instituídas pelas empresas (filantropia empresarial) que
tenham como finalidade o desenvolvimento de ações no campo social em benefício da
coletividade. Observe-se, ainda, conforme foi determinado pela Lei das OSCIPs (Lei
9.790/99), que o interesse público decorre tanto da execução direta de ações e projetos sociais
quanto da realização de doações ou prestação de serviços intermediários de apoio às
organização de interesse público.
A segunda categoria apontada pelo autor engloba as organizações de ajuda mútua ou
de auto-ajuda, que objetivam defender interesses coletivos, mas num círculo restrito,
específico, de pessoas, ou seja, o benefício mútuo ou interno de um determinado grupo.
Dentro dessa categoria, segundo o autor, incluem-se, exemplificativamente: associações de
48
classe, clubes sociais, associações de moradores de um determinado bairro, associações de
funcionário de uma determinada empresa etc. (Cf. Ibid., p. 100)
Alexandre Ciconello (2004), enfatizando que embora eles sejam fundamentais para o
entendimento da organização da sociedade civil brasileira, não foram abordados em seu texto
o universo dos sindicatos, partidos políticos e cooperativas, uma vez que eles têm trajetórias e
legislação específicas, traz contribuições valiosas para o delineamento, sob o prisma jurídico,
das organizações que integram o terceiro setor, e isto, inclusive, ao explicitar os seguintes
pontos:
•••• As entidades do terceiro setor não necessariamente objetivam finalidade pública;
•••• A idéia de finalidade pública não está vinculada ao formato jurídico de uma
associação ou fundação;
•••• É uma distorção relacionar o conceito de terceiro setor a entidades privadas sem
fins lucrativos com finalidade pública, uma vez que isto induz a uma interpretação
equivocada de que entidades que compõem o terceiro setor têm uma natural vocação
pública. (Cf. CICONELLO, 2004, p. 46-47 e 54-55)
Segundo o autor referido:
Atualmente, o novo Código Civil define e separa com clareza as categorias de pessoas jurídicas de direito privado: associações são constituídas pela união de pessoas para fins não-econômicos (artigo 53); fundação é constituída por uma dotação especial de bens, realizada por um instituidor que especificará o fim a que se destina e declarará, se quiser, a maneira de administrá-la; e sociedades são constituídas por pessoas que, reciprocamente, se obrigam a contribuir com bens ou serviços para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados (artigo 981). O que interessa destacar, após uma breve descrição da classificação das pessoas jurídicas de direito privado, é que o nosso direito positivo garante a liberdade associativa plena para fins lícitos e a liberdade de destinação do patrimônio para uma finalidade específica definida pelo instituidor. Contudo, as entidades sem fins lucrativos não necessariamente objetivam uma finalidade pública. Podem ser constituídas para realizar objetivos de natureza particular, de benefício exclusivo de seus associados, ou de uma coletividade muito restrita. As associações comerciais, as diversas associações de interesse mútuo, clubes recreativos, por exemplo, têm uma atuação voltada exclusivamente para o benefício de seus associados. Concluímos, pois, que a idéia de finalidade pública ou interesse público não está vinculada ao formato jurídico de uma associação ou fundação... (...) Outra distorção refere-se à associação do conceito de Terceiro Setor a entidades privadas sem fins lucrativos com finalidade pública, induzindo a uma interpretação equivocada de que as entidades que compõem esse setor têm uma natural vocação pública.
49
A idéia de um “setor social”, em contraposição ao Estado e ao mercado, gera um discurso homogeneizado, com uma forte tendência a eliminar os conflitos inerentes às dinâmicas de nossa sociedade civil... (...) Podemos concluir, pois, que o conceito de “Terceiro Setor” mais atrapalha do que contribui para a nossa tentativa de identificar o conceito legal de público entre as organizações sem fins lucrativos brasileiras. Do ponto de vista jurídico, é mais adequado falar do universo das entidades sem fins lucrativos, mais especificamente das associações e fundações, e verificar, por meio de benefícios públicos conferidos a essas entidades – imunidades de impostos, incentivos fiscais, facilidade de acesso a fundos públicos, títulos e qualificações -, como o Estado incentiva aquelas que desenvolvem atividades de interesse público. (Ibid., p. 46-47 e 54-55)
Aproveita-se o momento para trazer ao leitor o real significado das palavras “social”,
“público” e “interesse”, e isto porque talvez a distorção, de se relacionar o conceito de terceiro
setor a entidades privadas sem fins lucrativos com finalidade pública, deva-se ao fato de se
confundir – tratando-os como se fossem a mesma coisa – o interesse público com o interesse
social.
Constam no Dicionário Aurélio básico da língua portuguesa, as seguintes definições:
Social: (...) 1. Da sociedade ( ...), ou relativo a ela (...). 3. Que interessa à sociedade ... Público: (...) 1. Do, ou relativo, ou pertencente ou destinado ao povo, à coletividade. 2. Relativo ou pertencente ao governo de um país. 3. Que é do uso de todos; comum. 4. Aberto a quaisquer pessoas... Interesse: (...) 3. Vantagem, proveito; benefício. 4. Aquilo que convém, que importa, seja em que domínio for... (FERREIRA, 1994-1995, p. 606, 537 e 366)
Ora, pode-se concluir que seriam de interesse social, ou seja, seriam convenientes à
sociedade, tanto as entidades de interesse (ou caráter) público, que são aquelas que objetivam
o benefício de toda a sociedade ou de segmentos do conjunto da sociedade, quanto as
organizações de ajuda mútua ou de auto-ajuda, que objetivam defender interesses coletivos,
mas num círculo restrito, específico, de pessoas, ou seja, o benefício mútuo ou interno de um
determinado grupo.
Finalizando esse tópico, e na mesma linha do posicionamento de Ciconello, é o
posicionamento institucional da Associação Brasileira de Organização Não Governamentais
(ABONG) que consta no tópico “Ambiente legal atual” das Propostas da Abong para o
marco legal das ONGs. Ao que parece, a ABONG exclui do universo das ONGs as
organizações constituídas sob a natureza jurídica de “organizações religiosas”.
Do ponto de vista jurídico, o termo ONG não se aplica. Nossa legislação prevê apenas 3 formatos institucionais para a constituição de uma organização sem fins lucrativos
50
(associação, fundação, organização religiosa). Portanto, toda ONG é uma associação civil ou uma fundação privada. Contudo, entre as associações e fundações existentes no Brasil, temos objetivos e perspectivas de atuação bastante distintos, às vezes até opostos. Não existe uma identidade comum entre: organizações comerciais, clubes de futebol, hospitais e universidades privadas, fundações e institutos empresariais, clubes recreativos e esportivos, organizações não-governamentais, organizações filantrópicas, creches, asilos, abrigos, lojas maçônicas, centros de juventude, associações de interesse mútuo. A idéia de finalidade pública ou interesse público não está vinculada com o formato jurídico de uma associação ou fundação. Para localizar o conceito legal de público, devemos investigar objetivamente as normas que buscam identificar o caráter público de certos segmentos da sociedade civil brasileira. Em geral, tais normas são construídas dentro de uma visão específica de sociedade civil, por parte do Estado, em um dado momento histórico. (ABONG, maio de 2004)
Concluindo, objetivou-se com este subitem destacar – isto já foi indicado e será
reafirmado em outros momentos – que as entidades (instituições, organizações) do terceiro
setor são constituídas juridicamente sob a forma de associações ou fundações privadas; que o
“interesse social” é o gênero das finalidades dessas entidades, ou seja, dentro desse gênero
existem duas espécies de finalidades das entidades: “interesse ou caráter público” (por
exemplo: entidades assistenciais, beneficentes, filantrópicas, de defesa de direitos etc.) e
“ajuda mútua ou auto-ajuda” (por exemplo: associações de classe, clubes recreativos e sociais,
associações de moradores etc.); que as entidades que têm como espécie de finalidade o
“interesse ou caráter público” podem ser detentoras de títulos e certificados (UPF, CEBAS,
OSCIP, OS)19 que lhes possibilitam ou facilitam o exercício de benefícios e incentivos fiscais,
o relacionamento com o governo e acesso a recursos públicos.
1.10. Identificação das Organizações Sem Fins Lucrativos pela Constituição Federal e
pelo Código Civil
Pretende-se, neste subitem, verificar como a Constituição Federal e o Código Civil
identificam e denominam as organizações ou entidades sem fins lucrativos, ou melhor, as
pessoas jurídicas de direito privado sem fins econômicos ou lucrativos.
Em um primeiro momento, destaca-se que a Constituição Federal enfatiza a liberdade
de associação para fins lícitos (art. 5º, XVII), inclusive a liberdade de associação sindical e
profissional (art. 8º, caput), e, ainda, a liberdade de crença e de exercício de cultos religiosos
(art. 5º, VI).
19 A sigla UPF significa Utilidade Pública Federal, e assim respectivamente: CEBAS: Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social; OSCIP: Organização da Sociedade Civil de Interesse Público; OS: Organização Social.
51
Em um segundo momento, ressalta-se que a Constituição Federal identifica e
denomina de forma específica as seguintes organizações sem fins lucrativos:
•••• Associações (art. 5º, XVIII e XIX).
•••• Fundações Privadas (art. 150, VI, “c”).
•••• Sindicatos (art. 8º, incisos I à VIII, e art. 150, VI, “c”).
•••• Partidos Políticos (art. 17 e art. 150, VI, “c”).
•••• Cultos Religiosos e Igrejas (art. 19, I, e art. 150, VI, “b”).
•••• Serviço Social Autônomo (art. 240, e art. 62 dos Atos das Disposições
Constitucionais Transitórias).
A título de esclarecimentos, informa-se que a Constituição Federal também identifica
de forma específica as fundações públicas (art. 37, XIX), que integram o poder público e não
a sociedade civil, e as cooperativas (art. 5º, XVIII, e art. 174, § 2º), que embora possuam fins
lucrativos, sofrem certa tendência de serem incluídas no terceiro setor, especialmente em
virtude da definição de terceiro setor da corrente européia, conforme já detalhado em subitem
próprio.
Quando a Constituição Federal dispõe sobre a imunidade de impostos (art. 150, VI),
que é um tema relevante para as organizações sem fins lucrativos, uma vez que se procurou
beneficiar com a imunidade as organizações de interesse público, em linhas gerais, ela trata de
forma específica, nos termos acima, os templos de qualquer culto, os partidos políticos,
inclusive suas fundações, e as entidades sindicais. Já as demais organizações são identificadas
pela expressão instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos. No tocante
à imunidade das contribuições para a seguridade social (art. 195, § 7º), as organizações sem
fins lucrativos são identificadas como entidades beneficentes de assistência social.
Já o Código Civil - a lei que tem competência para definir as espécies de pessoas
jurídicas - as identifica e denomina, nos termos abaixo.
O artigo 44 identifica como pessoas jurídicas de direito privado as associações, as
sociedades, as fundações, as organizações religiosas e os partidos políticos.
As “sociedades” são pessoas jurídicas de direito privado com fins econômicos ou
lucrativos, conforme explicitado pelo artigo 981: “Celebram contrato de sociedade as pessoas
que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de
52
atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados. Parágrafo único. A atividade pode
restringir-se à realização de um ou mais negócios determinados” (CÓDIGO, 2002).
O Código Civil, em seus artigos 1.093 a 1.096, trata a “cooperativa” como “sociedade
cooperativa”, e ressalta os seguintes aspectos:
•••• A sociedade cooperativa é regulada por legislação especial e pelas disposições do
Código Civil acima citadas (arts. 1.093 a 1.096);
•••• Aplicam-se subsidiariamente à sociedade cooperativa às disposições referentes à
sociedade simples;
•••• A sociedade cooperativa tem características peculiares, e dentre elas, a distribuição
dos resultados, proporcionalmente ao valor das operações efetuadas pelo sócio
(cooperado) com a sociedade.
Já as demais pessoas jurídicas identificadas no referido artigo 44 – associações,
fundações, as organizações religiosas e os partidos políticos – são pessoas jurídicas sem fins
econômicos ou lucrativos.
Sobre elas, o Código Civil, em síntese, assim as identifica e caracteriza:
•••• Associação: união de pessoas que se organizam para fins não econômicos (art.
53).
•••• Fundação: dotação especial de bens livres destinado ao fim especificado pelo
instituidora, que poderá, inclusive, declarar a maneira que a fundação será
administrada; a fundação apenas poderá constituir-se para fins religiosos, morais,
culturais ou de assistência. (art. 62).
•••• Organizações Religiosas: liberdade de criação, organização, estruturação interna
e o funcionamento, sendo vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento ou
registro dos atos constitutivos e necessários ao seu funcionamento (art. 44, § 1º).
•••• Partidos Políticos: são organizados e funcionarão conforme o disposto em lei
específica (art. 44, § 3º) (Cf. CÓDIGO, 2002)
53
1.11. Consensos e Desacordos: Conclusões
Aqui, em conclusões, ofertam-se alguns pontos de consenso e desacordo na
identificação das organizações que integram o terceiro setor, sob o prisma jurídico.
a) Existe consenso que as figuras jurídicas básicas do sistema legal brasileiro que
integram o terceiro setor são as associações e as fundações; assim como que essas
entidades, desde que desenvolvam atividades de interesse público, podem ser
detentoras de títulos e certificados públicos que lhes possibilitam ou facilitam o gozo
de benefícios e incentivos fiscais e o acesso aos recursos públicos. Dentre eles,
destacam-se, no âmbito federal: Declaração de Utilidade Pública Federal; Certificado
de Entidade Beneficente de Assistência Social (CEBAS); Reconhecimento como
Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP); qualificação como
Organização Social (OS).
b) Caminha-se ao consenso de que a idéia de finalidade pública não está vinculada ao
formato jurídico de uma associação ou fundação, assim como de que é uma distorção
relacionar o conceito de terceiro setor a entidades privadas sem fins lucrativos com
finalidade pública, uma vez que isto induz a uma interpretação equivocada de que
entidades que compõem o terceiro setor têm uma natural vocação pública. Desta
forma, caminha-se para a conclusão de que seriam de interesse social, ou seja, seriam
convenientes à sociedade e, assim, integrariam ao terceiro setor, tanto as entidades de
interesse (ou caráter) público, que são aquelas que objetivam o benefício de toda a
sociedade ou de segmentos do conjunto da sociedade, quanto as organizações de ajuda
mútua ou de auto-ajuda, que objetivam defender interesses coletivos, mas num círculo
restrito, específico, de pessoas, ou seja, o benefício mútuo ou interno de um
determinado grupo;
c) Caminha-se ao consenso de que as sociedades cooperativas não integram o terceiro
setor, e isto em virtude delas se organizarem com um objetivo de caráter econômico,
visando a partilha dos resultados dessa atividade entre seus membros cooperados.
54
d) Caminha-se ao consenso de que, por serem identificadas, tratadas e reguladas por
legislação específica, assim como por terem finalidades particulares, não integram o
terceiro setor os sindicatos e os partidos políticos.
e) Ainda não existe um posicionamento claro sobre o enquadramento ou não no
terceiro setor das organizações religiosas e dos serviços sociais autônomos (entidades
do sistema “S”). Sobre as organizações religiosas20, destacamos que a “ausência de
clareza” deve-se mais a questões ideológicas do que a questões metodológicas, pois é
pacífica sua inclusão nos estudos e pesquisas internacionais e nacionais que mensuram
o terceiro setor.
20 Para outros esclarecimentos sobre as organizações religiosas, fazemos remissão ao subitem específico sobre o assunto anteriormente desenvolvido.
55
2. A FACE AMOROSA DO TERCEIRO SETOR: ÉTICA, DIREITO , CARIDADE E
CIDADANIA
2.1. As Faces do Terceiro Setor: Idéia (Valores), Realidade (Mensuração) e Ideologia21
(Mitos)22
“As três faces do terceiro setor”23 é o título de um subitem de texto de Lester Salamon
(1997), no qual o autor trata – enxerga três faces - o terceiro setor como idéia (valores), como
realidade (mensuração) e como ideologia (mitos) e que tem como pano de fundo o seguinte
alerta: “se insistirmos apenas numa delas, corremos sempre o risco de escamotear a realidade
que tentamos proteger ou as ameaças com que ela tem de defrontar-se”.
Antes de entrarmos nas argumentações do pesquisador da Universidade Johns
Hopkins, optamos por trazer algumas colocações de Landim e Beres (1999), que além de
destacar a importância do The Johns Hopkins comparative nonprofit sector project, o Projeto
21 Inclusive em função da associação entre as palavras “mito” – em seu sentido negativo, conforme destacado na nota de rodapé posterior – e “ideologia”, transcrevemos a seguir o significado dessa última palavra que pensamos ser o mais adequado às intenções de Lester Salamon (1997;1998), extraído do Dicionário Houaiss da língua portuguesa: “ ideologia (...) 4 p. ext. SOC sistema de idéias (crenças, tradições, princípios e mitos) interdependentes, sustentadas por um grupo social de qualquer natureza ou dimensão, as quais refletem, racionalizam e defendem os próprios interesses e compromissos institucionais, sejam estes morais, religiosos, políticos ou econômicos...” (HOUAISS e VILLAR, 2001, p. 1565). Destacamos, ainda, que é com esse significado sociológico que utilizamos o palavra ‘ideologia” nesta dissertação, pois queremos enfatizar o vínculo entre os próprios interesses e compromissos do grupo social e o seu respectivo sistema de idéias. 22 O significado negativo da palavra “mito” foi proposto por Lester Salamon (1997; 1998) e é utilizado na dissertação pelo fato de fazermos referência aos argumentos do autor em nosso texto, ou seja, o fato de o utilizarmos, não significa que concordamos com a concepção negativa da palavra “mito”. Outrossim, pela tendência atual nas ciências da religião de se resgatar o sentido e significado antropológico positivo da palavra “mito”, fazemos as seguintes colocações. No caso em questão, inclusive em função da associação entre as palavras “mito” e “ideologia” – vide nota de rodapé anterior – entendemos que Salamon (1997;1998) deu ao vocábulo “mito” um significado negativo, relacionado-o à palavra “lenda” e, assim, caracterizando-o como um “relato fantástico”, ou seja, tratando o mito como produto da imaginação que se opõe à realidade. Para melhor compreensão, transcrevemos os significados negativo e positivo da palavra “mito”, segundo o Dicionário Houaiss da língua portuguesa: “mito (...) 1 relato fantástico de tradição oral, ger. protagonizado por seres que encarnam as forças da natureza e os aspectos gerais da condição humana; lenda... 3 ANTROPOL relato simbólico, passado de geração em geração dentro de um grupo, que narra e explica a origem de determinado fenômeno, ser vivo, instituição, costume social” (HOUAISS e VILLAR, 2001, p. 1300). Também o fazemos, mediante a transcrição dos seguintes ensinamentos do fenomenólogo José Severino Croatto (2004): “Mircea Eliade dizia, em 1954, que ‘a linguagem do século XIX definia como mito aquilo que não se deixa integrar na realidade’. Daí a oposição clássica entre mito e realidade. O mito seria um produto da imaginação e de um estado imperfeito da linguagem, em contraposição à linguagem da ciência” (CROATTO, 2004, p. 182); “Estamos agora em condições de analisar o mito, não à luz das interpretações da modernidade, mas a partir da experiência religiosa. A aproximação fenomenológica nos abrirá caminho para entrarmos na dimensão vivencial do mito. (...) Para entender o fenômeno do mito é necessário partir de uma definição o mais essencial e operativa possível. Para nosso estudo, sugerimos o seguinte: O mito é o relato de um acontecimento originário, no qual os Deuses agem e cuja finalidade é dar sentido a uma realidade significativa” (CROATTO, 2004, p. 209). 23 O texto referido denomina-se Estratégias para o fortalecimento do terceiro setor e está especificado na “Bibliografia”
56
comparativo internacional sobre o setor sem fins lucrativos, idealizado por Lester Salamon,
indica elementos das três faces do terceiro setor.
Conforme reconhecido por Landim e Beres (1999), o acima referido projeto – ele
representa a “face da realidade” – foi pioneiro ao trabalhar com a idéia de um “setor sem fins
lucrativos” – preferencialmente denominado no Brasil como “terceiro setor” –, assim como
por meio dele se construiu um modelo para a identificação e classificação das organizações
que compõem o terceiro setor a ser utilizado para efeitos de comparação internacional. Antes
do Projeto, não se falava em “terceiro setor” e não se sabia sua dimensão, ou seja, o número
de organizações sem fins lucrativos e suas áreas de atividades, o número de pessoas ocupadas
(remuneradas e voluntárias), as despesas operacionais e seu volume com relação ao Produto
Interno Bruto (PIB), as fontes de recursos etc.
Porém, além dos números – para além da “face da realidade” - , Landim e Beres
(1999) dão indicações das outras faces – a do terceiro setor como idéia e como ideologia:
Essa noção de “terceiro setor” evoca não apenas um conjunto diversificado de organizações como também, metaforicamente, um espaço de afirmação de valores e práticas sociais que não pertencem ao terreno do mercado, como altruísmo, compromisso social, solidariedade, laços comunitários, ambientalismo etc. Ou seja, por um lado, a expressão terceiro setor – ou outras equivalentes, como setor sem fins lucrativos – é carregada de eficácia simbólica, encarnando idéias e ideais de diversas fontes de inspiração, como religiosas, espirituais, morais e políticas. Por outro, indica um amplo e variado universo de organizações e iniciativas existentes nas mais diferentes sociedades, onde esses valores se veriam hipoteticamente concretizados (LANDIM e BERES, 1999, p. 08).
A primeira face descrita por Lester Salamon (1997) é o terceiro setor como idéia e
indicada por ele como a dimensão crucial do terceiro setor e como aquela que atrai as pessoas
para seu campo. Continua o autor, destacando que o terceiro setor é singularizado pelo fato de
encarnar valores que nos são caros, cujas fontes de inspiração podem ser espirituais,
religiosas, morais ou políticas. Citando vários valores - altruísmo, compaixão, sensibilidade
para com os necessitados e compromisso com o direito de livre expressão - encarnados no
terceiro setor, são destacadas duas idéias ou valores fundamentais: a) a iniciativa individual
em prol do bem público, a idéia de que os seres humanos tem capacidade e obrigação de agir
por autoridade própria em prol do bem-estar geral, o que torna o direito de associação (de
constituir uma organização do terceiro setor, um ONG) um direito humano básico; b) a
solidariedade – indicada como mais importante do que a iniciativa individual -, representada
pela idéia de que as pessoas têm obrigações em relação ao próximo e às sociedade maiores de
que são partes (Cf. SALAMON, 1997, p. 92).
57
“Pode-se, pois, dizer que o Terceiro Setor é, em primeiro lugar, um conjunto de
instituições que encarnam os valores da solidariedade e os valores da iniciativa individual em
prol do bem público. Isso não significa que tais valores não sejam evidentes também em
outros domínios, mas sim que no Terceiro Setor eles alcançam a plenitude.” (Ibid., p. 92).
A segunda face, diz respeito ao terceiro setor como realidade. “O domínio dos valores
e idéias, porém, representa apenas uma das facetas do Terceiro Setor. É que este se constitui
também como uma rede de instituições sociais que encarnam tais valores em maior ou menor
grau. Assim, para além do Terceiro Setor como idéia, há o Terceiro Setor como realidade.”
(Ibid., p. 92-93).
Segundo o autor, curiosamente essa face estava oculta, em função de razões empíricas
– os sistemas de dados básicos subestimavam o terceiro setor – e em função de razões
conceptuais por ele assim explicitadas:
Entretanto, por traz desse problema empírico há outro ainda mais sério, de natureza conceptual. A diversidade do setor é tão assombrosa, que nos induz a passar por alto as consideráveis similitudes que também existem nele. As pessoas ocupadas com o desenvolvimento não querem ser confundidas com as que se devotam a mera assistência. As associações civis que lutam por direitos humanos não se identificam com entidades religiosas ou corporações profissionais. Carecendo de um conceito unificador, o todo vem a parecer menor que as partes constituintes. O resultado é que o Terceiro Setor tem permanecido estranhamente invisível como realidade, ainda que chame cada vez mais a atenção como idéia. (Ibid., p. 93).
Com base nessas constatações, Lester Salamon e outros pesquisadores do Institute for
Policy Studies da Universidade Johns Hopkins idealizaram critérios de identificação e
classificação das organizações que compõem o terceiro setor, que hoje possibilitam sua
mensuração. Tais questões foram amplamente desenvolvidas no item anterior desta
dissertação denominado Conceitos, características, números e desacordos no terceiro setor,
ao qual remetemos o leitor.
Já a terceira face refere-se a questões ideológicas, que representam várias percepções
errôneas - com parcelas de verdade – sobre o terceiro setor. “Por acaso ou de propósito, o
Terceiro Setor passou a ser utilizado como oportuna cortina de fumaça para uma série de
preocupações políticas e ideológicas conflitantes, que pouco têm a ver com a realidade ou a
idéia do Terceiro Setor.” (Ibid., p. 96). Essa face é identificada por Lester Salamon (1997;
1998) pelos seguintes mitos:
•••• Mito da Virtude Pura;
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•••• Mito do Puro Voluntarismo;
•••• Mito da Imaculada Concepção.
Como acima indicamos os mitos, também optamos por identificar e destacar em
tópicos alguns exemplos de como as questões ideológicas confundem um olhar mais
abrangente e real do terceiro setor. Mais especificamente, os mitos ocasionam as seguintes
distorções:
•••• Fazem com que se esqueçam as limitações burocráticas das organizações do
terceiro setor e que elas, mesmo encarnando valores e princípios éticos que lhes dão
um potencial transformador e de independência, alguma vezes são utilizadas para
manutenção de sistemas injustos e como instrumentos para legitimar e estender a
influência de líderes políticos nacionais;
•••• Motivam conflitos intransponível entre o dever do Estado e a atuação das ONGs,
na implementação do direito sociais, ou seja, tratam Estado e ONGs como
competidores e não como colaboradores;
•••• Tratam o terceiro setor como uma novidade, inclusive vinculando sua expansão tão
somente a pressões de cima para baixo, decorrentes de políticas de governo
neoliberais;
Embora mais direcionado ao mito do puro voluntarismo, a seguinte consideração de
Lester Salamon (1998) sintetiza a face ideológica e suas conseqüências:
Barreiras ideológicas também obscurecem a identificação do papel e da escala real do Terceiro Setor. Durante grande parte dos últimos 50 anos, políticos tanto à esquerda quanto à direita tenderam a minimizar o papel dessas instituições. A esquerda o fez para justificar a expansão do welfare state; a direita, para justificar ataques ao Estado como o destruidor de instituições mediadoras privadas. O surgimento do welfare state também colaborou para que o setor sem fins lucrativos permanecesse à margem tanto do debate público quanto da investigação acadêmica, mesmo enquanto o setor continuava a crescer (SALAMON, 1998, p. 6)24.
Sem negar a relevância da dimensão dos valores e princípios éticos – face da “idéia”,
que dá a este setor um potencial transformador e de independência – do terceiro setor, o autor
referido explicita o mito da virtude pura, da seguinte forma:
24 Esclarecemos que, neste e nos demais trechos transcritos de Lester Salamon (1997;1998) deste subitem “As faces do terceiro setor...” e do próximo “As pressões envolvidas no terceiro setor...”, os grifos são do autor.
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A primeira dessas percepções errôneas é o mito da virtude pura. O Terceiro Setor atingiu proeminência, fundamentalmente, como um veículo flexível e digno de confiança para a realização de anseios humanos elementares, como auto-expressão, auto-ajuda, participação e ajuda mútua. Com raízes freqüentes em ensinamentos religiosos e morais, ele adquiriu autopercepção de persona santificada e certo romantismo permeia sua capacidade suposta de mudar vida das pessoas. Mesmo sem negar a validade fundamental dessa imagem é importante, no entanto, reconhecer que essas instituições têm também outros aspectos (Ibid., p. 9).
Dentre esses aspectos que revelam o mito, Salamon (1998) indica as deficiências
burocráticas – falta de sensibilidade, morosidade e rotinização – que também alcançam as
organização sem fins lucrativos, na medida em que elas crescem em escala e complexidade,
como também indica a utilização das organizações como instrumentos para legitimar a
influência de líderes políticos e para manutenção de sistemas injustos (Cf. Ibid., p. 9). Sobre
este, inclusive porque ele repercute diretamente no objeto e objetivos desta dissertação,
optamos pelo detalhamento, utilizando, para tanto, exemplos concretos citados pelo autor:
Além disso, essas organizações podem acabar desempenhando um função menor, de mera manutenção do sistema. Por exemplo, Thomas (1987:477)25, em estudo sobre o movimento Harambee no Quênia, nota que enquanto o Harambee canaliza riqueza privada altamente visível para projetos sociais relevantes, também serve para “justificar a acumulação de riqueza e pobreza e a perpetuação da iniquidade”. De modo mais genérico, como argumenta Smith (1990:277)26, mesmo organizações orientadas para a mudanças podem sustentar a posição de elites locais ao ajudar a “canalizar as energias de opositores do regime originários da classe média, que poderiam ter sido levados a alternativas políticas mais radicais ou mesmo revolucionárias”. Organizações sem fins lucrativos, segundo ele, são freqüentemente utilizadas para sinalizar a “críticos estrangeiros que governos autoritários, de partido único ou controlados por elites permitem certo grau de pluralismo e espaço para iniciativas privadas em suas sociedades (Ibid., p. 10).
O mito do puro voluntarismo que encontra pouca base de evidência mundo afora e
que, em particular, permeia o pensamento americano sobre o “setor sem fins lucrativos”
(nononprofit sector) – e isto tem grande significado, em função da ampla influência norte-
americana em nossa mundo globalizado – é caracterizado pela crença de que as organizações
do terceiro setor dependem principalmente, ou até mesmo exclusivamente, de ação privada
voluntária e da filantrópico privada (caridade privada ou doação privada) - na obra de
Salamon de 1997 são utilizadas as palavras “caridade” e “doação“; já na de 1998 utiliza-se
“filantropia -. Este mito seria sustentado por uma filosofia política conservadora que vê
25 O autor identifica a seguinte referência bibliográfica: THOMAS, Barbara. Development through Harambee: who wins and who lose? Rural self-help projects in Kenya. World Development, p. 477, Fall 1987. 26 O autor identifica a seguinte referência bibliográfica: SMITH, Brian H. More than altruism: the politics of private foreign aid. Princeton, Princeton University Press, 1990. p. 277
60
inerente conflito (um conflito natural) entre o Estado e as instituições voluntárias mediadoras
(setor sem fins lucrativos), uma vez que o crescimento do Estado roubaria as funções dos
grupos voluntários e, conseqüentemente, os levaria a ruína, ou seja, a chave para a expansão
do terceiro setor seria, desta forma, a redução do papel do Estado. (Cf. SALAMON,
1997;1998, p. 97-100 e p. 10)
Embora percebendo que voluntarismo e a filantropia privada (caridade ou doação) são
vitais ao caráter especial do terceiro setor, eles deveriam ser compreendidos como duas,
dentre outras fontes potenciais de apoio (Cf. SALAMON 1998, p. 10). Outrossim,
...o relacionamento entre o Estado e o Terceiro Setor tem sido caracterizado mais por cooperação do que por conflito, na medida em que o Estado se voltou a esse setor para assisti-lo no atendimento de necessidades humanas. Nos Estados Unidos, o Terceiro Setor é parte de um sistema de promoção amplo, uma vez que o governo efetiva boa parte de suas políticas domésticas por meio de terceiros – escolas, universidades, institutos de pesquisa, bancos comerciais etc. O caráter semi-público das organizações sem fins lucrativos torna-as parceiras privilegiadas nesse sistema de governo por meio de terceiros (third-party government). Assim, o governo emergiu como um fonte de suporte financeiro de primeira grandeza para o setor sem fins lucrativos do Estados Unidos, correspondendo ao dobro das doações de cidadãos isolados. Em outros países avançados, o apoio governamental é ainda mais acentuado (Ibid., p. 10).
E continua o autor:
...talvez o mais decisivo fator determinante para o Terceiro Setor será o relacionamento que essas organizações desenvolverão com o governo. A tarefa para organização do Terceiro Setor é encontrar um modus vivendi com o governo que propicie suficientes suporte legal e financeiro, preservando grau significativo de independência e autonomia (Ibid., p. 11).
Finalmente, o autor indica que “outro erro de percepção é o mito da imaculada
concepção, a noção de que organizações sem fins lucrativos são essencialmente novas na
maior parte do mundo” (Ibid., p. 10). Corroborando esta idéia ao vincular a origem do terceiro
setor a tradições de caridade e altruísmo, o pesquisador indica desafios para o
desenvolvimento do terceiro setor, deixando claro, entretanto, que ele deve levar em conta as
tradições preexistentes. As origens, condições específicas e desafios interessam
particularmente esta dissertação:
...o fato é que as instituições do Terceiro Setor não são um invenção americana, como muitos presumem. Nem constituem fenômeno novo na maior parte do mundo. Tradições de caridade e altruísmo acham-se presentes em quase todas as sociedades, e o mesmo se dá com os veículos institucionais para sua expressão.
61
Um dos grandes desafios da promoção do Terceiro Setor, portanto, não é criar estruturas sociais inteiramente novas, mas aplicar novas formas de associações às estruturas tradicionais da vida comunitária, passar os esquemas clientelistas e paternalistas de interação para outros que realmente tenham poder e capacidade. Na melhor das circunstâncias, as velhas estruturas podem ser adaptadas e melhoradas. Em uns poucos casos, porém, o melhor é ignorá-las. Na prática, isso significa que o desenvolvimento do Terceiro Setor, quando ocorre, não se reveste do mesmo perfil em toda parte: tem de adequar-se às tradições sociais, econômicas e culturais preexistentes (SALAMON, 1997, p. 101).
2.2. As Pressões Envolvidas no Terceiro Setor: De Baixo (Movimentos Populares
Espontâneos), Externas ou De fora (Igrejas, ONGs Internacionais e Agências Oficiais) e
De Cima (Políticas de Governo)
Em subitem denominado “Quando o Estado fracassa”, Salamon (1998) aponta quatro
crises e duas mudanças revolucionárias que convergiram tanto para limitar o poder do Estado
quanto para fomentar a expansão do terceiro setor. São elas: a crise do moderno welfare state;
a crise de desenvolvimento envolvendo os choques do petróleo dos anos 70 e a recessão do
início da década de 80, que mudaram radicalmente as perspectivas para os países em
desenvolvimento e que motivaram auto-ajuda e desenvolvimento participativo; a crise
ambiental global; a crise do socialismo; a revolução nas comunicações; o crescimento
econômico ocorrido durante os anos 60 e início da década de 70 e a mudança social por ele
provocada, especialmente representada pela criação em países subdesenvolvidos de uma
classe média urbana cuja liderança teve um importante papel na expansão das organizações
não-governamentais(Cf., SALAMON, 1998, p. 8-9).
Sem nos preocuparmos em detalhar os outros itens, destacamos o seguinte
posicionamento do pesquisador norte-americano:
O primeiro desses impulsos é a percebida crise do moderno welfare state. Ao longo da última década, o sistema de proteção governamental ao idosos e aos economicamente desafortunados, que se havia moldado nos anos 50 no Ocidente desenvolvido, parecia não mais funcionar. O reduzido ritmo de crescimento econômico global dos anos 70 ajudou a impulsionar a crença de que o gasto social, que havia crescido substancialmente nas décadas anteriores, estava tomando o lugar do investimento privado. Essa convicção converge com aquela de que um governo sobrecarregado e superburocratizado não seria capaz de realizar as amplas e diversificadas tarefas sociais que lhes estavam sendo designadas. Além disso, a política do welfare state gerou pressões para expandir os serviços governamentais, com seus gastos superando a disposição dos contribuintes em pagar por tais serviços. Mais do que simplesmente proteger os cidadãos dos riscos, o welfare state estava, na opinião de vários políticos e analistas, reprimindo a iniciativa, absolvendo as pessoas
62
da responsabilidade individual e estimulando a dependência da população em relação ao Estado (Ibid., p. 8)27.
Aqui abro parênteses. O que nos interesse neste momento é demonstrar a tendência de
tão somente – nisto, entendo-a equivocada – vincular a amplitude e a expansão do terceiro
setor à pressões de cima para baixo, especialmente decorrentes de políticas de governo
neoliberais, esquecendo-se de outros focos de pressão que, inclusive, torna dinâmico – não
estanque, e sim movida por ofensivas e contra-ofensivas - o conflito entre o capitalismo
dirigido (dirigismo), com sua proposta de pleno emprego e de um estado de bem-estar social
(welfare state), e o neoliberalismo, com sua estratégia da redução do tamanho do Estado e do
gasto social governamental e sua lógica de exclusão social e de destruição do welfare state
mediante a privatização dos serviços sociais.
Frisamos, que não se nega com a colocação acima, que as decisões governamentais
sobre o modo da implementação das políticas públicas – por exemplo, priorizar a
implementação dos direitos sociais por meio da rede pública (órgãos ou unidade
governamentais); realizar serviços públicos por meio da rede privada, especialmente mediante
a celebração de convênios ou instrumentos congêneres como organizações sem fins lucrativos
etc – interferem na amplitude, desenvolvimento e forma de atuação das organizações do
terceiro setor. O que se contesta é o pensamento de que as pressões de cima para baixo
definem tudo, o que faz com que seus argumentadores esqueçam-se, inclusive, que as
pressões de baixo para cima e as pressões externas também delineiam o campo do terceiro
setor, além de influenciar as próprias decisões e estruturas políticas governamentais.
Destacamos, também, que em momentos oportunos e específicos28, pensadores de
várias áreas de conhecimento nos ajudarão a entender o capitalismo e o socialismo como
revoluções sociais - e não apenas como revoluções políticas (“burguesa” e “proletária”); as
etapas da formação social capitalista (capitalismo concorrencial, capitalismo monopolista,
capitalismo dirigido e neoliberalismo); a lógica capitalista da exclusão social e destruição
criadora; implantes socialistas no capitalismo para enfrentar e/ou compensar suas tendências
de concentração, exclusão e destruição; a complexidade e inter-relação dos processos de
exclusão e inclusão social; as linguagem e valores ético-religiosos como condutores de um
lógica de inclusão. Dentre eles, citamos: o pesquisador em economia, cooperativismo e
27 Conforme já esclarecido, nos trechos transcritos de Lester Salamon (1997;1998) deste subitem os grifos são do autor. 28 As questões acima indicadas serão desenvolvidas de modo mais detalhado no subitem desta dissertação denominado “As revoluções sociais, o estado democrático de direitos e os processos de exclusão e inclusão sociais: para além do neoliberalismo ou os implantes socialistas no capitalismo”.
63
economia solidária Paul Singer (1998); a pesquisadora em serviço social e políticas públicas
Aldaíza Sposati (2009); o pesquisador em ciências da religião e educação Jung Mo Sung
(2007).
Voltemos, agora, ao tema central aqui proposto, que envolve as três pressões que
explicam o crescimento e a abrangência do terceiro setor, quais sejam: de baixo, representada
por movimentos populares espontâneos; externas ou de fora, impulsionadas por igrejas,
ONGs internacionais de países desenvolvidos e agências oficiais; e de cima, fomentadas por
círculos oficiais de políticas de governo (Cf., SALAMON, 1998, p. 7).
“A força mais básica é aquela de pessoas comuns que decidem organizar-se e tomar
em suas próprias mãos a melhoria de suas condições de vida ou a busca de direitos básicos”
(Ibid., p. 7). Salamon (1998) indica como exemplos, as seguintes situações: na ex-União
soviética e na Europa Oriental, onde ativistas criam espaços na sociedade civil não apenas de
protestar, como também de exercer com plenitude o direito de organizarem-se; no Terceiro
Mundo – ele cita América Latina, África, Índia - (Cf., Ibid, p. 7), “associações de
desenvolvimento comunitário estabeleceram-se em considerável parcela das cerca de 20 mil
favelas latino-americanas. Em outras partes, o número de cooperativas, grupos de mulheres,
associações de moradores e artesãos, bem como grupos de ajuda mútua, tem crescido...”
(Ibid., p. 7).
Quanto às pressões externas, o autor cita primeiramente as igrejas:
Na América Latina, em particular, a Igreja Católica tem exercido papel significativo. A partir dos anos 50, várias dioceses criaram movimentos e entidades voltadas a auxiliar as populações pobres em áreas rurais e urbanas. Após a vitória de Fidel Castro em Cuba, algumas correntes católicas pressionaram por via mais radical que foi finalmente endossada pelo Segundo Concílio do Vaticano e colocada em prática na Conferência dos Bispos Católicos na Colômbia, em 1968. O resultado foi a formação, por toda a América Latina, de milhares de Comunidades Eclesiais de Base envolvendo padres locais na luta pela justiça social. De maneira semelhante, já sob o pontificado do Papa João Paulo II, as igrejas católicas em Varsóvia, Gdansk, Cracóvia e outros locais da Europa Oriental propiciaram um local de encontro neutro e a fonte de apoio moral para aqueles que militavam por mudanças sociais e políticas. A Igreja Luterana desempenhou papel comparável na Alemanha Oriental (Ibid., p. 7).
Também são coladas como pressões externas, além das agências oficiais de apoio ao
desenvolvimento, as ações de organizações de países desenvolvidos - Estados Unidos, Canadá
e Europa - objetivando o fomento de programas, projetos e atividades sociais nos países em
desenvolvimento. O pesquisador, que cita nominalmente várias ONGs com atuação em
âmbito mundial, enfatiza que elas vêm mudando seu foco tradicional de ajuda humanitária
para o foco de empowerment (Cf. Ibid., p-7).
64
Já quanto às pressões de cima, o autor assim se manifesta:
Finalmente, pressões para a formação de organizações sem fins lucrativos têm vindo de cima, de círculos oficiais de política governamental. Mais visivelmente, os governos conservadores de Ronald Reagan e Margaret Thatcher fizerem do apoio ao setor voluntário um aspecto central de suas estratégias de redução do gasto social governamental. Alguns governos socialistas também agiram na mesma direção. O presidente François Mitterrand liberalizou leis francesas sobre doações e criou um secretaria especial para a économie sociale ou setor mútuo, cooperativo e associativo. O governo trabalhista da Noruega lançou, recentemente, um programa de longo prazo que enfatiza a importância das organizações voluntárias como instituições mediadoras entre os indivíduos e os setores mais amplos da sociedade. No Japão, uma lei de 1990 permite a empresas, pela primeira vez, deduzir de impostos as contribuições filantrópicas. Essas pressões governamentais também fizeram-se sentir no Terceiro Mundo e no antigo bloco soviético (Ibid., p. 7).
2.3. Os Princípios Éticos Cardeais e o Terceiro Setor: Amor ou Caridade, Justiça e sua
Face Solidária e a Verdade como Valor Supremo
O que nos motiva, no momento, é a busca de uma noção sólida, fundamentada e
coerente do significado de amor ou caridade e de solidariedade, e isto inclusive como um
modo de subsidiar o leitor com informações necessárias para a compreensão – reservamos
subitens específicos para desenvolver este assunto29 – de que a palavra “caridade” dissociada
de seu valor ético – e também de seu elemento teológico - fica esvaziada de seu real sentido e
dimensão, o que leva à tendência de associá-la pejorativamente a esmola – nesta situação, é
atribuída à palavra “esmola” uma conotação negativa e assistencialista -, de colocá-la em
frontal oposição à lógica dos direitos e da cidadania, de indicá-la como um fator negativo para
o desenvolvimento da sociedade e, conseqüentemente, de descartá-la como elemento de
análise e compreensão dos fenômenos sociais. Para tanto, recorremos a um dos maiores
juristas de nosso país, a Fábio Konder Comparato (2006) e a seu esplêndido livro Ética:
direito, moral e religião no mundo moderno.
Segundo o autor, “os princípios éticos são normas objetivas, sempre correlacionadas a
virtudes subjetivas. São normas teleológicas, que apontam para um objetivo final do
comportamento humano, ao qual devem se adequar os meios ou instrumentos utilizados. São
normas de conteúdo axiológico, cujo sentido é sempre dado por grandes valores éticos”
(COMPARATO, 2006, p. 520), ou seja, “uma norma superior, que cria deveres objetivos e 29 São eles: “Caridade, assistência, assistência social, assistencialismos e cidadania: caridade sem verdade e valor vira equivocadamente esmola”; “ A fluidez das lógicas do terceiro setor em uma sociedade de direito: assistência, promoção e transformação”; “Caridade e solidariedade na doutrina social da igreja e a tensão entre a mensagem original e a preservação institucional”.
65
gerais de comportamento na vida social” (Ibid., p. 533). “Por tudo isso, compreende-se que o
alcance dos princípios éticos é ilimitado: eles tendem a alcançar na História uma vigência
universal” (Ibid., p. 520).
Comparato (2006) também esclarece que “as qualidades próprias dos princípios éticos
nada mais são, na verdade, do que uma decorrência lógica do fato de se fundarem, em última
análise, na dignidade da pessoa humana, reconhecida como paradigma supremo de toda vida
social” (Ibid., p. 520). Assim, para o efetivo respeito à dignidade da pessoa humana atuam os
princípios éticos cardeais da verdade, da justiça e do amor, que se desdobram e se especificam
nos princípios da liberdade, igualdade, segurança e solidariedade – esta classificação é do
autor (Cf. Ibid, p. 520-521).
Embora nosso foco seja a caridade (o amor) e a solidariedade, pelo fato dos princípios
e valores terem como características elementares a comunhão de sentidos e a
complementaridade, também passaremos pela justiça - seja porque uma de suas modalidades é
a solidariedade, seja por sua relação indissolúvel com o amor – e pela verdade – o caminho
para a felicidade sem desvios, que representa o valor supremo fundado no amor e na justiça e
que por muitos é identificado como o próprio Deus (Cf. Ibid., p. 521ss).
Ora, se a verdade, sob o aspecto ético, como será dito mais adiante, é o único caminho capaz de conduzir à felicidade sem desvios ou enganos, ela se liga necessariamente à justiça e ao amor, pois sem estes é impossível construir uma vida plenamente feliz, no plano individual e social. No tocante à relação específica entre justiça e amor, ela é propriamente indissolúvel. Entre esses valores e princípios éticos não há concorrência, mas complementaridade. A justiça tende a se estiolar e, portanto, a perder sua efetiva vigência, se não for incessantemente aprofundada pelo amor. Este, por sua vez, descamba em egoísmo disfarçado, ou um tíbio sentimentalismo, se não se fundar nas exigência primárias de justiça, das quais representa um aperfeiçoamento e jamais um sucedâneo (Ibid., p. 521).
Antes de esmiuçarmos cada um destes princípios, pensamos que três considerações
preliminares tornam–se oportunas. A primeira, diz respeito ao fato de que trataremos como
sinônimos os vocábulos “amor” e “caridade30”, pois em sua concepção evangélica - vê-se,
aqui, sua natureza de valor ético-religioso -, que está em conformidade com seu significado
etimológico, o amor - ágape, na versão grega, é traduzido em latim por caritas.
A segunda envolve tanto a diferenciação entre o amor e a amizade - o amor sempre se
exterioriza em ação, não se refugiando, como a amizade, em um íntimo bem-querer
30 A seguir é transcrito o primeiro significado do vocábulo “caridade” do Dicionário Houaiss da língua portuguesa: “caridade (...) 1 virtude teologal que conduz ao amor a Deus e ao nosso semelhante” (HOUAISS e VILLAR, 2001, p. 627).
66
necessariamente recíproco –, quanto a dissociação entre o amor e o sentimento e afeto (Cf.
Ibid., p. 532). Sobre este último aspecto, e aqui vemos de modo categórico um exemplo da
função do amor na construção e no funcionamento do terceiro setor – uma de nossas hipóteses
– , Comparato (2006) assim se manifesta:
Mas há certas formas de amor, nas quais a consciência do dever de agir para o bem de outrem não raro se manifesta, por exemplo, pela instituição de uma entidade beneficente, com todas as exigências burocráticas que ela necessariamente comporta; isto é, uma atividade praticamente despida de sentimentos. Isto, sem falar do mandamento bíblico de amar o próximo (Levítico 19, 18), ou do preceito evangélico de amar até o inimigo, o que dispensa, obviamente, qualquer afeição (Ibid., p. 532).
Já a terceira consideração, que está intimamente ligada à segunda, inclusive porque o
amor tem a função de aperfeiçoamento da justiça, envolve a íntima relação entre ética, direito
e cidadania31 – esta em sua concepção ativa de construção (positivação) de diretos
individuais, sociais e políticos, e seu efetivo exercício pelos seres humanos que assim se
tornam cidadãos. Nas palavras do jurista:
Em razão deste duplo aspecto complementar da justiça Aristóteles pôde sustentar ser ela uma virtude perfeita. O homem justo é aquele que, além de não cometer injustiças, pratica ações justas. A interface desse princípio ético explica a união indissolúvel das duas grandes categorias de direitos humanos: a dos direitos e liberdades individuais, e a dos direitos econômicos e sociais. Não é possível separá-los nem, menos ainda, recusar a aplicação de um deles, sem negar a outra, destruindo com isso, completamente, o princípio da justiça (Ibid., p. 528).
Comecemos pelo princípio ético da verdade. Comparato (2006) indica a existência de
duas concepções básicas de verdade: a grega, com sentido intelectual e que está na base do
saber científico moderno, que represente a correspondência intrínseca do pensamento com a
realidade pensada; a semítica, na qual a verdade está ligada à vida ética e verdadeiro é o que
inspira confiança e fidelidade (Cf. Ibid., p. 522). “Na Bíblia, fala-se de um caminho
verdadeiro, no sentido de uma vida reta, sem desvios; de homens verdadeiros, no sentido de
homens capazes, seguros, tementes a Deus, incorruptíveis, nos quais se pode confiar. Nesse
mesmo sentido Iahweh é Verdadeiro...” (Ibid., p. 522). Também nos Evangelhos, a verdade é
tema central: o Verbo – Jesus Cristo – habitou entre nós cheio de graça e verdade; Jesus diz
aos discípulos que eles conhecerão a verdade, e que a verdade os libertará, se eles seguirem o
31 Detalhamos o assunto no subitem desta dissertação denominado “Cidadania: gênese religiosa, dimensão e exercício”.
67
seu ensinamento; o próprio Jesus se declara o Caminho, a Verdade e a Vida32 (Cf. Ibid., p.
523).
E continua o jurista, destacando o papel e os ensinamentos de Mahatma Gandhi33 -
referências expressas aos ensinamentos de Cristo e Maomé são indicadas por Gandhi - na
recuperação da concepção ética da verdade no mundo moderno:
Em seu relato autobiográfico, justamente intitulado A História de meus Experimentos com a Verdade, ele reconheceu que, a partir de sua conversão toda a sua vida passou a ser uma busca incessante desse valor supremo, por ele identificado com o próprio Deus. (...) Deus e Verdade são dois termos convertíveis um no outro. “Se alguém me trouxesse a prova de que Deus mente, ou de que ele se apraz em torturar os seres, eu me recursaria a adorá-lo”. Ora, se Deus é verdadeiro, o mesmo se deve dizer dos grandes princípios éticos. A rigor, a fé em Deus, equivalente à fé na Verdade, implica a existência desses princípios. “Se os negligenciamos, acabaremos todos por sucumbir num estado de miséria sem fim”. (...) Ora, a Verdade e o Amor são as faces visíveis de Deus. Ele não está no Céu nem na Terra, mas em cada um de nós. “É por isso”, disse Gandhi, “que ao me consagrar ao serviço da humanidade, eu poderei um dia ver a Deus”. É este o objetivo último do homem, e todas as suas atividades, sejam elas políticas, sociais ou religiosas, devem concorrer para o alcance dessa finalidade suprema. “É preciso, sobretudo, consagrar-se diretamente a serviço dos outros, pois o único meio de encontrar a Deus é redescobri-Lo na sua Criação e de unir-se a ela” (Ibid., p. 523-524).
Passemos, agora, ao princípio ético da justiça e a sua modalidade denominada
solidariedade. Sempre indicando Platão como autor de suas colocações e partindo da
definição clássica recolhida pelos juristas romanos, segundo a qual a justiça “consiste em dar
a cada um o que lhe é devido” (Ibid., p. 525), o jurista destaca “uma primeira definição da
essência da justiça: não devemos fazer aos outros o que não queremos que eles nos façam”
(Ibid., 525) e “ressalta a existência de uma outra modalidade de justiça, a solidariedade: cada
qual deve cumprir, na sociedade, a função que lhe incumbe. Os fortes devem proteger os
fracos; os ricos, socorrer os pobres; os instruídos, educar os ignorantes; e assim por diante”
(Ibid., p. 527). Continua Comparato (2006), comentando que a mentalidade privatista e
contratualista da civilização burguesa se recusa a estabelecer na sociedade o princípio da
distribuição proporcional de bens e concluindo - indica como fontes Mateus 7, 12; Lucas 6,
21 - que “na mensagem evangélica, esse aspecto ativo ou solidário da justiça é apresentado
como a suma de toda a ética judaica34: ‘Tudo aquilo que quereis que os homens vos façam,
fazei-o vós a eles, porque isto é a Lei e os Profetas’” (Ibid., 527).
32 O autor identifica os seguintes trechos do Evangelho de João: 1,14; 8,31-32; 16, 31; 14, 6. 33 Todos os trechos entre aspas são indicados pelo autor como de autoria de Mahatma Gandhi. 34 Talvez fosse mais apropriado a utilização da expressão “ética judaico-cristã”.
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Como estamos já falando da solidariedade, torna-se oportuno, especialmente para
destacar uma perspectiva eminentemente jurídica de Comparato (2006) – esta questão será
discutida abaixo - , trazer a seguinte colocação:
A solidariedade atua em três dimensões complementares: nacional, internacional e intergeneracional. A cada uma delas corresponde um conjunto específico de direitos humanos, os quais são, hoje, objeto de normas específicas do direito internacional. A interdependência biológica ou a fraternidade religiosa de todos os seres humanos transmudam-se, assim, em autêntica solidariedade jurídica, que cria direitos e gera obrigações (Ibid., p. 579).
Agora, chegamos ao princípio ético do amor (ou caridade) e suas diferenças e a sua
complementaridade – função social de aperfeiçoamento e ampliação - com a justiça.
O amor é uma doação completa e sem reservas, não só das coisas que nos pertencem, mas da nossa própria pessoa. Aquele que ama torna-se despossuído de si mesmo: ele nada retém para si, mas tudo oferece ao outro. Nesse sentido se deve entender a palavra extremada do Evangelho: “Àquele que te fere na face direita, oferece-lhe a esquerda, e àquele que quer pleitear contigo para tomar-te a túnica, deixa-lhe também a veste; e se alguém lhe obriga a caminhar um milha, caminha com ele duas35”. Nessa perspectiva, o amor é o exato oposto da separação, própria da relação de justiça, entre o meu, o teu e o nosso. (...) Além disso, o dever de amar, ao contrário do de ser justo, não engendra direitos, isto é, exigências da parte de outrem. Na ética evangélica, temos todos o dever de amar os outros, quaisquer outros, mesmo os inimigos. Mas, obviamente, nenhum daqueles que devemos amar pode exigir de nós esse comportamento. A grande função social do amor consiste, na verdade, em atuar como fator de permanente aperfeiçoamento da justiça. É o impulso constante no sentido de uma não-acomodação com as formas de justiça já existentes; a procura de uma ampliação ilimitada do princípio de dar a todos e a cada um o que a consciência ética sente como devido (Ibid., p. 533-534)
Como exemplos deste impulso de não-acomodação e ampliação das formas de justiça
existentes, o autor comenta duas ilustrações evangélicas36 do amor (caritas): a) a “parábola do
bom samaritano” (Lucas 10, 25-37)37; b) a “parábola (uma alegoria do julgamento final)
evangélica do ingresso no Reino dos Céus” (Mateus 25, 31-46).38
35 O autor indica o seguinte trecho do Evangelho: Mateus 5, 39-41. 36 Todas as citações da Sagrada Escritura foram extraídas da Bíblia de Jerusalém, especificada na “Bibliografia”. 37 “E eis que um legista se levantou e disse para experimentá-lo: ‘Mestre, que farei para herdar a vida eterna?’ Ele disse: ‘Que está escrito na Lei? Como lês?’ Ele, então, respondeu: ‘Amarás o Senhor teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, com toda a tua força e de todo o teu entendimento; e a teu próximo como a ti mesmo”. Jesus disse: ‘Respondeste corretamente; faze isso e viverás’. Ele, porém, querendo se justificar, disse a Jesus: ‘E quem é o meu próximo?’ Jesus retomou: ‘Um homem descia de Jerusalém a Jericó, e caiu no meio de assaltantes que, após havê-lo despojado e espancado, foram-se, deixando-o semimorto. Casualmente, descia por esse caminho um sacerdote; viu-o e passou adiante. Igualmente um levita, atravessando esse lugar, viu-o e prosseguiu. Certo samaritano em viagem, porém, chegou junto dele, viu-o e moveu-se de compaixão. Aproximou-se, cuidou de suas chagas, derramando óleo e vinho, depois
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Provavelmente objetivando destacar que atualmente a humanidade encontra-se na fase
dos direitos (sociedade de direitos), entendemos que Comparato (2006) radicaliza esta
característica – neste momento específico de sua obra ele vincula exclusivamente a realização
da dignidade humana à existência de um sistema jurídico positivado -, quando finaliza seus
comentários referentes às duas ilustrações da forma a seguir indicada.
Sobre a primeira ilustração, ele assim se posiciona: “naquele tempo, não há como
negar, o samaritano manifestou um comportamento heróico, digno, por conseguinte, da maior
admiração. Hoje, porém, uma pessoa que procedesse da mesma forma nada mais teria feito do
que cumprir o seu dever legal; e se tivesse se esquivado a socorrer a vítima dos assaltantes,
ainda poderia ter que responder a um processo crime” (Ibid., p. 535). Já sobre a segunda
ilustração, também ele é categórico: “ora, como não perceber que todos esses atos de amor,
cuja prática valeu aos bons varões da parábola evangélica o ingresso no Reino dos Céus, estão
hoje compreendidos como estritos deveres jurídicos no sistema de seguridade social (saúde,
previdência e assistência social), previstos em tratados e convenções internacionais (...)?”
(Ibid., p. 536)
Não discordamos – pelo contrário, concordamos plenamente – que a existência de
sistemas positivados de direitos humanos (individuais, sociais e políticos), construídos
democraticamente em função e como decorrência da consolidação de Estados Democráticos
de Direitos, são cruciais para que consigamos alcançar o respeito à dignidade humana,
inclusive como meios adequados para a proteção e inclusão social. Também não discordamos
de que no processo histórico da humanidade manifestações religiosas – por exemplo,
colocou-o em seu próprio animal, conduziu-o à hospedaria e dispensou-lhe cuidados. No dia seguinte, tirou dois denários e deu-os ao hospedeiro, dizendo: ‘Cuida dele, e o que gastares a mais, em meu regresso te pagarei’. Qual dos três, em tua opinião, foi o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes?’ Ele respondeu: ‘Aquele que usou de misericórdia para com ele’. Jesus então lhe disse: ‘Vai, e também tu, faze o mesmo’” (Lucas 10, 25-37). 38 “Quando o Filho do Homem vier em sua glória, e todos os anjos com ele, então se assentará no trono da sua glória. E serão reunidas em sua presença todas as nações e ele separará os homens uns dos outros como o pastor separa as ovelhas dos bodes, e porá as ovelhas à sua direita e os bodes à sua esquerda. Então dirá o rei aos que estiverem à sua direita: ‘Vinde, benditos de meu Pai, recebei por herança o Reino preparado para vós desde a fundação do mundo. Pois tive fome e me destes de comer. Tive sede e me destes de beber. Era forasteiro e me acolhestes. Estive nu e me vestistes, doente e me visitastes, preso e viestes ver-me. Então os justos lhe responderão: ‘Senhor, quando foi que te vimos com fome e te alimentamos, com sede e te demos de beber? Quando foi que te vimos forasteiro e te recolhemos ou nu e te vestimos? Quando foi que te vimos doente ou preso e fomos te ver?’ Ao que lhes responderá o rei: ‘Em verdade vos digo: cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes’. Em seguida, dirá aos que estiverem à sua esquerda: ‘Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno preparado para o diabo e para os seus anjos. Porque tive fome e não me destes de comer. Tive sede e não me destes de beber. Fui forasteiro e não me recolhestes. Estive nu e não me vestistes, doente e preso, e não me visitastes’. Então, também eles responderão: ‘Senhor, quando é que te vimos com fome ou com sede, forasteiro ou nu, doente ou preso e não te socorremos?’ E ele responderá com estas palavras: ‘Em verdade vos digo: todas as vezes que o deixastes de fazer a um desses mais pequeninos, foi a mim que o deixastes de fazer’. E irão estes para o castigo eterno enquanto os justos irão para a vida eterna” (Mateus 25, 31-46).
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atividades missionárias cristãs e muçulmanas, e o isolacionismo judaico - , dissociadas de
seus valores, princípios e significados originais causaram discórdia, conflitos e desrespeito à
dignidade humana, “na medida em que a mensagem sublime de fraternidade universal foi
sufocada pelo peso da sacralização dogmática e pelo repúdio violento aos infiéis” (Ibid., p.
698).
Porém, e isto inclusive com fundamentos ofertados pelo próprio Comparato (2006) – o
impulso do ser humano pela imortalidade, que alimenta as religiões e que leva à busca da
perfeição por caminhos conduzidos pelos princípios éticos (Cf. Ibid., p. 693ss) - e com base
na observação da realidade - existência da exclusão39, desigualdade, violência, insegurança
etc, mesmo em uma sociedade de direitos -, ressaltamos que em nossa perspectiva a religião,
seus princípios e valores são fatores motivadores e orientadores da conduta humana40, ainda
hoje, imprescindíveis para a construção de uma sociedade que respeite a dignidade humana.
Mais especificamente, segundo nosso ponto de vista, e o defendemos nesta
dissertação, não basta apenas a positivação dos direitos. A cidadania e a dignidade humana
pressupõem o efetivo exercício dos direitos. Assim, entendemos que as orientações ético-
religiosas – em especial o mandamento do amor ou da caridade – continuam, ainda hoje,
imprescindíveis tanto para o aperfeiçoamento e alargamento do sistema jurídico quanto para a
efetivação dos direitos humanos. Em outras palavras, deveres jurídicos não bastam por si só;
mais do que obrigações, sanções, sistemas e estruturas, entendemos que a atitude amorosa
(caridosa) do ser humano - são pessoas, motivadas por interesses e valores, que criam,
destroem, ampliam ou restringem direitos, inclusive possibilitando ou impedindo o exercício
de direitos de outrem - é o próprio fundamento e essência para a construção de uma sociedade
justa, livre e solidária.
Como dissemos acima, o jurista subsidia nossa perspectiva, quando trata da seguinte
indagação, segundo ele respondida de forma concordante pelas religiões monoteístas – indica
o judaísmo, o cristianismo e o islamismo – e pelo saber filosófico, e que parece ociosa para as
mentes modernas influenciadas pelo cientificismo (Cf. Ibid., p. 693): “Qual é, afinal, a
39 Sobre o processo de exclusão em uma sociedade de direitos, reportamo-nos aos ensinamentos de Aldaíza Sposati detalhados no subitem desta dissertação denominado “As revoluções sociais, o estado democrático de direitos e os processos de exclusão e inclusão sociais: para além do neoliberalismo ou os implantes socialistas no capitalismo”. 40 No item desta dissertação denominado “Religião, ética e condução da vida: uma escolha racional”, recuperamos posicionamentos a respeito da articulação religião-ética-condução de vida de autoria vários autores: Hans King, Clifford Geertz, José Severino Croatto, Colin Campbell, Max Weber, Rodney Stark.
71
finalidade da vida? (...) Afinal, por que só nós, humanos, no imenso quadro da biosfera,
teríamos uma razão de viver?41” (Ibid., p. 693).
Associando a palavra vida à busca de perfeição e a palavra morte à degradação,
indicando que a vida humana é um perpétuo escolher e diferenciando o fim da vida orgânica
(a morte) da finalidade da vida (o objetivo de toda uma vida impulsionado pela busca
paradoxal da imortalidade inerente ao ser humano), o autor responde à indagação, no sentido
de que a finalidade da vida é a busca da felicidade, pois o que importa na vida não é só viver,
mas viver bem, donde se depreende que o sentido da vida humana é manifestamente ético (Cf.
Ibid. 693ss).
Colocando a questão sob a ótica cristã – nosso objeto de pesquisa está de certa forma
restringido por esse prisma – o ilustre jurista assim se manifesta:
De seu lado, o ensinamento evangélico a respeito é todo condensado em uma fórmula paradoxal, típica do pensamento semítico, repetida nos relatos de Mateus, Marcos, Lucas e João: “Quem ama a sua vida a perde, e quem odeia a sua vida neste mundo guarda-la-á para a vida eterna”.42 Ou seja, quem se apega a seus interesses egoístas, fazendo girar toda a vida sobre si próprio, não impedirá obviamente a morte física; mas quem despreza essa visão mesquinha e procura um vida superior, no amor a Deus e ao próximo, não conhecerá a degradação espiritual (Ibid., p. 694).
A essência da colocação acima, exposta sob a roupagem de uma sociedade de direito
secularizada - isto não nega a presença e a influência, ainda hoje, da linguagem e de valores
religiosos como impulsionadores da prática dos princípios éticos –, e no contexto do embate
entre o capitalismo – direcionado à realização do interesse próprio e imediato de cada
indivíduo, sem considerar o bem comum da coletividade – e a construção do sistema mundial
dos direito humanos – direcionado pela igualdade fundamental dos seres humanos, com
preservação das legítimas diferenças biológicas e culturais – (Cf. Ibid., 698-699), é utilizada
por Comparato (2006) como conclusão de seu brilhante livro:
O processo evolutivo, como salientou Teilhard de Chardin, apresenta um sentido convergente, em razão do fenômeno de “elevação de consciência”. Ele nos permite reconhecer que a evolução vital é autocentrada na espécie humana e manifesta um caráter personalizante. O “estar-no-mundo” é a condição ontológica própria da pessoa; o que implica sua permanente abertura a tudo e a todos. Cada indivíduo, ou grupo social, se valoriza, pelo desenvolvimento contínuo de suas potencialidades, na medida
41 Reflexões sobre o sentido da vida serão abordadas no subitem desta dissertação denominado “Religião no processo de reencantamento da vida e transformação social”. 42 Para melhor compreensão desta afirmação evangélica, transcrevemos nota de rodapé do texto de Comparato (2006), na qual o autor também indica as fontes bíblicas do trecho por ele destacado: “Mateus 16,25; Marcos 8, 35; Lucas 9,24; João 12, 25. As línguas semíticas comportam poucas nuanças semânticas; daí por que são comumente empregados verbos de significação extrema, como amar e odiar” (COMPARATO, 2006, p. 694).
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em que se abre a todos os outros, neles reconhecendo o complemento necessário de si própria. O longo caminho da evolução histórica tende a nos conduzir, nessa perspectiva, à geração da humanidade-pessoa: a nossa espécie torna-se mais consciente de sua posição no mundo, e procura elevar-se indefinidamente rumo ao absoluto, em busca daquele ponto focal onde a mística religiosa sempre situou a divindade. Esta a verdadeira imortalidade do homem. Dignitas non moritur, segundo a expressão clássica: a dignidade da pessoa humana é imperecível. É ela que nos indica o caminho da plenitude de Vida, na Verdade, na Justiça e no Amor (COMPARATO, 2006, p. 699).
2.4. Cidadania: Gênese Religiosa, Dimensão e Exercício
2.4.1. Enfim, uma Constituição Federal Cidadã
Comecemos com a pergunta de Jaime Pinsky (2003) que inicia a introdução do livro
História da cidadania: “Afinal, o que é ser cidadão?” (PINSKY e PINSY, 2003, p. 9).
Deixando claro que por ser um conceito histórico e não estanque, a cidadania varia no tempo
e no espaço, não se podendo, inclusive, imaginar uma seqüência única para a evolução de
cidadania em todos os países o que, entretanto, de forma alguma nega um processo de
evolução que caminha da ausência de direitos para sua ampliação (Cf. Ibid, p. 9-10), o autor
assim responde a questão por ele formulada:
Ser cidadão é ter direito à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade perante a lei: é, em resumo, ter direitos civis. É também participar no destino da sociedade, votar, ser votado, ter direitos políticos. Os direitos civis e políticos não asseguram a democracia sem os direitos sociais, aqueles que garantem a participação do indivíduo na riqueza coletiva: o direito à educação, ao trabalho, ao salário justo, à saúde, a uma velhice tranqüila. Exercer a cidadania plena é ter direitos civis, políticos e sociais (Ibid., p. 9).
Da simples leitura dos artigos 1º (princípios fundamentais), 3º (objetivos
fundamentais), 5º (direitos individuais), 6º (direitos sociais) e 14 (direitos políticos),
depreende-se o motivo pelo qual nossa Constituição Federal (CF) de 1988 é denominada
“Constituição Cidadã”:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político. Parágrafo único – Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.(...)
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Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (...) Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) Art. 6o São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição (...) Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: I - plebiscito; II - referendo; III - iniciativa popular... (CONSTITUIÇÃO, 1988).
Considerando as disposições acima transcritas e várias outras que compõem o texto
constitucional, destacamos, a seguir, importantes elementos que favorecem o
desenvolvimento social e se relacionam com o terceiro setor. Em síntese nossa Constituição
Federal Cidadã:
•••• Consolidou nosso país como um Estado Democrático de Direito, indicando a
cidadania e a dignidade da pessoa como princípios fundamentais e criando um sistema
jurídico positivado adequado à conquista da cidadania plena;
•••• Reconheceu situações de exclusão, priorizando a adoção de medidas necessárias ao
enfrentamento dos problemas sociais, inclusive assegurando o amparo, proteção e
inclusão dos segmentos sociais desfavorecidos (em situação de vulnerabilidade e risco
pessoal e social);
•••• Colaborou para garantir – na verdade determinou – a elaboração de diversas leis –
legislação infraconstitucional - , que vieram atender as expectativas das demandas de
diversos segmentos sociais, dentre as quais: Lei Orgânica da Assistência Social –
LOAS, que fomenta a criação do Sistema Único de Assistência Social – SUAS; Lei
das Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB; legislação que regulamenta do
Sistema Único de Saúde – SUS; Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA;
Estatuto do Idoso etc;
•••• Possibilitou a participação da sociedade civil – organizações sem fins lucrativos,
usuários, trabalhadores das respectivas áreas – no desenvolvimento – orientação e
controle – de políticas públicas por meio de Conselhos paritários em nível federal,
74
estadual e municipal (de assistência social, de educação, de saúde, da criança e do
adolescente, do idoso etc);
•••• Reconheceu o importante papel das organizações do terceiro setor no
desenvolvimento de políticas públicas e na implementação dos direitos sociais, que
devem atuar de forma complementar e integrada às iniciativas do poder público a
quem, diga-se, foi constitucionalmente determinada a competência, o dever e a
responsabilidade de disponibilizar à população os direitos sociais. Para tanto, destaca-
se, a Constituição Federal determinou a atuação complementar, inclusive priorizando a
celebração de acordos públicos com organizações do terceiro setor, assim como dispôs
sobre a liberdade de associação (artigo 5º, XVII a XXI, da CF) e concedeu imunidade
de tributos a determinadas instituições sem fins lucrativos (artigo 150, VI, “c”, da CF:
imunidade de impostos sobre o patrimônio, rendas e serviços das instituições sem fins
lucrativos de educação e assistência social – também de saúde43 -, sem fins lucrativos,
atendidos os requisitos da lei; artigo 195, § 7º, da CF: imunidade44 de contribuições
para a seguridade social à entidades beneficentes de assistência social que atendam as
exigências estabelecidas em lei).
Sobre o último aspecto acima noticiado, transcrevemos a título exemplificativo
algumas disposições de nossa Constituição Cidadã que demonstram de forma clara o dever do
Estado e a complementaridade das organizações sem fins lucrativos na implementação dos
direitos sociais. Fazemos isto, especialmente para demonstrar que é ideológico o alegado
conflito intransponível entre o dever do Estado e a atuação das ONGs, que está presente no
discurso dos que tratam Estado e ONGs como competidores e não como colaboradores. Para
tanto, optamos pelas disposições que tratam da saúde, assistência social e educação, e isto
inclusive porque são essas as áreas de atuações das organizações inscritas nos Conselhos
Municipais de Assistência Social e que são objeto de nossa pesquisa empírica.
DA SAÚDE Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
43 O Supremo Tribunal Federal (STF) possui jurisprudência pacífica no sentido de que as instituições de saúde são beneficiadas pela imunidade de impostos. 44 Embora o texto constitucional utilize a palavra “isenção”, o Supremo Tribunal Federal (STF) possui jurisprudência pacífica no sentido de que se trata de “imunidade”. Também o STF entende que estão incluídas como “beneficentes de assistência social”, as entidades que atuam na área da saúde, educação e assistência social em sentido estrito.
75
Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado. (...) Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada. § 1º - As instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos. (...) DA ASSISTÊNCIA SOCIAL Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: I - a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; II - o amparo às crianças e adolescentes carentes; III - a promoção da integração ao mercado de trabalho; IV - a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária; V - a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei. Art. 204. As ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com recursos do orçamento da seguridade social, previstos no art. 195, além de outras fontes, e organizadas com base nas seguintes diretrizes: I - descentralização político-administrativa, cabendo a coordenação e as normas gerais à esfera federal e a coordenação e a execução dos respectivos programas às esferas estadual e municipal, bem como a entidades beneficentes e de assistência social; II - participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis. (...) DA EDUCAÇÃO Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. (...) Art. 209. O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições: I - cumprimento das normas gerais da educação nacional; II - autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público. (...) Art. 213. Os recursos públicos serão destinados às escolas públicas, podendo ser dirigidos a escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas, definidas em lei, que: I - comprovem finalidade não-lucrativa e apliquem seus excedentes financeiros em educação; II - assegurem a destinação de seu patrimônio a outra escola comunitária, filantrópica ou confessional, ou ao Poder Público, no caso de encerramento de suas atividades. (...) (CONSTITUIÇÃO, 198845).
45 Os destaques sublinhados nos textos constitucionais são nossos.
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Aproveitamos o momento, também para reforçar a idéia de que um Estado Secular46 –
Estado separado da Igreja, por meio da secularização da lei e da normatividade jurídica geral -
não significa um Estado sem religião. Nossa Constituição Federal dispõem no rol dos direitos
individuais (artigo 5º, VI a VIII) sobre a inviolabilidade da liberdade de crença religiosa,
assegura a liberdade dos cultos religiosos, garante a proteção dos locais de culto e assegura a
assistência religiosa em locais de internação coletiva, assim como concede a imunidade de
impostos aos templos de qualquer culto (artigo 150, VI, “b”) (Cf. (CONSTITUIÇÃO, 1988).
Observe-se, ainda, que a grande força simbólica da linguagem religiosa – como valor e
princípio orientador da conduta humana, inclusive na construção da esfera pública – pode ser
captada na expressa referência à proteção divina que consta no preâmbulo de nossa
Constituição Federal:
PREÂMBULO
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL (CONSTITUIÇÃO, 1988)
2.4.2. Cidadania Ativa e Cidadania Passiva
Se por um lado possuímos um sistema jurídico positivado adequado à conquista da
cidadania plena, por outros verificamos a existência de crônicas e abrangentes situações de
exclusão e desigualdade sociais em nosso Estado Democrático de Direitos. Disto, surgem as
seguintes constatações:
•••• Não basta que as normas jurídicas que compõem a legislação apenas positivem os
direitos;
•••• É necessário o efetivo exercício dos direitos para a inclusão social dos segmentos
sociais desfavorecidos (em situação de vulnerabilidade e risco pessoal e social);
46 Este assunto será detalhado no item desta dissertação denominado “Religião, sociedade e terceiro setor” e no subitem denominado “Religião no processo de reencantamento da vida e transformação social”.
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E dessas constatações surgem as seguintes questões, cujas respostas definirão o futuro
de nosso país:
•••• Estamos dispostos a viver aquilo que escrevemos na Constituição Federal?
•••• Como diminuir o distanciamento entre a legislação e a realidade, objetivando a
inclusão social por meio do efetivo exercício dos direitos?
•••• Qual o papel da sociedade civil - organizações sem fins lucrativos, usuários,
trabalhadores – para o efetivo exercício dos direitos e a inclusão social?
Levando em conta que “a história da sociedade brasileira é marcada por relações
autoritárias e conservadoras” (SILVA47, 2001, p. 25), que “em conseqüência da herança
cultural de submissão, torna-se difícil resgatar valores historicamente negados, o que vem
impedindo a cidadania” (Ibid., p. 25), que “direitos legais, por si mesmos, não são o bastante
para construir, verdadeiramente a cidadania” (Ibid., p. 27), que “a participação ativa não faz
parte da tradição nem da vivência cotidiana da maioria dos membros da sociedade brasileira”
(Ibid., p 28) e, ainda, que “o exercício da cidadania para sua efetividade, depende
fundamentalmente de conhecimento sobre a natureza dos problemas concretos capaz de
motivar as pessoas a se mobilizarem na busca de outros caminhos” (Ibid., p. 29), chegamos ao
momento de explicitar os conceitos de cidadania passiva e cidadania ativa de Marilena Chauí
(apud SILVA 2001), que possibilitam uma reflexão de como os valores ético-religiosos estão
motivando a prática da cidadania no espaço das organizações da sociedade civil, ou seja, se
esses valores – e isto em função da permanente tensão entre a mensagem original do amor e
fraternidade universais pregado pelas Igrejas e o impulso da preservação institucional
(estruturas de autoridade) dessas mesmas Igrejas48 – estão orientando atitudes voltadas às
transformação das estruturas sociais excludentes ou se eles – na verdade, nesta situação, não
são os valores ético-religiosos, pois eles, por natureza (sua essência é a dignidade da pessoa
humana, sua vigência universal e seu alcance ilimitado) sempre objetivam o bem comum, e
47 Conforme explicitado na “Bibliografia”, trata-se de Janaína Carvalho da Silva, que no subitem de sua dissertação de mestrado em política social denominado “Cidadania: um categoria central de análise do objeto de estudo” desenvolve o tema da cidadania de modo brilhante. Para tanto, a autora utiliza especialmente o pensamento de Hanna Arendt, Marilena Chauí, Norberto Bobbio e T. H. Marshall. 48 Este assunto, cuja essência está explicitada em nota do subitem deste dissertação denominado “As revoluções sociais, o estado democrático de direito e os processos de exclusão e inclusão sociais: para além do neoliberalismo ou os implantes socialistas no capitalismo”, é também abordado nos seguintes subitens: “Dos profetas sociais à teologia da libertação” e “As lógicas do terceiro setor: assistência, promoção e transformação”.
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sim as interpretações e utilizações interesseiras e distorcidas desse valores - colaboram com a
manutenção de sistemas injustos.
Marilena Chauí49 (1998) compreende a cidadania brasileira em duas esferas. De um lado, a cidadania passiva, ou seja, outorgada pelo Estado, levando os sujeitos a esperar a garantia dos direitos e a justiça social através da mediação deste, com uma função tutelar. Para a autora, esta cidadania torna o sujeito acomodado, levando a uma retração da disposição de luta, terminando por favorecer a lógica da estrutura. O que sustenta este tipo de cidadania é em grande parte, a falta de conhecimento que ela expressa na perspectiva de igualdade no plano jurídico, ancorada na ideologia burguesa, elevando todos os seres humanos à categoria abstrata de cidadãos livres e iguais, concepção esta que precisa ser ultrapassada. De outro lado, a autora define cidadania ativa como o processo de criação de direitos, de garantia desses direitos e de intervenção, de participação direta no espaço da decisão política. A cidadania ativa é aquela que opera para intervir no interior do Estado. Fica claro assim, que o cidadão é portador de direitos e deveres, o que envolve necessariamente um nível de conhecimento para compreender, saber situar e concretizar sua própria existência social e política. Além disso, este processo ocorre de forma coletiva, lutando por interesses e benefícios também coletivos, pois o ser humano para exercitar sua cidadania precisa participar da elaboração e decisões da vida social, enquanto sujeito histórico, ou seja, para ser cidadão é essencialmente necessário ser criador de direitos para abrir novos espaços de participação política, é tornar-se o centro e sujeito de sua história. Portanto, ser cidadão envolve compreender e saber situar a própria existência e, de forma coletiva, lutar por interesses e benefícios também coletivos. (SILVA, op. cit., p. 25-26)
Como uma síntese, recorremos a Leonardo Boff (1999): “A liberação dos oprimidos
deverá provir deles mesmos, na medida em que se conscientizam da injustiça e de sua
situação, se organizam entre si e começam com práticas que visam transformar
estruturalmente as relações sociais iníquas” (BOFF, 1999, p. 141).
2.4.3. Dos Profetas Sociais à Teologia da Libertação50
49 A autora identifica a seguinte referência bibliográfica: CHAUÍ, Marilena. Sociedade-Estado-OAB. In Anais da XIII Conferência Nacional da OAB, Brasília, 1998. 50 Nossas indicações e considerações sobre a “Teologia da Libertação” efetivada neste subitem têm como base o livro Opção pelos pobres, de autoria de Clodovis Boff e Jorge Pixley e datado de 1986, que sistematiza os argumentos da corrente defendida pelos autores naquele momento histórico. Optamos por essa obra, porque além de trazer importantes questões históricas – este é o foco desse subitem – e relacioná-las como os “tempos atuais”, ela também retrata o vigor inicial – antes do fracasso do “socialismo real”, simbolizado pela “queda do muro de Berlim” no final de 1989 – das convicções e esperanças desta “nova” maneira de atuação frente aos estruturais problemas sócio-econômicos denominada “Teologia da Libertação”. Ressaltamos, ainda, que nos subitens desta dissertação denominados “A fluidez das lógicas do terceiro setor em uma sociedade de direitos: assistência, promoção e transformação” e “A ética católica e o espírito do ativismo no setor social”, voltaremos a fazer considerações sobre a “Teologia da Libertação”, porém agora no mesmo contexto proposto por Paul Singer (1996) em sua obra Uma utopia militante: repensando o socialismo, ou seja, após o fracasso do “socialismo realmente existente”. Mais especificamente, nos dois subitens acima indicados utilizaremos argumentos daqueles que após a “queda do muro de Berlim” estão “repensando a teologia da libertação”.
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Este subitem, que tem como início a gênese religiosa da cidadania e que passa ou faz
referência por outros momentos históricos sob a ótica da relação entre valores ético-religiosos
e cidadania (construção e exercício dos direitos humanos), teve como inspiração a primeira
parte da obra acima já indicada História da cidadania51 organizada por Jaime Pinsky e Carla
Bassanezi Pinsky (2003). Como nosso objeto de pesquisa tem como foco valores judaico-
cristãos, restringimo-nos aos textos que tratam dos hebreus e do cristianismo.
Iniciemos a questão histórica com “Os profetas sociais e o deus da cidadania”.
Esse texto de Pinsky (2003), que segundo ele “evita as verdades reveladas para ficar
com fatos analisados e explicações racionais” (PINSKY, 2003, p. 16), tem como espinha
dorsal a constatação de que a contribuição original dos hebreus à civilização foi a concepção
de um monoteísmo ético, fomentado no período da decadência da monarquia - após sua
divisão nos reinos de Judá, ao sul, e de Israel, ao norte – pelos profetas sociais – Isaías52 e
Amós53 em destaque –, que fundamentavam seus discursos e vaticínios no confronto à
religião do templo, burocrática e sem esperança para o povo, com base no sonho nostálgico
dos tempos antigos anteriores à Monarquia – à época do nomadismo, ou do governo patriarcal
dos camponeses e dos juízes (Cf. Ibid., p. 23ss) -, “tempo em que, senão na realidade, no seu
imaginário, as viúvas eram protegidas, os pobres não eram miseráveis, os ricos não eram tão
51 Apresentamos os textos que compõem a primeira parte do livro, com seus autores: “Hebreus: Os profetas sociais e o deus da cidadania”, por Jaime Pinsky; “Grécia: cidades-estado na Antigüidade clássica”, por Norberto Luiz Guarinello; “Roma: a cidadania entre os romanos”, por Pedro Paulo Funari; “Cristianismo: as comunidades cristãs dos primeiros séculos”, por Eduardo Hoornaert; “Renascimento: a cidadania em Florença e Salamanca”, por Carlos Zeron. 52 Para melhor compreensão, transcrevemos a seguir um trecho no qual o autor comenta e destaca um vaticínio do profeta Isaías: “A conclusão do discurso de Isaías é de uma atualidade surpreendente. No limite ele parece querer que as pessoas se reencontrem, voltem a construir uma comunidade que, em algum momento, foi desfeita. ‘Quando estendeis vossas mãos, eu desvio de vós meus olhos; Quando multiplicais vossas preces, eu não as ouço. Vossas mãos estão cheias de sangue, lavai-vos, purificai-vos. Tirais vossas más ações de diante de meus olhos. Cessai de fazer o mal, aprendei a fazer o bem. Respeitai o direito, protegei o oprimido; Fazei justiça ao órfão, defendei a viúva’. (Isaías, 1, 15-17)” (PINSKY, 2002, p.22-23) 53 Para melhor compreensão, transcrevemos a seguir um trecho no qual o autor comenta e destaca um vaticínio do profeta Amós: “Finalmente Amós explicita a relação determinista entre o comportamento e a punição, assim como as características do deus que estabelece uma forma de agir solidária do povo como condição necessária para que as pessoas tenham a possibilidade de encontrar felicidade na terra. O deus de Amós insiste na preservação dos direitos sociais e individuais de todos: do contrário, nenhum os preservaria, mesmo os que já os conquistaram. É uma das passagens mais fortes de toda a Bíblia, aquela em que exige dos seguidores de Deus um comportamento ético, um verdadeiro respeito cidadão avant la lettre por parte dos membros do povo hebreu: ‘Portanto, já que explorais o pobre e lhe exigis tributo de trigo, edificareis casas de pedra, porém não habitareis nelas; plantareis as mais excelentes vinhas, porém não bebereis do seu vinho. Porque eu conheço as vossas inúmeras transgressões e os vossos graves pecados: atacais o justo, aceitas subornos e rejeitais os pobres à sua porta. Por isso, o que for prudente se calará, porque é tempo mau. Buscai o bem, e não o mal, para que vivais, e o Senhor, Deus de todo o poder, estará convosco, como vós afirmais’. (Amós, 5, 11-14)” (PINSKY, 2002, p. 24)
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poderosos, os bens estavam ao alcance de todos, não havia servidão, não se pagava o dízimo
no templo” (Ibid., p. 26).
Levando em conta o ponto de vista de Pinsky (2003), segundo o qual valores culturais
- no caso, princípios éticos - passam a integrar o patrimônio cultural da humanidade – mais
vale viver os ensinamentos dos profetas do que simplesmente alegar a herança -, torna-se
clara a importância das conseqüências do monoteísmo ético dos hebreus, como base do
cristianismo e islamismo, além do judaísmo, e como expressão documentada e politicamente
relevante do que se pode chamar pré-história da cidadania (Cf. Ibid., p. 20 e 17).
Seu grande legado foi a concepção de um deus que não se satisfazia em ajudar os exércitos, mas que exigia um comportamento ético por parte de seus seguidores. Um deus pouco preocupado em ser o objeto da idolatria das pessoas e com o sacrifício de animais imolados em seu holocausto, mas muito comprometido com problemas vinculados à exclusão social, à pobreza, à fome, à solidariedade (Ibid., p. 16).
Concluindo, Jaime Pinsky (2003) enfatiza o caráter revolucionário dos discursos dos
profetas Amós e Isaías em favor dos oprimidos e injustiçados, que ecoam na história e que
impulsionam esforços para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária:
... esses profetas que tomaram a bandeira nostálgica das mãos da população mais pobre, foram, principalmente, grandes revolucionários. Na crítica moral e ética ao presente, na busca de exemplos de relações sociais diferentes no passado idealizado, criam um novo modelo do que seria uma sociedade justa, um parâmetro até então inexistente de relação entre os indivíduos. Pela primeira vez, desde que o mundo era mundo, ouviu-se com tamanha intensidade o grito dos oprimidos e dos injustiçados. Amós, principalmente, ousou fazer ouvir bem alto o retrato de uma sociedade injusta. Mais que isso, e nisso consistiu seu caráter revolucionário, teve a coragem de dizer quais os caminhos que a sociedade deveria tomar para superar a injustiça e criar uma sociedade de pessoas com direitos individuais e sociais. Amós sabia que, ao agir assim, questionava o reino e o templo, as bases da Monarquia hebraica. Ele e Isaías romperam com o ritualismo e com o pequeno deus nacional, um deus que necessitava do templo e dos sacerdotes para se impor. Ao criticarem o que existia e proporem uma nova sociedade, cortam suas amarras e partem para mar aberto. Desistem do deus do templo, de qualquer templo, e criam o deus da cidadania (Ibid., p. 27).
“De onde provém tão extraordinário desenvolvimento em tão pouco tempo? Qual o
segredo?” (HOORNAERT, 2003, p. 81). Em “As comunidades cristãs dos primeiros séculos”,
Eduardo Hoornaert (2003) defende a tese de que o sucesso do cristianismo no século II
decorreu da luta pela cidadania. Mais especificamente, noticiando que a literatura corrente
costuma indicar cinco razões para a expansão do cristianismo, o autor neste artigo minimiza
81
os outros quatro fatores – o martírio, a santidade, os milagres e a evangelização – e coloca em
destaque “a criação de uma rede associativa entre populações marginalizadas” (Ibid., p. 81).
Embora o texto não se aprofunde nas justificativas e argumentos que reduzem a
influência das demais razões, o que nos interessa é a maneira pela qual o autor, alicerçado por
documentos, demonstra como foi decisivo para o impulso do cristianismo “a luta organizada
pela cidadania (avant la lettre, é claro) dentro da sociedade romana” (Ibid., p. 82).
Dentre o rol de serviços no campo social e humanitário construído pelo autor para
justificar que em vez de levantes contra Roma, “os seguidores de Jesus preferem projetos
concretos, mini-utopias realizáveis” (Ibid., p. 90), destacam-se: serviço de alimentação e
hospedagem para necessitados, órfãos e viúvas; caixa de ajuda para casos de urgência; serviço
de enterro aos falecidos; visitas e amparo aos doentes e presos; apoio moral e psicológico;
acolhimento aos estrangeiros gerando sentimentos de pertença, dignidade e identidade social
(Cf. Ibid., p. 90 ss).
Enfim, “a comunidade cristã local vira (...) um ‘salgueiro’ que protege muita gente,
cristãos e pagãos, na amplitude de sua sombra. Eis o segredo do sucesso do cristianismo
(Ibid., p. 90). Ressalte-se, ainda, que embora o cuidado com viúvas, órfãos e pobres em geral
seja uma herança direta da sinagoga, “a grande diferença com a caridade cristã está na
abrangência. Enquanto a sinagoga só atende aos judeus, as comunidades cristãs acolhem a
todos” (Ibid., p. 92).
Dos historiadores, passemos a um sociólogo que trabalha diretamente com dados
históricos, sobre o assunto aqui tratado. Rodney Stark (2006) deixa claras suas intenções no
título de seu livro O crescimento do cristianismo: um sociólogo reconsidera a história.
Aplicando várias de suas proposições teóricas sociológicas – dentre elas a teoria formal da
escolha racional que será desenvolvida em local próprio54 - o autor objetiva explicar como o
crescimento do cristianismo aconteceu. De início, o autor alerta e justifica que
...o Novo Testamento narra o esforço humano empreendido em prol da expansão da fé. Não há sacrilégio algum na tentativa de entender ações humanas em termos humanos. De mais a mais, não reduzo o crescimento do cristianismo ao aspecto puramente “material” ou a fatores sociais. A doutrina recebe o devido crédito – um fator essencial no sucesso da religião foi a crença dos cristãos (STARK, 2006, p. 14).
Antes de explicitar sua tese de que “as doutrinas fundamentais do cristianismo
estimularam e sustentaram organizações e relações sociais atrativas, libertadoras e efetivas”
54 Este assunto será detalhado especialmente no item desta dissertação denominado “Religião, ética e condução de vida: uma escolha racional”.
82
(Ibid., p. 236), o autor destaca a existência de uma tendência dos historiadores de por um lado
debaterem como os fatores sociais moldam as doutrinas e por outro de ficarem relutantes em
discutir como as doutrinas podem ter moldado fatores sociais, posicionando-se no sentido de
que embora tenham havido excessos de historiadores cristãos que suscitam prevenções, “isso
não constitui justificação suficiente para descartar a teologia como relevante” (Ibid., p. 235).
Como exemplos da imensa importância da doutrina no sucesso do cristianismo e que foram
desenvolvidos no livro em questão, o autor destaca os seguintes: “assistência aos doentes
durante os períodos de peste, no repúdio ao aborto e ao infanticídio, na fertilidade e no vigor
organizacional“ (Ibid., p. 235).
Tendo como pano de fundo as respostas cristãs e pagãs referentes à assistência aos
doentes nos períodos de epidemias e a campanha do imperador Juliano – este fato histórico
também é mencionado por Hoornaert no texto acima referido – para instituir obras de
caridade para competir (igualar ou superar) com as virtudes cristãs (Cf. Ibid., p. 97), Stark
(2006) destaca que a coisa diferente surgida com o pensamento judeu-cristão foi “o
entrelaçamento de um código ético altamente social com a religião” (Ibid., p. 100), no qual
“os valores cristãos do amor e da caridade haviam sido traduzidos em normas de serviço
social e de solidariedade comunitária” (Ibid., p. 88).
E o que justificou essa nova forma de pensar e agir? Segundo o sociólogo, “o novo aí
era a idéia de que fossem possíveis mais do que simples relações de interesse entre os seres
humanos e o sobrenatural. (...) Igualmente estranha ao paganismo era a idéia de que, porque
Deus ama a humanidade, os cristãos não podem agradar a Deus a menos que amem uns aos
outros” (Ibid., p.100). Isto era realmente revolucionário, inclusive porque “o amor e a
caridade devem transpor até mesmo os limites da comunidade cristã” (Ibid., p. 237).
Concluindo que “escritores pagãos e cristãos são unânimes não só em afirmar que a
Escritura cristã enfatiza o amor e a caridade como os deveres fundamentais da fé, mas
também em reconhecer que esses valores devem ser sustentados no comportamento
cotidiano” (Ibid., p. 100), somos por ele convidados a ler de Mateu 25,35-4055.
Agora entra em cena o teólogo Hans Küng (2002), comentando sobre A igreja
católica56:
55 Este trecho do Evangelho de Mateus, inclusive de forma mais abrangente, está transcrito em nota de rodapé do subitem desta dissertação denominado “Os princípios éticos cardeais e o terceiro setor: amor ou caridade, justiça e sua face solidária e a verdade como valor supremo”. 56 Esse texto é o Capítulo 2, do livro A igreja católica, especificado na “Bibliografia”.
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Mas só os ignorantes ou os mal-intencionados poderiam afirmar que o cristianismo não havia mudado o mundo para melhor (...) Estudos mais recentes (ver as obras de Peter Brown) mostraram como, acima de tudo, um novo ideal ético foi elaborado na igreja inicial: ação não apenas de acordo com a lei, o costume e a moral de classe, mas vindo de um coração puro, não dividido, simples – olhando para o Cristo e para os semelhantes. No paganismo, era parte da moral das classes mais altas oferecer para “sua” cidade natal grandes contribuições em dinheiro por ocasião de festivais, para a glória da cidade e do doador, para “pão e circo” (panem et circenses). Mas agora, no cristianismo, a moral cotidiana dos mais ricos seria sustentar os pobres e sofredores numa solidariedade contínua. E não faltavam pobres na Antiguidade. O que era espantoso e atraente para muitos estranhos era a coesão social dos cristãos manifestada sobretudo no culto (...) Traziam-se oferendas voluntárias extraordinariamente generosas, geralmente durante o culto. Administradas e distribuídas pelo bispo, elas possibilitavam que se desse assistência aos pobres, aos doentes, aos órfãos e às viúvas, aos viajantes, aos que estavam presos, aos necessitados e aos idosos (KÜNG, 2002, p. 58).
Seguindo as pegadas dos teóricos da teologia da libertação Clodovis Boff e Jorge
Pixley (1986), especialmente retratadas no texto “A ‘opção pelos pobres’ durante mil anos de
história da igreja”57, passaremos pela Idade Média (do século VI ao século XVI) que, segundo
os autores, foi o milênio em que a Igreja institucional exerceu a influência mais decisiva na
sociedade e, ainda, foi o período mais bem estudado no tocante à pobreza e ao cuidado dos
pobres58. Elucidando que nesta aproximação histórica foram deixados de fora os primeiros e
os últimos quatro séculos59, ao final os autores relacionam os processos históricos aos dias de
hoje (Cf. BOFF e PIXLEY, 1986, p. 185), especialmente como um meio de justificar e
fundamentar a opção preferencial pelos pobres que, por sua vez, é a base da teologia da
libertação.
Durante o referido milênio, são destacadas as diferentes formas do rosto do pobre,
todos eles impotentes em superar a situação de dependência material e moral. Primeiro o
pobre tradicional: doente, inválido, velho ou doido; depois o fraco, dependente do poderoso;
57 Esse texto é o Capítulo IX do livro Opção pelos pobres, especificado na “Bibliografia”. Como já ressaltado em nota anterior indicada no título deste subitem a qual remetemos o leitor, todas as referências à “Teologia da Libertação” abaixo tratadas – e inclusive nossas considerações críticas - referem-se à corrente defendida pelos autores – Clodovis Boff e Jorge Pixley – naquele momento histórico. Outrossim, embora o foco principal deste subitem da dissertação envolva questões históricas, pelo fato desta obra ser uma sistematização teórica – restrita à corrente defendida pelos autores em dado momento - da “Teologia da Libertação”, alguns aspectos sobre esse assunto serão detalhados, inclusive porque a “Igreja dos Pobres” da América Latina é fruto das proposições – afinidade negativa entre o capitalismo e o catolicismo e conseqüente afinidade eletiva entre o catolicismo e o ativismo no setor social – que referenciam nosso objeto de pesquisa. 58 Os autores indicam a utilização da seguinte obra, por eles adjetivada como magistral: MOLLAT, M. Les pauvres au Moyen Age, Etude sociale, Hachette, Paris, 1978 (resumido por Cl. BOFF, “A ‘opção pelos pobres’ durante mil anos de historia da Igreja”, in Puebla, n. 7 (1980), col. 385-402). 59 Dos séculos iniciais já tratamos; dos últimos, obviamente que também faremos referências em função do objeto de nossa pesquisa.
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em seguida o marginal: parasita ou vagabundo; finalmente os “pobres laboriosos”: aqueles
que não conseguem viver por seu trabalho. (Cf. Ibid., p. 208)
Os teólogos também ressaltam que, muito mais do que leis e tratados eruditos, as
práticas concretas da Igreja durante este milênio - vida dos santos, instituições de caridade,
relatos dos milagres, homilias dos Padres – foram essenciais para a formação da consciência
ocidental da necessidade de libertar os pobres da pobreza, como também que o fato da Igreja
não conseguir eliminar a pobreza não representou um fracasso, pois isto decorreu do
surgimento de novos problemas - em especial a pobreza estrutural (a laboriosa) - e da
ausência de recursos materiais da Igreja para fazer frente às novas formas de pobreza.
Outrossim, indicam que a Igreja continuava atuando com seus recursos morais e disto
decorreu que a beneficência do Estado do século XVI é a sucessora direta da misericórdia
medieval, pois “enquanto permanecer a pobreza, permanece a caridade” (Cf. Ibid, p. 206 e
208-209).
Mais especificamente sobre os dois últimos séculos (XV e XVI) do período tratado,
Boff e Pixley (1986) traçam o seguinte histórico, que de certa forma é uma gênese da ambígua
e ideológica relação entre Estado e organizações da sociedade civil – e aqui também
incluímos organizações religiosas - no tocante à implementação dos direitos sociais:
No fim do século XV já se percebe um claro processo de laicização da caridade. O Estado, em fase de afirmação, começa a suprir o trabalho da Igreja e das instituições privada. A evolução se faz sem choques. Primeiro, porque os homens da Igreja e os do Estado são os mesmos. Segundo, porque se acha que o príncipe é o justiceiro e o guarda do bem comum. Também por interesse de ordem pública, o Estado assume a responsabilidade de se ocupar com os pobres. D. Pedro de Portugal, em sua “Virtuosa Benfeitoria”, declara: o Estado tem deveres para com os pobres. Era o que pensavam também outros príncipes como Carlos V e Ricardo II. No “Livro dos cem capítulos”, o autor anônimo, alemão, escreve: “Se os soberanos não se encarregarem de estabelecer uma ordem social harmoniosa, o Senhor soltará as rédeas dos pobres, que se transformarão em instrumentos de sua cólera e os artesãos de sua libertação”(Ibid., p. 206).
A seguir, eles indicam as novas instituições surgidas ou consolidadas nos séculos XV
e XVI, que exemplificam o processo de laicização da caridade e demonstram uma certa tensão
ente Estado e Igreja: 1) as confrarias: administrados por leigos e subsidiadas pela
municipalidade; 2) as mesas dos pobres e os pratos dos pobres: também administrada por
leigos, porém ajudadas e controladas pela Igreja e pelo Estado, e que distribuíam comida,
roupa, etc aos pobres, como também ajudavam trabalhadores em apuros: pagar o médico,
saldar dívidas, comprar uma casa, um caixão etc; 3) os montepios: fundos dos pobres
organizados a partir de coletas na Igreja com a finalidade de combater a usura e que no início
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do século XVI foram aprovados e consagrados pelos Papas; 4) a reforma dos hospitais: a
princípio os leigos eram incentivados a assumirem a assistência dos doentes. O Estado passa a
interferir, no início limita-se aos subsídios, porém depois entra na direção, o que causou
tensão na Itália. Já na Alemanha acha-se normal o Estado dirigir e abusivo o bispo intervir. Os
hospitais se fundem em unidades maiores e se especializam – hospitais para cegos, outros
para loucos, para sifilíticos, para prostitutas, velhos, órfãos etc - , passando a ser vistos como
casas de recuperação e não lugares onde se vai morrer (Cf. Ibid., p. 207-208); 5) preparando
uma “polícia dos pobres”:
Depois da Grande Peste, quando o Estado intervém de forma crescente na sociedade, entende-se que a caridade dever ser merecida: ela só deve se estender aos incapazes de viver de seu trabalho. Daí por que o Estado se põe a reprimir a mendicância e a vagabundagem com prisão, marcas de ferro, enforcamento e trabalhos forçados nos campos e nas galeras. Quanto aos pobres inválidos, surge a idéia de trancá-los em asilos garantindo-lhes a subsistência”(Ibid., p. 208).
Continuam os autores, respondendo a seguinte pergunta por eles formulada: “O que
aprendemos para hoje deste milênio de história?” (Ibid., p. 209).
Primeiro, noticiam várias situações – durante todo o milênio por eles escolhido (do
século VI ao século XVI) - que demonstram a constante preocupação da Igreja com os pobres
e das quais se percebe que a “opção pelos pobres” é tanto mais exigida na medida em que os
cristãos ou grupos de cristãos reivindicam o Evangelho para seu lado. São citados, neste
contexto, os monges e os religiosos, em particular os eremitas e os mendicantes que ao
passarem a viver com e como os pobres, não mais para os pobres, ajudaram a perceber melhor
a situação dos pobres e a necessidade de sua redenção; os líderes messiânicos e apocalípticos,
que se puseram à frente dos pobres num processo de luta, passando a mística do pobre para
uma política do pobre; os teólogos; os bispos, pois sempre se entendeu que sua função própria
era assumir a causa dos pobres, para mantê-los (procurator) e defendê-los (defensor).
Também são citadas exemplificativamente as seguintes figuras de cristãos que praticaram o
amor ao pobre de forma heróica: as figuras de Zóticos, de Cesário de Arles, de Gregório
Magno, de Martinho, de Luís IX (Cf. Ibid., p. 209).
Em um segundo momento relacionam a histórica opção pelos pobres da Igreja
Católica com a teologia da libertação, não sem antes destacarem os seguintes pontos:
•••• A maior contribuição da Igreja à libertação dos pobres envolve a educação da
consciência humana;
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•••• Até fim da Idade Média, a história da Igreja é a do Pobre Lázaro e a do Bom
Rico60, e isto não poderia ser diferente, pois a Idade Média não viu e nem poderia ter
visto as estruturas sociais, ou seja, que a pobreza era um problema estrutural. Nesta
época, via-se a sociedade como um sistema estático, no qual se podia mudar o lugar
social, mas não o conjunto de lugares – sistema social;
•••• Sempre houve uma ambigüidade – vinculada às condições históricas concretas em
que se processam o pensamento e a prática da Igreja –, seja no tocante a imagem do
pobre (balançando entre a rejeição e a veneração), seja no tocante as lutas concretas
dos pobres (com projetos sociais marcados de alienação, com estratégias
inconseqüentes e com lideranças inadequadas) (Cf. Ibid., p. 210).
Após o destaque desses pontos que nos auxiliam na compreensão da questão,
indicamos como Boff e Pixley (1986) relacionam de forma crítica a histórica opção pelos
pobres com a opção política do cristianismo de libertação:
... 6) A maior contribuição que provavelmente deu a Igreja à libertação dos pobres se fez no nível da educação da consciência humana. Sensibilizou o homem frente à situação do pobre, despertando nele sentimentos de misericórdia, generosidade e solidariedade para com o pobre. Nesse sentido a mística cristã que via no pobre a imagem e a encarnação de Cristo exerceu uma influência imensa. Seus efeitos, porém, ficaram no plano pessoal (santos), e institucional (obras de caridade), mas nunca tiveram uma inscrição explicitamente estrutural. Seja como for, pode-se perguntar se a sensibilidade ética e religiosa para com o pobre alimentada pelo cristianismo não foi uma das condições necessárias que prepararam o surgimento da consciência da revolução e da ciência da história. Ou seja: se o cristianismo histórico não foi o pai do marxismo61. De sorte que haveria entre eles continuidade além de ruptura. A relação é certamente dialética.
60 Para melhor compreensão, transcrevemos a seguir o trecho do Evangelho (Lucas 16, 19-25) em que os autores se fundamentaram, com a observação de que a passagem evangélica refere-se ao “mau” rico – e não do “bom” rico, indicado pelos autores -, pois ele não ajudou o pobre Lázaro, ou seja, não praticou os mandamentos de Deus: “Havia um homem rico que se vestia de púrpura e linho fino e cada dia se banqueteava com requinte. Um pobre, chamado Lázaro, jazia à sua porta, coberto de úlceras. Desejava saciar-se do que caía da mesa do rico... E até os cães vinham lamber-lhes as úlceras. Aconteceu que o pobre morreu e foi levado pelos anjos ao seio de Abraão. Morreu também o rico e foi sepultado. Na mansão dos mortos, em meio a tormentos, levantou os olhos e viu ao longe Abraão e Lázaro em seu seio. Então exclamou: ‘Pai Abraão, tem piedade de mim e manda que Lázaro molhe a ponta do dedo para me refrescar a língua, pois estou atormentado nesta chama’. Abraão respondeu: Filho, lembra-te de que recebeste teus bens durante a tua vida, e Lázaro por sua vez os males; agora, porém, ele encontra aqui consolo e tu és atormentado.” (Lucas16, 19-25). 61 Em outro trecho da referida obra, os autores apontam as diferenças entre o marxismo e a teologia da libertação, nos seguintes termos: “Deste modo a América Latina deu à Igreja universal sua primeira contribuição teológica própria: a teologia da libertação. Com esta reflexão pastoral a partir da aceitação de um ministério de acompanhamento dos pobres e com esta reflexão cristã a partir dos pobres que tomaram consciência de sua opressão se dava aos pobres um instrumento teológico para suas lutas de libertação. Deixou de ser o único instrumento teórico de luta o marxismo, um instrumento revolucionário que surgiu das lutas de uma classe operária européia fortemente secularizada. Procurou-se fazer da teologia da libertação uma simples apropriação cristã do marxismo para deste modo poder reprimi-la mais facilmente. Existe uma coincidência real, porquanto ambas reconhecem os pobres como um grupo social sistematicamente empobrecido por estruturas de exploração.
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7) O processo de secularização da caridade, passando da Igreja oficial para o laicato e por fim para o Estado (e agora para as classes pobres lutando por sua libertação), pode ser interpretado não como perversão do cristianismo e nem mesmo como ruptura com relação à Igreja, mas como desdobramento lógico do cristianismo no mundo histórico. Se há emancipação face à Igreja é num sentido relativo. De todos os modos, é possível entender teologicamente esse processo na dinâmica da fé e do plano da salvação. 8) Como explicar o aspecto de novidade que apresenta hoje a “opção preferencial pelos pobres” da parte da Igreja? Essa opção não é nova. Como se pode se ver pela história, a Igreja sempre esteve ou quis estar voltada para os pobres. Essa foi sempre uma intenção, um princípio nunca renegado com tal. Mas por que hoje a “opção pelos pobres” aparece com um discurso novo? É que hoje ela se apresenta sob uma forma nova, que é a de ser uma opção estratégica. Trata-se de optar pelas lutas dos pobres. Trata de se solidarizar com eles, de se associar a eles enquanto sujeitos de história. Não se trata, pois, de se curvar sobre eles cheio de misericórdia, ao modo do samaritano. É antes um questão política62: a de entrar na caminhada dos oprimidos. Portanto, não se trata mais de inventar e montar um nova rede de instituições de caridade, que seriam enfim adequadas à situação de hoje, continuando a longa tradição da Igreja durante o milênio visto. Trata-se antes de questionar o sistema a partir das lutas populares. Trata-se, pois, de se deslocar de um trabalho ao nível das instituições sociais para um trabalho ao nível da organização popular63. Tal é a novidade formal da “opção pelos pobres” hoje. (Ibid., p. 210-211).
Abro, agora, parênteses, para tecer alguns comentários e considerações preliminares –
as questões a seguir apontadas serão desenvolvidas e aprofundadas em outros momentos desta
Mas as diferenças são bastante visíveis. Os oprimidos da América Latina não são operários industriais, e a análise marxista não se aplicou satisfatoriamente à situação de camponeses e indígenas. Além disso, as lutas dos cristãos explorados se inspiram mais no êxodo do que na URSS, mais nas críticas de Jesus aos fariseus e aos escribas do que na ciência social. Contudo, os pobres de nossos países que se inspiram em sua fé compartilham com os pobres organizados em torno de uma análise marxista sua convicção de que existem profundos conflitos de interesses que não se dirimem senão no compromisso pela justiça.” (BOFF e PIXLEY, 1986, p. 224) 62 Em outro trecho da referida obra, os autores apontam sua idéia de política inclusive relacionando-a à vida social: “... a política recupera o sentido mais antigo que era o de ser a própria convivência social, o inter-relacionamento humano na pólis. Aqui se supera a concepção estreita de política enquanto vinculada apenas ao Estado, ou seja, como atividade de Governo, partidos ou movimentos revolucionários. Antes, entende-se por política toda forma de participação no âmbito da sociedade civil. E isso não somente através das organizações existentes (escolas, sindicatos, igrejas, etc.), mas também através de quaisquer outros tipos de ação espontânea e autônoma (encontros, mutirões, etc.). Mais ainda: política é tudo o que toca à vida social, seja direta, seja indiretamente (...) De resto, é interessante observar que as CEBs não falam tanto em ‘política’ mas mais em ‘vida’, por exemplo, quando falam da relação ‘religião/vida’. ‘Vida’ aqui é conceito mais rico que política, tanto entendida no sentido moderno como no clássico (vida social). Engloba este sentido e vai mais longe, compreendendo dimensões irredutíveis à política, como a experiência espiritual e o destino último do homem e da história.” (BOFF e PIXLEY, 1986, p. 232-233) 63 Em outro trecho da referida obra, os autores sintetizam as comunidades eclesiais de base (CEBs), o típico exemplo das citadas organizações populares: “Num país imenso como o Brasil, com uma Igreja católica de muito peso social, ela assumiu um papel de defesa dos torturados no anos mais duros da repressão militar. Surgiram bispos que assumiram publicamente a defesa dos camponeses que eram empobrecidos e reprimidos, e dos índios cujas terras ancestrais lhes eram roubadas por grandes corporações. Nesta defesa a igreja brasileira deu seu mártires. Por todo o país surgiu uma nova maneira de ser igreja, as comunidade eclesiais de base (CEBs). Nelas se reuniam regularmente pequenos grupos de fiéis para examinar a Bíblia à luz de suas circunstâncias locais e estas circunstâncias locais à luz da Bíblia. No meio da repressão generalizada contra toda mobilização popular as CEBs se tornaram um espaço de que o povo dispunha para a sua própria defesa.” (BOFF e PIXLEY, 1986, p. 223)
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dissertação64 – sobre os posicionamentos de Boff e Pixley (1986). Porém, de início, torna-se
oportuno elucidar que nossa opção em detalhar algumas características e conceitos da teologia
da libertação deve-se ao fato de que nosso principal referencial teórico para a compreensão do
objeto de pesquisa – aferição da relação (de uma “afinidade eletiva”) entre o ethos religioso e
o ethos do ativismos no setor social – é Michael Löwy (2000) e suas proposições sobre a
afinidade negativa entre a ética católica e o capitalismo e sobre a afinidade eletiva entre a
ética católica e o ativismo no setor social que, por sua vez, são por esse autor relacionadas –
na verdade o autor relaciona a primeira proposição – ao nascimento da teologia da libertação,
ressaltando, entretanto, que o cristianismo de libertação não é tão somente uma continuação
do anticapitalismo tradicional da Igreja, e sim a criação de uma nova cultura religiosa em
decorrência de condições particulares existentes na América Latina: capitalismo dependente,
pobreza em massa, violência institucionalizada e religiosidade popular (Cf. LÖWY, 2000,
p.54-55) (...): “A ‘Igreja dos Pobres’ da América Latina é herdeira da rejeição ética do
capitalismo pelo catolicismo – a ‘afinidade negativa’ – e especialmente dessa tradição
francesa e européia do socialismo cristão” (Ibid., p. 53-54). Em outras palavras, e no contexto
de sua proposição – aferição de um “subtexto” na obra de Weber:
Embora Weber estivesse interessado principalmente nas conseqüências (sobretudo negativas) da ética católica para a ascensão e o crescimento da economia industrial moderna, podemos demonstrar facilmente que o mesmo tipo de anticapitalismo religioso inspirou o envolvimento ativo dos católicos com a emancipação social dos pobres”(Ibid., p. 208).
Já nossos comentários e considerações têm como pano de fundo a inspiração e
natureza revolucionária essencialmente política da teologia da libertação, caracterizada pela
transformação radical, contundente, imediata – e violenta, se necessário – da estrutura vigente
que oprime o pobre, e que, desta forma, não leva em conta a noção de revolução social como
transformação sistêmica das estruturas econômicas, sociais e supra-estruturais (política,
jurídica e cultural). Desta forma, em função da priorização do radicalismo revolucionário – e
isto em uma oposição frontal a qualquer abertura ao reformismo, entendido este como o
processo de reformas graduais e sucessivas objetivando as transformações políticas,
econômicas e sociais – a fundamentação da teologia da libertação polariza de um lado as
ações assistenciais e promocionais – são colocados como fatores de manutenção das
estruturas injustas, e relacionadas ao assistencialismo – e de outro lado as ações libertadoras –
são indicadas como ações políticas e revolucionárias – radicais e, se necessário, violentas - 64 Este assunto será detalhado especialmente no subitem desta dissertação denominado “As lógicas do terceiro setor: assistência, promoção e transformação”.
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transformadoras das estruturas sociais injustas. Elucidado que percebemos uma certa – uma
sutil – contradição na argumentação – talvez em função das evidências das situações
concretas que dão ares mais fluídos e reais às tipificações e sistematizações teóricas – a seguir
transcrevemos uma síntese dos aspectos abordados, ou seja, da opção prioritariamente política
e radicalmente revolucionária da teologia da libertação:
Talvez seja esta a característica mais evidente da OP65 como nova forma de caridade – justamente a “caridade política”. Sem dúvida, a OP rejeita o assistencialismo, mas não a assistência expressa na esmola e nas medidas de urgência. Rejeita certamente o reformismo, mas não reformas e outras melhorias que significam um passo à frente rumo à libertação. (...) ...a OP é uma opção política. Ela inclui mesmo uma opção de classe, ainda que não se reduzindo a ela. (...) O esforço comovente da “caridade” realizado por tantos santos (S. Vicente de Paulo, Sta. Isabel, etc.), por inúmeras Congregações religiosas (sobretudo as do século passado) e por grandes humanitários (Schweitzer, Ramakrishna, Madre Teresa, etc.), apesar de toda a mística e abnegação heróica, não obteve os resultados desejados: vencer a pobreza e a marginalização social. Porque se prendeu mais ao indivíduo que às estruturas, acabou mostrando-se inadequado para superar a questão da pobreza tal como hoje em dia se coloca. Com efeito, a pobreza é atualmente um fenômeno endógeno: ela é secretada pelo próprio sistema capitalista. Por tudo isso mesmo, importa mudar o sistema se se quer vencer a pobreza. Ora, isso só é possível através de uma ação política adequada. Tudo isso que dizer que a OP, se quer ser verdadeira, há que superar toda forma de assistencialismo, tanto o da “esmola” e das “campanhas” pelos pobres como o das “obras sociais” ou “promocionais” em favor dos carentes. OP é antes despertar os pobres para seus direitos e para a “nobre luta pela justiça”(BOFF e PIXLEY, 1986, p. 252-253).
Ora, mesmo concordando com vários argumentos da teologia da libertação,
interpretamos a questão de modo diferente da forma colocada por Boff e Pixley (1986)
naquele dado momento histórico, especialmente porque tentamos evitar uma visão polarizada
que só existe no plano ideal; esforçamo-nos, sim, por enxergar a realidade – atual, constituída
por uma sociedade democrática de direitos, dentro de uma formação social capitalista com
implantes socialistas - com toda a sua fluidez. Paul Singer (1998) – seus fundamentos serão
desenvolvidos no próximo subitem66 - ajuda-nos em nossa tarefa, por meio de sua
reelaboração conceitual que diferencia o modo de produção capitalista e socialista da
formação social capitalista e socialista, que destaca a característica de transformação
sistêmica da revolução social, que diferencia as revoluções sociais capitalista e socialista
65 OP significa opção pelos pobres. 66 O própria denominação deste subitem deixa claro seu conteúdo e objetivo: “As revoluções sociais, o estado democrático de direitos e os processos de exclusão e inclusão sociais: para além do neoliberalismo ou os implantes socialistas no capitalismo”.
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(processos de mudança) das revoluções políticas (designadas “burguesas” e “proletárias, e
delimitadas no tempo) e que, ainda, indica e analisa os implantes socialistas na formação
social capitalista (Cf. SINGER, 1998)
Desta forma e particularmente em nosso país, acreditamos que em um Estado
Democrático de Direito, que possui um sistema jurídico positivado adequado ao exercício da
cidadania, e que está inserido em uma formação social capitalista, o Bom Samaritano, neste
contexto, é todo ser humano que, orientado pelos valores ético-religiosos (verdade, amor ou
caridade e justiça e sua face solidária) – para uns mais éticos, para outros mais religiosos –
atua na dimensão assistencial - prestação de assistência em saúde, educação, assistência social
etc, que difere do assistencialismo -, atua na dimensão da promoção humana – articulação e
mobilização para o exercício de uma cidadania ativa - , e atua na dimensão da
libertação/transformação sistemática e estrutural da sociedade – implantação de instituições
anticapitalistas (socialistas), objetivando modificar ou ao menos compensar a tendência à
exclusão, à concentração e à destruição do capitalismo. Assim, entendemos que uma rede de
instituições de caridade adequada à atualidade – reportamos ao significado ético de caridade
ou amor, assim como a suas dimensões interpretadas pela organização “assistencial” da Igreja
católica denominada Cáritas (caridade assistência, caridade promoção e caridade
libertação/transformação67) - é necessária ainda hoje para a implementação dos direitos
sociais. Porém, também temos convicção de que essa rede de organizações sem fins lucrativos
de interesse social – utilizamos esta expressão como sinônimo de uma rede de ONGs68 - deve
ser direcionada pela busca de uma articulação, compatibililização e complementaridade entre
suas dimensões assistencial, promocional e libertadora/transformadora, e isto para que o
“pobre” – na linguagem atual, o excluído, o sujeito de direitos em situação de vulnerabilidade
ou risco pessoal e social – seja atendido em suas necessidades e direitos (dimensão
assistencial da caridade), seja conscientizado de sua situação e de seus direitos (dimensão
promocional da caridade) e, assim, torne-se protagonista para modificar as estruturas
excludentes, concentradoras, destrutivas e injustas do capitalismo (dimensão
libertadora/transformadora da caridade).
Finalizando, informamos que várias questões históricas particulares do Brasil serão
abordadas no item “Religião, sociedade e terceiro setor”. Dentre elas – todas envolvem a
relação entre processos histórico-religiosos e o funcionamento do setor social (terceiro setor) -
67 Com já explicitado anteriormente, este assunto será detalhado o subitem desta dissertação denominado “As lógicas do terceiro setor: assistência, promoção e transformação. 68 Esclarecemos o significado de ONGs utilizado neste dissertação no subitem: “ONGs e política de governo: a visão restrita que transforma o terceiro setor em ideologia”.
91
, destacamos: o processo envolvendo o fim do Padroado e o início da Romanização; o
processo republicano de laicização do Estado e a participação da religião na construção do
esfera pública; tipologias, por períodos históricos, das organizações do terceiro setor, de sua
lógica (assistência/caridade; promoção/cidadania; libertação/transformação/justiça social), de
sua regulação (religiosa, estatal), de seus atores sociais (Igreja, Estado, sociedade) e de seus
paradigmas. Nesta tarefa, teremos o auxílio, dentre outros, dos antropólogos Marcelo Ayres
Camurça (2001) e Paula Montero (2006), da assistente social Maria Luiza Mestriner (2001) e
da socióloga Rebecca Raposo (2003). Elucidamos, que pelo fato da socióloga avaliar questões
sob o prisma empresarial – atores sociais; paradigmas (filantropia / investimento social;
caridade / cidadania); confusão conceitual (assistência / assistencialismo) -, que envolvem
vários aspectos da dissertação, optamos por concentrar seus argumentos no subitem “A parte
‘lucrativa’ do terceiro setor: responsabilidade social empresarial, investimento social privado
e o princípio da gratuidade nas atividades econômicas” e no subitem posterior que com ele
mantém intersecção: “Caridade, assistência, assistência social, assistencialismo e cidadania:
caridade sem verdade e valor vira equivocadamente esmola”.
2.5. As Revoluções Sociais, o Estado Democrático de Direito e os Processos de Exclusão e
Inclusão Sociais: Para Além do Neoliberalismo ou os Implantes Socialistas no
Capitalismo
Quando tratamos da cidadania, abordamos ou fizemos referência a muitos dos
assuntos que serão agora explanados, e que têm como base os pensamentos de Paul Singer
(1998) expressos em sua obra Uma utopia militante: repensando o socialismo e os de Aldaíza
Sposati (2009) desenvolvidos no texto “Leituras contemporâneas da exclusão e da inclusão
social”.
Importante salientar, que a idéia de escrever este subitem decorreu do fato de que
nosso principal referencial teórico para a compreensão do objeto de pesquisa – aferição da
relação (de uma “afinidade eletiva”) entre o ethos religioso e o ethos do ativismo no setor
social – é Michael Löwy (2000) e suas proposições sobre a afinidade negativa entre a ética
católica e o capitalismo e sobre a afinidade eletiva entre a ética católica e o ativismo no setor
social.
Ora, se as proposições giram em torno do “capitalismo” e de instituições
anticapitalistas (implantes socialistas na formação social capitalista que objetivam enfrentar
e/ou compensar seus aspectos negativos) (Cf. SINGER, 1998, p. 132), nada mais óbvio do
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que buscarmos compreender o capitalismo e sua relação com o crescimento e a amplitude do
terceiro setor.
E a compreensão do capitalismo como formação social se torna relevante, na medida
em que a dimensão do terceiro setor, inclusive a relação entre suas organizações sem fins
lucrativos e o Estado, é vinculada ao estado de bem-estar social (welfare state) - uma
manifestação do ou no capitalismo dirigido -, assim como a dimensão do setor social é
vinculada à crise do welfare state, representada pela ofensiva (contra-revolução) do
neoliberalismo face ao capitalismo dirigido – destaca-se que há uma grande e subsistente
resistência a essa ofensiva neoliberal –, objetivando a redução do tamanho do Estado e do
gasto social governamental mediante a destruição do welfare state e a conseqüente
privatização dos serviços sociais.
Comecemos com as proposições de Löwy69 (2000), segundo ele baseadas e extraídas
de textos e argumentos de Max Weber, que referenciam metodologicamente o objeto de nossa
pesquisa. Mais especificamente, embora Weber não tenha feito em seus escritos70 uma
avaliação sistemática das relações entre o catolicismo e o ethos capitalista (Cf. LÖWY, 2000,
p. 35), para o autor “há um ‘subtexto’, um contra-argumento não escrito construído na própria
estrutura de A ética protestante: a Igreja Católica é um ambiente muito menos favorável – se
não completamente hostil – ao desenvolvimento do capitalismo que as seitas calvinistas e
metodistas” (Ibid., p. 35).
A primeira proposição é a seguir contextualizada e explicitada. Observe-se, que ela
envolve a tensão existente entre as religiões de salvação – destaca-se que Jesus Cristo é o
Salvador dos cristãos - e as demais atividades e estruturas do mundo, como também a tensão
existente entre a religião fraternal – destaca-se o mandamento da caridade ou do “amor ao
próximo” ensinado por Jesus, representado pela ética da fraternidade (da caridade universal,
do comunismo acósmico do amor) - e as várias esferas da sociedade, em especial a esfera
econômica (Cf. WEBER, 2002, p. 376 e 379 ss):
69 Este assunto, inclusive os motivos da tensão entre a ética soteriológica da fraternidade e o valores do mundo que explicam a tensão entre o catolicismo e o capitalismo, será detalhado especialmente nos subitens desta dissertação denominados: “Religião, ética e condução de vida: uma escolha racional” e“A ética católica e o espírito do ativismo no setor social”. 70 Conforme veremos no subitem denominado “A ética católica e o espírito do ativismo no setor social”, embora Löwy (2000) relacione suas proposições à estrutura da obra A ética protestante e o “espírito” do capitalismo, ele é explícito ao afirmar que: “Paradoxalmente, A ética é um dos textos de Weber que fala muito pouco sobre a questão. Embora o primeiro capítulo trate extensivamente das diferenças entre o desenvolvimento econômico de áreas predominantemente católicas e de áreas principalmente protestantes na Alemanha, Weber não se esforça muito para examinar os obstáculos impostos ao crescimento do capitalismo pela cultura católica” (LÖWY, 2000, p. 36). Porém, são noticiados pelo autor trechos e debates que indicam um “subtexto” na estrutura da referida obra, como também são por ele indicados vários outros textos de Weber nos quais a questão está mais explicitada.
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... Weber insinua a existência de uma aversão, ou rejeição, básica e irreconciliável, ao espírito do capitalismo, por parte da Igreja Católica (e provavelmente também por parte de algumas denominações protestantes). Poderíamos falar de um espécie de antipatia cultural – no sentido antigo, alquímico da palavra, “de falta de afinidade entre duas substâncias”. Em outras palavras, temos aqui um exata inversão da afinidade eletiva [Wahlverwandtschaft] entre a ética protestante (algumas formas dela) e o espírito do capitalismo: haveria assim, entre a ética católica e o capitalismo, uma espécie de afinidade negativa – usando este termo como Weber o faz quando fala dos “privilégios negativos” das comunidade párias (¨LÖWY, 2000, p. 40).
Já a segunda proposição é a seguir representada. Frise-se, que ela envolve por um lado
adaptações à formação social capitalista – como decorrência da permanente tensão entre a
mensagem original do amor e fraternidade universais e o impulso da preservação
institucional71 - e por outros os respectivos implantes para modificar e/ou compensar as
tendências do capitalismo à exclusão social, concentração de renda e destruição criadora:
Como o próprio Weber sugere, isso não impede uma acomodação e adaptação “realista” das instituições católicas ao sistema capitalista, particularmente na medida em que esse se torna cada vez mais poderoso; a crítica da Igreja é normalmente dirigida contra os excessos do liberalismo e não contra as bases do capitalismo. Além disso, diante de um perigo muito maior – o movimento trabalhista socialista – a Igreja não hesitou em unir-se às forças burguesas e capitalistas contra seu inimigo comum. Em geral, podemos dizer que a Igreja nunca achou que seria possível ou desejável abolir o capitalismo: seu objetivo sempre foi corrigir seus aspectos mais negativos através das ações caritativas e “sociais” do cristianismo. No entanto, profundamente enraizada na cultura católica, ainda persiste – algumas vezes escondida, outras manifesta – a aversão ética ao capitalismo, ou uma “afinidade negativa” com ele (Ibid., p. 41).
Já na “Introdução”, Paul Singer (1998) noticia que a elaboração de seu livro foi
motivada pela preocupação de reconceituar a revolução social socialista e reavaliar suas
perspectivas e possibilidades nos tempos atuais, e que esta preocupação origina-se do fracasso
da tentativa de “construir” o socialismo através da estatização dos meios de produção e da
instituição do planejamento centralizado da economia. Considerando que a essência do
71 Clodovis Boff e Jorge Pixley (1986) descrevem esta tensão permanente da seguinte forma: “Poderia parecer que uma vez obtida esta concepção da Igreja a opção preferencial pelos pobres não apresentaria dificuldades numa América Latina onde a maioria deste Povo de Deus é pobre e oprimido. No entanto, devido a uma realidade historicamente compreensível e teologicamente legítima, as igrejas são também instituições. E toda instituição necessita de estruturas de autoridade que velem pela preservação de sua unidade, pelo seu crescimento e por sua saúde institucional. Com a institucionalização do Povo de Deus abrem-se as possibilidades para as patologias do poder que ocorrem quando as autoridades deixam de funcionar para o bem do conjunto e começam a identificar esse bem com o poder e o bem-estar da própria autoridade. Assim se introduz dentro da Igreja uma tensão permanente entre sua natureza como Povo de Deus, do Deus que ama com preferência os pobres, e os impulsos de preservação não já do Povo de Deus mas da instituição ou, pior, de sua hierarquia. De maneira que a Igreja, composta em sua maioria de pobres e que se confessa representante do Deus que fez opção preferencial pelos pobres, ao tomar corpo em instituições eclesiais, descobre em seu seio tendências de preservação que a movem em sentido contrário” (BOFF e PIXLEY, 1986, p. 218).
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socialismo, como modo de produção, é a organização democrática de produção e consumo, na
qual produtores e consumidores livremente associados - sob a forma de cooperativas ou
qualquer outro nome que venham a ter estas organizações - repartem igualitariamente os ônus
e os ganhos, os deveres e os direitos, bem como considerando que o desenvolvimento de
modos de produção socialistas em formações sociais capitalistas já está ocorrendo há mais de
200 anos (Cf. SINGER, 1998, p. 9-10), o autor afirma que “o fracasso do ‘socialismo
realmente existente’ revelou que o socialismo sem aspas terá de ser construído pela livre
iniciativa dos trabalhadores em competição e contraposição ao modo de produção capitalista
dentro da mesma formação social” (Ibid., p. 9).
Neste contexto, Singer (1998) propõe a reelaboração de alguns conceitos relacionados
ao capitalismo e ao socialismo, dentre os quais e especialmente os que diferenciam a
formação social do modo de produção e os que diferenciam as revoluções sociais das
revoluções políticas.
É curioso que as acepções de revolução política e social estejam sempre associadas ao emprego da violência. Nenhuma deles cobre a noção de revolução social como transformação sistêmica das estruturas econômicas, sociais e supra-estruturais – política, jurídica e cultural - de um país ou de vários. (...) Neste livro, o tema são as duas grandes revoluções sociais em curso: a revolução capitalista e a revolução socialista. É preciso distingui-las das revoluções política comumente designadas como “burguesas” e “proletárias”. Estas últimas são episódios bem delimitados no tempo, em que é possível reconhecer o emprego genérico da violência, embora ele estivesse longe de ser essencial ao processo. (...) O que nos importa aqui é desfazer a confusão entre as revoluções políticas e as revoluções sociais. Estas últimas constituem processo de mudança entre formações sociais, cada uma das quais é caracterizada pela hegemonia de um modo de produção, que lhe empresta o nome. (Ibid., p. 17, 18 e 19).
Tendo em conta essa reelaboração conceitual, a revolução socialista já há muito em
curso – desde o início da revolução social capitalista surgem as instituição anticapitalistas,
que são sementes socialistas plantadas nos poros do capitalismo para resistir a tendências de
exclusão social, concentração de renda e “destruição criadora” da dinâmica capitalista72(Cf.
Ibid., p. 132, 114 e 118) – “não é a concretização de um projeto mas o resultado de inúmeras
lutas no plano político, social e econômico, que se estenderam por um crescente número de
nações, à medida em que a revolução capitalista foi se estendendo a novos países e
72 O autor sintetiza estes fenômenos da seguinte forma: “Para resumir, o capitalismo apresenta duas tendências que se manifestam em momentos diferentes e em função de fatores distintos, mas cujos efeitos acabam se somando em um prazo mais longo. Uma perene, é a concentração de renda e a exclusão da economia capitalista de uma parte significativa da população que vive do seu trabalho. Outra intermitente, é a destruição de empresas e empregos, cujo lugar é tomado por outras empresas mais avançadas tecnologicamente e, por isso, mais competitivas. Esta segunda tendência produz oscilações de conjuntura, que maximizam a insegurança e o desespero dos que subitamente perdem seu meio de vida” (SINGER, 1998, p. 118-119).
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continentes” (Ibid., 132). Caracterizando os implantes socialistas no capitalismo como um
processo de tentativas e erros de modificar ou compensar as tendências nocivas, o autor indica
como ações da revolução social socialistas as lutas pelos direitos políticos, pela liberdade de
organização e greve, pela legalização e regulamentação da seguridade social e do
cooperativismo; como frutos desta revolução o sufrágio universal73, o estado de bem-estar
social (welfare state), o sindicalismo e o cooperativismo (Cf. Ibid., p. 132, 133, 118); como
perspectivas futuras (possíveis frutos) das ações (dos implantes socialistas), neste momento
histórico em que o movimento sindical e o estado de bem-estar social estão em crise, os
seguintes aspectos são indicados:
É preciso investigar o potencial de expansão da democracia aos planos de micropoder na sociedade civil, o potencial das representações operárias dentro das empresas capitalistas e o potencial de expansão e desenvolvimento das economias cooperativas complexas como as dos kibutzim israelenses, da indústria cooperativa de Mondragon, no país basco, e das cooperativas de produção da chamada Terceira Itália etc. É preciso avaliar o importante movimento de cooperativas de crédito em países do terceiro mundo, chamados “bancos do povo” ou crédito solidário e as inúmeras iniciativas locais de combate ao desemprego e à destruição criadora. (Ibid., p. 133).
Passemos, agora, sob a ótica do capitalismo, a reforçar os conceitos reelaborados por
Singer (1998), quais sejam: formação social, modo de produção e revolução social:
Quando falamos de “capitalismo”, estamos nos referindo simultaneamente a um modo de produção e a uma formação social. Esta última contém vários modos de produção, dos quais o capitalista sói ser o maior e o hegemônico. Por isso, a formação social que vem se espalhando pelo mundo nos últimos 200 anos, também é chamada de “capitalismo”. (...) Um modo de produção é uma forma específica de organizar a atividade produtiva e de repartir o resultado entre os participantes. O capitalismo organiza a produção em empresas, que são propriedade privada. Os seus detentores comandam a produção, visando maximizar o lucro. (...) Na formação social capitalista há diversos outros modos de produção. Podemos enumerar os mais importantes. A produção simples de mercadorias (...) A produção pública, estatal ou privada, emprega assalariados e oferece bens ou serviços gratuitamente. Ex: ensino público, segurança pública, saúde pública etc. A produção doméstica se caracteriza pelo autoconsumo. Ela abarca as atividades produtivas realizadas no seio da família para o consumo de seus membros. A produção cooperativa é constituída por empresas de propriedade de seus trabalhadores. (...)
73 Sobre a democracia, o autor presta este importante esclarecimento: “A democracia política, por exemplo, a partir do momento em que se torna o regime político dos países capitalistas transforma-se conceitualmente em ‘democracia burguesa’. Este nome é ‘dialético’: a democracia foi conquistada pela classe operária contra a lógica do liberalismo, este sim ‘burguês’, e contra a resistência ativa e tenaz da burguesia. Não obstante, transforma-se em seu contrário quando é amalgamada ao capitalismo. A rigor, a democracia política dispensa outros adjetivos, pois tem a sua própria lógica, que se ajusta a diferentes sistemas socioeconômicos. Mas, se fosse necessário adjetivar a democracia moderna com sua origem de classe, então ela teria de ser denominada de democracia proletária e não democracia burguesa” (SINGER, 1998, p. 114-115).
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Os modos de produção funcionam lado a 1ado, intercambiando produtos e competindo entre si. (...) O modo capitalista depende portanto da produção doméstica e, também, da produção pública (educação, saúde, etc) para obter a mão-de-obra que lhe é imprescindível (Ibid., p. 137-138).
O autor finaliza sua obra, especulando sobre uma eventual nova etapa do capitalismo –
ou a primeira etapa da transição para além do capitalismo - vinculada à 3ª revolução industrial
– esta tem por centro a computação e a telemática – , que se liga às transformações da
empresa capitalista - surgimento dos conglomerados capitalistas74 - decorrentes do avanço
tecnológico, da globalização e das mudanças políticos e ideológicas - e que possibilita o
vislumbre de transformações sistêmicas do capitalismo para além do neoliberalismo em
função de um novo cenário e das adaptações necessárias às novas possíveis situações, quais
sejam: conglomerado como ente misto, que agrega características de firma mas adquire outras
de agrupamento político (palco de disputas de poder); controle dos conglomerados mediante
descentralização e autonomia das partes (por ex: franqueamento e subcontratação);
conglomerados formados por alianças e/ou contratos de parceira (firma-rede); ressurgimento
do cooperativismo e do que se chama “economia solidária”, como resposta à exclusão social
produzida pelo neoliberalismo e como alternativa viável ao capitalismo, em uma nova escala
e dinâmica, e isto caso receba apoio do movimento operário (sindicatos e partidos), inclusive
com pressões políticas para alavancar o financiamento púbico da economia solidária (Cf.
Ibid., p. 176 a 182). E dessa forma Singer (1998) conclui sua obra com um alerta:
Para além do neoliberalismo, pode-se vislumbrar transformações sistêmicas do capitalismo em gestação. Por enquanto, empresa capitalista e democracia são antípodas. Estamos diante de um dilema histórico: ou a liberdade do capital destrói a democracia ou esta penetra nas empresas e destrói a liberdade do capital. (Ibid., p. 182).
Ora, se a nova etapa do capitalismo vinculada à 3ª revolução industrial é uma
especulação ou uma esperança, as outra “etapas” a seguir indicadas são realidades que muito
interferem na compreensão de nosso objeto de pesquisa: capitalismo concorrencial,
capitalismo monopolista, capitalismo dirigido e neoliberalismo. Destacamos que o autor não
trata como etapa – sem aspas - o neoliberalismo, pois ele envolve modificações supra-
74 Sobre o processo denominado conglomeração, o autor presta os seguintes esclarecimentos: “A 3ª revolução industrial, que tem a computação e a telemática por centro, está contribuindo para tornar possível manejar estruturas empresariais cada vez mais vastas. É por isso que as maiores organizações capitalistas em cada setor estão conseguindo se fundir para formar organizações ainda maiores. Mas, como vimos, este processo de centralização de capital esbarra num limite: a preservação da concorrência. Estando impedidas de crescer por agregação em cada mercado além de um limite convencionado, as maiores organizações tenderão a se expandir, invadindo novos mercados. Este processo se chama conglomeração” (SINGER, 1998, p. 179-180).
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estruturais que não se generalizam – esses aspectos serão abaixo detalhados, quando tratarmos
do dirigismo e do neoliberalismo -, pois apesar da ofensiva neoliberal, os governos não
abandonam sua responsabilidade de regular a oferta da moeda e a taxa cambial e, ainda, por
que não é pacífica a idéia de que o aumento do desemprego e a falta de crescimentos não
devem ser politizados (Cf. Ibid., p. 176), enfim:
Por tudo isso, não tem sentido falar numa “etapa neoliberal do capitalismo”. Na realidade, o neoliberalismo não passa de um reação da classe capitalista ao impasse da estagflação.75 Esta resultou do descompasso entre o poder que a classe trabalhadora adquiriu de impor aumentos de salários e a não-responsabilidade dos trabalhadores pela condução da economia. O pleno emprego dos anos dourados deu ao operariado poder de pressão por ganhos pecuniários, mas não deu informações confiáveis sobre o real estado da economia e sobre a capacidade das empresas absorverem os custos decorrentes dos aumentos reivindicados. O neoliberalismo “resolveu” o problema, eliminando o poder de pressão dos trabalhadores (...) (Ibid., p. 176-177).
Tendo como ponto em comum - fator este que os generalizou em nível mundial – o
fato de se originarem de transformações infra-estruturais, indicamos as seguintes etapas da
história do capitalismo (Cf. Ibid., p. 178): o capitalismo concorrencial – século XVIII: 1769
(invenção da máquina de fiar) e 1785 (construção do primeiro tear mecânico) - , caracterizado
pela “invenção da maquinofatura pela 1ª revolução industrial, que criou a fábrica e a empresa
comandada pelos donos” (Ibid., p. 178); o capitalismo monopolista – a partir de 1870 75 Sobre o contexto do surgimento e a caracterização da “estagflação”, que inclusive envolvem o keynesianismo e o monetarismo de Milton Friedman, o autor presta os seguintes esclarecimentos: “Mas, nos anos setenta, foi o keynesianismo que entrou em crise profunda. De acordo com Keynes, inflação sói ser manifestação de demanda efetiva excessiva em relação à oferta agregada de bens e serviços. Portanto, para conter a inflação, cumpre reduzir a demanda mediante corte de despesa pública, aumento de arrecadação fiscal e contenção da oferta monetária. Estava claro que estas medidas eram recessivas. Para combater a inflação, o governo deveria lançar deliberadamente a economia em recessão, até que o excesso de oferta paralisasse a subida de preços. A receita foi devidamente aplicada, mas o seu resultado foi a “estagflação”: a diminuição da demanda efetiva reduzia o nível de atividade e do emprego, mas os preços e os salários continuavam a subir. Era algo novo na história da economia de mercado. Nos principais países, os preços eram impulsionados por um espiral preços-salários, que se mostrava imune à queda da atividade e ao aumento do desemprego. Isso acontecia porque os trabalhadores não abriam mão de aumentos salariais, inclusive para compensar o aumento do custo de vida, porque estavam acostumados à situação de pleno emprego. Perder o emprego não era um desgraça, porque não levava muito tempo para encontrar outro e, durante o período de inatividade, o seguro-desemprego proporcionava um rendimento apenas um pouco menor que o salário. (...) Começou a ficar claro para os governos e as cúpulas empresariais que as pressões inflacionárias decorrentes dos conflitos distributivos – que envolviam não apenas operários e empregadores mas também pequenos agricultores, regiões deprimidas, grupos sociais marginalizados etc. – só poderiam ser eliminadas de uma forma favorável aos interesses capitalistas se em lugar do pleno emprego, fosse restabelecido um ambiente de “sadia competição” no mercado de trabalho, ou seja, se fosse reconstituído ponderável exército industrial de reserva. Esta nova postura correspondia exatamente ao que vinham pregando os liberais remanescentes, que não se cansavam de acusar governos keynesianos de promover a inflação. Miton Friedman, o papa do monetarismo, tinha acabado de “demonstrar” que as tentativas de reduzir o desemprego abaixo do seu nível “natural” só tinham êxito temporário, enquanto a demanda efetiva crescia acima do seu nível de equilíbrio, mas a inevitável subida dos preços ainda não tinha se manifestado. Para Friedman, o compromisso com o pleno emprego não passava de formidável equívoco, do qual só poderia resultar inflação e inflação crônica e crescente” (SINGER, 1998, p. 166,167 e 168).
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(produção e distribuição em massa, em função da unificação de vastos mercados continentais)
- , caracterizado pela “invenção da produção em massa, pela 2ª revolução industrial, que
suscitou a multiempresa, gerida por uma tecnoestrutura profissional” (Ibid., p. 178).
Já “a revolução keynesiana, que trouxe a revolução do dirigismo a partir dos 1930,
como a contra-revolução monetarista, que ensejou a contra revolução neoliberal, a partir de
1980, são mudanças sistêmicas na supra-estrutura” (Ibid., p. 176). Assim, tanto a etapa do
capitalismo dirigido – 1929/33 (“quebra” da Bolsa de Nova Iorque e crise), 1934/38
(depressão), 1939/1945 (2ª guerra mundial) e 1945/73 (anos dourados do capitalismo dirigido,
democrático e progressista) -, quanto a “etapa” do neoliberalismo – segunda metade de 1970
(início), 1980 (hegemonia) e 1990 (inspira contra-revolução institucional) -, por
caracterizarem-se como modificações supra-estruturais – redefiniram o relacionamento do
modo de produção capitalista com o estado e a produção estatal – elas “não se generalizaram,
porque esbarram com resistências maiores ou menores em diferentes países. Como vimos, o
dirigismo foi praticado em proporções muito diversas e o mesmo vale para o neoliberalismo”
(Ibid., p. 176).
Pelo fato do crescimento e da dimensão do terceiro setor serem por muitos vinculados
à crise do estado de bem-estar social, decorrente da ofensiva neoliberal, passaremos, agora, a
detalhar essas questões. Sobre o capitalismo dirigido e suas diferenças no tocante ao
capitalismo concorrencial e ao monopólico, Paul Singer (1998) assim se manifesta:
O principal vencedor da 2ª guerra mundial foram os Estados Unidos e sua vitória representou a difusão mundial da revolução rooseveltiana. O capitalismo dirigido, após 1945, adquiriu um sentido democrático e progressista, consubstanciado pelo compromisso de todos os governos – inscrito em leis e nas novas constituições – de manter o pleno emprego. Este compromisso equivaleu a um pacto social, pelo qual se reafirmou a democracia, adicionando-lhe a responsabilidade assumida pelo estado de assegurar a todos os cidadãos trabalho e condições aceitáveis de vida. O compromisso do pleno emprego e do que se chamou depois de estado de bem-estar social foi correspondido, no plano cultural, por profunda reviravolta na ciência econômica: a revolução keynesiana. (...) O capitalismo dirigido não surgiu de transformações infra-estruturais, como foi o caso do capitalismo concorrencial e do monopólico, mas de mudanças revolucionárias na supra-estrutura. Ela resulta de um novo relacionamento entre estado e mercado. No liberalismo, vigente a partir de meados do século XIX, o estado tinha por objetivo proteger o mercado, impedir que a monopolização destruísse a concorrência inteiramente e fazer com que as classes sociais, particularmente a operária, aceitassem pacificamente o “veredicto do mercado”, qualquer que ele fosse. No dirigismo, vigente a partir do segundo terço deste século, o estado tinha por objetivo guiar o mercado, induzindo os agentes econômicos a adotar condutas que resultassem em pleno aproveitamento de recursos (Ibid., p. 158-159).
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Já no tocante ao neoliberalismo e sua ofensiva contra o estado de bem-estar social
(welfare state), o autor posiciona-se, no sentido de que:
A estabilização dos preços tornou-se a alavanca com a qual o neoliberalismo pretende levantar o mundo. Ele conseguiu convencer a opinião pública de que estabilidade e pleno emprego são incompatíveis. Mas, ele foi além. Como a estabilização – neoliberal ou Keynesiana – reduz o crescimento da economia, os neoliberais precisaram encontrar um culpado pelas sucessivas recessões. Este passou a ser o movimento sindical (o “poder sindical”) e o estado de bem-estar social. São teses perfeitamente convincentes para capitalistas e executivos de multiempresas. (...) Os neoliberais nos governos lançaram-se numa ofensiva para destruir ou, no mínimo, privatizar o estado de bem-estar social. O argumento é que é preciso reduzir o tamanho do estado, transferindo ao mercado de seguros o programa da seguridade social de responsabilidade pública. As famosas “reformas” institucionais do sistema de previdência, do sistema de saúde pública e do sistema de ensino público vão todos neste mesmo sentido. O cerne da contra-revolução neoliberal é reduzir a intervenção do estado na economia (Ibid., p. 170-171).
Indicando no Brasil como manifestações explicitas do neoliberalismo, dos governos
Collor e Fernando Henrique, a eliminação do controle de preços dos produtos básicos de
consumo, a liberalização da importação, revogação das medidas de favorecimentos dos
capitais nacionais e a privatização da produção estatal – essas situações demonstram que o
modo capitalista de produção deixa de ser orientado e tutelado pelo estado e que há um
sistemático fomento para sua integração ao grande capital global – (Cf. Ibid., p. 171-172),
ressaltando que, embora venham crescendo visivelmente resistências ao neoliberalismo tanto
na Europa quanto na América Latina, “uma volta pura e simples ao capitalismo dirigido dos
anos dourados também não é possível. Para tanto, uma retomada do controle estatal sobre a
movimentação internacional dos capitais privados seria indispensável. Além disse, seria
preciso encontrar um solução não reacionária ao impasse da ‘estagflação’” (Ibid., 176), o
autor deixa claro que o processo de ofensivas e contra-ofensivas é dinâmico e que existe
fluidez entre manifestações concretas do neoliberalismo e do dirigismo – fruto de decisões
político-governamentais -, em um mesmo país:
Apesar de tudo, a contra-revolução neoliberal está longe de ter encerrado a etapa do capitalismo dirigido. Isso, por vários motivos. O primeiro é que o neoliberalismo encontra resistência por toda parte considerável. Dentro da regras da democracia, ele é obrigado a negociar. A “flexibilização” dos direitos trabalhistas e a privatização dos serviços sociais estão longe de serem universais. Onde estas mudanças foram realizadas, os resultados prometidos raramente foram logrados. A eliminação do poder sindical e dos direitos dos trabalhadores não ajudou a reduzir o desemprego. A privatização dos serviços sociais não melhorou a qualidade dos mesmos. Mas a segunda ordem de motivos para o êxito mui limitado das reformas neoliberais é ainda mais importante. Trata-se do fato de que o programa neoliberal é incapaz de promover o crescimento econômico. Na realidade, ele sequer o pretende. Para os
100
liberais, o crescimento econômico deve ser determinado pelos mercados, sem interferência do estado. (...) ... É que o livre funcionamento dos mercados tende a concentrar a renda e o faz com mais vigor, à medida que os instrumentos fiscais de redistribuição – como os salários mínimos, os subsídios ao consumo dos pobres, os impostos progressivos – são revogados. Os dados da distribuição da renda em todos os países em que se deu a contra-revolução neoliberal mostram inequivocadamente o aumento do número de pobres e da distância entre estes e os ricos. A concentração de renda reduz a propensão a consumir (Ibid., p. 172-173).
E fazemos, agora, a seguinte pergunta: O que a religião – os valores ético-religiosos,
sua linguagem simbólica – representam em uma formação social capitalista, na qual existe
um embate entre dirigismo e neoliberalismo, ou seja, um embate entre as tendências do
capitalismo à exclusão social, concentração de renda e destruição criadora e os implantes
socialistas que objetivam modificar e/ou compensar essas tendência nocivas?76
Como síntese de vários de seus argumentos trazidos para esta dissertação, a resposta
de Paul Singer (1998) poderia ser a seguinte:
A opção pelo cooperativismo ou pelo sindicalismo ou pela militância partidária de esquerda é o oposto da opção pelo máximo bem-estar ou utilidade individual. Esta última não surge espontaneamente, como emanação de uma natureza humana individualista. Ela é cotidianamente reafirmada e negada: reafirmada pela propaganda comercial e negada pelas homilias da religião, reafirmada pela cultura do consumo e do prazer e negada pela cultura da responsabilidade pelo próximo, da exigência da solidariedade e do desprendimento77. Nenhuma sociedade – nem mesmo a capitalista – poderia funcionar se todos os seus membros se comportassem com o homo oeconomicus, um ser inteiramente racional e egoísta, cuja única preocupação é o seu próprio bem-estar. Por isso, mesmo no capitalismo os implantes socialistas desempenham um papel positivo ao difundir valores essenciais ao convívio em sociedade (Ibid., p. 131).
Já a possível resposta de Aldaíza Sposati (2009) é extraída de seu texto sobre a
complexidade e a inter-relação dos processos de exclusão e inclusão sociais – o contínuo da
exclusão-inclusão social -, que de certa forma também sintetiza seus argumentos:
Diferentemente do exame da exclusão, em que se pode falar, ainda que perversamente, da presença da lógica excludente, ao referir a inclusão social, a não ser por orientações religiosas, não se pode falar de um lógica includente a presidir a sociedade. Nesse
76 Os grifos são nossos. Aproveitamos para elucidar que em todas as citações que contém grifos, eles o são das fontes ou dos autores citados. Desta forma, pouquíssimos grifos são nossos nesta dissertação. 77 Este assunto será detalhado, especialmente no subitem desta dissertação denominado “Religião no processo de reecantamento da vida e transformação social”. Sob os argumentos Jung Mo Sung - e inúmeros outros pensadores por ele referidos - trataremos de como o encantamento do consumo inspirado e fomentado pela lógica capitalista desencantou a vida, e de como nossa condição humana, limites, possibilidades e desejos de transcendência que se expressam em linguagens simbólico-religiosas podem nos conduzir a um reencantamento da vida.
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sentido, fala-se em civilidade, solidariedade, que são ao mesmo tempo valores e ética de conduta. Aqueles que examinam criticamente a sociedade do capital, fundada na desigualdade, afirmarão de imediato a incompatibilidade entre o alcance da inclusão social com o processo de acumulação. A ética necessária para manter a perspectiva includente não encontraria, portanto, viabilidade no corolário dos princípios liberais capitalistas. A ética includente tem base solidária fundada na igualdade e na equidade, enquanto a ética do capital tem base na diferença. Outros retrucarão com as iniciativas de filantropia, voluntariado e solidariedade como parte da ética capitalista includente78. (SPOSATI, 2009, p. 312-313).
Como não pretendemos colocar palavras na boca de quem não as disse explicitamente,
deixamos claro, por um lado, que os autores acima não enfatizaram os fatores religiosos em
suas análises. Entretanto, por outro lado, eles expressamente indicam e reconhecem a
existência da articulação religião-ética-condução de vida, e que ela é um elemento de
contraponto à lógica individualistas e excludente do capitalismo.
Outrossim, voltando às argumentações de Sposati, destacamos, a seguir, alguns de
seus posicionamentos que a levaram as suas conclusões acima noticiadas:
a) Ao final do século XX, três situações são determinantes para o resgate da exclusão
– como pano de fundo, encontra-se o embate entre o princípio de welfare state (estado
de bem-estar social) e o modelo neoliberal -, quais sejam: uma econômica: o
desemprego produzido pelo novo modelo produtivo, que gerou os excluídos da
qualificação tecnológica ou os excluídos pelas máquinas; uma política: a retração do
Estado em dar respostas e afiançar proteção, em função do novo modelo – neoliberal –
de Estado mínimo, que representou o “desmanche social”, isto é, redução dos
compromissos estatais com as provisões sociais do welfare state, gerando os excluídos
do acesso à proteção social pela legislação social do trabalho e pelas políticas públicas
sociais; uma social: a busca de equidade, de heterogeneidade, dos direitos humanos
difusos porque atendem a minorias, uma vez que a luta pelo reconhecimento da
heterogeneidade amplia a massa dos apartados (Cf. Ibid., p. 303, 304 e 306);
b) A exclusão resulta de intervenção humana que reduz, impede, restringe o outro em
seu acesso, pois ser ou estar excluído é resultado da vontade do outro e não da vontade
própria (Cf. Ibid., 306 e 317). “Evidentemente que, em uma sociedade de direitos, o
que está sendo registrado pela presença da exclusão social é a conduta voluntária pelo 78 Com esta última frase, e os conseqüentes comentários, iniciaremos o próximo subitem deste dissertação denominado: “A parte ‘lucrativa’ do terceiro setor: responsabilidade social empresarial e investimento social privado”.
102
não direito ou pelo seqüestro do direito à igualdade humana. Nesse sentido, para além
de uma desigualdade, uma incivilidade” (Ibid., p. 306);
c) Para além da dimensão da lógica excludente da sociedade do capital, outras atitudes
sociais fazem avançar a exclusão social para novos planos de vida. Por exemplo:
questão ambiental, exclusão ante a qualidade de vida, o meio como fator de exclusão;
questões étnicas, relacionando aspectos da cidadania e da migração; questões
religiosas, envolvendo liberdade e tolerância ante a forte presença do islamismo num
mundo antes dividido entre católicos e protestantes etc (Cf. Ibid., 306, 309);
d) “O relativismo da inclusão social aqui defendido, bem como a relação intrínseca
entre exclusão e inclusão, faz propor que uma e outra sejam sempre parte da mesma
análise: a exclusão ante a inclusão e vice-versa, a inclusão ante a exclusão” (Ibid., p.
316-317);
e) “A fluidez entre exclusão/inclusão social pela ausência de paradigma/padrão de
inclusão social permite uma permeabilidade interpretativa desde o uso banal de uma e
outra até sua capacidade crítica ou esperança de alcance de igualdade e da equidade”
(Ibid., p. 317)
f) “Confrontar a exclusão na sua relação com a inclusão é colocar o debate no patamar
ético-político, como uma questão de justiça social” (Ibid., p. 322). A autora, também
noticia que:
Avança-se para um novo elemento que tem projetado fortemente esse discussão para o campo da ética de um ordenamento social. Trata-se do suposto de que há na sociedade um movimento de busca do que é bom e desejável para todos os homens. Esse campo flui para um sentido de igualdade entre os homens ou de, pelo menos, um dado patamar de igualdade, abaixo e cima do qual estariam as iniquidades, injustiças e desigualdades (Ibid., p. 322).
Finalizando este subitem, e considerando tudo o até aqui exposto, a título provocativo
e em forma de perguntas – a idéia é aguçar o leitor a reflexões – deixamos os seguintes
questionamentos – outros já foram feitos, outros virão, e na medida do possível serão
acompanhados de nossas considerações e conclusões.
103
•••• Organizações do terceiro setor são meros instrumentos de política de governo de
Estados neoliberais, que objetivam destruir o estado de bem-estar social (welfare
state)?
•••• O neoliberalismo é uma realidade que se manifesta da mesma forma e dimensão
em todos os países, e assim é inevitável que suas estratégias de redução do Estado vão
privatizar os serviços sociais sem qualquer resistência?
•••• Nossa Constituição Federal Cidadã, e suas expressas determinações sobre o dever
do Estado implementar os direitos sociais (saúde, educação, assistência social etc), não
é uma resistência à privatização dos serviços sociais?
•••• As inúmeras disposições constitucionais cidadãs (direitos individuais, sociais e
políticos) que responsabilizam o poder público – com integração e complementaridade
das organizações do terceiro setor – na implementação dos direitos sociais, não nos
caracterizariam como um Estado Democrático de Direito mais próximo do perfil do
capitalismo dirigido do que do perfil neoliberal?
•••• No plano da efetiva realização dos direitos – não apenas no plano de um sistema
jurídico positivado - nosso país já viveu o estado de bem-estar social (welfare state)?
•••• O surgimento de organizações do terceiro setor está vinculado a políticas de
governo (pressões de cima), ou elas nascem de processos autônomos - iniciativas de
âmbito privado envolvendo interesse social – que também sofrem pressões de baixo
(movimentos espontâneos pela melhoria de condições de vida e pela busca de direitos)
e externas (igrejas, ongs internacionais, agências oficiais de fomento etc)?
•••• A produção pública – oferecimento de bens e serviços gratuitamente – realizada
pelo Estado através de repasse de recursos públicos a organizações do terceiro setor
com finalidades públicas, por meio de acordo públicos (convênios, termos de parceria,
contratos de gestão etc), representa uma privatização dos serviços sociais?
•••• Implantes socialistas na formação social capitalista, objetivando combater e/ou
compensar a dinâmica capitalista da exclusão, concentração e destruição, não são
muitas vezes manifestados por meio de organizações do terceiro setor?
•••• Por que, quando tratamos de processos de exclusão e inclusão, a articulação
religião-ética-condução de vida surge como um elemento de contraponto à lógica
individualista e excludente do capitalismo, e isto inclusive na argumentação de
pesquisadores de várias áreas e sem vinculação religiosa?
104
3) SABER DO QUE SE FALA SEMPRE AJUDA: ESCLARECENDO CONCEITOS,
SITUAÇÕES E CONFUSÕES79
3.1. A Parte “Lucrativa” do Terceiro Setor: Responsabilidade Social Empresarial,
Investimento Social Privado e o Princípio da Gratuidade na Atividade Econômica80
Como havíamos prometido, começaremos este subitem indicando novamente algumas
colocações de Aldaíza Sposati (2009) que, diga-se, estão em consonância com as
considerações sob o prisma econômico desenvolvidas por Paul Singer (1998) no subitem
acima81. Indicando a incompatibilidade entre a inclusão social – a ética includente tem base
solidária fundada na igualdade e eqüidade – e a lógica excludente dos princípios liberais
capitalistas – a ética do capital tem base na diferença e a sociedade do capital é fundada na
desigualdade decorrente do processo de acumulação (Cf. SPOSATI, 2009, p. 312-313) –, a
autora noticia que “outros retrucarão com as iniciativas de filantropia, voluntariado e
solidariedade como parte da ética capitalista includente” (Ibid., p. 313).
Entendo os “outros que retrucam” e que “enxergam ou imaginam sinais de um lógica
includente no capitalismo”, como todos aqueles que são mais conduzidos por modismos ou
ideologias do que por questionamentos pautados em dados concretos e em pesquisas
científicas. Ora, como já fartamente demonstrado e enfatizado, a lógica capitalista é
excludente! Ações e atitudes de filantropia, voluntariado e solidariedade no âmbito da
empresa privada tipo capitalista - do modo de produção capitalista – são atitudes que
objetivam compensar as tendências nocivas da dinâmica capitalista, representadas pela
exclusão social, concentração de renda e “destruição criadora”.
Tais questões até aqui abordadas não se contradizem – pelo contrário, justificam a
necessidade de alterações em função das tendências nocivas, agravadas por desvios e
disfunções, da lógica de mercado capitalista – com as evidências de estarmos em um processo
79 Esclarecemos o leitor sobre a correlação entre os subitens, especialmente sobre a nítida intersecção entre o subitem “3.1. A parte ‘lucrativa’ do terceiro setor...” e o subitem “3.2. Caridade, assistência, assistência social, assistencialismo e cidadania...”. 80 Parte deste subitem tem como base texto com título similar “Responsabilidade social empresarial e investimento social: teorias. definições, evoluções e desafios que já fazem parte do dia-a-dia do setor privado”, escrito anteriormente pelo autor desta dissertação e já publicado conforme discriminado na “Bibliografia”. Esclarecemos que várias exclusões, inclusões e modificação – especialmente para trazer ao leitor elementos que possibilitem um visão mais aprofundada e crítica - foram realizadas no texto original para corrigi-lo e adaptá-lo a esse trabalho de pesquisa. 81 O subitem referido é assim denominado: “As revoluções sociais, o estado democrático de direito e os processos de exclusão e inclusão sociais: para além do neoliberalismo ou os implantes socialistas no capitalismo”.
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histórico que nos conduza a uma eventual nova etapa do capitalismo – a primeira etapa da
transição para além do capitalismo82 - que requer “profundas mudanças inclusive no modo de
conceber a empresa” 83 (BENTO XVI, 2009, p. 45)84, inclusive porque “o objetivo exclusivo
de lucro, quando mal produzido e sem ter como fim último o bem comum, arrisca-se a
destruir riqueza e criar pobreza” (Ibid., p. 24) e, ainda, porque “a atividade econômica não
pode resolver todos os problemas sociais pela simples extensão da lógica mercantil... é causa
de graves desequilíbrios separar o agir econômico – ao qual competiria apenas produzir
riqueza – do agir político -, cuja função seria buscar a justiça mediante a redistribuição”
(Ibid., p. 42).
Esclarecendo que além das duas tipologias de empresas – empresas que têm por
finalidade o lucro (profit) e organizações que não buscam o lucro (non profit) -, nas últimas
décadas entre essas tipologias surgiu uma área intermediária mais ampla e complexa do que o
denominado terceiro setor85 – também envolve o privado e o público, porém o fato de
82 Essa tendência, que já foi explicitada nesta dissertação, é argumentada por Paul Singer (1998) e, segundo ele, decorre de implantes socialistas na formação social capitalistas, caracterizados pelo potencial de expansão da democracia aos planos de micropoder na sociedade civil, pelo potencial das representações operárias dentro das empresas capitalistas e, ainda, pelo potencial de expansão e desenvolvimento – em nova escala e dinâmica - das economias cooperativas complexas, do que se chamam “economia solidária” e “bancos do povo” ou crédito solidário e de inúmeras iniciativas locais de combate ao desemprego e à destruição criadora, como alternativa viável ao capitalismo. 83 Embora o item denominado “A relação entre o ethos religioso e o ethos do ativismo no setor social: ‘afinidades eletivas’ entre a ética católica e o ativismo no setor social” destine-se à questões envolvendo a doutrina social da Igreja Católica, também indicaremos alguns posicionamentos da doutrina social relacionados à ética, à atividade econômica, ao espírito empresarial, ao terceiro setor etc, especialmente extraídos da recente carta encíclica Caritas in veritate – sobre o desenvolvimento humano integral na caridade e na verdade, na qual o papa Bento XVI faz consideração sobre alguns aspectos da doutrina social. 84 Os grifos são autor. Como este subitem contém vários grifos, aproveitamos para reafirmar que em todas as citações que contém grifos, eles o são das fontes ou dos autores citados. Desta forma, pouquíssimos grifos são nossos nesta dissertação. 85 Sobre esta nova e complexa realidade mais ampla do que um “terceiro setor”, o papa Bento XVI presta os seguintes esclarecimentos: “Considerando as temáticas referentes à relação entre empresa e ética e também a evolução que o sistema produtivo está realizando, parece que a distinção utilizada até agora entre empresas que tem por finalidade o lucro (profit) e organizações que não buscam o lucro (non profit) já não é capaz de dar cabalmente conta da realidade, nem de orientar eficazmente o futuro. Nestas últimas décadas foi surgindo entre as duas tipologias de empresas uma ampla área intermédia. Esta é constituída por empresas tradicionais mas que subscrevem pactos de ajuda aos países atrasados, por fundações que são expressão de empresas individuais, por grupos de empresas que se propõem objetivos de utilidade social, pelo mundo diversificado dos sujeitos da chamada economia civil ou de comunhão. Não se trata apenas de um “terceiro setor”, mas de uma nova e ampla realidade complexa que envolve o privado e o público e que não exclui o lucro mas considera-o como instrumento para realizar finalidades humanas e sociais. O fato de tais empresas distribuírem ou não os ganhos ou de assumirem uma ou outra das configurações previstas pelas normas jurídicas torna-se secundário em relação à sua disponibilidade de conceber o lucro como um instrumento para alcançar finalidades de humanização do mercado e da sociedade. É desejável que estas novas formas de empresa também encontrem em todos os países adequada configuração jurídica e fiscal. Sem nada tirar à importância e utilidade econômica e social das formas tradicionais de empresa, fazem evoluir o sistema para uma assunção mais clara e perfeita do deveres por parte dos sujeitos econômicos. E não só... A própria pluralidade das formas institucionais de empresa gera um mercado mais humano e simultaneamente mais competitivo” (BENTO XVI, 2009, p. 55). Esta concepção, conforme indicado no item desta dissertação denominado “Conceitos, características, números e desacordos no terceiros setor”, aproxima-se da definição de terceiro setor da corrente européia, que o identifica
106
distribuir ou não o lucro e de assumir uma ou outra das configurações jurídicas previstas,
torna-se secundário em face do objetivo de conceber o lucro para finalidades de humanização
do mercado e da sociedade –, o papa Bento XVI em sua recente carta encíclica Caritas in
veritate – sobre o desenvolvimento humano integral na caridade e na verdade, que trata de
alguns posicionamentos da doutrina social da Igreja Católica86, explicita de forma categórica a
tendência e necessidade do espírito empresarial assumir um significado polivalente, inclusive
em função de uma série de motivações metaeconômicas que questionam o monopólio dos
âmbitos de influência do binômio mercado-Estado, representados pela lógica do mercado e
pela lógica de Estado e que nos habituou a pensar exclusivamente, por um lado, no
empresário privado de tipo capitalista, e por outro lado, no diretor estatal.
Dentro do mesmo tema, é útil observar que o espírito empresarial tem e deve assumir cada vez mais, um significado polivalente. A longa prevalência do binômio mercado-Estado habituou-nos a pensar exclusivamente, por um lado, no empresário privado de tipo capitalista e, por outro, no diretor estatal. Na realidade, o espírito empresarial deve ser entendido de modo articulado, como se depreende de um séria de motivações metaeconômicas. O espírito empresarial, antes de ter significado profissional, possui um significado humano. (...) Precisamente para dar resposta às exigências e à dignidade de quem trabalha e às necessidades da sociedade é que existem vários tipos de empresa, muito além da simples distinção entre “privado” e “público”. Cada uma requer e exprime um espírito empresarial específico. A fim de realizar uma economia que, num futuro próximo, saiba colocar-se a serviço do bem comum nacional e mundial, convém ter em conta este significado amplo de espírito empresarial. Tal concepção mais ampla favorece o intercâmbio e a formação recíproca entre as diversas tipologias de empresariado, com transferências de competências do mundo sem lucro para aquele com lucro e vice-versa, do setor público para o âmbito próprio da sociedade civil, do mundo as economias avançadas para aquele dos países em vias de desenvolvimento (BENTO XVI, 2009, p. 47-48).
Dando continuidade à perspectiva acima que, ao questionar a tradicional figura do
empresário privado do tipo capitalista por meio de uma concepção ampla do significado do
espírito empresarial, demonstra em certa medida a afinidade negativa entre ética católica e
capitalismo e, por sua vez, em grande medida a afinidade eletiva entre a ética católica e o
ativismo no setor social, passamos agora a alguns argumentos do papa Bento XVI que
destacam a importância do princípio da gratuidade nas atividades econômicas87 e
com a economia social, nos termos colocados por Luiz Carlos Merege (2001) quando tratamos das “Particularidades das cooperativas”. 86“A doutrina social da Igreja constitui, na realidade, uma difícil síntese entre a firmeza na fidelidade à revelação e à tradição, e a flexibilidade diante dos ‘sinais dos tempos’. Isto explica certas hesitações e imprecisões no corpo doutrinal e, portanto, exige uma leitura que se prenda mais ao espírito do que à letra” (VOS e VERVIER, 1995, p. 70) 87 “O grande desafio que temos diante de nós (...) é mostrar, em nível tanto de pensamentos como de comportamentos, que não só não podem ser transcurados ou atenuados os princípios tradicionais da ética social, como a transparência, a honestidade e a responsabilidade, mas também que, nas relações comerciais, o princípio
107
demonstram, mais do que a função, a essência da sociedade civil e de suas organizações – do
terceiro setor, do setor social –, como fértil terreno para a manifestação da gratuidade e
fraternidade – e dos outros princípios e valores ético-religiosos - necessárias à convivência
harmônica entre lógica do mercado e lógica do Estado, entre privado e público, enfim, entre
os diferentes e iguais seres humanos.
Meu antecessor, João Paulo II (...) destacou a necessidade de um sistema com três sujeitos: mercado, Estado e a sociedade civil. Ele tinha identificado na sociedade civil o âmbito mais apropriado para uma economia da gratuidade e da fraternidade, mas sem pretender negá-la nos outros dois âmbitos. Hoje podemos dizer que a vida econômica deve ser entendida como uma realidade com várias dimensões: em todas deve estar presente, embora em medida diversa e com modalidades específicas, o aspecto da reciprocidade fraterna. Na época da globalização a atividade econômica não pode prescindir da gratuidade, que difunde e alimenta a solidariedade e a responsabilidade pela justiça e o bem comum, em seus diversos sujeitos e atores.(...) Quando a lógica do mercado e a lógica do Estado se põem de acordo entre si para continuar no monopólio dos respectivos âmbitos de influência, com o passar do tempo definha a solidariedade nas relações entre os cidadãos, a participação e a adesão, o serviço gratuito, que são realidades diversas do “dar para ter”, próprio da lógica da transação, e do “dar por dever”, próprio da lógica dos comportamentos públicos impostos por lei do Estado. A vitória sobre o subdesenvolvimento exige que se atue não só sobre a melhoria das transações fundadas sobre o intercâmbio, nem apenas sobre as transferências das estruturas assistenciais de natureza pública, mas sobretudo sobre a progressiva abertura, em contexto mundial, para formas de atividade econômica caracterizadas por quotas de gratuidade e de comunhão. O binômio exclusive mercado-Estado corrói a sociabilidade, enquanto as formas econômicas solidárias, que encontram seu melhor terreno na sociedade civil sem contudo se reduzir a ela, criam sociabilidade88. O mercado da gratuidade não existe, tal como não se podem estabelecer por lei comportamentos gratuitos, e todavia tanto o mercado como a política precisam de pessoas abertas ao dom recíproco (BENTO XVI, 2009, p. 44-45).
Feitas essas considerações iniciais, passemos à responsabilidade e investimento sociais
empresariais, sem antes ratificar que junto com as organizações da sociedade civil sem fins
lucrativos de interesse social – aqui também se incluem os “braços sociais” das empresas,
constituídos sob a forma jurídica de fundações privadas e associações; essas últimas
normalmente adotam em seus nomes a palavra “instituto”-, também ocupam o espaço
denominado terceiro setor os projetos, ações e atividades de interesse social desenvolvidas por
empresas e as alianças (parcerias) entre empresas, sociedade civil e poder público com o
objetivo de promover o desenvolvimento social. de gratuidade e a lógica do dom como expressão da fraternidade podem e devem encontrar lugar dentro da atividade econômica normal. Isto é uma exigência do homem no tempo atual, mas também da própria razão econômica. Trata-se de uma exigência simultaneamente da caridade e da verdade (BENTO XVI, 2009, p. 42-43). 88 Remetemos o leitor ao subitem desta dissertação denominado “Religião e construção da esfera pública não-estatal ou esfera privada com âmbito público”, no qual Marcelo A. Camurça (2005), indicando como fonte as idéias de Jaques Godbout, argumenta sobre a influência da caridade na constituição da sociabilidade brasileira.
108
Segundo Fernanda Gabriela Borger (2003)89, na busca de uma definição da
responsabilidade social empresarial (RSE), as seguintes questões devem ser respondidas:
Quais são as responsabilidades de uma empresa em relação à sociedade? Qual é o limite
destas responsabilidades?
Para responder às questões acima, a autora destaca algumas teorias90 sobre a RSE:
a) Modelo neoclássico da teoria da firma, que divide a organização da sociedade em
três esferas com funções específicas, na qual a função política compete às
organizações políticas, a função social compete ao governo e a função econômica aos
negócios; e que limita a responsabilidade das empresas à maximização dos lucros e a
obedecer às leis;
b) Pirâmide de responsabilidade empresarial que, em última análise, destaca quatro
dimensões que compõem a RSE, quais sejam: responsabilidade econômica (ser
lucrativo, obter lucros), responsabilidade legal (obedecer às leis), responsabilidade
ética (integrar valores essenciais – honestidade, confiança, respeito e justiça – em suas
políticas, práticas e no processo de tomada de decisões, ou seja, fazer o que é certo e
justo, evitando danos) e responsabilidade filantrópica (ser uma empresa responsável
ou “cidadã”, especialmente através da realização de investimento social privado, ou
seja, repasse de recursos à comunidade);
c) Business ethics (ética nos negócios), teoria esta que diz respeito à maneira como a
empresa integra valores essenciais – honestidade, confiança, respeito e justiça – em
suas políticas, práticas e no processo de tomada de decisões em todos os níveis da
89 O texto utilizado e discriminado na “Bibliografia’, conforme informações da autora em nota de rodapé, apresenta parte de sua tese de doutorado Responsabilidade social: efeitos da atuação social na dinâmica empresarial, apresentada ao departamento de Administração da Faculdade de Economia e Administração da USP sob a orientação do Professor Isak Kruglianskas (2001). 90 Para a descrição das teorias, a autora utiliza-se dos argumento de vários autores, o que nos faz remeter o leitor a bibliografia da referida tese de doutorado. Entretanto, não resistimos e transcrevemos uma consideração sobre Milton Friedman, o papa do monetarismo – assim o designa Paul Singer (1998) – e uma das estrelas do neoliberalismo: “Friedmam (1970) – uma das estrelas do neoliberalismo – argumenta enfaticamente que os negócios devem limitar a sua responsabilidade social à maximização dos lucros e a obedecer às leis, opinião que é expressa num artigo no New York Times Magazine, um dos mais citados nos ensaios sobre ética e capitalismo. Na sua perspectiva, retrata os negócios como uma procura do lucro para si; outras considerações sociais são de responsabilidade da sociedade e não dos negócios. Se a busca da eficiência econômica pelos negócios entra em conflito com as preocupações sociais da sociedade mais ampla, então é prerrogativa da máquina política e social restringir os negócios sob a forma de sanções legais que afetam as decisões econômicas” (BORGER, 2003, p. 4).
109
organização, assim como se refere e envolve o cumprimento das normas e padrões
legais e a aderência a regras internas e regulamentos;
d) Stakeholder theory. Esta teoria leva em conta que as corporações têm obrigações
para com os grupos constituintes da sociedade além dos acionistas e funcionários, e
isto porque a atividade empresarial não é somente uma transação de mercado, mas
também uma rede de relações cooperativas e competitivas de um grande número de
pessoas organizadas de várias maneiras. Stakeholders são grupos que podem afetar ou
ser afetados pelas atividades de uma organização, de maneira positiva ou negativa.
Dentre eles estão incluídos os acionistas, os funcionários, os prestadores de serviços,
os fornecedores, os consumidores, o meio ambiente, o governo e a comunidade (Cf.
BORGER, 2003, 1-22).
Nas atuais e mais aceitas definições de responsabilidade social empresarial (RSE) e de
investimento social privado (ISP) estão incorporados elementos da stakeholder theory e da
ética dos negócios. Mais especificamente, se, para as clássicas teorias administrativas e
econômicas há muito superadas – frise-se, superadas nos aspectos teóricos e nos discursos,
pois na realidade (na prática concreta) as coisas são diferentes - , a responsabilidade das
empresas restringia-se à maximização dos lucros e a obedecer as leis – the only business of
the business is business -, para as teorias atuais a responsabilidade social envolve a ética nos
negócios (business ethics), assim como as teorias indicam que as relações e as
responsabilidades da empresa não apenas envolvem seus acionistas e funcionários, mas
também todos os grupos de interessados (stakeholders), que afetam ou são afetados pelas
atividades da organização empresarial (stakeholder theory).
Neste sentido, o Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social, considerando
que “a ética é a base da responsabilidade social, expressa nos princípios e valores adotados
pela organização” (INSTITUTO ETHOS, 2008), define a responsabilidade social empresarial
e a diferencia da filantropia empresarial, nos termos abaixo:
Responsabilidade social empresarial é a forma de gestão que se define pela relação ética e transparente da empresa com todos os públicos com os quais ela se relaciona e pelo estabelecimento de metas empresariais compatíveis com o desenvolvimento sustentável da sociedade, preservando recursos ambientais e culturais para as gerações futuras, respeitando a diversidade e promovendo a redução das desigualdades sociais. (...) A filantropia é basicamente uma ação social externa da empresa, que tem como beneficiária principal a comunidade em suas diversas formas (conselhos comunitários, organizações não-governamentais, associações comunitárias etc) e organizações. A
110
responsabilidade social é focada na cadeia de negócios da empresa e engloba preocupações com um público maior (acionistas, funcionários, prestadores de serviço, fornecedores, consumidores, comunidade, governo e meio ambiente), cuja demanda e necessidade a empresa deve buscar entender e incorporar aos negócios. Assim, a responsabilidade social trata diretamente dos negócios da empresa e de como ela os conduz. (Ibid.)
Já o Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (GIFE), caracteriza o investimento
social privado (ISP) – entendemos esta expressão como um sinônimo da filantropia
estratégica – como “o repasse voluntário de recursos privados de forma planejada, monitorada
e sistemática para projetos sociais, ambientais e culturais de interesse público” (GIFE, 2008).
Explicitando que nessa definição incluem-se ações sociais de empresas, fundações e institutos
de origem empresarial ou constituídos por famílias e indivíduos, o referido grupo - uma
associação - destaca que o planejamento, o monitoramento e a avaliação são “fundamentais na
diferenciação entre essa prática e as ações assistencialistas” (Ibid.), concluindo que
“diferentemente do conceito de caridade, que vem carregado da noção de assistencialismo91,
os investidores sociais privados estão preocupados com os resultados obtidos, as
transformações geradas e o envolvimento da comunidade no desenvolvimento da ação”
(Ibid.).
Rebecca Raposo (2003), socióloga que exerceu a Diretoria Executiva do GIFE,
utilizando as definições acima, esquematiza a intersecção entre a RSE e o ISP, no sentido de
que o investimento social – entenda-se filantropia empresarial estratégica - está incluído na
agenda da responsabilidade social empresarial, ou seja, o investimento social diz respeito à
relação da organização empresarial com o stakeholder “comunidade”, envolvendo o repasse
de recursos privados para fins públicos, tendo como beneficiário principal a comunidade em
suas diversas formas. Ressalte-se, que o investimento social privado também beneficia a
própria organização empresarial, uma vez que ele integra a agenda da responsabilidade social
empresarial. Já com relação às práticas envolvendo os outros stakeholders (os acionistas, os
funcionários, os prestadores de serviços, os fornecedores, os consumidores, o meio ambiente,
o governo), a organização empresarial utiliza recursos privados para fins privados, sendo ela a
beneficiária principal, uma vez que as práticas de responsabilidade social objetivam contribuir
para que as empresas alcancem excelência e sustentabilidade em seus negócios através da
ética no mercado (Cf. RAPOSO, 2003, p 13-17).
91 A tendência de se associar a caridade ao assistencialismo e suas causas e conseqüências serão objeto do próximo subitem denominado “Caridade, assistência, assistencial social, assistencialismo e cidadania...”.
111
Complementando a questão acima exposta, indicamos outro ponto explicitado por
Raposo (2003), com fundamento no Código de Ética do GIFE – segundo a autora, as
transcrições abaixo, que estão entre aspas, são extraídas do referido código - , que facilita a
compreensão do que vem a ser o investimento social privado (ISP). Mais especificamente,
refere-se ao que não é investimento social privado, inclusive porque no ISP primeiro ganha a
comunidade, e depois o investidor, ou seja, o subproduto – valor agregado para a imagem da
empresa - não é o foco principal, e sim uma decorrência do investimento social (Cf. Ibid, p.
16-17):
“as práticas de investimento social são de natureza distinta e não devem ser confundidas nem usadas como ferramentas de comercialização de bens tangíveis e intangíveis (fins lucrativos) por parte da empresa mantenedora como são, por exemplo, marketing, promoção de vendas ou patrocínios, bem como políticas e procedimentos de recursos humanos, que objetivam o desenvolvimento e o bem estar da própria força de trabalho, portanto no interesse da empresa.”(...) “... é justo que o investidor espere, como subproduto de um investimento social exitoso, um maior valor agregado para sua imagem” (Ibid., p. 16-17)
Em consonância com a evolução dos paradigmas acima explicitados – da filantropia
tradicional para o investimento social empresarial (ou filantropia estratégica), Armindo dos
Santos de Souza Teodósio (2002) relata que também houve uma evolução das abordagens
dadas aos projetos sociais pelas empresas.
Segundo Teodósio (2002)92, desde os primórdios do capitalismo, sobretudo a partir da
Revolução Industrial, ações sociais são realizadas por empresários. Entretanto, essas primeiras
ações sociais desenvolvidas pelos homens de negócios são “marcadas por um profundo
assistencialismo, pietismo e por uma visão moralizante das massas trabalhadoras,
consideradas indolentes, desorganizadas e fadadas à miséria, caso não recebessem auxílios
dos poderosos da época” (TEODÓSIO, 2002, p. 67). Tal concepção assistencialista foi a
marca das ações e projetos sociais durante grande parte do século XX – nos Estados Unidos
da América (EUA) até a primeira metade do século passado, com seu florescimento na crise
econômica da década de 30 (Cf. Ibid., p. 68). Porém, segundo o autor a situação começou a
mudar no Brasil a partir da década de 80:
No entanto, nas últimas décadas, concepções sobre o desenvolvimento de projetos sociais por parte de empresários passaram a integrar as estratégias organizacionais. Se antes as idéias de caridade e assistência social guiavam os projetos, agora se tenta introduzir abordagens nas quais os indivíduos auxiliados sejam concebidos como
92 O autor indica como fontes de seu argumento: STONER, J. A. F. & FREEMAN, R. E. (1985) Administração. Rio de Janeiro:Prentice-Hall do Brasil.
112
“sujeitos ativos” do processo, caminhando-se para a noção de parceria entre empresa e comunidade (IOCHPE, 1997)93 (TEODÓSIO, 2002, p. 68).
Sobre a transformação de conceitos que direcionavam a atuação social dos
empresários no passado e as idéias atuais consideradas mais avançadas, o autor referido
apresenta um quadro que representa a evolução das abordagens sobre ações e projetos sociais
das empresas.
Quadro 2 – Abordagens sobre Projetos Sociais de Empresas
Itens do Projeto Estratégia Anterior Estratégia Atual
Relação
empresa-comunidade
Assistencialismo/Paternalismo Parceria
Noção de indivíduo Dependente, incapaz e submisso Ativo, capaz e “sujeito do
processo”
Transferência de
soluções gerenciais e
tecnológicas
Via de mão-única da empresa para
a comunidade
Via de mão-dupla entre
empresa e comunidade
Empresas capazes de
intervenção social
Apenas grandes corporações
privadas e estatais
Grandes, médias e pequenas
Sustentabilidade do
projeto
Dependência permanente da
empresa
Projetos auto-sustentáveis
no médio e longo-prazos
Retornos para a empresa Restritos à imagem institucional e
relações com a clientela
Ganhos externos e internos
(produtividade e
competitividade)
Fonte: Elaborado pelo autor, a partir de MELO NETO & FROES (1999)94 (Cf. TEODÓSIO, 2002, p. 68)
Levando em conta os posicionamentos de Raposo (2003) – alguns foram acima
noticiados, outros serão no próximo subitem –, os de Teodósio (2002) e os das organizações
empresariais Instituto Ethos e GIFE – ambas se caracterizam como associações voltadas ao
fomento da responsabilidade social empresarial -, assim como nossas observações sobre a
realidade em nosso país, verificamos que, se por um lado, existe uma clara tendência à
evolução no tratamento dado pelas empresas no tocante a seus projetos sociais, por outro lado,
93 O autor identifica a seguinte referência bibliográfica: IOSCHPE, E (org.) (1997) 3º Setor – desenvolvimento social sustentado. Rio de Janeiro: Paz & Terra. 94 O autor identifica a seguinte referência bibliográfica: MELO NETO, F. P.; FROES, C. (1999) Responsabilidade Social & Cidadania Empresarial – a administração do Terceiro Setor. Rio de Janeiro: Qualitymark Ed.
113
e inclusive por influência dos “modismos” gerenciais, existe um distanciamento entre o
discurso e as práticas efetiva das empresas. Neste contexto, indicamos as seguintes reflexões,
que expressam críticas e desafios:
•••• As empresas não devem jamais se esquecer que uma importante função a ser por
elas desempenhada, no tocante ao enfrentamento dos problemas sociais, é a de
investidora / financiadora de projetos sociais, especialmente por meio do repasse de
bens e serviços às organizações da sociedade civil.
•••• Pela confusão existente entre os termos assistência social - atendimento gratuito
das necessidades básicas dos cidadãos – e assistencialismo - assistência a membros
carentes ou necessitados, em detrimento de uma política que os tire dessa condição
(encenação de assistência social, populismo assistencial) – as empresas, sob o
argumento de que estão combatendo o assistencialismo, deixam, equivocadamente, de
financiar ações no campo da assistência social.
•••• As ações onde a motivação e o elemento preponderante é o marketing, de modo
algum podem ser consideradas ações de investimento social privado, e isto porque no
investimento social quem primeiramente ganha é a comunidade. A empresa também
ganha, porém seu ganho decorre, deriva da ação social.
•••• A constituição de um “braço social” (Fundação ou Instituto) pela empresa, ou a
constituição de um departamento interno específico voltado às ações sociais, devem
ser vistos como instrumentos para otimizar e evitar a pulverização das ações e projetos
sociais das empresas. Assim, em hipótese alguma o “braço social” ou o departamento
deve ser utilizado como um instrumento para o desenvolvimento de ações de
marketing, disfarçadamente tratadas como investimento social. Esse instrumento
também não deve ser utilizado como uma forma de reduzir o volume de recursos
disponíveis às ações e projetos sociais.
•••• As parcerias ou alianças intersetoriais, envolvendo empresas, organizações da
sociedade civil e o poder público são um promissor instrumento a ser utilizado pelas
empresas para o desenvolvimento de ações e projetos sociais, e isto porque, por meio
das alianças, a imposição é substituída pela integração, de onde resulta o maior
comprometimento das partes envolvidas. Por outras palavras, a empresa não deve
impor um projeto, e sim escutar a comunidade.
114
Finalizando nossa abordagem sobre a responsabilidade social empresarial (RSE), e
com o intuito de provocar reflexões no leitor não apenas no tocante à prática (ao modo que se
manifesta) mas também no tocante à essência da RSE, indicamos que o papa Bento XVI
(2009) expressa seu apoio às iniciativas de RSE – em sua concepção formatada pela
stakeholder theory e pela ética dos negócios - , sem deixar de fazer algumas considerações
críticas e de contextualizar que o surgimento e avanço da responsabilidade social empresarial
estão ligados – como elementos de contraposição, de resistência - à tendência da diluição da
responsabilidade empresarial:
Mas é verdade também que está crescendo a consciência sobre a necessidade de uma mais ampla “responsabilidade social” da empresa. Apesar de os parâmetros éticos que guiam atualmente o debate sobre a responsabilidade social da empresa não serem, segundo a perspectiva da doutrina social da Igreja, todos aceitáveis, é um fato que vai difundindo cada vez mais a convicção de que a gestão da empresa não pode ter em conta unicamente os interesses de seus proprietários, mas deve preocupar-se também com as outras categoria de sujeitos que contribuem para a vida da empresa: os trabalhadores, os clientes, os fornecedores dos vários fatores de produção, a comunidade de referimento (BENTO XVI, 2009, p. 46).
Sobre a tendência à diluição da responsabilidade empresarial que contextualiza o
surgimento e avanço da RSE, o papa assim se manifesta:
Devido ao seu crescimento de dimensão e à necessidade de capitais sempre maiores, são cada vez menos as empresas que fazem referimento a um empresário estável que se sinta responsável não apenas a curto, mais a longo prazo da vida e dos resultados de sua empresa, assim como diminui o número dos que dependem de um único território. Além disso, a chamada deslocalização da atividade produtiva pode atenuar no empresário o sentido da responsabilidade para com os interessados, como os trabalhadores, os fornecedores, os consumidores, o ambiente natural e a sociedade circundante mais ampla, em benefício dos acionistas, que não estão ligados a um espaço específico, gozando por isso de uma extraordinária mobilidade; de fato, o mercado internacional dos capitais oferece hoje uma grande liberdade de ação (Ibid., p. 46).
Já com relação ética, que é colocada como a base da RSE, Bento XVI noticia que na
esteira do movimento à volta da responsabilidade social da empresa, “hoje fala-se muito de
ética no campo econômico, financeiro, empresarial” (Ibid., p. 54), indicando que este discurso
manifesta-se no surgimento de centros de estudos e seminários de negócios éticos, na difusão
de sistemas de certificações éticas, na promoção de contas e fundos de investimentos
bancários chamados “éticos” e no desenvolvimento de “finanças éticas” envolvendo
microcrédito e microfinanciamentos (Cf. Ibid,, p. 54). O papa também destaca que “se nota
um certo abuso do adjetivo ‘ético’, o qual, se usado vagamente, presta-se a designar
conteúdos muito diversos, chegando-se a fazer passar à sua sombra decisões e opções
115
contrárias à justiça e ao verdadeiro bem comum” (Ibid., p. 54). E, concluindo, alerta de modo
enfático:
Um dado é essencial: a necessidade de trabalhar não só para que nasçam setores ou segmentos “éticos” da economia ou das finanças, mas também para que toda economia e as finanças sejam éticas: e não por uma rotulação exterior, mas pelo respeito às exigências intrínsecas de sua própria natureza. A tal respeito se pronuncia com clareza a doutrina social da Igreja, que recorda como a economia, em todas as suas extensões, é um setor da atividade humana (Ibid., p. 54-55).
3.2. Caridade, Assistência, Assistência Social, Assistencialismos e Cidadania: Caridade
Sem Verdade e Valor Vira Equivocadamente Esmola95
O que é caridade? É amor? É virtude teologal e princípio ético? É donativo, ajuda e
esmola? É assistencialismo?
Segundo o Dicionário Houaiss de língua portuguesa96, com exceção de
assistencialismo - embora, como veremos, existem circunstâncias que levam a essa
equivocada associação – todas as outras podem significar caridade:
caridade (...) 1 virtude teologal que conduz ao amor a Deus e ao nosso semelhante 2 p. met. ato pelo qual se beneficia o próximo, esp. os pobres e os desprotegidos 3 disposição favorável em relação a alguém em situação de inferioridade (física, moral, social etc.); compaixão, benevolência, piedade 4 p. met. (da acep. 1) donativo ou ajuda que se dá aos pobres; esmola, benefício (...) (HOUAISS e VILLAR, 2001, p. 627).
Ocorre, que para uma diferenciação, no setor social, entre práticas tradicionais
relacionadas à simbologia religiosa (influenciadas por valores ético-religiosos) e práticas
modernas relacionadas à sociedade de direitos (vinculadas ao exercício da cidadania)97,
muitos – acadêmicos de várias áreas de conhecimentos, agentes governamentais, empresários
e militantes da “era do terceiro setor” – , em vez de adotarem o primeiro significado – amor a
95 Para uma melhor compreensão dos argumentos aqui desenvolvidos, remetemos o leitor ao subitem desta dissertação denominado “Os princípios éticos cardeais e o terceiro setor: amor ou caridade, justiça e sua face solidária e a verdade como valor supremo”, no qual, com base nos ensinamentos do ilustre jurista e pensador Fábio Konder Comparato (2006) expressos em seu esplêndido livro Ética: direito, moral e religião no mundo moderno, buscamos subsidiar o leitor com noções sólidas, fundamentadas e coerentes dos significados de amor ou caridade e de solidariedade. 96 Nesta dissertação optamos pela utilização do Dicionário Houaiss de língua portuguesa. Entretanto, no item denominado “Conceitos, característica, números e desacordos no terceiro setor” usamos o Dicionário Aurélio básico da língua portuguesa. Tal situação decorre do fato de que esse item teve como base argumentação de texto anterior escrito pelo autor desta dissertação e já publicado, no qual foi utilizado o Dicionário Aurélio. 97 Em vários pontos desta dissertação indicamos as fluidez e a busca de articulação entre as lógicas do terceiro setor, especialmente no seguinte subitem cuja denominação é auto-explicativa “A fluidez das lógicas do terceiro setor em uma sociedade de direitos: assistência, promoção e transformação”.
116
Deus e amor ao próximo - com seus elementos teológicos e éticos, adotam o quarto
significado – donativo ou ajuda ao pobres, esmola – e, ainda, mais do que dando uma
conotação “assistencial”, acrescentam a esse significado uma conotação “assistencialista”. Em
síntese, para diferenciar práticas desenvolvidas no setor social e sob forte tendência da
polarização, retira-se da “caridade” seus principais elementos, fazendo com que ela se
transforme – aí vejo um processo de metamorfose ideológica que busca afastar elementos
religiosos da sociedade - em uma outra coisa, que ela efetivamente não significa.
Como já dissemos anteriormente, e agora novamente falaremos, a palavra “caridade”
dissociada de seu valor ético – e também de seu elemento teológico - fica esvaziada de seu
real sentido e dimensão, o que leva à tendência de associá-la pejorativamente a esmola – nesta
situação, também descaracterizada em função da ênfase dada a uma concepção assistencialista
da palavra “esmola”98 - , de colocá-la em frontal oposição à lógica dos direitos e da cidadania,
de indicá-la como um fator negativo para o desenvolvimento da sociedade e,
conseqüentemente, de descartá-la como elemento de análise e compreensão dos fenômenos
sociais. E mais, ao se colocar o princípio ético do amor ou caridade99 em um segundo plano –
para ser otimista, pois percebemos a descaracterização e conseqüente exclusão deste princípio
– também se descaracterizam os princípios éticos da justiça e da verdade – e os demais deles
decorrentes (liberdade, igualdade, segurança e solidariedade) - , e isto porque caridade ou
amor, justiça e sua face solidária e verdade – aqui levamos em conta a concepção semítica de
verdade relacionada à vida ética – são caracterizados pela comunhão de sentidos e
complementaridade. E mais, ainda, pois ao se distorcer o significado dos princípios éticos
cardeais – verdade, justiça e amor, segundo a classificação de Comparato (2006) -, o próprio
sentido e compreensão da vida social ficam vulneráveis e comprometidos, porque ela – a vida
social – tem como paradigma a dignidade da pessoa humana que, por sua vez, é escorada
pelos princípios éticos.
Observe-se, e aqui também reforçamos o já antes detalhado, que “o amor é uma
doação completa e sem reservas, não só das coisas que nos pertencem, mais da nossa própria
98 Utilizamos a palavra “esmola” neste subitem com uma conotação negativa, para acentuar a tendência – ressaltamos, equivocada - do esvaziamento do real sentido e significado da palavra “caridade”. Note-se, entretanto, que a esmola tem um significado positivo na doutrina da Igreja Católica, como elemento que integra a caridade fraternal, as obras de misericórdia, a ação caritativa e a prática da justiça. Essa questão será detalhada no subitem desta dissertação denominado “Caridade e solidariedade na doutrina social da igreja e a tensão entre a mensagem original e a preservação institucional”. 99 Tratamos como sinônimos os vocábulos “amor” e “caridade”, pois em sua concepção evangélica - vê-se, aqui, sua natureza de valor ético-religioso -, que está em conformidade com seu significado etimológico, o amor - ágape, na versão grega, é traduzido em latim por caritas.
117
pessoa. Aquele que ama torna-se despossuído de si mesmo: ele nada retém para si, mas tudo
oferece ao outro” (COMPARATO, 2006, p.533) e que “a grande função social do amor
consiste, na verdade, em atuar como fator de permanente aperfeiçoamento da justiça. É o
impulso constante no sentido de uma não-acomodação com as formas de justiça já existentes;
a procura de uma ampliação ilimitada do princípio de dar a todos e a cada um o que a
consciência ética sente como devido” (Ibid., p.534). Também lembramos que o ilustre jurista
e pensador Fábio Konder Comparato (2006) assim exemplifica a dissociação entre o amor e o
sentimento (o afeto): “há certas formas de amor, nas quais a consciência do dever de agir para
o bem de outrem não raro se manifesta, por exemplo, pela instituição de uma entidade
beneficente, com todas as exigências burocráticas que ela necessariamente comporta; isto é,
uma atividade praticamente despida de sentimentos”(Ibid., p. 532).
Destacamos, sob os argumentos acima, que “doação completa e sem reservas” é muito
mais do que “donativos ou ajuda que se dá aos pobres”, assim como que as entidades
beneficentes são os exemplos típicos de organizações do terceiro setor que, caso estejam – e
muitas estão - relacionadas ao simbolismo religioso (influenciadas por valores ético-
religiosos), são levianamente taxadas como “assistencialistas”.
Reforçando a idéia do uso equivocado da palavra “caridade” e da existência de uma
relação indissolúvel entre justiça, amor e verdade, esta entendido como o caminho para a
felicidade sem desvios, que representa o valor supremo fundado no amor e na justiça e que
por muitos é identificado como o próprio Deus100 (Cf. Ibid., p. 521ss), indicamos alguns
posicionamentos da doutrina social da Igreja, sob a ótica do papa Bento XVI (2009),
expressos na carta encíclica Caritas in veritate.101
Sobre o significado de caridade e sobre a tendência do esvaziamento de seu sentido,
inclusive decorrente da equivocada dissociação entre caridade e verdade, o papa assim se
manifesta:
100 Observe-se, que para os muitos que crêem em seres transcendentes – divino, sobrenatural ou Deus - a verdade é o próprio ser transcendente que representa o valor supremo – no qual estão em plenitude o amor, a justiça etc, enfim, a totalidade - . Para os que não crêem em seres transcendentes, a verdade continua o ser o valor supremo, porém agora não mais representado pelos seres transcendentes, porém pela esperança de que o amor, a justiça e outros princípios e valores éticos serão realizados plenamente. Para ambos, entretanto, a verdade indica a dimensão humana da busca pelo sentido da vida. Tal questão, cuja abordagem foi iniciada no subitem desta dissertação “Os princípios éticos cardeais e o terceiro setor: amor ou caridade, justiça e sua face solidária e a verdade como valor supremo”, será detalhada no item “Desvendando significados e sentidos da religião”. 101 Embora o item denominado “A relação entre o ethos religioso e o ethos do ativismo no setor social: ‘afinidades eletivas’ entre a ética católica e o ativismo no setor social” destine-se à questões envolvendo a doutrina social da Igreja Católica, o assunto aqui tratado nos levou a desenvolver algumas questões da doutrina social.
118
A caridade é a via mestra da doutrina social da Igreja. As diversas responsabilidades e compromissos por ela delineados derivam da caridade, que é – como Jesus ensinou – a síntese de toda a lei (Cf. Mt 22, 36-40102). A caridade dá verdadeira substância à relação pessoal com Deus e com o próximo; é o princípio não só das microrrelações estabelecidas entre amigos, na família, no pequeno grupo, mas também nas macrorrelações como relacionamentos sociais, econômicos, políticos. (...) Estou ciente dos desvios e do esvaziamento de sentido que a caridade não cessa de enfrentar com o risco, daí resultante, de ser mal entendida, de excluí-la da vida ética e, em todo o caso, de impedir sua correta valorização. Nos âmbitos social, jurídico, cultural, político e econômico, ou seja, nos contexto mais expostos a tal perigo, não é difícil ouvir declarar sua irrelevância para interpretar e orientar as responsabilidades morais. (...) Pela sua estreita ligação com a verdade, a caridade pode ser reconhecida como expressão autêntica de humanidade e como elemento de importância fundamental nas relações humanas, nomeadamente de natureza pública. Só na verdade é que a caridade refulge e pode ser autenticamente vivida. A verdade é luz que dá sentido e valor à caridade. Esta luz é simultaneamente a luz da razão e a da fé, mediante as quais a inteligência chega à verdade natural e sobrenatural da caridade: identifica o seu significado de doação, acolhimento e comunhão. Sem verdade, a caridade cai no sentimentalismo. O amor torna-se um invólucro vazio que se pode encher arbitrariamente. É o risco fatal do amor em uma cultura sem verdade; acaba prisioneiro das emoções e opiniões contingentes dos indivíduos, uma palavra abusada e adulterada, chegando a significar o oposto do que é realmente. A verdade liberta a caridade dos estrangulamentos do emotivismo, que a despoja de conteúdos relacionais e sociais, e do fideísmo, que a priva de amplitude humana e universal... (BENTO XVI, 2009, p. 7-8).
Já sobre a relação indissolúvel entre caridade ou amor e justiça, Bento XI posiciona-se
do seguinte modo:
A caridade supera a justiça, porque amar é dar, oferecer ao outro do que é “meu”; mas nunca existe sem a justiça, que induz a dar ao outro o que é “dele”, o que lhe pertence em razão do seu ser e do seu agir. Não posso “dar” ao outro do que é meu, sem antes lhe ter dado aquilo que lhe compete por justiça. Quem ama os outros com caridade é, antes de mais nada, justo para com eles. A justiça não só não é alheia à caridade, não só não é um caminho alternativo ou paralelo à caridade, mas é “inseparável da caridade”, é lhe intrínseca. A justiça é o primeiro caminho da caridade ou, como chegou a dizer Paulo VI, “a medida mínima” dela, parte integrante daquele amor “por ações e em verdade” (1Jo 3,18) a que nos exorta o apóstolo João. Por um lado, a caridade exige a justiça: o reconhecimento e o respeito dos legítimos direitos dos indivíduos e dos povos. Empenha-se na construção da “cidade do homem” segundo o direito e a justiça. Por outro, a caridade supera a justiça e completa-a com a lógica do dom e do perdão. A “cidade do homem” não se move apenas por relações feitas de direitos e de deveres, mas antes e sobretudo por relações de gratuidade, misericórdia e comunhão. A caridade manifesta sempre, mesmo nas relações humanas, o amor de Deus; dá valor teologal e salvífico a todo empenho de justiça no mundo (BENTO XVI, 2009, p. 10-11).
102 Para melhor compreensão, transcrevemos a seguir o trecho do Evangelho (Mateus 22, 36-40): “’Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?’ Ele respondeu: Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu espírito. Esse é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é semelhante a esse: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Desses dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas.” (BÍBLIA, 2002, p. 1.744).
119
Passemos, agora, a exemplificar – sempre acompanhado de considerações e
observações críticas - , situações que demonstram a tendência de se associar a caridade ao
assistencialismo. Indicaremos, também de modo exemplificativo, algumas circunstâncias que
levaram a essa equivocada associação.
Na “apresentação” da Política Nacional de Assistência Social, datada de novembro de
2004 e assinada pelo Ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, pela Secretária
Nacional de Assistência Social e pela Presidente do Conselho Nacional de Assistência Social,
consta a seguinte afirmação: “Muitos, às vezes e ainda, confundem a assistência social com o
clientelismo, assistencialismo, caridade ou ações pontuais, que nada têm a ver com políticas
públicas e com o compromisso do Estado com a sociedade” (BRASIL, 2005, p. 11). Já na
“introdução” da referida da Política Nacional, o seguinte: “... já que o atributo torpe de campo
de favores políticos e caridade, agregado historicamente a esta área, deve ser minado pelo
estabelecimento de um novo estágio, feito de estratégias e determinações que suplantem
política e tecnicamente o passado (Ibid., p. 14).
Tais posicionamentos, que envolvem a assistência social propriamente dita (em
sentido estrito) – ressaltamos que nossa pesquisa investiga as entidades de assistência social
em sentido amplo –, estão em conformidade com um “rito de passagem” e a seu inerente
simbolismo, que necessita afirmar e reafirmar, especialmente como decorrência da
Constituição Federal de 1988, “a assistência social como direito de cidadania e
responsabilidade do Estado” (Ibid., p. 13).
Neste sentido, para melhor exemplificar a questão, destacamos outros
posicionamentos da Política Nacional de Assistência Social: “A nova concepção de
assistência social como direito à proteção social, direito à seguridade social tem duplo efeito:
o de suprir sob dado padrão pré-definido um recebimento e o de desenvolver capacidades para
maior autonomia. Neste sentido ela é aliada ao desenvolvimento humano e social e não
tuteladora ou assistencialista... (Ibid., p. 15-16); “a LOAS cria uma nova matriz para a política
de assistência social, inserindo-a no sistema do bem-estar social brasileiro concebido como o
campo da Seguridade Social, configurando o triângulo juntamente com a saúde e a
previdência social” (Ibid., p. 31); “a Assistência Social (...) deve fundamentalmente inserir-se
na articulação intersetorial como outras políticas sociais, particularmente, as públicas de
Saúde, Educação, Cultura, Esporte, Emprego, Habitação, outras” (Ibid., p. 42).
Concluindo, transcrevemos o seguinte posicionamento, também da Política Nacional
de Assistência Social, que ilustra as tensões entre Estado e ONGs e entre as lógicas e
120
dimensões de “fazer caridade” – essa expressão é provocativa e poderia ser traduzida em
“implementar com eficiência os direitos sociais”:
Ao invés de substituir a ação do Estado, a rede deve ser alavancada a partir de decisões políticas tomadas pelo poder público em consonância com a sociedade. É condição necessária para o trabalho em rede que o Estado seja o coordenador do processo de articulação e integração entre as Organizações Não-Governamentais – ONGs, Organizações Governamentais – OGs e os segmentos empresariais (...) Isso supõe que o poder público seja capaz de fazer com que todos os agentes desta política, OGs e, ou, ONGs, transitem do campo da ajuda, filantropia, benemerência para o da cidadania e dos direitos (Ibid., p. 47-48).
Outra situação, que já foi noticiada no subitem anterior103, envolve a seguinte
caracterização de investimento social privado (ISP) elaborada pelo Grupo de Institutos,
Fundações e Empresas (GIFE): “diferentemente do conceito de caridade, que vem carregado
da noção de assistencialismo, os investidores sociais privados estão preocupados com os
resultados obtidos...” (GIFE, 2008).
Segundo Rebecca Raposo (2003) – e voltamos a essa socióloga que exerceu a
Diretoria Executiva do GIFE, pois sua argumentação técnica favorece reflexões e discussões
sobre a questão, inclusive possibilitando contra-argumentações - as contradições e
imprecisões na operacionalização do investimento social decorrem da convivência de dois
paradigmas – caridade e cidadania – distintos em muitos pontos e em alguns antagônicos (Cf.
RAPOSO, 2003, p. 10). Seguindo, assim, a tendência – entendo-a como ideológica para
afastar fatores religiosos da laicidade do Estado -, dos meios acadêmicos, empresariais e
governamentais e de militantes da “era do terceiro setor”, de pejorativamente associar a
caridade ao assistencialismo e de limitar a influência da religião apenas ao processo histórico-
sociológico da constituição das redes sociais e ou assistenciais, tratando-a, agora, como um
fator negativo para o funcionamento dessas redes e como um elemento incompatível com o
desenvolvimento da cidadania, com a lógica de direitos e com a justiça, a autora relaciona a
caridade à expressão “minimizar sofrimentos” e a cidadania à “desenvolver o cidadão” (Cf.
Ibid., p. 4), resumindo seus pontos de vista nos quadros abaixo, com o sugestivo título de
“Evolução de paradigma”:
103 Este subitem é denominado “A parte ‘lucrativa’ do terceiro setor: responsabilidade social empresarial, investimento social privado e o princípio da gratuidade na atividade econômica”.
121
Quadro 3 – Evolução de Paradigma (1)
EVOLUÇÃO DE PARADIGMA PERÍODO
ATOR SOCIAL
PARADIGMA
Século XIX
Estado Oligárquico Igreja Caridade Cristã
Século XX – 1930 Estado Populista
Igreja e Estado Caridade Estatal
Século XX – 1964 Estado Autoritário
Estado e Sociedade Controle Estatal
Século XX – 1988 Estado Democrático
Sociedade e Estado Cidadania
Fonte: Elaborado a partir de Rebecca Raposo (2003) (Cf. RAPOSO, 2003, p.2)
Quadro 4 – Evolução de Paradigma (2) EVOLUÇÃO DE PARADIGMA
Caridade Cidadania Ação: reproduz modelos que mantém a exclusão social.
Ação: libertadora e busca a inclusão social.
Liderança: nem política, nem social. Liderança: descentralizada. Poder e ação da comunidade local.
Sustentabilidade: depende de doações.
Sustentabilidade: diferentes fontes de apoio.
Competência: amadora; boa vontade e boa intenção.
Competência: profissional com engajamento.
Legitimidade: vem da bondade. Legitimidade: eficácia, transparência, accoutability.
Fonte: Elaborado a partir de Rebecca Raposo (2003) (Cf. RAPOSO, 2003, p.3)
A autora, também indica elementos para a tipificação das organizações da sociedade
civil em cada período histórico, sob o título de “Sociedade Civil Organizada em Evolução”,
restando o seguinte quadro por nós elaborado a partir de Raposo (2003):
Quadro 5 – Sociedade Civil Organizada em Evolução
Período Tipo de Organização
Século XIX e XX Religiosas, confessionais
Anos 50 e 60 Corporativos, previdenciários
Anos 70 ONGs “internacionais” Movimentos populares
Anos 80 Início das redes, das associações
Anos 90 Setor privado se insere Surge conceito de terceiro setor
Fonte: Elaborado a partir de Rebecca Raposo (2003) (Cf. RAPOSO, 2003, p.3)
122
Não se contesta a existência de lógicas diversas e tampouco se opõe a que, para fins
didáticos e metodológicos, se polarizem essas lógicas. Pesquisas com dados empíricos,
relatadas na presente dissertação – indica-se, especialmente, o subitem “A fluidez das lógicas
do terceiro setor: assistência, promoção e transformação” – já apontam a existência ao menos
– veremos que são três – de duas formas de agir, de duas lógicas no setor social: as ações
assistenciais caritativas, identificadas como práticas tradicionais, e as ações cidadãs,
representativas da moderna forma de implementação dos direitos sociais. Entretanto, esses
mesmos estudos também demonstram consenso sobre a influência, em nosso país, de fatores
religiosos na construção e funcionamento do terceiro setor, bem como indicam uma tendência
à articulação e busca de compatibilização e complementaridade entre ação caritativa e ação
cidadã, ou melhor, entre as dimensões assistencial, promocional e libertadora/transformadora
das práticas (ações) no setor social, inclusive em função da fluidez em nosso mundo real
caracterizado como uma sociedade de direitos.
Contesta-se, sim - e esta dissertação objetiva contribuir “para se pôr os pingos no is” -
a retórica exorcista – o termo me parece oportuno – daqueles, segundo Berger (2000), que
muito se arriscam ao negligenciar o fator religioso de suas análises (Cf. BERGER, 2000, p.
23). E isto se manifesta, especialmente, quando se esvazia e se adultera o significado da
palavra caridade – ela é essencialmente o paradigma da linguagem simbólica religiosa
articuladora de posturas éticas que de modo fértil se manifestam por meio de práticas no setor
social - , e se nega a existência do processo de evolução104 – por ser histórico, com suas
variações no tempo e espaço - do paradigma caridade com relação as práticas no setor social,
que caminha da assistência, passa pela promoção (cidadania) e chega à
libertação/transformação (justiça social). Neste último aspecto105, há de se notar que o
princípio ético da caridade ou amor – especialmente em sua dimensão de valor ético-religioso,
em sua concepção judaico-cristã e em sua incidência no ocidente -, foi crucial para a
construção de uma rede social e ou assistencial antes mesmo da consolidação de Estados e
sociedades de direitos, foi fundamental para a consolidação desses Estados e para a
positivação nesses Estados de um sistema jurídico garantidor dos direitos sociais e da
cidadania e, ainda, é relevante para a efetiva implementação dos direitos individuais, sociais e
políticos, inclusive por meio do fomento de transformações necessárias à realização da justiça
social pautada na igualdade e eqüidade.
104 Aqui, fazemos um analogia ao processo de evolução da cidadania, proposto por Jaime Pinsky (2003) e noticiado no início do subitem “Enfim, uma constituição federal cidadã”, que caminha da ausência de direitos para sua ampliação. 105 Neste aspecto, reportamo-nos ao subitem “Dos profetas sociais à teologia da libertação”.
123
Se por um lado criticamos a associação entre a caridade e o assistencialismo, por
outro aplaudimos o alerta de Raposo (2003) sobre a associação indevida entre a assistência
social e o assistencialismo. Como conseqüência desta confusão, a autora aponta que
investidores, sob o argumento que estão combatendo o assistencialismo, deixam,
equivocadamente, de financiar ações no campo da assistência social106, entendida como o
“conjunto das medidas através das quais o Estado (ou entidades não governamentais) procura
atender às pessoas que não dispõem de meios para fazer frente a certas necessidades, como
alimentação, creches, serviços de saúde, atendimento à maternidades, à infância, a menores,
velhos etc; serviço social” (HOUAISS e VILLAR, 2001, p. 323). Como veremos, os serviços
de educação também estão incluídos como forma de atender gratuitamente as necessidades
básicas dos cidadãos.
Oportuno se torna, então, destacar, o verdadeiro significado da palavra
“assistencialismo”, tanto no aspecto sociológico quanto no político, respectivamente:
... doutrina, sistema ou prática (individual, grupal, estatal, social) que preconiza e/ou organiza e presta assistência a membros carentes ou necessitados de um comunidade, nacional ou mesmo internacional, em detrimento de uma política que os tire da condição de carentes e necessitados... sistema ou prática que se baseia no aliciamento político das classes menos privilegiadas através de um encenação de assistência social a elas; populismo assistencial. (Ibid., p. 323)
Ora, seja no aspecto sociológico – “em detrimento de um política que os tire da
condição” -, seja no aspecto político – “aliciamento político; populismo assistencial” -,
percebe-se uma manifesta intenção da manutenção do status quo dos “carentes e
necessitados” em função de interesses daquele que objetiva a manutenção da situação de
carência. Ora, percebe-se, assim, que o assistencialismo está em frontal oposição com o
verdadeiro sentido e significado do amor ou caridade.
Porém, com isto não se quer negar que no decorrer da história e em várias situações
atuais – a diferença é que agora, em um Estado Democrático de Direito como o nosso, que
prioriza no plano jurídico os direitos humanos e a proteção social, esta prática conflita com o
sistema jurídico e perde espaço – o assistencialismo causou e causa seus estragos na
sociedade. Práticas assistencialistas dentro dos governos - parece-me que esse espaço é o mais
propício – dentro das empresas, dentro da sociedade civil, dentro das igrejas etc, foram e são
ainda evidenciados.
106 No final deste subitem, indicaremos a abrangência dada à expressão “assistência social” nesta dissertação, e isto em função das organizações ou entidades investigadas.
124
No tocante ao espaço religioso, em especial ao da Igreja Católica que centraliza nossas
análises, a título exemplificativo, indicaremos duas circunstâncias, extraídas da carta encíclica
Deus é amor (Deus caritas est) do papa Bento XVI (2006), que levam – quando avaliadas de
maneira superficial, de certo modo motivam - a equivocada associação entre a caridade e o
assistencialismo. Desde já alertamos o leitor a não tirar conclusões precipitadas, uma vez que
tais questões serão detalhadas e aprofundadas em momento oportuno107.
A primeira circunstância refere-se a uma objeção contra a atividade caritativa da
Igreja, manifestada desde o Oitocentos e depois explanada pelo pensamento marxista – como
parte de sua estratégia e com a denominação de teoria do empobrecimento108 -, que associa a
caridade ao sistema de conservação do status quo e que foi assim sintetizada (Cf. BENTO
XVI, 2006, p. 32 e 41): “os pobres – diz-se – não teriam necessidade de obras de caridade,
mas de justiça. As obras de caridade – as esmolas – seriam na realidade, para os ricos, uma
forma de subtraírem-se à instauração da justiça e tranqüilizarem a consciência, mantendo suas
posições e defraudando os pobres nos seus direitos” (Ibid., p. 32).
O papa, reconhecendo que existe algo de verdade na argumentação, porém não pouco
de errado, assim como admitindo lentidão por parte da Igreja sobre os novos moldes que se
colocavam o problema da justa estrutura da sociedade decorrente da industrialização, refuta a
ventilada teoria. (Cf. Ibid., p. 32-33)
Para tanto, ele destaca duas situações fundamentais que definem a relação entre o
empenho em prol da justiça e o serviço da caridade (Cf. Ibid., p. 34). Uma diz respeito ao fato
de que a implementação da justiça na sociedade e no Estado pertence à esfera política e é um
dever de cada cidadão109 – “a sociedade justa não pode ser obra da Igreja; deve ser realizada
pela política” (Ibid., p. 36). Entretanto, “toca à Igreja, e profundamente, o empenhar-se pela
107 Especialmente no item desta dissertação denominado “A relação entre o ethos religioso e o ethos do ativismo no setor social: ‘afinidades eletivas’ entre a ética católica e o ativismo no setor social” 108 “Uma parte da estratégia marxista é a teoria do empobrecimento: esta defende que, numa situação de poder injusto, quem ajuda o homem com iniciativas de caridade coloca-se de fato a serviço daquele serviço de injustiça, fazendo-o resultar, pelo menos até certo ponto, suportável. Assim, fica refreado o potencial revolucionário e, conseqüentemente, bloqueada a reviravolta para um mundo melhor. Por isso, se contesta e ataca a caridade como sistema de conservação do status quo. Na realidade, esta é um filosofia desumana. O homem que vive no presente é sacrificado ao moloch do futuro – um futuro cuja efetiva realização permanece pelo menos duvidosa. Na verdade, a humanização do mundo não pode ser promovida renunciando, de momento, a comportar-se de modo humano” (BENTO XVI, 2006, p. 41-42) 109 “Nisso, o dever da Igreja é mediato... Entretanto, o dever de trabalhar por uma ordem justa na sociedade é próprio dos fiéis leigos. Estes, como cidadãos do Estado, são chamados a participar pessoalmente na vida política (BENTO XVI, 2006, p. 37). Para melhor compreensão dessas questões, destacamos que existe uma distinção entre os deveres, atividades e organizações da Igreja (eclesiais) - “oficiais” da Igreja, para ficar mais claro, embora não seja o termo mais adequado - e os deveres, atividades e organizações dos fiéis leigos – não eclesiais, “não oficiais”.
125
justiça trabalhando para a abertura da inteligência e da vontade às exigências do bem.” (Ibid.,
p. 36):
Isso significa que a construção de um ordenamento social e estatal justo pelo qual seja dado a cada um o que lhe compete, é um dever fundamental que deve enfrentar de novo cada geração. Tratando-se de uma tarefa política, não pode ser encargo imediato da Igreja. Mas, como ao mesmo tempo é uma a tarefa humana primária, a Igreja tem o dever de oferecer, por meio da purificação da razão e mediante a formação ética, a sua contribuição específica para que as exigências da justiça se tornem compreensíveis e politicamente realizáveis (Ibid., p. 35).
A outra situação é assim destacada por Bento XVI:
O amor – caritas – será sempre necessário, mesmo na sociedade mais justa. Não há qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supérfluo o serviço do amor. Quem quer desfazer-se do amor, prepare-se para se desfazer do homem enquanto homem. Sempre haverá sofrimento que necessita de consolação e ajuda. Haverá sempre solidão. Existirão sempre também situações de necessidade material, para as quais é indispensável uma ajuda na linha de um amor concreto ao próximo. (Ibid., p. 36).
Já a segunda circunstância, conforme noticiado por Bento XVI (2006) no tópico
denominado “O perfil específico da atividade caritativa da Igreja” de sua carta encíclica Deus
é amor, refere-se ao fato de que a assistência – não o assistencialismo – às necessidades
imediatas é colocada como elemento constitutivo das atividades e organizações caritativas da
Igreja (eclesiais) – “oficiais” da Igreja110 - e que essas atividades e organizações não devem
ter vínculos partidários ou ideológicos – nesse aspecto, novamente esbarramos na primeira
circunstância que envolve a teoria do empobrecimento.
Mas então quais são os elementos constitutivos que formam a essência da caridade cristã e eclesial? a) Segundo o modelo oferecido pela parábola do Bom Samaritano, a caridade cristã é, em primeiro lugar, simplesmente a resposta àquilo que, em determinada situação, constitui a necessidade imediata: os famintos devem ser saciados; os nus, vestidos; os doentes, tratados para se curarem; os presos, visitados etc (...) b) A atividade caritativa cristã deve ser independente de partidos e ideologias. Não é um meio para mudar o mundo de maneira ideológica, nem está a serviço de estratégias mundanas, mas é atualização aqui e agora daquele amor de que o homem sempre tem necessidade. (Ibid., p. 40-41).
Se neste momento estamos tratando da tendência de se relacionar equivocadamente o
assistencialismo à caridade – como princípio ético e como atividade ou organização caritativa
110 Remetemos o leitor à nota anterior.
126
motivada pelo princípio -, para uma melhor compreensão do assunto torna-se necessário
explicitar posicionamento da doutrina social da Igreja Católica – na concepção do papa Bento
XVI (2009) -, que coloca o princípio da subsidiariedade111 como manifestação da caridade e
critério orientador da colaboração fraterna – realizada por meio de ações caritativas, ou seja,
do ativismo no setor social -, o que implica em finalidades emancipativas e frontalmente
opostas ao assistencialismo paternalista.
Particular manifestação da caridade e critério orientador para a colaboração fraterna de crentes e não crentes é, sem dúvida, o princípio de subsidiariedade, expressão da inalienável liberdade humana. A subsidiariedade é, antes de mais nada, uma ajuda à pessoa por meio da autonomia de corpos intermédios. Tal ajuda é oferecida, quando a pessoa e os sujeitos sociais não conseguem operar por si sós, e implica sempre finalidades emancipativas, porque favorece a liberdade e a participação enquanto assunção de responsabilidades. A subsidiariedade respeita a dignidade da pessoa, na qual vê um sujeito sempre capaz de dar algo ao outros. Ao reconhecer na reciprocidade a constituição íntima do ser humano, a subsidiariedade é o antídoto mais eficaz contra toda forma de assistencialismo paternalista (BENTO XVI, 2009, p. 67-68).
Outrossim, a subsidiariedade como manifestação da caridade deve relacionar-se
intimamente com a solidariedade, sob pena de criar situações de dependência e
assistencialistas:
O princípio de subsidiariedade deve ser mantido estritamente ligado ao princípio de solidariedade e vice-versa, porque, se a subsidiariedade sem a solidariedade decai no particularismo social, a solidariedade sem a subsidiariedade decai no assistencialismo que humilha o sujeito necessitado (Ibid., p. 68).
Embora em outras partes desta dissertação sejam indicados pontos que se contrapõem
às idéias que reduzem a influência da religião e da caridade no funcionamento do terceiro
setor – essa contraposição, diga-se, está presente em todas as partes da dissertação - talvez
seja o momento de explicitar “que as coisas não são bem assim” sob os argumentos de
renomados profissionais representantes da filantropia norte-americana, em cuja fonte nossos
empresários e acadêmicos bebem vorazmente.
111 Dentre outras, o papa Bento XVI indica o Catecismo da Igreja Católica, n. 1883, como referência para a compreensão do princípio da subsidiariedade. Assim, transcrevemos a seguir o noticiado parágrafo 1883 do Catecismo: “A socialização apresenta também perigos. Uma intervenção muito acentuada do Estado pode ameaçar a liberdade e a iniciativa pessoais. A doutrina da Igreja elaborou o chamado princípio da subsidiariedade. Segundo este princípio, ‘uma sociedade de ordem superior não deve interferir na vida interna de um sociedade inferior, privando-a de suas competências, mas deve, antes, apoiá-la em caso de necessidade e ajudá-la a coordenar sua ação com as dos outros elementos que compõem a sociedade, tendo em vista o bem comum” (CATECISMO, 1999, p. 502-503).
127
Robert L. Payton (2001), acadêmico e ex-diretor do Centro de Filantropia da
Universidade de Indiana, inicia seu texto “A tradição filantrópica” noticiando que a história
da caridade na civilização ocidental está cristalizada no trecho do Evangelho de Mateus (Mt
25, 37-35).112 Logo a seguir, relata que durante o reinado de Isabel I, o “Estatuto dos Usos de
Caridade” de 1601 sintetizou as práticas filantrópicas da época, concluindo que “a caridade e
a filantropia – os valores religiosos e os valores seculares – se converteram num mesmo
conceito” (PAYTON, 2001). Percebe-se, no texto, a preocupação inicial do autor em dar a
significação correta para cada uma das palavras113 e, posteriormente, de fundir ambos os
significados na palavra “filantropia”.
Porém, o que mais nos chamou a atenção, foi a seguinte afirmação que não deixa
qualquer dúvida sobre a relevância da religião:
Segundo meu ponto de vista, os valores religiosos, que sempre dominaram ainda são predominantes. Nos Estados Unidos, as instituições e organizações religiosas recebem quase que a metade das contribuições de caridade e filantrópicas; nenhum outro setor recebe mais que 15%. Durante os últimos séculos, a idéia religiosa de “stewardship” – tudo que possuímos e utilizamos enquanto vivemos pertence a Deus – tem sido o motor que impulsiona a maioria das doações e serviços voluntários, sejam eles religiosos ou leigos (Ibid.).
Já Barry D. Gaberman (2008), ex-Vice-Presidente da Fundação Ford, no artigo “Ainda
há espaço para a caridade na filantropia?” publicado pelo próprio GIFE, relatando a existência
de “um número cada vez maior de livros e artigos que defendem que deixemos de lado a
caridade em prol de uma coisa que é geralmente denominada filantropia de desenvolvimento
ou filantropia estratégica” (GABERMAN, 2008), confronta esta idéia com três argumentos,
dos quais destacamos o seguinte:
Uma última preocupação que tenho é com a linguagem. Nós simplesmente não temos uma linguagem que descreva adequadamente a caridade. Por isso, ela é considerada essencialmente como “não estratégica”, um rótulo pejorativo na melhor das hipóteses. É muito provável que todas as doações “paroquiais” e “locais” que estão por traz da caridade façam mais pela construção de um capital social do que todas as filantropias “estratégicas” (Ibid.).
112 Este trecho do Evangelho de Mateus, inclusive de forma mais abrangente, está transcrito em nota de rodapé do subitem desta dissertação denominado “Os princípios éticos cardeais e o terceiro setor: amor ou caridade, justiça e sua face solidária e a verdade como valor supremo”. 113 A seguir é transcrito o primeiro significado do vocábulo “filantropia” segundo o Dicionário Houaiss da língua portuguesa: filantropia (...) 1 profundo amor à humanidade (...)” (HOUAISS e VILLAR, 2001, p. 1341). O da palavra “caridade” já o foi no início deste subitem.
128
Finalizando, elucidaremos alguns aspectos que justificam nossa opção por dar um
sentido amplo à expressão “assistência social”, inclusive em conformidade com o significado
acima transcrito fornecido pelo Dicionário Houaiss da língua portuguesa.
O projeto de pesquisa investigou114 organizações inscritas no Conselho Municipal de
Assistência Social – CMAS – da cidade de Jundiaí-SP. E quais são as finalidades das
organizações lá inscritas? Ou, em outras palavras, apenas entidades que estritamente
desenvolvem atividades de assistência social estão lá inscritas e foram pesquisadas? Não, é a
resposta.
Além do CMAS de Jundiaí – como os demais Conselhos Municipais de Assistência
Social – ser a instância municipal deliberativa da política pública de assistência social, pelo
fato da inscrição nos Conselhos Municipais ser um pré-requisito para a obtenção do
Certificado de Entidade Beneficente de Assistencial Social (CEBAS)115 – o certificado mais
almejado pelas ONGs de nosso país, porque é um pré-requisito para o exercício de imunidade
ou isenção de contribuições para a seguridade social –, essa instância municipal de
composição paritária - possui membros do governo e da sociedade civil -, segue diretrizes do
Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), instância nacional concessora do CEBAS .
Desta forma, conforme se verá abaixo, como o CEBAS – antigo Certificado de
Entidade de Fins Filantrópicos – é concedido à organizações que atuam no campo da
assistência social em sentido amplo, que abrange a saúde, a educação e a assistência social
propriamente dita (em sentido estrito), este critério também é adotado pelo CMAS de Jundiaí
e será adotado na presente pesquisa com relação à abrangência da expressão “assistência
social”.
O próprio Decreto nº 2.536, de 6 de abril de 1998, e suas posteriores alterações, que
definia - agora, como já informamos em nota de rodapé deste subitem, quem define é a 114 Embora a idéia inicial deste projeto envolvesse o estudo de casos, ou seja, a análise de dados empíricos coletados pelo estudante-pesquisador, em seu desenvolvimento fomos envolvidos pelas questões teóricas e por pesquisas já elaboradas, o que direcionou esta dissertação para a análise e interpretação de argumentos extraídos de obras doutrinárias e de dados empíricos extraídos de estudos consolidados. Assim, em vez de uma análise detalhada – de um estudo de casos – fazemos uma apresentação e brevíssimas considerações sobre os dados empíricos por nós coletados, com o intuito de ilustrar a dissertação. Disto, decorre também nossa opção de transformar um possível “Capítulo” em um “Apêndice”. 115 Em 30 de novembro de 2009 foi publicada no Diário Oficial da União a Lei Federal nº 12.101, de 27 de novembro de 2009, que dispõe sobre a certificação das entidades beneficentes de assistência social e regula os procedimentos de isenção de contribuições para a seguridade social. Essa nova e recente legislação, que revogou as disposições anteriores sobre o assunto, modificou as regras para a concessão do CEBAS, inclusive no tocante ao órgão concessor, o que repercute nos critérios para a inscrição das entidades nos Conselhos de Municipais de Assistência Social. Como é uma legislação recente, sujeita a várias regulamentações, ela não influiu na presente pesquisa, inclusive na coleta dos dados empíricos, que findou em novembro antes mesmo da publicação da ventilada lei. Outrossim, essa nova legislação manteve a concepção ampla dada à assistência social para a concessão do CEBAS, ou seja, caracterizou como entidades de beneficentes de assistência social as que atuam nas áreas da assistência social, saúde ou educação.
129
recente Lei Federal 12.101, de 27 de novembro de 2009 – os requisitos e o procedimento para
a concessão e a renovação do CEBAS –, dava um sentido mais amplo à assistência social, ao
incluir como aptas à obtenção do Certificado as entidade que promovam assistência
educacional ou de saúde gratuitas:
Art. 2º - Considera-se entidade beneficente de assistência social, para os fins deste Decreto, a pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, que atue no sentido de: I - proteger a família, a maternidade, a infância, a adolescência e a velhice; II - amparar crianças e adolescentes carentes; III - promover ações de prevenção, habilitação e reabilitação de pessoas portadoras de deficiências; IV - promover, gratuitamente, assistência educacional ou de saúde; V - promover a integração ao mercado de trabalho (DECRETO nº 2.536, 1998).
Observe-se, que resoluções do CNAS incluíam (acrescentavam) no rol acima a
seguinte finalidade que também possibilitava a obtenção do CEBAS: promover o atendimento
e o assessoramento aos beneficiários da Lei Orgânica da Assistência Social e a defesa e
garantia dos seus direitos; bem como que não se exigia que a assistência educacional ou de
saúde fossem exclusivamente gratuitas, ou seja, uma parcela desses serviços na área de saúde
e educação podiam ser remunerados e a outra devia ser prestada gratuitamente à população.
Agora, a nova e recente legislação – Lei 12.101, de 27 de novembro de 2009 –
também indica uma concepção ampla (lato sensu) no tocante à assistência social para a
concessão do CEBAS e para a imunidade ou isenção das contribuições para a seguridade
social:
Art. 1 o A certificação das entidades beneficentes de assistência social e a isenção de contribuições para a seguridade social serão concedidas às pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, reconhecidas como entidades beneficentes de assistência social com a finalidade de prestação de serviços nas áreas de assistência social, saúde ou educação, e que atendam ao disposto nesta Lei (LEI nº 12.101, 2009)
Note-se, finalmente, que a opção pela utilização neste estudo de um conceito mais
abrangente tem como embasamento posicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF)
sobre o que é a assistência social, segundo a Constituição Federal (CF). Mais especificamente,
quando da concessão das medidas liminares nas apensas Ações Diretas de
Inconstitucionalidade (ADINs) nºs 2.036-6 e 2.028-5, o pleno do STF, ao posicionar-se sobre
quais seriam as entidades beneficentes de assistência social tratadas o art. 195, § 7º, da CF –
disposição que concede a essas entidades a imunidade das contribuições para a seguridade
social - , expressamente reconhece que a Constituição Federal adotou o conceito mais lato de
assistência social, nela estando englobados além da assistência social propriamente dita
130
(strictu sensu), a saúde e a educação, deixando claro, ainda, que a seção da Constituição
Federal relativa à Assistência Social (arts. 203 e 204116) não é exauriente do que se deve
entender como assistência social.
No Acórdão, o relator Ministro Moreira Alves trata a questão da seguinte forma:
Com efeito, as próprias informações do Exmo. Sr. Presidente da República, com relação ao conceito de assistência social, invocam lição de CESARINO JÚNIOR, segundo a qual “a forma típica de assistência social é aquela destinada a assegurar meios de vida aos indigentes”, e por isso, para opor-se a assistência a previdência, “podemos definir o Direito Assistencial como parte do Direito Social relativa à concessão aos hipossuficientes dos meios de satisfação de suas necessidades vitais, sem qualquer contraprestação da parte”. E entre essas necessidades se encontram as relativas à saúde e também à educação, esta como meio para atender a objetivos visados pelo artigo 203, como o amparo às crianças e adolescentes carentes e à promoção da integração no mercado de trabalho. Do exame sistemático da Constituição, verifica-se que a Seção relativa à Assistência Social não é exauriente do que se deve entender como Assistência Social... (ACÓRDÃO).
3.3. ONGs e Política de Governo: A Visão Restrita que Transforma o Terceiro Setor em
Ideologia117
O primeiro objetivo deste subitem é explicitar o que são ONGs para este estudo.
Quando se tratou do terceiro setor118 já ficou evidente que a expressão organização não-
governamental, identificada pela sigla ONG, não tem conotação jurídico-fiscal, ou seja, do
ponto de vista jurídico o termo ONG não se aplica, e isto porque essas organizações
juridicamente se constituem sob a natureza de associações ou fundações privadas – ou, ainda,
sob a natureza jurídica de organizações religiosas, a partir da introdução dessa espécie no
novo Código Civil Brasi1eiro.
É importante destacar, também, que a sigla ONG, no início de sua utilização – décadas
de 70 e 80 do século XX - e ainda hoje para determinados grupos – como exemplo, a
associação denominada ABONG – é utilizada para identificar organizações com ideário de
defesa de direitos, promoção da cidadania e ações política em prol da democracia.
116 Estes artigos da Constituição Federal foram transcritos no subitem desta dissertação denominado “Enfim, uma constituição federal cidadã”. 117 Sobre o sentido e significado da palavra “ideologia” adotado nesta dissertação, remetemos o leitor à nota de rodapé do subitem denominado “As faces do terceiro setor: idéia (valores), realidade (mensuração) e ideologia (mitos). 118 Remetemos o leitor ao item desta dissertação denominado “Conceitos, características, números e desacordos no terceiro setor”.
131
Neste sentido, Leilah Landim (1998), uma das precursoras do uso do termo e do
estudo acadêmico das ONGs, situando-as “justamente num ponto do caminho que vai da
caridade pessoalizada à ação pública governamental, não se confundindo com nenhuma das
duas” (LANDIM, 1998, p. 24), assim identifica os traços peculiares da categoria ONG:
Grosso modo: organizações com razoável grau de independência em sua gestão e funcionamento, criadas voluntariamente, sem pretender caráter representativo e sem ter como móvel o lucro material, dedicadas a atividades ligadas a questões sociais, pretendendo a institucionalização, a qualificação do trabalho e a profissionalização de seus agentes, tendo a fórmula “projeto” como mediação para suas atividades, onde as relações internacionais – incluindo redes políticas e sociais e recursos financeiros – estão particularmente presentes. Organizações nas quais, finalmente, o ideário dos direitos e da cidadania é marca de peso, permeando e politizando atividades variadas (muitas vezes formalmente as mesmas que caracterizam o campo dito assistencial) (Ibid., p. 54-55).
Porém, para que não pairem quaisquer dúvidas, deixamos claro que ONG é utilizado
na presente pesquisa como sinônimo de organização da sociedade civil, englobando de forma
genérica toda tipo de instituição sem fins lucrativos, independentemente de sua finalidade e de
seu ideário. E o fazemos seguindo “tendências a um uso, pelo senso comum, mais neutro e
indiscriminado do termo ONG, como sinônimo para qualquer organização sem fins lucrativos
voltada para a ação social” (Ibid., p. 78), tendências essas motivadas, segundo Landim (1998),
por dinâmicas sociais que redefinem antigas fronteiras e alianças no campo das organizações
da sociedade civil. Como exemplo dessas dinâmicas, cita a autora:
... a publicização e politização do campo tradicional das organizações assistenciais, ou por outro lado as recentes tentativas de algumas ONGs na qualificação para uma atuação na prestação massiva de serviços, em âmbito de políticas públicas, ou ainda transformações nas relações de financiamento, com todas as suas conseqüências sociais e políticas (Ibid., p. 79).
Já o segundo motivo deste subitem objetiva ratificar nosso posicionamento explicitado
anteriormente119, no sentido de ser equivocada a tendência de tão somente vincular a
amplitude e a expansão do terceiro setor à pressões de cima para baixo, especialmente
decorrentes de políticas de governo neoliberais, esquecendo-se de outros focos de pressão
que, inclusive, torna dinâmico – não estanque, e sim movida por ofensivas e contra-ofensivas
- o conflito entre o capitalismo dirigido (dirigismo), com sua proposta de pleno emprego e de 119 Especialmente nos subitens “As pressões envolvidas no terceiro setor: de cima (movimentos populares espontâneos), externas ou de fora (igrejas, ongs internacionais e agências oficiais) e de cima (políticas de governo)” e “As revoluções sociais, o estado democrático de direito e os processos de exclusão e inclusão sociais: para além do neoliberalismo ou implantes socialistas no capitalismo”.
132
um estado de bem-estar social (welfare state), e o neoliberalismo, com sua estratégia da
redução do tamanho do Estado e do gasto social governamental e sua lógica de exclusão
social e de destruição do welfare state mediante a privatização dos serviços sociais.
Também como já dissemos, não se nega com a colocação acima, que as decisões
governamentais sobre o modo da implementação das políticas públicas – por exemplo,
priorizar a implementação dos direitos sociais por meio da rede pública (órgãos ou unidades
governamentais); realizar serviços públicos por meio da rede privada, especialmente mediante
a celebração de convênios ou instrumentos congêneres com organizações sem fins lucrativos
etc – interferem na amplitude, desenvolvimento e forma de atuação das organizações do
terceiro setor. O que se contesta é o pensamento de que as pressões de cima para baixo
(políticas de governo) definem tudo, o que faz com que seus argumentadores esqueçam-se,
inclusive, que as pressões de baixo para cima (movimentos populares espontâneos pela
melhoria de condições de vida e pela busca de direitos) e as pressões externas (igrejas, ongs
internacionais, agências oficiais de fomento etc) também delineiam o campo do terceiro setor,
além de influenciar as próprias decisões e estruturas políticas governamentais.
Penso que esta tendência deva-se também ao hábito de pensarmos a sociedade em
função do binômio mercado-Estado, monopólio este que, diga-se, é questionado pela
expansão de atividades decorrentes de motivações metaeconômicas – por exemplo, atividades
econômicas caracterizadas por quota de gratuidade e comunhão -, que são realidades diversas
da lógica de mercado – “dar para ter” – e da lógica de Estado – “dar por dever” - , e que tem
na sociedade civil organizada um âmbito apropriado para o seu desenvolvimento120.
Esta visão centrada no binômio mercado-Estado e no monopólio de seus âmbitos de
influência, que fazem as coisas girarem em torno da política de governo, também transparece
na argumentação de Lester Salamon (1998) – já indicada e transcrita nesta dissertação – sobre
como fatores ideológicos – de direito ou de esquerda – buscam minimizar a dimensão e o
papel da sociedade civil organizada (o terceiro setor ou o setor social), centrando suas
argumentações no embate entre neoliberalismo (formação social capitalista com prevalência
do liberalismo, caracterizado por um programa que tem como meta a “flexibilização” dos
direitos trabalhistas e a privatização dos serviços sociais do Estado) e dirigismo (formação
social capitalista com implantes socialistas, caracterizado por um programa de pleno emprego
e Estado de bem-estar social). Segundo o autor, “barreiras ideológicas também obscurecem a
120 Estes argumentos têm como fonte de inspiração as considerações do papa Bento XVI (2009) desenvolvidas na carta encíclica Caritas in veritate..., que já foram detalhadas no subitem desta dissertação denominado “A parte ‘lucrativa’ do terceiro setor: responsabilidade social empresarial, investimento social privado e o princípio da gratuidade na atividade econômica”.
133
identificação do papel e da escala real do Terceiro Setor. (...) A esquerda o fez para justificar a
expansão do welfare state; a direita, para justificar ataques ao Estado como o destruidor de
instituições mediadoras privadas. O surgimento do welfare state também colaborou para que
o setor sem fins lucrativos permanecesse à margem ... (SALAMON, 1998, p. 6).
Assim, superando essa visão mais restrita e passando a enxergar um sistema formado
por três sujeitos – Estado, mercado e sociedade civil - , também se começa a perceber que a
existência da diversidade e heterogeneidade das organização da sociedade civil é fruto de
várias ideologias fomentadas pelas diversas fontes de pressão. Ora, aqui fica claro que o
processo de influência entre os sujeitos do sistema é de “mão dupla”, ou seja, ONGs
influenciam políticas de governo e atividades do mercado; governos influenciam atividades
do mercado e as atividades do setor social (terceiro setor); empresas influenciam políticas de
governo e atividades do setor social (terceiro setor). E mais, ainda, o modo de influência de
cada sujeito – Estado, mercado e sociedade civil - é múltiplo, pois eles são formados por
pessoas, grupos, segmentos e organizações que representam múltiplas formas de pensar e agir
motivadas por variadas ideologia.
Objetivando destacar a diversidade, heterogeneidade e pluralismo da composição da
sociedade civil organizada (o terceiro setor, o setor social) – os pontos de articulações,
complementaridades e convergências serão oportunamente detalhados121 -, a título ilustrativo,
a seguir “pincelamos” alguns trechos já transcritos: “... o Terceiro Setor é composto por
organizações sem fins lucrativos (...) dando continuidade às práticas tradicionais da caridade,
da filantropia e do mecenato e expandindo o seu sentido para outros domínios, graças,
sobretudo, à incorporação do conceito de cidadania.(...) Essa definição combina palavras de
épocas e de contextos simbólicos diversos...” (FERNANDES, 1997, p. 27); “o terceiro setor é
um tipo de ‘Frankenstein’: grande, heterogêneo, construído de pedaços, desajeitado, com
múltiplas facetas. É contraditório, pois inclui tanto entidades progressistas como
conservadoras. (...) Um ponto em comum: todos falam em nome da cidadania...” (GOHN,
2000, p. 60); “...Sua presença no cenário brasileiro é ampla e diversificada (...) Essas
organizações variam em tamanho, grau de formalização, volume de recursos, objetivo
institucional e forma de atuação. Tal diversidade é resultante da riqueza e pluralidade da
sociedade brasileira e dos diferentes marcos históricos que definiram os arranjos institucionais
nas relações entre o Estado e o Mercado” (FISCHER, 2002, p. 45-46).
121 Especialmente no item desta dissertação denominada “Religião, sociedade e terceiro setor”.
134
CAPÍTULO 2 – A RELIGIÃO E A CONSTRUÇÃO E FUNCIONAME NTO DA
SOCIEDADE CIVIL, EM UM ESTADO SECULAR
1. DESVENDANDO SIGNIFICADOS E SENTIDOS DA RELIGIÃO 122
1.1. Conceitos de Religião e Metodologias de Pesquisa dos Fenômenos Religiosos
Mais uma vez destacamos que esta dissertação tem como objeto averiguar a influência
dos valores ético-religiosos no funcionamento do terceiro setor (setor social), por meio da
investigação da maneira pela qual esses valores motivam e orientam os líderes (dirigentes,
gestores e membros) de organizações não-governamentais (ONGs). Assim, a essência da
dissertação é a motivação de fundo e de ordem pessoal dos seres humanos que atuam no setor
social, o que, diga-se, é o fator que nos indicou como fundamento metodológico a sociologia
compreensiva de Max Weber123, centrada na captação do sentido visado subjetivamente em
uma atividade (ação) social concreta, para “compreender qual a influência do comportamento
religioso sobre as outras atividades, ética, econômica, política ou artística, e de apreender os
conflitos que possam surgir da heterogeneidade dos valores que cada uma delas pretende
servir (FREUND, 2006, p.130)124.
Observe-se, entretanto, - neste ponto percebemos a origem de algumas confusões, e
por isso prestamos alguns esclarecimentos – que o fato de se buscar motivações de fundo de
ordem pessoal do ativismo no setor social, em hipótese alguma significa a negação de que
esse ativismo quando institucionalizado – o modo típico da institucionalização é a
constituição formal de uma ONG, ou seja, de uma burocratizada pessoa jurídica de direito
privado sim fins lucrativos com finalidade social – caracteriza-se como ações de conteúdo
cívico, regidas por valores universais e obedecendo a lógicas organizacionais
(contábil/mercantil e jurídica) e procedimentos fundamentados na racionalidade.125
122 Esclarecemos o leitor que existe uma importante correlação entre os três subitens a seguir desenvolvidos. 123 A questão metodológica será detalhada e aprofundada no item específico desta dissertação denominado “Fundamentos metodológicos para a compreensão da articulação religião-ética-ativismo no setor social”. 124 Adiante, neste mesmo subitem, transcrevemos o trecho mais amplo donde extraímos esta colocação de Julien Freund (2006) sobre a sociologia de Max Weber. 125 Esta argumentação será detalhado no item “Religião, sociedade e terceiro setor” e tem como fonte Marcelo A. Camurça (2005). Ao sustentar a “revanche da caridade”, o autor exemplifica seu ponto de vista da seguinte forma: “Por exemplo, quando um grande empresário que tem um filho com câncer resolve criar uma Fundação para cuidar de crianças com o mesmo problema, ou quando cidadãos que tiveram entes próximos seqüestrados ou vítimas de balas perdidas passam a atuar em movimentos em prol da erradicação destas formas de violência; ou mesmo jovens que se acidentaram no trânsito por imprudência, passam a se integrar em campanhas junto a outros jovens visando uma responsabilidade ‘ao volante’; estas não deixam de ser ações de conteúdo cívico,
135
Porém, são as pessoas e os valores, ou melhor, as motivações pessoais éticas e
religiosas – relacionadas à linguagem simbólico-religiosa – que nos interessam diretamente,
para a compreensão do terceiro setor e o funcionamento de suas organizações
institucionalizadas.
Considerando, neste contexto, que para uns as motivações e valores são mais éticos do
que religiosos e vice-versa, bem como considerando que “a religião, sem interioridade, sem
uma sensação ‘banhada em sentimento’ de que a crença importa, e importa tremendamente,
de que a fé sustenta, cura, consola, corrige as injustiças, melhora a sorte, garante
recompensas, explica, impõe obrigações, abençoa, esclarece, reconcilia, regenera, redime ou
salva, mal chega a ser digna desse nome” (GEERTZ, 2001, p. 159)126, comecemos a
desvendar os significados e sentidos da religião com a seguinte pergunta, que é o próprio
título do livro que retrata o diálogo epistolar entre Umberto Eco e Carlo Maria Martini (2001)
- o Cardeal Martini: Em que crêem os que não crêem?
No ponto central do diálogo – isto segundo nossa opinião –, que motivou a
explicitação por Umberto Eco do conceito de “religiosidade laica” e a resposta final e
conclusiva de Carlo Maria Martini à pergunta acima referida –, o Cardeal Martini assim
interroga Eco:
... se a ética fosse apenas um elemento útil para regular a vida social, como seria possível justificar imperativos éticos absolutos quando é tão mais cômodo abrir mão deles? E ainda: o que fundamenta a dignidade humana se não a existência de uma abertura para alguma coisa mais alta e maior do que nós? (ECO e MARTINI, 2001, p. 146).
Em função dessas interrogações, Umberto Eco (2001) apresenta um conceito de
“religiosidade laica” que é um importante elemento para o aprofundamento da noção de “fé
antropológica”127, e após fazer uma interpretação da vida de Jesus Cristo por meio de um
regidas por valores universais e podendo obedecer até a lógicas organizacionais e procedimentos montados em cima de uma racionalidade, porém a motivação de fundo é de ordem pessoal que, ao voltar-se para este ‘outro’ semelhante, busca forjar um vínculo insubstituível que se nutre principalmente da evocação de um fato singular de sua vida íntima. É o que Novaes chama de ‘questões da ‘vida privada’, até de ‘foro íntimo’ [que] são incluídas na agenda pública e, por extensão, repercutem no debate político...’” (CAMURÇA, 2005, p. 58). 126 Adiante, neste mesmo subitem, transcrevemos o trecho mais amplo donde extraímos esta colocação de Clifford Geertz (2006) sobre o “tipo de investigação”do psicólogo da religião William James. 127 Extraímos esta expressão “fé antropológica” de Jung Mo Sung (2007), que é o autor inspirador da redação do subitem desta dissertação denominado “Religião no processo de reencantamento da vida e transformação social”. Para melhor compreensão do conceito de “religiosidade laica”, transcrevemos os seguintes ensinamento do autor: “Os conceitos de ‘religiosidade laica’ ou ‘religião sem Deus’ parecem estranhos e até contraditórios para a maioria de nós que estamos acostumados a pensar a religião como uma ‘re-ligação’ do ser humano com Deus. Entretanto, essas expressões aparentemente paradoxais servem para nos mostrar uma dimensão fundamental do ser humano: a busca pelo sentido último da vida e a conseqüente aposta na possibilidade de se viver um vida mais humanamente significativa e de construir um sociedade mais justa. Mesmo pessoas que não crêem na
136
“conto”128 sob a perspectiva da religiosidade laica, conclui fazendo uma aproximação – com
margens não-superáveis – entre ética natural e ética baseada na fé na transcendência:
Todavia, creio poder dizer em que fundamentos se baseia, hoje, minha “religiosidade laica” – porque acredito firmemente que existem formas de religiosidade, e logo sentido do sagrado, do limite, da interrogação e da espera, da comunhão com algo que nos supera, mesmo na ausência da fé em uma divindade pessoal e providente. Mas isso, posso percebê-lo em sua carta, o senhor também sabe. O que o senhor tem se perguntado é o que há de vinculante, arrebatador e irrenunciável nestas formas de ética. (...) ...considero que, nos pontos fundamentais, uma ética natural – respeitada na profunda religiosidade que a anima – pode ir ao encontro dos princípios de uma ética baseada na fé na transcendência, a qual não pode deixar de reconhecer que os princípios naturais foram esculpidos em nosso coração com base em um programa de salvação. Se restam, como certamente hão de restar, margens não-superáveis, não ocorre diversamente no encontro entre religiões diversas. E nos conflitos de fé, devem prevalecer a Caridade e a Prudência (Ibid., p. 80 e 90).
Já o Cardeal Martini (2001), na conclusão da referida obra – a ele foi concedido a
última argumentação - formula a seguinte resposta à pergunta “Em que crêem os que não
crêem?”:
existência de um Deus ou de seres divinos compartilham com os que crêem a mesma necessidade e o desejo de um sentido último da vida que nos encante e faça valer a pena a nossa existência. Podemos nos referir a isso como a ‘religiosidade’ presente em todas as pessoas, mesmo naquelas que não crêem em Deus ou não pertencem a nenhuma religião. Afinal, as religiões e tradições espirituais não criam a ‘religiosidade’ nas pessoas – essa necessidade e desejo de um sentido último que encante a vida -, mas somente procuram responder bem ou mal às questões que nascem da ‘religiosidade’ humana presente antes e também fora das religiões” (SUNG, 2007, p. 151-152) 128 Este é o “conto” de Umberto Eco (2001) sobre a vida de Jesus Cristo, que ilustra sua conceituação de religiosidade laica: “Mas o senhor diz que, sem o exemplo e a palavra de Cristo, qualquer ética laica careceria de uma justificativa de fundo que tenha uma força de convicção ineludível. Por que retirar do leigo o direito de valer-se do exemplo do Cristo que perdoa? Procure, Carlo Maria Martini, para o bem da discussão e do confronto em que acredita, aceitar, mesmo que por um só instante, a hipótese de que Deus não exista: que o homem, por um erro desajeitado do acaso, tenha surgido na Terra entregue a sua condição de mortal e, como se não bastasse, condenado a ter consciência disso e, portanto, que seja imperfeitíssimo entre os animais (e permita-me o tom leopardino dessa hipótese). Este homem, para encontrar coragem para esperar a morte, tornou-se forçosamente um animal religioso, aspirando construir narrativas capazes de fornecer-lhe uma explicação e um modelo, uma imagem exemplar. E entre tantas que consegue imaginar – algumas fulgurantes, outras terríveis, outras ainda pateticamente consoladoras – chegando à plenitude dos tempos, tem, em um momento determinado, a força religiosa, moral e poética de conceber um modelo do Cristo, do amor universal, do perdão ao inimigos, da vida oferta em holocausto pela salvação do outro. Se eu fosse um viajante proveniente de galáxias distantes e me visse diante de um espécie que soube propor tal modelo, admiraria, subjugado, tanta energia teogônica e julgaria redimida esta espécie miserável e infame, que tantos horrores cometeu, apenas pelo fato de que conseguiu desejar e acreditar que tal seja a verdade. Abandone agora também a hipótese e deixe-a para os outros: mas admita que, se Cristo fosse realmente apenas o sujeito de um conto, o fato de que esse conto tenha sido imaginado e desejado por bípedes implumes que sabem apenas que não sabem, seria tão milagroso (milagrosamente misterioso) quanto o fato de que o filho de um Deus real tenha realmente encarnado. Este mistério natural e terreno não cessaria de perturbar e adoçar o coração de quem não crê” (ECO e MARTINI, 2001, p. 88, 89 e 90)
137
Mas a ética sozinha é suficiente? Constitui o horizonte único do sentido da vida e do verdadeiro? Parece empreendimento inútil fundar o ético apenas em si mesmo, sem remissão ou ligação com um horizonte global e, portanto, com o tema da vida. Mas qual é a essência do verdadeiro? (...) Em que crê quem não crê? É preciso pelo menos crer na vida, em uma promessa de vida para os jovens, não raro enganados por uma cultura que os convida, pretextando liberdade, a todo tipo de experiência que pode depois concluir-se em derrota, desespero, morte, dor. Faz pensar o fato de que em muitas intervenções esteja ausente a interrogação sobre o enigma do mal; e isto só se acentua na medida em que podemos considerar que vivemos em um época que conheceu as mais terríveis manifestações da maldade. Um certo clima de otimismo fácil, segundo o qual as coisas se arranjam mais ou menos sozinhas, não apenas mascara a dramaticidade da presença do mal, mas apaga também o sentido de que a vida moral é luta, combate, tensão agonística; de que a paz só se alcança ao preço do dilaceramento sofrido e superado. Por isso pergunto-me se idéias inadequadas sobre o mal não estariam ligadas a idéias insuficientes sobre o bem; se o iluminismo não estaria falhando ao não perceber ou ao menosprezar o elemento dramático inerente à vida ética (Ibid., p. 153 e 154).
Após alertar o leitor que, em função da argumentação acima, nossa busca pelas
motivações ético-religiosas tem um caráter amplo e universal129, voltemos, agora, ao foco
principal deste subitem, ou seja, aos conceitos de religião e às metodologias de pesquisa dos
fenômenos religiosos.
A se pretender investigar a relação – a existência de uma “afinidade eletiva” - entre o
ethos religioso e o ethos do ativismo no setor social (no terceiro setor), não se pode prescindir
da paradigmática definição de religião de Clifford Geertz (1989), que envolve uma
abordagem simbólica focada no que a religião representa, especialmente como elemento de
articulação entre o ethos e a visão de mundo:
Como vamos lidar com o significado, comecemos com um paradigma: ou seja, que os símbolos sagrados funcionam para sintetizar o ethos de um povo – o tom, o caráter e a qualidade da sua vida, seu estilo e disposições morais e estéticas – e sua visão de mundo – o quadro que fazem do que são as coisas na sua simples atualidade, suas idéias mais abrangentes sobre a ordem. (...) Vamos, portanto, reduzir nosso paradigma a uma definição. Embora seja notória que as definições em si nada estabelecem, se forem cuidadosamente construídas elas podem, por elas mesmas, fornecer uma orientação ou reorientação útil do pensamento, de forma que desenrolá-la pode ser um caminho efetivo para desenvolver e controlar uma linha nova de pesquisa (...) Portanto, sem mais cerimônias, uma religião é: (1) um sistema de símbolos que atua para (2) estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens através da (3) formulação de conceitos de uma ordem de existência geral e (4) vestindo essas concepções com tal aura de fatualidade que (5) as disposições e motivações parecem singularmente realistas (GEERTZ, 1989, p. 103,104 e105).
129 Embora esta perspectiva possa ser verificada em vários pontos desta dissertação, indicamos exemplificativamente a argumentação de Hans Küng (2004) exposta no subitem “Religião, ética e condução de vida: uma escolha racional”, que parte da seguinte afirmação: “Nosso planeta não irá sobreviver, se não houver um ethos global, uma ética para o mundo inteiro” (KÜNG, 2004, p. 17).
138
Destaca-se, que para se investigar a influência de valores ético-religiosos na sociedade
atual e a existência de uma convergência entre racionalidade substantiva (de valores) e a
racionalidade instrumental (de fins) nas atividades do setor social, serão utilizadas
proposições da teoria formal da escolha racional de Rodney Stark (2006) referente aos
compensadores religiosos, “uma espécie de substituto para recompensas desejadas” (STARK,
2006, p. 187), em face da escassez das recompensas ou da impossibilidade de ser alcançada
aqui e agora – como exemplo deste, a imortalidade (Cf. Ibid., p. 187). E isto especialmente
para compreender “o processo de escolhas racionais por meio do qual os seres humanos
valoram e intercabiam esses compensadores” (Ibid., p. 188), entendidos eles como o propósito
concernente à obtenção (o método de atingimento) da recompensa (da coisa desejada) (Cf.
Ibid., 187). Desta forma e também como diretriz da presente pesquisa, Stark e William Sims
Bainbridge (1985) nos trazem uma valiosa contribuição ao definirem religiões “como
organizações humanas fundamentalmente (principalmente) ocupadas em estabelecer (prover)
compensadores gerais (comuns) baseados (fundamentados) em suposições (hipóteses)
sobrenaturais” (STARK e BAINBRIDGE, 1985, p. 8)130.
O estudo da religião e da experiência religiosa – talvez seja melhor dizer das religiões
e das experiências religiosas, ou seja, do “mundo religioso” - e a própria pergunta “O que é
religião?” tornaram-se possíveis a partir de uma nova visão de mundo racionalizada e
secularizada, fruto da Modernidade iniciada pela filosofia iluminista, na qual a razão e os
métodos científicos ocupam o lugar das “verdades” fundamentadas na tradição e na revelação
(Cf. NUNES, 2007, p. 100). Neste contexto, a religião deixou de ser “a explicação”
(explanans) dos fenômenos naturais e sociais – essa função foi atribuída à ciência - e passou a
ser “um objeto a ser explicado” (explanandum) pela ciência.
De forma similar à colocação de Geertz (1989) quando de sua definição de religião,
Hans-Jürgen Greschat (2005) inicia sua obra O que é ciência da religião? com as seguintes
afirmações: “A palavra ‘religião’ é como um labirinto. Perder-se-á nele quem não trouxer um
fio na mão para se orientar” (GRESCHAT, 2005, p. 17). E o autor continua:
O que um termo quer dizer depende de sua definição. O esclarecimento do seu significado, pois, deve informar o que caracteriza “religião” – mais aí está a dificuldade. Embora existam muitas definições de religião – algumas centenas, presumivelmente – e embora novas definições sejam lançadas permanentemente, até hoje não se chegou ao resultado esperado. Não há uma definição que não seja rejeitada por, pelo menos, uma pessoa. (...) Chegará o dia em que todos vão concordar com uma única definição? Isso é improvável (Ibid., p. 20).
130 Texto original: as human organizations primarily engaged in providing general compensators based on supernatural assumptions. A tradução é nossa.
139
Ora, se “definições em si nada estabelecem”, se é “improvável” uma definição
consensual e se o termo “religião” é um “labirinto”, por que os estudiosos das ciências da
religião e das áreas afins (ciências sociais, antropologia, história, psicologia, psicanálise,
teologia, filosofia, literatura etc) preocupam-se em definir a religião ou, ao menos,
compreender o significado das definições e as funções, as dimensões, os elementos e as
perspectivas da religião? Só Carlo Prandi (2003) dedica várias páginas abordando as
definições e funções da religião segundo os principais pensadores das disciplinas ou
subdisciplinas que compõem, nutrem e interagem com as ciências da religião.131
Edênio Valle (2007), ao tratar da subdisciplina de sua especialidade e que pode ser
generalizada, responde a questão acima formulada:
Talvez seja mais correto dizer que em psicologia da religião não existe uma definição de religião. Ao mesmo tempo, para que se possa ter um mínimo de entendimento sobre o que se está falando, elaborar algum tipo de definição é algo indispensável. Em vez de insistir na definição do que é seu conhecimento, o psicólogo da religião talvez devesse explicar melhor a aproximação de que faz uso (VALLE, 2007, p. 130-131).
Aí, no objeto de pesquisa e na metodologia adotada pelo pesquisador, percebe-se o
“fio na mão” e a “orientação ou reorientação útil do pensamento” que guiam o estudioso,
segundo sua opção, no “labirinto” da religião. Em outras palavras: “quem elabora uma teoria
sobre religião define o que entende por ‘religião’. Não se pode questionar uma teoria
logicamente construída contanto que se aceite a definição de religião em que tal teoria se
baseia” (GRESCHAT, 2005, p. 20-21). A título exemplificativo, noticia-se que o pesquisador
Edênio Valle (2007), segundo a sua conveniência, optou pelo seguinte caminho: “Para mim, a
religião, do ponto de vista da psicologia, deve ser entendida como uma ‘atitude’, isto é, como
uma maneira de ser diante de alguém ou algo” (VALLE, 2007, p.131).
Avançando no tema, chega-se no objeto da religião (em uma determinada religião; em
uma das muitas “tradições” ou movimentos religiosos) e em suas perspectivas de
investigação:
Diferentemente das definições de religião, o objeto “religião” não existe apenas na cabeça de pesquisadores. (...) O objeto “religião” é concreto, ou seja, é uma determinada religião. Cada uma das milhares de religiões que podem ser escolhidas e
131 Dentre eles, foram citados pelo autor: Voltaire; Henri de Saint-Simon; Marx; Freud; E. B. Tylor; Pe. W. Schmidt; E. K. Nottinghan; Emile Durkheim; Marcel Mauss; Max Weber; Schleiermacher; Ernst Troeltsch; Joachim Wach; R. Otto; R. Stark; W. Sims; Elliot Guthrie; M. Eliade; C. Geertz; J. Milton Yinger; Paul Tillich; Robert D. Baird; Robert Bellah; Raymond Firth; Robin Horton; Raffaele Pettazoni; Dario Sabbatucci; Ugo Bianchi.
140
estudadas é representada como uma totalidade passível de investigação de acordo com quatro perspectivas: como comunidade, como sistema de atos, como conjunto de doutrinas ou como sedimentação de experiências. (...) Uma dificuldade, porém, embaraça cientistas da religião em todos os casos. Ela está vinculada à quarta camada do objeto, ou seja, à experiência religiosa. (...) Cientistas da religião, mesmo que não tenha experimentado algo semelhante, não desistem facilmente. (...) Talvez algo visível permita-nos um olhar no invisível, em uma experiência religiosa. O quarto aspecto do objeto “religião” é considerado seu elemento central, mas essa essência pode-se tornar também sensível quando nos aproximamos dele com base nas três outras perspectivas (GRESCHAT, 2005, p. 24-25 e 26-27).
Como, então, deve-se pesquisar cientificamente a religião? Qual perspectiva
metodológica pode ser utilizada? Surgem, aqui, duas posições de certa forma antagônicas e
que mutuamente se acusam de reducionistas.
Por um lado, a fenomenologia da religião. Segundo José Severino Croatto (2004), em
sua obra específica sobre essa abordagem, ela poderia ser denominada hierologia (ou estudo
do sagrado) e seu objeto é a compreensão da intencionalidade e da essência dos fatos
religiosos sob a ótica do sujeito que vivencia a experiência religiosa (a experiência com o
sagrado, com o transcendente) (Cf. CROATTO, 2004, p. 24-25). Diz ainda ele, que o
historiador e fenomenólogo Mircea Eliade “afirmou constantemente que o fenômeno religioso
é irredutível e deve ser compreendido em sua modalidade própria, que é a de ‘o sagrado’, e
não a partir da psicologia, da sociologia, da filosofia ou da teologia. (...) O objeto da
fenomenologia da religião é o próprio sujeito da experiência religiosa!” (Ibid., p. 57). Já sobre
a “experiência religiosa”, que é um elemento central da fenomenologia da religião, o referido
autor assim se posiciona:
Considerando que toda a vivência humana é relacional (com os demais seres humanos/com o mundo), a vivência religiosa é igualmente relacional e até mais pois relaciona também a realidade humana com o transcendente. Essa nova relação é específica. E também se verá que é irredutível. Considerando, entretanto, que a experiência religiosa continua humana, seu resultado será limitado à realidade (não na aspiração) e, por isso, será sempre objeto de um desejo e de uma busca incessantes, sem fim (Ibid., p. 44-45).
Por outro lado, tem-se a abordagem multidisciplinar das religiões em seus aspectos
empíricos. Frank Usarski (2006), em texto no qual critica a fenomenologia da religião
“clássica”, destaca que o paradigma da maioria dos cientistas da religião contemporâneos é
norteado pela necessidade de uma abordagem multidisciplinar no estudo da religião que
envolva todas as dimensões – antropológica, história, sociológica, psicológica, geográfica,
estética, científica natural, teológica etc -, que compõem qualquer religião concreta e que
141
dizem respeito às manifestações religiosas empíricas. Assim, a forte tendência atual é de se
afastar da metodologia proposta pela fenomenologia da religião, que ao buscar a compreensão
da essência da religião e a compreensão do “sagrado” (do elemento transcendente, do
“mistério”) como fenômeno universal, concentra-se na experiência religiosa do sujeito
religioso, abstrai-se da complexidade dos fatos reais empíricos e, conseqüentemente,
negligencia ou coloca em segundo plano o estudo dos elementos culturais, sociais, filosóficos
e práticos das religiões concretas (Cf. USARSKI, 2006, p. 33-44). “Ao mesmo tempo, acusa-
se a Fenomenologia da Religião de um reducionismo, porque a concentração exagerada na
experiência religiosa negligencia a maior parte das facetas fundamentais para o mundo
religioso concreto”. (Ibid., p. 43 )
Como exemplo de uma abordagem “não fenomenológica”, destaca-se a perspectiva
sociológica da religião de Max Weber (1999), inclusive porque ela referencia o presente
projeto de pesquisa. Weber propõe uma definição de religião de caráter funcional, na qual
“não importa tanto a referência à divindade, e sim que ‘tudo corra bem’” (PRANDI, 2003, p.
263). Vamos a ela:
Uma definição daquilo que “é” religião é impossível no início de uma consideração como a que segue, e, quando muito, poderia ser dada no seu final. Mas não é da “essência” da religião que nos ocuparemos, e sim das condições e efeitos de determinado tipo de ação comunitária cuja compreensão também aqui só pode ser alcançada a partir das vivências, representações e fins subjetivos dos indivíduos – a partir do “sentido” -, uma vez que o decurso externo é extremamente multiforme. A ação religiosa ou magicamente motivada, em sua existência primordial, está orientada para este mundo. As ações religiosas ou magicamente exigidas devem ser realizadas “para que vás muito bem e vivas muito e muitos anos sobre a face da Terra” (WEBER, 1999, p. 279).
Julien Freund (2006), com maestria, comenta e elucida essa definição e, com ela, os
propósitos e intenções de Weber:
A sociologia não tem por obrigação estudar a essência do fenômeno religioso, mas sim o comportamento ao qual este dá origem pelo fato de se apoiar sobre certas experiências particulares, sobre representações e fins determinados. É, pois, a conduta significativa do ser religioso que interessa a WEBER. Por este motivo não se trata de especular sobre o valor respectivo dos dogmas, das teologias concorrentes ou das filosofias religiosas, nem tampouco sobre a legitimidade da crença numa outra vida, mas, sim, de estudar o comportamento religioso como uma atividade humana deste mundo (diesseitig), que se orienta significativamente de acordo com fins ordinários. Não se trata tampouco de adotar a posição positivista que tem de modo geral por base a negação, ou o desprezo da religião, mas sim de compreender qual a influência do comportamento religioso sobre as outras atividades, ética, econômica, política ou artística, e de apreender os conflitos que possam surgir da heterogeneidade dos valores
142
que cada uma delas pretende servir. Assim compreendidas, as pesquisas sociológicas sobre a religião se tornam ao mesmo tempo pesquisas relativas à sociologia econômica, ou política e, sobretudo, à sociologia da moral (FREUND, 2006, p. 130).
Voltamos, agora, ao ponto inicial, com a resposta de Frank Usarski à seguinte
pergunta a ele feita pelos alunos do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da
PUC-SP:
Como você define “religião”? (...) A partir dessas considerações, dividimos o conceito de religião em quatro elementos: Primeiro, religiões constituem sistemas simbólicos com plausibilidades próprias. Segundo, do ponto de vista de um indivíduo religioso, a religião caracteriza-se como a afirmação subjetiva de que existe algo transcendental, algo extra-empírico, algo maior, mais fundamental ou mais poderoso do que a esfera que nos é imediatamente acessível através do instrumentário sensorial humano. Terceiro, religiões se compõem de várias dimensões: particularmente temos de pensar na dimensão da fé, da dimensão institucional, na dimensão ritualista, na dimensão da experiência religiosa e na dimensão ética. Quarto, religiões cumprem funções individuais e sociais. Elas dão sentido à vida, alimentam esperanças para o futuro próximo ou remoto, sentido esse que algumas vezes transcende o da vida atual, e com isso possui a potencialidade de compensar sofrimentos imediatos. Religiões podem ter funções políticas, no sentido ou de legitimar e estabilizar um governo ou de estimular atividades revolucionárias. Além disso, religiões integram socialmente, uma vez que membros de determinada comunidade religiosa compartilham a mesma cosmovisão, seguem valores comuns e praticam sua fé em grupos (USARSKI, 2006, p. 125-126).
Na definição acima, encontramos proposições de Geertz (“religiões constituem
sistemas simbólicos com plausibilidades próprias”), de Weber e Stark (“religiões cumprem
funções individuais e sociais”) e, ainda, perspectivas fenomenológicas (“do ponto de vista de
um indivíduo religioso, a religião caracteriza-se como a afirmação subjetiva de que existe
algo transcendental”). Será, então, que a dicotomia entre a “abordagem multidisciplinar
empírica” e a “fenomenologia da religião” pode ser superada? Talvez a questão possa ser
colocada de outra forma: é possível em uma investigação multidisciplinar empírica ter uma
atitude fenomenológica, isto é, dar um passo em direção às experiências religiosas
individuais?
Clifford Geertz (2001) responde que sim, por meio do texto “O Beliscão do Destino: a
religião como experiência, sentido, identidade e poder”132, no qual ele, embora em tom
crítico, resgata o “tipo de investigação” (que parte do sentimento e considera a
individualidade da experiência) do psicólogo da religião William James. E é assim que
132 Esse texto está incluso no livro Nova luz sobre a antropologia, especificado na “Bibliografia”.
143
tentarei conduzir este projeto de pesquisa, que foi motivado por minha “experiência religiosa”
e pelo meu desejo de compreendê-la sob a ótica científica. Concluindo, voltemos a Geertz:
...E isso nos leva de volta, como presumo que seria inevitável, à preocupação de James, se não, necessariamente, a sua maneira de formulá-la: que está acontecendo, para citá-lo mais uma vez, nos “recônditos do sentimento, nas camadas mais obscuras e mais cegas do caráter” dos que são apanhados nas lutas – religiosamente concebidas e religiosamente expressas – pelo sentido, pela identidade e pelo poder? Que houve com “o beliscão do destino”, agora que ele parece estar tão presente no mundo? A “experiência”, atirada porta afora como um “estado de fé” radicalmente subjetivo e individualizado, volta pela janela, como sensibilidade comunal de um ator social que se afirma em termos religiosos. Comunal, mas pessoal. A religião, sem interioridade, sem uma sensação “banhada em sentimento” de que a crença importa, e importa tremendamente, de que a fé sustenta, cura, consola, corrige as injustiças, melhora a sorte, garante recompensas, explica, impõe obrigações, abençoa, esclarece, reconcilia, regenera, redime ou salva, mal chega a ser digna desse nome. (...) Mas a visão que parece subjazer a inúmeras análises da expressão religiosa, nestes nossos tempos neo-nietzschianos de vontade de poder, qual seja, a de que as paixões que nos movem são puramente políticas ou político-econômicas, e de que a religião não passa de uma máscara e uma mistificação, um encobrimento ideológico de ambições perfeitamente seculares e mais ou menos egoístas, simplesmente não é plausível. Mas o problema é que, se as dimensões comunitárias da mudança religiosa, aquelas sobre as quais “às vezes” podemos ler nos jornais, são pouco pesquisadas, as dimensões pessoais, aquelas sobre as quais “geralmente” temos de falar com pessoas vivas, se quisermos encontrá-las, mal chegam a ser investigadas. (...) E, como resultado, a articulação weberiana das convicções religiosas com as ações práticas, a inseparabilidade entre a crença e o comportamento, tende a se perder de vista: as duas voltam a ser separadas, como “fatores”, “variáveis”, “determinantes” ou seja lá o que for... (GEERTZ, 2001, p. 158, 159 e 160).
Ora, acreditamos – e por isto nos referendamos na sociologia compreensiva de Max
Weber e seu tipos ideais, especialmente os elementos determinantes (motivações racionais por
fins e/ou valores) da ação social – que para compreender – e isto vai além da explicação
puramente naturalista (descrição das causas e efeitos) – as ações, relações, estruturas e
instituições sociais, precisamos captar (compreender) o sentido visado subjetivamente em
uma atividade (ação) social concreta. E o trecho final do texto de Geertz é categórico na
indicação da centralidade das pessoas e suas motivações – no caso ora pesquisado
psicorreligiosas (valores ético-religiosos) – para a explicação e compreensão da sociedade –
no caso ora pesquisado da construção e funcionamento de uma rede social e/ou assistencial de
implementação dos direitos sociais, ou seja, do setor social (terceiro setor).
144
1.2. Nova Consciência Religiosa, Novos Movimentos Religiosos (NMR) e Conceitos Úteis
para o Estudo da Religião
Inicialmente, destacamos que para se compreender o contexto da efervescência dos
Novos Movimentos Religiosos (NMRs), torna-se imprescindível entender os significados,
consensos e discordâncias sobre “secularização” e as conseqüências do processo da
secularização normativa (jurídica) do Estado. E isto, inclusive para que se possa compreender
o motivo da existência de posições antagônicas sobre a explosão de novas formas vida
religiosa: para alguns, o aparecimento dos NMRs são sinais de dessecularização; já para
outros são expressões da secularização. Assim, de início, indicamos a leitura preliminar do
subitem “Secularização: o incontroverso e as controvérsias”133.
Elucidamos, ainda, que a proposição de Camurça (2005) a seguir transcrita, que
também subsidia nossa hipótese de que os valores ético-religiosos – em destaque a caridade -
continuam a influenciar o funcionamento do terceiro setor (do setor social), levou-nos à
percepção de que além das religiões tradicionais deveríamos abordar as novas experiências
religiosas. “Hoje, em tempos de des-institucionalização e self-religion, logo, de
desencompatibilização do indivíduo em relação a uma pertença exclusiva a uma religião,
sugiro que o binômio caridade/filantropia possa ser assumido por amplas parcelas sem que
signifique uma definição por um credo e assuma ainda mais contornos de uma ‘religião
comum’ aos brasileiros” (CAMURÇA, 2005, p. 53-54).
O que são, então, os Novos Movimentos Religiosos? É esta a resposta de Silas
Guerriero (2006): “Podemos agora esclarecer o que entendemos por NMR. Podemos inserir
todos os grupos espirituais que são claramente novos em relação às correntes religiosas
tradicionais da cultura abrangente e possuem um grau de organização característico de um
grupo religioso formal” (GUERRIERO, 2006, p. 39). O autor lembra que o objetivo da
criação do conceito de NMR foi dar conta do que acontecia de novo no campo religioso na
sociedade ocidental e, assim, talvez o elemento comum seja que a imensa diversidade134
representa justamente a novidade no campo religioso (Cf., Ibid., p. 88).
133 Desde já esclarecemos, que o ponto incontroverso diz respeito à secularização como um processo jurídico-político irreversível , ou seja, secularização do Estado, da lei, da normatividade jurídica geral, representado pelo separação entre Estado e religião. Já as controvérsias – elas suscitam, inclusive, as idéias de “dessecularização” – dizem respeito à extensão maior ou menor da secularização da vida das pessoas ou mesmo da secularização cultural, representada pelo dimensão – para uns maior, para outros menor – do declínio da influência da religião nos diferentes níveis, tanto social quando individual. 134 Em seu livro já identificado, o autor traz uma listagem por ordem alfabética com 58 exemplos de NMRs existentes no Brasil, quais sejam: Ahmadiya, Associação Muçulmana; Ananda Marga; Antroposifia/Sociedade Antroposófica Universal; Aun Shinrikyo; Barquinha; Brahma Kumaris, Organização; Budismo/Novos Grupos
145
O autor também destaca a existência de uma dupla tendência no amplo espectro nos
NMRs, o fundamentalismo e o relativismos, que são conseqüências de um quadro
sociocultural que provocou um nova consciência religiosa.
Uma das características principais da nova consciência religiosa é justamente a possibilidade de autonomia e constituição variada de uma “religião individual”. Poderíamos até pensar que, em vez de uma verdade revelada, temos uma verdade intuída. Dos grupos mais fechados, a verdade é revelada e transmitida por um profeta ou mensageiro, legítimo representante das divindades aqui na terra. Deve-se obedecer incondicionalmente a esse líder e seguir seus passos pois só assim se alcançará a salvação. Na outra ponta do espectro, temos a construção subjetiva, por meio da valorização de um conhecimento de ordem intuitiva, em que cada indivíduo deve deixar-se possuir pela energia cósmica, sentir a verdade dentro de si e, depois, realizar o trabalho necessário para atingir a salvação. Esta salvação, ou realização plena, como se costuma denominar, não acontece fora desse mundo, mas pode muito bem significar o bem estar e a integração com a totalidade (Ibid., p. 92 e 93).
Passaremos, neste momento, a delinear alguns conceitos úteis para o estudo dos
fenômenos religiosos – Igreja, seita e culto - , inclusive porque as novas práticas religiosas,
que envolvem uma religiosidade pessoal, relativista, flutuante, difusa e “orientalizada”
(pautada no monismo e na imanência), “se aproximam muito mais da religião de tipo místico,
conforme denominação Troeltsch, do que de uma seita ou, menos ainda, de uma Igreja.
Dentre as característica deste tipo de religião, podemos perceber a formação de redes no lugar
das instituições, a ênfase na experiência religiosa direta, a prática da tolerância e de certo
relativismo (...) e a idéia de que cada um possui um centelha divina” (Ibid., p. 59).
Segundo Rodney Stark (2006), “a mais proveitosa dessas definições identifica
Igrejas e seitas como pontos finais de um continuum baseado no grau de tensão entre o grupo
e seu meio sociocultural (...). Seitas são grupos religiosos em um estado relativamente elevado
Budistas no Ocidente/Budismo Tibetano/Zen-Budismo; Ciência Cristã; Cientologia/Igreja da Cientologia; Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento; Druidismo; Esoterismo; Eubiose, Sociedade Brasileira de; Exército da Salvação; Família, A/Meninos de Deus; Fé Bahai; Feng Shui; Fraternidade Branca Universal; Fraternidade Pax Universal; Igreja Adventista do Sétimo Dia; Igreja da Unificação (do Reverendo Moon); Igreja Messiânica Mundial; Istituto 3HO; Instituto de Estudos Xamânicos Paz Geia; Instituto Nyingma do Brasil; Instituto Osho Brasil/Rajneesh; ISKCON (International Society for Krishna Consciousness)/Movimento Hare Krishna; Jesus Freaks; Krishnamurti/Instituição Cultural Krishnamurti; Legião da Boa Vontade; Mahikari; Meditação Transcedental/Maharishi Maheshi; Mórmons/Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias; Movimento do Potencial Humano/psicologia transpessoal; Movimento Humanista; Neopaganismo; Nova Acrópolis; Nova Era; Ocultismo; Oráculos e adivinhações; Ordem Espiritualista Cristã/Vale do Amanhecer; OVNI (Objetos Voadores Não Identificados); Palas Athena, Centro de Estudos Filosóficos; Perfect Liberty; Rosa-Cruz/Fraternidade Rosacruz/Ordem Rosacruz (Amorc); Saint Germain, Chama violeta de; Santo-Daime; Sathya Sai Baba, Organização; Seicho-No-Ie; Soka Gakkai/Budismo Nichiren Shoshu; Tenrikyo; Teofasia/Sociedade Teofásica do Brasil; Testemunhas de Jeová; Umbanda Esotérica; Umbandaime; União do Vegetal; Wicca; Xamanismo/Neoxamanismo.
146
de tensão com seu meio ambiente; Igrejas são grupos em um estado relativamente baixo de
tensão” (STARK, 2006, p. 35).
Continua o autor, agora estabelecendo a uma a distinção entre movimentos de seita
e movimentos de culto:
...os primeiros ocorrem em razão de cisma no interior de um corpo religioso convencional, quando os indivíduos que desejam uma versão mais espiritual da fé se apartam para “restaurar” a religião em um nível mais elevado de tensão com o ambiente circundante. (...) Por sua vez, os movimentos de culto não constituem simplesmente novas organizações de uma fé primeva; são novas crenças religiosas, novas pelo menos na sociedade em exame. Os movimentos de culto sempre começam pequenos – um indivíduo qualquer tem novas idéias religiosas e começa a atrair adeptos para a fé, ou uma religião forânea é importada para uma sociedade, em cujo meio desenvolve a atividade de cooptação de adeptos. Em qualquer caso, na condição de novos credos religiosos, os movimentos de culto violam normas religiosas prevalecentes e, em geral, são alvo de acirrada hostilidade (STARK, 2006, p. 45 e 46).
Abrimos, aqui, parênteses, para fazer uma aproximação entre o continuum Seita-
Igreja de Stark (2006), referente ao grau de tensão entre o grupo e seu meio sociocultural, e as
proposições de Löwy (2000)135 sobre a afinidade negativa entre a ética católica e o
capitalismo e a afinidade eletiva entre a ética católica e o ativismo no setor social. Neste
sentido, as tensões entre a “seita católica” movida pela força original do mandamento da
caridade ou “amor ao próximo” (da fraternidade universal) ensinado por Jesus Cristo e as
várias esferas da sociedade, em especial a esfera econômica, vão sendo reduzidas – as tensões
– na medida em que a “Igreja Católica” vai se acomodando e se adaptando às estruturas e
formações sociais, em especial às econômicas, passando, assim, do confronto com a lógica
capitalista para a correção de seus aspectos negativos por meio de atividades caritativas
sociais e/ou assistenciais. Aí, em vez da tensão entre o mandamento da caridade ou amor da
“seita católica” e as esferas da sociedade, passa-se a uma tensão entre a mensagem original do
amor e fraternidade universais e o impulso de preservação institucional da “Igreja Católica”.
Finalizando, detalhamos algumas características e alguns valores da nova
consciência religiosa que produzem uma influência real, porém difusa, sobre a sociedade.
Silas Guerriero (2006) indica os seguintes: oposição ao ethos dominante e ao sistema vigente
– “a religião da contracultura não era bíblica”-; aspecto de bricolagem da nova religiosidade,
135 Elas já foram explicitadas no início do subitem desta dissertação denominado “As revoluções sociais, o estado democrático de direito e os processos de exclusão e inclusão sociais: para além do neoliberalismo ou os implantes socialistas no capitalismo” e serão aprofundadas no subitem “A ética católica e o espírito do ativismo no setor social”.
147
de arranjo feito pelo próprio indivíduo, como em uma religião à la carte, caracterizando-se
como uma religiosidade flutuante e difusa – segundo a socióloga Françoise Champion136;
caráter experimental – cada um deve encontrar seu próprio caminho espiritual -; realização
neste mundo e busca interior; orientalização, que leva a mudança de paradigma da
transcendência para a imanência e do dualismo para o monismo – segundo Colin Campbell137
-, ou seja, cada um é portador da centelha divina e fazemos parte de uma totalidade, não
havendo, assim, criador nem criatura (Cf. GUERRIERO, 2006, p 55 ss).
1.3. Religião no Processo de Reencantamento da Vida e Transformação Social
Deixando claro que neste momento não trataremos das dimensões e conseqüências dos
embates (ofensivas e contra-ofensivas) entre dirigismo e neoliberalismo – por exemplo: lógica
excludente do capitalismo; atitudes (implantes socialistas) objetivando compensar as
tendências nocivas do capitalismo (exclusão social, concentração de renda, “destruição
criadora”); amplitude do programa neoliberal de redução do Estado (“flexibilização” dos
direitos trabalhistas e privatização dos serviços sociais); amplitude da resistência, manifestada
por ações regidas pela democracia, ao programa neoliberal etc 138 -, como ponto de partida,
resgatamos139 o posicionamento de Paul Singer (1998) no qual ele reconhece a importância da
linguagem simbólico-religiosa e seu discurso ético-religioso como contraponto à lógica
individualistas e excludente do capitalismo alicerçada no discurso e cultura do consumo.
Segundo o autor, a opção pelo máximo bem-estar ou utilidade individual “não surge
espontaneamente, como emanação de uma natureza humana individualista. Ela é
cotidianamente reafirmada e negada: reafirmada pela propaganda comercial e negada pelas
homilias da religião, reafirmada pela cultura do consumo e do prazer e negada pela cultura da
responsabilidade pelo próximo, da exigência da solidariedade e do desprendimento (SINGER,
1998, p. 131). E continua Paul Singer (1998), indicando que nem mesmo a sociedade
capitalista “poderia funcionar se todos os seus membros se comportassem como o homo
136 O autor identifica a seguinte referência bibliográfica: CHAMPION, Françoise. Religiosidade flutuante, ecletismo e sincretismo. In: DELUMEAU, J. As grandes religiões do mundo. Lisboa, Presença, 1997. 137 O autor identifica a seguinte referência bibliográfica: CAMPBELL, Colin. A orientalização do Ocidente: reflexões sobre um nova teodicéia para um novo milênio. Religião e Sociedade, 18 (1), 1997. 138 Sobre o assunto, remetemos o leitor aos seguintes subitens desta dissertação: “As revoluções sociais, o estado democrático de direito e os processos de exclusão e inclusão sociais: para além do neoliberalismo ou os implantes socialistas no capitalismo” e “A parte ‘lucrativa’ do terceiro setor: responsabilidade social empresarial, investimento social privado e o princípio da gratuidade na atividade econômica”. 139 Os posicionamentos de Paul Singer (1998) estão referidos ou transcritos, de forma mais abrangente, no subitem “As revoluções sociais, o estado democrático de direito...”
148
oeconomicus, um ser inteiramente racional e egoísta, cuja única preocupação é o seu próprio
bem-estar. Por isso, mesmo no capitalismo os implantes socialistas desempenham um papel
positivo ao difundir valores essenciais ao convívio em sociedade” (Ibid., p. 131).
Os posicionamentos de Paul Singer (1998) acima indicados – destacamos que ele
prioriza os aspectos econômico-sociais - aproximam-se da argumentação de Jung Mo Sung
(2007) desenvolvida em seu livro Educar para reencantar a vida e que inspirou a redação
deste subitem. Na obra, o autor demonstra como o encantamento do consumo inspirado e
fomentado pela lógica capitalista – em especial pela “fé no mercado neoliberal” (SUNG,
2007, p. 79) - desencantou a vida, e de como nossa condição humana, limites, possibilidades e
desejos de transcendência que se expressam em linguagens simbólico-religiosas podem nos
conduzir a um reencantamento da vida (Cf. Ibid., p.13).
Sung (2007) descreve o processo de desencantamento da natureza e dos valores ético-
religiosos (ou ético-espirituais) e, como conseqüência, do sentido pleno da vida (com encanto
em todas as esferas da vida), e o processo do encantamento das mercadorias e da esfera de
consumo que reduz tudo (o sentido da vida) ao preço ou valor econômico, da seguinte forma:
Nas sociedades primitivas, a natureza era encantada, isto é, a natureza era vista como possuindo ou possuída por espíritos e a relação dos seres humanos com ela era cheio de respeito e de magia. (...) Com o surgimento das religiões com “deus ético” ou religiões éticas (como judaísmo, cristianismo e islamismo), a natureza começa a ser desencantada e o âmbito do encanto se move para o “campo ético-espiritual”. A visão mágica em relação à natureza e aos fenômenos naturais vai sendo substituída por tecnologias racionais e por explicações de ordem científica. Entretanto, isso não significou o desencantamento da vida e das atividades humanas. Na medida em que as experiências espirituais e as relações humanas baseadas na ética passaram a ser consideradas formas privilegiadas de relacionamento com o divino, a vida cotidiana – como o trabalho, as relações familiares, o trato com as pessoas necessitadas, etc – e as práticas explicitamente religiosas se tornaram espaços de encantamento. A vida humana e tudo o que a cerca preservaram o seu mistério e o seu encanto. Com a vitória das ciências modernas na sociedade ocidental, não apenas a natureza foi submetida aos cálculos científicos e econômicos, mas também quase todos os aspectos da vida. A natureza foi explicada pelas “causas mecânicas”, a sociedade pelas forças sociais e o ser humano pelas motivações redutíveis ao cálculo de custo e benefício. Só que, como vimos, os seres humanos resistem a viver em um mundo totalmente frio, reduzido ao cálculo de números e explicações mecânicas, por isso buscou um novo tipo de encanto: o mundo do consumo. Agora, na cultura do consumo, o acesso ao encanto não se dá mais pela magia e nem pelas práticas espirituais ou éticas, mas pela capacidade de consumo de mercadorias. As “classificações” da realização da vocação “humana” não se dão mais pelo grau e qualidade de relacionamento com a forças da natureza e nem pela capacidade de seguir os caminhos espirituais e éticos ensinados pelas religiões e pelos santos e profetas, mas pela quantidade de dinheiro disponível ou gasto. (...)
149
Mais ainda. Antes o encanto podia ser experimentado em todas ou quase todas as esferas da vida humana, porque a vida como tal era considerada uma fonte de mistério para nós. Agora, o espaço encantado ficou reduzido à esfera do consumo. (...) E com isso a natureza, as profissões, as pessoas, as relações humanas perderam o seu encanto, perderam o significado e o valor que estão ou estavam além do seu preço ou da sua utilidade como um instrumento (Ibid., p. 97-98).
Indicando que todas as sociedades capitalistas têm que lidar com um lado sombrio,
com os “derrotados” ou excluídos da lógica da concorrência140; noticiando que o modelo da
social-democracia141 foi uma resposta prática e teórica para o “lado sombrio”, por meio de
suas formas de solidariedade institucionalizada142 - programa sociais, tais como: salário-
desemprego, educação e saúde gratuitas, auxílio-moradia etc - para com os economicamente
mais fragilizados; informando que a partir dos meados de 1970 o neoliberalismo surge como
uma nova resposta para o “lado sombrio” do capitalismo, com o discurso de que a causa das
crises econômicas e sociais seria a tentativa de solucionar problemas sociais por meio da
intervenção na economia, e a solução das crises e problemas seria a não-intervenção no
mercado para que ele funcione com total liberdade (Cf. Ibid., p.73 ss), Jung Mo Sung (2007)
afirma que “o que os neoliberais fazem é um ato de fé no mercado!” (Ibid., p. 78), e fé porque
não dá para provar teoricamente a crença neoliberal de que o mercado livre irá sempre
produzir o melhor resultado para a sociedade (Cf. Ibid., p. 78). “O que eles fazem na prática é
criticar o modelo socialista, que não funcionou bem, para afirmar que o mercado livre é a
única saída. Só que a crise do socialismo não prova que não poderá haver nada melhor do que
o sistema de mercado de corte neoliberal”. (Ibid., p. 78).
Por fim, o autor faz um dramático alerta sobre a “perigosa” função e os “aspectos
perversos” da ideologia, do mito, da fé neoliberal, e de suas conseqüências:
O sentido fundamental da vida na nossa civilização é o de viver em função de acumular mais e mais riquezas, pois essa acumulação ostentada através de mercadorias-signos, especialmente de griffes, nos garante o reconhecimento social, a auto-estima e a identidade que nos permite situar em posições de destaque e fazer parte de grupos bem posicionados na sociedade. A complementaridade ao nível macrossocial desse sentido de vida é a ideologia neoliberal que prega que não há salvação fora do mercado, que só o mercado livre pode nos garantir mais eficiência para maior acumulação de riqueza.
140 Entenda-se o “lado sombrio da lógica da concorrência” como a tendência do capitalismo à exclusão social, à concentração de renda e à destruição “criadora”. Este assunto, sob a fundamentação de Paul Singer (1998), está detalhado no subitem “As revoluções sociais, o estado democrático de direito...” 141 Nos termos da nota de rodapé anterior, entenda-se o “modelo de social-democracia” como a “etapa” do capitalismo dirigido (o dirigismo na formação social capitalista). 142 Nos termos das notas de rodapé anteriores, entenda-se a “solidariedade institucionalizada” como o “estado do bem-estar social”.
150
A constante luta para ostentar mais do que o outro e provocar a inveja nos “amigos e especialmente nos nossos inimigos” faz eclipsar qualquer sentimento e compaixão com a dor e o sofrimento das outras pessoas – principalmente se forem não-consumidoras. A fé no mercado faz parecer sem sentido e contraprodutiva qualquer proposta de solidariedade com os grupos marginalizados e excluídos do mercado e das benesses da sociedade. Mesmo que a pessoa mantenha-se no sentimento de compaixão, se não abandonar o mito neoliberal restringirá a sua visão e ação de solidariedade ao âmbito das relações interpessoais ou ao nível microssocial. Sem dúvida também importantes, mas não suficientes para solucionar os graves problemas sociais do país e também não para romper com aspectos perversos e errôneos da fé no mercado neoliberal (Ibid., p. 78-79).
Assim, chegamos aos questionamentos cruciais: Como iremos superar o
desencantamento da vida ou da ‘perda de foco’ decorrente do encantamento pelo consumo?
Qual o papel da linguagem simbólico-religiosa-espiritual para o reencantamento da vida?
A resposta nos é dada pelo autor, por meio de suas considerações sobre dois
belíssimos e profundos textos: um do atual Dalai Lama143; outro, do conhecido filósofo e
educador brasileiro Rubem Alves144.
Sobre o primeiro texto, do atual Dalai Lama, o comentário-resposta é assim formulado
por Jung Mo Sung (2007):
Tanto a finitude quanto essa linguagem simbólico-religiosa-espiritual – que nos permite descobrir nossa finitude, expressar a nossa subjetividade e inter-subjetividade, criticar as exigências sacrificiais dos ídolos e manter a esperança de que a injustiça (e quem sabe também a morte) não terá a última palavra - , fazem parte de nossa condição humana. Assumir a nossa condição humana, para nos realizarmos como seres humanos nos humanizando, é, na minha opinião, um referência fundamental e enriquecedora para nosso busca pelo sentido da vida, que seja, ao mesmo tempo, humano e reencantado (Ibid., p. 147).
E não menos categórica e profunda é a consideração-resposta do autor motivada pelo
texto de Rubem Alves:
143 A seguir, transcrevemos o referido texto do Dalai Lama: “A insatisfação traz a cobiça, que nunca pode ser saciada. Se o que o indivíduo procura é por natureza infinito como a qualidade de tolerância, a satisfação passa a ser irrelevante: quanto mais estimulamos nossa capacidade para a tolerância, mais tolerante nos tornamos. No que se refere a qualidades espirituais, a satisfação não é necessária, pois é desejável que estejamos sempre em busca de crescimento. Ma se o que buscamos é finito, o perigo é que, ao conquistá-lo, não fiquemos satisfeitos. No caso do desejo da riqueza, ainda que a pessoa conseguisse tomar conta da economia de todo um país, é muito provável que em seguida começasse a pensar em conquistar a de outros países. O desejo pelo que é finito nunca é de fato satisfeito (Dalai Lama, 2000: 180-181)” (SUNG, 2007, p. 146). O autor identifica a seguinte referência bibliográfica: DALAI LAMA (2000). Uma ética para o novo milênio. Rio de Janeiro: Sextante. 144 A seguir, transcrevemos o referido texto de Rubem Alves: “Não, Deus não é um substantivo. É esta estranha conjunção, todavia, que enuncia a absurda ligação entre a morte que se anuncia e a vida que brota, a despeito de tudo. Se fosse isto, eu poderia continuar a falar de Deus como fundamento misterioso de uma teimosia de ter esperança. Foi então que encontrei Bloch como precursor; ele já escrevera aquilo que naquele momento eu estava me dizendo: ‘onde está a esperança ali está a religião’ (Alves, 1987: 35)” (SUNG, 2007, p. 156). O autor identifica a seguinte referência bibliográfica: ALVES, Rubem (1987). Da esperança. Campinas: Papirus.
151
O que significa dizer que Deus não é um substantivo, mas uma estranha conjunção todavia? Deus não é algo ou alguém sobre quem podemos falar e apontar como fazemos com as coisas que compõem nosso mundo. Deus é, para R. Alves, o fundamento misterioso que permite esperar para além do que está dado, para além da dominação, injustiça e alienação apresentados como imutáveis e “naturais”. Deus é o nome que Rubem Alves e tantas outras pessoas dão à força misteriosa que nos permite resistir e lutar contra as injustiças do mundo e também contra a nossa tendência de se acomodar e de procurar somente os nossos interesses imediatos. É essa estranha conjunção todavia que permite ver ainda o que não é visível ou o que foi escondido ou tornado ausente pela ideologia dominante (Ibid., p. 156).
152
2. RELIGIÃO, SOCIEDADE E TERCEIRO SETOR
2.1. Secularização: o incontroverso e as controvérsias
“Saber do que se fala sempre ajuda” (PIERRUCI, 1998, p. 43). Esta é a primeira frase,
atribuída pelo autor à Jürgen Habermas, do texto “Secularização em Max Weber. Da
contemporânea serventia de voltarmos acessar aquele velho sentido”, de Antônio Flávio
Pierucci (1998) (Cf. Ibid., p. 43). “Modestamente, minha proposta soa menos resignada do
que esta e, além disso, mais viável. A saber: não abrir mão da secularização. Nem teórica,
nem prática, nem terminológica, nem existencialmente. Urge, isto sim, que cada um de nós se
esforce por saber do que está falando.Volto à frase de Habermas citada no começo deste
ensaio...” (Ibid., p. 73). Esta é a conclusão do autor que, ressalta-se, objetiva com o ventilado
texto perseguir “um consenso categorial mínimo” para “chegar a um ponto incontroverso” em
torno da secularização (Cf. Ibid., p. 73 e 72).
Para tanto, Pierucci (1998) explica que das poucas vezes que Weber utilizou a palavra
“secularização” a maioria delas não foi em sua sociologia da religião, e sim em sua sociologia
do direito; assim como que por ele ser o autor do conceito de “desencantamento do mundo”
(Entzauberung der Welt), essa expressão parece fazer mais sentido a Weber do que
“secularização”, inclusive porque as palavras têm significados diferentes (Cf. Ibid., p. 55 e
51).
O importante a reter é que Weber realmente distingue os diferentes processos. Enquanto desencantamento do mundo fala da ancestral luta da religião contra a magia, sendo uma de suas manifestações mais recorrentes e eficazes a perseguição aos feiticeiros e bruxas levado à cabo por profetas e hierocratas, vale dizer, a repressão político-religiosa da magia (Thomas, 1985)145, a secularização, por sua vez, nos remete à luta da modernidade cultural contra a religião, tendo como manifestação empírica no mundo moderno o declínio da religião como potência in temporalibus, seu disestablishment (vale dizer, sua separação do Estado), a depressão do seu valor cultural e sua demissão/liberação da função de integração social (Ibid., p. 53).
Mas o que Pierucci (1998) entende por “secularização”, levando em conta Weber e
objetivando fixar um ponto incontroverso? Qual o significado de “secularização”, que
alcançaria um consenso mínimo e justificaria sua proposição de “não abrir mão da
secularização”? Para o autor, que vincula o tema a um processo jurídico-político, é isto – a
145 O autor identifica a seguinte referência bibliográfica: THOMAS, Keith. (1985), Religion and the decline of magic. Londres, Penguin Books.
153
seguir será transcrito - que significa “secularização”, e por isso estariam equivocados aqueles
que, por meio de elementos empíricos, veriam um “retorno do sagrado”, um desmentido da
teoria da secularização ou uma reversão de sua trajetória:
...fariam bem em prestar mais atenção ao sentido original do termo e atentar para o quão imprescindível continua sendo, para o nosso bem viver em sociedades multiculturais e religiosamente plurais, a secularização assim entendida: como secularização do Estado, da lei, da normatividade jurídica geral (Ibid., p. 73).
Desta forma, se nos restringirmos à secularização como um processo jurídico-político,
ou seja, “secularização do Estado, da lei, da normatividade jurídica geral”, podemos concluir
que esse é um processo irreversível e com acentuado caráter incontroverso, representado pela
separação entre Estado e religião.
No texto mais recente “De olho na modernidade religiosa”, Pierucci (2008) ratifica sua
opção de identificar a secularização com a separação Igreja e Estado e, assim, enfatizar a
secularização do Estado com seu ordenamento jurídico.
Já eu, dou-me por satisfeito em fincar pé no primeiro: a separação Igreja e Estado. Em matéria de modernidade secular, se eu puder escolher, fico com a “secularização do Estado”. (...) Toda vez que falo propositivamente em secularização, refiro-me com ênfase à secularização do Estado com seu ordenamento jurídico, e menos à secularização da vida, que essa pode mesmo refluir, mas a do Estado não. (...) Em vez de ficarmos a nos agastar girando em falso em torno de uma controvérsia insolúvel a respeito da extensão maior ou menor da secularização entendida como secularização da vida das pessoas, ou mesmo, vá-la, da secularização cultural, seja lá o que isso queira dizer, creio que só teremos a ganhar, tanto no plano teórico, quanto no prático, se voltarmos a pensar que a secularização que importa em primeiro lugar – a secularização que nos concerne imediatamente, seja enquanto estudiosos, seja principalmente enquanto cidadãos – sujeitos-de-direitos empenhados em preservar e ampliar as liberdades civis e políticas de cada um e de todos “sob o domínio da lei” num “Estado democrático de direito”, interessados praticamente, portanto, e não só teoricamente, na observância universalizada de leis revisáveis porque não mais divinamente reveladas -, a secularização que importa antes de tudo, repito, é a secularização do Estado como ordem jurídica. Noutras palavras, a laicização constitucional disto que a conhecida definição de Kelsen denomina Estado formal (PIERUCCI, 2008, p. 11 e 12).
Como conseqüências positivas da secularização em seu aspecto incontroverso -
secularização como separação entre Igreja e Estado; secularização do ordenamento jurídico do
Estado – Jung Mo Sung (2007) indica o caráter libertário decorrente da ruptura do monopólio,
no qual em uma organização social uma única religião ou visão religiosa do mundo e da vida
é imposta sobre diferentes grupos e culturas, assim como indica a deslegitimação das guerras,
significando que nem uma guerra ou uma política é imposta e legitimada em nome de uma
154
religião e, ainda, que a secularização é fundamental para uma solução negociada para muitas
das nossa guerras (Cf. SUNG, 2007, p. 107-108).
Sobre as outras faces da secularização que geram controvérsia, Pierucci (1997) –
indica-se neste aspecto seu texto “Reencantamento e dessecularização: a propósito do auto-
engano em sociologia da religião” –, posiciona-se - e para tanto se utiliza das idéias de Bryan
Wilson146 - em síntese no sentido de que: a secularização representa o desenraizamento dos
indivíduos; o pluralismo religioso é tanto resultado quanto fator de secularização crescente; a
explosão de novos movimentos religiosos são efeitos da secularização, uma vez que o número
e a variedade de movimentos espirituais crescem na medida em que a secularização relativiza
os compromissos religiosos, abrindo a possibilidade de que sejam passageiros; em face da
secularização, a religião se vê confinada ao domínio privado, no plano privado-individual do
exercício religioso ou no nível das relações pessoais e, desta forma, a religião perde seu poder
de significativa influência na esfera pública (Cf., PIERUCCI, 1997, p. 108ss).
Abre-se, aqui, parêntese, para se explicitar o entendimento do sociólogo Bryan Wilson
sobre o significado da secularização. Para tanto, utilizaremos a síntese de Silas Guerriero
(2006):
Para Bryan Wilson147, a secularização precisa ser pensada em seus três níveis: institucional, cognitivo e comportamental. Significa um processo de transferência de poder e atitudes das instituições com quadros de referência sobrenatural para instituições operadas de acordo com critérios empíricos, racionais e pragmáticos. Em termos institucionais, representou a substituição do amplo campo de diferentes funções, da instituição religiosa para instituições autônomas. Em termos cognitivos, a secularização significou o processo de racionalização das explicações da realidade. E, por fim, em termos de comportamento, significou a privatização da própria experiência religiosa. Não há a extinção da religião, mas seu deslocamento para a esfera do sujeito. O significado profundo de secularização é o do declínio geral do compromisso religioso na sociedade. A religião deixa de ser o conhecimento fundante da visão de mundo, dos comportamentos e da ética. A sociedade moderna conta agora com outros elementos de controle que independem da religião (GUERRIERO, 2006, p. 49 e 50).
Mas será que as religiões, mesmo em nossas sociedades juridicamente secularizadas,
deixaram de ser referências normativas importantes? No item “Religião, ética e condução de
vida: uma escolha racional”, respondemos que não, recuperando, para tanto, alguns
posicionamentos já estabelecidos sobre a articulação religião-ética-condução de vida. Dentre
146 O autor identifica várias obras de Bryan Wilson (1966; 1976;1979; 1981; 1982). 147 O autor identifica a seguinte referência bibliográfica: WILSON, Bryan. Sociología de las sectas religiosas. Madrid, Guadarrama, 1970.
155
eles, Hans Küng (1993), Clifford Geertz (1989), José Severino Croatto (2004) e Colin
Campbell (1997). Abaixo, também destacamos Peter Berger (2000) e sua “dessecularização”.
Ao indicar no trecho de sua autoria acima transcrito - além da consensual e
incontroversa secularização do Estado -, a controversa “extensão maior ou menor da
secularização entendida como secularização da vida das pessoas, ou mesmo, vá-la, da
secularização cultural, seja lá o que isso queira dizer”, Pierucci (2008) dá um brevíssimo
toque – penso que é uma simples constatação – nas idéias de Peter Berger que o fizeram
“repensar” sua teoria da secularização, ao constatar, levando em conta fatos empíricos, que a
religião ainda é um fator que está presente e que influencia a sociedade.
Berger (1985) em seu O dossel sagrado detalha as dimensões – histórica, social e
política; cultural e simbólica; da consciência – de sua definição de secularização. Para
abreviar a discussão - e ir ao que interessa - reportemo-nos à síntese da “teoria da
secularização” e de sua crítica, oferecida por Berger (2000) em seu texto “A dessecularização
do mundo: uma visão global”:
Ainda que a expressão “teoria da secularização” se refira a trabalhos dos anos 1950 e 60, a idéia central da teoria pode ser encontrada no Iluminismo. A idéia é simples: a modernização leva necessariamente a um declínio da religião, tanto na sociedade como na mentalidade das pessoas. E é justamente essa idéia central que se mostrou estar errada. Com certeza, a modernização teve alguns efeitos secularizantes, em alguns lugares mais do que em outros. Mas ela também provocou o surgimento de poderosos movimentos de contra-secularização. Além disso, a secularização a nível societal não está necessariamente vinculada à secularização a nível da consciência individual. Algumas instituições religiosas perderam poder e influência em muitas sociedades, mas crenças e práticas religiosas antigas ou novas permaneceram na vida das pessoas, às vezes assumindo novas formas institucionais e às vezes levando a grandes explosões de fervor religiosos. Inversamente, instituições religiosamente identificadas podem desempenhar um papel social ou político mesmo quando muito poucas pessoas confessam ou praticam a religião que essas instituições representam. Para dizer o mínimo, a relação entre religião e modernidade é bastante complicada (BERGER, 2000, p. 10).
Sobre o assunto, Cecília Loreto Mariz (2000), em comentários ao referido texto e
destacando que, em função de trabalhos anteriores “Berger não reduz a secularização à saída
da religião da vida pública. Para ele esse conceito se aplica também na vida privada”.
(MARIZ, 2000, p. 31), assim se manifesta:
Apesar de afirmar que a teoria da secularização está errada, Berger não nega que a modernidade secularize em alguma medida, e que um processo de secularização e seus efeitos tenham sido freqüentemente observados. O que Berger nega, não é o processo de secularização em si, mas a crença de que a modernidade vá
156
necessariamente gerar o declínio da religião como um todo nos diferentes níveis, tanto social quanto individual (MARIZ, 2000, p. 27).
E Berger (2000), comentando a relação entre a ressurgência religiosa e alguns
problemas que não são ligadas à religião – política internacional, guerra e paz, o
desenvolvimento econômico e direitos humanos e justiça social - conclui: “Mas há uma
afirmação que se pode fazer com bastante confiança: arriscam-se muito aqueles que
negligenciam o fator religioso em suas análises das questões contemporâneas” (BERGER,
2000, p. 23).
Assim, chegamos a outro ponto: O que é esfera pública e esfera privada? Em que
esfera se situa a religião? As idéias de secularização do Estado e da normatividade jurídica
seriam suficientes para explicar a construção da esfera ou espaço público no Brasil? A
religião continua a influenciar o funcionamento da sociedade civil organizada – entendida
como esfera pública não-estatal ou a esfera privada com âmbito público?
2.2. Religião e Construção da Esfera Pública Não-Estatal ou Esfera Privada com Âmbito
Público148
Como objetivamos investigar a influência, hoje, da caridade nas ONGs de assistência
social em nosso país, somos compelidos a dar ênfase à Igreja Católica e a seu código cristão
de “caridade” como matrizes149 da noção genérica de “religião”, da construção da esfera ou
espaço público não-estatal e do desenvolvimento da política social e assistencial.
Tal perspectiva e fundamentos são extraídos do artigo “Religião, pluralismo e esfera
pública no Brasil”, de Paula Montero (2006), no qual a autora procura demonstrar que “em
face das disputas históricas que marcaram as distinções entre o religioso e o mágico no país,
podemos perceber como a idéia weberiana de ‘secularização’ é insuficiente para explicar a
148 Para evitar interpretações equivocadas, elucidamos que nas expressões “esferas públicas não-estatais” e “esfera privada com âmbito público”, damos um sentido amplo à palavra “público”. Já no item desta dissertação denominado “Conceitos, características, números e desacordos no terceiro setor”, quando nos referimos a dois tipos de entidades interesse social (convenientes à sociedade) que integram o terceiro setor, quais sejam, entidades de interesse (ou caráter) público e entidades de ajuda mútua ou auto-ajudo, damos um sentido estrito à palavra “público”. Em síntese, nessa última hipótese a palavra “social” caracteriza-se como um sinônimo da palavra “público”, nos termos mais amplos em que foi dada à primeira hipótese. 149 O fato de colocarmos - seguindo os caminhos de Paula Montero (2006) - a Igreja Católica e seu código de caridade como matrizes, não significa que estamos negando, ou deixando de reconhecer, que certos valores assumidos pela sociedade ocidental, por influência do catolicismo, já ganharam vida própria, bem como que outras tradições religiosas também trouxeram contribuições para a noção de caridade e solidariedade e para a construção e funcionamento do terceiro setor (esfera privada com âmbito público ou esfera pública não-estatal, na qual se desenvolvem atividades sociais e/ou assistenciais de forma complementar e integrada com as políticas públicas).
157
construção do espaço público no Brasil. A instauração de um Estado secular produziu ao
mesmo tempo um espaço civil e novas religiões” (MONTERO, 2006, p. 63).
Defende a autora, em seus argumentos, que
a) para autores como Habermas150 é possível prescindir do paradigma da
secularização, uma vez que para além da separação entre Estado e Igreja, uma
diferenciação mais importante para a compreensão da ordem social moderna seria a
distinção entre a esfera pública do Estado e esfera privada da sociedade – nesse
sentido a religião torna-se uma questão privada, pois é excluída da esfera do Estado - ,
levando em conta, entretanto, que a diferenciação não termina aí. Habermas indica que
a partir do século XVIII surge outra distinção, representada pela esfera das pessoas
privadas reunidas em público, a esfera pública burguesa ou da sociedade civil, que
gera como expressiva conseqüência a interiorização da família no espaço privado.
Assim, essa nova distinção turvou a diferenciação entre esfera pública e privada, ao
distinguir uma esfera privada com âmbito doméstico e uma esfera privada com âmbito
público (sociedade civil) (Cf. Ibid., p. 48 e 49);
b) Considerando essa concepção tripartite – Estado/sociedade/esfera privada – o
processo de separação entre Estado e Igreja em nosso país colocou a religião na esfera
da sociedade civil. Diversos exemplos históricos demonstram que da emergência de
Estados seculares não decorre necessariamente a privatização da religião na esfera
doméstica, inclusive porque o direito à privacidade e a liberdade de consciência são
condições modernas cuja preservação interessa às religiões e é em nome desses
direitos que historicamente se constitui o pluralismo religioso brasileiro na primeira
metade do século XX (Cf. Ibid., p. 48). Neste contexto, a autora destaca:
No processo de constituição do nosso Estado moderno como esfera política própria, ao passo que houve um retraimento do catolicismo para o espaço social, produziu-se um intenso conflito em torno da autonomia de certas manifestações culturais de matriz não-cristã, ou da sua legitimidade para expressar-se publicamente. Assim, no processo mesmo de constituição do Estado brasileiro como esfera separada da Igreja Católica, manifestações variadas de ‘feitiçaria’, ‘curandeirismo’ e ‘batuques’ só puderam ser discriminalizadas quando, em nome do direito à liberdade de culto, passaram a se constituir institucionalmente como religiões (Ibid., p. 49-50);
150 A autora identifica a seguinte referência bibliográfica: HABERMAS, Jürgen. L’espace public. Paris: Payot, 1978.
158
c) O processo republicano de laicização do Estado e exclusão de critérios religiosos da
cidadania ocupou-se exclusivamente151 da Igreja Católica e objetivou a separação dos
atos civis e dos atos religiosos católicos (matrimônio, batismo, sepultamento,
educação, saúde etc152) – e a fiscalização do patrimônio da Igreja e de suas ordens
religiosas (Cf. Ibid, p. 51).
Portanto, a noção de “religião” a partir da qual se garantiriam legalmente a liberdade religiosa e a expressão dos cultos teve como matriz o intenso debate jurídico sobre a melhor maneira de regular os bens, as obras e as formas de associação da Igreja Católica. Na formulação de Giumbelli, as disputas em torno da liberdade religiosa que constituíram o espaço civil republicano nunca versaram sobre “qual religião teria liberdade, mas quase sempre sobre a liberdade de que desfrutaria a religião [católica], uma vez que não havia então qualquer outro culto estabelecido, nem se concebiam outras práticas populares como religiosas (Ibid., p. 51-52);
d) “Mas se a religião consistia consensualmente apenas naqueles cultos praticados
pela Igreja Católica, como regulamentar as outras práticas que se expressavam no
espaço público? (Ibid., p.52). A autora responde que elas tiveram que adotar o formato
jurídico de outras entidades da sociedade civil153, como também que “coube a essas
organizações o ônus de demonstrar ao Estado que não representavam uma ameaça à
saúde e à ordem pública, ainda que praticassem curas, danças e batuques – e elas o
fizeram argumentando que essas práticas deviam ser consideradas religiosas (Ibid., p.
52);
e) Os limites do Estado para implementar uma política social e assistencial abrangente
gerou uma “devolução” das funções seculares do Estado para a Igreja Católica. Esta
situação, por sua vez, fez com que o código cristão da “caridade” fosse incorporado às
práticas de assistência no campo da saúde desenvolvidas na esfera ou espaço público
não-estatal, ou seja, na esfera privada com âmbito público (na sociedade civil). Se as
151 A autora de certa forma relativiza a palavra “exclusivamente” ao indicar que “outras religiões não foram objeto de debate sistemático, a não ser o protestantismo, que naquele momento já disputava seu lugar no espaço público, sobretudo por meio da atividade educacional” (MONTERO, 2006, p. 51) 152 Destacamos, e isto é relevante para demonstrar a grande influência da religião na construção do setor social (terceiro setor), que além de ritos e sacramentos, a autora indica como “atos religiosos católicos” atividades sociais e/ou assistenciais. Além das atividades na área da saúde e da educação, explicitadas pela autora, pensamos que no “etc” também podem estar incluídas atividades na área de assistência social. 153 O Código Civil anterior (Lei 3.071, de 1º de janeiro de 1916), que vigorou até o ano de 2002 inclusive, indicava em seu artigo 16, como tipos de pessoas jurídicas sem fins lucrativos, os seguintes: “as sociedades civis, religiosas, pias, morais, científicas ou literárias, as associações de utilidade pública e as fundações” (CÓDIGO, 1916). Já sobre as espécies jurídicas dispostas pelo Código Civil atual (Lei 10.406, de 10 janeiro de 2002), reportamo-nos especialmente ao subitem desta dissertação denominado “Identificação das organizações sem fins lucrativos pela constituição federal e pelo código civil”.
159
práticas católicas organizam-se em torno de hospitais, asilos e dispensário e são
apoiadas na formação científica, os terreiros e centros exercem suas atividade no
ambíguo campo da oposição magia/religião. Nesse contexto, a “caridade” passa a
significar prática gratuita e desinteressado de ajuda do pobre – ato religioso de
compaixão; já a “feitiçaria” é tratada como seu oposto – ato pecuniário egoísta que
engana os crédulos. Daí decorre que a posição dos grupos religiosos em sua relação
com o Estado e sociedade civil envolvem diretamente um variação na combinação do
código “caridade/feitiço” (Cf. Ibid., p. 59):
... quanto mais pública e abrangente se quer essa prática, mais será acionado o código “religião/caridade”; quanto mais local for ela, mais será acionado o código “magia/feitiçaria”. Embora esses códigos pertençam ao mesmo campo das representações coletivamente assimiladas – o campo da religião ou da cultura nacional -, o da feitiçaria, talvez porque opere segundo uma lógica na qual “dar para um é tirar de outro”, não tem a mesma capacidade de universalização das relações que o código cristão da caridade (...) As lutas pela legitimidade social lançam mão de códigos compartilhados (o jogo entre caridade e feitiço) a fim de produzir poder social e simbólico em cada situação. Ocorre porém que esses códigos parecem funcionar com sinais trocados: quanto maior o poder social (investido no ideal da caridade/gratuidade), menor o poder simbólico (força mágica do feitiço/dinheiro). A recente expansão do neopentecostalismo não modificou os termos desta equação; antes, produziu uma equação com maior capacidade de generalização (Ibid., p. 59 e 63).
Reforça Montero (2006), em suas conclusões, o papel da Igreja Católica como matriz
legitimadora das atividades religiosas e assistenciais na construção da sociedade civil
brasileira (esfera privada não doméstica, e sim com âmbito público): “Embora tenha perdido
legitimidade para organizar o mundo público, a Igreja Católica foi uma importante matriz no
processo de constituição da esfera pública no Brasil. Ela não deixa de ser Igreja depois da
República: ainda hoje é legitimada como responsável pelos ritos civis socialmente válidos”
(Ibid., p. 64). Dentre estes ritos, destacam-se o batismo, o casamento e o sepultamento (Cf.
Ibid., p. 61)
Percebe-se, pois, em função da argumentação de Paula Montero (2006), que a noção
cristã de caridade, originalmente propagada pela Igreja Católica, é muito marcante no Brasil,
bem como que a influência da religião foi essencial para o processo histórico da construção da
sociedade civil organizada em nosso país. E tal influência – a agora em seu funcionamento –
continua a ser relevante, na media em que a principal pesquisa brasileira referente ao terceiro
setor – As fundações privadas e as associações sem fins lucrativos no Brasil: 2002, que teve
uma nova versão referente ao ano de 2005, identificada pela sigla FASFIL – demonstra a
160
enorme presença da religião, seja nas atividades propriamente religiosas (atividades
confessionais), seja nas atividades sociais e/ou assistenciais (educação, saúde, assistência
social etc).
Embora já explicitado anteriormente154, sintetizamos alguns dados e considerações da
FASFIL sobre a presença da religião no terceiro setor em nosso país.
a) Em 2002 e 2005, respectivamente, 70.446 (25,53%) e 83.775 (24,8%) das entidades
dedicavam-se diretamente a atividades confessionais (grupo religião). Observe-se que
as instituições de origem religiosa que desenvolvem outras atividades e que têm
personalidade jurídica própria - como, por exemplo, escolas, hospitais, creches etc -
foram classificadas e incluídas em grupos de atividades afins (educação, saúde ou
assistência social etc);
b) Em sua versão publicada em 2004 (dados de 2002), ela expressamente reconhece
que “a influência da religião no âmbito do FASFIL é bem mais ampla apesar de não
ser possível dimensioná-la com exatidão” (BRASIL, 2004, p. 29);
c) Em sua versão publicada em 2008 (dados de 2005), o estudo é ainda mais incisivo,
ao “assinalar que essas entidades, para além de desenvolverem atividades
confessionais, ocupam novos espaços de debate e deliberação de políticas públicas,
como os conselhos, conferências e grupos de trabalhos governamentais” (BRASIL,
2008, p. 28, nota 7) e ao explicitar que a forte presença das ações de cunho religioso
não se restringe as atividades confessionais, que representam um quarto do total (Cf.
Ibid., p. 28), “posto que milhares de entidades assistencial, educacional e de saúde,
para citar apenas alguns exemplos, são de origem religiosa, embora não estejam
classificadas com tal, o que impede de dimensionar a abrangência efetiva das ações de
influência religiosa” (Ibid., p. 28).
Outrossim, também como já indicamos na dissertação155, reforçamos a idéia de que
um Estado Secular – Estado separado da Igreja, por meio da secularização da lei e da
normatividade jurídica geral - não significa um Estado sem religião. Nossa Constituição
154 Trata-se do subitem desta dissertação denominado “Os números do terceiro setor no Brasil: o tamanho e a presença da religião”. 155 Trata-se do subitem desta dissertação denominado “Enfim, uma constituição federal cidadã”.
161
Federal dispõem sobre a inviolabilidade da liberdade de crença religiosa, assegura a liberdade
dos cultos religiosos, garante a proteção dos locais de culto e assegura a assistência religiosa
em locais de internação coletiva, assim como concede a imunidade de impostos aos templos
de qualquer culto. Observe-se, ainda, que a grande força simbólica da linguagem religiosa –
como valor e princípio orientador da conduta humana, inclusive na construção da esfera
pública – pode ser captada na expressa referência à proteção divina que consta no preâmbulo
de nossa Constituição Federal: “...promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL” (CONSTITUIÇÃO,
1988).
Marcelo A. Camurça (2005), em seu artigo cujo título retrata a hipótese por ele
proposta “Seria a caridade a ‘religião civil’ dos brasileiros?”156, é explicito – até mesmo
indica os vários estudos realizados sobre o tema – ao se manifestar no sentido de que a idéia e
a prática da caridade – em sua noção judaico-cristã – atravessam todas as religiões com
densidade no Brasil: Catolicismo, Protestantismo, Pentecostalismo, Kardecismo e as religiões
afro-brasileiras, como a Umbanda. E continua o autor, explicando o fenômeno – para tanto
utiliza considerações de Joseph François Pierre Sanchis - em função da “sócio-gênese” do
Brasil, que possibilitou a formação das religiões em nosso país num clima de “porosidade e
contaminações mútuas”, tanto “no nível de visão de mundo quando no do ethos”. Assim,
embora a caridade esteja articulada às doutrinas e cosmovisão de cada religião em particular,
em face das comunicação e empréstimos dessas cosmovisões, a caridade vai se tornando
recorrente e se autonomizando enquanto crença que pode ser praticada em uma, ou em outra,
ou ainda em várias religiões, pela mesma pessoa. (Cf. CAMURÇA, 2005, p. 53).
Levando em conta esses argumentos – e outros que serão a seguir detalhados - , o
autor propõe sua hipótese: “Hoje, em tempos de des-institucionalização e self-religion, logo,
de desencompatibilização do indivíduo em relação a uma pertença exclusiva a uma religião,
sugiro que o binômio caridade/filantropia possa ser assumido por amplas parcelas sem que
signifique uma definição por um credo e assuma ainda mais contornos de uma ‘religião
comum’ aos brasileiros” (Ibid., p. 53-54).
Mas o que seria essa “religião comum”? E, ainda: qual seria a dimensão –
confluências e distinções - do binômio caridade/filantropia? Ou melhor: A “caridade”
sobreviverá à moderna lógica da filantropia?
156 Embora o desejo fosse detalhar a farta referência bibliográfica utilizada pelo autor, isto se tornou inviável em virtude de que – presume-se que por um equívoco de edição – a publicação do artigo foi acompanhada de uma bibliografia que difere das referências do texto.
162
A resposta à primeira pergunta, que prepara a resposta da segunda e explica o título de
seu artigo, é extraída da seguinte argumentação de Camurça (2005):
Estes dados e cifras157, então, me impelem a testar a hipótese de que esta nossa “ajuda ao próximo” pode funcionar para a realidade brasileira como uma “religião civil”, no sentido que lhe deu Robert Bellah para os EUA (Bellah, 1987). Segundo o autor, o conceito define certos princípios religiosos que a grande maioria dos norte-americanos partilham, engendrando uma dimensão religiosa pública expressa em crenças, símbolos e rituais que jogam papel crucial no desenvolvimento das instituições americanas e resultam em um genuíno veículo de auto-compreensão nacional (1987: 171-6). Para nossa hipótese de “religião civil brasileira” seu caráter de “religião” estaria calcado no postulado de que “caridade” e “doação” funcionariam enquanto valores de fundo simbólico-religioso reconhecidos e aceitos pela ampla maioria dos brasileiros em suas práticas. O caráter “civil” desta religião se daria pela não obrigatoriedade de pertença a uma confissão ou credo religioso particular para professá-la, e pela sua capacidade de aglutinar amplas parcelas das camadas sociais do país, revestindo-se de um amplo conteúdo social. Configurar-se-ia como uma meta-religião que expressaria um ethos brasileiro, via de entendimento das nossas formas de organizar a sociabilidade e cultura. Parodiando Bellah para o caso norte-americano, através do fenômeno da “caridade” no país chegaríamos a uma compreensão da experiência (sociocultural) brasileira a luz da realidade última (1987: 186)158(Ibid., p. 52-53).
Já a segunda resposta, envolve o contexto geral – o pano de fundo – do artigo,
representado pelo momento – a partir dos anos 90, o início do que nós ousamos chamar de a
“era do terceiro setor” e do voluntariado, da cidadania, da filantropia estratégica, da
responsabilidade social, do investimento social privado etc. – em que as práticas de caridade e
doação tradicionais passam a adquirir visibilidade (Cf. Ibid., 46) e em que se “redescobre uma
prática encoberta pela lógica da racionalidade política e econômica: a gratuidade” (Ibid., p
45). Segundo o autor,
Nesse momento, recuperam-se termos e práticas, de caráter tradicional e informal (caridade, cura, aconselhamento), até então considerados à margem das lógicas modernas pois, como disse um estudioso, desde muitos anos no Brasil, estes se situam “abaixo da linha d’água”159 da modernidade exposta (Fernandes, 1994). Agora se
157 Os dados a que o autor se refere dizem respeito ao estudo Doações e trabalho voluntário no Brasil – uma pesquisa, de autoria de Leilah Landim e Maria Celi Scalon. Este estudo está especificado na “Bibliografia” e seus dados estão noticiados no subitem desta dissertação denominado: “Os números do terceiro setor no Brasil: o tamanho e a presença da religião”. 158 O autor traz a seguinte nota de rodapé: “A formulação original de Bellah é ‘American civil religion is (...) an understanding of the American experience in the light of ultimate an univesal reality’ (1987:186)” (CAMURÇA, 2005, p. 53, nota 7). 159 No texto, o autor traz a seguinte nota de rodapé: “’Abaixo da linha d’água’, é uma expressão usada por Rubem César Fernandes no capítulo ‘Outras dinâmicas, abaixo da linha d’água’ do seu livro ‘Privado porém Público. O terceiro setor na América Latina’, quando analisa o modelo e a realidade da ‘sociedade civil’ como apenas a ‘ponta do iceberg’ que traz oculto ‘abaixo da linha d’água’ um mundo imerso gigantesco da vida social, regido pela via simbólica das práticas religiosas e não tornado questão para uma concepção do que seja a cidadania e o espaço público (Fernandes, 1994 :110-16)” (CAMURÇA, 2005, p. 45, nota 3)
163
vêem neles reservas de ação social desde que expurgados de um viés “assistencialista” e legitimados pela consciência da “cidadania”. Essa história “submersa” da “caridade” no Brasil, marcada pelo donativo pessoalizado, baseado em valores cristãos e centrado em relações de reciprocidade e redes religiosas hoje emerge adquirindo visibilidade e combinando-se com programas governamentais e empresariais160, em meio a transformações recentes nas articulações que visam a constituição de uma “sociedade civil”. (Ibid., p. 44 e 45).
O autor, vai mais além, ao defender que “há uma continuidade dos valores da caridade
tradicional por dentro da moderna filantropia” (Ibid., p. 48) e que é “marcante a influência das
idéias e práticas da ‘caridade’ na constituição de um sociabilidade no Brasil (...) na sua
capacidade de articular e expressar um ethos e uma auto-imagem na qual os brasileiros se
reconhecem e se compreendem ”. Para tanto e como fundamento teórico, Camurça (2005) se
apóia em Jaques Godbout, “autor canadense, ligado ao M.A.U.S.S. (Movimento Anti-
Utilitarista nas Ciências Sociais), que busca recolocar na modernidade o tema da dádiva,
originalmente trabalhado por Marcel Mauss para as sociedades ditas primitivas...”:
No entanto, apesar de toda esta intervenção moderna modificadora de seu estilo, gostaria de chamar a atenção para a permanência da “caridade” no seu formato original, tanto no seu meio próprio do “mundo” tradicional e informal, quanto disseminada pela sociedade institucionalizada, expandido suas características de dádiva e reciprocidade por sobre a ordem política e econômica, pois doação e sua reciprocidade formam “um sistema de relações sociais propriamente ditas na medida em que estas não são redutíveis às relações de interesse econômico ou de poder” (Godbout, 1999:22). Segundo Godbout, “nada pode se iniciar, empreender, crescer e funcionar” na sociedade moderna contemporânea, nem mesmo no mundo “[d]as empresas, [d]a administração ou [d]a nação”, sem que seja atravessado pela lógica da reciprocidade (1999:20), que entretece as relações sociais em estado pura, estabelecendo relações vis a vis entre as pessoas e definido papéis e dinâmicas sociais nestes compromissos firmados. Para ele, “nenhuma sociedade pode funcionar no único registro” do interesse e do poder, “nem dissolver” a doação e sua reciprocidade enquanto sistema gerador de sociabilidade “nos sistemas do mercado e do Estado” (Godbout, 1999:26) (Ibid., p. 47 e 48).161
160 Aqui e em outros argumentos a seguir desenvolvidos, já percebemos a articulação e complementaridade das lógicas que serão detalhadas especialmente no subitem desta dissertação denominado “A fluidez das lógicas do terceiro setor em um sociedade de direitos: assistência, promoção e transformação”. 161 Percebemos uma aproximação entre as idéias de Jaques Godbout (1999) e os seguintes posicionamentos do papa Bento XVI (2009): “o desenvolvimento econômico, social e político precisa, se quiser ser autenticamente humano, dar espaço ao princípio da gratuidade como expressão de fraternidade (..) Sem formas internas de solidariedade e de confiança recíproca, o mercado não pode cumprir plenamente a própria função econômica” (BENTO XVI, 2009, p. 41). Também nos reportamos ao ensinamento – na mesma linha dos aqui destacados – transcrito no subitem desta dissertação denominado “A parte ‘lucrativa’ do terceiro setor: responsabilidade social empresarial, investimento social privado e o princípio da gratuidade na atividade econômico”, a seguir sintetizado: “O binômio exclusivo mercado-Estado corrói a sociabilidade, enquanto as formas econômicas solidárias, que encontram seu melhor terreno na sociedade civil sem contudo se reduzir a ela, criam sociabilidade. O mercado da gratuidade não existe, tal como não se podem estabelecer por lei comportamentos gratuitos, e todavia tanto o mercado como a política precisam de pessoas abertas ao dom recíproco (BENTO XVI, 2009, p.45).
164
Ora, a proposição de Camurça (2005) também subsidia nossa hipótese de que os
valores ético-religiosos – em destaque a caridade – tiveram um relevante papel na construção
do setor social (terceiro setor) – da sociedade civil organizada, uma esfera privada com
âmbito publico -, assim como que esses valores continuam a influenciar o desenvolvimento
desse setor, inclusive porque eles alicerçam a própria sociabilidade que, por sua vez, envolve
todas as esferas da sociedade: Estado, mercado e sociedade civil.
Como uma maneira de reforçar a influência da religião na construção e funcionamento
do setor social e também mostrar a complexidade deste processo em nosso país, abro
parênteses. Em texto anterior denominado “Fora da caridade não há religião!...162”, Marcelo
A. Camurça (2001) demonstra que num ambiente de competição religiosa entre o catolicismo
e o espiritismo – período de 1900 a 1960, marcado pela intolerância e pelas disputas
doutrinárias e teológicas –, a realização de ações caritativas e obras sociais passou a ser
utilizada como mecanismo de desqualificação e de legitimação. Para o catolicismo, a
edificação de obras caritativas serviu como parte de sua estratégia de preservação do
monopólio de sua presença junto à população, ou seja, como instrumento e resultado da
reivindicação e negociação com o Estado laico por um lugar de preeminência na organização
político-institucional-social, enquanto representante da religião majoritária. Já o espiritismo
procurou legitimar suas crenças e práticas e seu reconhecimento pela sociedade por meio de
obras sociais e sob a “bandeira da caridade” (Cf. CAMURÇA, 2001, p. 131 ss). Em síntese,
no período tratado e no qual a caridade - virtude cristã comum às duas tradições religiosas -
em parte foi transfigurada em instrumento de poder – isto em função de distorções, pois a
caridade, por sua natureza de valor ético, sempre objetiva a dignidade da pessoa humana e o
bem comum -, ambas as religiões objetivaram “consolidar-se perante o Estado e a sociedade
civil como competentes desta ‘utilidade pública’” (Ibid., p. 132).
Observe-se que, embora o referido artigo tenha como contextos centrais o fim do
Padroado – catolicismo como religião oficial do Estado no tempo do Império – e o
conseqüente início do processo de Romanização – alinhamento da Igreja Católica do Brasil ao
Vaticano decorrente do fim do Padroado e que, por meio da formação (educação) doutrinária
da maioria católica e de acordos com o governo, objetivou manter a preeminência dos valores
morais e culturais do catolicismo no Estado Republicano laico -, o texto trata dos seguintes
aspectos que nos interessam: a) faz referências à hegemonia do catolicismo nas ações
162 O artigo, indicado na “Bibliografia”, tem a seguinte denominação completa e auto-explicativa: “Fora da caridade não há religião! Breve história da competição entre catolicismo e espiritismo kardecista e de suas obras sociais na cidade de Juiz de Fora: 1900-1960”.
165
caritativas e obras sociais no período colonial e imperial – especialmente realizadas por meio
de Irmandades, Confrarias e Ordens Terceiras; b) destaca, no processo de Romanização, a
chegada das Ordens Religiosas estrangeiras que tiveram um importante papel – até hoje o tem
– na manutenção e administração de obras sociais; c) indica a marca da racionalidade
moderna, onde compaixão e ação metódica parecem se combinar, das Conferências
Vicentinas, fundadas por Frederico Ozanan no ambiente universitário em meio a discussões
com correntes socialistas (Cf. Ibid., p. 135ss e 141ss).
Finalmente, em suas conclusões – e aqui se percebe o real significado e sentido do
amor ou caridade como princípio ético e como virtude - , o autor dá um salto para o nosso
tempo, um tempo de esperança, no qual, sob a influência dos ventos renovadores do Concílio
Vaticano II e concretamente no evento “Mostra Dignidade Humana e Paz”, fruto da
Campanha da Fraternidade de 2000, ele se surpreendeu ao “assistir a Igreja Católica de Juiz
de Fora convidar os Centros Espíritas da cidade para lado a lado exporem à população suas
obras de caridade” (Ibid., p. 154).
2.3. A Fluidez das Lógicas do Terceiro Setor em uma Sociedade de Direitos: Assistência,
Promoção e Transformação
Embora haja consenso entre os estudiosos sobre a importante influência, em nosso
país, de fatores religiosos na construção e funcionamento do terceiro setor, os autores também
apontam a existência ao menos – veremos que são três – duas formas de agir, duas lógicas no
setor social: as ações assistenciais caritativas, identificadas como práticas tradicionais, e as
ações cidadãs, representativas da moderna forma de implementação dos direitos sociais.
Landim e Scalon (2000 b), em seus comentários sobre o survey163 por elas elaborado
que demonstrou a relevância da prática religiosa efetiva na propensão de doar e de ser
voluntário, constataram a coexistência dessas lógicas:
Em uma observação geral sobre as respostas, pode-se dizer que coexistem duas lógicas nas percepções quanto aos motivos para doar bens ou dinheiro. Por um lado, houve o mais alto grau de concordância com relação às asserções referidas ao domínio da reciprocidade e da obrigação moral e religiosa164, assim como a formas
163 Tratam-se do estudo Doações e trabalho voluntário no Brasil – uma pesquisa e do texto “Quem dá e quem não dá, eis a questão”, ambos de autoria de Leilah Landim e Maria Celi Scalon. O estudo e o texto estão especificado na “Bibliografia” e seus dados estão noticiados no subitem desta dissertação denominado: Os números do terceiro setor no Brasil: o tamanho e a presença da religião” 164 Como temos a percepção de que existe uma certa distorção do significado e sentido das palavras “obrigação” e “dever”, fazemos algumas colocações que demonstram sua relevância e dimensão como elementos essenciais
166
integradoras de sociabilidade165. São as do tipo “fazer doações a pessoas mais necessitadas é uma forma de retribuir as oportunidades que se teve na vida”, assim como “fazer caridade através de doações” – ou “me dedicar a atividades sem pagamento para ajudar os outros” – “ faz parte de minha crença religiosa”, ou ainda “uma vantagem de colaborar em instituições é poder encontrar e conhecer pessoas”. Mas na mesma proporção de concordância mereceram as afirmações que remetem a ideários de participação cidadã e resultados para a sociedade, como ”todo cidadão deve doar algo para melhorar a sociedade” ou “o trabalho voluntário faz parte da cidadania e ajuda a construir uma sociedade melhor”. São lógicas que coexistem na percepção tanto dos que declararam doar tempo e dinheiro, com dos que afirmaram não doar (LANDIM e SCALON, 2000 b, p. 7)
Os estudos166 também apontam uma tendência à articulação e busca de
compatibilização e complementaridade entre a ação caritativa e a ação cidadã, ou melhor,
entre as dimensões assistencial, promocional e libertadora/transformadora das práticas (ações)
no setor social, inclusive em função da fluidez em nosso mundo real (em nosso país) –
diverso da tipificação do mundo ideal (do campo acadêmico) – caracterizado como um
sociedade democrática de direitos.
Regina Reyes Novaes (1998), em sua investigação “Juventude e ação social católica
no Rio de Janeiro: resultados de pesquisa”, constata essa tendência:
dos princípios éticos e dos mandamentos religiosos. Num primeiro momento, remetemos o leitor aos ensinamentos de Fábio Konder Comparato (2006) detalhados no subitem “Os princípios éticos cardeais e o terceiro setor...”, no sentido de que princípios éticos criam deveres objetivos e gerais de comportamento, donde decorre, exemplificativamente, o dever de amor (temos o dever, a obrigação, de praticá-lo, porém a prática dessa doação completa e sem reservas não pode ser exigida, uma vez que o princípio ético do amor ou caridade não engendra direitos) e o dever de ser justo (esse, por sua vez, deve ser praticado e pode ser exigido) (Cf., COMPARATO, 2006, p. 533 ss). Já num segundo momento, transcrevemos o seguinte posicionamento de Carlo Maria Martini (2001), extraído do livro que retrata seu diálogo com Umberto Eco e que tem como contexto uma situação controversa e até confusa da reflexão teórica sobre a moral: “Isto diz respeito também ao ambiente dos crentes, onde até agora parece prevalecer uma compreensão quase que exclusivamente kantiana, ou seja coercitiva, da ética, em que o acento recai exclusivamente no dever. Também eu, em minha intervenção precedente, havia falado de princípios da ética e de imperativos universalmente válidos. Mas não gostaria de ser mal compreendido, como se quisesse acentuar apenas aquilo que é obrigatório, aquilo que é forçoso fazer ou não fazer. De fato, evoquei, para começar o discurso, um aspecto da moral, o aspecto deontológico e impositivo. Mas o ético não se resume a isso: seu elemento mais fascinante é conduzir o homem a uma vida boa e satisfatória, à plenitude de uma liberdade responsável. Os imperativos éticos, pétreos, duros, esmagam a vontade malévola guiando a vontade positiva de fazer o bem para uma espontaneidade mais elevada.” (ECO e MARTINI, 2001, p. 150-151). 165 No subitem anterior desta dissertação denominado “Religião e construção da esfera pública não-estatal ou esfera privada com âmbito público”, sob a argumentação de Marcelo A. Camurça (2005) que será retomada neste subitem, é destacada a influência da caridade tradicional dentro da moderna filantropia na constituição da sociabilidade brasileira. Nesta linha de pensamento, o autor designa “caridade” como “religião civil” ou “religião social” ou “religião comum” dos brasileiros. 166 Em vários outros momentos desta dissertação já foram destacados a diversidade, heterogeneidade e pluralismo da composição do terceiro setor, assim como os pontos de articulação, complementaridade e convergência entre suas lógicas. Sobre o assunto, indicamos os seguintes autores já citados: Salamon (1997; 1998); Fernandes (1997; 1994); Gohn (2000); Fischer (2002); Camurça (2001; 2005); Landim e Scalon (2000 a; 2000 b). Também indicamos os seguintes subitens desta dissertação: “Conceitos, elementos e características do terceiro setor”; “As faces do terceiro setor...”; “As pressões envolvidas no terceiro setor...”; “Dos profetas sociais à teologia da libertação”; “Caridade, assistência, assistencialismo e cidadania...”, “ONGs e políticas de governo...”; “Religião e construção da esfera pública não-estatal ou esfera privada com âmbito público”.
167
De maneira geral, o pertencimento religioso inscreve suas marcas de fé no que diz respeito à ação temporal suscitada pela pobreza material e pelas desigualdades sociais. Daí a eficácia específica da ação social que se autodenomina caridade. E, também, é preciso sublimar, deve-se à maneira católica de “fazer caridade” que, suportando a diversidade das correntes internas e de suas particulares vocações, sempre se modifica (geralmente não por exclusão, mas por inclusão) e se atualiza no curso do tempo. Mais concretamente, no conjunto do campo da assistência social, instituições e trabalhos desenvolvidos pela Igreja, há tanto Projetos que podem ser classificados “assistencialistas” como outros que são considerados exemplares em termos de “educação para a cidadania”. Em outras palavras, o cardápio da Igreja é diversificado. Através de diversos espaços institucionais, de movimentos leigos, da territorialidade paroquial, a Igreja acaba absorvendo novas linguagens e novas parcerias do campo assistencial, sem excluir circuitos mais tradicionais do tempo167. (NOVAES, 1998, p. 117).
Também Emerson Giumbelli (1998), em seu trabalho “Caridade, assistência social,
política e cidadania: práticas e Reflexões no espiritismo”, verifica na confluência entre
caridade e cidadania essa tendência:
Caridade com cidadania, mas também cidadania afirmada pela caridade: eis aí uma configuração a partir da qual os espíritas podem ser reconhecidos e se apresentarem diante de outros atores sociais politicamente envolvidos. Como tal, constituiriam mais uma prova de que, no Brasil de hoje, o espaço público não é apenas diversificado por novos agentes de intervenção, mas também povoado por valores que não excluem as matrizes religiosas... (GIUMBELLI, 1998, p. 165).
Em sua tese de doutorado Religião e cultura cívica: um estudo sobre modalidades,
oposições e complementaridades presentes nas ações sociais evangélicas no Brasil, orientada
por Regina Novaes, Flávio Cesar dos Santos Conrado (2006) também constatou a existência
de diferentes lógicas que se entrecruzam na atuação social dos evangélicos:
Estes modelos, que tiveram seu momento de implementação e hegemonia, numa dada conjuntura e correlação de forças sociais, encontram-se, diante das determinações econômicas, políticas e culturais vividas pelo país nas duas últimas décadas, renovados e superpostos. A persistência de práticas assistenciais segundo a lógica caritativa continua a orientar a atuação de variadas instituições no contexto de acentuada crise e permanência da desigualdade, embora já não se possa dizer que elas permaneçam assim avessas ao discurso da cidadania e da atuação no espaço público através dos Conselhos e fóruns da sociedade civil (...) Atualmente, conforme este estudo apontou, as igrejas evangélicas envolvem-se crescentemente no campo da ação social, através de uma enorme diversidade de
167 Tal questão envolvendo a diversidade e a atualização da forma de “fazer caridade” da Igreja Católica – temos uma especial preocupação com esse assunto em função do objeto de nossa pesquisa - , já foi tratada em vários subitens desta dissertação – vide os destacados na nota de rodapé anterior -, e será detalhada tanto neste subitem quando no item “A relação entre o ethos religioso e o ethos do ativismo no setor social...”.
168
práticas seja sob as lógicas da caridade / assistência, da filantropia ou da justiça. Busquei demonstrar através dos casos descritos as distâncias, aproximações e complementaridades entre essas diferentes lógicas que não podem, portanto, ser vistas a partir de um evolução linear de uma lógica de assistência a uma lógica pautada na justiça e na transformação social (CONRADO, 2006, p. 193-194).
Percebe-se acima que o autor – utilizando, para tanto, as palavras e argumentos de
Ana Maria Quiroga (2001) desenvolvidos no artigo “Caridade, filantropia e justiça e os
modelos de ação social” - fragmenta as duas lógicas – caritativa e cidadã – em “três conceitos
que funcionaram como operadores de legitimação de práticas de intervenção junto aos grupos
empobrecidos: a caridade, a filantropia e a justiça” (CONRADO, 2006, p. 191). E continua
Conrado, agora explicitando os conceitos: a) a caridade cristã como o padrão assistencial do
período colonial até as vésperas da República, operando em nome de compromissos
espirituais – seus símbolos são as Santas Casas de Misericórdia e obras sociais desenvolvidas
por irmandades e confrarias – e que é a pedra fundamental de um complexo abrangendo
instituições de saúde, educação e assistência social (Cf. Ibid., p. 191-192); b) a filantropia que
de certa forma laiciza o campo social – é citada como exemplo a filantropia higienista - “com
a introdução de novos segmentos dominantes (médicos e juristas) que produzem uma nova
forma de intervenção social, que mantém antigos valores e justificações morais mas apresenta
novos elementos que vão combinar a crítica aos esquemas de intervenção tradicional à
articulação de conhecimentos técnico-científicos à prática social...” (Ibid., p. 192); c) mais
recentemente o conceito de justiça que, associado a noção de solidariedade e direitos,
incorpora como sujeitos de direitos e objetos do dever jurídico determinadas categorias de
indivíduos normalmente objetos da caridade tradicional e alvos da ação disciplinar da
filantropia higienista (Cf. Ibid., p. 192).
Já outro estudo, a dissertação de mestrado Filantropia ou cidadania: um estudo da
participação de entidades religiosas de atendimento na política para a infância e a
adolescência em Juiz de Fora pós anos 90, de Mirella Loterio Siqueira (2007), também
merece destaque. Faço, entretanto, algumas considerações críticas, pois tenho a percepção de
que em suas análises e conclusões existe uma certa tendência em desvalorizar as ações
desenvolvidas pelas ONGs, como se tudo competisse ao Estado. Dá-se a impressão, segundo
o que apreendemos do texto, que a atuação das entidades do terceiro setor seria um obstáculo
para a implementação das políticas sociais, inclusive porque sua forma de agir seria contrária
169
à lógica da cidadania, que estaria quase que exclusivamente vinculada à atuação do poder
público Estado168:
...as novas práticas desenhadas na Constituição Federal não representam a anulação das velhas práticas no campo das políticas sociais, pois, a própria Constituição reafirmou vantagens da filantropia, por meio da relação cartorial do Estado com as instituições, em que os certificados de utilidade pública e de fins filantrópicos funcionam como passaportes para acúmulo de vantagens (Mestriner, 2005). Além disso, na contramão do processo de implantação da Constituição e em suas leis complementares ocorreu o ajuste neoliberal no país com a proposta de desmonte do Estado e, portanto, de reforço ao caráter privado das políticas sociais. Neste contexto, as estratégias de descentralização e participação popular foram utilizadas como mecanismos substitutos e não complementares à ações do Estado para com as políticas sociais reforçando a promoção da filantropia em detrimento da cidadania.(...) Com esta “nova velha” lógica tem-se na área da criança e do adolescente a abertura de espaço para o ressurgimento e valorização de organizações voltadas para a filantropia com práticas e valores tradicionais (SIQUEIRA, 2007, p. 201).
Tal percepção ganha mais substância, na medida em que Maria Luiza Mestriner
(2001) e seu brilhante, porém polêmico O Estado entre a filantropia e a assistência social são
citados e utilizados como referencial por Siqueira (2007). Polêmico – assim o adjetivamos,
em função de nossa argumentação desenvolvida nesta dissertação -, especialmente para os que
defendem, como nós: a) o direito de associação como essencial para a organização e
mobilização da sociedade civil; b) o reconhecimento pelo poder público (executivo,
legislativo e judiciário) dos direitos constitucionalmente concedidos à ONGs para que elas
participem da implementação dos direitos sociais; c) criação de mecanismos claros e
adequados que regulamentem a relação entre Estado e ONGs (Cf. OAB/SP, 2008)169.
Passemos, então, às conclusões de Mestriner (2001) que motivam nossas
considerações críticas acima noticiadas – destacamos que nossas críticas levam em conta que
vivemos atualmente em um Estado Democrático de Direito, regido por uma Constituição
168 Evitando-se demasiadas repetições – embora entendamos que algumas vezes a reafirmação de posicionamentos seja necessária, inclusive para a manutenção da coerência da argumentação desta dissertação que envolve várias áreas do conhecimento (administração, direito, economia, história, sociologia, serviço social, antropologia, filosofia, ética, teologia, ciências da religião etc) -, para melhor compreensão do tom crítico expresso em nossas considerações sobre alguns aspectos – reforçamos nossa admiração pelos textos – das argumentações de Siqueira (2007) e Mestriner (2001), remetemos o leitor aos seguintes subitens desta dissertação que questionam o alegado conflito intransponível entre o dever do Estado e a atuação das ONGs na implementação dos direitos sociais, bem como que questionam a tendência de tão somente vincular a amplitude e expansão do terceiro setor às pressões decorrentes de políticas de governo neoliberais: a) “Enfim, uma constituição federal cidadã”; b) “As revoluções sociais, o estado democrático de direitos e os processos de exclusão e inclusão sociais...”, especialmente na parte final, onde a título provocativo, formulamos vários questionamentos em formato de perguntas; c) “ONGs e política de governo...”. 169 Inclusive porque Mestriner (2001) referencia teoricamente a dissertação de Siqueira (2007), remetemos o leitor à nota de rodapé anterior, especialmente para buscar nos subitens ali indicados inúmeros outros fundamentos que justificam nossas considerações críticas.
170
Federal adjetivada como cidadã, que responsabiliza o poder público pela implementação dos
direitos sociais, com a participação complementar e integrada das ONGs:
O Estado brasileiro, nos diversos períodos estudados, reproduziu para as organizações sem fins lucrativos, ainda que em menor escala, o papel protecionista que dedicou ao investimento privado. Se na economia sua ação foi amortecedora dos riscos do investimento privado, no social procedeu do mesmo modo, protegendo as organizações privadas sem fins lucrativos por meio de subvenções, isenções, concessões, entre outros benefícios. A política da concessão pautada no mérito, caso a caso, reitera, assim, o pacto com a burguesia. (...) O Estado brasileiro favorece de forma mais intensa a reprodução do capital, e não as condições sociais de sobrevivência e qualidade de vida das classes trabalhadoras. Essa regulamentação trunca a consagração de direitos sociais e faz das reformas adotadas processos predominantemente regressivos para a universalização da cidadania. Transmuda em proteção das organizações sem fins lucrativos o que deveria ser a proteção social às vulnerabilidades do cidadão (MESTRINER, 2001, p. 308).
Agora, como indicado anteriormente170, aproveitamos o brilhantismo da assistente
social Maria Luiza Mestriner (2001), representado pelo quadro por ela elaborado referente às
tipologias, por períodos históricos, das organizações do terceiro setor e de suas regulação, e
do qual podemos extrair elementos referentes à relação entre as lógicas de funcionamento do
terceiro setor e os processos histórico-religiosos de construção da esfera pública não-estatal
ou esfera privada de âmbito público:
170 No último parágrafo do subitem desta dissertação denominado “Dos profetas sociais à teologia da libertação”
171
Quadro 6 -Tipologia das Organizações Sociais por Períodos Históricos
Tipos de organização
Tipos de regulação
Período Imperial até 1889 Filantropia caritativa: Assistência e repressão
Obras pias atendimento conjunto (uma só massa) a órfãos , inválidos, enfermos, delinqüentes e alienados
Religiosa Testamentos, subscrições e auxílios provinciais (pela Junta da Fazenda Nacional ou Câmara Municipal do Império)
Primeira Republica de 1889 até 1930 Filantropia higiênica: Assistência, prevenção e segregação
Obras sociais Atendimento por especialidades para: • crianças - asilos, orfanatos e
internatos • velhos e inválidos – asilos • alienados – hospícios • mendigos – asilos de
mendicidade • doentes – sanatórios,
dispensários, lazaretos • imigrantes – instituições de
auxilio mútuo
Médico-religiosa Auxílios provinciais (pela Junta da Fazenda Nacional ou Câmara Municipal) Jurídica 1º Juízo de Menores no Rio de Janeiro (1923) Código de Menores ( Mello Matos) – 1927
Getulismo de 1930 a 1945 Filantropia disciplinadora: Enquadramento nas normas técnicas e disciplinamento dos indivíduos.
Instituições assistenciais (influência das encíclicas sociais) Materno-infantil: Hospitais, ambulatórios, postos de saúde Proteção à infância: Orfanatos, creches , internatos De educação: Educandários, de assistência pré-primária, primária, profissionalizante, educação de anormais, educação e reeducação de adultos Proteção a jovens: Organizações da juventude, escolas profissionais De auxílios mútuos: Instituições étnicas e de categorias profissionais Estatais: Departamentos de Assistência Social de São Paulo – 1935 SAM- Serviço de Assistência ao Menor -1941 Formação: Centro de Estudos e Ação Social, escolas de Serviço Social Movimento Católico laico: Ação Católica, círculos operários Sindicatos Centros assistenciais Complementares Instituições fomentadas pelo Estado: LBA (1942); Senai (1942); Sandu (1945) Instituições religiosas -
Estatal Constituição Federal de 1934 • Presidente da República: Contribuições à caridade oriundas de taxas alfandegárias a bebidas alcoólicas e embarcações • Ministério da Justiça e Negócios Interiores Caixa de Subvenções (31/08/31) Certificado de Utilidade Pública (28/08/35) • Ministério da Educação –Criação do CNSS (01/07/38) Subvenção Federal (regulamentação 25/11/35 -01/07/38)
Estatal Constituição de 1937 Reitera o CNSS • Amplia regulamentação de subvenções • Isenção na aplicação de tetos mínimos de salário dos funcionários (1945/46) e de imposto de renda ( 1943)
172
protestantes, espíritas e evangélicas: Albergues,centros de juventude,abrigos,instituições para deficientes físicos e mentais
Estado Democrático Populista de 1946 a 1964 Filantropia partilhada profissionalizante
Instituições criadas pelo Estado com o empresariado: Senac (1946) Sesc (1946) Sesi ( 1946) Movimentos Comunitários
Estatal Complexificação da burocracia Registro Geral de Instituições (1951) Isenção da contribuição da cota patronal previdenciária (1959) Certificado de filantropia (1959)
Estado Autoritário de 1964 a 1988 Filantropia de clientela: Assistência e repressão
• Organizações sociais – influência do racionalismo técnico – vertente modernizadora do serviço social frente à reconceitualização (1964) • Funabem/Febem – 1964 • Associações comunitárias: • Sociedades Amigos de Bairro • Associações de Moradores • Renovação Pastoral • Comunidades Eclesiais de Base - CEBs
Estatal Assistência por convênios Isenção de impostos sobre importações (1965)
Transição Democrática filantropia vigiada 1985-88
• Organizações não-governamentais; • Movimentos de defesa de direitos • Novos movimentos sociais
Estado Democrático de 1988 a 1999 Filantropia democratizada
Expansão de: • Conselhos setoriais • Organizações não-governamentais • Organizações civis • Centros de defesa de direitos • Fundações empresariais
Estatal Constituição Federal de 1988 ECA- 1990 LOAS – 1993 Extinção da LBA/CBIA Extinção do CNSS Criação do CNAS Lei do Voluntariado – 1998 Lei da Filantropia – 1998 Lei das organizações da Sociedade Civil de Interesse Público e Termo de Parceria - 1999
Fonte: Elaborado a partir de Mestriner (2005) (Cf. MESTRINER, 2001, p. 45-46)
Voltemos ao estudo de Mirella Loterio Siqueira (2007), no qual também verificamos
uma tendência de se polarizar, em locais opostos e incomunicáveis, as lógicas caritativa e
cidadã, sem levar em conta que elas se entrecruzam e se articulam, e isto – talvez aí esteja a
questão mais delicada – associando ao ideário religioso todos os aspectos negativos e de
173
desconformidade das entidades com a política pública de atendimento a crianças e
adolescentes171. Neste sentido, a pesquisadora assim se manifesta:
No conjunto da avaliação empreendida quanto aos critérios e indicadores da política voltada ao público infanto-juvenil, constatamos que as entidades religiosas se comportam de maneira insatisfatória na política de atendimento, pois apenas 50% delas conseguiram preencher 70% dos quesitos avaliados nos dois eixos analíticos. Verificamos que as atividades desenvolvidas para o segmento familiar não efetivam direitos de cidadania, posto que as ações eram pontuais, assistencialistas e numa lógica de extensão do trabalho da igreja. No regime de Apoio Sócio-educativo verificamos que, além do não cumprimento dos requisitos avaliados, as ações desenvolvidas nos Programas de iniciação, formação profissional ou colocação no mercado de trabalho, em sua maioria, eram descontínuas, com oferecimento de cursos e oficinas que se efetivavam na perspectiva de profissionalização. O regime de abrigo, ao contrário, não apresentou irregularidades que comprometessem a qualidade do seu atendimento. (...) Através da investigação dos motivos, valores e objetivos das entidades no atendimento ao público infanto-juvenil, procuramos averiguar se o ideário religioso mantinha relação com as inadequações apresentadas. Verificamos que esta relação é pertinente, pois, as entidades que apresentaram índices insatisfatórios foram as que, em suas respostas, afirmaram ter o ideário religioso como motivação para o atendimento, a ajuda como objetivo da instituição (neste caso com um sentido proselitista), e valores cristãos, caritativos e morais como orientadores das ações da entidade. Valores estes que reforçam a lógica filantrópica, contrária à perspectiva da cidadania (Ibid., p. 203- 204).
Ora, se olharmos os dados sob outros prismas – sob uma ótica mais fluida, menos
dicotômica e sem grandes influências ideológicas - , acredito que chegaremos a outras
conclusões, talvez mais amplas e mais realistas, e isto porque: a) ante o caráter programático e
ideal das normas determinadas pelo Conselho Municipal de Direitos da Criança e do
Adolescente de Juiz de Fora (CMDCA/JF) e que serviram de base para a formulação dos
quesitos de avaliação172, talvez chegássemos aos mesmos resultados se fossem pesquisadas
171 Temos a clara percepção de que esta visão é influenciada pela metamorfose ideológica que objetiva transformar a “caridade” em "assistencialismo” e que busca excluir os elementos ético-religiosos da sociedade. Tais questões já foram amplamente explicitadas, especialmente no subitem desta dissertação denominado “Caridade, assistência, assistência social, assistencialismo e cidadania: caridade sem verdade e valor vira equivocadamente esmola”. 172 Exemplificativamente, transcrevemos a seguir as normas envolvendo duas categorias do eixo 1 (critérios gerais), nos termos apontados por Mirella Loterio Siqueira (2007) em sua dissertação: “A- Categoria ‘Gestão e recursos humanos’. Como afirmam as Resoluções nº 05/01 e nº 15/06 do CMDCA/JF para esta categoria, destacamos os seguintes artigos: I – Quanto à administração:§ A coordenação das atividades tomará como base: c) recrutamento, seleção e treinamento de pessoal;§ 4º Para o desenvolvimento de suas ações a entidade deverá contar com a atuação de equipe de profissionais especializados (assistentes sociais, psicólogos, pedagogos, médicos, fonoaudiólogos, etc) de acordo com o plano de trabalho, podendo para tanto contar com a assessoria técnica e/ou financeira por parte do poder público; V – Quanto aos recursos humanos: § 1º A entidade deverá ter como preocupação central a formação técnica de seus funcionários e, para tanto, deverá propiciar oportunidades para que estes: a) participem de eventos e cursos de formação e aperfeiçoamento; b) freqüentem o ensino regular ou supletivo de forma a que completem sua escolaridade e, cursos profissionalizantes, tornando-se pessoas autônomas e mais qualificadas; § 3º Na admissão dos
174
entidades de atendimento sem vínculos religiosos (não religiosas), pois muitas das
inadequações apontadas decorrem muito mais de outros fatores a seguir indicados, do que do
ideário religiosos: falta de recursos financeiros, deficiência na capacitação técnica e
profissional e dificuldades de adaptação, especialmente nos aspectos da cultura
organizacional, decorrentes do processo de construção em nossa sociedade de direitos de uma
nova regulamentação das relações entre o Estado e as ONGs; b) em vez de serem ressaltadas
as inadequações, poder-se-ia destacar as conformidades, pois 50% conseguiram preencher
70% das normas programáticas e ideais, donde decorre a tendência – verificada nos estudos
acima apontados – a uma articulação e busca de compatibilização entre a ação caritativa e a
ação cidadã; c) observe-se, também, que sem o ideário religioso – colocado como obstáculo
para o atendimento satisfatório – pelo menos 39% das entidades de atendimento a crianças e
adolescentes - descritas pela pesquisadora como entidades religiosas - não existiriam e não
funcionariam em Juiz de Fora173.
Note-se, ainda, que a própria autora de forma indireta, porém explícita, admite que as
coisas não são tão “preto no branco”, abrindo inclusive a perspectiva de um novo olhar sobre
a questão:
Entretanto, se olharmos entidades de mesma vinculação religiosa, o que faz uma despertar para a lógica do direito e a outra, por exemplo, ignorar essa proposta? Qual seria a diferença, por exemplo, entre a Pastoral do Menor (que se comportou satisfatória) e a Sociedade São Vicente de Paulo (que apresentou uma atuação pautada na lógica caritativa)? Seria somente o componente político, se levarmos em consideração o contexto de surgimento dessas instituições e a proposta de trabalho realizada por elas? São questões em aberto que necessitam de futuras pesquisas (Ibid., p. 205).
funcionários, a entidadwe deverá selecionar pessoas com a qualificação mínima exigida (...); (SIQUEIRA, 2007, p. 135-136) “B- Categoria ‘Atendimento sócio-educativo desenvolvido pela entidade’. Conforme coloca a Resolução nº 05/01 do CMDCA/JF ficam estabelecidos como critérios genéricos a serem observados pelas entidades: I – Quanto à administração:§1º A coordenação das atividades tomará como base uma rotina de: e) planejamento periódico das ações e investimentos, levando-se em conta a demanda apresentada e o parecer dos envolvidos no trabalho (família, comunidade, funcionários, criança e adolescentes, etc); f) avaliação sistemática e coletiva das ações. § 2º A gestão contará com a participação efetiva das famílias usuárias. II – Quanto à organização: § 3º Os serviços deverão seguir uma rotina de atendimento que inclua: b) fichas de identificação de crianças e/ou adolescentes atualizadas com seu dado pessoais, histórico de vida, informações acerca de sua saúde (vacinação, alergias, etc); c) trabalho articulado com outros segmentos responsáveis pela criança e/ou adolescente (família, escola, poder público...); § 4º Para o desenvolvimento de suas ações a Entidade deverá contar com a atuação de equipe de profissionais especializados (assistentes sociais, psicólogos, pedagogos, médicos, fonoaudiólogos, etc). (SIQUEIRA, 2007, p. 139) 173 O estudo aponta um total de 120 entidades de atendimento à infância e adolescência em Juiz de Fora, sendo 73 (61%) indicadas com entidades laicas e 47 (39%) indicadas como entidades religiosas (Cf. SIQUEIRA, 2007, p. 128)
175
Como um auxílio para melhor contextualizar a situação e subsidiar nossa resposta
aos questionamentos de Siqueira (2007) – eles são sintetizados nesta pergunta: Quais são os
motivos que fazem umas entidades com vinculação religiosa despertarem para a lógica do
direito, e outras não? – trazemos alguns trechos das “Considerações finais” da dissertação de
mestrado de Márcia Moussallem (2008) cujo título a seguir indicado é auto-explicativo:
Associação privada sem fins econômicos de assistência social: Entre a lógica da filantropia e
do reconhecimento da cidadania. O caso da Liga das Senhoras Católicas de São Paulo:
Diante destas questões em torno da gestão, das ações e das práticas sociais da LSC174, pode-se constatar nos seus conteúdos e discursos, que ocorre um avanço significativo nos últimos 10 anos para a lógica dos direitos de cidadania. Apesar das contradições e conflitos – observados nos valores filantrópicos inseridos nas relações dos gestores, técnicos e usuários – notou-se uma consciência e um esforço da Associação superar os valores caracterizados da sua origem. Ainda que este estudo apresente uma limitação metodológica, por se tratar de apenas um caso único, ele sinaliza para a possibilidade de um associação filantrópica, mesmo centenária e de cunho religioso, avançar na suas ações e práticas para a lógica dos direitos de cidadania, tendo em vista as pressões e mudanças institucionais ocorridas no mundo e na sociedade brasileira. (MOUSSALLEM, 2008, p. 148).
Agora tentando responder mais diretamente à pergunta, porém sem antes ratificar
nosso posicionamento de que vários outros fatores desvinculados dos aspectos religiosas
influenciam as lógicas e o modo de atuação das entidades175, nos apropriaremos do processo
de evolução176 – para nós não linear, em função da busca de articulação, compatibilização e
complementaridade de suas dimensões177 - do paradigma da caridade interpretado, discursado
174 Segundo a autora, LSC é a sigla da Liga das Senhoras Católicas de São Paulo. 175 Quando de nossas considerações críticas sobre o estudo de Siqueira (2007), citamos e aqui enfatizamos, a dificuldades de adaptação, especialmente nos aspectos da cultura organizacional, decorrentes do processo de construção em nossa sociedade democrática de direitos de uma nova regulamentação das relações entre o Estado e as ONGs. E temos a percepção de que isto decorre do fato de que nosso país apenas se consolidou como um estado de bem-estar social – o Estado com responsável legal pela implementação dos direitos sociais (saúde, educação, assistência social etc ), contando com a colaboração de forma integrada e complementar da ONGs -, tanto no plano jurídico quanto, como conseqüência, no plano da efetiva realização dos direitos, a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988. 176 Usando a linguagem de Novaes (1998) anteriormente transcrita, talvez fosse mais a apropriado trocarmos a expressão “evolução não linear do paradigma da caridade” pela expressão “atualização no curso do tempo da maneira católica de fazer caridade”. Elucidamos, ainda, que a “evolução” do paradigma da caridade – assistência, promoção e libertação/transformação – já foi tratada no subitem desta dissertação denominado “Caridade, assistência, assistência social, assistencialismo e cidadania...”, e no qual nos posicionamos – e agora o fazemos novamente de modo sintético - no sentido que o princípio ético da caridade ou amor foi crucial para a construção de uma rede social e ou assistencial antes mesmo da consolidação de Estados e sociedades de direitos, foi fundamental para a consolidação desses Estados e para a positivação nesses Estados de um sistema jurídico garantidor dos direitos sociais e da cidadania e, ainda, é relevante para a efetiva implementação dos direitos individuais, sociais e políticos, inclusive por meio do fomento de transformações necessárias à realização da justiça social pautada na igualdade e eqüidade. 177 No subitem desta dissertação denominado “Dos profetas sociais à teologia da libertação”, além de indicar a relevância da caridade - em seu real sentido e significado – para a educação da consciência humana e para construção de uma ampla rede social e ou assistencial, como também de indicar conflitos internos da Igreja
176
e praticado pela organização “assistencial” da Igreja Católica denominada Cáritas. Para tanto,
utilizaremos dados e argumentos de texto de André Ricardo de Souza (2007).178
Segundo o autor, em seu congresso realizado em 2003, a Cáritas Brasileira179,
analisando sua trajetória, acabou por adjetivar a caridade por ela realizada em três modelos
distinto de intervenção frente ao problema da carência alheia180, quais sejam, a caridade
assistencial, a caridade promocional (modelo promocional de caridade) e a caridade
libertadora (Cf. SOUZA, 2007, p. 2-3)
O modelo de caridade assistencial181, inclusive com a preocupação de se distinguir
a assistência do assistencialismo – este curiosamente chamado de “caridade interesseira”,
obviamente que entre aspas - , é assim descrito:
Num primeiro momento, orientou-se por um modelo de caridade assistencial, caracterizado pelo atendimento individualizado às pessoas consideradas necessitadas e indefesas. A Cáritas reconhece o valor do trabalho de assistência imediato às vítimas da pobreza extrema, bem como de outras mazelas humanas, como doença crônica, deficiência
Católica envolvendo a forma de fazer caridade, defendemos nosso ponto de vista- e aqui o reafirmaremos – no sentido de que uma rede de instituições de caridade adequada à atualidade é necessária ainda hoje para implementação dos direitos sociais, e isto para que o “pobre” – na linguagem atual, o excluído, o sujeito de direitos em situação de vulnerabilidade ou risco pessoal e social – seja atendido em suas necessidades e direitos (dimensão assistencial da caridade), seja conscientizado de sua situação e de seus direitos (dimensão promocional da caridade) e, assim, torne-se protagonista para modificar as estruturas excludentes, concentradoras, destrutivas e injustas do capitalismo (dimensão libertadora/transformadora da caridade). 178 O referido texto utilizado e discriminado na “Bibliografia”, conforme informações do autor em nota de rodapé: “Decorre da tese de doutorado em sociologia Igreja, política e economia solidária: dilemas entre a caridade, a autogestão e a teocracia, defendida na USP, em março de 2006” (SOUZA, 2007, p. 1). 179 Segundo o autor: “A Cáritas é um organismo da Igreja Católica presente em 200 países e territórios, na forma de uma rede com nome de Cáritas Internationalis, sede no Vaticano e origem em 1897. Esta rede está subdividida em 7 regiões: América Latina e Caribe, África, Europa, Oceania, Ásia, América do Norte e a chamada MONA – Oriente Médio e Norte da África. Nessas diversas partes do globo, a Cáritas costuma agir em parceria com organismos nacionais e internacionais, com enfoque na questão da defesa dos direitos humanos e numa perspectiva ecumênica. Ela detém o ‘status consultivo geral’, atribuído pelo Conselho Socioeconômico da Organização das Nações Unidas. A chamada Cáritas Brasileira foi fundada em 12 de novembro de 1956 e é reconhecida como entidade de utilidade pública federal, o que lhe permite fazer convênios com órgãos de governos. Nos anos de 1970, contexto de proliferação das Comunidades Eclesiais de Base a Cáritas Brasileira ocupou um espaço próprio no espectro das pastorais sociais, se expandindo e estruturando nacionalmente. Desenvolveu-se a rede de Cáritas Diocesanas, composta por entidades de assistência social filiadas à Cáritas Brasileira. São escritórios de representação que funcionam nas sedes das cúrias diocesanas ou de órgãos de assistência social regional. Essas entidades são legalmente independentes, isto é, dispõem de personalidade jurídica própria, porém seguem as diretrizes emanadas da Conferência Nacional do Bispos do Brasil, bem como das instâncias superiores da própria Cáritas” (SOUZA, 2007, p. 1-2). 180 Discutiremos com mais detalhes os conflitos internos, manifestados por ações e discursos, da Igreja Católica referentes ao enfrentamento dos problemas sócio-econômicos, no item desta dissertação denominado “A relação entre o ethos religioso e o ethos do ativismo no setor social: ‘afinidades eletivas’ entre a ética católica e o ativismo no setor social”. Lembramos, entretanto, que alguns sintomas e efeitos desses conflitos já foram abordados no subitem “Caridade, assistência, assistência social, assistencialismo e cidadania...”, quando indicamos algumas circunstâncias, extraídas da carta encíclica Deus é amor (Deus caritas est) do papa Bento XVI (2006), que levam – quando avaliadas de maneira superficial, de certo modo motivam - a equivocada associação entre a caridade e o assistencialismo. 181 Os grifos para a identificação dos três modelos de “caridade” são nossos.
177
física, abandono familiar, entre outras. Entretanto, ela procura fazer uma distinção entre a assistência social e o chamado assistencialismo. Este último, seria uma forma demagógica, utilizada sobretudo por homens políticos, com interesse em tirar proveito da privação alheia. A Cáritas faz uma veemente condenação daquilo que ela classifica como “caridade interesseira”. Tal prática, que seria a outra face do paternalismo, teria provocado a deturpação do modelo assistencial de caridade e a manutenção da ordem conservadora ou status quo de pessoas e grupos sociais. O modelo assistencial de caridade efetivamente prevaleceu na Cáritas até 1974, quando terminou o programa de distribuição de alimentos oriundos dos Estados Unidos. O trabalho de assistência continuou posteriormente, porém numa outra chave interpretativa, que é a da promoção humana. (SOUZA, 2008, p. 3).
Já o modelo promocional da caridade, que mantém ações de assistência, porém
agora na chave interpretativa da promoção humana, é caracterizado do seguinte modo:
A questão da promoção humana se baseia na valorização da pessoa beneficiada pelo trabalho social, discursivamente encarada como um sujeito também, não mais apenas como um objeto da assistência. Nesta perspectiva, as pessoas assistidas “não mais recebem o peixe, mas a vara e o aprendizado da pesca”, ou, “recebem os instrumentos para escrever a própria história”. Neste segundo modelo, intermediário, o compromisso do agente Cáritas é contribuir com as pessoas mais pobres, valorizando-as como indivíduos potencialmente ativos, sobretudo através do ensino de algo útil para a melhoria de suas condições de vida. Ainda não são analisadas as causas estruturais da pobreza, o que inevitavelmente conduz a uma interpretação fatalista dos problemas sociais. Entretanto, recorre-se aos documentos do Concílio Vaticano II, aos quais são atribuídos uma convocação da igreja para o trabalho na linha da promoção humana dos marginalizados, em contraposição ao assistencialismo. Conforme o modelo promocional de caridade adotado pela Cáritas, oferecer bens sem envolver o assistido num processo mais amplo de desenvolvimento social é um desperdício de tempo e energia. A ênfase é no esforço para a superação da condição de inferioridade do assistido, agindo com ele. Nesta ótica, os conflitos são ainda interpretados como fatores de subdesenvolvimento, não como expressão das contradições estruturais da sociedade capitalista, algo que ocorreria posteriormente. A perspectiva promocional inicia a mudança do foco no indivíduo para a comunidade na qual ele se insere. No contexto de propagação das CEBs182, na década de 1970, surgiram diversas ações coletivas em âmbito local – clubes de mães, hortas coletivas, associações de moradores de bairro etc. – propiciando uma reflexão sobre a questão do desenvolvimento comunitário. No entanto, a Cáritas, bem como os demais segmentos progressistas da igreja no Brasil, vislumbrou a necessidade de avançar mais, numa perspectiva de politização, considerando a possibilidade de mudanças sociais abrangentes. (Ibid., p. 3-4).
Finalmente é detalhada a caridade libertadora, que representa uma perspectiva mais
abrangente – estrutural - de mudanças sociais envolvendo a dimensão política da caridade e
que é fruto de valores e idéias da Teologia da Libertação:
O terceiro modelo da Cáritas, caridade libertadora, tem um marco inicial no XI Congresso Latino-americano da entidade, ocorrido em Santo Domingo – República
182 A sigla CEBs significa Comunidades Eclesiais de Base.
178
Dominicana – em 1986. Sua definição está num livro considerado importante na trajetória da Cáritas, Mística e metodologia da caridade libertadora (1991)183, que é resultado de três encontros nacionais promovidos por ela em 1990. A caridade libertadora se baseia numa outra “mística/espiritualidade cristã”, já totalmente imbuída pelos valores e idéias da Teologia da Libertação. Ela decorre do amadurecimento do sentido da ação social dos agentes Cáritas, num trabalho articulado com as demais pastorais sociais, já então harmonizados numa mesma referência transcendental (Casaldáliga & Vigil, 1993)184. Nesta terceira concepção de caridade desenvolvida pela Cáritas, foi assimilada uma noção dialética de sociedade, com nítida influência marxista. A partir dessa chave interpretativa, o grande mal social se traduz inequivocamente em pobreza, cujas causas são concretas, bem conhecidas e precisam ser enfrentadas. A pobreza é fruto das estruturas de uma exploração cultural e sobretudo econômica, com as quais é preciso romper para que uma real transformação da sociedade seja possível. Com a formação dessa consciência, as práticas assistenciais e promocionais passam a ser vistas como residuais, pois caso recebam prioridade, nada mais serão do que paliativos. A inflexão da noção de caridade da Cáritas se deu na esteira de mudanças significativas na igreja latino-americana. As CEBs ganharam legitimidade e força a partir das conferências episcopais de Medellín (1968) e Puebla (1979) em que a chamada pastoral popular foi privilegiada. Militantes católicos passaram a ter maior atuação em organizações sociais, como sindicatos e partidos políticos. Os países latino-americanos gradativamente abandonaram os regimes ditatoriais e a cultura política deles progressivamente mudou. Práticas paternalistas de outrora foram duramente criticadas. Esse processo influenciou significativamente a Cáritas, que “passou assimilar tais demandas da sociedade que ansiava por participação e democracia” (Adams, 2001: 119)185 A Cáritas se colocou junto com outras entidades pastorais ao lado de movimentos da sociedade civil numa mobilização crescente por direitos cidadãos. Na década de 1980, já no ambiente de abertura democrática após a ditadura militar, os grandes marcos nesse sentido foram as manifestações pelas eleições diretas para a Presidência da República (1984) e os debates sobre a nova Constituição (1988). A caridade libertadora da Cáritas se desenvolveu nesse contexto de mobilizações amplas por cidadania plena, traduzida em direitos civis, sociais e políticos. No rol de reivindicações seriam incluídos, também nos anos de 1990, os direitos econômicos e ambientais, na busca de uma “sociedade economicamente justa, socialmente igualitária e politicamente democrática186”. (Ibid., p. 4-5).
Como este subitem tem como foco principal demonstrar que no mundo real
coexistem num ambiente de fluidez as ações caritativas (assistenciais) e as ações cidadãs
(promoção humana / transformação social), inclusive porque muitas ações cidadãs são
motivadas por valores ético-religiosos – destacamos o mandamento do amor ou caridade – e,
ainda, porque a própria forma de fazer caridade assume suas dimensões em função dos
183 O autor identifica a seguinte referência bibliográfica: CÁRITAS BRASILEIRA, Mística e metodologia da caridade libertadora. São Paulo, Loyola, 1991. 184 O autor identifica a seguinte referência bibliográfica: CASALDÁLIGA, Pedro & VIGIL, José Maria. Espiritualidade da libertação. Petrópolis, Vozes, 1993. 185 O autor identifica a seguinte referência bibliográfica: ADAMS, Telmo. Prática social e formação para a cidadania: Cáritas do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Editora da PUC-RS, 2001 186 O autor esclarece em nota de rodapé que este é um lema disseminado no discurso dos agentes da Cáritas (SOUZA, 2007, p. 5)
179
respectivos contextos históricos, políticos, econômicos e sociais, optamos por trazer outros
elementos que questionem as tentativas de “colonização”, promoção, transmutação, superação
da “caridade tradicional” pela “filantropia cidadã”, ou seja, as “ tentativas de colonização da
‘caridade’ tradicional através de conceitos modernos, como ‘eficácia’, ‘auto-sustentação’,
‘marketing social’ gestados nas práticas desenvolvidas pela nova filantropia a partir de
experiências de gestão empresarial e administração pública” (CAMURÇA, 2005, p. 47).
Marcelo A. Camurça (2005), no sugestivo item denominado “Conclusão: a revanche
da caridade...” de seu texto, no oferece os seguinte elementos para nossos questionamentos:
Retornando nosso tema, se o que parece evidenciar-se no cenário público da “moderna filantropia” é o processo de promoção da “caridade”, concomitante com sua reformulação nos marcos dos valores “iluministas”, da racionalidade, eficiência e equanimidade, defendo que a pujança de nossa “religião social” termina por operar uma revanche neste movimento, estendendo sua dinâmica de dádiva aos esquemas contratuais, normativos e operacionais da “filantropia moderna”. (Ibid., p. 58).
Além de exemplificar sua argumentação187, o autor a fundamenta – e aqui ele
também reforça a idéia central ao propor que a “caridade” no espaço público representa um
“civismo de novo tipo”, pois alcança a esfera pública mantendo a sua linguagem simbólico-
religiosa e sua socialidade188 primária - em função das análises realizadas por vários estudos:
Várias iniciativas modernizantes com respeito às “doações” redundaram nesse quadro de colonização da caridade tradicional pela “filantropia moderna”. Todavia, se quisermos conceder à “caridade” um lugar no espaço cívico e público, esta não pode ser transmutada e “colonizada” simplesmente a estes valores imperantes no mundo institucionalizado. Pensando a partir de Roberto Romano para o caso da participação da Igreja Católica no meio político, quando este apontava para o reducionismo que era tomar essa instituição apenas como um organismo político-social como os partidos, sindicatos e associações, desprezando toda uma visão religiosa e teológica que preside seu ato próprio de inserir-se no mundo político (Romano, 1979: p. 20-1)189, no que tange à “caridade” que irrompe no espaço público,
187 Tais exemplos – eles envolvem motivações de fundo de ordem pessoal que acabam gerando ações institucionalizadas que, por sua vez, devem observar normas organizacionais e procedimentos fundamentados na racionalidade - encontram-se transcritos em nota de rodapé no início do subitem desta dissertação denominado “Conceitos de religião e metodologias de pesquisa dos fenômenos religiosos”, ao qual remetemos o leitor. A esses exemplos, poderíamos acrescer as inúmeras entidade beneficentes de assistência social (saúde, educação e assistência social) que são constituídas e geridas em função de motivações ético-religiosas. 188 Embora as palavras “socialidade” e “sociabilidade”sejam sinônimos, pensamos que Camurça (2005) utilizou a expressão “socialidade primária”, objetivando enfatizar a tendência para a vida em sociedade, ou seja, o “instinto social”. Para melhor compreensão, transcrevemos os seguintes significados extraído do Dicionário Houaiss da língua portuguesa: “socialidade (...) 1 m.q. SOCIABILIDADE 2 instinto social.... (HOUAISS e VILLAR, 2001, p. 1761). 189 Conforme já detalhado no subitem anterior, quando também utilizamos o texto de Camurça (2005), embora o desejo fosse detalhar a farta referência bibliográfica utilizada pelo autor, isto se tornou inviável em virtude de que – presume-se que por um equívoco de edição – a publicação do artigo foi acompanhada de uma bibliografia que difere das referências do texto.
180
também deve ser levada em conta sua especificidade de caráter religioso, simbólico e de “sistema de dádiva”. Em estudos recentes, autores têm chamada a atenção para mobilizações (Campanha contra a Fome, Viva Rio) ocorridas no Rio de Janeiro a partir dos anos 90, que através de celebrações e atos com linguagem religiosa vêm implementando novas formas de ação cívica e política (Leite, 2003; Birman, 2004; Carneiro, 2002). Apoiando-se no específico do religioso: os sentimentos, os rituais, valores morais, que calam fundo na subjetividade dos indivíduos, estes conteúdos passam a se “desprivatizar” e a se “politizar” sem perder suas características intrínsecas, transformando—se em linguagens privilegiadas para se falar das mazelas da cidade (violência, abandono dos “meninos de rua”, drogas, tráfico etc.). Penso que, neste particular, pode-se tratar de um “civismo de novo tipo” – que articularia a “religião civil” com o que estou chamando de “religião social” -, pois consegue alçar-se à esfera política sem perder o caráter de “socialidade primária”.(Ibid., p. 57-58).
Ora, como também chegamos a um ponto no qual uma relevante motivação pessoal
de fundo do ativismo do setor social – o amor ou caridade – entrecruza-se com a
racionalidade e lógica organizacional inerentes ao Estado, ao mercado e às ações
institucionalizadas no setor social - o modo típico de institucionalização realiza-se mediante a
constituição formal de uma ONG -, passaremos a outro importante elemento e hipótese de
nosso objeto, que envolvendo a articulação entre a racionalidade substantiva determinada
pelos valores – eis aqui as motivações de fundo ético-religiosas, associadas à ética de
convicção - e racionalidade instrumental determinada pelos fins – eis aqui a eficiência,
associada à ética de responsabilidade. Mais especificamente, destacaremos a existência, no
mundo real – e assim no “mundo” do terceiro setor -, da fluidez entre as racionalidade
(substantiva e instrumental), da fluidez entre as ações ou atividade racionais (por valor e por
fins) e a fluidez entre as éticas ou morais (de convicção e de responsabilidade)190.
Vilu Salvatore (2004) em seu texto “A racionalidade do terceiro setor” – ressaltamos
que seu foco está no campo administrativo e de gestão das organizações - ao indicar a
heterogeneidade e complexidade das racionalidades do setor social, formula algumas
perguntas que nos levam a concluir sobre a fluidez e complementaridade entre lógicas e
práticas determinadas por valores e por finalidades no terceiro setor:
Não se trata mais, como vimos, de uma disputa entre áreas da ciência, nem entre a visão da empresa eficiente e a da organização social ultrapassada – assim considerada porque baseada na premissa de amor ao próximo - , mas da constatação de concepções distintas de gestão: uma instrumental, adaptativa e manipuladora, e outra que resgata a dimensão do humano, a dimensão sociocultural; uma visão abrangente e integrada entre indivíduo e organização.
190 Esclarecemos que vários destes conceitos de Max Weber que envolvem a articulação religião-ética-condução de vida serão detalhados no item desta dissertação denominado “Fundamentos metodológicos para a compreensão da articulação religião-ética-ativismo no setor social”.
181
O Terceiro Setor é heterogêneo e complexo. Parece não haver a possibilidade de definirmos um sistema único de gestão para o setor como um todo. Uma fundação ou um instituto da área de responsabilidade social de grandes corporações dificilmente poderiam ou deveriam ser administrados da mesma forma que uma instituição social filantrópica de pequeno porte, dado que são instituições diferentes em sua composição, porte, organização, finalidade e forma de funcionamento. E nisso reside o desafio para tosos aqueles que trabalham, militam, pesquisam ou doam seu tempo ao Terceiro Setor. Portanto, ainda temos um longo caminho a percorrer e talvez nos ajudasse, nesse trajeto, tentar buscar algumas respostas para as velhas e novas perguntas: (...) ...5. Como formular as perguntas adequadas para entendermos essas instituições, antes de fazermos com que elas se sintam atrasadas, incapazes, e também antes de afirmarmos que elas são resistentes aos novos paradigmas e às “modernas” formas de gestão? (...) ...10. Como começar a criar e difundir os instrumentos de gestão que respeitem a lógica e a racionalidade dos vários segmentos do Terceiro Setor? (SALVATORE, 2004, p. 33-34).
Finalizando, partimos de uma afirmação e comentários de Hans Küng (2004) que
abrangem todas as esferas da sociedade – Estado, mercado e sociedade civil – e que tem,
assim, uma grande relevância para o setor social (terceiro setor), cuja face (dimensão) crucial
é a dos valores ou idéias191: “Nosso planeta não irá sobreviver, se não houver um etos global,
uma ética para o mundo inteiro” (KÜNG, 2004, p. 17). Mas de que ética o autor se refere?
Da ética de convicção – ele a trata como “de mentalidade” – ou a ética de responsabilidade?
Da confluência de ambas – lembremos que o mundo é real, e os tipos são ideais -, conforme
verificado por Weber em “Política como vocação”192 e relatado por Hans Küng (1993) nos
termos abaixo:
Exigir uma responsabilidade global significa primeiramente pedir o contrário daquilo que constitui uma mera ética de sucessos. É o contrário de uma ação, para qual todos os métodos são válidos e para a qual é bom aquilo que funciona, que dá lucro, poder e prazer. Mas justamente isso pode conduzir a um puro libertinismo e a um maquiavelismo.Tal ética não terá futuro. Também uma simples ética de mentalidade não tem futuro. Orientada por uma idéia de valores mais ou menos isolados (justiça, amor, verdade), tal ética busca somente a pura motivação interna da pessoa que age sem se perguntar pelas conseqüências de uma decisão ou ação, sem se preocupar com a situação concreta, suas exigências e implicações. De uma forma bastante perigosa, uma tal ética é a-histórica (ela ignora a complexidade dada da situação histórica). Ela também é a-política (ela ignora a complexidade das estruturas sociais e do jogo de forças existente). E justamente assim ela também pode, quando for preciso por motivos de mentalidade, justificar o terrorismo. Tem futuro uma ética de responsabilidade como foi proposta no inverno revolucionário de 1918-19 pelo sociólogo Max Weber. Conforme Weber, tal ética também não é “livre de mentalidade”. Mas ela sempre pergunta realisticamente pelas
191 Remetemos o leitor aos ensinamentos de Lester Salamon (1997;1998) indicados o subitem desta dissertação denominado “As faces do terceiro setor: idéia (valores), realidade (mensuração) e ideologia (mitos)”. 192 Esse texto é o Capítulo IV, do livro Ensaios de sociologia, especificado na “Bibliografia”.
182
conseqüências previsíveis de nosso agir e assume a responsabilidade por isso. “Nesse sentido, a ética da mentalidade e a ética da responsabilidade não estão verdadeiramente contrapostas, mas se complementam mutuamente. Somente juntas elas podem constituir a verdadeira pessoa, aquela pessoa que pode ter ‘a profissão para a política’”. Sem uma ética de mentalidade, a ética de responsabilidade se transformaria numa ética de sucesso livre de qualquer mentalidade, para a qual, em vista dos objetivos, todos os meios seriam lícitos. Sem uma ética de responsabilidade, a ética de mentalidade ficaria reduzida à manutenção de um sentido interior de autojustiça (KÜNG, 1993, p.62).
Ora, as colocações acima nos ajudam a perceber que devemos nos esforçar para
enxergar as “coisas” de modo menos polarizado e de forma mais fluida, como a realidade
exige para a construção de um sociedade mais humana, harmônica, justa e solidária. E as
“coisas” referem-se:
•••• À busca de um visão menos ideológica193 no tocante ao relacionamento entre
Estado e ONGs na implementação dos direitos sociais, que possibilite uma melhor
compreensão sobre o dever do Estado e a atuação complementar e integrada das
ONGs e, assim, que contribua para a superação de alguns alegados conflitos
intransponíveis motivados pela embate entre discursos neoliberais e discursos
socialistas ou representativos do dirigismo capitalista.
•••• À busca de uma visão menos ideológica no tocante às dimensões de atuação no
setor social, que possibilite uma melhor compreensão sobre a complementaridade e
articulação entre as lógicas e formas de agir no terceiro setor (caritativa/assistencial,
cidadã/promocional, libertadora/transformadora), entre suas racionalidades
(substantiva determinada por valores e instrumental determinada por fins) e entre seus
valores, suas éticas (de convicção ou mentalidade e de responsabilidade) e, assim, que
contribua para a superação de algumas alegadas oposições intransponíveis entre a
lógica caritativa tradicional e a nova lógica cidadã.
•••• À busca de um visão menos ideológica no tocante aos discursos e à forma de fazer
caridade da Igreja Católica - nosso especial objeto de interesse no tocante aos valores
ético-religiosos - , que possibilite uma melhor compreensão sobre as tensões entre o
apelo e a força original do mandamento da caridade ou “amor ao próximo” (da
fraternidade universal) ensinada por Jesus Cristo e o impulso de preservação
institucional (estruturas de autoridade) da Igreja Católica e, assim, que contribua para
193 Sobre o sentido e significado da palavra “ideologia” adotado nesta dissertação, remetemos o leitor à nota de rodapé do subitem denominado “As faces do terceiro setor: idéia (valores), realidade (mensuração) e ideologia (mitos).
183
a superação de alguns embates entre os chamados segmentos progressistas e
conservadores relativos à forma de intervenção junto aos problemas sócio-
econômicos.
184
CAPÍTULO 3 – A ORIENTAÇÃO ÉTICO-RELIGIOSA E O “ESPÍ RITO” DO
ATIVISMO SOCIAL NO SETOR SOCIAL.
1. FUNDAMENTOS METODOLÓGICOS PARA A COMPREENSÃO DA
ARTICULAÇÃO RELIGIÃO-ÉTICA-ATIVISMO NO SETOR SOCIAL .
1.1 Por que Max Weber? A Sociologia Compreensiva de Weber e seus Conceitos
Fundamentais.
Por que escolhemos Max Weber para fundamentar metodologicamente nossa
pesquisa? Porque as proposições de Michael Löwy (2000) que referenciam esta dissertação –
afinidade negativa entre a ética católica e o capitalismo; afinidade eletiva entre a ética católica
e o ativismo no setor social194 - foram extraídas por esse autor – nosso principal referencial
teórico - de um “subtexto”, um contra-argumento não escrito, porém construído na estrutura
da obra de Weber (2004) A ética protestante195 e o “espírito” do capitalismo. Mais
especificamente, as proposições de Löwy (2000) que nos subsidiam estão explicitadas em seu
provocativa e sugestivo texto “A ética católica e o espírito do capitalismo: o capítulo da
sociologia da religião de Max Weber que não foi escrito” 196. Ora, se Weber, sua obra, sua
sociologia compreensiva foram a fonte de inspiração de Michael Löwy, também o são para
nós, o que nos impele aos conceitos fundamentais do grande sociólogo que giram em torno da
ação social racional e dos tipos ideais.
Sob outro prisma – aqui prevalece o sonhador ao estudante -, voltamos a nossa fonte
de inspiração para responder a pergunta acima formulada. Parafraseando e sempre levando em
conta os limites do estudante-pesquisador e do objeto de estudo, pretende-se dar um pequeno
194 As proposições de Michael Löwy (2000) – ele é o principal referencial teórico – e nossas considerações sobre elas estão detalhadas especialmente na parte inicial do subitem “As revoluções sociais, o estado democrático de direito e os processos de exclusão e inclusões sociais...” e no subitem “A ética católica e o espírito do ativismo no setor social”. 195 Respondemos, aqui, quais sãos as referidas tradições religiosas protestantes. O próprio Max Weber (2004), indica em sua obra que “Os portadores históricos do protestantismo ascético (no sentido em que a expressão é usada aqui) são essencialmente de quatro espécies: 1. o calvinismo, na forma que assumiu nas principais regiões [da Europa ocidental] sob sua dominação, particularmente no decorrer do século XVII; 2. o pietismo; 3. o metodismo; 4. as seitas nascidas do movimento anabatista. Nenhum desses movimentos se achava absolutamente isolado dos outros, e nem mesmo era rigorosa sua separação das igrejas protestantes não ascéticas” (WEBER, 2004, p. 87). Sobre o assunto, novamente Julien Freund (2006) nos auxilia: “Qual é, pois, a base das idéias que contribuíram para formar o espírito capitalista? WEBER a encontra em certas camadas protestantes calvinistas (essencialmente dos Países Baixos), pietistas, metodistas e batistas, cuja conduta da vida se caracterizava por um ascetismo que se pode designar ‘pela palavra ambígua de puritanismo’” (FREUND, 2006, 150) 196 Esse texto pertence ao livro A guerra dos deuses: religião e política na América Latina, especificado na Bibliografia.
185
passo para talvez algum dia se chegar, ou não, à seguinte obra: “A orientação ético-religiosa e
o ‘espírito’ do ativismo no setor social (terceiro setor)”. E isto, sempre tendo como parâmetro
os ensinamentos de Weber (2004), insertos no último parágrafo de sua obra acima referida,
escrita em 1904-05 e aditada ou alterada na segunda versão de 1920:
Porquanto, embora o homem moderno, mesmo com a melhor das boas vontades, geralmente não seja capaz de imaginar o efetivo alcance da significação que os conteúdos de consciência religiosa tiveram para a conduta de vida, a cultura e o caráter de um povo, não cabe contudo, evidentemente, a intenção de substituir uma interpretação causal unilateralmente ‘materialista’ da cultura e da história por uma outra espiritualista, também unilateral. Ambas são igualmente possíveis, mas uma e outra, se tiverem a pretensão de ser, não a etapa preliminar, mas a conclusão da pesquisa, igualmente pouco servem à verdade histórica (WEBER, 2004, p. 167).
Aqui, entretanto, alguns esclarecimentos se fazem necessários. O primeiro diz respeito
ao objeto, pois temos especial interesse na ética católica – e não na protestante – e no
funcionamento do ativismo no setor social – e não no do capitalismo, embora seu
funcionamento influencie o setor social e repercuta nas proposições de nossa pesquisa. Já o
segundo, que também envolve o objeto da pesquisa, diz respeito ao fato de que estamos
buscando nesta dissertação compreender a influência da religião, hoje, no terceiro setor, ou
seja, não nos detemos na formação e sim nos atrevemos a compreender as motivações ético-
religiosas no funcionamento do setor social, o que, diga-se, seria inviável ou irrelevante para
Weber que objetivou compreender as motivações psicorreligiosas na constituição (formação),
e não no funcionamento do regime capitalista. Essas nossas considerações são fundamentadas
no raciocínio de Raymond Aron (2003) utilizado para fazer a distinção entre a explicação da
formação do regime capitalista – proposta por Weber em sua A ética protestante e o
“espírito” do capitalismo – e a explicação de seu funcionamento, no sentido de que hoje
motivações metafísicas ou morais são irrelevantes para a existência, desenvolvimento e
conformação dos indivíduos ao regime capitalista (Cf. ARON, 2003, p. 780-781).
Reafirmamos197, ainda, que o fato de investigarmos motivações de fundo de ordem
pessoal e caráter ético-religioso do ativismo no setor social, não significa que negamos a
importância dos aspectos de ordem institucional – lógicas organizacionais (contábil/mercantil
e jurídica) e procedimentos fundados na racionalidade – das organizações não-
governamentais (ONGs). Queremos, entretanto, mesmo nesse segundo aspecto, verificar
197 Este assunto já foi abordada no início do subitem desta dissertação denominado “Conceitos de religião e metodologias de pesquisa dos fenômenos religiosos”. Sobre essas questões da vida privada ou de foro íntimo incluídas na agenda pública remetemos o leitor também aos subitens “Religião e construção da esfera pública não-estatal...” e “A fluidez das lógicas do terceiro setor...”, nos quais utilizamos argumentos de texto de Marcelo A. Camurça (2005).
186
como as motivações pessoais ético-religiosas influenciam os processos organizacionais, e isto
fica claro quando nos propomos a investigar se atualmente existe a busca de um ponto de
convergência entre a racionalidade substantiva determinada pelos valores e a racionalidade
instrumental determinada pelos fins, objetivando compatibilizar a boa vontade com o
profissionalismo, a assistência caritativa (minimizar sofrimentos) com a cidadania
(desenvolver cidadãos), a boa intenção com resultados efetivos.
Embora tais questões já tenham sido colocadas em outros momentos198, ratificamos a
importância dos aspectos de ordem pessoal para a compreensão dos organismos e estruturas
da sociedade, novamente com argumentos de Marcelo A. Camurça (2005) “guardados na
manga” para agora serem lançados:
Uma corrente contemporânea de estudiosos brasileiros (Barreira, 2001, Leite, 2003b)199 tem tratado o tema da política e da esfera pública como extensão do privado, do singular e do experienciado “na pele”, quando a “conclamação à ação transforma o caso em causa” (Leite, 2003:7), e quando a condição de vítima confere credibilidade ao indivíduo “e potencializa a eficácia política de sua ação na esfera pública”, “transformando o sentimento de perda em capital simbólico (...) para o protagonismo (...) em campanhas (...) a favor da justiça” (Leite, 2003a:13). Aqui, penso tratar-se, sim, de exemplos de um “público, porém privado” (CAMURÇA, 2005, p. 59).
E continua o autor, agora prestando um importante esclarecimento200 sobre sua
expressão “público, porém privado”, que representa a ação privada que ganha dimensão
pública sem perder a característica pessoalizada que a originou201:
Faço aqui uma analogia, invertendo o título de Rubem César Fernandes “Privado, porém público”, que analisa iniciativas do “terceiro setor” oriundo de ações privadas que ganham uma dimensão pública. No caso que enfoco uma ação que embora partida do meio privado, já adquiriu e consolidou uma dimensão pública. E o que quero chamar atenção é que mesmo, com sua generalização de pedagogia exemplar e cívica, ela não perde sua característica pessoalizada, sem a qual ela não existiria. (Ibid., p. 59).
Voltemos agora a Max Weber, nossa fonte de inspiração, noticiando que para a
compreensão do fenômeno pesquisado - averiguar a relação entre o ethos religioso e o ethos
198 Remetemos o leitor à nota de rodapé anterior. 199 Informamos novamente que, por equívoco, o ventilado texto de Camurça (2005) não traz as respectivas referências bibliográficas, o que nos impede de indicá-las. 200 Este esclarecimento consta em nota de rodapé do referido texto. 201 Penso que um claro exemplo – e conheço várias situações como esta – seria a de uma entidade beneficente de assistência social constituída e gerida sob a inspiração e esforços pessoais (motivados por valores ético-religiosos) de um padre, religioso ou fiel leigo e que participa efetivamente da rede sócio-assistencial pública, inclusive recebendo recursos públicos para o desenvolvimento de atividades em decorrência da celebração de convênios com órgãos governamentais.
187
do ativismo no setor social (terceiro setor), especialmente as afinidades eletivas entre a ética
católica e o ativismo no setor social mediante vários procedimentos202 - nos fundamentaremos
especialmente nos seguintes “tipos ideais” por ele criados e explicitados em várias obras: a)
quanto a motivação da ação (ou atividade) social: racional por finalidade, racional por valor,
tradicional e afetiva; b) no plano da ética: diferenças e complementaridades entre a ética de
convicção e a de responsabilidade; c) quanto as religiões de convicção ou de salvação:
diferenças e influências da ascese “extramundana” e da ascese “intramundana” no
comportamento ético-religioso.
Assim, percorremos os conceitos fundamentais da sociologia compreensiva, inclusive
da religião, de Max Weber e o modo por ele proposto de captar o sentido de uma atividade
(ou ação) social. A tarefa é complexa, pois envolve a interação de vários conceitos (ação
social, seus elementos determinantes e sua relação com a ética de convicção e de
responsabilidade; “tipo ideal”; racionalização etc.), o que exige do limitado estudante-
pesquisador o grande auxílio fornecido por Julien Freund (2006) e por Raymond Aron (2003),
cujos esclarecimentos e a respectiva seqüência serão observados. Comecemos, pois, com a
definição de sociologia de Weber (1999): “Sociologia (no sentido aqui entendido desta
palavra empregada com tantos significados diversos) significa: uma ciência que pretende
compreender interpretativamente a ação social e assim explicá-la causalmente em seu curso e
em seus efeitos” (WEBER, 1999, p. 3).
Freund (2006), que utiliza a palavra “atividade” como sinônimo de “ação”, ao
comentar a definição e destacar as noções de “compreender” e de “atividade social”, deixa
claro que Weber não rejeita as concepções gerais e tradicionais da sociologia de descrever e
explicar pelos métodos das ciências naturais as relações, estruturas e instituições sociais; e
sim que ele inova no sentido de colocar a “atividade social” no centro de sua sociologia para
compreender de forma objetiva as intenções, os interesses e os sentidos que o ser humano põe
nas ações, relações, estruturas e instituições sociais. Em outras palavras, de forma diversa da
202 Embora explicitado em outros pontos desta dissertação, indicamos a seguir os procedimentos: a) investigar se os valores ético-religiosos, especialmente a caridade e a solidariedade em suas noções judaico-cristãs e prioritariamente sob a ótica da doutrina social da Igreja Católica, ainda hoje influenciam o funcionamento de ONGs de assistência social em sentido amplo (educação, saúde e assistência social propriamente), como fatores de motivação e orientação de suas lideranças (dirigentes, gestores e membros com atuação efetiva); b) investigar se atualmente essas ONGs estariam buscando um ponto de convergência entre a racionalidade substantiva determinada pelos valores e a racionalidade instrumental determinada pelos fins, objetivando compatibilizar a boa vontade com o profissionalismo, a assistência caritativa (minimizar sofrimentos) com a cidadania (desenvolver cidadãos), a boa intenção com resultados efetivos; c) averiguar a articulação religião-ética-condução de vida em nosso atual Estado Democrático de Direito, relacionando ética, direito, caridade e cidadania e investigando se existe uma tendência à articulação e busca de compatibilização e complementaridade entre as lógicas e dimensões assistencial, promocional e libertadora/transformadora no setor social (terceiro setor), inclusive em função da fluidez das práticas (ações) no mundo real.
188
explicação puramente naturalista, a compreensão objetiva sempre captar o sentido de uma
atividade ou de uma relação, ou seja, de compreender o sentido visado subjetivamente em
uma atividade social concreta203. Entretanto, Weber faz uma distinção entre a “compreensão
atual ou imediata” do sentido visado (compreendemos assim uma multiplicação 2 X 2 = 4 que
ouvimos ou lemos) e a “compreensão explicativa”, que é indireta pois leva em conta os
motivos dos atos na captação do sentido (por exemplo, compreendemos, pelos motivos, que
sentido tem em mente a pessoa que pronuncia ou escreve a mesma multiplicação acima,
quando a vejo mergulhada em um problema de contabilidade) (Cf. FREUND, 2006, p. 68-73).
Em síntese, “compreender, pode-se dizer, é captar a evidência do sentido de uma atividade”
(FREUND, 2006, p. 73-74).
Ressalta-se, também, para que não pairem dúvidas, que
quando WEBER emprega a denominação de sociologia compreensiva, não tem absolutamente a intenção de privilegiar a compreensão relativamente à explicação, nem tampouco de condenar as outras orientações da sociologia, mas pretende apenas marcar suas insuficiências, por vezes deliberadas, e acentuar a estreiteza de certos pontos de vista. Ela é compreensiva no sentido em que abre novas perspectivas à sociologia tradicional (FREUND, 2006, p.69-70).
Raymond Aron (2003) é profícuo em demonstrar que a sociologia de Weber envolve
tanto as interpretações compreensivas do sentido subjetivo das condutas (“tornar inteligível o
sistema de crenças e de conduta das coletividades”), quanto as explicações causais
(“determinar como as coisas ocorrem, como uma crença determina uma maneira de agir,
como uma certa organização política influencia a organização da economia”) (Cf. ARON,
2003, p. 744). Para tanto, ele vai descrevendo o processo de desenvolvimento da sociologia
weberiana e várias de suas proposições: a) distinção entre o julgamento de valor (“afirmação
moral ou vital”) e a relação com os valores (“procedimento de seleção e de organização da
ciência objetiva”); b) superação da antinomia entre o interesse pelo objeto e a imparcialidade
do cientista, inspirada em uma filosofia existencialista que nega a possibilidade da ciência
orientar a conduta do ser humano e a organização da sociedade, assim como da ciência indicar
o futuro da humanidade; c) as diferenças entre a causalidade histórica e a causalidade
sociológica; d) concepção e espécies de tipos ideais (Cf. Ibid., p. 737, 741-742, 744ss e
756ss.). Por fim, o autor de certa forma sintetiza o processo weberiano: 203 Remetemos o leitor à argumentação do antropólogo Clifford Geertz (2001) – ele também nos referencia com seu conceito de religião no qual a caracteriza como elemento de articulação entre o ethos e a visão de mundo - indicada no final do subitem desta dissertação denominado “Conceitos de religião e metodologias de pesquisa dos fenômenos religiosos”, no qual o autor destaca a relevância das pessoas e suas motivações para a explicação e compreensão da sociedade e, conseqüentemente, a importância da sociologia compreensiva de Max Weber.
189
Assim, as ciências da cultura são compreensivas e causais. A relação de causalidade é, segundo o caso, histórica ou sociológica. O historiador visa pesar a eficácia causal dos diferentes antecedentes numa única conjuntura; o sociólogo procura estabelecer relações de sucessão que se repetiram ou que são suscetíveis de repetição. O instrumento principal da compreensão é o tipo ideal, nas suas diversas variedades, cujo traço comum é a tendência para a racionalização, ou então a percepção da lógica implícita ou explícita de um tipo de conduta ou de um fenômeno histórico singular. Em todos os casos, o tipo ideal é sempre um meio, não um fim; o objetivo das ciências da cultura é compreender os sentidos subjetivos, isto é, em última análise, a significação que os homens atribuem à sua existência (ARON, 2003, p. 761).
Pelo fato de o termo “racionalização” ter sido acima citado e, especialmente, pelo fato
dele estar presente na teoria científica de Weber, que busca a compreensão e a explicação dos
comportamentos sociais em sua racionalidade (ações lógicas e planejadas) em um mundo
racionalizado, oportunos se tornam os seguintes esclarecimentos ofertados por Freund (2006):
A racionalização, como ele a compreende, que ele por vezes associa à noção de intelectualização, é o resultado da especialização científica e da diferenciação técnica peculiar à civilização ocidental. Consiste na organização da vida, por divisão e coordenação das diversas atividades, com base em um estudo preciso das relações entre os homens, com seus instrumentos e seu meio, com vistas à maior eficácia e rendimento. Trata-se, pois, de um puro desenvolvimento prático operado pelo gênio técnico do homem. WEBER caracteriza ainda esta racionalização como uma sublimação, quer dizer como um refinamento engenhoso da conduta da vida e um domínio crescente do mundo exterior (FREUND, 2006, p. 19).
Passa-se, agora, em virtude de sua centralidade na teoria de Weber, a entender sua
noção de ação (atividade) social, para depois partirmos para a classificação dos tipos de ações
sociais.
Segundo ele, “ação ‘social’, por sua vez, significa uma ação que, quanto a seu sentido
visado pelo agente ou os agentes, se refere ao comportamento de outros, orientando-se por
este em seu curso” (WEBER, 1999, p. 3). Continua o sociólogo, agora detalhando sua
definição, da seguinte forma:
A ação social (incluindo omissão ou tolerância) orienta-se pelo comportamento de “outros”, seja este passado, presente ou esperado como futuro (vingança por ataques anteriores, defesa contra ataques presentes ou medidas de defesas para enfrentar ataques futuros). Os outros podem ser indivíduos e conhecidos ou uma multiplicidade indeterminada de pessoas completamente desconhecidas (“dinheiro”, por exemplo, significa um bem destinado à troca, que o agente aceita no ato da troca, porque sua ação está orientada pela expectativa de que muitos outros, porém desconhecidos e em número indeterminado, estarão dispostos a aceitá-lo também, por sua parte, num ato de troca futuro) (WEBER, 1999, p. 13-14).
190
Por si só a definição, que coloca como pressuposto fundamental a “relatividade
significativa ao comportamento de outrem” (FREUND, 2006, p. 78), é auto-explicativa.
Porém, como as coisas se confundem na realidade, Weber (1999) exemplifica várias situações
que não se enquadram em sua concepção de ação social. Dentre elas, um comportamento
religioso quando é apenas uma oração solitária; a colisão involuntária entre dois ciclistas; o
simples fato de vários transeuntes, para se protegerem do aguaceiro, abrirem ao mesmo tempo
os guarda-chuvas etc (Cf. WEBER, 1999, p. 14)
Chega-se, finalmente, ao ponto crucial de teoria de Weber. Chega-se à classificação
dos tipos de ação social. Aron (2003), que a coloca como ponto de partida de sua explanação
sobre o pensamento de Max Weber, entende que a classificação dos tipos acaba por elucidar,
de certa forma, todas as concepções de Weber, que têm como diretriz captar a racionalidade
das ações, relações e estruturas sociais do mundo contemporâneo que, por sua vez, tem como
traço característico a racionalização (Cf. ARON, 2003, p. 728-729). E isto porque
a sociologia é uma ciência que procura compreender a ação social; a compreensão implica a percepção do sentido que o ator atribui à sua conduta (...) o objetivo de Weber é compreender o sentido que cada ator dá à sua própria conduta. A compreensão dos sentidos subjetivos implica uma classificação dos tipos de conduta e leva à percepção da sua estrutura inteligível (ARON, 2003, p. 728).
Em outras palavras, e já distinguindo os quatro tipos de ação (ou atividade) social,
Freund (2006) assim se posiciona:
Como toda compreensão tende para a evidência, o problema é definir a atividade social mais evidente racionalmente. Por isso Weber distingue a atividade racional por finalidade (zweckrational), a atividade racional por valor (wetrationel), a atividade afetiva (affektwell) e a atividade tradicional (traditional) (FREUND, 2006, p.78).
E torna-se imprescindível, agora, saber o que deve ser entendido como racional e
como irracional. Mais uma vez Freund (2006) nos ajuda:
De fato, o conceito de racionalidade só é simples na aparência. Na verdade nada é irracional em si mesmo, mas unicamente em relação a um ponto de vista racional dado. Para o hedonismo, o ascetismo é irracional, e inversamente. Para sermos mais exatos, a racionalidade deve ser considerada aqui como um “conceito histórico”, que é preciso acentuar, de cada vez, comparando-o com uma irracionalidade determinada ou então com outro tipo de racionalidade, pois a conduta da vida pode ser racionalizada de acordo com os mais diversos pontos de vista últimos, e segundo direções igualmente muito diferentes. (Ibid., p. 155-156).
191
Dando continuidade, com a ressalva de Weber (1999) de que só raramente uma ação
social real é orientada exclusivamente por um dos referidos tipos conceitualmente puros,
criados como um instrumento da sociologia para compreender a realidade (de qual tipo a ação
real mais ou menos se aproxima e de qual tipo ela se compõe) (Cf. WEBER, 1999, p. 16),
utilizamos a seguir as próprias palavras Weber, inclusive com seus esclarecimentos iniciais
sobre os respectivos tipos ideais determinantes (motivadores) das ações sociais e sua ênfase
nas explicações sobre a ação racional por valores:
A ação social, como toda ação, pode ser determinada: 1) de modo racional referente a fins: por expectativas quanto ao comportamento de objetos do mundo exterior e de outras pessoas, utilizando essas expectativas como ‘condições’ ou ‘meios’ para alcançar fins próprios, ponderados e perseguidos racionalmente, como sucesso; 2) de modo racional referente a valores: pela crença consciente no valor – ético, estético, religioso ou qualquer que seja sua interpretação – absoluto e inerente a determinado comportamento como tal, independentemente do resultado; 3) de modo afetivo, especialmente emocional: por afetos ou estados emocionais atuais; 4) de modo tradicional: por costume arraigado. (...) Age de maneira puramente racional referente a valores quem, sem considerar as conseqüências previsíveis, age a serviço de sua convicção sobre o que parecem ordenar-lhe o dever, a dignidade, a beleza, as diretivas religiosas, a piedade ou a importância de uma ‘causa’ de qualquer natureza. Em todos os casos, a ação racional referente a valores (no sentido de nossa terminologia) é uma ação segundo ‘mandamentos’ ou de acordo com ‘exigências’ que o agente crê dirigidos a ele. Somente na medida em que a ação humana se orienta por tais exigências – o que acontece em grau muito diverso, na maioria dos casos bastante modesto – falaremos de racionalidade referente a valores... (Ibid., p. 15).
Por sua vez, Freund (2006), destacando sua prioridade para a sociologia
compreensiva, uma vez que ela possui mais evidência racional, caracteriza a atividade – para
ele sinônimo de ação – racional por finalidade (Cf. FREUND, 2006, p.81), como
...uma conduta que, uma vez fixado o fim, segundo reflexão amadurecida, escolhe os meios mais apropriados levando em conta conseqüências previsíveis, capazes de acompanhar o desenrolar da ação. Sua evidência vem do fato de se fundamentar ela nas regras gerais da experiência, não para a estas se submeter cegamente ou para delas fazer um critério intangível, mas sim para ordenar, o mais racionalmente possível, a previsão (Ibid., p.81).
Além disso, ele destaca os seguintes pontos: a) a atividade racional por finalidade é
um caso limite teórico e que em certos níveis relaciona-se com a racionalidade por valor; b) a
atividade racional “por finalidade” e a “por valor” identificam-se no plano da ética,
respectivamente, com a “moral da responsabilidade” e com a “moral de convicção” (Cf.
192
FREUND, 2006, p. 80-81), enfatizando, ainda, que “esta distinção das duas morais, por mais
típica que seja do ponto de vista teórico, não exclui, entretanto, a possibilidade de se agir com
convicção e com o sentido da responsabilidade no devotamento a uma causa”204 (Ibid., p. 27);
c) como instrumentos de pesquisa, os tipos ideais não são verdadeiros ou falsos, e sim úteis ou
inúteis (Cf. Ibid., p. 52).
Aron (2003), além de esclarecer que na compreensão da racionalidade por finalidade
Weber leva em conta o conhecimento do agente (ator), e não o do observador (Cf. ARON,
2003, 727), por meio de sua linguagem coloquial farta de exemplos, consolida as noções dos
tipos mencionados:
A ação racional com relação a um objetivo (...) é a ação do engenheiro que constrói uma ponte, do especulador que se esforça por ganhar dinheiro, do general que quer ganhar uma batalha. Em todos estes casos a ação zweckrational é definida pelo fato de que o ator concebe claramente seu objetivo e combina os meios disponíveis para atingi-lo. (...) A ação racional com relação a um valor é, por exemplo, a do socialista alemão Lassalle, que se deixou matar num duelo, ou do capitão que afunda com seu navio. A ação é racional não porque tende a alcançar um objetivo definido e exterior, mas porque seria desonroso deixar de responder a um desafio ou abandonar o navio que afunda. O ator age racionalmente, aceitando todos os riscos, não para obter um resultado extrínseco, mas para permanecer fiel à sua idéia de honra. A ação que Weber chama de afetiva é a ação ditada imediatamente pelo estado de consciência ou o humor do sujeito. É a bofetada dada pela mãe na criança que se comporta de modo insuportável, é o soco dado numa partida de futebol pelo jogador que perdeu o controle dos nervos. Em todos estes casos, a ação é definida por uma reação emocional do ator, em determinadas circunstâncias e não em relação a um objetivo ou a um sistema de valores. A ação tradicional é aquela ditada pelos hábitos, costumes e crenças, transformada numa segunda natureza. Para agir de conformidade com a tradição, o ator não precisa conceber um objetivo, ou um valor, nem ser impelido por uma emoção; obedece simplesmente a reflexos enraizados por longa prática (Ibid., 727-728).
“Max Weber perguntou-se quais as regras a que obedece o homem de ação (...). Qual é
a relação entre a concepção religiosa de cada pessoa e a maneira como vive, sua atitude em
relação à economia e ao Estado?” (Ibid, p. 741 ). De modo similar, estamos indagando nesta
dissertação: qual a relação entre os valores ético-religiosos de cada pessoa e sua atitude em
relação aos problemas sociais?
Com essa pergunta e sempre considerando que a classificação dos tipos determinantes
da ação social tem um papel central na sociologia compreensiva de Weber, passamos, dentre
204 Sobre a confluência da ética de convicção (ou de mentalidade) e da ética de responsabilidade verificada por Weber (2002) em “Política como vocação” e relatada por Hans Küng (1993), remetemos o leitor ao subitem desta dissertação denominado “A fluidez das lógicas do terceiro setor em uma sociedade de direitos: assistência, promoção e transformação”.
193
outros aspectos, à “sociologia da religião”, e isto para captar elementos e tipos ideais que nos
ajudem a compreender a motivação e a racionalidade do ativismo no terceiro setor (no setor
social).
1.2. Religião, Ética e Condução da Vida: uma Escolha Racional
Em vários pontos desta dissertação e em diversos de seus aspectos já foram
desenvolvidos argumentos sobre a influência dos fatores religiosos na construção e
funcionamento do terceiro setor. Porém, dando continuidade aos aspectos teóricos,
relacionaremos (aproximaremos) neste subitem a sociologia compreensiva da religião de Max
Weber – em especial seus elementos referentes à racionalidade das ações, à influência da
salvação na condução da vida e às tensões, e respectivos modos de dominá-la, entre religião
fraternal de salvação e as atividades, estruturas e esferas da sociedade – e as proposições
sobre a ética católica de Michael Löwy, a teoria da escolha racional de Rodney Stark e o
conceito de religião de Clifford Geertz, todos eles nossos referenciais teóricos.205
Comecemos, pois, com Weber (1999; 2002) em “Os caminhos de salvação e sua
influência sobre a condução da vida”206 e “Rejeições religiosas do mundo e suas direções”207.
Nos textos, o sociólogo descreve a tipologia e faz a conseqüente distinção – como conceitos
polares - entre as seguintes virtuosidades religiosas, entendidas como métodos – “caminhos” -
de salvação consistentes na rejeição de aspectos do mundo motivados por convicções
religiosas: o ascetismo e o misticismo. O ascetismo é uma ação desejada por Deus, na qual o
ser humano é instrumento de Deus; o misticismo é um estado de “possessão”, não ação, no
qual a pessoa é um recipiente do divino, e não instrumento, e que se caracteriza pela fuga do
mundo (Cf. WEBER, 2002, 374). “O místico se considera menos como instrumento do que
como recipiente (Gefäss), de Deus. Não se trata mais de um dedicação a uma atividade
mundana conforme a vontade de Deus, mais sim de chegar a um estado próximo ao divino”
(FREUND, 2006, 145). Observe-se, ainda, que o ascetismo “intramundano” (ou ativo) – esse
é o que nos interessa - é secular, pois ele aceita a vida cotidiana e apenas renuncia a certos
205 Algumas “pinceladas” sobre esses aspectos foram executadas nos seguintes subitens desta dissertação: “Revoluções sociais, o estado democrático de direito e os processos de exclusão e inclusão sociais...”, “Conceitos de religião e metodologia de pesquisa dos fenômenos religiosos” e “Nova consciência religiosa, novos movimentos religiosos (NMR) e conceitos úteis para o estudo da religião”. 206 Esse texto é o § 10 do Capítulo V. Sociologia da Religião, do livro Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva, especificado na “Bibliografia”. 207 Esse texto é o Capítulo XIII, do livro Ensaios de sociologia, especificado na “Bibliografia”.
194
aspectos do mundo (Cf. Ibid., 158), ou seja, ela não se caracteriza pela fuga do mundo como o
misticismo e de certa forma como o ascetismo “extramundano” (ou “de rejeição do mundo”).
Para que as coisas fiquem mais claras, torna-se oportuno diferenciar as duas formas de
ascetismo: “intramundano” (dentro do mundo) e “extramundano” (fora do mundo). Mais uma
vez pedimos auxílio a Julien Freund (2006):
A ascese pode tomar duas formas. De um lado, ela foge do mundo, rompe com a família e com a sociedade, renuncia a toda posse pessoal, a todo o interesse político, artístico e erótico, para se pôr unicamente a serviço de Deus. Weber a chama ascese que recusa o mundo (weltablehnende), a exemplo do monge católico. A outra é a ascese que se pratica no seio do mundo (innerweltliche) a exemplo do puritano, ela considera igualmente a criatura como instrumento de Deus, mas para glorificá-lo pela atividade profissional, pela vida em família exemplar, pelo rigor da conduta em todos os domínios da vida, cumprindo todas as tarefas como deveres queridos por Deus (FREUND, 2006, p.144).
Weber (2002) também destaca a tensão existente entre as religiões de salvação – as de
convicção orientadas no sentido da salvação – e as demais atividades e estruturas do mundo.
“Quanto mais as religiões tiverem sido verdadeiras religiões de salvação, tanto maior foi a sua
tensão” (WEBER, 2002, p. 376). E isto se torna mais evidente nas religiões de salvação ou
convicção soteriológicas, naquelas que crêem em um salvador.
Enfatizando os ensinamentos de Jesus Cristo – o Salvador dos cristãos -,
especialmente o mandamento da caridade ou do “amor ao próximo”, o sociólogo indica e
explicita as tensões entre a religião fraternal – com sua ética da fraternidade (da caridade
universal, do comunismo acósmico do amor) – e as esferas econômica, política, estética,
erótica e intelectual (Cf. Ibid., 379ss). Seus argumentos e pontos de vista podem ser assim
sintetizados:
A religião da fraternidade sempre se chocou com as ordens e valores deste mundo, e quanto mais coerentemente suas exigências foram levadas à prática, tanto mais agudo foi o choque. A divisão tornou-se habitualmente mais ampla na medida em que os valores do mundo foram racionalizados e sublimados em termos de suas próprias leis (Ibid., p. 379).
Observe-se, também – e nisso temos especial interesse – o fato de que Weber destaca
como mais evidente a tensão com a esfera econômica. Sobre o assunto, e no início referindo-
se ao conflito (tensão) com as comunidades existentes, Julien Freund (2006) assim se
manifesta:
195
Assim, o Cristo ensinou a seus discípulos a caridade universal (...) Para a caridade o próximo é o vizinho, mas também todo ser humano como tal. Este comunismo acósmico do amor dirige-se não somente aos que sofrem, aos infelizes, mas também aos inimigos. O caráter revolucionário deste preceito é inegável, e sua incondicionalidade arrisca-se a por em dúvida todas as estruturas sociais cuja base é local ou regional. Em segundo lugar, as tensões com o econômico. Tomaram diversas formas: oposição aos juros e à usura, defesa da esmola e da vida reduzida às necessidades estritas, hostilidade ao comércio que não poderia “agradar a Deus”; porém, sobretudo, há uma oposição latente entre o princípio acósmico do amor e a racionalização moderna da economia com base na empresa. Com efeito, a economia moderna é uma rivalidade de interesses e sem a luta, que é o mercado, o cálculo racional não é possível. De modo geral, a própria noção de capitalismo se choca com as tendências contemplativas e ascéticas das religiões da salvação, uma vez que a busca do lucro desvia o ser religioso da vida interior. (FREUND, 2006, p.133).
Para uma melhor compreensão dos motivos que levaram a ética protestante e a ética
católica agirem de modo distinto no tocante ao modo de se conciliarem (ou reduzirem as
tensões) com a esfera econômica (com a formação social capitalista), destacamos que a Igreja
Católica, inclusive por manter na centralidade de sua doutrina a universalidade do princípio
do amor ou caridade, tem seu ideal de perfeição fora do mundo, o que a conecta (direciona)
com o ascetismo “extramundano” (fora do mundo)208 e o que ocasiona uma forte tensão entre
a ética católica e o capitalismo. Observe-se, entretanto, que tal circunstância – ideal de
perfeição fora do mundo – não implica necessariamente a indiferença com as questões do
mundo; muito pelo contrário, pois vivemos – para que crê em Deus, “ainda” - no mundo e a
doutrina social da Igreja Católica, que não pode negar ou contradizer a universalidade do
mandamento do amor ou caridade revelado por Jesus Cristo, é fundamentada no apelo do
amor e fraternidade universais – “a caridade (...) no seu autêntico valor de critério supremo e
universal de toda a ética social” (PONTIFÍCIO, 2005, p. 123) - , que, por sua vez, fomenta a
prática de ações caritativas ou sociais – aqui incluímos as dimensões assistencial, promocional
e transformadora, como formas de modificar e/ou compensar as tendências nocivas do
capitalismo - e, assim, faz do ativismo no setor social uma vocação (um caminho para a 208 Para melhor compreensão sobre a dimensão “extramundana” do ideal de perfeição católico, e que ela não ocasiona indiferença – pelo contrário, motiva práticas concretas de “amor ao próximo” – frente às questões sociais, econômicas e política do mundo, transcrevemos o seguinte trecho extraído do Compêndio da doutrina social da igreja: “A esperança cristã imprime um grande impulso ao compromisso no campo social, infundindo confiança na possibilidade de construir um mundo melhor, na consciência de que não pode existir um ‘paraíso terrestre’. Os cristãos, especialmente os fiéis leigos, são exortados a comportar-se ‘para que brilhe a força do Evangelho na vida cotidiana, familiar e social. Eles se apresentam como filhos da promessa quando, fortes na fé e na esperança, aproveitam o momento presente (cf. Ef 5, 16; Cl 4, 5) e esperam a glória futura pela paciência (cf. Rm 6, 25). Mas não escondam esta esperança no íntimo da alma, e sim pela renovação contínua e pela luta ‘contra os dominadores do mundo das trevas, contra os espíritos da malícia’, também a exprimam nas estruturas da vida secular’. As motivações religiosas de tal empenho não podem ser compartilhadas, mas as convicções morais que dele decorrem constituem um ponto de encontro entre os cristãos e todos os homens de boa vontade” (PONTIFÍCIO, 2005, 321).
196
salvação). Já a ética protestante, ao renunciar à fraternidade universal, coloca seu ideal de
perfeição no mundo, o que a conecta com a ascese “intramundana” (dentro do mundo) e, na
busca deste ideal de perfeição, faz do trabalho uma vocação (um caminho para a busca de
sinais sobre sua escolha/eleição para a salvação), o que compatibiliza sua ética com o
capitalismo.
Se as tradições religiosas de modo geral encontraram uma maneira de conciliação com
as forças econômicas – “uma Igreja institucionalizada se torna inevitavelmente uma força
desse gênero - só, entretanto, a ética puritana logrou dominar de maneira conseqüente as
contradições, renunciando à universalidade do princípio do amor, para fazer do próprio
trabalho um serviço de Deus” (FREUND, 2006, p. 133). Aqui, abrem-se os espaços para se
encaixar as proposições de Michael Löwy (2000), já explicitadas e que serão ainda mais
detalhadas209, segundo as quais a ética católica é avessa ao capitalismo e, por meio da prática
e/ou fomento de ações caritativas ou sociais, objetiva corrigir (modificar e/ou compensar) os
aspectos mais negativos (as tendências nocivas de exclusão social, destruição “criadora” e
concentração de renda) do capitalismo. Assim, no ideário e na doutrina católica – a história
nos alerta que, infelizmente, em algumas circunstâncias, aspectos político-institucionais
descaracterizaram o sentido original da caridade, transformando-a em instrumento de poder
ou mesmo a ela sobrepondo outros interesses210 – o mandamento do amor ou caridade,
conforme ensinado por Jesus Cristo, é essencial para a construção e organização de estruturas
sociais que favoreçam um mundo melhor, mais digno, mais justo e mais solidário. A doutrina
social da Igreja Católica211 é explícita no sentido de que “para tornar a sociedade mais
humana, mais digna da pessoa, é necessário revalorizar o amor na vida social — no plano
político, econômico, cultural —, fazendo dele a norma constante e suprema do agir”
(PONTÍFÍCIO, 2005, p. 323).
Complementando alguns aspectos das considerações acima sobre a relação entre a
teologia e ética protestante e a atividade econômica e vocação para trabalho, transcrevemos
abaixo comentários de Raymond Aron (2003) sobre a argumentação de Max Weber referente
à articulação entre o interesse por uma atividade e a teologia, sistema de valores e visão do
209 Respectivamente nos seguintes subitens desta dissertação: “Revoluções sociais, o estado democrático de direito e os processos de exclusão e inclusão sociais...” e “A ética católica e o espírito do ativismo no setor social”. 210 Tal situação foi especialmente indicada nos seguintes subitens desta dissertação: “Os princípios éticos cardeais e o terceiro setor...”, “Dos profetas sociais à teologia da libertação” e “Religião e construção da esfera pública não-estatal...”. 211 Embora exista um subitem específico sobre o assunto denominado “Caridade e solidariedade na doutrina social da igreja e a tensão entre a mensagem original e a preservação institucional”, questões sobre a doutrina social estão indicadas e explicitadas em vários pontos desta dissertação.
197
mundo. Ora, essa articulação entre teologia-sistema de valores-visão de mundo-interesse por
uma atividade-conduta (condução da vida) é relevante para a compreensão da relação entre a
teologia, doutrina e ética católica e o ativismo no setor social. Segundo Aron (2003):
Finalmente, Max Weber demonstrou por que a oposição entre a explicação pelo interesse e a explicação pelas idéias não tem sentido, pois são as idéias, e as idéias metafísicas ou religiosas, que comandam a percepção que cada um de nós tem de seus interesses. (...) O que Weber demonstra é que a direção do interesse de cada um é orientada pela sua visão de mundo. Que há de mais interessante para um calvinista do que descobrir os sinais de sua eleição? É a teologia que comanda a orientação da existência. Como o calvinista tem uma concepção determinada das relações entre o criador e a criatura, como tem uma certa idéia da eleição, vive e trabalha de um certo modo. Desta forma, a conduta econômica é função de uma visão geral de mundo, e o interesse que tem cada um nesta ou naquela atividade se torna inseparável de um sistema de valores, ou de uma visão total da existência (ARON, 2003, p. 788).
Recuperaremos212, então, alguns posicionamentos já estabelecidos e reconhecidos a
respeito da articulação religião-ética-condução de vida. Segundo Hans Küng (1993):
Não se pode negar que, durante todos os milênios, as religiões constituíram aqueles sistemas orientadores, os quais criaram o fundamento para uma determinada moral. Elas legitimavam, motivavam e, muitas vezes, também sancionavam mediante castigos. Mas, em nossa sociedade, largamente secularizada, as coisas ainda devem ser assim? (KÜNG, 1993, p.70).
O célebre e polêmico teólogo responde que sim. “Segundo ele, mesmo nas sociedades
secularizadas as religiões continuam oferecendo referências normativas importantes. O
cenário pós-11 de setembro vem merecendo análises que, embora parciais, dão conta da
presença mais que significativa do religioso na definição de posturas, estratégias, políticas,
etc” (VASCONCELLOS, 2004, p. 1).
O antropólogo Clifford Geertz (1989), em complemento a sua já transcrita definição
de religião213 como elemento de articulação entre o ethos – “o tom, o caráter e a qualidade da
sua vida, seu estilo e disposições morais e estéticas” (GEERTZ, 1989, p.103) - e a visão de
mundo – “o quadro que fazem do que são as coisas na sua simples atualidade, suas idéias
212 O trecho abaixo teve como inspiração a primeira parte do ensaio “A religião em Belo Monte como construtora de finalidades e normas éticas incômodas”, de autoria do orientador desta dissertação, o Prof. Dr. Pedro Lima Vasconcellos. Em nota no referido texto, o autor esclarece que esse ensaio é fruto da aula proferida a 20/05/04 (bem como do debate que se seguiu) no Departamento de Teologia e Ciências da Religião da PUC-SP, como uma das atividades constantes do concurso para ingresso no quadro de carreira docente como assistente-doutor na referida universidade. 213 Remetemos o leitor ao subitem desta dissertação denominado “Conceitos de religião e metodologia de pesquisa dos fenômenos religiosos”.
198
mais abrangentes sobre a ordem” (Ibid., p.103-104) – evidencia a congruência entre crença,
sentimentos morais e estilo de vida:
Na crença e na prática religiosa, o ethos de um grupo torna-se intelectualmente razoável porque demonstra representar um tipo de vida idealmente adaptado ao estado de coisas atual que a visão de mundo descreve, enquanto essa visão de mundo torna-se emocionalmente convincente por ser apresentada como uma imagem de um estado de coisas verdadeiro, especialmente bem-arrumado para acomodar tal tipo de vida. Essa confrontação e essa confirmação mútuas têm dois efeitos fundamentais. De um lado, objetivam preferências morais e estéticas, retratando-as como condições de vida impostas, implícitas num mundo com uma estrutura particular, como simples senso comum dada a forma inalterável da realidade. De outro lado, apóiam essas crenças recebidas sobre o corpo do mundo invocando sentimentos morais e estéticos sentidos profundamente como provas experimentais da sua verdade. Os símbolos religiosos formulam uma congruência básica entre um estilo de vida particular e uma metafísica específica (implícita, no mais das vezes) e, ao fazê-lo, sustentam cada uma delas com a autoridade emprestada do outro. (Ibid., p.104).
O fenomenólogo José Severino Croatto (2004), que prioriza o estudo da experiência
religiosa, alinha-se à perspectiva de Geertz ao colocar como ponto central da articulação entre
crença, ética e comportamento, o princípio da coerência. O autor também indica o
mandamento do amor ou caridade com essencial à ética cristã:
Toda experiência religiosa está intimamente ligada à vida ativa, como um conjunto de práticas sociais dentro de um grupo definido. Por sua vez, essas práticas são o espelho da doutrina contida nas Escrituras Sagradas ou no ciclo de mitos. Estes “interpretam” as realidades significativas (...) , mas ao mesmo tempo instituem modelos de comportamento, tanto no rito como na práxis. Como reflexo do princípio de coerência, próprio de toda experiência religiosa, a ética está em consonância com a teovisão e a antropovisão do grupo. As normas morais e demais comportamentos em todos os aspectos da vida de um grupo derivam do núcleo da crença deste mesmo grupo.Como resume muito bem Juan Martín Velasco214, em relação às grandes religiões: “(...) No cristianismo, onde a relação com Deus é vivida essencialmente como seu amor presente no homem, o centro de sua ética será este amor e sua comunicação aos irmãos. A partir desses núcleos éticos é que se desenvolvem os diferentes códigos.” (CROATTO, 2004, p.409-410).
Colin Campbell (1997), estudando sob a ótica sociológica as atuais modificações do
campo religioso – o processo de “orientalização” da teodicéia tradicional do Ocidente -
também enfatiza – esta é a primeira frase do texto referido - a relação entre crença e ética.
“Para opinar sobre o que poderá constituir a natureza de qualquer sistema ético do próximo
milênio (ou ao menos de suas primeiras décadas), primeiro é necessário ter alguma idéia dos
214 O autor identifica a seguinte referência bibliográfica: MARTÍN VELASCO, Juan Introducción a la fenomenologia de la religión. 3. ed. Madrid, Cristiandad. 1982, pp. 163s.
199
valores e crenças fundamentais sobre as quais estará, provavelmente, baseado” (CAMPBELL,
1997, p. 5).
Agora, faremos uma aproximação entre o conceito de racionalidade de Max Weber, de
seus tipos “racionais” (“por finalidade” e “por valor”) determinantes da ação (atividade)
social e de seus tipos de ética ou moral (“de convicção/mentalidade” e “de responsabilidade”)
e o axioma da preferência e a teoria formal da escolha racional de Rodney Stark (2006). Para
tanto, ratificamos215 que só raramente uma ação social real é orientada exclusivamente por um
dos referidos tipos conceitualmente puros; que a atividade racional por finalidade é um caso
limite teórico e que em certos níveis relaciona-se com a racionalidade por valor; que a
atividade racional “por finalidade” e a “por valor” identificam-se no plano da ética,
respectivamente, com a “moral da responsabilidade” e com a “moral de convicção”; que a
distinção entre as duas éticas ou morais não exclui a possibilidade de se agir com convicção e
com o sentido da responsabilidade no devotamento a uma causa; que existe, pois,
complementaridade entre as éticas ou morais “de responsabilidade” e “de
convicção/mentalidade”.
Considerando os aspectos acima destacados, percebemos uma clara relação entre os
tipos de ação racional de Weber e a argumentação de Rodney Stark (2006) sobre a escolha
racional, a seguir explicitada e que nos ajudam a enxergar a fluidez, o entrecruzamento e
abusca de articulação e de um ponto de convergência entre racionalidade por valor e por
finalidade na constituição e gestão de uma ONG de assistencial social em sentido amplo - da
prática institucionalizada do ativismo no setor social216:
Analisemos agora como seres humanos comportam-se quando se vêem diante do risco e da escolha. A proposição inicial é fundamental para toda a ciência social: Os indivíduos escolhem suas ações racionalmente, até mesmo aquelas ações que dizem respeito aos compensadores. A escolha racional envolve a ponderação dos custos e dos benefícios antecipados das ações, buscando-se agir de forma a maximizar os benefícios líquidos.
215 Remetemos o leitor aos comentários de Vilu Salvatore (2004) e Hans Küng (2004) expostos no final do subitem desta dissertação denominado “A fluidez das lógicas do terceiro setor em uma sociedade de direitos: assistência, promoção e transformação”, bem como ao subitem anterior “Por que Max Weber? a sociologia compreensiva de Weber e seus conceitos fundamentais”. 216 Para melhor compreensão da questão, remetemos o leitor aos subitens “A fluidez das lógicas do terceiro setor em uma sociedade de direitos: assistência, promoção e transformação” e “Por que Max Weber? a sociologia compreensiva de Weber e seus conceitos fundamentais”, especialmente à argumentação de Marcelo A. Camurça (2005) sobre as motivações pessoais de fundo do ativismo no setor social. Sobre o assunto, também fazemos referência a duas notas de rodapé dos ventilados subitens, nas quais indicamos as entidades beneficentes de assistência social (saúde, educação e assistência social) que são constituídas e geridas em função de motivações ético-religiosas, como exemplos de motivações de fundo de ordem pessoal que acabam gerando ações institucionalizadas que, por sua vez, devem observar normas organizacionais e procedimentos fundamentados na racionalidade instrumental.
200
(...) No entanto, se os seres humanos procuram maximizar, porque todos não procedem de maneira semelhante? Aqui o axioma de preferência é vital: As pessoas diferem consideravelmente em suas avaliações relativas quanto às recompensas ou benefícios específicos. Se fosse seguir à risca as formulações da teoria econômica, teria enunciado isso para observar que as pessoas possuem diferentes “esquemas de preferência” e, portanto, algumas delas irão avaliar qualquer recompensa ou benefício dado em termos mais elevados do que outras. (...) Introduzo essa proposição aqui em grande parte para contraditar aqueles críticos que afirmam que, por postular a racionalidade do comportamento religioso, excluo todo comportamento que não seja egoísta ou hedonista, e que desse modo descarto a capacidade da religião em estimular os altruístas e ascéticos que povoam a comunidade dos santos. Além de equivocada, essa crítica banaliza o próprio comportamento que ostensivamente louva. Dizer que as pessoas diferem em termos de esquemas de preferência é simplesmente uma forma pouco feliz de dizer que Madre Teresa pode bem ser exaltada à santidade um dia, não por ter evitado recompensas e perseguido custos, mas por causa daquilo que acha recompensador. Chamar Madre Teresa de altruísta, e, portanto, classificar seu comportamento de não-racional é negar a mais sublime das capacidades humanas, ou a capacidade de amar. Por conseguinte, embora as teorias da escolha racional restrinjam o comportamento ao que é consistente com as definições de recompensas de uma pessoa, têm muito pouco a dizer sobre o verdadeiro conteúdo dessas recompensas. Isso estimula as pessoas a ser caridosas, corajosas, generosas, reverentes e até ingênuas (STARK, 2006, p. 188 e 190).
Como já anteriormente – no subitem “Conceitos de religião e metodologias de
pesquisa dos fenômenos religiosos” – sintetizamos a teoria formal da escolha racional de
Rodney Stark (2006), nos ateremos aqui simplesmente a sua proposição teórica e a um
esclarecimento ofertado pelo autor abaixo transcrito, que muito se assemelha a seguinte
afirmação de Weber (1999): “Para nós, a ânsia pela salvação, qualquer que seja sua natureza,
é de interesse especial, na medida em que traz conseqüências para o comportamento prático
na vida (...) O fim e o sentido desta condução de vida podem estar dirigidos puramente ao
além ou, também, pelo menos em parte, a este mundo” (WEBER, 1999, p. 357).
Comecemos com uma proposição teórica: A religião provê compensadores por galardões que são escassos ou indisponíveis. (...) A maioria das pessoas deseja a imortalidade. Ninguém sabe com atingi-la aqui e agora (...) Muitas religiões, entretanto, oferecem instruções sobre como esse ideal pode ser alcançado a longo prazo. Quando o comportamento de um indivíduo é norteado por este conjunto de instruções, ele aceitou um compensador. A pessoa também demonstra comprometimento religioso, já que as instruções sempre envolvem certa exigências com relação ao divino. (STARK, 2006, p. 186 e 187).
Embora as respostas já tenham sido dadas – e isto baseado em dados empíricos e
argumentos de variados pesquisadores – especialmente quando demonstramos a fluidez entre
modos de fazer “caridade”, racionalidades e valores, quando indicamos a coexistência de
motivações de fundo pessoais com lógicas organizacionais (contábil/mercantil e jurídica) e
201
procedimentos fundamentados na racionalidade e, ainda, quando mostramos as tensões entre a
força original dos valores ético-religiosos e as adaptações institucionais, fazemos algumas
perguntas e questionamentos – outros argumentos nos ajudarão a completar as respostas – ,
também para aguçar o leitor à reflexões, do mesmo modo que o fizemos ao final do subitem
“Revoluções sociais, o estado democrático de direito e os processos de exclusão e inclusão
sociais...”217.
•••• Prestar serviço voluntário, fazer doações, constituir e dirigir ONGs são escolhas
racionais?
•••• A prática e ou o fomento de atividades sociais e ou assistenciais é um meio
(método, “caminho”) de respeitar e viver concretamente o mandamento do amor ou
caridade em nossa sociedade de direitos racional e capitalista?
•••• O que se espera com essas escolhas? Qual a recompensa? A própria salvação ou
uma sociedade mais justa, cidadã e solidária? Esses objetivos são incompatíveis?
•••• O que motiva essas escolhas? Mandamentos, teologias e doutrinas religiosos ou
princípios éticos e ideais humanitários? Em nossa sociedade ocidental, não existe um
entrecruzamento entre mandamentos religiosos e princípios éticos? Valores como
amor, justiça e solidariedade não são comuns à ambos?
•••• Além da assistência caritativa, os valores ético-religiosos legitimam e motivam a
promoção humana cidadã e a transformação das estruturas injustas? Existem
oposições e incompatibilidades intransponíveis entre essas práticas?
•••• Por que algumas ONGs com forte influência de valores ético-religiosos – sob a
mesma teologia e doutrina – fazem “caridade” de maneira diversa? Por que umas
confrontam a ordem existente e outras não?
•••• Motivado pelo mandamento do “amor ao próximo”, constituir uma ONG de
assistência social e geri-la de forma eficiente para que ela cumpra suas finalidades e
alcance os resultados propostos, não envolve tanto a racionalidade por valor (cumprir
o dever de amar o próximo, um mandamento religioso e um princípio ético) quanto a
racionalidade por finalidade (gerir e utilizar recursos financeiros, materiais e humanos,
inclusive cumprido toda a burocracia, para atender adequadamente seu público-alvo,
mediante o fornecimento se serviços)?
217 Remetemos o leitor a este subitem e suas perguntas, que contribuirão para ampliar as reflexões, uma vez que ali são abordadas as tensões, relações e articulação entre Estado, mercado e terceiro setor.
202
•••• Na situação acima, o fato de constituir e gerir uma ONG (dedicar-se a uma
“missão”, ser um instrumento de Deus), como um modo de viver concretamente o
“amor ao próximo”, não se caracteriza como uma escolha racional de um caminho, um
método, um compensador – na linguagem de Rodney Stark – para se alcançar uma
futura recompensa (vida eterna, salvação) e/ou uma atual recompensa (viver de modo
coerente com os valores ético-religiosos e, assim, experimentar a paz e a felicidade ao
fazer o bem)?
E por aí vamos...
203
2. A RELAÇÃO ENTRE O ETHOS RELIGIOSO E O ETHOS DO ATIVISMO NO
SETOR SOCIAL: “AFINIDADES ELETIVAS” ENTRE A ÉTICA. CATÓLICA E O
ATIVISMO NO SETOR SOCIAL 218
2.1. Caridade e Solidariedade na Doutrina Social da Igreja e a Tensão entre a
Mensagem Original e a Preservação Institucional219
Antes de percorrermos - em grande medida já o fizemos ao tratarmos do assunto em
vários pontos desta dissertação - os significados, aspectos, sentidos e conexões entre caridade
(ou amor) e solidariedade (uma face da justiça) na doutrina social da Igreja Católica,
transcrevemos alguns trechos – o desejo era trazê-lo por inteiro – “Do tratado sobre o
Evangelho de São João, de Santo Agostinho, bispo: o duplo preceito da caridade”. Vejo aí a
essência e toda a dimensão do mandamento do amor ou da caridade, sob a ótica cristã:
Recordai-vos em todo momento de que devemos amar a Deus e ao próximo (...) Esses dois preceitos devem ser sempre lembrados, meditados, conservados na memória, praticados e cumpridos. O amor a Deus ocupa o primeiro lugar na ordem dos preceitos, mas o amor ao próximo ocupa o primeiro lugar na ordem de execução. (...) tu que ainda não vês a Deus, merecerás vê-lo se amas o próximo... (...) Ama, pois, o teu próximo e procura no teu íntimo a origem deste amor; lá verás a Deus o quanto agora te é possível. Começa, portanto, a amar o próximo. Reparte o pão com o faminto, acolhe em casa o pobre sem abrigo; quando encontrares um nu, cobre-o, e não dês as costas ao teu semelhante (cf. Is 58,7). (...) Amando o próximo e cuidando dele, vais percorrendo o teu caminho (...) É certo que ainda não chegamos junto do Senhor; mas já temos conosco o próximo. Ajuda, portanto, aquele que tens ao lado enquanto caminhas neste mundo, e chegarás até junto daquele com quem desejas permanecer para sempre (AGOSTINHO, 1993, p. 459-460).
Nesta passagem de Santo Agostinho (1993), que indica na dimensão do amor a relação
entre criador (Deus) e criatura (o próximo) e que associa o modo de condução da vida terrena
(a prática do amor) à vida eterna (salvação, o encontro com o Deus celeste e transcendente,
que é o amor), enxergamos uma evidente ligação com o pensamento de Mahatma Gandhi
noticiado por Comparato (2006) – transcrevemos, agora, apenas sua síntese -, quando de seus
comentários sobre o princípio ético da verdade – em sua conotação semítica, ou seja,
218 Esclarecemos o leitor sobre a correlação, ou melhor, sobre a nítida intersecção entre o subitem “2.1. Caridade e solidariedade na doutrina social da igreja...” e o subitem “2.2. A ética católica e o espírito do ativismo no setor social”. 219 Como este subitem contém vários grifos, aproveitamos para reafirmar que em todas as citações que contém grifos, eles o são das fontes ou dos autores citados. Desta forma, pouquíssimos grifos são nossos nesta dissertação.
204
relacionada à vida ética -: “’É preciso, sobretudo, consagrar-se diretamente a serviço dos
outros, pois o único meio de encontrar a Deus é redescobri-Lo na sua Criação e de unir-se a
ela’” (COMPARATO, 2006, p.524).
Desde já remetemos o leitor ao subitem denominado “Os princípios éticos cardeais e o
terceiro setor...”, no qual fica perceptível a íntima relação em nossa sociedade ocidental entre
princípios éticos e mandamentos religiosos, donde surge o binômio valores ético-religiosos
muito utilizado nesta dissertação. Ali fica evidente a utilização pelo jurista e pensador Fábio
Konder Comparato (2006) de trechos evangélicos em todos os seus comentários sobre os
princípios éticos cardeais – verdade, amor e justiça – e ficam claras as complementaridades e
comunhão de sentidos desses princípios, inclusive a relação indissolúvel entre o amor ou
caridade e a justiça e sua face solidária.
Outrossim, destacamos que pesquisadores de várias áreas e sem vinculação religiosa
indicam e reconhecem a existência da articulação religião-ética-condução de vida como
elemento de contraponto à lógica individualista e excludente do capitalismo, o que já foi
explicitado nos subitens “As revoluções sociais, o estado democrático de direito e os
processos de exclusão e inclusão sociais...” e “Religião, ética e condução de vida: uma
escolha racional”.
Também, e isto foi especialmente desenvolvido nos subitens “Dos profetas sociais à
teologia da libertação”, “Caridade, assistência, assistência social, assistencialismo e
cidadania...” e A fluidez das lógicas do terceiro setor em um sociedade de direitos...”,
enfatizamos a relevância e centralidade do amor ou caridade e da justiça e solidariedade na
doutrina social da Igreja Católica, assim como indicamos ambigüidades referentes à
compreensão desses princípios éticos e mandamentos religiosos que repercutem no modo de
interpretar as orientações (a doutrina, a teologia) e na forma de atuar concretamente na
sociedade (de fazer “caridade”), pois a prática se espelha na doutrina.
Dentre os fatores que geram essas ambigüidades – vários já foram indicados e neste
subitem detalharemos a questão -, e que estão vinculados às condições concretas em que se
processam o pensamento e a prática da Igreja, noticiamos ou reafirmamos os seguintes:
a) Tensão entre mensagem original de Jesus Cristo (do amor e fraternidade universais)
e o impulso de preservação institucional220;
220 Remetemos o leitor à nota de rodapé situada no início do subitem denominado “As revoluções sociais, o estado democrático de direito e os processos de exclusão e inclusão sociais...”, na qual Clodovis Boff e Jorge Pixley (1986) descrevem esta tensão permanente. Também ratificamos aqui argumentação por nós já
205
b) Diferença de tratamento (discurso e prática) entre os deveres, atividades e
organizações da Igreja (eclesiais, ou seja, “oficiais” da Igreja e que tem como
protagonistas os membros do clero e os religiosos) e os dos fiéis leigos (não eclesiais,
“não oficiais”)221. Esclarecendo que esse fator tem uma profunda correlação com o
fator abaixo indicado, transcrevemos trecho da doutrina social que destaca a
competência e dever do fiel leigo de atuar no campo social e político para a construção
de um sociedade mais justa:
É tarefa própria do fiel leigo anunciar o Evangelho com um exemplar testemunho de vida, radicada em Cristo e vivida nas realidades temporais: família; compromisso profissional no âmbito do trabalho, da cultura, da ciência e da pesquisa; exercício das responsabilidades sociais, econômicas, políticas. Todas as realidades humanas seculares, pessoais e sociais, ambientes e situações históricas, estruturas e instituições, são o lugar próprio do viver e do agir dos cristãos leigos. Estas realidades são destinatárias do amor de Deus; o empenho dos fiéis leigos deve corresponder a esta visão e qualificar-se com expressão da caridade evangélica: “o estar e o agir no mundo são para o fiéis leigos um realidade, não só antropológica e sociológica, mais também e especificamente teológica e eclesial” (PONTIFÍCIO, 2005, p. 301-302).
Observe-se, ainda, que tanto a “Apresentação”222 do Compêndio da doutrina social da
igreja223 – utilizamos esse documento como nossa principal fonte sobre o ensinamento
desenvolvida no subitem denominado “Nova consciência religiosa, novos movimentos religiosos (NMR)...”, que envolve uma aproximação entre o continuum Seita-Igreja de Rodney Stark (2006) e as proposições de Michael Löwy (2000). Segundo nossa argumentação – frisamos que muitas aspas foram colocadas - , as tensões entre a “seita católica” movida pela força original do mandamento da caridade ou “amor ao próximo” (da fraternidade universal) ensinado por Jesus Cristo e as várias esferas da sociedade, em especial a esfera econômica, vão sendo reduzidas – as tensões – na medida em que a “Igreja Católica” vai se acomodando e se adaptando às estruturas e formações sociais, em especial às econômicas, passando, assim, do confronto com a lógica capitalista para a correção de seus aspectos negativos por meio de atividades caritativas sociais e/ou assistenciais. Aí, em vez da tensão entre o mandamento da caridade ou amor da “seita católica” e as esferas da sociedade, passa-se a uma tensão entre a mensagem original do amor e fraternidade universais e o impulso de preservação institucional da “Igreja Católica”. 221 Sobre esse assunto, também remetemos o leitor ao subitem denominado “Caridade , assistência, assistência social, assistencialismo e cidadania...”, onde indicamos aspectos doutrinais explícitos no sentido de que é mediato o dever da Igreja (abertura da inteligência e vontade às exigências do bem) e imediato o dever do fiéis leigos (trabalhar pela justiça e participação pessoal na vida política) na construção de um ordenamento social e estatal justo. 222 Ela é datada de 02 de abril de 2004 e subscrita pelo Presidente e pelo Secretário do Pontifício Conselho da Justiça e da Paz, a quem competiu a elaboração do referido Compêndio. 223 O Compêndio da doutrina social da igreja é um documento oficial da Igreja Católica, elaborado pelo Pontifício Conselho da Justiça e Paz por encargo recebido do papa João Paulo II, para expor de modo sintético, mas completo, o ensinamento social da Igreja. O Compêndio foi apresentado em 02 de abril de 2004 e aprovado pelo Vaticano em 29 de junho de 2004. Esse documento, por ser um compêndio, faz referência a vários documentos da Igreja, tais como Constituições Apostólicas, Dogmáticas e Pastorais do Concílio Vaticano II, Cartas Encíclicas e Exortações Apostólicas de vários papas, Catecismo da Igreja Católica etc.
206
social da Igreja Católica – quanto a “Carta de aprovação do Vaticano”224, fica evidente
que os principais destinatários dos ensinamentos sociais são os fiéis leigos, sendo ela
extensiva ao adeptos de outras religiões e aos homens de boa vontade.
Mais especificamente, a “Apresentação” é explícita ao indicar que “a leitura destas
páginas é proposta antes de tudo para suster e animar a ação dos cristãos em campo
social, especialmente dos fiéis leigos, dos quais este âmbito é próprio; toda a sua vida
deve qualificar-se como uma fecunda obra evangelizadora” (Ibid., p. 13). A “Carta de
aprovação” também não deixa qualquer dúvida:
As atuais questões culturais e sociais envolvem sobretudo os fiéis leigos, chamados, como nos recorda o Concílio Ecumênico Vaticano II, a tratar as coisas temporais ordenando-as segundo Deus (cf. Lumen gentium, 31). Bem se compreende, portanto, a importância fundamental da formação dos leigos, para que com a santidade de sua vida e a força de seu testemunho contribuam para o progresso da humanidade. Este documento quer ajudá-los em sua missão quotidiana. É igualmente interessante notar como numerosos elementos aqui recolhidos sejam compartilhados pelas outras Igrejas e Comunidade eclesiais, bem como por outras Religiões. O texto foi elaborado de modo que se possa fruir não somente ad intra, ou seja, entre os católicos, mas também ad extra. Com efeito, os irmãos que têm em comum conosco o mesmo Batismo, os adeptos de outras Religiões e todos os homens de boa vontade podem dele tirar elementos fecundos de reflexão e impulso comum para o desenvolvimento integral de todo o homem e do homem todo (Ibid., p. 10-11).
c) Prioridade (competência imediata) da Igreja, no anúncio de Cristo Redentor - “da
mensagem de libertação do homem anunciada e testemunhada pelo Filho de Deus
humanado” (Ibid., p. 49), ou seja, de uma missão de ordem religiosa225 (evangélica,
catequética) objetivando a salvação – das almas - do homem (a vida eterna), o que,
frise-se, não contradiz e nem obscurece seu dever, ou melhor o “...direito seu de
evangelizar o social, ou seja, fazer ressoar a palavra libertadora do Evangelho no
complexo mundo da produção, do trabalho, do empresariado, das finanças, do
comércio, da política, do direito, da cultura, das comunicações sociais, em que vive o
homem (Ibid., p. 50), uma vez que
224 Ela é datada de 29 de junho de 2004, subscrita pelo Secretário de Estado do Vaticano e dirigida ao Presidente do Pontifício Conselho da Justiça e da Paz. 225 “A Igreja não se ocupa da vida em sociedade em todos os seus aspectos, mas com a sua competência própria, que é a do anúncio de Cristo Redentor: ‘A missão própria que Cristo confiou à sua Igreja por certo não é de ordem política, econômica e social. Pois a finalidade que Cristo lhe prefixou é de ordem religiosa. Mas, na verdade, desta mesma missão religiosa decorrem benefícios, luzes e forças que podem auxiliar a organização e o fortalecimento da comunidade humana segundo a Lei de Deus’. Isto quer dizer que a Igreja, com a sua doutrina social, não entra em questões técnicas e não institui nem propõe sistemas ou modelos de organização social: isto não faz parte da missão que Cristo lhe confiou. A Igreja tem a competência que lhe vem do Evangelho: da mensagem de libertação do homem anunciada e testemunhada pelo Filho de Deus humanado” (PONTIFÍCIO, 2005, p. 49).
207
Pela relevância pública do Evangelho e da fé e pelos efeitos perversos da injustiça, vale dizer, do pecado, a Igreja não pode ficar indiferente às vicissitudes sociais: “Compete à Igreja anunciar sempre e por toda a parte os princípios morais, mesmo referentes à ordem social, e pronunciar-se a respeito de qualquer questão humana, enquanto o exigirem o direitos fundamentais da pessoa humana ou a salvação das almas”(Ibid.,p. 50).
Talvez a seguinte frase extraída do Compêndio da doutrina social da igreja –
utilizamos esse documento como nossa principal fonte sobre o ensinamento social da Igreja
Católica – sintetize a dimensão e relação – diferenças e complementaridades – entre missão
religiosa (evangélica, catequética) e social (voltadas à comunidade dos homens, às questões
de ordem social, econômica e política da sociedade) da Igreja Católica: “É a pessoa humana
que dever ser salva, é a sociedade humana que deve ser renovada”226 (Ibid., p. 24). Neste
contexto, a Igreja é expressa no sentido de que existe uma profunda e indissolúvel ligação
entre evangelização e promoção humana, entre o espiritual e o social:
A doutrina social é parte integrante do ministério de evangelização da Igreja. Daquilo que diz respeito à comunidade dos homens – situações e problemas referentes à justiça, à libertação, ao desenvolvimento, às relações entre os povos, à paz – nada é alheio à evangelização, e esta não seria completa se não levasse em conta o recíproco apelo que continuamente se fazem o Evangelho e a vida concreta, pessoal e social do homem. Entre evangelização e promoção humana há laços profundos: “laços de ordem antropológica, dado que o homem que há de ser evangelizado não é um ser abstrato, mas é sim um ser condicionado pelo conjunto de problemas sociais e econômicos; laços de ordem teológica, por que não se pode nunca dissociar o plano da criação do plano da Redenção, um e outro a abrangerem as situações bem concretas da injustiça que há de ser combatida e da justiça a ser restaurada; laços daquela ordem eminentemente evangélica, qual é a ordem da caridade: como se poderia proclamar o mandamento novo, sem promover na justiça e na paz o verdadeiro e autêntico progresso do homem? (Ibid., p. 48).
Pensamos – e isto nos motivou a detalhar estes aspectos no presente subitem - que a
compreensão das causas dessas diferentes visões nos levará a colocar em evidência a força do
apelo original do “amor ao próximo” que tem como “alvo” a dignidade da pessoa humana –
ele não pode ser negado e está implantado, pois faz parte de sua essência, em toda a doutrina
da Igreja, seja ela social ou catequética –, como também, nos levará a descobrir pontos de
convergência e fluidez que coloquem os aspectos ideológicos dessa visões em seus devidos
lugares, e tudo para que esses discursos não se sobreponham à realidade e à busca –
empiricamente observada - de articulação e complementaridade entre lógicas assistenciais, 226 Em nota de rodapé é identificada a seguinte fonte: “CONCÍLIO VATICANO II, Const. past. Gaudium et spes,3: AAS 58 (1966) 1026” (PONTIFÍCIO, 2005, p. 24).
208
promocionais e libertadoras/transformadoras, como também não descaracterizem a dimensão,
sentido e significado da caridade e da solidariedade como princípios éticos e valores
religiosos relevantes para a sociabilidade e para intervenção junto aos problemas sócio-
econômicos.
Aqui, abrimos parênteses. Indicamos a seguir três situações distintas – penso que
muitos as tratam como uma coisa só, e isto gera confusão –, que nos ajudarão a compreender
as tensões, conflitos, ambigüidades, complementaridades, articulações e fluidez envolvendo a
forma de intervenção da Igreja e de seus fiéis leigos nas questões sócio-econômicas:
1ª) A autêntica e verdadeira doutrina social e catequética tem que ser fiel à mensagem
original de Jesus Cristo (aos mandamentos e valores ético-religiosos por ele
ensinados); desta forma, a autêntica e verdadeira doutrina jamais poderá justificar ou
legitimar a manutenção de sistemas injustos na sociedade;
2ª) Ocorre, entretanto, e isto já vimos em vários momentos da história nos quais
prevaleceu o interesse da preservação institucional – guerras religiosas decorrentes da
sacralização dogmática e repúdio violento dos infiéis227; preservação do monopólio
junto à população e manutenção de um lugar de preeminência na organização político-
institucional-social dos Estados laicos228 -, que interpretações interesseiras e
distorcidas dos valores ético-religiosos descaracterizaram e desfiguraram esse valores
e a doutrina que neles se funda, o que colaborou com a manutenção de sistemas
injustos;
3ª) Porém, vejo aqui uma situação diversa da acima indicada – ela não envolve
distorção e interesses inadequados -, quando a Igreja (em seu âmbito eclesial,
“oficial”) prioriza sua missão religiosa e espiritual (salvação das almas), afastando-se
da atuação imediata – a Igreja manifesta que nisto ela tem uma competência mediata –
nas questões políticas e sociais para a construção de um ordenamento social justo,
inclusive para evitar que elementos político-partidários e ideológicos – que causam
divisões - sejam implantados no anúncio evangélico de Cristo Redentor. Ora, essa
situação coloca a atuação da Igreja (eclesial, “oficial”) no campo social sob uma
227 Remetemos o leitor aos argumentos de Comparato (2006) desenvolvidos no subitem denominado “Os princípios éticos cardeais e o terceiro setor...”. 228 Remetemos o leitor aos argumentos de Camurça (2005) desenvolvidos no subitem denominado “Religião e construção da esfera pública não-estatal...”.
209
dimensão mais assistencial, donde decorrem acusações – entendo-as, por este motivo,
equivocadas – que ela contribui com a manutenção de sistemas injustos e adota
práticas assistencialista229. Observe-se, entretanto, que ao exercer sua competência
mediata no tocante às questões política e sociais – o anúncio de Jesus Cristo é
revolucionário e a função da Igreja é a “purificação da razão e o despertar das forças
morais, sem as quais não se constroem estruturas justas, nem estas permanecem
operativas por muito tempo” (BENTO XVI, 2006, p. 37) -, a Igreja e sua doutrina
motivam e impulsionam os fiéis leigos – segundo a Igreja eles, sim, têm competência
imediata no campo social - e todos os homens de boa vontade a questionarem as
lógicas excludentes – esta é uma das características da formação social capitalista – e a
atuarem no campo político, econômico e social objetivando modificar as estruturas
injustas e/ou compensar as tendências nocivas da formação social capitalista.
Como a seguir noticiaremos a dimensão ocupada pela caridade e solidariedade no
ensinamento – na doutrina – social da Igreja Católica, inclusive porque esses princípios éticos
e mandamentos religiosos também devem estar presentes na atividade econômica – esses
aspectos envolvem as proposições de Löwy (2000)230 que referenciam nosso estudo -,
optamos por trazer uma argumentação231 de Herman Vos e Jacques Vervier (1995) que nos
ajudará a focar nosso olhar na essência da doutrina social e a compreender suas ambigüidades,
o que é importante para evitar que visões e tendências ideológicas distorçam o real sentido das
orientações sociais da Igreja.
A Igreja nunca aceitou as ideologias da sociedade industrial, elas nasceram fora do e em oposição ao universo cristão. O ensinamento social da Igreja condena com igual vigor – mas não com os mesmo argumentos – o capitalismo e o comunismo e se retranca muito nas posições escolásticas tradicionais. O questionamento e contestação de seu pensamento pelas ciências e ideologias modernas a levam, porém, a corrigir sua doutrina e assimilar parcialmente um ou outro elemento alheio à sua tradição. O magistério reafirma a predominância do julgamento moral nas questões sócio-econômicas... (...) A doutrina social da Igreja constitui, na realidade, uma difícil síntese entre a firmeza na fidelidade à revelação e à tradição, e a flexibilidade diante dos “sinais dos tempos”. Isto explica certas hesitações e imprecisões no corpo doutrinal e, portanto,
229 Para melhor compreensão da questão, remetemos o leitor ao subitem denominado “Caridade , assistência, assistência social, assistencialismo e cidadania...”. 230 Estas proposições estão detalhadas nos subitens denominados “As revoluções sociais, o estado democrático de direito e os processos de exclusão e inclusão sociais...” e “A ética católica e o espírito do ativismo no setor social”. 231 Parte desta argumentação já foi indicada em nota de rodapé do subitem denominado “A parte ‘lucrativa’ do terceiro setor...”
210
exige uma leitura que se prenda mais ao espírito do que à letra (VOS e VERVIER, 1995, p. 69-70).
Passemos, agora, à caridade e à solidariedade. Como já tratamos de modo detalhado a
“caridade”, iremos ao Dicionário Houaiss da língua portuguesa para captar o significado e
sentido das palavras “solidariedade” e “solidário”232 – para melhor compreender a primeira,
precisamos entender a segunda:
solidariedade (...) caráter, condição ou estado de solidário (...) 2 laço ou ligação mútua entre duas ou muitas coisas ou pessoas, dependentes umas das outras (...) 3 sentimento de simpatia, ternura ou piedade pelos pobres, pelos desprotegidos, pelos que sofrem, pelos injustiçados etc. 4 manifestação desse sentimento, com o intuito de confortar, consolar, oferecer ajuda etc... (...) solidário (...) 1 em que há responsabilidade recíproca ou interesse comum 2 que depende um do outro; interdependente, recíproco 3 pronto a consolar, apoiar, auxiliar, defender ou acompanhar alguém em alguma contingência... (HOUAISS e VILLAR, 2001, p.2602)
Destacando a inseparabilidade do amor ao próximo e do amor a Deus e a vocação da
pessoa humana de viver em sociedade (Cf. CATECISMO, 1999, p. 501-502 ), a Igreja
enfatiza que “o amor deve estar presente e penetrar todas as relações sociais”
(PONTIFÍCIO, 2005, p. 322), bem como que a
“...caridade cristã que compendia em si todo o Evangelho e que, sempre pronta a sacrificar-se pelo próximo, é o antídoto mais seguro contra o orgulho e o egoísmo do século”. Este amor pode ser chamado “caridade social” ou “caridade política” e deve ser estendido a todo o gênero humano. O “amor social” encontra-se nos antípodas do egoísmo e do individualismo: sem absolutizar a vida social, como acontece nas visões achatadas sobre as leituras exclusivamente sociológicas, não se pode esquecer que o desenvolvimento integral da pessoa e o crescimento social se condicionam reciprocamente (Ibid., 581, p. 322-323)
Continua a Igreja, indicando a caridade como o maior mandamento social e que, sem
se desviar de sua dimensão espiritual, deve realizar-se na dimensão terrena mediante a prática
de ações concretas - neste aspecto também se percebe a afinidade eletiva entre a ética católica
e o ativismo no setor social:
Só a caridade pode transformar completamente o homem. Uma semelhante transformação não significa anulação da dimensão terrena em uma espiritualidade
232 Como não existe uma tendência de desfigurar – como no caso da “caridade” - o significado e sentido de “solidariedade” e “solidário”, optamos por escolher os que mais nos ajudam à revelar sua dimensão e importância para o ativismo no setor social.
211
desencarnada. Quem crê poder conformar-se com a virtude sobrenatural do amor sem levar em conta o seu correspondente fundamento natural, que inclui os deveres de justiça, engana-se a si mesmo: “A caridade representa o maior mandamento social. Respeita o outro e seus direitos. Exige a prática da justiça, e só ela nos torna capazes de praticá-la. Inspira uma vida de autodoação: ‘Quem procurar ganhar sua vida vai perdê-la, e quem a perder vai conservá-la’ (Lc 17,33)”. Tampouco pode a caridade esgotar-se unicamente na dimensão terrena das relações humanas e das relações sociais, porque toda a sua eficácia deriva da referência a Deus... (Ibid., p. 323-324)
Chegamos, agora, à solidariedade e a sua intensa conexão com a caridade. “O
princípio da solidariedade, enunciado ainda sob o nome de ‘amizade’ ou ‘caridade social’, é
uma exigência direta da fraternidade humana e cristã” (CATECISMO, 1999, p. 513), que
além de se manifestar na “distribuição dos bens e na remuneração do trabalho. Supõe também
o esforço em favor de uma ordem social mais justa, na qual as tensões possam ser mais bem
resolvidas e os conflitos encontrem mais facilmente sua solução por consenso” (Ibid., p. 514).
“As novas relações de interdependência entre homens e povos, que são de fato formas
de solidariedade, devem transformar-se em relações tendentes a uma verdadeira e própria
solidariedade ético-social, que é a exigência moral ínsita a todas as relações humanas”
(PONTIFÍCIO, 2005, p. 116). Daí a Igreja Católica extrai dois aspectos complementares que
caracterizam a solidariedade tanto como princípio social – como valor ordenador das
instituições e estruturas sociais decorrentes das relações de interdependência –, quanto como
virtude moral - como “determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum;
ou seja, pelo bem de todos e de cada um, porque todos nós somos verdadeiramente
responsáveis por todos” (Ibid., p. 117). E note-se, que o princípio da solidariedade, em sua
relação íntima com a caridade, tem papel central da doutrina social da Igreja:
Finalidade imediata da doutrina social é a de propor os princípios e os valores que possam suster uma sociedade digna do homem. Entre estes princípios, o da solidariedade em certa medida compreende todos os demais: ele constitui “um dos princípios basilares da concepção cristã da organização social e política” Tal princípio é iluminado pelo primado da caridade “sinal distintivo dos discípulos de Cristo (cf. Jo 13, 35)”. Jesus “nos ensina que a lei fundamental da perfeição humana e, portanto, da transformação do mundo, é o mandamento novo do amor” (cf. Mt 22, 40; Jo 15,12; Col 3,14; Tg 2,8). O comportamento da pessoa é plenamente humano quando nasce do amor, manifesta o amor, e é ordenado ao amor. Esta verdade vale também no âmbito social: é necessário que os cristãos sejam testemunhas profundamente convictas e saibam mostrar, com a sua vida, como o amor é a única força (cf. 1 Cor 12,31-14,1) que pode guiar à perfeição pessoal e social e mover a história rumo ao bem” (Ibid., 580, p. 322).
Neste momento, após percorrermos os significados das palavras caridade e
solidariedade e buscar compreendê-las segundo as concepções da doutrina católica,
traçaremos um paralelo entre os dois aspectos da solidariedade destacados pela Igreja Católica
212
– como princípio social e como virtude moral – e os dois sentidos – interligados, porém
distintos – da palavra solidariedade verificados por Hugo Assmann e Jung Mo Sung (2000). O
primeiro “como um fato e uma necessidade de interdependência na vida social, um conceito
associado à coesão social. Neste sentido, a exclusão social aparece como um perigo para os
necessários processos de solidariedade, isto é, para a própria coesão social” (ASSMANN e
SUNG, 2000, p.74-75). Já o segundo
... é mais normativo ou propositivo. É um chamado à superação da exclusão e da segmentação sociais através de uma educação que contribua para a aprendizagem de competências de caráter geral e que levem as pessoas a praticarem a solidariedade. Neste segundo aspecto, a solidariedade é vista mais como uma atitude capaz de respeitar as diferenças e se interessar pelos problemas da coletividade, principalmente dos que estão sofrendo mais com a situação (Ibid., p. 75).
E assim os autores sintetizam o que entendem por solidariedade, em sua integral
dimensão: “Estes dois sentidos estão interligados na medida em que a solidariedade como
atitude, ou a solidariedade como uma questão ética, nasce do reconhecimento de que a
solidariedade/interdependência é um fato, uma necessidade para a vida da e na sociedade”
(Ibid., 75).
Destacando, e isto podemos constatar em nosso dia a dia, que temos a tendência de ser
solidários apenas em limitados circuitos de relacionamento de nossas vidas, e que a percepção
e prática da solidariedade em um contexto mais amplo exige um salto ético que não costuma
ser espontâneo – precisa ser alavancado por argumentos, vivências, testemunhos etc –
Assmann e Sung (2000) nos deixam os seguintes elementos para reflexão, que se coadunam
com a afirmação da doutrina social de que a renovação interior e a conversão do coração são
imprescindíveis para a prática efetiva da promoção da dignidade de toda pessoa (Cf.
PONTIFÍCIO, 2005, p. 306):
Para torna-nos solidários num sentido mais abrangente precisamos ascender a um estágio de consciência e opção, que implica, numa conversão a valores, que não são óbvios em nossa experiência cotidiana. A necessidade dessa conversão sempre já foi tema das éticas e das religiões. A busca de elevação moral e a adesão a valores “superiores” não são assunto novo. (ASSMANN e SUNG, 2000, p. 31).
Finalizando, a título exemplificativo, comentaremos de modo comparativo dois
posicionamentos da doutrina social sobre a função do mandamento do amor ou caridade que
tanto podem aproximar – eles consideram as divergências, porém destacam os pontos de
convergência - as lógicas (assistencial, promocional e libertadora/transformadora) e
213
segmentos da Igreja (conservadores e progressistas) no tocante à forma de intervenção junto
aos problemas sócio-econômicos, quanto podem distanciar lógicas e segmentos, criando
oposições intransponíveis. Na primeira situação, prevalece a busca da essência da força do
apelo original do “amor ao próximo” ensinado por Jesus Cristo, que não pode ser negado pela
verdadeira e autêntica doutrina (social ou catequética) da Igreja Católica e que está nela
profundamente enraizado. Na segunda, prevalecem visões fracionadas por interesses
ideológicos, que obscurecem a fluidez e a essência da doutrina, pois para enfatizarem
divergências, favorecem mais a letra do que o espírito.
Do subitem do Compêndio denominado “Destinação universal dos bens e opção
preferencial pelos pobres”, noticiamos a seguinte orientação, que faz cinco referências ao
Catecismo da igreja católica233:
O amor da Igreja pelos pobres inspira-se no Evangelho das bem aventuranças, na pobreza de Jesus e na Sua atenção aos pobres. Tal amor refere-se à pobreza material e também às numerosas formas de pobreza cultural e religiosa. A Igreja, desde as suas origens, apesar das falhas de muitos de seus membros, não deixou nunca de trabalhar por aliviá-los, defendê-los e libertá-los. Ela o faz por meio de inúmeras obras de beneficência, que continuam a ser, sempre e por toda parte, indispensáveis. Inspirada no preceito evangélico: “De graça recebeste, de graça dai” (Mt 10, 8), a Igreja ensina a socorrer o próximo nas suas várias necessidades e difunde na comunidade humana inúmeras obras de misericórdia corporais e espirituais. “Dentre estes gestos de misericórdia, a esmola dada aos pobres é um dos principais testemunhos da caridade fraterna: é também um prática de justiça que agrada a Deus”234, ainda que a prática da caridade não se reduza à esmola, mas implique a atenção à dimensão social e política do problema da pobreza. A esta relação entre caridade e justiça o ensinamento da Igreja retorna constantemente: “Quando damos aos pobres as coisas indispensáveis, não praticamos com eles grande generosidade pessoal, mas lhes devolvemos o que é deles. Mais que cumprir uma obra de misericórdia, saldamos um débito de justiça”. Os Padres Conciliares recomendam fortemente que se cumpra tal dever “para que não se dê como caridade o que já é devido a título de justiça”. O amor pelos pobres é certamente “incompatível com o amor imoderado pelas riquezas ou o uso egoístico delas” (cf. Tg 5, 1-6) (PONTIFÍCIO, 2005, p. 110).
233 Se por um lado, conforme já indicado, o Compêndio da doutrina social da igreja tem como foco sintetizar o ensinamento social da Igreja, por outro o Catecismo da igreja católica, conforme exposto pela papa João Paulo II na Constituição Apostólica Fidei Depositum para a publicação do Catecismo, “é uma exposição da fé da Igreja e da doutrina católica, testemunhadas ou iluminadas ela Sagrada Escritura, pela Tradição apostólica e pelo Magistério da Igreja. Vejo-o como um instrumento válido e legítimo a serviço da comunhão eclesial e como uma norma segura para o ensino da fé” (CATECISMO, 1999, p. 11). Por outras palavra, o Compêndio diz respeito ao ensinamento social, enquanto que o Catecismo prioriza o ensino da fé. 234 A seguir, transcrevemos trecho mais abrangente do Catecismo da igreja católica que enfatiza o significado positivo da “esmola”, do qual foi extraído a frase em referência: “As obras de misericórdia são as ações caritativas pelas quais socorremos o próximo em suas necessidades corporais e espirituais. Instruir, aconselhar, consolar, confortar são obras de misericórdia espiritual, como também perdoar e suportar com paciência. As obras de misericórdia corporal consistem sobretudo em dar de comer a quem tem fome, dar de beber a quem tem sede, dar moradia aos desabrigados, vestir os maltrapilhos, visitar os doentes e prisioneiros, sepultar os mortos. Dentre esse gestos de misericórdia, a esmola dada aos pobres é um dos principais testemunhos da caridade fraterna. É também uma prática de justiça que agrada a Deus” (CATECISMO, 1999, p. 632).
214
Já da conclusão do item denominado “A via da caridade”, que encerra a primeira parte
do Compêndio, destacamos o seguinte ensinamento social que, diga-se, não faz referência a
qualquer outro documento da Igreja Católica:
A caridade social e política não se esgota nas relações entre as pessoas, mas se desdobra na rede em que tais relações se inserem, que é precisamente a comunidade social e política, e sobre esta intervém, visando ao bem possível para a comunidade no seu conjunto. Sob tantos aspectos, o próximo a ser amado se apresenta “em sociedade” de sorte que amá-lo realmente, prover às suas necessidades ou à sua indigência pode significar algo de diferente do bem que se lhes pode querer no plano puramente inter-individual: amá-lo no plano social significa, de acordo com as situações, valer-se das mediações sociais para melhorar sua vida ou remover os fatores sociais que causam a sua indigência. Sem dúvida alguma, é um ato de caridade a obra de misericórdia com que se responde aqui e agora a uma necessidade real e imperiosa do próximo, mas é um ato de caridade igualmente indispensável o empenho com vistas a organizar e estruturar a sociedade de modo que o próximo não venha a encontrar-se na miséria, sobretudo quando esta se torna a situação em que se debate um incomensurável número de pessoas e mesmo povos inteiros, situação esta que assume hoje as proporções de uma verdadeira e própria questão social mundial (PONTIFÍCIO, 2005, p. 125).
Ora, um olhar descontextualizado por questões ideológicas sobre a primeira orientação
acima transcrita daria excessiva ênfase a natureza assistencial da esmola – provavelmente a
taxaria de assistencialista – e ocultaria os elementos que atualizam essa orientação integrando
a ela a prática da justiça e ações nas dimensões social e política (estruturais) do problema da
pobreza; ou então, na linha do vice-versa, ficaria apenas com a dimensão assistencial,
desconsiderando a dimensão estrutural Já sobre a segunda orientação, estes mesmos olhos
encobertos por ideologias taxariam de residual a dimensão assistencial e promocional,
colocando todo seu empenho nas questões estruturais; ou na linha do vice-versa, continuariam
a afirmar que a função das organizações caritativas da Igreja (eclesiais, da Igreja “oficial”) são
assistenciais, colocando em segundo plano e como residuais a dimensão
transformadora/libertadora.
Nós, por meio das argumentações e análises deste projeto de pesquisa, enxergamos o
apelo original do “amor ao próximo” nessas orientações (doutrinas ou ensinamentos sociais) e
que ele – o mandamento do amor ou caridade revelado por Jesus Cristo em sua dimensão
original - manifesta-se concretamente em nossa sociedade de direitos mediante uma rede
social na qual estejam presentes de modo articulado, integrado e complementar práticas
assistenciais, promocionais e libertadoras/transformadoras.
215
Outro exemplo que demonstram tensões e ambigüidades refere-se ao seguinte fato.
Por um lado, como vimos anteriormente235, no tópico denominado “O perfil específico da
atividade caritativa da Igreja” de sua carta encíclica Deus é amor, o papa Bento XVI (2006)
indica a assistência às necessidades imediatas como elemento constitutivo das atividades e
organizações caritativas da Igreja (eclesiais) – “oficiais” da Igreja - e que essas atividades e
organizações não devem ter vínculos partidários ou ideológicos; como exemplo dessas
organizações caritativas “oficiais” da Igreja (eclesial) é indicada pelo papa a Cáritas
(diocesana, nacional e internacional) (Cf. BENTO XVI, 2006, p. 41). Por outro, entretanto,
como também já destacado em momento anterior236, segundo o estudo de André Ricardo de
Souza (2007), a própria organização “assistencial” da Igreja Católica denominada Cáritas
Brasileira, ao avaliar sua trajetória, acabou por adjetivar a caridade por ela realizada em três
modelos distinto de intervenção frente ao problema da carência alheia, quais sejam, a caridade
assistencial, a caridade promocional (modelo promocional de caridade) e caridade libertadora.
Ora, tais exemplos além de mostrar tensões e ambigüidades – algumas delas decorrem
da dificuldade de aproximação de palavras e lógicas construídas em momentos e contextos
históricos diversos ou direcionadas a diferentes públicos; outras decorrem de interesses e
interpretações ideológicas distintas –, também indicam a fluidez e a busca de articulação entre
lógicas, dimensões e modelos de fazer “caridade” em uma sociedade de direitos e, assim, nos
ajudam a compreender o panorama do ativismo no setor social, especialmente o que leva
umas entidades com vinculação religiosa (bastante influenciada por motivações ético-
religiosas em sua constituição e gestão) a despertarem para a lógica dos direitos (da promoção
humana cidadã), outras a despertarem para a dimensão estrutural dos problemas sócio-
econômicos (libertação/transformação da sociedade), e algumas a manterem seu foco na
assistência.
2.2. A Ética Católica e o Espírito do Ativismo Social237
Segundo Michel Löwy (2000), no provocativo texto “A ética católica e o espírito do
capitalismo: o capítulo da sociologia da religião de Max Weber que não foi escrito”, de sua 235 Trata-se do subitem denominado “Caridade, assistência, assistência social, assistencialismo e cidadania...”; mais especificamente, do trecho no qual indicamos circunstâncias envolvendo a Igreja Católica que levam a uma equivocada associação entre a caridade e o assistencialismo. 236 Trata-se do subitem denominado “A fluidez das lógicas do terceiro setor em um sociedade de direitos: assistência, promoção e transformação”. 237 Como este subitem contém vários grifos, aproveitamos para reafirmar que em todas as citações que contém grifos, eles o são das fontes ou dos autores citados. Desta forma, pouquíssimos grifos são nossos nesta dissertação.
216
obra A guerra dos deuses, Max Weber (2004) explicou em sua Ética238 nem tanto um fator
causal determinante do desenvolvimento econômico e sim um relacionamento de afinidade
eletiva [Wahlverwandtschaft] – um relacionamento de atração mútua e mútuo reforço, que em
certas circunstâncias leva a uma simbiose cultural – entre certas formas religiosas e o estilo de
vida capitalista (Cf. LÖWY, 2000, p. 34-35). Para Weber, interpretado por Raymond Aron
(2003), a derivação psicológica de uma certa teologia das seitas calvinistas – procura no
mundo de sinais (êxito econômico) de sua escolha para a salvação e dedicação do indivíduo
ao trabalho para vencer a angústia provocada pela incerteza da salvação - favorece o
individualismo (Cf. ARON, 2003, p. 784 e 786):
Cada um de nós está só diante de Deus. O sentido da comunhão com o próximo e do dever com relação aos outros se enfraquece. O trabalho racional, regular, constante, termina sendo interpretado como a obediência a um mandamento divino. Opera-se além disso uma surpreendente convergência entre certas exigências da lógica teológica e calvinista e determinadas exigências da lógica capitalista. A ética protestante convida o crente a desconfiar dos bens deste mundo e a adotar um comportamento ascético. Ora, trabalhar racionalmente tendo em vista o lucro, e não gastá-lo, é por excelência uma conduta necessária ao desenvolvimento do capitalismo, sinônimo do reinvestimento contínuo do lucro não-consumido. É aí que aparece, com a máxima clareza, a afinidade espiritual entre uma atitude protestante e a atitude capitalista (Ibid., p. 786).
Aqui, ao buscarmos – estes são nossos objeto e hipótese principais – um
relacionamento de afinidade eletiva entre a ética católica – uma concepção de vida pautada na
pessoalidade das relações e na comunhão e fraternidade entre os indivíduos, motivadas pela
caridade e pela solidariedade – e o ativismo no setor social (no terceiro setor) -,
caminharemos no sentido de uma inversão da afinidade eletiva entre a ética protestante
(algumas de suas formas) e o espírito do capitalismo, em função da existência de uma espécie
de afinidade negativa entre a ética católica e o capitalismo (Cf. LÖWY, 2000, p. 40). Daí
denota-se também uma afinidade eletiva entre a ética católica e o ativismo no setor social,
uma vez que por meio da prática e/ou fomento de ações caritativas e “sociais” a Igreja
objetiva corrigir os aspectos mais negativos do capitalismo (Cf. Ibid., p.41)
As proposições de Löwy (2000), seus argumentos e nossos comentários encontram-se
detalhadas no subitem denominado “As revoluções sociais, o estado democrático de direito e
os processo de exclusão e inclusão sociais...”, ao qual remetemos o leitor.
238 Trata-se da obra de Max Weber A ética protestante e o “espírito” do capitalismo, especificada na “Bibliografia”.
217
Inicialmente, esclarecemos que a divisão e distinção em duas proposições decorre
mais da nossa iniciativa do que da intenção do autor, inclusive porque Michael Löwy (2000)
em sua obra objetiva verificar “até que ponto a investigação da histórica confirma ou nega
essa – bastante implícita – hipótese weberiana...” (Ibid., p. 41), no sentido de que “haveria
assim, entre ética católica e capitalismo, uma espécie de afinidade negativa...” (Ibid., p. 40).
Observe-se, ainda, conforme já explicitado239, que Löwy também objetiva240 em seu texto
relacionar a afinidade negativa da ética católica com o capitalismo (o ethos católico
anticapitalista) ao nascimento da teologia da libertação: “podemos demonstrar facilmente que
o mesmo tipo de anticapitalismo religioso inspirou o envolvimento dos católicos com a
emancipação social dos pobres”. E note-se, que a aproximação entre ethos anticapitalista
católico e teologia da libertação (a emancipação social dos pobres na América Latina) sob a
ótica de muitos, inclusive do autor, acaba envolvendo um caráter político revolucionário e
uma espécie de afinidade com o marxismo e com o “socialismo real”.
Como existe um enraizamento entre a primeira proposição e a segunda – esta última,
que é a própria denominação deste subitem, referencia nossa dissertação -, antes de
detalharmos nosso referencial, passaremos a contextualizar a abordagem das proposições – ou
da proposição – nos textos de Max Weber, conforme indicado por Löwy (2000).
Reafirmando241 o já exposto, embora Löwy (2000) relacione suas proposições à
estrutura da obra A ética protestante e o “espírito” do capitalismo, ele é explícito ao afirmar
que:
Paradoxalmente, A ética é um dos textos de Weber que fala muito pouco sobre a questão. Embora o primeiro capítulo trate extensivamente das diferenças entre o desenvolvimento econômico de áreas predominantemente católicas e de áreas principalmente protestantes na Alemanha, Weber não se esforça muito para examinar os obstáculos impostos ao crescimento do capitalismo pela cultura católica” (LÖWY, 2000, p. 36).
239 Remetemos o leitor ao subitem desta dissertação denominado “Dos profetas sociais à teologia da libertação”, especialmente em sua parte final, onde relacionamos a teologia da libertação com as proposições – ou melhor, a proposição - de Löwy (2000). 240 Na própria “Introdução”, Michael Löwy (2000) evidencia este objetivo. A seguir transcrevemos o trecho pertinente que, inclusive, destaca a não vinculação religiosa do autor: “Nascido e criado no Brasil, em uma família de imigrantes judeus política e intelectualmente ligados à tradição marxista, sinto, ao mesmo tempo, uma certa intimidade (como latino-americano) com o objeto de estudo e um distância dele (como pessoa sem fé). Não tenho intenção de negar minha simpatia ética e política por aqueles cristãos que apostaram tudo na luta pela auto-emancipação do pobres na América Latina; mas espero que a leitura deste livro possa trazer benefícios também para aqueles que não compartilham de meus valores e escolhas (LÖWY, 2000, p. 10) 241 Esta colocação inicial consta em nota de rodapé do subitem denominado “As revoluções sociais, o estado democrático de direito e os processos de exclusão e inclusão sociais...”
218
Porém, o autor noticia trechos e debates que indicam um “subtexto” na estrutura da
referida obra, como também são por ele indicados vários outros textos de Weber nos quais a
questão está mais explicitada. Abaixo, transcrevemos alguns deles, inclusive que destacam a
racionalidade da ética religiosa e que relacionam a racionalidade instrumental à economia e a
racionalidade substantiva à ética religiosa, situações essas que muito nos interessem neste
estudo242:
Só alguns anos mais tarde, no “Zwischenbetrachtung” (1915-16), é que descobrimos algumas hipóteses explicativas – aliás, muito interessantes. A princípio Weber não trata especificamente do catolicismo, e sim da tensão geral entre a ética soteriológica da fraternidade e os valores do mundo: uma cisão irreconciliável [unversöhlicher Zwiespalt] que em nenhum lugar é tão visível quanto na esfera econômica, pela qual a religiosidade que redime sublimada não combina com a economia racionalizada, baseada no dinheiro, no mercado, na competição e no cálculo abstrato e impessoal.... (...) De uma maneira bastante interessante, Weber não apresenta a ética religiosa como irracional, em oposição ao sistema econômico racional (capitalista). Ao contrário, ele descreve a ambos como dois tipos diferentes de racionalidade, em termos (“formal e substantiva”) que não estão muito distantes daqueles utilizados posteriormente pela Escola de Frankfurt(“instrumental e substantiva”). O Exemplo principal, mencionado no “Zwischenbetrachtung” – desta desconfiança que a religião tem do surgimento de forças econômicas impessoais, necessariamente hostis à ética da fraternidade [brüderlichkeitsfeindliche ökonomischen Mächte] é a Igreja Católioca... (...) A questão é tratada uma vez mais – e a análise aprofundada – em Economia e sociedade. Desta feita Weber discute diretamente a relação entre ética católica e o capitalismo. Referindo-se à longa e obstinada luta da Igreja Católica contra as taxas de juros, ele fala de uma “luta de princípios entre a racionalização ética e econômica da economia”... (Ibid., p. 37-38)
E continua o autor, indicado outro texto:
Em sua Economic History, Weber dá forte ênfase à hostilidade moral da Igreja com relação à lógica abstrata e reificada do sistema capitalista. Referindo-se ao paradoxo de que o capitalismo surgiu no Ocidente, isto é, em uma parte do mundo onde a ideologia dominante tinha “uma teoria econômica totalmente hostil ao capital” [durchhaus kapitalfeindliche Wirstschaftstheory], ele acrescentou o seguinte comentário: ‘O espírito da ética econômica eclesiástica pode ser resumido no juízo – provavelmente oriundo do Arianismo – que faz do comerciante: homo mercator vix aut numquam potest Deo placere... A profunda aversão [Abneigung] da ética católica e, depois dela, da ética luterana, a qualquer iniciativa capitalista é essencialmente baseada no medo da natureza impessoal das relações no interior de uma economia capitalista. Essa impessoalidade é a razão pela qual determinadas relações humanas são arrancadas da Igreja e de sua influência, e porque passa a ser impossível para ela penetrá-las ou dar-lhes forma de um maneira ética’ (Ibid., p. 39-40).
242 Tratamos explicitamente desta questão especialmente no subitem denominado “Religião, ética e condução de vida: uma escolha racional”.
219
Passemos, agora, a segunda proposição, ao nosso principal referencial teórico
fornecido por Löwy (2000). Segundo o autor, em função de acomodações e adaptação
“realistas” das instituições católicas ao poderio do sistema capitalista e diante de um perigo
maior – o movimento trabalhistas socialista – a Igreja não achou possível ou desejável abolir
o capitalismo, embora persista e esteja profundamente enraizada na cultura católica a aversão
ética (afinidade negativa) ao capitalismo (Cf. Ibid., p. 41): “Em geral, podemos dizer que a
Igreja nunca achou que seria possível ou desejável abolir o capitalismo: seu objetivo sempre
foi corrigir seus aspectos mais negativos através das ações caritativas e ‘sociais’ do
cristianismo” (Ibid., p. 41).
Para compreendê-la de modo mais preciso, inclusive evitando uma tendência
equivocada de avaliar que a afinidade eletiva entre ética católica e ativismo no setor social
seria tão somente um resíduo da aversão entre a ética católica e o capitalismo, remetemos o
leitor ao subitem já indicado243. Ali, Paul Singer (1998) propõe a reelaboração de alguns
conceitos relacionados ao capitalismo e ao socialismo, que diferenciam a formação social do
modo de produção e que diferenciam as revoluções sociais das revoluções políticas, cuja
dimensão e utilidade podem ser exemplificadas e sintetizada por estes posicionamentos do
autor: “o fracasso do ‘socialismo realmente existente’ revelou que o socialismo sem aspas terá
de ser construído pela livre iniciativa dos trabalhadores em competição e contraposição ao
modo de produção capitalista dentro da mesma formação social” (SINGER, 1998, p. 9);
“...mesmo no capitalismo os implantes socialistas desempenham um papel positivo ao
difundir valores essenciais ao convívio em sociedade” (Ibid., p. 131). Ali, também, Clodovis
Boff e Jorge Pixley (1986) descrevem244 a tensão entre a mensagem evangélica original e a
preservação institucional da Igreja.
Desta forma, essa segunda proposição envolve por um lado adaptações à formação
social capitalista – como decorrência da permanente tensão entre a mensagem original do
amor e fraternidade universais e o impulso da preservação institucional - e por outros os
respectivos implantes socialistas para modificar e/ou compensar as tendências do capitalismo
à exclusão social, concentração de renda e destruição criadora.
Ora, conforme já vimos ou veremos abaixo, a doutrina social da Igreja Católica:
questiona o “socialismo real” e não os implantes socialistas; reconhece a importância e a
necessidade social da atividade econômica, o que não significa uma afinidade eletiva como o
243 Trata-se do subitem denominado “As revoluções sociais, o estado democrático de direito e os processos de exclusão e inclusão sociais...” 244 Trata-se de uma nota de rodapé que deve ser apreciada em conjunto com outros argumentos dos autores – Boff e Pixley (1986) – desenvolvidos no subitem “Dos profetas sociais à teologia da libertação”.
220
capitalismo – muito pelo contrário; destaca o papel dos corpos intermediários – das
organizações sem fins lucrativos ou daquelas que integram uma área intermediária mais
ampla e complexa do que o denominado terceiro setor245 – para a integrar a gratuidade e a
solidariedade nas atividades econômicas, para criar a sociabilidade e para combater e/ou
compensar as tendências nocivas do capitalismo. Disto, também decorre que a doutrina social
incorpora às “ações caritativas e ‘sociais’ do cristianismo” – essa expressão é de Löwy (2000)
– a emancipação social dos pobres (a teologia da libertação), decorrente da aversão ética do
catolicismo ao capitalismo, ou seja, no “espírito” do ativismo no setor social da ética católica
encontram-se e entrecruzam-se a assistência, a promoção humana cidadã e a
libertação/transformação.
Partindo do pressuposto de que “os bens, ainda que legitimamente possuídos, mantêm
sempre uma destinação universal” (PONTIFÍCIO, 2005, p. 191) e que, desta forma, o ser
humano em suas atividades econômicas e propriedades deve se comportar como um
administrador do que Deus lhe confiou, partilhando as riquezas, a Igreja indica a caridade, a
solidariedade e a justiça como valores norteadores da eficiência econômica (Cf. Ibid., p. 191
ss):
A dimensão moral da economia faz tomar como finalidades indivisíveis, nunca separadas e alternativas, a eficiência econômica e a promoção de um desenvolvimento solidário da humanidade... A expansão da riqueza, visível na disponibilidade dos bens e dos serviços, e a exigência moral de uma difusão eqüitativa destes últimos devem estimular o homem e a sociedade como um todo a praticar a virtude essencial da solidariedade, para combater, no espírito da justiça e da caridade, onde quer que se revele a sua presença, as “estruturas de pecado” que geram e mantém pobreza, subdesenvolvimento e degradação (Ibid., p. 193-194)
Verificando sua doutrina, percebe-se com clareza a religião católica, no aspecto ético,
como uma religião de fraternidade – expressão essa usada por Weber -, pois tem como
princípio e valor fundamental a caridade ou amor universal, no qual o próximo – para além do
parente, do amigo ou do vizinho – é todo ser humano, inclusive o inimigo246. E esta dimensão
de comunhão fraternal deve também estar presente na atividade econômica: “Vivida
moralmente, a economia é pois prestação de um serviço recíproco, mediante a produção dos
bens e serviços úteis ao crescimento de cada um, e torna-se oportunidade para cada homem de
245 Sobre esta nova e complexa realidade mais ampla do que um “terceiro setor”, remetemos o leitor à argumentação do papa Bento XVI (2009) descrita em uma nota de rodapé do subitem denominado “A parte ‘lucrativa’ do terceiro setor...”. 246 Remetemos o leitor ao subitem denominado “Religião, ética e condução de vida: uma escolha racional”.
221
viver a solidariedade e a vocação à ‘comunhão com os outros homens para a qual Deus o
criou’” (Ibid., 333, p. 194).
No subitem denominado “A parte ‘lucrativa’ do terceiro setor...”, ao qual remetemos o
leitor, destacamos o ensinamento social referente ao princípio da gratuidade na atividade
econômica – frisamos que a atividade e o sistema econômico envolvem três sujeitos:
mercado, Estado e sociedade civil -, especialmente utilizando os fundamentos do papa Bento
XVI (2009) aqui reafirmados de modo sintético:
Hoje podemos dizer que a vida econômica deve ser entendida como uma realidade com várias dimensões: em todas deve estar presente, embora em medida diversa e com modalidades específicas, o aspecto da reciprocidade fraterna. Na época da globalização, a atividade econômica não pode prescindir da gratuidade, que difunde e alimenta a solidariedade e a responsabilidade pela justiça e o bem comum, em seus diversos sujeitos e atores (BENTO XVI, 2009, p. 44)
Desta forma, embora a Igreja Católica – como uma instituição poderosa vivendo em
um mundo caracterizado por uma formação social capitalista – tenha encontrado maneiras de
adaptação a essa formação social na qual prevalece o modo de produção capitalistas – nessa
formação existem outros modos de produção247, tais como: produção pública, doméstica,
cooperativa etc - , a ética católica, pautada pela universalidade do princípio do amor, tem
muito pouca ou nenhuma afinidade com o capitalismo – “afinidade negativa”, segundo Löwy.
Uma evidência desta pouca ou nenhuma afinidade também foi exposta no subitem
anteriormente indicado248, no sentido de que o papa em sua recente carta encíclica Caritas in
veritate explicita de forma categórica a tendência e necessidade do espírito empresarial
assumir um significado polivalente, inclusive em função de motivações metaeconômicas,
donde decorre um também explícito questionamento sobre a tradicional figura do “empresário
privado tipo capitalista” – esta expressão é utilizada pelo papa Bento XVI (2009).
Já no Compêndio da doutrina social da igreja – seu “Índice analítico” faz apenas duas
referências à palavra “capitalismo”249 – essa situação – pouca ou nenhuma afinidade –
247 Remetemos o leitor aos ensinamentos de Paul Singer (1998) explicitados no subitem denominado “As revoluções sociais, o estado democrático de direito e os processos de exclusão e inclusão sociais...” 248 Trata-se do subitem denominado “A parte ‘lucrativa’ do terceiro setor...” 249 Uma das referências, que integra o “Capítulo VII – A vida econômica” do Compêndio consta a seguir no texto da dissertação. Já a outra referência sobre o “capitalismo”, que integra o “Capítulo VI – O trabalho humano” do Compêndio, é a seguir transcrita: “O curso da história está marcado por profundas transformações e por exaltantes conquistas do trabalho, mas também pela exploração de tantos trabalhadores e pelas ofensas à sua dignidade. A revolução industrial lançou à Igreja um grande desafio, ao qual o Magistério social respondeu com a força da profecia, afirmando princípios de valor universal e de perene atualidade, em favor do homem que trabalha e de seus direitos. Destinatária da mensagem da Igreja fora por séculos uma sociedade de tipo agrário, caracterizada por ritmos regulares e cíclicos; agora o Evangelho deveria ser anunciado e vivido num novo aerópago, no tumulto dos
222
também fica evidente, seja ao se colocar a palavra “capitalismo” entre aspas, seja ao sugerir o
uso de expressões substitutivas e, ainda, seja ao enfatizar seus aspectos negativos quando esse
sistema se afasta dos valores cristãos, da ética católica:
Na perspectiva do desenvolvimento integral e solidário, pode-se dar uma justa apreciação à avaliação moral que a doutrina social oferece sobre a economia de mercado ou, simplesmente, economia livre: “Se por ‘capitalismo’ se indica um sistema econômico que reconhece o papel fundamental e positivo da empresa, do mercado, da propriedade privada e da conseqüente responsabilidade pelos meios de produção, da livre criatividade humana no setor da economia, a resposta é certamente positiva, embora talvez fosse mais apropriado falar de ‘economia de empresa’, ou de ‘economia de mercado’, ou simplesmente de ‘economia livre’. Mas se por ‘capitalismo’ se entende um sistema onde a liberdade no setor da economia não está enquadrada num sólido contexto jurídico que a coloque ao serviço da liberdade humana integral e a considere como uma particular dimensão desta liberdade, cujo centro seja ético e religioso, então a resposta é sem dúvida negativa”. Assim se define a perspectiva cristã acerca das condições sociais e políticas da atividade econômica: não só as suas regras, mas a sua qualidade moral e o seu significado250 (Ibid., p. 195)
Agora, objetivando comprovar a afirmação de Herman Vos e Jacques Vervier (1995)
noticiada no subitem anterior251, no sentido de que “o ensinamento social da Igreja condena
com igual vigor – mas não com os mesmo argumentos – o capitalismo e o comunismo...”
(VOS e VERVIER, 1995, 69), transcrevemos a seguir ensinamento extraído do Catecismo da
igreja católica, que também subsidia a constatação que a doutrina da Igreja Católica em certa
– ou em grande – medida repudia a “socialismo real”, e não os implantes socialistas na
formação social capitalista, quais sejam, sufrágio universal; estado do bem estar social,
representado pelo pleno emprego e pelos serviços sociais públicos, executados por unidades
públicas ou por organizações do terceiro setor; sindicalismo, cooperativismo; participação dos
acontecimentos sociais de uma sociedade mais dinâmica, levando em conta a complexidade dos novos fenômenos e das impensáveis transformações possibilitadas pela técnica. No centro da solicitude pastoral da Igreja impunha-se mais e mais urgentemente a questão operária, ou seja, o problema da exploração dos trabalhadores, conseqüência da nova organização industrial do trabalho, de matriz capitalista, e o problema, não menos grave, de instrumentalização ideológica, socialista e comunista, das justas reivindicações do mundo do trabalho. No seio deste horizonte histórico se colocam as reflexões e as advertências da Encíclica ‘Rerum novarum’ de Leão XIII (PONTIFÍCIO, 2005, p. 160). 250 Para melhor compreensão da questão, transcrevemos a seguir uma constatação do papa Bento XVI explicitada em sua recente carta encíclica: “Desde sempre a Igreja defende que não se deve considerar o agir econômico como antissocial. (...) É verdade que o mercado pode ser orientado de modo negativo, não porque isso esteja em sua natureza, mas porque uma certa ideologia pode dirigi-lo em tal sentido. Não se deve esquecer que o mercado, em estado puro, não existe; mas toma forma a partir das configurações culturais que o especificam e orientam. Com efeito, a economia e as finanças, enquanto instrumentos, podem ser mal utilizados se quem as gere tiver apenas referimentos egoístas (BENTO XVI, 2009, p. 42). 251 Este subitem é denominado “Caridade e solidariedade na doutrina social da igreja e a tensão entre a mensagem original e a preservação institucional”.
223
empregados na gestão das empresas; bancos do povo ou “crédito solidário; economia
solidária; iniciativas locais de combate ao desemprego, a exclusão e à destruição criadora252:
A Igreja tem rejeitado as ideologias totalitárias e atéias associadas, nos tempos modernos, ao “comunismo” ou ao “socialismo”. Além disso, na prática do “capitalismo”, ela recusou o individualismo e o primado absoluto da lei do mercado sobre o trabalho humano. A regulamentação da economia exclusivamente por meio do planejamento centralizado perverte na base os vínculos sociais; sua regulamentação unicamente pela lei do mercado vai contra a justiça social, “pois há muitas necessidades humanas que não podem ser atendidas pelo mercado”. É preciso preconizar uma regulamentação racional do mercado e das iniciativas econômicas, de acordo com uma justa hierarquia de valores e em vista do bem comum (CATECISMO, 1999, p. 626-627).
Encerrando os paralelos – na verdade seus fundamentos – entre as proposições
suscitadas por Löwy (2000) e a doutrina social, retornamos à afinidade eletiva entre a ética
católica e o ativismo no setor social (no terceiro setor) manifestada pela prática e/ou fomento
de ações concretas frente aos problemas sócio-econômicos, especialmente executadas por
organizações sem fins lucrativos de interesse social (por ONGs) e que envolvem as lógicas e
dimensões assistencial, promocional e transformadora. A diretriz aos fiéis leigos a seguir
transcrita, somada à inúmeros outros aspectos desenvolvidos durante todo o trabalho, são
exemplos dessa afinidade:
A presença do fiel leigo no campo social é caracterizada pelo serviço, sinal e expressão da caridade que se manifesta na vida familiar, cultural, profissional, econômica, política, segundo perfis específicos: obtemperando às diversas exigências de seu particular âmbito de atuação, os fiéis leigos exprimem a verdade de sua fé e, ao mesmo tempo, a verdade da doutrina social da Igreja, que encontra a sua plena realização quando é vivida em termos concretos para a solução dos problemas sociais. A mesma credibilidade da doutrina social reside de fato no testemunho das obras, antes mesmo que na sua coerência e lógica interna (Ibid., 551, p. 305-306).
Resgatando o exemplo da prática do princípio ético do amor noticiado por Comparato
(2006), que envolve a “instituição de uma entidade beneficente, com todas as exigências
252 Indicando que o “Capítulo VI – O trabalho humano” do Compêndio é um “celeiro” de exemplos de implantes socialistas fomentados pela Igreja Católica, transcrevemos a título exemplificativo o seguinte trecho: “A ‘Rerum novarum’ é antes de tudo uma vívida defesa da inalienável dignidade dos trabalhadores,à qual anexa a importância do direito de propriedade, dos princípio de colaboração entre as classes, dos direitos dos fracos e dos pobres, das obrigações dos trabalhadores e empregados, do direito de associação. As orientações ideais expressas na encíclica reforçam o empenho de animação cristã da vida social, que se manifestou no nascimento e na consolidação de numerosas iniciativas de alto caráter civil: uniões e centros de estudos sociais, associações, sociedades operárias, sindicatos, cooperativas, bancos rurais, seguros sociais, obras de assistência. Tudo isto deu um notável impulso à legislação do trabalho para a proteção dos operários, sobretudo das crianças e das mulheres; à instrução e à melhora dos salários e da higiene. ...Desde a ‘Rerum Novarum’, a Igreja jamais deixou de considerar os problemas do trabalho no contexto de um questão social que foi progressivamente assumindo dimensões mundiais” (PONTIFÍCIO, 2005, p. 160-161)
224
burocráticas que ela necessariamente comporta; isto é, uma atividade praticamente despida de
sentimentos” (COMPARATO, 2006, p. 532), finalizamos com os seguintes posicionamentos
da doutrina social relativos ao terceiro setor253, mais especificamente sobre o papel dos corpos
intermediários identificados como as organizações privadas sem fins lucrativos – é desta
forma que o Compêndio da doutrina social da igreja trata as entidades do terceiro setor – ,
nos quais são destacados aspectos que envolvem a própria definição desse setor, o espaço que
ocupa, assim como as tensões e convergências entre eficiência produtiva e solidariedade:
O sistema econômico-social deve ser caracterizado pela co-presença de ação pública e privada, incluída a ação privada sem finalidade de lucro. Configura-se de tal modo uma pluralidade de centros decisórios e de lógicas de ação. Há algumas categorias de bens, coletivos e de uso comum, cuja utilização não pode depender dos mecanismos do mercado e não é nem mesmo de exclusiva competência do Estado. O dever do Estado, em relação a estes bens, é antes o de valorizar todas as iniciativas sociais e econômicas que têm efeitos públicos, promovidos pelas formações intermédias. A sociedade civil, organizada nos seus corpos intermédios, é capaz de contribuir para a consecução do bem comum pondo-se em uma relação de colaboração e de eficaz complementaridade em relação ao Estado e ao mercado, favorecendo assim o desenvolvimento de uma oportuna democracia econômica. Em um semelhante contexto, a intervenção do Estado deve ser caracterizada pelo exercício de uma verdadeira solidariedade, que como tal nunca deve ser separada da subsidiariedade. As organizações privadas sem fins lucrativos têm um espaço específico em âmbito econômico: nos serviços sociais, na instrução, na saúde, na cultura. Caracteriza tais organizações a corajosa tentativa de unir harmoniosamente eficiência produtiva e solidariedade. Constituem-se, geralmente, em base a um pacto associativo e são expressão de uma tensão ideal comum aos sujeitos que livremente decidem aderir às mesmas. O Estado é chamado a respeitar a natureza destas organizações e a valorizar as características, dando concreta atuação ao princípio de subsidiariedade, que postula precisamente um respeito e uma promoção da dignidade e da autônoma responsabilidade do sujeito “subsidiado” (PONTIFÍCIO, 2005, p. 205).
Ante algumas considerações, concluímos este subitem com mais uma pergunta:
Considerando que o ensinamento social fundamenta a afinidade negativa da ética
católica com o capitalismo e a afinidade eletiva da ética católica com o ativismo no
setor social (terceiro setor);
Considerando que a doutrina social legitima e fomenta a atuação dos fiéis leigos na
dimensão estrutural (política) dos problemas sócio-econômicos;
253 Vários outros posicionamentos sobre o terceiro setor já foram destacados, especialmente os extraídos da recente carta encíclica Caritas in Veritate do papa Bento XVI (2009).
225
Considerando que o ensinamento social prevê a articulação entre dimensões
assistencial, promocional e libertadora/transformadora;
Considerando que a doutrina explicitamente indica como função do clero iluminar a
consciência dos fiéis para que esses atuem no campo social, econômico e político,
inclusive questionando e combatendo os sistemas e estruturas injustos;
Considerando que o ensinamento social reconhece que os corpos intermediários (as
organizações privadas sem fins lucrativos que compõem o terceiro setor) são eficientes
instrumento para integrar a gratuidade e a solidariedade nas atividades econômicas,
para criar a sociabilidade e para combater e/ou compensar (efetivar implantes
socialistas no formação social capitalista) a dinâmica de exclusão, destruição e
concentração do capitalismo;
Por que não existe clareza entre os fiéis leigos – a quem, movidos por valores ético-
religiosos, prioritariamente compete constituir e gerir ONGs – sobre a
complementaridade e integração entre assistência, promoção humana cidadã e
transformação das estruturas injustas no enfrentamento do problemas sócio-
econômicos?
Essa falta de clareza é fruto do pouco conhecimento da doutrina social por parte dos
membros do clero que, assim, não divulgam e nem suscitam o comprometimento dos
cidadãos leigos a uma atuação que além de obras de misericórdia (assistência que
responde às necessidades do aqui e agora), também envolva a organização e a
estruturação da sociedade (remoção ou modificação de fatores sócio-econômicos que
ocasionam sistemas injustos)? Ou os membros do clero conhecem, porém não
priorizam a divulgação da dimensão cidadã e transformadora da doutrina social? Ou
os fiéis é que não escutam ou têm dificuldade em aderir aos ensinamentos sociais em
suas dimensões mais estruturais e transformadoras? E por aí vamos...
226
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O caminho percorrido foi árduo e isto especialmente pela configuração interdisciplinar
do estudo, que envolveu várias áreas do conhecimento: administração, direito, economia,
história, sociologia, serviço social, antropologia, filosofia, ética, teologia, ciências da religião
etc. Porém, como já dissemos na “Introdução”, a interdisciplinaridade possivelmente é a
característica mais marcante desta dissertação. Como exemplo, indicando sua denominação
Terceiro Setor e Religião: investigando afinidades e relacionando catolicismo, ética, direito,
caridade e cidadania, afirmamos que todas as palavras que a compõem foram esmiuçadas e
relacionadas com base em argumentos de vários autores extraídos de seus livros ou estudos
consolidados. Ou seja, de modo geral cumprimos o prometido no título desta dissertação.
Desta forma, se foi árduo o desenvolvimento deste projeto de pesquisa, inclusive em
função da manutenção de uma coerência argumentativa envolvendo vários campos do
conhecimento, pela lógica não menos árduo seria tecer estas “Considerações finais”.
Entretanto, e isto com a tranqüilidade de que nosso estudo objetiva fornecer menos
conclusões e mais reflexões para “fraturar” argumentações e posicionamentos superficiais,
ideológicos254 e pouco observados na realidade concreta de nosso país, nossa tarefa fica mais
simples, na medida em que destacamos três aspectos centrais que demarcam a dissertação.
Mais especificamente, os autores, os estudos, os argumentos e os dados avaliados abrem
nossos olhos – como óculos corretivos da miopia – para enxergamos as “coisas” de modo
menos polarizado e de forma mais fluida, como a realidade exige para a construção de um
sociedade mais humana, harmônica, justa e solidária. E as “coisas”, como já destacado no
corpo da dissertação, referem-se:
•••• À busca de um visão menos ideológica no tocante ao relacionamento entre Estado
e ONGs na implementação dos direitos sociais, que possibilite uma melhor
compreensão sobre o dever do Estado e a atuação complementar e integrada das
ONGs e, assim, que contribua para a superação de alguns alegados conflitos
intransponíveis motivados pela embate entre discursos neoliberais e discursos
socialistas ou representativos do dirigismo capitalista.
254 Utilizamos a palavra “ideologia” para enfatizar o vínculo entre os próprios interesses e compromissos do grupo social e o seu respectivo sistema de idéias.
227
•••• À busca de uma visão menos ideológica no tocante às dimensões de atuação no
setor social, que possibilite uma melhor compreensão sobre a complementaridade e
articulação entre as lógicas e formas de agir no terceiro setor
(caritativa/assistencial, cidadã/promocional, libertadora/transformadora), entre suas
racionalidades (substantiva determinada por valores e instrumental determinada
por fins) e entre seus valores, suas éticas (de convicção ou mentalidade e de
responsabilidade) e, assim, que contribua para a superação de algumas alegadas
oposições intransponíveis entre a lógica caritativa tradicional e a nova lógica
cidadã.
•••• À busca de um visão menos ideológica no tocante aos discursos e à forma de fazer
caridade da Igreja Católica - nosso especial objeto de interesse no tocante aos
valores ético-religiosos -, que possibilite uma melhor compreensão sobre as
tensões entre o apelo e a força original do mandamento da caridade ou “amor ao
próximo” (da fraternidade universal) ensinada por Jesus Cristo e o impulso de
preservação institucional (estruturas de autoridade) da Igreja Católica e, assim, que
contribua para a superação de alguns embates entre os chamados segmentos
progressistas e conservadores relativos à forma de intervenção junto aos problemas
sócio-econômicos.
Das disposições de nossa Constituição Federal (CF) de 1988, denominada
“Constituição Cidadã”, depreende-se que, no plano de nosso sistema jurídico positivado, o
Brasil caracteriza-se como um Estado Democrático de Direito do bem-estar social, que prevê
a prestação de serviços sociais públicos – gratuitos e sob a responsabilidade do Estado – tanto
por unidades públicas quanto por unidades privadas. Em síntese nossa Constituição Federal
Cidadã:
•••• Consolidou nosso país como um Estado Democrático de Direito, indicando a
cidadania e a dignidade da pessoa como princípios fundamentais e criando um
sistema jurídico positivado adequado à conquista da cidadania plena;
•••• Reconheceu situações de exclusão, priorizando a adoção de medidas necessárias ao
enfrentamento dos problemas sociais, inclusive assegurando o amparo, proteção e
228
inclusão dos segmentos sociais desfavorecidos (em situação de vulnerabilidade e
risco pessoal e social);
•••• Colaborou para garantir – na verdade determinou – a elaboração de diversas leis –
legislação infraconstitucional - , que vieram atender as expectativas das demandas
de diversos segmentos sociais, dentre as quais: Lei Orgânica da Assistência Social
– LOAS, que fomenta a criação do Sistema Único de Assistência Social – SUAS;
Lei das Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB; legislação que
regulamenta do Sistema Único de Saúde – SUS; Estatuto da Criança e do
Adolescente – ECA; Estatuto do Idoso etc;
•••• Possibilitou a participação da sociedade civil – organizações sem fins lucrativos,
usuários, trabalhadores das respectivas áreas – no desenvolvimento – orientação e
controle – de políticas públicas por meio de Conselhos paritários em nível federal,
estadual e municipal (de assistência social, de educação, de saúde, da criança e do
adolescente, do idoso etc);
•••• Reconheceu o importante papel das organizações do terceiro setor no
desenvolvimento de políticas públicas e na implementação dos direitos sociais, que
devem atuar de forma complementar e integrada às iniciativas do poder público a
quem, diga-se, foi constitucionalmente determinada a competência, o dever e a
responsabilidade de disponibilizar à população os direitos sociais. Para tanto,
destaca-se, a Constituição Federal determinou a atuação complementar, inclusive
priorizando a celebração de acordos públicos com organizações do terceiro setor,
assim como dispôs sobre a liberdade de associação (artigo 5º, XVII a XXI, da CF)
e concedeu imunidade de tributos a determinadas instituições sem fins lucrativos
(artigo 150, VI, “c”, da CF: imunidade de impostos sobre o patrimônio, rendas e
serviços das instituições sem fins lucrativos de educação e assistência social –
também de saúde -, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei; artigo 195, §
7º, da CF: imunidade de contribuições para a seguridade social à entidades
beneficentes de assistência social que atendam as exigências estabelecidas em lei).
Sobre o último aspecto acima noticiado, ao transcrevermos na dissertação disposições
de nossa Constituição Cidadã que tratam da saúde, assistência social e educação,
229
demonstramos de forma clara o dever do Estado e a complementaridade das organizações sem
fins lucrativos na implementação dos direitos sociais. Fizemos isto, especialmente para
indicar que é ideológico o alegado conflito intransponível entre o dever do Estado e a atuação
das ONGs, que está presente no discurso dos que tratam Estado e ONGs como competidores e
não como colaboradores.
Aproveitamos o momento, também para reforçar a idéia de que um Estado Secular –
Estado separado da Igreja, por meio da secularização da lei e da normatividade jurídica geral
– não significa um Estado sem religião. Nossa Constituição Federal dispõe no rol dos direitos
individuais (artigo 5º, VI a VIII) sobre a inviolabilidade da liberdade de crença religiosa,
assegura a liberdade dos cultos religiosos, garante a proteção dos locais de culto e assegura a
assistência religiosa em locais de internação coletiva, assim como concede a imunidade de
impostos aos templos de qualquer culto (artigo 150, VI, “b”) (Cf. CONSTITUIÇÃO, 1988).
Observe-se, ainda, que a grande força simbólica da linguagem religiosa – como valor e
princípio orientador da conduta humana, inclusive na construção da esfera pública – pode ser
captada na expressa referência à proteção divina que consta no preâmbulo de nossa
Constituição Federal: “... promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO
DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL” (CONSTITUIÇÃO, 1988)
Também objetivamos destacar em nosso estudo a relação entre valores ético-religiosos
– mandamento do amor ou caridade e a justiça e sua face solidária – e o sistema jurídico
positivado – Estado Democrático de Direito cidadão.
Com fundamentos ofertados por Fábio Konder Comparato (2006) – o impulso do ser
humano pela imortalidade, que alimenta as religiões e que leva à busca da perfeição por
caminhos conduzidos pelos princípios éticos (Cf. COMPARATO, 2006, p. 693ss) – e com
base na observação da realidade – existência da exclusão, desigualdade, violência,
insegurança etc, mesmo em uma sociedade de direitos -, ressaltamos que em nossa
perspectiva a religião, seus princípios e valores são fatores motivadores e orientadores da
conduta humana, ainda hoje, imprescindíveis para a construção de uma sociedade que respeite
a dignidade humana.
Mais especificamente, segundo nosso ponto de vista, e o defendemos nesta
dissertação, não basta apenas a positivação dos direitos. A cidadania e a dignidade humana
pressupõem o efetivo exercício dos direitos. Assim, entendemos que as orientações ético-
religiosas – em especial o mandamento do amor ou da caridade – continuam, ainda hoje,
imprescindíveis tanto para o aperfeiçoamento e alargamento do sistema jurídico quanto para a
efetivação dos direitos humanos. Em outras palavras, deveres jurídicos não bastam por si só;
230
mais do que obrigações, sanções, sistemas e estruturas, entendemos que a atitude amorosa
(caridosa) do ser humano – são pessoas, motivadas por interesses e valores, que criam,
destroem, ampliam ou restringem direitos, inclusive possibilitando ou impedindo o exercício
de direitos de outrem – é o próprio fundamento e essência para a construção de uma sociedade
justa, livre e solidária.
Como dissemos acima, o jurista subsidia nossa perspectiva, quando trata da seguinte
indagação, segundo ele respondida de forma concordante pelas religiões monoteístas – indica
o judaísmo, o cristianismo e o islamismo – e pelo saber filosófico, e que parece ociosa para as
mentes modernas influenciadas pelo cientificismo (Cf. Ibid., p. 693): “Qual é, afinal, a
finalidade da vida? (...) Afinal, por que só nós, humanos, no imenso quadro da biosfera,
teríamos uma razão de viver? (Ibid., p. 693).
Associando a palavra vida à busca de perfeição e a palavra morte à degradação,
indicando que a vida humana é um perpétuo escolher e diferenciando o fim da vida orgânica
(a morte) da finalidade da vida (o objetivo de toda uma vida impulsionado pela busca
paradoxal da imortalidade inerente ao ser humano), o autor responde à indagação, no sentido
de que a finalidade da vida é a busca da felicidade, pois o que importa na vida não é só viver,
mas viver bem, donde se depreende que o sentido da vida humana é manifestamente ético (Cf.
Ibid. 693ss).
Colocando a questão sob a ótica cristã – nosso objeto de pesquisa está de certa forma
restringido por esse prisma – o ilustre jurista assim se manifesta:
De seu lado, o ensinamento evangélico a respeito é todo condensado em uma fórmula paradoxal, típica do pensamento semítico, repetida nos relatos de Mateus, Marcos, Lucas e João: “Quem ama a sua vida a perde, e quem odeia a sua vida neste mundo guarda-la-á para a vida eterna”. Ou seja, quem se apega a seus interesses egoístas, fazendo girar toda a vida sobre si próprio, não impedirá obviamente a morte física; mas quem despreza essa visão mesquinha e procura um vida superior, no amor a Deus e ao próximo, não conhecerá a degradação espiritual (Ibid., p. 694).
A essência da colocação acima, exposta sob a roupagem de uma sociedade de direito
secularizada – isto não nega a presença e a influência, ainda hoje, da linguagem e de valores
religiosos como impulsionadores da prática dos princípios éticos –, e no contexto do embate
entre o capitalismo – direcionado à realização do interesse próprio e imediato de cada
indivíduo, sem considerar o bem comum da coletividade – e a construção do sistema mundial
dos direitos humanos – direcionado pela igualdade fundamental dos seres humanos, com
preservação das legítimas diferenças biológicas e culturais – (Cf. Ibid., 698-699), é utilizada
231
por Comparato (2006) como conclusão de seu brilhante livro Ética: direito, moral e religião
no mundo moderno:
O processo evolutivo, como salientou Teilhard de Chardin, apresenta um sentido convergente, em razão do fenômeno de “elevação de consciência”. Ele nos permite reconhecer que a evolução vital é autocentrada na espécie humana e manifesta um caráter personalizante. O “estar-no-mundo” é a condição ontológica própria da pessoa; o que implica sua permanente abertura a tudo e a todos. Cada indivíduo, ou grupo social, se valoriza, pelo desenvolvimento contínuo de suas potencialidades, na medida em que se abre a todos os outros, neles reconhecendo o complemento necessário de si própria. O longo caminho da evolução histórica tende a nos conduzir, nessa perspectiva, à geração da humanidade-pessoa: a nossa espécie torna-se mais consciente de sua posição no mundo, e procura elevar-se indefinidamente rumo ao absoluto, em busca daquele ponto focal onde a mística religiosa sempre situou a divindade. Esta a verdadeira imortalidade do homem. Dignitas non moritur, segundo a expressão clássica: a dignidade da pessoa humana é imperecível. É ela que nos indica o caminho da plenitude de Vida, na Verdade, na Justiça e no Amor (COMPARATO, 2006, p. 699).
Como já exposto, esforçamo-nos na dissertação – e aí novamente aparece a
importância dos óculos corretivos da miopia ideológica – para enxergar a realidade – atual,
constituída por uma sociedade democrática de direitos, dentro de uma formação social
capitalista com implantes socialistas – com toda a sua fluidez. Paul Singer (1998) ajudou-nos,
por meio de sua reelaboração conceitual que diferencia o modo de produção capitalista e
socialista da formação social capitalista e socialista, que destaca a característica de
transformação sistêmica da revolução social, que diferencia as revoluções sociais capitalista e
socialista (processos de mudança) das revoluções políticas (designadas “burguesas” e
“proletárias, e delimitadas no tempo) e que, ainda, indica e analisa os implantes socialistas na
formação social capitalista (Cf. SINGER, 1998).
Desta forma e particularmente em nosso país, acreditamos que em um Estado
Democrático de Direito, que possui um sistema jurídico positivado adequado ao exercício da
cidadania, e que está inserido em uma formação social capitalista, o Bom Samaritano, neste
contexto, é todo ser humano que, orientado pelos valores ético-religiosos (verdade, amor ou
caridade e justiça e sua face solidária) – para uns mais éticos, para outros mais religiosos –
atua na dimensão assistencial – prestação de assistência em saúde, educação, assistência
social etc, que difere do assistencialismo -, atua na dimensão da promoção humana –
articulação e mobilização para o exercício de uma cidadania ativa - , e atua na dimensão da
libertação/transformação sistemática e estrutural da sociedade – implantação de instituições
anticapitalistas (socialistas), objetivando modificar ou ao menos compensar a tendência à
232
exclusão, à concentração e à destruição do capitalismo. Assim, entendemos que uma rede de
instituições de caridade adequada à atualidade – reportamos ao significado ético de caridade
ou amor, assim como a suas dimensões interpretadas pela organização “assistencial” da Igreja
católica denominada Cáritas (caridade assistência, caridade promoção e caridade
libertação/transformação) – é necessária ainda hoje para a implementação dos direitos sociais.
Porém, também temos convicção de que essa rede de organizações sem fins lucrativos de
interesse social – utilizamos esta expressão como sinônimo de uma rede de ONGs - deve ser
direcionada pela busca de uma articulação, compatibililização e complementaridade entre
suas dimensões assistencial, promocional e libertadora/transformadora, e isto para que o
“pobre” – na linguagem atual, o excluído, o sujeito de direitos em situação de vulnerabilidade
ou risco pessoal e social – seja atendido em suas necessidades e direitos (dimensão
assistencial da caridade), seja conscientizado de sua situação e de seus direitos (dimensão
promocional da caridade) e, assim, torne-se protagonista para modificar as estruturas
excludentes, concentradoras, destrutivas e injustas do capitalismo (dimensão
libertadora/transformadora da caridade).
Essas nossas percepções e argumentos – relevante influência de fatores religiosos no
terceiro setor; fluidez e busca de articulação entre lógicas e dimensões na rede social e ou
assistencial – são comprovados por vários estudos indicados e avaliados nesta dissertação.
Sobre a presença e influência da religião no terceiro setor, destacamos e avaliamos os
dados e informações indicados nos estudo As fundações privadas e as associações sem fins
lucrativos no Brasil: 2002, que teve uma nova versão referente ao ano de 2005, identificada
pela sigla FASFIL – um resumo de seus dados consta na “Introdução”; como também as
informações do estudo denominado Doações e trabalho voluntário no Brasil – uma pesquisa,
realizado por Leilah Landim e Maria Celi Scalon, publicado em 2000, que demonstrou a
relevância da prática religiosa efetiva na propensão de doar e de ser voluntário.
Por outro lado, também destacamos e demonstramos que embora haja consenso entre
os estudiosos sobre a importante influência, em nosso país, de fatores religiosos na construção
e funcionamento do terceiro setor, os autores também apontam a existência ao menos –
mostramos que são três – duas formas de agir, duas lógicas no setor social: as ações
assistenciais caritativas, identificadas como práticas tradicionais, e as ações cidadãs,
representativas da moderna forma de implementação dos direitos sociais.
Landim e Scalon (2000 b), em seus comentários sobre o survey por elas elaborado,
constataram a coexistência dessas lógicas.
233
Por sua vez, vários outros estudos avaliados também apontam - sob diversos prismas e
enfoques, e sem deixar de indicar pontos de tensões, conflitos e ambigüidades - para uma
tendência à articulação e busca de compatibilização e complementaridade entre a ação
caritativa e a ação cidadã, ou melhor, entre as dimensões assistencial, promocional e
libertadora/transformadora das práticas (ações) no setor social, inclusive em função da fluidez
em nosso mundo real (em nosso país) – diverso da tipificação do mundo ideal (do campo
acadêmico) – caracterizado como um sociedade democrática de direitos. Dentre eles,
noticiamos os seguintes: a) Regina Reyes Novaes (1998), em sua investigação “Juventude e
ação social católica no Rio de Janeiro: resultados de pesquisa”, constata essa tendência; b)
Emerson Giumbelli (1998), em seu trabalho “Caridade, assistência social, política e
cidadania: práticas e Reflexões no espiritismo”, verifica na confluência entre caridade e
cidadania essa tendência; c) Em sua tese de doutorado Religião e cultura cívica: um estudo
sobre modalidades, oposições e complementaridades presentes nas ações sociais evangélicas
no Brasil, orientada por Regina Novaes, Flávio Cesar dos Santos Conrado (2006) também
constatou a existência de diferentes lógicas que se entrecruzam na atuação social dos
evangélicos; d) a dissertação de mestrado Filantropia ou cidadania: um estudo da
participação de entidades religiosas de atendimento na política para a infância e a
adolescência em Juiz de Fora pós anos 90, de Mirella Loterio Siqueira (2007), sobre qual
tecemos algumas considerações críticas; e) Márcia Moussallem (2008) cujo título a seguir
indicado é auto-explicativo: Associação privada sem fins econômicos de assistência social:
Entre a lógica da filantropia e do reconhecimento da cidadania. O caso da Liga das
Senhoras Católicas de São Paulo; f) André Ricardo de Souza (2007) e sua análise sobre a
concepção do paradigma da caridade interpretado, discursado e praticado pela organização
“assistencial” da Igreja Católica denominada Cáritas, ou seja, sobre os três modelos de
intervenção junto aos problemas sócio-econômicos: a caridade assistencial, a caridade
promocional (modelo promocional de caridade) e a caridade libertadora.
Sobre a questão, damos especial ênfase aos argumentos de Marcelo A. Camurça
desenvolvidos em seu texto “Seria a caridade a ‘religião civil’ dos brasileiros?”,
especialmente no sugestivo item denominado “Conclusão: a revanche da caridade...”, em que
o autor oferece os seguinte elementos para nossos questionamentos:
Retornando nosso tema, se o que parece evidenciar-se no cenário público da “moderna filantropia” é o processo de promoção da “caridade”, concomitante com sua reformulação nos marcos dos valores “iluministas”, da racionalidade, eficiência e equanimidade, defendo que a pujança de nossa “religião social” termina por operar
234
uma revanche neste movimento, estendendo sua dinâmica de dádiva aos esquemas contratuais, normativos e operacionais da “filantropia moderna”. (Ibid., p. 58).
Além de exemplificar sua argumentação, o autor a fundamenta – e aqui ele também
reforça a idéia central ao propor que a “caridade” no espaço público representa um “civismo
de novo tipo”, pois alcança a esfera pública mantendo a sua linguagem simbólico-religiosa e
sua socialidade primária - em função das análises realizadas por vários estudos:
Várias iniciativas modernizantes com respeito às “doações” redundaram nesse quadro de colonização da caridade tradicional pela “filantropia moderna”. Todavia, se quisermos conceder à “caridade” um lugar no espaço cívico e público, esta não pode ser transmutada e “colonizada” simplesmente a estes valores imperantes no mundo institucionalizado. Pensando a partir de Roberto Romano para o caso da participação da Igreja Católica no meio político, quando este apontava para o reducionismo que era tomar essa instituição apenas como um organismo político-social como os partidos, sindicatos e associações, desprezando toda uma visão religiosa e teológica que preside seu ato próprio de inserir-se no mundo político (Romano, 1979: p. 20-1), no que tange à “caridade” que irrompe no espaço público, também deve ser levada em conta sua especificidade de caráter religioso, simbólico e de “sistema de dádiva”. Em estudos recentes, autores têm chamado a atenção para mobilizações (Campanha contra a Fome, Viva Rio) ocorridas no Rio de Janeiro a partir dos anos 90, que através de celebrações e atos com linguagem religiosa vêm implementando novas formas de ação cívica e política (Leite, 2003; Birman, 2004; Carneiro, 2002). Apoiando-se no específico do religioso: os sentimentos, os rituais, valores morais, que calam fundo na subjetividade dos indivíduos, estes conteúdos passam a se “desprivatizar” e a se “politizar” sem perder suas características intrínsecas, transformando—se em linguagens privilegiadas para se falar das mazelas da cidade (violência, abandono dos “meninos de rua”, drogas, tráfico etc.). Penso que, neste particular, pode-se tratar de um “civismo de novo tipo” – que articularia a “religião civil” com o que estou chamando de “religião social” -, pois consegue alçar-se à esfera política sem perder o caráter de “socialidade primária”.(Ibid., p. 57-58).
Com relação à doutrina social da Igreja Católica, da qual Michael Löwy (2000), nosso
principal referencial teórico, extraiu suas proposições, investigamos e apreendemos as
tensões, conflitos, ambigüidades, complementaridades, articulações e fluidez envolvendo a
forma de intervenção da Igreja e de seus fiéis leigos nas questões sócio-econômicas.
Disto decorreu nossa percepção de que o problema não está no conteúdo da doutrina
social e sim na comunicação dos ensinamentos sociais da Igreja Católica, ou seja, o problema
está em quem fala ou não fala, e em quem escuta ou não escuta. Observe-se, conforme
demonstramos, que a força do apelo original do “amor ao próximo”, que tem como “alvo” a
dignidade da pessoa humana, não pode ser negado e está implantado, pois faz parte de sua
essência, em toda a doutrina da Igreja, seja ela social ou catequética. A seguir, ratificando que
o problema é de comunicação – e isto também envolve a visão ideológica de quem fala e de
quem escuta - indicamos alguns elementos extraídos doutrina:
235
•••• O ensinamento social fundamenta a afinidade negativa da ética católica com o
capitalismo e a afinidade eletiva da ética católica com o ativismo no setor social
(terceiro setor);
•••• A doutrina social legitima e fomenta a atuação dos fiéis leigos na dimensão
estrutural (política) dos problemas sócio-econômicos;
•••• O ensinamento social prevê a articulação entre dimensões assistencial,
promocional e libertadora/transformadora;
•••• A doutrina explicitamente indica como função do clero iluminar a consciência dos
fiéis para que esses atuem no campo social, econômico e político, inclusive
questionando e combatendo os sistemas e estruturas injustos;
•••• O ensinamento social reconhece que os corpos intermediários (as organizações
privadas sem fins lucrativos que compõem o terceiro setor) são eficientes
instrumento para integrar a gratuidade e a solidariedade nas atividades econômicas,
para criar a sociabilidade e para combater e/ou compensar (efetivar implantes
socialistas na formação social capitalista) a dinâmica de exclusão, destruição e
concentração do capitalismo.
Conforme já noticiado – e aqui novamente reafirmamos este esclarecimento - , embora
a idéia inicial deste projeto envolvesse o estudo de casos, ou seja, a análise de dados
empíricos coletados pelo estudante-pesquisador, em seu desenvolvimento fomos envolvidos
pelas questões teóricas e por pesquisas já elaboradas, o que direcionou esta dissertação para a
análise e interpretação de argumentos extraídos de obras doutrinárias e de dados empíricos
extraídos de estudos consolidados. Assim, em vez de uma análise detalhada – de um estudo
de casos – fazemos uma apresentação e brevíssimas considerações sobre os dados empíricos
por nós coletados, com o intuito de ilustrar a dissertação. Disto, decorre também nossa opção
– esta decisão foi carregada de conflitos o que a adjetiva de angustiante, pois o desejo era
avaliar com profundidade os fartos e importantes dados coletados - de transformar um
possível “Capítulo” em um “Apêndice”.
236
Para investigar se os valores ético-religiosos (caridade e a solidariedade) ainda hoje
influenciam o funcionamento de ONGs de assistência social em sentido amplo, bem como se
atualmente essas ONGs estariam buscando um ponto de convergência entre a racionalidade
substantiva determinada pelos valores e a racionalidade instrumental determinada pelos fins,
objetivando compatibilizar a boa vontade com o profissionalismo, a assistência caritativa com
a cidadania e a boa intenção com resultados efetivos, optamos por coletar dados em 8 (oito)
organizações não-governamentais (ONGs) inscritas no Conselho Municipal de Assistência
Social (CMAS) da cidade de Jundiaí-SP, dentre elas, 4 (quatro) com indícios, que foram
comprovados, de laicidade e 4 (quatro) com indícios, também comprovados, de vínculo com a
religião católica. Também coletamos dados dos 2 (dois) membros titulares do CMAS de
Jundiaí, representantes da Secretaria Municipal de Integração Social - SEMIS.
Ora, a simples leitura de nossos dados empíricos apresentados e não analisados –
remetemos o leitor ao “Apêndice” - , demonstram e comprovam várias aspectos de nossa
argumentação. Por outras palavras, tais dados empíricos demonstram: as confusões
terminológicas e conceituais; a presença da religião e das motivações ético-religiosas –
especialmente do amor ou caridade e da solidariedade - no terceiro setor; conflitos e
complementaridades entre dever do Estado e papel das ONGs na implementação dos direitos
sociais; tensões e busca de articulação entre as lógicas e dimensões assistenciais,
promocionais e transformadoras; tensões e busca de convergências entre as motivações por
valores religiosos e a busca por resultados eficientes.
Concluindo, mesmo com muitas questões ainda em aberto, pensamos ter alcançado
nossos objetivos.
237
APÊNDICE - AS ONGS E O BOM SAMARITANO: APRESENTAÇÃO DOS DADOS
COLETADOS EM ONGS INSCRITAS NO CMAS DE JUNDIAÍ
A) Porque um Capítulo Virou um Apêndice e a Metodologia da Coleta de Dados
Embora a idéia inicial deste projeto envolvesse o estudo de casos, ou seja, a análise de
dados empíricos coletados pelo estudante-pesquisador, em seu desenvolvimento fomos
envolvidos pelas questões teóricas e por pesquisas já elaboradas, o que direcionou esta
dissertação para a análise e interpretação de argumentos extraídos de obras doutrinárias e de
dados empíricos extraídos de estudos consolidados. Assim, em vez de uma análise detalhada
– de um estudo de casos – fazemos uma apresentação e brevíssimas considerações sobre os
dados empíricos por nós coletados, com o intuito de ilustrar a dissertação. Disto, decorre
também nossa opção – esta decisão foi carregada de conflitos o que a adjetiva de angustiante,
pois o desejo era avaliar como profundidade os fartos e importantes dados coletados - de
transformar um possível “Capítulo” em um “Apêndice”.
Também consignados, que embora o desejo fosse ampliar o estudo para muitos
valores ético-religiosos explicitados e particularizados por várias tradições religiosas e isto,
ainda, em ONGs de finalidades diversas, sempre tivemos consciência de que nos faltaria
fôlego – conhecimento, tempo, recursos – para tanto. Assim, restringimos o objeto,
escolhendo, para o estudo e pesquisa, a caridade e a solidariedade como os valores e as ONGs
de assistência social em sentido amplo (educação, saúde e assistência social propriamente),
como as representantes do terceiro setor. Também priorizamos a ética e os valores sob a ótica
católica, o que, como conseqüência, definiu a linha do estudo e o vínculo de algumas
entidades que foram investigadas.
Desta forma, para investigar se os valores ético-religiosos (caridade e solidariedade)
ainda hoje influenciam o funcionamento de ONGs de assistência social em sentido amplo,
bem como se atualmente essas ONGs estariam buscando um ponto de convergência entre a
racionalidade substantiva determinada pelos valores e a racionalidade instrumental
determinada pelos fins, objetivando compatibilizar a boa vontade com o profissionalismo, a
assistência caritativa com a cidadania e a boa intenção com resultados efetivos, optamos por
coletar dados em 8 (oito) organizações não-governamentais (ONGs) inscritas no Conselho
Municipal de Assistência Social (CMAS) da cidade de Jundiaí-SP, dentre elas, 4 (quatro) com
indícios, que foram comprovados, de laicidade e 4 (quatro) com indícios, também
comprovados, de vínculo com a religião católica. Também coletamos dados dos 2 (dois)
238
membros titulares do CMAS de Jundiaí, representantes da Secretaria Municipal de Integração
Social - SEMIS.
Na busca de elementos comprobatórios das hipóteses por nós levantadas e perseguidas
na dissertação, a coleta de dados foi realizada da seguinte forma:
a) Questionário misto (ANEXO 1) envolvendo as 8 (oito) ONGs inscritas no CMAS
de Jundiaí: 4 (quatro) com indícios de laicidade e 4 (quatro) com indícios de vínculo com a
religião católica. Além dos dados institucionais da entidade, em cada uma delas foi coletado
dados pessoais de 3 (três) membros, quais sejam: dirigente estatutário representante legal,
gestor e membro com atuação efetiva. Desta forma, a coleta de informações pessoais de
membros das entidades teve um universo de 24 (vinte e quatro) pessoas. Este dados
encontram-se especificados em Tabelas e serão apresentados em item pertinente;
b) Pesquisa documental quando necessário para esclarecimentos sobre eventuais
imprecisões no questionário (Fichas Cadastrais do CMAS e CMDCA de Jundiaí, Estatuto
Social, CNES/MJ etc)255;
c) Entrevista semi-estruturada, mista, com dirigentes ou gestores (ANEXO 2 ),
composta por 3 (três) perguntas. Na prática as respostas foram fornecidas por escrito pelo
entrevistado. Como cada uma das entidades forneceu uma entrevista, restou um universo de 8
(oito) entrevistas fornecidas que serão apresentadas em conjunto com a identificação e
caracterização da entidade, em item pertinente. Mais especificamente, foram realizadas as
seguinte perguntas:
1ª) Na sua opinião, qual o papel das entidades sociais e/ou assistenciais (entidades do
terceiro setor) na implementação dos direito sociais e no desenvolvimento de políticas
públicas? Existem conflitos entre a atuação dessas entidades nas áreas de saúde,
educação e assistência social e o dever do Estado de prestar atendimento universal e
gratuito nessas áreas? Como a entidade em que você atua se relaciona com o poder
público? Diga fatos concretos;
2ª) Na sua opinião, o “amor ao próximo” e outros ensinamentos religiosos estariam
relacionados a realização de ações assistenciais caritativas (“dar o peixe”; minimizar
255 A sigla CMDCA significa Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente e a sigla CNES/MJ significa Cadastro Nacional de Entidades Sociais do Ministério da Justiça.
239
sofrimentos), ou também motivariam ações cidadãs voltadas à promoção humana
(“ensinar a pescar”; desenvolver cidadãos) e à transformação da sociedade (“sociedade
economicamente justa, socialmente igualitária e politicamente democrática”)? De que
forma essa situação se realiza na entidade em que você atua? Diga fatos concretos;
3ª) Na sua opinião, existe compatibilidade ou incompatibilidade entre as motivações
por valores religiosos (eles são associadas à “boa vontade”) e a busca por resultados
eficientes (eles são associados à “profissionalização”)? De que forma essa situação se
realiza na entidade em que você atua? Diga fatos concretos.
d) Questionário misto (ANEXO 3) envolvendo 2 (dois) membros titulares do CMAS
de Jundiaí, representantes da SEMIS. Embora coletados, optamos pela não
apresentação destes dados. Entrevista semi-estruturada, mista, com os 2 (dois)
membros titulares do CMAS de Jundiaí, representantes da SEMIS (ANEXO 4 ),
composta por 3 (três) perguntas muito similares - apenas com algumas adaptações
para destacar um olhar envolvendo genericamente todas a entidades inscritas - às
direcionadas aos membros das entidades. As respostas também foram fornecidas por
escrito, o universo envolve 2 (dois) entrevistados que atuam no poder público – no
órgãos gestor da Política Municipal de Assistência Social – e as entrevistas serão
apresentadas em item pertinente.
A coleta dos dados empíricos aqui apresentados foi realizada no segundo semestre de
2009, tendo seu termo final em novembro de 2009.
As entidades investigadas serão identificadas por meio de um nome fictício e seus
membros pelo cargo ou função. Já os membros titulares do CMAS, representantes da SEMIS,
também serão identificados por meio de um nome fictício e não serão identificados seu cargo
ou função.
B) Identificando o CMAS de Jundiaí e Apresentando as Tabelas com os Dados dos
Questionários256
O Conselho Municipal de Assistência Social – CMAS – da cidade de Jundiaí-SP,
instituído pela Lei Municipal nº 4.891, de 11 de novembro de 1996, regulamentado pela
256 Sobre a metodologia e o universo dos dados, remetemos o leitor aos esclarecimentos do item deste apêndice denominado “Porque um capítulo virou um apêndice e a metodologia da coleta de dados”.
240
referida lei e suas posteriores alterações e pelo Decreto Municipal nº 4.891/96, é a “instância
municipal deliberativa do sistema descentralizado e participativo da assistência social, de
caráter normativo e permanente e de composição paritária257 entre o governo municipal e a
sociedade civil” (LEI MUNICIPAL nº 4.891/96). O Conselho é vinculado à Secretaria
Municipal de Integração Social – SEMIS, a quem compete a gestão da Política Municipal de
Assistência Social. As organizações inscritas no CMAS de Jundiaí atuam no campo da
assistência social em sentido amplo, que abrange a saúde, a educação e a assistência social
propriamente dita (em sentido estrito); isto inclusive porque a inscrição no CMAS é ou era
um dos requisitos para a obtenção do Certificado de Entidade Beneficente de Assistencial
Social (CEBAS)258, o certificado mais almejado pelas ONGs de nosso país, porque é um pré-
requisito para o exercício de imunidade ou isenção de contribuições para a seguridade
social259.
A seguir apresentamos as TABELAS.
257 A legislação municipal define a seguinte composição do CMAS de Jundiaí: 18 (dezoito) membros titulares e respectivos suplentes, sendo 9 (nove) representantes do Poder Público e 9 (nove) representantes da sociedade civil. 258 Em 30 de novembro de 2009 foi publicada no Diário Oficial da União a Lei Federal nº 12.101, de 27 de novembro de 2009, que dispõe sobre a certificação das entidades beneficentes de assistência social e regula os procedimentos de isenção de contribuições para a seguridade social. Essa nova e recente legislação, que revogou as disposições anteriores sobre o assunto, modificou as regras para a concessão do CEBAS, inclusive no tocante ao órgão concessor, o que repercute nos critérios para a inscrição das entidades nos Conselhos de Municipais de Assistência Social. Como é uma legislação recente, sujeita a várias regulamentações, ela não influiu na presente pesquisa, inclusive na coleta dos dados empíricos, que findou em novembro antes mesmo da publicação da ventilada lei. Outrossim, essa nova legislação manteve a concepção ampla dada à assistência social para a concessão do CEBAS, ou seja, caracterizou como entidades de beneficentes de assistência social as que atuam nas áreas da assistência social, saúde ou educação. 259 Para outros esclarecimentos sobre o significado de “assistência social”, remetemos o leitor ao subitem da dissertação denominado “Caridade, assistência, assistência social, assistencialismo e cidadania...”.
241
TABELA 1 – Presença da Religião nas Entidades Inscritas no CMAS de Jundiaí: Por verificação de referências (palavras ou expressões) simbólico-religiosas na denominação da entidade260
Classificação das Entidades Número e Percentual em Relação ao Total
Total
72 (100,00%)
Laicas (por indícios)
37 (51,39%)
Com Vinculação Religiosa (por indícios)
35 (48,61%)
TABELA 2 Quadro Comparativo e Geral entre dirigentes, gestores ou membros com atuação efetiva: Por Religião261
Religião Entidades com vínculo religioso (católico)
Entidades sem vínculo religioso (laica) Total Geral
quantidade % quantidade % quantidade % Católica 12 100,00% 8262 66,67% 20 83,33% Evangélica Pentecostal Evangélica não Pentecostal Espírita 1 8,33% 1 4,17% Umbanda Candomblé Outra religião 1 8,33% 1 4,17% Não tem religião 2 16,67% 2 8,33% Total 12 100,00% 12 100,00% 24 100,00%
260 O número total refere-se a unidades – algumas entidades possuem a inscrição de mais de uma unidade – e os dados foram coletados no portal (endereço eletrônico) do CMAS de Jundiaí (http://cmas.jundiai.sp.gov.br) em novembro de 2009. Destacamos as seguintes situações sobre o critério de classificação utilizado: a) esta classificação é por indícios, um vez que a utilização de um único critério possibilita classificações equivocadas; b) concretamente, uma das entidades vinculadas à religião católica por nós investigada mais detalhadamente (por questionário e entrevista) não se encontra pelo presente critério classificada como entidade com vínculo religioso, pois em sua denominação não consta qualquer referência simbólico-religiosa; c) em caso de dúvida, optamos por classificar a entidade com sendo laica. Para melhor compreensão de nosso critério de classificação, a seguir exemplificamos algumas referências e elementos simbólico-religiosos encontrados: “Bom Pastor”; “Cristã”; “Comunidade Casa de Nazaré”; “Caridade Santa Rita de Cássia”; “São Carlos Borromeu”. “Gysegem”; “Pio Lanteri”; “Cáritas Diocesana”; “Nossa Senhora do Desterro”; “Liberto pela Palavra”; “Santa Marta”; “Nossa Senhora Aparecida”; “São Vicente de Paulo”; “Nosso Lar”; “João de Deus”; “Centro Espírita”; “Cidade Vicentina”; “Congregação”; “Meimei”; “Fraternidade Espírita Evangélica”; “São João Gualberto”; “Anália Franco”; “Pastoral”. 261 Os dados coletados por meio de questionário envolvem 24 (vinte e quatro) pessoas, ou seja, 3 (três) membros (dirigente estatutário, gestor e membro com atuação efetiva) de cada uma das 08 (oito) entidades inscritas no CMAS de Jundiaí-SP investigadas, sendo 4 (quatro) entidades laicas (expressamente declararam esta situação) e 4 (quatro) entidades com vínculo religioso católico (expressamente declararam esta situação). 262 Um dos membros das entidades indicou duas religiões: católica e outra religião. Para mantermos o universo de 24 (vinte e quatro) pessoas e respostas, optamos pela indicação apenas de uma das respostas – no caso, a religião católica -, e isto levando em conta indícios extraídos das outras respostas.
242
TABELA 3 Quadro Comparativo e Geral entre dirigentes, gestores ou
membros com atuação efetiva: Por freqüência nas atividades de sua religião (cultos, missas, reuniões, encontros etc)263
Entidades com
vínculo religioso (católico)
Entidades sem vínculo religioso
(laica) Total Geral
quantidade % quantidade % quantidade % Mais de uma vez por semana 9 75,00% 9 37,50% Uma vez por semana 3 25,00% 2 16,67% 5 20,83% Duas ou três vezes por mês 2 16,67% 2 8,33% Uma vez por mês Algumas vezes por ano, mas não mensalmente 3 25,00% 3 12,50% Não freqüenta 5 41,67% 5 20,83% Total 12 100,00% 12 100,00% 24 100,00%
TABELA 4 Quadro Comparativo e Geral entre dirigentes, gestores ou membros com atuação efetiva: Por influência dos ensinamentos de sua religião (doutrinas,
preceitos, valores etc) nas atitudes e decisões gerais264
Entidades com
vínculo religioso (católico)
Entidades sem vínculo religioso (laica)
Total Geral
quantidade % quantidade % quantidade % Totalmente 6 50,00% 6 25,00% Na maioria das vezes 6 50,00% 4 33,33% 10 41,67% Algumas vezes 6 50,00% 6 25,00% Raramente Nunca 2 16,67% 2 8,33% Total 12 100,00% 12 100,00% 24 100,00%
263 Os dados coletados por meio de questionário envolvem 24 (vinte e quatro) pessoas, ou seja, 3 (três) membros (dirigente estatutário, gestor e membro com atuação efetiva) de cada uma das 08 (oito) entidades inscritas no CMAS de Jundiaí-SP investigadas, sendo 4 (quatro) entidades laicas (expressamente declararam esta situação) e 4 (quatro) entidades com vínculo religioso católico (expressamente declararam esta situação). 264 Mesma metodologia indicada na nota de rodapé anterior.
243
TABELA 5
Quadro Comparativo e Geral entre dirigentes, gestores ou membros com atuação efetiva: Por influência dos ensinamentos de sua religião
(doutrinas, preceitos, valores etc) em sua atuação em uma entidade social e ou assistencial265
Entidades com vínculo religioso (católico)
Entidades sem vínculo religioso
(laica) Total Geral
quantidade % quantidade % quantidade % Totalmente 7 58,33% 2 16,67% 9 37,50% Muito 5 41,67% 3 25,00% 8 33,33% De forma mediana 2 16,67% 2 8,33% Pouco 3 25,00% 3 12,50% Não influenciam 2 16,67% 2 8,33% Total 12 100,00% 12 100,00% 24 100,00%
TABELA 6
Quadro Comparativo e Geral entre dirigentes, gestores ou membros com atuação efetiva: Por escala de importância dos fatores motivadores da prestação de serviços voluntários e da realização de
doações a entidades sociais e ou assistenciais266
Amor ao próximo Entidades com
vínculo religioso (católico)
Entidades sem vínculo religioso
(laica) Total Geral
quantidade % quantidade % quantidade % Muito importante escala de 09 a 10 12 100,00% 9 75,00% 21 87,50% Importante escala de 07 a 08 3 25,00% 3 12,50% Importância mediana escala de 05 a 06 Pouco importante escala de 03 a 04 Não é importante escala de 01 a 02 Total 12 100,00% 12 100,00% 24 100,00%
265 Os dados coletados por meio de questionário envolvem 24 (vinte e quatro) pessoas, ou seja, 3 (três) membros (dirigente estatutário, gestor e membro com atuação efetiva) de cada uma das 08 (oito) entidades inscritas no CMAS de Jundiaí-SP investigadas, sendo 4 (quatro) entidades laicas (expressamente declararam esta situação) e 4 (quatro) entidades com vínculo religioso católico (expressamente declararam esta situação). 266 Mesma metodologia indicada na nota de rodapé anterior.
244
TABELA 7 Quadro Comparativo e Geral entre dirigentes, gestores ou membros com
atuação efetiva: Por escala de importância dos fatores motivadores da prestação de serviços voluntários e da realização de doações a entidades
sociais e ou assistenciais267
Dever do cidadão Entidades com vínculo
religioso (católico) Entidades sem vínculo
religioso (laica) Total Geral
quantidade % quantidade % quantidade % Muito importante escala de 09 a 10 8 66,67% 8 66,67% 16 66,67% Importante escala de 07 a 08 1 8,33% 1 8,33% 2 8,33% Importância mediana escala de 05 a 06 2 16,67% 2 16,67% 4 16,67% Pouco importante escala de 03 a 04 1 8,33% 1 8,33% 2 8,33% Não é importante escala de 01 a 02 Total 12 100,00% 12 100,00% 24 100,00%
TABELA 8
Quadro Comparativo e Geral entre dirigentes, gestores ou membros com atuação efetiva: Por escala de importância dos fatores motivadores da
prestação de serviços voluntários e da realização de doações a entidades sociais e ou assistenciais268
Ajudar os pobres, carentes e necessitados
Entidades com vínculo religioso (católico)
Entidades sem vínculo religioso
(laica) Total Geral
quantidade % quantidade % quantidade % Muito importante escala de 09 a 10 10 83,33% 6 50,00% 16 66,67% Importante escala de 07 a 08 2 16,67% 3 25,00% 5 20,83% Importância mediana escala de 05 a 06 1 8,33% 1 4,17% Pouco importante escala de 03 a 04 2 16,67% 2 8,33% Não é importante escala de 01 a 02 Total 12 100,00% 12 100,00% 24 100,00%
267 Os dados coletados por meio de questionário envolvem 24 (vinte e quatro) pessoas, ou seja, 3 (três) membros (dirigente estatutário, gestor e membro com atuação efetiva) de cada uma das 08 (oito) entidades inscritas no CMAS de Jundiaí-SP investigadas, sendo 4 (quatro) entidades laicas (expressamente declararam esta situação) e 4 (quatro) entidades com vínculo religioso católico (expressamente declararam esta situação). 268 Mesma metodologia indicada na nota de rodapé anterior.
245
TABELA 9
Quadro Comparativo e Geral entre dirigentes, gestores ou membros com atuação efetiva: Por escala de importância dos fatores motivadores
da prestação de serviços voluntários e da realização de doações a entidades sociais e ou assistenciais269
Construir uma sociedade livre, justa e solidária
Entidades com vínculo religioso
(católico)
Entidades sem vínculo religioso
(laica) Total Geral
quantidade % quantidade % quantidade % Muito importante escala de 09 a 10 8 66,67% 11 91,67% 19 79,17% Importante escala de 07 a 08 1 8,33% 1 8,33% 2 8,33% Importância mediana escala de 05 a 06 3 25,00% 3 12,50% Pouco importante escala de 03 a 04 Não é importante escala de 01 a 02 Total 12 100,00% 12 100,00% 24 100,00%
TABELA 10
Quadro Comparativo e Geral entre dirigentes, gestores ou membros com atuação efetiva: Por escala de importância dos fatores motivadores da
prestação de serviços voluntários e da realização de doações a entidades sociais e ou assistenciais270
Minimizar sofrimentos
Entidades com vínculo religioso
(católico)
Entidades sem vínculo religioso
(laica) Total Geral
quantidade % quantidade % quantidade % Muito importante escala de 09 a 10 9 75,00% 7 58,33% 16 66,67% Importante escala de 07 a 08 2 16,67% 5 41,67% 7 29,17% Importância mediana escala de 05 a 06 1 8,33% 1 4,17% Pouco importante escala de 03 a 04 Não é importante escala de 01 a 02 Total 12 100,00% 12 100,00% 24 100,00%
269 Os dados coletados por meio de questionário envolvem 24 (vinte e quatro) pessoas, ou seja, 3 (três) membros (dirigente estatutário, gestor e membro com atuação efetiva) de cada uma das 08 (oito) entidades inscritas no CMAS de Jundiaí-SP investigadas, sendo 4 (quatro) entidades laicas (expressamente declararam esta situação) e 4 (quatro) entidades com vínculo religioso católico (expressamente declararam esta situação). 270 Mesma metodologia indicada na nota de rodapé anterior.
246
TABELA 11
Quadro Comparativo e Geral entre dirigentes, gestores ou membros com atuação efetiva: Por escala de importância dos fatores motivadores da prestação de serviços voluntários e da realização de doações a entidades sociais e ou assistenciais271
Desenvolver cidadãos Entidades com
vínculo religioso (católico)
Entidades sem vínculo religioso
(laica) Total Geral
quantidade % quantidade % quantidade % Muito importante escala de 09 a 10 7 58,33% 10 83,33% 17 70,83% Importante escala de 07 a 08 2 16,67% 2 16,67% 4 16,67% Importância mediana escala de 05 a 06 3 25,00% 3 12,50% Pouco importante escala de 03 a 04 Não é importante escala de 01 a 02 Total 12 100,00% 12 100,00% 24 100,00%
271 Os dados coletados por meio de questionário envolvem 24 (vinte e quatro) pessoas, ou seja, 3 (três) membros (dirigente estatutário, gestor e membro com atuação efetiva) de cada uma das 08 (oito) entidades inscritas no CMAS de Jundiaí-SP investigadas, sendo 4 (quatro) entidades laicas (expressamente declararam esta situação) e 4 (quatro) entidades com vínculo religioso católico (expressamente declararam esta situação).
247
C) Identificando as ONGs e Apresentando os Dados das Entrevistas272
Antes de apresentar os dados coletados nos questionários que identificam e
caracterizam as entidades, como também de apresentar as entrevistas fornecidas por escrito
por dirigente ou gestor de cada um delas, fazemos alguns esclarecimentos.
Foram as próprias entidades que se declaram no questionário com vínculo religioso
(católico) ou sem vínculo religioso (laica), o que acabou confirmando nossa percepção inicial
Para tanto, os questionários trouxeram circunstâncias que auxiliavam as entidades na resposta
sobre a vinculação religiosa273.
Destacamos, também, e isto em função de nossa experiência profissional na assessoria
de entidades do terceiro setor, que em geral existe imprecisão e/ou desconformidade no
tocante ao oferecimento de dados pelas entidades, que decorrem muita vezes dos modos
distintos que elas interpretam a solicitação, bem como das distintas maneiras que elas
sistematizam internamente a coleta e gestão de seus dados qualitativos e quantitativos.
Elucidando que atribuímos de maneira aleatória às 4 (quatro) entidades com vínculo
religioso (católico) nomes fictícios representativos das 3 (três) virtudes teologais (FÉ,
ESPERANÇA e CARIDADE), acrescido de uma virtude cardeal (JUSTIÇA), como também
que aleatoriamente denominamos de forma fictícia as 4 (quatro) entidades sem vínculo
religioso (laica) com as cores da bandeira brasileira (VERDE, AMARELO, AZUL e
BRANCO), passemos agora às ENTIDADES e às ENTREVISTAS.
272 Sobre a metodologia e o universo dos dados, remetemos o leitor aos esclarecimentos do item deste apêndice denominado “Porque um capítulo virou um apêndice e a metodologia da coleta de dados”. 273 Para maiores esclarecimentos, remetemos o leito aos ANEXOS.
248
1. ENTIDADE FÉ (nome fictício)
1.1. CARACTERIZAÇÃO
1.1.1 Mês e ano da coleta das informações: JULHO DE 2009
1.1.2. Declarou possuir vínculo específica com alguma religião? SIM
1.1.3. Com qual religião? CATÓLICA
1.1.4. Natureza jurídica: ASSOCIAÇÃO
1.1.5. Além da inscrição no Conselho Municipal de Assistência Social (CMAS) de
Jundiaí-SP, possui os seguintes títulos, qualificações, certificados e registros:
Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social (CEBAS) ( )
Registro no Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) ( )
Utilidade Pública: Federal (X) Estadual ( ) Municipal (X)
Organização da Sociedade Civil de Interesse Pública (OSCIP) ( )
Registro no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (X)
1.1.6. Segmento que atende: ACOLHIMENTO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM
REGIME DE ABRIGO
1.1.7. Área prioritária de atendimento: ASSISTÊNCIA SOCIAL
1.1.8. Usuários atendidos, número total por ano:
2008: 32 2007: 32 2006: 24
Observação do pesquisador: os números acima representam a capacidade total de atendimento
(vagas) da entidade, que são integralmente ocupadas durante o ano
1.1.9. Recursos humanos, número total por ano:
Contratados: 2008: 19 2007: 11 2006: 10
Voluntários: 2008: 10 2007: 16 2006: 11
Terceirizados: 2008: 0 2007: 0 2006: 0
Cedidos: 2008: 01 2007: 01 2006: 01
249
1.2. ENTREVISTA FORNECIDA POR ESCRITO
1.2.1. Cargo do entrevistado: PRESIDENTE / FUNDADOR
(X) Voluntário ou ( ) Remunerado
1.2.2. Perguntas e Respostas
Pergunta 1: Na sua opinião, qual o papel das entidades sociais e/ou assistenciais (entidades
do terceiro setor) na implementação dos direito sociais e no desenvolvimento de políticas
públicas? Existem conflitos entre a atuação dessas entidades nas áreas de saúde, educação e
assistência social e o dever do Estado de prestar atendimento universal e gratuito nessas
áreas? Como a entidade em que você atua se relaciona com o poder público? Diga fatos
concretos.
Resposta 1: As entidades sociais e/ou assistenciais são fundamentais para que o poder
público tenha um olhar mais significativo para os problemas sociais que existem em todas as
áreas, vivemos em um país onde se fala muito do combate à pobreza, a fome, etc., mas, temos
ainda uma faixa muito grande da população que vive abaixo da linha da pobreza (miséria).
Um país aonde se morre por falta de atendimento médico; de saneamento básico;
faltam remédios, uma educação que quer se pincelar como país desenvolvido, mas, nossas
crianças / adolescentes muitas vezes terminam o ensino fundamental sem ao menos saber ler e
escrever até mesmo o próprio nome.
O Estado sempre se acomodou vendo os trabalhos desenvolvidos pelo terceiro setor,
como sendo obrigação dessas entidades de suprir as deficiências do Estado.
Se por um lado essas entidades são essenciais, também por causa delas se criou o
comodismo em não se preocupar com Políticas públicas que resolvessem os problemas que
são obrigações do Estado de garantir o acesso em todas as necessidades que garantam
dignidade e uma vida.
Em nossa entidade que começou com a “boa vontade” de solucionar o problema de
abandono e maus tratos das crianças / adolescentes em nosso município, ficou por três anos
sobrevivendo também da boa vontade de pessoas que acreditaram no trabalho, até que
atendendo a necessidade do município o Poder Público realizou o 1º convênio com nossa
entidade, e a partir desse convênio que supriam 08 (oito) vagas, hoje se estende para 24 (vinte
e quatro) vagas de abrigamento, cobrindo as despesas com o RH e seus encargos.
250
Hoje temos 08 (oito) vagas conveniadas com o CMDCA e 16 (dezesseis) vagas com o
CMAS, as 08 (oito) restantes de uma capacidade de 32 vagas tem seu custo assumido pela
própria entidade. Após estes convênios a entidade deixou de trabalhar só com a mão-de-obra
voluntária e se profissionalizou atendendo a demanda com maiores condições de atendimento,
sem interferência do Poder público na gestão da entidade
Pergunta 2: Na sua opinião, o “amor ao próximo” e outros ensinamentos religiosos estariam
relacionados a realização de ações assistenciais caritativas (“dar o peixe”; minimizar
sofrimentos), ou também motivariam ações cidadãs voltadas à promoção humana (“ensinar a
pescar”; desenvolver cidadãos) e à transformação da sociedade (“sociedade economicamente
justa, socialmente igualitária e politicamente democrática”)? De que forma essa situação se
realiza na entidade em que você atua? Diga fatos concretos.
Resposta 2:O “amor ao próximo”, bem como outros ensinamentos religiosos, foram a tônica
inicial em nossa entidade.
Quando falamos de amar ao outro (próximo), falamos do amor gratuito com que Deus
nos ama, esse amor que é doação, também se preocupa em preparar o outro para a vida,
formando cidadãos mais conscientes, porque o amor também significa a preocupação não “só
com o momento”, estamos minimizando o sofrimento, mas, não o eliminando (ou pelo menos
diminuindo), criando condições para que essa pessoa ao ser cuidada, descubra seus potenciais,
vislumbre o horizonte e apoiados possam mudar seu futuro, criar-se esperança e a consciência
do poder da luta, criar mecanismos de cobrança para que ações do Estado possam ser
efetivadas no objetivo de mudar os conceitos de “boa vontade”, para uma sociedade mais
justa, mais igualitária e democrática.
Em nossa entidade, acolhemos crianças e adolescentes e quando isso ocorre começa o
verdadeiro trabalho do amor, que é ensiná-los que a vida (a sociedade) nos impõe regras,
valores, começa o trabalho de prepará-los para assumirem sua própria vida, ex: adolescentes
são inseridos nos programas “Menor Aprendiz”, e que portanto, trabalhamos o potencial que
cada um tem, após a conclusão destes programas, esses adolescentes são contratados como
funcionários e aos 18 anos (com a maioridade), eles já se sentem mais preparados para
enfrentarem a vida (com famílias, montando uma república), já exercem o seu papel de
cidadão, o que os tornam capazes de discernir as ações e decisões necessárias para suas
próprias vidas.
251
Não esquecemos também de plantar no coração de cada um a semente do amor de
Deus, que nunca abandona, mas os projeta sempre para a frente como filhos com dignidade
humana.
Pergunta 3: Na sua opinião, existe compatibilidade ou incompatibilidade entre as motivações
por valores religiosos (eles são associadas à “boa vontade”) e a busca por resultados eficientes
(eles são associados à “profissionalização”)? De que forma essa situação se realiza na
entidade em que você atua? Diga fatos concretos.
Resposta 3: Existe compatibilidade e muitas vezes incompatibilidades entre as motivações
por valores religiosos, se olharmos do ponto de vista da “boa vontade” somente, nos
sentiremos frustrados, porque não basta só boa vontade.
Em nossa entidade a tônica do trabalho é olhar sempre nossas crianças / adolescentes
com o amor, não com o amor piegas de sentir pena, dó do outro, mas, o amor ação que nos
move sempre a procurarmos o melhor caminho, a melhor solução, tanto dos que são
profissionais técnicos, como dos que são vocacionados. Quando o técnico coloca sua
formação a serviço do outro na ótica do amor, os valores religiosos estão presentes, e o
vocacionado é aquele que permite que esse amor seja sempre conduzido por aquele a quem se
ama, porque essa é a exigência do amor, dar ao outro a oportunidade de se sentir amado, em
suas diversas formas de expressão.
Então quando o técnico se une ao vocacionado, juntos vão construir um mundo
melhor, concretamente valores importantes são transmitidos àqueles que aqui chegaram sem
valores, ou melhor, com valores distorcidos em uma sociedade injusta.
A profissionalização com a boa vontade, têm dado resultados surpreendentes para
nossas crianças / adolescentes, nossos funcionários acabaram assumindo em conjunto com a
direção da casa, a construção desse amor, não sendo o salário, emprego, que predominam,
mas a essência tem sido o bem e a construção das crianças / adolescentes.
252
2. ENTIDADE ESPERANÇA (nome fictício)
2.1. CARACTERIZAÇÃO
2.1.1 Mês e ano da coleta das informações: AGOSTO DE 2009
2.1.2. Declarou possuir vínculo específica com alguma religião? SIM
2.1.3. Com qual religião? CATÓLICA
2.1.4. Natureza jurídica: ASSOCIAÇÃO
2.1.5. Além da inscrição no Conselho Municipal de Assistência Social (CMAS) de
Jundiaí-SP, possui os seguintes títulos, qualificações, certificados e registros:
Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social (CEBAS) (X)
Registro no Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) (X)
Utilidade Pública: Federal (X) Estadual (X) Municipal (X)
Organização da Sociedade Civil de Interesse Pública (OSCIP) ( )
Registro no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (X)
2.1.6. Segmento que atende: FAMÍLIA; CRIANÇA E ADOLESCENTE; PROTEÇÃO DE
DIREITOS; PESSOAS EM SITUAÇÃO DE EXCLUSÃO SOCIAL
2.1.7. Área prioritária de atendimento: ASSISTÊNCIA SOCIAL
2.1.8. Usuários atendidos, número total por ano:
2008: 230 2007: 260 2006: 250
2.1.9. Recursos humanos, número total por ano:
Contratados: 2008: 05 2007: 04 2006: 03
Voluntários: 2008: 10 2007: 10 2006: 10
Terceirizados: 2008: 0 2007: 0 2006: 0
Cedidos: 2008: 02 2007: 02 2006: 02
253
2.2. ENTREVISTA FORNECIDA POR ESCRITO
2.2.1. Cargo do entrevistado: ASSISTENTE SOCIAL / COORDENADOR
( ) Voluntário ou (X) Remunerado
2.2.2. Perguntas e Respostas
Pergunta 1: Na sua opinião, qual o papel das entidades sociais e/ou assistenciais (entidades
do terceiro setor) na implementação dos direito sociais e no desenvolvimento de políticas
públicas? Existem conflitos entre a atuação dessas entidades nas áreas de saúde, educação e
assistência social e o dever do Estado de prestar atendimento universal e gratuito nessas
áreas? Como a entidade em que você atua se relaciona com o poder público? Diga fatos
concretos.
Resposta 1: O papel das entidades sociais na implementação de direitos sociais e
desenvolvimento de políticas públicas:
Deveria ser prioridade atuar junto ao usuário para que este conheça seus direitos e os
busque com autonomia, bem como trabalhar para que se formem uma consciência crítica
sobre direitos para todos, conquistas de políticas públicas para a comunidade.
Porém, na maioria “dos casos” ou das ações das entidades essa prática fica restrita aos
técnicos ou não existe. As entidades que atuam na garantia de direitos são minoria e com
grande dificuldade conseguem apoio da opinião pública, recursos financeiros e humanos.
Apesar das dificuldades e da pouca visibilidade o resultado alcançado pelas entidades
que priorizam a garantia de direitos tem causado benefícios, ou melhor tem beneficiado a
coletividade.
Se há conflitos, não saberia dizer com um olhar macro, porém observo que não existe
um diálogo crítico, ou uma reflexão sobre de quem é o papel do serviço. É do Estado ou o
Estado pode valer-se de convênios e a entidade atender.
A [ENTIDADE ESPERANÇA] se relaciona com o poder público sem conflitos. O
estabelecimento de diálogo sempre que se encaminha uma reivindicação, oportunidade de
levar para as reuniões o usuário e fortalecer a rede sócio-assistencial, para descaracterizar que
é uma ou outra entidade que busca o benefício, mas o coletivo.
Ex: A rede sócio-assistencial do Jardim [AAA] que levou ao Secretário de Educação
pedido para implantar o EJA [Educação de Jovens e Adultos] descentralizado no bairro. O
254
movimento e a articulação partiu de toda a rede e foi conquistado esse direito. (observação:
realizou-se inclusive uma pesquisa de interesse na comunidade).
Pergunta 2: Na sua opinião, o “amor ao próximo” e outros ensinamentos religiosos estariam
relacionados a realização de ações assistenciais caritativas (“dar o peixe”; minimizar
sofrimentos), ou também motivariam ações cidadãs voltadas à promoção humana (“ensinar a
pescar”; desenvolver cidadãos) e à transformação da sociedade (“sociedade economicamente
justa, socialmente igualitária e politicamente democrática”)? De que forma essa situação se
realiza na entidade em que você atua? Diga fatos concretos.
Resposta 2: O amor ao próximo e os ensinamentos religiosos motivam ações de caridade em
níveis diferentes, ou seja, não é a proporção do ensinamento ou o tempo em que a pessoa está
inserida em uma comunidade paroquial que lhe permite diferenciar o estágios, mas sim a sua
contínua formação e aproximação das situações sociais.
Que os ensinamentos religiosos conduzem a prática da caridade isso é sabido, porém
depende da forma que essa catequese é feita para levar a pessoa a olhar na possibilidade de
transformação da sociedade através da prática da caridade.
Na própria [ENTIDADE ESPERANAÇA] que coordena o trabalho das pastorais
sociais encontram-se pessoas que são impulsionadas interiormente a atuar somente na
assistência imediata e sentem-se felizes e contemplados. Porém com a formação, reflexão
crítica da conjuntura a mesma pessoa pode mudar sua forma de ver e dar passos na direção da
promoção humana e transformação da sociedade.
Pergunta 3: Na sua opinião, existe compatibilidade ou incompatibilidade entre as motivações
por valores religiosos (eles são associadas à “boa vontade”) e a busca por resultados eficientes
(eles são associados à “profissionalização”)? De que forma essa situação se realiza na
entidade em que você atua? Diga fatos concretos.
Resposta 3: Não vejo incompatibilidade entre valores religiosos e resultados eficientes, até
porque os valores religiosos ajudam a compreender limites, condutas e o tempo de cada um. O
resultado de uma atuação profissional favorece a condução e a canalização das propostas, das
crenças e a fé de cada um.
Fatos concretos: A garantia de direitos constitucionais e os valores evangélicos de que
todos somos merecedores e não há divisão.
255
3. ENTIDADE CARIDADE (nome fictício)
3.1. CARACTERIZAÇÃO
3.1.1 Mês e ano da coleta das informações: AGOSTO DE 2009
3.1.2. Declarou possuir vínculo específica com alguma religião? SIM
3.1.3. Com qual religião? CATÓLICA
3.1.4. Natureza jurídica: ASSOCIAÇÃO
3.1.5. Além da inscrição no Conselho Municipal de Assistência Social (CMAS) de
Jundiaí-SP, possui os seguintes títulos, qualificações, certificados e registros:
Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social (CEBAS) ( )
Registro no Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) (X)
Utilidade Pública: Federal (X) Estadual (X) Municipal (X)
Organização da Sociedade Civil de Interesse Pública (OSCIP) ( )
Registro no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente ( )
3.1.6. Segmento que atende: POPULAÇÃO DE RUA, COMPOSTA POR MORADORES
DE RUA, MIGRANTES E ITINERANTES
3.1.7. Área prioritária de atendimento: ASSISTÊNCIA SOCIAL
3.1.8. Usuários atendidos, número total por ano:
2008: 15.412 2007: 15.221 2006: 10.719
Observação do pesquisador: Consta na Ficha do CMAS a seguinte informação: “Média de 42
pessoas por noite – Total de atendimento no ano de 2008 – 15.412”.
3.1.9. Recursos humanos, número total por ano:
Contratados: 2008: 19 2007: 18 2006: 15
Voluntários: 2008: 15 2007: 15 2006: 15
Terceirizados: 2008: 01 2007: 01 2006: 01
Cedidos: 2008: 0 2007: 0 2006: 0
Informações complementares: Nos eventos pontuais o número de voluntários aumenta
conforme a necessidade.
256
3.2. ENTREVISTA FORNECIDA POR ESCRITO
3.2.1. Cargo do entrevistado: PRESIDENTE (X) Voluntário ou ( ) Remunerado
3.2.2. Perguntas e Respostas
Pergunta 1: Na sua opinião, qual o papel das entidades sociais e/ou assistenciais (entidades
do terceiro setor) na implementação dos direito sociais e no desenvolvimento de políticas
públicas? Existem conflitos entre a atuação dessas entidades nas áreas de saúde, educação e
assistência social e o dever do Estado de prestar atendimento universal e gratuito nessas
áreas? Como a entidade em que você atua se relaciona com o poder público? Diga fatos
concretos.
Resposta 1: O papel de suprir as necessidades da população carente, atingindo onde o Poder
Público não chega, diminuir ao máximo o custo. Somos grande parceiro do Poder Público.
Pergunta 2: Na sua opinião, o “amor ao próximo” e outros ensinamentos religiosos estariam
relacionados a realização de ações assistenciais caritativas (“dar o peixe”; minimizar
sofrimentos), ou também motivariam ações cidadãs voltadas à promoção humana (“ensinar a
pescar”; desenvolver cidadãos) e à transformação da sociedade (“sociedade economicamente
justa, socialmente igualitária e politicamente democrática”)? De que forma essa situação se
realiza na entidade em que você atua? Diga fatos concretos.
Resposta 2: Inicialmente “damos o peixe”, oferecemos higiene pessoal, acolhida, troca de
roupa, alimentação, pouso e segurança. Depois “ensinamos a pescar”. Encaminhamos par
clínicas de restauração, fazemos contato familiar e quando possível encaminhamos para
emprego.
Pergunta 3: Na sua opinião, existe compatibilidade ou incompatibilidade entre as motivações
por valores religiosos (eles são associadas à “boa vontade”) e a busca por resultados eficientes
(eles são associados à “profissionalização”)? De que forma essa situação se realiza na
entidade em que você atua? Diga fatos concretos.
Resposta 3: A grande maioria dos voluntários e funcionários são motivados por valores
religiosos e sempre que possível são treinados para desenvolver suas atividades
profissionalmente.
257
4. ENTIDADE JUSTIÇA (nome fictício)
4.1. CARACTERIZAÇÃO
4.1.1 Mês e ano da coleta das informações: SETEMBRO DE 2009
4.1.2. Declarou possuir vínculo específica com alguma religião? SIM
4.1.3. Com qual religião? CATÓLICA
4.1.4. Natureza jurídica: ASSOCIAÇÃO
4.1.5. Além da inscrição no Conselho Municipal de Assistência Social (CMAS) de
Jundiaí-SP, possui os seguintes títulos, qualificações, certificados e registros:
Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social (CEBAS) (X)
Registro no Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) (X)
Utilidade Pública: Federal (X) Estadual (X) Municipal (X)
Organização da Sociedade Civil de Interesse Pública (OSCIP) ( )
Registro no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente ( )
4.1.6. Segmento que atende: IDOSOS DE AMBOS OS SEXOS NO SISTEMA DE
ABRIGAMENTO
Observação do pesquisador: informações extraídas da Ficha do CMAS e do Estatuto Social
4.1.7. Área prioritária de atendimento: ASSISTÊNCIA SOCIAL
4.1.8. Usuários atendidos, número total por ano:
2008: 97 2007: 97 2006: 96
4.1.9. Recursos humanos, número total por ano:
Contratados: 2008: 85 2007: 80 2006: 75
Voluntários: 2008: 23 2007: 21 2006: 17
Terceirizados: 2008: 0 2007: 0 2006: 0
Cedidos: 2008: 01 2007: 0 2006: 0
258
4.2. ENTREVISTA FORNECIDA POR ESCRITO
4.2.1. Cargo do entrevistado: PRESIDENTE (X) Voluntário ou ( ) Remunerado
4.2.2. Perguntas e Respostas
Pergunta 1: Na sua opinião, qual o papel das entidades sociais e/ou assistenciais (entidades
do terceiro setor) na implementação dos direito sociais e no desenvolvimento de políticas
públicas? Existem conflitos entre a atuação dessas entidades nas áreas de saúde, educação e
assistência social e o dever do Estado de prestar atendimento universal e gratuito nessas
áreas? Como a entidade em que você atua se relaciona com o poder público? Diga fatos
concretos.
Resposta 1: Nosso relacionamento com a Prefeitura de Jundiaí que nos dá anualmente a
subvenção para a manutenção da entidade.
Pergunta 2: Na sua opinião, o “amor ao próximo” e outros ensinamentos religiosos estariam
relacionados a realização de ações assistenciais caritativas (“dar o peixe”; minimizar
sofrimentos), ou também motivariam ações cidadãs voltadas à promoção humana (“ensinar a
pescar”; desenvolver cidadãos) e à transformação da sociedade (“sociedade economicamente
justa, socialmente igualitária e politicamente democrática”)? De que forma essa situação se
realiza na entidade em que você atua? Diga fatos concretos.
Resposta 2: Na entidade se realiza ações assistenciais caritativas.
Pergunta 3: Na sua opinião, existe compatibilidade ou incompatibilidade entre as motivações
por valores religiosos (eles são associadas à “boa vontade”) e a busca por resultados eficientes
(eles são associados à “profissionalização”)? De que forma essa situação se realiza na
entidade em que você atua? Diga fatos concretos.
Resposta 3: Nossa entidade é motivada por valores religiosos em paralelo com a
profissionalização dos funcionários para atender melhor os assistidos pela entidade.
259
5. ENTIDADE VERDE (nome fictício)
5.1. CARACTERIZAÇÃO
5.1.1 Mês e ano da coleta das informações: SETEMBRO DE 2009
5.1.2. Declarou possuir vínculo específica com alguma religião? NÃO
5.1.3. Assinalou alguma das 8 (oito) circunstâncias de indício de vínculo religioso? SIM
Quantas? UMA
5.1.4. Natureza jurídica: ASSOCIAÇÃO
5.1.5. Além da inscrição no Conselho Municipal de Assistência Social (CMAS) de
Jundiaí-SP, possui os seguintes títulos, qualificações, certificados e registros:
Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social (CEBAS) (X)
Registro no Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) (X)
Utilidade Pública: Federal (X) Estadual (X) Municipal (X)
Organização da Sociedade Civil de Interesse Pública (OSCIP) ( )
Registro no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (X)
5.1.6. Segmento que atende: CRIANÇAS E ADOLESCENTES (DE 0 A 19 ANOS) COM
DOENÇAS ONCOLÓGICAS E/OU HEMATOLÓGICAS
5.1.7. Área prioritária de atendimento: SAÚDE
5.1.8. Usuários atendidos, número total por ano:
2008: 1.848 2007: 1.942 2006: 1.879
Informações complementares: A entidade utiliza como critério mais preciso o registro de
atendimentos. 2008: 46.873 2007: 42.726 2006: 42.459
5.1.9. Recursos humanos, número total por ano:
Contratados: 2008: 124 2007: 85 2006: 76
Voluntários: 2008: 295 2007: 790 2006: 350
Terceirizados: 2008: 22 2007: 14 2006: 35
Cedidos: 2008: 02 2007: 02 2006: 02
260
Informações complementares: contratados = CLT; terceirizados = cooperados + autônomos +
empresas prestadoras de serviços. Em 2008 mudou-se o critério: CLT pela RAIS e autônomos
pela DIRF
5.2. ENTREVISTA FORNECIDA POR ESCRITO
5.2.1. Cargo do entrevistado: PRESIDENTE (X) Voluntário ou ( ) Remunerado
5.2.2. Perguntas e Respostas
Pergunta 1: Na sua opinião, qual o papel das entidades sociais e/ou assistenciais (entidades
do terceiro setor) na implementação dos direito sociais e no desenvolvimento de políticas
públicas? Existem conflitos entre a atuação dessas entidades nas áreas de saúde, educação e
assistência social e o dever do Estado de prestar atendimento universal e gratuito nessas
áreas? Como a entidade em que você atua se relaciona com o poder público? Diga fatos
concretos.
Resposta 1: Acho que o papel das entidades sociais de um modo geral é o de colaborar
sempre para que seu atendido consiga as coisas que tem direito enquanto cidadão, seja
orientando em relação as políticas públicas, ou encaminhando para onde seja necessário.
Acredito que os conflitos existam principalmente pelo fato que as entidades ainda são vistas
como paternalistas e que almejam para seus assistidos muito além do que o poder público
possa ou pretenda oferecer.
O relacionamento da entidade com o poder público costuma ser bom mas, percebe-se
que isso se deve ao fato que a entidade não exige muito deles e que se houver alguma
distância entre entidade e poder público, eles ( poder) se sentem bem mais confortáveis.
Pergunta 2: Na sua opinião, o “amor ao próximo” e outros ensinamentos religiosos estariam
relacionados a realização de ações assistenciais caritativas (“dar o peixe”; minimizar
sofrimentos), ou também motivariam ações cidadãs voltadas à promoção humana (“ensinar a
pescar”; desenvolver cidadãos) e à transformação da sociedade (“sociedade economicamente
justa, socialmente igualitária e politicamente democrática”)? De que forma essa situação se
realiza na entidade em que você atua? Diga fatos concretos.
261
Resposta 2: Acho que uma coisa não invalida a outra. Sinto que podemos “amar ao próximo”
e oferecer-lhes o peixe enquanto os ensinamos a pescar.
Acho que o grande problema é fazer com que esses indivíduos não se tornem
eternamente dependentes daquilo que lhe é fornecido pela instituição.
Na nossa instituição é bem difícil contornar essa situação uma vez que nem todos,
profissionais e voluntários tem a noção exata do limite tênue de até onde manter o assistido
como tal e de que maneira procurar torná-lo um cidadão na sua totalidade com direitos e
deveres bem definidos.
Pergunta 3: Na sua opinião, existe compatibilidade ou incompatibilidade entre as motivações
por valores religiosos (eles são associadas à “boa vontade”) e a busca por resultados eficientes
(eles são associados à “profissionalização”)? De que forma essa situação se realiza na
entidade em que você atua? Diga fatos concretos.
Resposta 3:.Na minha opinião existe compatibilidade entre as motivações religiosas até
porque se pressupõem que pessoas motivadas por “ boa vontade” estejam mais dispostas a
receberem essa “profissionalização” de uma forma mais aberta.
Nesta instituição não vejo muito o fator religioso atuando de forma contrária a
profissionalização; o que mais percebo é que candidatos a voluntários muito envolvidos com a
religiosidade se predispõem a atuarem em qualquer setor e sob qualquer orientação, dizendo
que “estou aqui para ajudar no que for preciso”, não importa onde.
262
6. ENTIDADE AMARELO (nome fictício)
6.1. CARACTERIZAÇÃO
6.1.1 Mês e ano da coleta das informações: SETEMBRO DE 2009
6.1.2. Declarou possuir vínculo específica com alguma religião? NÃO
6.1.3. Assinalou alguma das 8 (oito) circunstâncias de indício de vínculo religioso? SIM
Quantas? TRÊS
6.1.4. Natureza jurídica: FUNDAÇÃO
6.1.5. Além da inscrição no Conselho Municipal de Assistência Social (CMAS) de
Jundiaí-SP, possui os seguintes títulos, qualificações, certificados e registros:
Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social (CEBAS) ( )
Registro no Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) (X)
Utilidade Pública: Federal (X) Estadual (X) Municipal (X)
Organização da Sociedade Civil de Interesse Pública (OSCIP) ( )
Registro no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (X)
6.1.6. Segmento que atende: CRIANÇAS DE 6 MESES A 15 ANOS ADVINDAS DE
BAIXA RENDA ATRAVÉS DE AÇÕES NA ÁREA DE ENSINO FORMAL E NÃO
FORMAL
Observação do pesquisador:filhos (crianças e adolescentes) de famílias em situação de risco
social – baixa renda, segundo informações extraídas da Ficha do CMAS
6.1.7. Área prioritária de atendimento: EDUCAÇÃO
6.1.8. Usuários atendidos, número total por ano:
2008: 2.325 2007: 2.148 2006: 1.446
Informações complementares: Existe um trabalho conjunto com as famílias objetivando o seu
apoio ao trabalho que realizamos bem como seu desenvolvimento.
6.1.9. Recursos humanos, número total por ano:
Contratados: 2008: 120 2007: 118 2006: 115
Voluntários: 2008: 50 2007: 34 2006: 30
Terceirizados: 2008: 25 2007: 30 2006: 60
Cedidos: 2008: 0 2007: 0 2006: 0
263
6.2. ENTREVISTA FORNECIDA POR ESCRITO
6.2.1. Cargo do entrevistado: DIRETORA ADM. EDUCAC.
( ) Voluntário ou (X) Remunerado
6.2.2. Perguntas e Respostas
Pergunta 1: Na sua opinião, qual o papel das entidades sociais e/ou assistenciais (entidades
do terceiro setor) na implementação dos direito sociais e no desenvolvimento de políticas
públicas? Existem conflitos entre a atuação dessas entidades nas áreas de saúde, educação e
assistência social e o dever do Estado de prestar atendimento universal e gratuito nessas
áreas? Como a entidade em que você atua se relaciona com o poder público? Diga fatos
concretos.
Resposta 1: O papel das entidades sociais no Brasil tem demonstrado ser de fundamental
importância para seu desenvolvimento. Se olharmos este percurso numa perspectiva de 10
anos veremos que as entidades cresceram significativamente no Brasil.
Acredito que uma ação bem estruturada, onde os objetivos de atuação sejam claros,
com pessoal capacitado para este fim pode fazer a real diferença para a comunidade em que
atua.
Hoje, por exemplo, conquistamos o reconhecimento da Secretaria Municipal de
Educação dentro do projeto da educação infantil, onde a nossa Creche e Escola tornou-se
referência para as crianças que delas participam.
Tivemos em agosto a visita de uma pedagogista da região de Reggio Emilia – Itália,
que validou nossa abordagem e trabalho junto a este público infantil.
Promovemos neste mês dois encontros onde professores do município participaram.
O que precisa ficar claro é que as entidades não são concorrentes do poder público,
mas, podem ser referência e parceiras em diversas atividades.
Pergunta 2: Na sua opinião, o “amor ao próximo” e outros ensinamentos religiosos estariam
relacionados a realização de ações assistenciais caritativas (“dar o peixe”; minimizar
sofrimentos), ou também motivariam ações cidadãs voltadas à promoção humana (“ensinar a
pescar”; desenvolver cidadãos) e à transformação da sociedade (“sociedade economicamente
264
justa, socialmente igualitária e politicamente democrática”)? De que forma essa situação se
realiza na entidade em que você atua? Diga fatos concretos.
Resposta 2: O amor ao próximo, na minha opinião, é condição primeira para um trabalho de
assistência social, no entanto, este amor deve valorizar à promoção humana, ou seja, ensinar a
pescar o peixe e não criar uma situação de dependência.
Nossa instituição, no passado, tinha o caráter mais assistencialista do que educativo.
No entanto, o papel de assistência social mudou, não que ele deixou de existir. Por
exemplo, as crianças que freqüentam o nosso espaço não pagam por isso, mas, temos um
trabalho direto com a família de valorização do que é oferecido a seus filhos e uma solicitação
de acompanhamento destas famílias sobre este trabalho.
Pergunta 3: Na sua opinião, existe compatibilidade ou incompatibilidade entre as motivações
por valores religiosos (eles são associadas à “boa vontade”) e a busca por resultados eficientes
(eles são associados à “profissionalização”)? De que forma essa situação se realiza na
entidade em que você atua? Diga fatos concretos.
Resposta 3: Os valores religiosos são presentes através dos nossos alunos. Vem deles este
tema da religião e para nós é de fundamental importância. Mesmo que ainda não estejamos
estruturados para contemplar o aspecto da religiosidade, como no passado,. respeitamos e
sabemos da sua importância.
A busca por resultados eficientes tem sido um objetivo cobrado pelos dirigentes da
instituição e de forma concreta.
No entanto, isto também traz outras questões que são também importantes como
melhores salários, por exemplo.
Independe do aspecto de amor ao próximo e da religião ter um bom profissional está
vinculado a estas questões e a um bom salário.
Por outro lado, se tivermos um bom salário e ignorarmos as demais questões, também
não teremos bons resultados e corremos o risco de nos perdermos na proposta, ficará um
vazio.
Este tema tem sido parte de discussões internas que estamos promovendo para chegar
num bom termo.
Infelizmente o que notamos é que independente dos valores religiosos, o “bolso”
ainda fala mais alto.
265
7. ENTIDADE AZUL (nome fictício)
7.1. CARACTERIZAÇÃO
7.1.1 Mês e ano da coleta das informações: OUTUBRO DE 2009
7.1.2. Declarou possuir vínculo específica com alguma religião? NÃO
7.1.3. Assinalou alguma das 8 (oito) circunstâncias de indício de vínculo religioso? NÃO
Quantas? NENHUMA
7.1.4. Natureza jurídica: ASSOCIAÇÃO
7.1.5. Além da inscrição no Conselho Municipal de Assistência Social (CMAS) de
Jundiaí-SP, possui os seguintes títulos, qualificações, certificados e registros:
Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social (CEBAS) ( )
Registro no Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) ( )
Utilidade Pública: Federal ( ) Estadual (X) Municipal (X)
Organização da Sociedade Civil de Interesse Pública (OSCIP) ( )
Registro no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (X)
7.1.6. Segmento que atende: PACIENTES QUE APRESENTAM TRANSTORNOS
DECORRENTES DO USO E ABUSO DE ÁLCOOL E OUTRAS DROGAS
Observação do pesquisador informação extraída das Ficha do CMAS.
7.1.7. Área prioritária de atendimento: SAÚDE
7.1.8. Usuários atendidos, número total por ano:
2008: 768 2007: 640 2006: 532
7.1.9. Recursos humanos, número total por ano:
Contratados: 2008: 25 2007: 17 2006: 3
Voluntários: 2008: 0 2007: 0 2006: 0
Terceirizados: 2008: 16 2007: 16 2006: 16
Cedidos: 2008: 0 2007: 0 2006: 0
266
7.2. ENTREVISTA FORNECIDA POR ESCRITO
7.2.1. Cargo do entrevistado: PSICÓLOGO/ COODENADOR.
( ) Voluntário ou (X) Remunerado
7.2.2. Perguntas e Respostas
Pergunta 1: Na sua opinião, qual o papel das entidades sociais e/ou assistenciais (entidades
do terceiro setor) na implementação dos direito sociais e no desenvolvimento de políticas
públicas? Existem conflitos entre a atuação dessas entidades nas áreas de saúde, educação e
assistência social e o dever do Estado de prestar atendimento universal e gratuito nessas
áreas? Como a entidade em que você atua se relaciona com o poder público? Diga fatos
concretos.
Resposta 1: As entidades exercem um papel importante na sociedade com relação aos direitos
sociais, um vez que as pessoas atendidas por elas se fortalecem enquanto cidadãos de direito,
tornando-se menos vulneráveis. Com relação ao desenvolvimento de políticas públicas, as
entidades podem contribuir para a elaboração dessas políticas devido a sua experiência na sua
especialidade.
Sim existe muitos conflitos, um vez que o Estado não consegue responder a todas as
necessidades da população, que seria o seu dever, e ao mesmo tempo não entra como parceiro
para que as entidades possam desenvolver suas atividades sem dificuldade e com qualidade.
Sempre foi com dificuldade as discussões entre a entidade e o poder público com
relação ao aspecto financeiro e com relação ao entendimento da parceria realizada entre o
Estado com o terceiro setor. Atualmente a entidade e o poder público tem feito um esforço
para se alinharem nas discussões para alcance de objetivos comuns.
Pergunta 2: Na sua opinião, o “amor ao próximo” e outros ensinamentos religiosos estariam
relacionados a realização de ações assistenciais caritativas (“dar o peixe”; minimizar
sofrimentos), ou também motivariam ações cidadãs voltadas à promoção humana (“ensinar a
pescar”; desenvolver cidadãos) e à transformação da sociedade (“sociedade economicamente
justa, socialmente igualitária e politicamente democrática”)? De que forma essa situação se
realiza na entidade em que você atua? Diga fatos concretos.
267
Resposta 2: Sim acreditamos que os fundamentos religiosos estão incluídos na formação e
humanização das pessoas.
Apesar do [ENTIDADE AZUL] não ser exclusivamente um entidade religiosa, os
profissionais que nela atuam trazem na sua subjetividade os ensinamentos religiosos, que de
alguma forma influenciam positivamente sua atuação profissional.
Pergunta 3: Na sua opinião, existe compatibilidade ou incompatibilidade entre as motivações
por valores religiosos (eles são associadas à “boa vontade”) e a busca por resultados eficientes
(eles são associados à “profissionalização”)? De que forma essa situação se realiza na
entidade em que você atua? Diga fatos concretos.
Resposta 3: Sim existe compatibilidade entre as motivações por valores religiosos e a busca
por resultados eficientes. Os credos e as religiões variam de pessoa para pessoa, na equipe que
faz o tratamento, porém as pessoas que tratam tem valores baseados em credos religiosos.
Tudo isso faz com que as pessoas imprimam isso de forma importante no tratamento, levando
os pacientes a buscarem além das questões de cidadania, também a questão do sagrada e da
espiritualidade que permeia a metodologia.
268
8. ENTIDADE BRANCO (nome fictício)
8.1. CARACTERIZAÇÃO
8.1.1 Mês e ano da coleta das informações: SETEMBRO DE 2009
8.1.2. Declarou possuir vínculo específica com alguma religião? NÃO
8.1.3. Assinalou alguma das 8 (oito) circunstâncias de indício de vínculo religioso? NÃO
Quantas? NENHUMA
8.1.4. Natureza jurídica: ASSOCIAÇÃO
8.1.5. Além da inscrição no Conselho Municipal de Assistência Social (CMAS) de
Jundiaí-SP, possui os seguintes títulos, qualificações, certificados e registros:
Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social (CEBAS) (X)
Registro no Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) (X)
Utilidade Pública: Federal (X) Estadual (X) Municipal (X)
Organização da Sociedade Civil de Interesse Pública (OSCIP) ( )
Registro no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (X)
8.1.6. Segmento que atende: PESSOAS DEFICIENTES AUDITIVAS E OUVINTES COM
DISTÚRBIOS DE MOTRICIDADE ORAL, VOZ E DA LINGUAGEM ORAL, GRÁFICA
E EMOCIONAL
Observação do pesquisador: informação extraída do Estatuto Social
8.1.7. Área prioritária de atendimento: SAÚDE
8.1.8. Usuários atendidos, número total por ano:
2008: 83.873 2007: 66.714 2006: 48.858
Informações complementares: Doações de AASI (Aparelhos de Amplificação Sonora
Individual): 2008: 2.061 2007: 1.110 2006: 588
Observação do pesquisador: os primeiros números referem-se aos procedimentos e não ao
número de pessoas atendidas.
269
8.1.9. Recursos humanos, número total por ano:
Contratados: 2008: 64 2007: 59 2006: 48
Voluntários: 2008: 23 2007: 68 2006: 78
Terceirizados: 2008: 03 2007: 03 2006: 08
Cedidos: 2008: 0 2007: 0 2006: 0
Informações complementares: Estagiário/residente: 2008: 05 2007: 02 2006: 12
8.2. ENTREVISTA FORNECIDA POR ESCRITO
8.2.1. Cargo do entrevistado: DIRETOR 1ª TESOUREIRO
(X) Voluntário ou ( ) Remunerado
8.2.2. Perguntas e Respostas
Pergunta 1: Na sua opinião, qual o papel das entidades sociais e/ou assistenciais (entidades
do terceiro setor) na implementação dos direito sociais e no desenvolvimento de políticas
públicas? Existem conflitos entre a atuação dessas entidades nas áreas de saúde, educação e
assistência social e o dever do Estado de prestar atendimento universal e gratuito nessas
áreas? Como a entidade em que você atua se relaciona com o poder público? Diga fatos
concretos.
Resposta 1: As entidades do terceiro setor, são em meu entendimento, o “Braço do Estado”
para atuar nas questões sociais, desde a implantação até a execução e fiscalização de políticas
públicas, pois, são elas que se relacionam diretamente com os destinatários destas questões.
Entendo que não há conflito entre as áreas de atuação e sim, uma complementação. Elas se
completam e devem receber do Estado os recursos para esta atuação e assim, ela exercita seu
caráter de entidade privada de interesse público e o Estado delega sua obrigação para quem
está mais próximo do problema. A atuação como o Poder Público teoricamente é de
cordialidade e de reconhecimento, entretanto, pessoas despreparadas e distantes deste
entendimento que exercem cargos públicos acabam por tumultuar em determinados
momentos. Caso concreto, falta de preparo técnico na compreensão de um projeto ou de uma
prestação de contas.
270
Pergunta 2: Na sua opinião, o “amor ao próximo” e outros ensinamentos religiosos estariam
relacionados a realização de ações assistenciais caritativas (“dar o peixe”; minimizar
sofrimentos), ou também motivariam ações cidadãs voltadas à promoção humana (“ensinar a
pescar”; desenvolver cidadãos) e à transformação da sociedade (“sociedade economicamente
justa, socialmente igualitária e politicamente democrática”)? De que forma essa situação se
realiza na entidade em que você atua? Diga fatos concretos.
Resposta 2: Na minha opinião as entidades do terceiro setor precisam ser motivadas pela
ética e responsabilidade, pois, este é o verdadeiro fundamento para um exercício de ajuda no
desenvolvimento das pessoas e da melhor distribuição de renda e exercício democrático. De
nada adiantará a prática do amor ao próximo, sem uma conduta ética e de respeito a
verdadeira necessidade do outro e não do que eu acho que é bom para o outro.
Pergunta 3: Na sua opinião, existe compatibilidade ou incompatibilidade entre as motivações
por valores religiosos (eles são associadas à “boa vontade”) e a busca por resultados eficientes
(eles são associados à “profissionalização”)? De que forma essa situação se realiza na
entidade em que você atua? Diga fatos concretos.
Resposta 3: Os valores religiosos acabam por influenciar nas atitudes da maioria das pessoas,
por vezes impera o entendimento no sentido de que a “boa vontade” se sobrepõe ao
profissionalismo, mas isto é cultural e com o tempo se espera seja modificada. De se ressaltar
que a própria Constituição Federal é contraditória neste sentido pois, prega o Estado Laico
(artigo 19), mas expressa frase em que se intitula “Promulgada sob as bênção de Deus”.
271
D) Apresentando os Dados das Entrevistas com Membros Titulares do CMAS de
Jundiaí, Representantes da SEMIS274
1. CONSELHEIRO UM (nome fictício)
Conselheiro titular do CMAS de Jundiaí, representante da SEMIS (órgão gestor da Política
Municipal de Assistência Social)
1.1. ENTREVISTA FORNECIDA POR ESCRITO
1.2. Perguntas e Respostas
Pergunta 1: Na sua opinião, qual o papel das entidades sociais e/ou assistenciais (entidades
do terceiro setor) na implementação dos direito sociais e no desenvolvimento de políticas
públicas? Existem conflitos entre a atuação dessas entidades nas áreas de saúde, educação e
assistência social e o dever do Estado de prestar atendimento universal e gratuito nessas
áreas? Como as entidades inscritas no CMAS de Jundiaí se relacionam com o poder público?
Diga fatos concretos.
Resposta 1: a) As entidades têm papel importantíssimo. Suas atuações estão mencionadas na
LOAS275 e contempladas na Constituição Federal quando se fala da “ sociedade civil
organizada”.
b) Não há conflito, há complemento. Há casos em que a qualidade do serviço
prestado pela ONG é melhor e mais acessível do que a do “Estado”.
c) A relação hoje é mais de parceria. Até o início da década passada havia uma certa
“dependência da ajuda governamental”. O CMAS tem um papel importante nessa mudança,
quando passou a exigir mais planejamento, mais avaliação, mais prestação de contas, etc.etc.
Este avanço foi verbalizado por um membro de entidade numa reunião do Conselho,
mais ou menos nesses termos: “A gente percebe agora quanto que a gente realiza, quanto a
gente gasta e quanto as pessoas se beneficiam do nosso trabalho. Só porque aprendemos a
colocar tudo no papel... fica documentado!”.
Pergunta 2: Na sua opinião, o “amor ao próximo” e outros ensinamentos religiosos estariam
relacionados a realização de ações assistenciais caritativas (“dar o peixe”; minimizar
274 Sobre a metodologia e o universo dos dados, remetemos o leitor aos esclarecimentos do item deste apêndice denominado “Porque um capítulo virou um apêndice e a metodologia da coleta de dados”. 275 A sigla LOAS significa Lei Orgânica da Assistência Social
272
sofrimentos), ou também motivariam ações cidadãs voltadas à promoção humana (“ensinar a
pescar”; desenvolver cidadãos) e à transformação da sociedade (“sociedade economicamente
justa, socialmente igualitária e politicamente democrática”)? De que forma essa situação se
realiza nas entidades inscritas no CMAS de Jundiaí? Diga fatos concretos.
Resposta 2: Entendo que a grande maioria das entidades “nascem” por “amor ao próximo”.
Poderia citar entidades compostas por católicos, evangélicos (generalizando), kardecistas e ,
pelo menos duas umbandistas que tiveram, na sua origem, ações caritativas. “Fazer o bem
sem olhar a quem”. Entendo também que a virtude da caridade não foi afastada, apenas
percebeu-se que é necessário “olhar a quem” se destina “o bem”. Ou seja: não se pode, ou não
se consegue ajudar a criança em situação de rua, se não procurar conhecer sua “ família”ou a
falta dela, sua realidade , seu meio... é preciso buscar mais do que satisfazer a necessidade
imediata, é preciso investir no indivíduo e na sua família. O CMAS, desde o primeiro Plano
Municipal de Assistência Social em 1995 colocou como prioridade a família (onde está a
criança, o idoso, a pessoa com deficiência ou doença crônica, etc). Essa prioridade foi e vem
sendo proposta para todas as entidades inscritas no CMAS.
Pergunta 3: Na sua opinião, existe compatibilidade ou incompatibilidade entre as motivações
por valores religiosos (eles são associadas à “boa vontade”) e a busca por resultados eficientes
(eles são associados à “profissionalização”)? De que forma essa situação se realiza nas
entidades inscritas no CMAS de Jundiaí? Diga fatos concretos.
Resposta 3: Toda profissão, como todo bom profissional precisa ter, pelo menos, dois fatores
essenciais: conhecimento e envolvimento. Assim, não vejo incompatibilidade. “Resultados
eficientes” dependem não só da “profissionalização”, mas também da “boa vontade”.
Conheço pessoas admiráveis, religiosas, verdadeiras missionárias que se despertaram,
procuraram conhecimento científico, se capacitaram, se reciclaram e hoje obtém resultados
muito melhores em seu trabalho. (Ouvi dizer que ”Deus não escolhe os capacitados, mas
capacita os escolhidos”).
Conheço também profissionais que “procuraram emprego” em entidades
beneficentes mas, com o tempo se envolveram com o espírito da obra e seu comprometimento
vai muito além do “emprego”, isso, sem dúvida, resulta em eficiência.
O CMAS exigiu profissionalização, investiu em capacitação (de técnicos e
diretores), promoveu supervisão mas nunca interferiu nos valores religiosos. Eles são, no
mínimo, motivadores de grandes obras sociais.
273
2. CONSELHEIRO DOIS (nome fictício)
Conselheiro titular do CMAS de Jundiaí, representante da SEMIS (órgão gestor da Política
Municipal de Assistência Social)
2.1. ENTREVISTA FORNECIDA POR ESCRITO
2.2. Perguntas e Respostas
Observação do pesquisador: como este Conselheiro iniciou sua atuação tanto na SEMIS
quanto no CMAS em 2009 (ano da entrevista), ele optou por não indicar fatos concretos.
Pergunta 1: Na sua opinião, qual o papel das entidades sociais e/ou assistenciais (entidades
do terceiro setor) na implementação dos direito sociais e no desenvolvimento de políticas
públicas? Existem conflitos entre a atuação dessas entidades nas áreas de saúde, educação e
assistência social e o dever do Estado de prestar atendimento universal e gratuito nessas
áreas? Como as entidades inscritas no CMAS de Jundiaí se relacionam com o poder público?
Diga fatos concretos.
Resposta 1: As entidade sociais são parceiras poderosas na implementação dos direitos
sociais e no desenvolvimento de políticas públicas.
O cristianismo em si é um fator poderosíssimo de transformação das estruturas e das
relações humanas. Assim ocorreu com as “primeiras comunidades dos cristãos”.
Lamentavelmente, os interesses políticos das classes dominantes instrumentalizaram o
pensamento cristão a seu favor. Mesmo os partidos políticos de esquerda (PT) e outros
movimentos sociais oriundos de forte presença cristã se desvirtuaram quando conquistaram o
aparato do Estado.
(...)276
Pergunta 2: Na sua opinião, o “amor ao próximo” e outros ensinamentos religiosos estariam
relacionados a realização de ações assistenciais caritativas (“dar o peixe”; minimizar
sofrimentos), ou também motivariam ações cidadãs voltadas à promoção humana (“ensinar a
pescar”; desenvolver cidadãos) e à transformação da sociedade (“sociedade economicamente
276 O entrevistado justificou a não explicitação de fatos concretos. Vide acima a observação do pesquisador
274
justa, socialmente igualitária e politicamente democrática”)? De que forma essa situação se
realiza nas entidades inscritas no CMAS de Jundiaí? Diga fatos concretos.
Resposta 2: Os ensinamentos religiosos se relacionam à transformação da sociedade. Na
AL277 sobretudo no Brasil o papel da Teologia da Libertação e o engajamento político de
cristãos nos partidos políticos e na luta armada contra as ditaduras na década de 70
contribuíram decisivamente para construção de uma sociedade economicamente justa,
socialmente igualitária e politicamente democrática. Personalidade como D. Helder Câmara,
D. Paulo Evaristo Arns, Adolfo Perez Esquivel, Rigoberto [...] e muitos “mártires” dos
movimentos de libertação se tornaram figuras emblemáticas e referencial de compromisso
evangélico com a construção de uma “nova terra e um novo céu”.
Pergunta 3: Na sua opinião, existe compatibilidade ou incompatibilidade entre as motivações
por valores religiosos (eles são associadas à “boa vontade”) e a busca por resultados eficientes
(eles são associados à “profissionalização”)? De que forma essa situação se realiza nas
entidades inscritas no CMAS de Jundiaí? Diga fatos concretos.
Resposta 3: A compatibilidade é total e absoluta entre as motivações por motivos religiosos e
a busca por resultados eficazes e eficientes. A Cáritas é um exemplo... as diversas pastorais da
CNBB278 e de algumas confissões religiosas não católicas.
(...)279
277 A sigla AL significa América Latina. 278 A sigla CNBB significa Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 279 O entrevistado justificou a não explicitação de fatos concretos. Vide acima a observação do pesquisador
275
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282
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• VOS, Herman e VERVIER, Jacques. Utopia cristã e lógica econômica: tensões e diálogos. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.
• WEBER, Max. A ética protestante e o ‘espírito’ do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
• ________________. Ensaios de sociologia. Orgs. e introd. H. H. Gerth, C. Wright Mills. Rio de Janeiro: LTC, 2002.
• _________________. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília: São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999.
283
ANEXOS ANEXO 1 - FORMULÁRIO DE QUESTIONÁRIO MISTO COM ENTIDADES (ONGS) INSCRITAS NO CONSELHO MUNICIPAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL (CMAS) DE JUNDIAÍ – SP
Instrução 1) Este questionário é dividido em quatro partes autônomos (inclusive estão em folhas separadas para a entrega de cada uma delas a seu respectivo responsável), que devem ser respondidas de forma independente para que não haja indução ou influência nas respostas. Ao final de cada parte desse questionário, o responsável deverá assiná-lo, como prova de autenticidade e veracidade das informações por ele prestadas, juntamente com os anexos TERMOS DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO (TCLE). Após concluídas as quatro partes que formam esse questionário, elas devem ser recolhidas e conjuntamente encaminhadas ao pesquisador, juntamente com os TCLE.
Primeira Parte: perguntas sobre a ENTIDADE (item “A” “Identificação da
Entidade” e item “B” “Informações sobre a Entidade”), cujas respostas ficam sob a responsabilidade do dirigente estatutário representante legal. Ele poderá ser assessorado por quaisquer outros integrantes da entidade.
Segunda Parte: perguntas realizadas diretamente ao DIRIGENTE ESTATUTÁRIO
REPRESENTANTE LEGAL, geralmente identificado como o Diretor Presidente (item “C” “Identificação do Dirigente” e item “D“ “Informações Pessoais do Dirigente”), que deverão ser por ele pessoalmente respondidas.
Terceira Parte: perguntas realizadas diretamente ao GESTOR, geralmente
identificado como coordenador, supervisor, administrador, gerente etc (item “E” “Identificação do Gestor” e item “F“ “Informações Pessoais do Gestor”), que deverão ser por ele pessoalmente respondidas.
Quarta Parte: perguntas realizadas diretamente a MEMBRO COM ATUAÇÃO
EFETIVA, poderá ser um fundador, um voluntário, um funcionário ou outro dirigente ou gestor etc (item “G” “Identificação do Membro” e item “H“ “Informações Pessoais do Membro”), que deverão ser por ele pessoalmente respondidas.
284
PRIMEIRA PARTE - ENTIDADE
A) Identificação da Entidade
1) Nome da Entidade: _________________________________________________________
2) Inscrição no CMAS nº: _______________________. Data da inscrição: _______________
3) CNPJ: ____________________________ 4) Data de fundação: _____________________
5) Endereço: ________________________________________________________________
_____________________ nº: _____________ Complemento: _________________________
Bairro: _________________________ CEP: ________________ Jundiaí - SP
Fone:_________________________ E-mail________________________________
6) Possui filiais? ( ) Sim ou ( ) Não Se positivo, informar os respectivos CNPJs da
filiais: _____________________________________________________________
___________________________________________________________________________
7) Qual é a natureza jurídica da entidade? (colocar X apenas em uma das opções)
Associação ( )
Fundação ( )
Outra ( ) Qual? ________________________________________________
8) Dirigente estatutário representante legal (geralmente identificado como o Diretor
Presidente)
8.1) Nome: _________________________________________________________________
8.2) RG : _________________________ 8.3) CPF: __________________________
8.4) Mandato: início: __________________________ término: ________________________
B) Informações sobre a Entidade:
Instrução 2) Na medida do possível, sugere-se que para as respostas sejam utilizadas informações já prestadas ao Conselho Municipal de Assistência Social (CMAS) (vide Fichas de Inscrição ou Atualizações, entregues anualmente) e, se for o caso, informações já prestadas ao Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente de Jundiaí (CMDCA) (vide Formulários de Registro ou Renovações, entregues anualmente).
285
9) Quais destes Títulos, Qualificações, Certificados ou Registros a entidade possui? (colocar
X em todas as opções preenchidas pela entidade)
Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social (CEBAS) ( )
Registro no Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) ( )
Utilidade Pública: Federal ( ) Estadual ( ) Municipal ( )
Organização da Sociedade Civil de Interesse Pública (OSCIP) ( )
Registro no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente ( )
Outro ( ) Qual? ___________________________________________________________
10) Segmento que atende (vide Estatuto Social): ____________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
11) Em função do segmento que atende prioritariamente, a entidade atua em quais das
seguintes áreas? (colocar X apenas em uma das opções) (na dúvida entre sua qualificação
perante o CNAS em função da gratuidade praticada e seu efetivo atendimento, levar em conta
este último critério).
Educação ( ) Saúde ( ) Assistência Social ( )
12) Usuários atendidos, número total por ano:
2008: _____________ 2007: _____________ 2006: ___________
Informações complementares (se a entidade julgar necessário): ________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
286
13) Recursos humanos, número total por ano:
Contratados: 2008: _____________ 2007: _____________ 2006: ____________
Voluntários: 2008: _____________ 2007: _____________ 2006: ____________
Terceirizados: 2008: _____________ 2007: _____________ 2006: ____________
Cedidos: 2008: _____________ 2007: _____________ 2006: ____________
Informações complementares (se a entidade julgar necessário): ________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
Instrução 3) Para efeito deste questionário, possuir vínculo religioso não pressupõe qualquer atitude discriminatória no atendimento aos usuários e tampouco que a administração, o funcionamento e o desenvolvimento das atividade sociais e/ou assistenciais da entidade não respeitem a laicidade do Estado. Para melhor compreensão e exatidão das respostas, sugere-se que seja respondido primeiramente o item “14.3”, para depois se responder os itens “14.1” e “14.2” 14. Vínculo Religioso:
14.1) A Entidade possui vínculo específica com alguma religião? ( ) Sim ou ( ) Não
14.2) Com qual religião? (colocar X apenas em uma das opções)
Católica ( )
Evangélica Pentecostal ( ) Qual? ______________________________
Evangélica não Pentecostal ( ) Qual? ______________________________
Espírita ( )
Umbanda ( )
Candomblé ( )
Com outra religião ( ) Qual? ______________________________
Não tem vínculo com religião ( )
287
14.3) O vínculo religioso decorre de quais destas circunstâncias? (colocar o X em todas as
opções preenchidas pela entidade)
O nome da entidade decorreu de vínculo com a religião ( )
O grupo de fundadores e/ou a origem da entidade estão vinculados à religião ( )
Existe disposição no Estatuto Social que indique a observância
de doutrinas, preceitos e valores vinculados à religião ( )
Especificar: _________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
A entidade é inscrita ou participa de alguma organização e/ou rede
que congrega entidades vinculadas à religião ( )
Especificar: _________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
É realizado com regularidade na entidade algum ato
vinculado à religião (missa, culto, reunião, oração coletiva etc) ( )
Especificar:__________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
O grupo de dirigentes atuais da entidade é vinculado à religião ( )
A maioria dos associados é vinculado à religião ( )
Existe orientação e/ou incentivo dos atuais dirigentes da entidade sobre a
observância da doutrina, preceitos e valores vinculados à religião ( )
Especificar:__________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
Jundiaí, _______ de ____________________ de 200___
________________________________________________________________
Assinatura do representante legal da entidade, responsável pelas informações
288
SEGUNDA PARTE – DIRIGENTE ESTATUTÁRIO
C) Identificação do Dirigente Estatuário Representante Legal da Entidade (geralmente
identificado como o Diretor Presidente)
15) Nome: __________________________________________________________________
16) R.G. nº: __________________________ 17) C.P.F. nº: ______________________
18) Endereço: _______________________________________________________________
_____________________ nº: _____________ Complemento: _________________________
Bairro: ______________________ CEP: ________________ Cidade: _______________
Fone:_________________________ E-mail__________________________________
19) Cargo: _________________________________ ( ) Voluntário ou ( ) Remunerado
20) Mandato: início: __________________________ término: ________________________
21) Formação profissional:_____________________________________________________
D) Informações Pessoais do Dirigente
22) Qual é sua religião? (colocar X apenas em uma das opções)
Católica ( )
Evangélica Pentecostal ( ) Qual? ______________________________
Evangélica não Pentecostal ( ) Qual? ______________________________
Espírita ( )
Umbanda ( )
Candomblé ( )
Outra religião ( ) Qual? ______________________________
Não tem religião ( )
289
23) Qual a sua freqüência nas atividade de sua religião (cultos, missas, reuniões, encontros
etc)? ? (colocar X apenas em uma das opções)
Mais de uma vez por semana ( )
Uma vez por semana ( )
Duas ou três vezes por mês ( )
Uma vez por mês ( )
Algumas vezes por ano ou
esporadicamente ( )
Não freqüenta ( )
24) Você considera que os ensinamentos (doutrinas, preceitos, valores etc) de sua religião
influenciam, motivam e/ou orientam suas atitudes e decisões? (colocar X apenas em uma das
opções)
Totalmente ( )
Na maioria das vezes ( )
Algumas vezes ( )
Raramente ( )
Nunca ( )
25) Você considera que os ensinamentos (doutrinas, preceitos, valores etc) de sua religião
influenciam e/ou motivam sua atuação numa entidade social e/ou assistencial? (colocar X
apenas em uma das opções)
Totalmente ( )
Muito ( )
De forma mediana ( )
Pouco ( )
Não influenciam ( )
290
26) Quais valores, preceitos ou doutrinas influenciam e/ou motivam sua atuação na entidade?
(escrever no máximo três, por ordem de importância, sendo “1” o mais importante)
1) _________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
2) _________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
3) _________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
27) Para você, qual a importância dos fatores abaixo como motivadores da prestação de
serviços voluntários e da realização de doações a entidades sociais e/ou assistências? (colocar
X em apenas uma das opções de cada escala crescente por ordem de importância; nesta
escala, “01” significa “não é importante” e “10” significa “muito importante”)
27.1) Amor ao próximo:
01( ) 02( ) 03( ) 04( ) 05( ) 06( ) 07( ) 08( ) 09( ) 10( )
27.2) Dever do cidadão:
01( ) 02( ) 03( ) 04( ) 05( ) 06( ) 07( ) 08( ) 09( ) 10( )
27.3) Ajudar os pobres, carentes e necessitados:
01( ) 02( ) 03( ) 04( ) 05( ) 06( ) 07( ) 08( ) 09( ) 10( )
27.4) Construir uma sociedade livre, justa e solidária:
01( ) 02( ) 03( ) 04( ) 05( ) 06( ) 07( ) 08( ) 09( ) 10( )
27.5) Minimizar sofrimentos:
01( ) 02( ) 03( ) 04( ) 05( ) 06( ) 07( ) 08( ) 09( ) 10( )
27.6) Desenvolver cidadãos:
01( ) 02( ) 03( ) 04( ) 05( ) 06( ) 07( ) 08( ) 09( ) 10( )
Jundiaí, _______ de ____________________ de 200___
________________________________________________________________
Assinatura do dirigente estatutário, responsável por suas informações pessoais
291
TERCEIRA PARTE – GESTOR
E) Identificação do Gestor (geralmente identificado como o coordenador, supervisor,
administrador, gerente etc)
28) Nome: __________________________________________________________________
29) R.G. nº: __________________________ 30) C.P.F. nº: ______________________
31) Endereço: _______________________________________________________________
_____________________ nº: _____________ Complemento: _________________________
Bairro: ______________________ CEP: ________________ Cidade: _______________
Fone:_________________________ E-mail: _________________________________
32) Cargo: _________________________________ ( ) Voluntário ou ( ) Remunerado
33) Tempo em que exerce o cargo/função (início) :__________________________________
34) Formação profissional:_____________________________________________________
F) Informações Pessoais do Gestor
35) Qual é sua religião? (colocar X apenas em uma das opções)
Católica ( )
Evangélica Pentecostal ( ) Qual? ______________________________
Evangélica não Pentecostal ( ) Qual? ______________________________
Espírita ( )
Umbanda ( )
Candomblé ( )
Outra religião ( ) Qual? ______________________________
Não tem religião ( )
292
36) Qual a sua freqüência nas atividade de sua religião (cultos, missas, reuniões, encontros
etc)? (colocar X apenas em uma das opções)
Mais de uma vez por semana ( )
Uma vez por semana ( )
Duas ou três vezes por mês ( )
Uma vez por mês ( )
Algumas vezes por ano,
mas não mensalmente ( )
Não freqüenta ( )
37) Você considera que os ensinamentos (doutrinas, preceitos, valores etc) de sua religião
influenciam, motivam e/ou orientam suas atitudes e decisões? (colocar X apenas em uma das
opções)
Totalmente ( )
Na maioria das vezes ( )
Algumas vezes ( )
Raramente ( )
Nunca ( )
38) Você considera que os ensinamentos (doutrinas, preceitos, valores etc) de sua religião
influenciam e/ou motivam sua atuação numa entidade social e/ou assistencial? (colocar X
apenas em uma das opções)
Totalmente ( )
Muito ( )
De forma mediana ( )
Pouco ( )
Não influenciam ( )
293
39) Quais valores, preceitos ou doutrinas influenciam e/ou motivam sua atuação na entidade?
(escrever no máximo três, por ordem de importância, sendo “1” o mais importante)
1) _________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
2) _________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
3) _________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
40) Para você, qual a importância dos fatores abaixo como motivadores da prestação de
serviços voluntários e da realização de doações a entidades sociais e/ou assistências? (colocar
X em apenas uma das opções de cada escala crescente por ordem de importância; nesta
escala, “01” significa “não é importante” e “10” significa “muito importante”)
40.1) Amor ao próximo:
01( ) 02( ) 03( ) 04( ) 05( ) 06( ) 07( ) 08( ) 09( ) 10( )
40.2) Dever do cidadão:
01( ) 02( ) 03( ) 04( ) 05( ) 06( ) 07( ) 08( ) 09( ) 10( )
40.3) Ajudar os pobres, carentes e necessitados:
01( ) 02( ) 03( ) 04( ) 05( ) 06( ) 07( ) 08( ) 09( ) 10( )
40.4) Construir uma sociedade livre, justa e solidária:
01( ) 02( ) 03( ) 04( ) 05( ) 06( ) 07( ) 08( ) 09( ) 10( )
40.5) Minimizar sofrimentos:
01( ) 02( ) 03( ) 04( ) 05( ) 06( ) 07( ) 08( ) 09( ) 10( )
40.6) Desenvolver cidadãos:
01( ) 02( ) 03( ) 04( ) 05( ) 06( ) 07( ) 08( ) 09( ) 10( )
Jundiaí, _______ de ____________________ de 200___
________________________________________________________________
Assinatura do gestor, responsável por suas informações pessoais
294
QUARTA PARTE – MEMBRO COM ATUAÇÃO EFETIVA
G) Identificação do Membro com Atuação Efetiva (poderá ser um fundador, um
voluntário, um funcionário ou outro dirigente ou gestor etc)
41) Nome: __________________________________________________________________
42) R.G. nº: __________________________ 43) C.P.F. nº: ______________________
44) Endereço: _______________________________________________________________
_____________________ nº: _____________ Complemento: _________________________
Bairro: ______________________ CEP: ________________ Cidade: _______________
Fone:_________________________ E-mail: _________________________________
45) Cargo/Função: ______________________________ ( ) Voluntário ou ( ) Remunerado
46) Tempo em que exerce o cargo/função (início) :__________________________________
47) Formação profissional:_____________________________________________________
H) Informações Pessoais do Gestor
48) Qual é sua religião? (colocar X apenas em uma das opções)
Católica ( )
Evangélica Pentecostal ( ) Qual? ______________________________
Evangélica não Pentecostal ( ) Qual? ______________________________
Espírita ( )
Umbanda ( )
Candomblé ( )
Outra religião ( ) Qual? ______________________________
Não tem religião ( )
295
49) Qual a sua freqüência nas atividade de sua religião (cultos, missas, reuniões, encontros
etc)? (colocar X apenas em uma das opções)
Mais de uma vez por semana ( )
Uma vez por semana ( )
Duas ou três vezes por mês ( )
Uma vez por mês ( )
Algumas vezes por ano,
mas não mensalmente ( )
Não freqüenta ( )
50) Você considera que os ensinamentos (doutrinas, preceitos, valores etc) de sua religião
influenciam, motivam e/ou orientam suas atitudes e decisões? (colocar X apenas em uma das
opções)
Totalmente ( )
Na maioria das vezes ( )
Algumas vezes ( )
Raramente ( )
Nunca ( )
51) Você considera que os ensinamentos (doutrinas, preceitos, valores etc) de sua religião
influenciam e/ou motivam sua atuação numa entidade social e/ou assistencial? (colocar X
apenas em uma das opções)
Totalmente ( )
Muito ( )
De forma mediana ( )
Pouco ( )
Não influenciam ( )
296
52) Quais valores, preceitos ou doutrinas influenciam e/ou motivam sua atuação na entidade?
(escrever no máximo três, por ordem de importância, sendo “1” o mais importante)
1) _________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
2) _________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
3) _________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
53) Para você, qual a importância dos fatores abaixo como motivadores da prestação de
serviços voluntários e da realização de doações a entidades sociais e/ou assistências? (colocar
X em apenas uma das opções de cada escala crescente por ordem de importância; nesta
escala, “01” significa “não é importante” e “10” significa “muito importante”)
54.1) Amor ao próximo:
01( ) 02( ) 03( ) 04( ) 05( ) 06( ) 07( ) 08( ) 09( ) 10( )
54.2) Dever do cidadão:
01( ) 02( ) 03( ) 04( ) 05( ) 06( ) 07( ) 08( ) 09( ) 10( )
54.3) Ajudar os pobres, carentes e necessitados:
01( ) 02( ) 03( ) 04( ) 05( ) 06( ) 07( ) 08( ) 09( ) 10( )
54.4) Construir uma sociedade livre, justa e solidária:
01( ) 02( ) 03( ) 04( ) 05( ) 06( ) 07( ) 08( ) 09( ) 10( )
54.5) Minimizar sofrimentos:
01( ) 02( ) 03( ) 04( ) 05( ) 06( ) 07( ) 08( ) 09( ) 10( )
54.6) Desenvolver cidadãos:
01( ) 02( ) 03( ) 04( ) 05( ) 06( ) 07( ) 08( ) 09( ) 10( )
Jundiaí, _______ de ____________________ de 200___
________________________________________________________________
Assinatura do membro, responsável por suas informações pessoais
297
ANEXO 2 - ROTEIRO DE ENTREVISTA SEMI-ESTRUTURADA COM DIRIGENTES OU GESTORES DAS ENTIDADES (ONGS) INSCRITAS NO CONSELHO MUNICIPAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL (CMAS) DE JUNDIAÍ – SP.
Observações. Esta entrevista será gravada e transcrita pelo pesquisador. Em função das perguntas abaixo terem caráter de diretriz (roteiro) para a entrevista, quando de sua efetiva realização, inclusive em decorrência de eventuais esclarecimentos do pesquisador, as perguntas poderão sofrer variações. Antes da realização da entrevista, deverá ser firmado o anexo TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO (TCLE). NA PRÁTICA A ENTREVISTA FOI FORNECIDA POR ESCRITO PELO ENTREVISTADO.
A) Identificação do Entrevistado
1) Nome: ___________________________________________________________________
2) R.G. nº: _________________________ 3) C.P.F. nº: _______________________
4) Entidade em que atua: _______________________________________________________
5) Cargo: _________________________________ ( ) Voluntário ou ( ) Remunerado
6) Tempo em que exerce o cargo/função (início) ____________________________________
7) Formação profissional: ______________________________________________________
B) Perguntas
8) Na sua opinião, qual o papel das entidades sociais e/ou assistenciais (entidades do terceiro
setor) na implementação dos direito sociais e no desenvolvimento de políticas públicas?
Existem conflitos entre a atuação dessas entidades nas áreas de saúde, educação e assistência
social e o dever do Estado de prestar atendimento universal e gratuito nessas áreas? Como a
entidade em que você atua se relaciona com o poder público? Diga fatos concretos.
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
9) Na sua opinião, o “amor ao próximo” e outros ensinamentos religiosos estariam
relacionados a realização de ações assistenciais caritativas (“dar o peixe”; minimizar
sofrimentos), ou também motivariam ações cidadãs voltadas à promoção humana (“ensinar a
pescar”; desenvolver cidadãos) e à transformação da sociedade (“sociedade economicamente
justa, socialmente igualitária e politicamente democrática”)? De que forma essa situação se
realiza na entidade em que você atua? Diga fatos concretos.
___________________________________________________________________________
298
___________________________________________________________________________
10) Na sua opinião, existe compatibilidade ou incompatibilidade entre as motivações por
valores religiosos (eles são associadas à “boa vontade”) e a busca por resultados eficientes
(eles são associados à “profissionalização”)? De que forma essa situação se realiza na
entidade em que você atua? Diga fatos concretos.
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
299
ANEXO 3 - FORMULÁRIO DE QUESTIONÁRIO MISTO COM MEMBROS TITULARES DO CONSELHO MUNICIPAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL (CMAS) DE JUNDIAÍ, REPRESENTANTES DA SECRETARIA MUNICIPAL DE INTEGRAÇÃO SOCIAL (SEMIS)
Instrução: Ao final desse questionário, o responsável deverá assiná-lo, como prova de autenticidade e veracidade das informações por ele prestadas, juntamente com os anexos TERMOS DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO (TCLE). EMBORA COLETADOS, OPTAMOS POR NÃO APRESENTAR ESTES DADOS. A) Identificação do Membro Titular (Conselheiro) do CMAS, Representantes da SEMIS
1) Nome: ___________________________________________________________________
2) R.G. nº: ___________________________ 3) C.P.F. nº: _______________________
4) Endereço: ________________________________________________________________
_____________________ nº: _____________ Complemento: _________________________
Bairro: ______________________ CEP: ________________ Cidade: _______________
Fone:_________________________ E-mail__________________________________
5) Cargo na SEMIS: __________________________________________________________
6) Tempo em que exerce o cargo/função: início :____________________________________
7) Cargo na CMAS: __________________________________________________________
8) Mandato: início: __________________________ término: ________________________
9) Formação profissional:_____________________________________________________
B) Informações Pessoais do Conselheiro
10) Qual é sua religião? (colocar X apenas em uma das opções)
Católica ( )
Evangélica Pentecostal ( ) Qual? ______________________________
Evangélica não Pentecostal ( ) Qual? ______________________________
Espírita ( )
Umbanda ( )
Candomblé ( )
Outra religião ( ) Qual? ______________________________
Não tem religião ( )
300
11) Qual a sua freqüência nas atividade de sua religião (cultos, missas, reuniões, encontros
etc)? (colocar X apenas em uma das opções)
Mais de uma vez por semana ( )
Uma vez por semana ( )
Duas ou três vezes por mês ( )
Uma vez por mês ( )
Algumas vezes por ano ou
esporadicamente ( )
Não freqüenta ( )
12) Você considera que os ensinamentos (doutrinas, preceitos, valores etc) de sua religião
influenciam, motivam e/ou orientam suas atitudes e decisões? (colocar X apenas em uma das
opções)
Totalmente ( )
Na maioria das vezes ( )
Algumas vezes ( )
Raramente ( )
Nunca ( )
13) Você considera que os ensinamentos (doutrinas, preceitos, valores etc) de sua religião
influenciam e/ou motivam sua atuação como agente público no campo social e/ou
assistencial? (colocar X apenas em uma das opções)
Totalmente ( )
Muito ( )
De forma mediana ( )
Pouco ( )
Não influenciam ( )
301
14) Quais valores, preceitos ou doutrinas influenciam e/ou motivam sua atuação no campo
social e/ou assistencial? (escrever no máximo três, por ordem de importância, sendo “1” o
mais importante)
1) _________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
2) _________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
3) _________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
15) Para você, qual a importância dos fatores abaixo como motivadores da prestação de
serviços voluntários e da realização de doações a entidades sociais e/ou assistências? (colocar
o X em apenas uma das opções de cada escala crescente por ordem de importância; nesta
escala, “01” significa “não é importante” e “10” significa “muito importante”)
15.1) Amor ao próximo:
01( ) 02( ) 03( ) 04( ) 05( ) 06( ) 07( ) 08( ) 09( ) 10( )
15.2) Dever do cidadão:
01( ) 02( ) 03( ) 04( ) 05( ) 06( ) 07( ) 08( ) 09( ) 10( )
15.3) Ajudar os pobres, carentes e necessitados:
01( ) 02( ) 03( ) 04( ) 05( ) 06( ) 07( ) 08( ) 09( ) 10( )
15.4) Construir uma sociedade livre, justa e solidária:
01( ) 02( ) 03( ) 04( ) 05( ) 06( ) 07( ) 08( ) 09( ) 10( )
15.5) Minimizar sofrimentos:
01( ) 02( ) 03( ) 04( ) 05( ) 06( ) 07( ) 08( ) 09( ) 10( )
15.6) Desenvolver cidadãos:
01( ) 02( ) 03( ) 04( ) 05( ) 06( ) 07( ) 08( ) 09( ) 10( )
Jundiaí, _______ de ____________________ de 200___
________________________________________________________________
Assinatura do Conselheiro, responsável por suas informações pessoais.
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ANEXO 4 - ROTEIRO DE ENTREVISTA SEMI-ESTRUTURADA, COM OS DOIS MEMBROS TITULARES DO CONSELHO MUNICIPAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL (CMAS) DE JUNDIAÍ, REPRESENTANTES DA SECRETARIA MUNICIPAL DE INTEGRAÇÃO SOCIAL (SEMIS)
Observações. Esta entrevista será gravada e transcrita pelo pesquisador. Em função das perguntas abaixo terem caráter de diretriz (roteiro) para a entrevista, quando de sua efetiva realização, inclusive em decorrência de eventuais esclarecimentos do pesquisador, as perguntas poderão sofrer variações. Antes da realização da entrevista, deverá ser firmado o anexo TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO (TCLE). NA PRÁTICA A ENTREVISTA FOI FORNECIDA POR ESCRITO PELO ENTREVISTADO.
A) Identificação do Conselheiro
1) Nome: ___________________________________________________________________
2) R.G. nº: ___________________________ 3) C.P.F. nº: _______________________
4) Cargo na SEMIS: __________________________________________________________
5) Tempo em que exerce o cargo/função: início :____________________________________
6) Cargo na CMAS: __________________________________________________________
7) Mandato: início: __________________________ término: _________________________
8) Formação profissional:______________________________________________________
B) Perguntas
8) Na sua opinião, qual o papel das entidades sociais e/ou assistenciais (entidades do terceiro
setor) na implementação dos direito sociais e no desenvolvimento de políticas públicas?
Existem conflitos entre a atuação dessas entidades nas áreas de saúde, educação e assistência
social e o dever do Estado de prestar atendimento universal e gratuito nessas áreas? Como as
entidades inscritas no CMAS de Jundiaí se relacionam com o poder público? Diga fatos
concretos.
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
9) Na sua opinião, o “amor ao próximo” e outros ensinamentos religiosos estariam
relacionados a realização de ações assistenciais caritativas (“dar o peixe”; minimizar
sofrimentos), ou também motivariam ações cidadãs voltadas à promoção humana (“ensinar a
pescar”; desenvolver cidadãos) e à transformação da sociedade (“sociedade economicamente
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justa, socialmente igualitária e politicamente democrática”)? De que forma essa situação se
realiza nas entidades inscritas no CMAS de Jundiaí? Diga fatos concretos.
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
10) Na sua opinião, existe compatibilidade ou incompatibilidade entre as motivações por
valores religiosos (eles são associadas à “boa vontade”) e a busca por resultados eficientes
(eles são associados à “profissionalização”)? De que forma essa situação se realiza nas
entidades inscritas no CMAS de Jundiaí? Diga fatos concretos.
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