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TRATADO DE DIREITO ADMINISTRATIVO ESPECIAL VOLUME VII

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TRATADO DE

Direito ADministrAtivo especiAl

VOLUME VII

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TRATADO DE

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VOLUME VII

COORDENADORES

PAULO  OTERO  PEDRO GONНALVES Professor da Faculdade de Direito de Lisboa Professor da Faculdade de Direito de Coimbra

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––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––bi b l i o t e c A n Ac i o n A l D e p o rt u g A l – c AtA l o g Aç ão n A p u b l i c Aç ão

TRATADO DE DIREITO ADMINISTRATIVOESPECIAL

Tratado de direito administrativo especial / coord.Paulo Otero, Pedro Gonçalves7º v.: p. - ISBN 978-972-40-6417-8

I – OTERO, Paulo, 1963-II – GONÇALVES, Pedro

CDU 342

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DIREITO DE ASILO

A. sofiA pinto oliveirA

1. INTRODUÇÃO

“É garantido o direito de asilo aos estrangeiros e aos apátridas perse-guidos ou gravemente ameaçados de perseguição, em consequência da sua atividade em favor da democracia, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana”.

Através da consagração deste direito, no artigo 33.º, número 8 da Cons-tituição, o Estado reconhece um direito subjetivo a estrangeiros e apátridas vítimas de perseguição e assume o compromisso de se abster de exercer alguns poderes relativamente a estrangeiros (como o poder de recusar a admissão ao território ou de expulsar quem nele se encontre em situação irregular), propondo-se proteger no seu território aqueles que se prove serem efetivamente refugiados, porque sofreram – ou correm o risco de vir a sofrer – graves violações dos seus direitos fundamentais no seu Estado de origem ou de residência habitual e porque as autoridades do seu país não atuam na defesa daqueles seus direitos.

A ausência de proteção por parte do(s) Estado(s) de que se é nacional (no caso dos estrangeiros) ou do Estado onde se fixou residência habitual (no caso dos apátridas) é condição para poder invocar o direito de asilo. Este constitui uma forma de proteção internacional e é, por isso, subsidiá- rio em relação à proteção nacional (ou do Estado de residência habitual)1.

1 Sobre a etimologia, génese e evolução histórica do direito de asilo, ver o nosso O Direito de Asilo na Constituição Portuguesa – âmbito de protecção de um direito funda-mental, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, p. 20-91.

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6 A. Sofia Pinto Oliveira

Existem, hoje, consagradas no ordenamento jurídico português e europeu, outras formas de proteção internacional, para além do direito de asilo. Uma delas merece especial destaque: a chamada proteção subsidi-ária, que consiste, fundamentalmente, num direito invocável por quem sofre (ou pode vir a sofrer) ofensas graves dos seus direitos fundamentais, não por ser vítima de perseguição, mas na sequência de situações de conflito armado ou de sistemática violação dos direitos humanos no seu país de origem.

Esta forma de proteção assume especial relevo, porque se verifica uma tendência na Europa2 para assimilar estas duas formas de proteção aos estrangeiros ou apátridas numa figura mais abrangente de proteção inter-nacional. A proteção subsidiária assume-se como duplamente subsidiária: subsidiária, em primeiro lugar, face à proteção nacional e subsidiária ainda face ao direito de asilo stricto sensu, uma vez que só diante da conclusão de que os pressupostos para o reconhecimento do direito de asilo não se verificam na situação concreta se procede á análise dos pressupostos para o reconhecimento da proteção subsidiária.

Neste texto, tratar-se-ão as duas formas de proteção internacional: o asilo stricto sensu e a proteção subsidiária. Poderá dizer-se que, assim sendo, o título “Direito de asilo” induz em erro. Parece-nos, no entanto, que não é assim. O direito de asilo é uma designação sedimentada entre os juristas e não só, que pode e deve, a nosso ver, continuar a designar, por sinédoque, ambas as formas de proteção internacional concedidas pelos Estados nos seus territórios a estrangeiros e apátridas, cujos direitos fundamentais mais básicos estão ameaçados no Estado de origem. Na definição concreta das condições para o reconhecimento dessas formas de proteção, surgem depois diferenciações, de que trataremos, e graças às quais se tem vindo a alargar o âmbito da proteção que o direito de asilo confere.

2 A Diretiva 2004/83/CE, do Conselho, de 29 de abril, entretanto alterada pela Dire-tiva 2011/95/CE, de 13 de dezembro, regula conjuntamente as duas figuras e apresenta o conceito de protecção internacional como designação comum para ambas. Nas leis portu-guesas de asilo, sempre se previu ao lado do asilo, em sentido próprio, uma segunda forma de protecção: “asilo por razões humanitárias” (no artigo 2.º da lei 38/80, de 1 de agosto); “regime excepcional por razões humanitárias” (no artigo 10.º da lei 70/93, de 29 de setembro); “autorização de residência por razões humanitárias” (no artigo 8.º da lei 15/98, de 26 de março). Na lei 27/2008, de 30 de junho, actualmente em vigor, integra-se no nosso ordena-mento jurídico a figura da “protecção internacional” como resultado da soma do direito de asilo com a protecção subsidiária (ver artigo 2.º, número 1, alínea ab) da actual lei).

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Direito de asilo 7

1.1. As principAis fontes Do Direito De Asilo

Em Portugal, foi a Constituição de 1976 que consagrou, pela primeira vez, o direito de asilo. A revisão de 1982 transferiu-o do conjunto de artigos dedicados aos Princípios Fundamentais da República para a Parte I, relativa aos Direitos e Deveres Fundamentais e, dentro desta, para o Título relativo aos direitos, liberdades e garantias pessoais. O enunciado da norma não sofreu, no entanto, alterações significativas desde então, encontrando-se hoje o direito de asilo previsto no artigo 33.º, número 8 da Constituição3.

Também a Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH) prevê, no seu artigo 14.º, o direito de buscar e de beneficiar de asilo (e não o direito de obter asilo, o que não permite reconhecer o dever de os Estados de concederem asilo) e, sem definir quem pode beneficiar de asilo, deter-mina, pela negativa, quem está excluído do domínio dos seus possíveis beneficiários:  todos aqueles que tiverem praticado atividades contrárias aos fins e aos princípios das Nações Unidas ou que sejam acusados de um crime de direito comum.

A Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), de 1950, não inclui o direito subjetivo de asilo explicitamente no seu articulado prin-cipal nem em nenhum dos Protocolos Adicionais, muito embora tal inclusão tenha sido diversas vezes proposta4. Alguns dos Protocolos Adicionais à Convenção contêm algumas normas limitadoras do poder de expulsão dos Estados relativamente a estrangeiros, concretamente, o artigo 4.º no quarto Protocolo e no sétimo Protocolo. Tal circunstância não foi, como veremos, impedimento a que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tivesse interferido (e continua a interferir) no modo como os Estados tratam os pedidos de asilo e os seus requerentes.

Em 1960, Portugal vinculou-se à Convenção de Genebra de 1951 sobre o Estatuto do Refugiado5, que é, ainda hoje, um texto de referência funda-

3 Sobre o sentido e o alcance da previsão na Constituição Portuguesa do direito funda-mental ao asilo, ver o nosso O Direito de Asilo na Constituição Portuguesa – âmbito de protecção de um direito fundamental, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, p. 95-155.

4 Sobretudo através da Assembleia, foram adoptados diversos actos de carácter não vinculativo, tais como relatórios, recomendações e resoluções em matéria de asilo e de protecção humanitária. Sobre estas, ver José Noronha Rodrigues, “Políticas de Asilo e Direito de Asilo na União Europeia”, em Scientia Iuridica, 2010, p. 13-17.

5 Através do Decreto-Lei 43201, de 1 de outubro de 1960. Os Estados, nos termos do artigo 1B da Convenção, poderiam optar, no momento da assinatura, ratificação ou adesão

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8 A. Sofia Pinto Oliveira

mental nesta matéria. Muito embora a Convenção não preveja o direito de asilo para as vítimas de perseguição, contém um conjunto de disposições muito importantes relativamente aos deveres dos Estados no que aos refu-giados se refere.

Em primeiro lugar, a Convenção contém uma definição de refugiado, à volta da qual se criou hoje um largo consenso. No artigo 1A, o refugiado é definido como uma pessoa “que, em consequência de acontecimentos ocor-ridos antes de 1 de Janeiro de 1951, e receando com razão ser perseguida em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou das suas opiniões políticas, se encontre fora do país de que tem a nacionalidade e não possa ou, em virtude do dito receio, não queira pedir a proteção daquele país(...)”.6

Outro importante avanço consistiu na proibição da devolução ou, na terminologia francesa universalizada, do refoulement dos refugiados para o(s) país(es) onde alegam ser vítimas de perseguição (artigo 33.º, número 1). Não tendo sido possível a consagração de um direito de obter proteção com o correspondente dever de acolhimento por parte dos Estados, o suce-dâneo de proteção que foi possível criar foi este: o da proteção face ao refou-lement, que apenas garante ao refugiado que este não poderá ser expulso “para os territórios onde a sua vida ou a sua liberdade sejam ameaçadas em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou opiniões políticas” (artigo 33.º, número 1, in fine). A proibição do refoulement não é, no entanto, absoluta, podendo o Estado invocar razões de segurança pública para proceder à “devolução”, nos termos do artigo 33.º, número 2, da mesma Convenção.

à Convenção de Genebra, por restringir a aplicação da Convenção aos refugiados que fossem vítimas de acontecimentos ocorridos só na Europa ou também fora desta. Portugal declarou que a Convenção se aplicaria apenas aos refugiados em resultado dos acontecimentos ocor-ridos na Europa. Esta reserva veio depois a ser eliminada pela Decreto-Lei n.º 281/76, de 17 de abril, que deu nova redacção ao Decreto-Lei n.º 43201 pelo que as obrigações assu-midas pelo Estado português, por força da Convenção de Genebra, se alargaram às vítimas de acontecimentos ocorridos na Europa ou fora dela.

6 O Protocolo de Nova Iorque de 31 de janeiro de 1967 adicional à Convenção de Genebra veio a eliminar da definição do âmbito subjectivo contida no artigo 1A a referência à restrição temporal acima referida (refugiados em consequência de acontecimentos ocor-ridos antes de 1 de janeiro de 1951). Assim, actualmente, cabem na definição de refugiado todos aqueles que receiem com razão ser perseguidos em virtude da sua raça, religião, nacio-nalidade, pertença a certo grupo social ou das suas opiniões políticas. Portugal vinculou-se ao Protocolo de Nova Iorque apenas em 1975, através do Decreto-Lei 207/75, de 17 de abril.

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Direito de asilo 9

Em terceiro lugar, a Convenção de Genebra procede ao reconheci-mento de um estatuto aos refugiados. Este é o objeto dos artigos 12.º a 29.º da Convenção de Genebra, onde, por referência aos direitos reconhe-cidos em cada Estado aos nacionais e estrangeiros, se definem os direitos dos refugiados à propriedade, ao exercício de profissão, à habitação, à  educação, etc..

Em quarto lugar, a Convenção de Genebra proíbe, no artigo 31.º, a perseguição criminal em relação a quem entre ou se encontre ilegalmente num Estado, vindo diretamente do território onde a sua vida ou a sua liber-dade estavam ameaçadas. Significa isto que o facto de determinada pessoa ser refugiada de acordo com a definição dada pela própria Convenção exclui a ilicitude que possa ter existido na forma como entrou no país, como, por exemplo, a falsificação dos documentos de entrada e de permanência, desde que o refugiado se apresente sem demora às autoridades e lhes exponha razões consideradas válidas para a sua entrada ou permanência irregulares (artigo 33, número 1, in fine).

Em Portugal, a primeira lei a regular o direito de asilo e o estatuto de refugiado foi a Lei 38/80, de 1 de agosto (posteriormente alterada pelo decreto-lei 415/83, de 24 de novembro). Em 1993, surgiu a segunda lei do asilo portuguesa, a Lei 70/93, de 29 de setembro, a primeira desde que Portugal se tornou membro da Comunidade Europeia. Esta lei consa-grava soluções legislativas – sobretudo ao nível do procedimento para a concessão do asilo – inspiradas em outros Estados europeus que se viam a braços com um número crescente de pedidos de asilo e se tinham dotado de instrumentos para apreciar com especial celeridade os pedidos de asilo e filtrar com facilidade os pedidos fraudulentos, aqueles pedidos formulados com o único objetivo de impedir a execução de uma decisão de expulsão do território nacional7. Portugal adotou esta legislação, apesar de não estar a viver nenhuma crise grave por causa do direito do asilo. As opções

7 Nalguns Estados, em que este se problema se revelou mais grave, foram até feitas revisões constitucionais de modo a eliminar os entraves que a Constituição colocava a proce-dimentos céleres de asilo. Assim aconteceu na Alemanha e na França. Ver sobre o procedi-mento que se aplicava entre nós na vigência da lei de 1993, o artigo de Jorge Portas, “Proce-dimento de Asilo, Eurodac, Imigrantes Irregulares e Refugiados em Órbita e Princípio de ‘Non-Refoulement’ e ‘Turbo-Procedimentos’”, em A Inclusão do Outro, Coimbra, Coimbra Editora, 2002, p. 77-87 e também o nosso “A Recusa dos Pedidos de Asilo por Inadmissi-bilidade”, em Estudos em Comemoração do 10.º Aniversário da Licenciatura em Direito da Universidade do Minho, Coimbra, Almedina, 2003, p. 79– 94.

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desta lei foram consideradas, em geral, gravosas para os direitos funda-mentais dos requerentes de asilo, tendo havido até acusações de incons-titucionalidade – sobretudo por não preverem a possibilidade de recurso aos tribunais das decisões que recusassem o pedido de asilo em processo acelerado.

Assim, em 1998, surgiu uma terceira lei do asilo em Portugal, que veio pacificar algumas das controvérsias geradas pela lei de 1993 e criou um procedimento em duas fases: uma fase de admissibilidade, destinada a servir de filtro dos tais pedidos fraudulentos, com intenção meramente dila-tória, motivados por outras razões que não a carência de proteção interna-cional, fase que devia ser ultrapassada em tempo muito curto8; e uma fase para a qual só prosseguiriam os pedidos admitidos, designada como fase de concessão do asilo, na qual se apreciariam, com prazos mais dilatados, os fundamentos dos pedidos de asilo. Esta lei de 1998 foi complementada em 2006, pela lei 20/2006, de 23 de junho, por força da necessidade de trans-posição para a ordem jurídica interna da Diretiva 2003/9/CE, do Conselho, de 27 de janeiro, que estabeleceu as normas mínimas em matéria de acolhi-mento de requerentes de asilo nos Estados membros.

Em 2008, surgiu, então, a quarta lei do asilo, lei 27/2008, de 30 de junho, que é, fundamentalmente, o resultado da europeização do asilo, pois veio transpor para o Direito português duas directivas que versam aspectos centrais em matéria de asilo: a determinação das “condições a preencher por nacionais de países terceiros ou apátridas para poderem beneficiar do estatuto de refugiado ou de pessoa que, por outros motivos, necessite de proteção internacional” – Diretiva 2004/83/CE, do Conselho, de 29 de abril – e o “procedimento de concessão e perda do estatuto de refugiado” – Diretiva 2005/85/CE, de Conselho, de 1 de dezembro. Esta lei vem trazer algumas novidades quer do ponto de vista das condições (e da forma como estas são apresentadas e densificadas na lei) a preencher para a concessão do direito de asilo e da proteção subsidiária; quer do ponto de vista do procedimento de asilo e da própria intervenção dos tribunais nestas matérias, que é promo-vida através da consagração do efeito suspensivo da impugnação judicial de todas as decisões que não admitam ou que recusem um pedido de asilo. Em 2014, foram introduzidas alterações na versão originária da lei 27/2008, de

8 Ver sobre esta, o nosso “A Recusa dos Pedidos de Asilo por Inadmissibilidade”, em Estudos em Comemoração do 10.º Aniversário da Licenciatura em Direito da Universidade do Minho, Coimbra, Almedina, 2003, p. 79-94.

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Direito de asilo 11

30 de junho, através da lei 26/2014, de 4 de maio – é a esta versão que nos referimos quando aqui invocarmos a lei atualmente em vigor9.

1.2. os Desenvolvimentos europeus em mAtériA De Asilo

Sobretudo desde os anos 90, a matéria do asilo tem vindo a ser objeto de uma grande intervenção das organizações europeias regionais em que Portugal está integrado – concretamente, o Conselho da Europa e a União Europeia10.

A decisão do caso Soering, em 198911, pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, em que este considerou que o Reino Unido tinha violado o artigo 3.º da CEDH por ter procedido à extradição de um jovem alemão para os Estados Unidos da América onde este viria ser condenado à execução, significou que os Estados europeus não se podiam alhear do destino daqueles que decidiam afastar do seu território e eram responsá-veis pelas violações dos direitos fundamentais subsequentes à expulsão a que poderiam ser sujeitos. O mesmo tribunal não tardou a aplicar o mesmo raciocínio a casos envolvendo requerentes de asilo, em que o tribunal veio também a considerar que os Estados não podem, sob pena de violação das suas obrigações face à CEDH, expulsar um requerente de asilo para um país onde este corre o risco de ser torturado ou de sofrer penas ou tratamentos

9 Apesar de a lei do asilo portuguesa, quando comparada com as leis de outros Estados europeus, ser, em geral, uma lei não muito restritiva – tirando o período em que vigorou a lei 70/93, de 29 de setembro –, o número de pedidos de asilo em Portugal mantém-se, em termos estáveis, muito baixo, quando comparado com o de outros Estados europeus. Apesar de haver oscilações no número de pedidos por ano – que, às vezes, chega aos quinhentos e, noutros anos, não atinge as duas centenas –, estas oscilações mantêm-se nesse mesmo nível de grandeza. Não é sem surpresa que se verifica que, apesar de o país se ter tornado, a partir da década de noventa, atractivo para centenas de milhares de estrangeiros, o número de pedidos de asilo apresentados em Portugal não acompanha esta tendência, permanecendo muito baixo. A explicação para este facto transcende obviamente a capacidade de interpre-tação jurídica dos fenómenos, convocando necessariamente a intervenção de outras ciências sociais. Deixamos aqui apenas esta nota de perplexidade.

10 Ver sobre a matéria, Elsperth Guild, “Jurisprudence of the European Court of Human Rights: Lessons for the EU Asylum Policy”, em The Emergence of a European Asylum Policy / L´émergence d´une politique européenne d´asile, Bruxelles, Bruylant, 2004, p. 329 e seguintes.

11 Decisão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos no caso Soering contra o Reino Unido, de 7 de julho de 1989.

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12 A. Sofia Pinto Oliveira

cruéis, degradantes ou desumanos12. Desde este momento, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem passou a ser uma peça essencial na deter-minação dos critérios e procedimentos para a concessão de proteção inter-nacional nos Estados que estão vinculados à CEDH e aos seus Protocolos.

Ao nível da União Europeia foi também nos anos 90, que se verifi-caram os maiores avanços no tratamento conjunto das matérias do asilo. A Convenção de Dublin, assinada em Junho de 1990, veio permitir aos Estados-parte rejeitar pedidos de asilo com o único argumento de que os mesmos requerentes já tinham visto os seus pedidos recusados noutro Estado-parte e veio também autorizá-los a determinar qual é o Estado responsável pela apreciação de um pedido de asilo, independentemente da vontade do requerente. Em 1992, com Maastricht, o asilo foi incluído no tratado constitutivo da União Europeia, passando a constar das matérias abrangidas pelo “terceiro pilar”, relativo à cooperação nos domínios da justiça e dos assuntos internos. Desde então, a União Europeia não deixou nunca de ser uma referência essencial na definição de quem pode beneficiar de asilo e como de procede na determinação de quem merece tal benefício.

O caso Soering e a Convenção de Dublin foram “primeiras pedras” na construção de um edifício comum europeu de asilo, que é hoje já uma reali-dade. Os grandes obreiros desta construção foram, por parte do Conselho da Europa, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e, por parte da União Europeia, todos os seus órgãos, tendo o Tribunal de Justiça da União Euro-peia um protagonismo mais tardio, mas nem por isso menos importante.

1.1.1. O papel do Conselho da Europa

Não obstante a ausência do direito de asilo do elenco de direitos enun-ciados na CEDH, encontramos um número muito significativo de decisões sobre matérias conexas nos relatórios da Comissão e nas sentenças do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Como é que foi possível a estes órgãos, na sua função de guardiães da CEDH, que, em si, nada prescreve diretamente para estas matérias, intervir na forma como os Estados-parte da Convenção decidem sobre pedidos de asilo?

12 Decisões do Tribunal Europeu dos Direitos Direitos Humanos nos casos Cruz Varas e outros contra a Suécia, de 20 de março de 1991, e Vilvarajah e outros contra o Reino Unido, de 26 de setembro de 1991.

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Direito de asilo 13

Foi, fundamentalmente, através de um “mecanismo de proteção por ricochete”. A CEDH consagra um conjunto de direitos inalienáveis da pessoa humana, independentemente da sua nacionalidade, que os Estados--parte estão obrigados a respeitar; sempre que a execução de uma medida de expulsão possa pôr em causa algum desses direitos, o Estado-parte não pode aplicar a dita medida.

A aplicação da CEDH a questões opondo requerentes de asilo e Estados tem suscitado a aplicação, em particular, do artigo 3.º, proibindo a tortura e a sujeição a outros tratamentos desumanos ou degradantes13; do artigo 8.º, relativo ao direito ao respeito pela vida familiar; do artigo 5.º, liberdade e segurança do indivíduo14; e do artigo 13.º direito a um recurso efetivo sempre que seja alegada a violação de direitos e liberdades por ela consagradas15.

1.1.2. O papel da União Europeia

O direito de asilo entrou no conjunto das matérias cuja regulação foi parcialmente transferida para os órgãos comunitários, devido ao desen-volvimento que a liberdade de circulação de pessoas no espaço da União Europeia atingiu.

No quadro das Comunidades europeias, a preocupação com as ques-tões do asilo – sempre ladeadas pelas da imigração – manifestou-se já nos anos 70, mas os Estados-membros resistiram a abdicar da sua soberania no tratamento destas questões16.

13 Há muitas decisões do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, condenando os Estados por expulsarem requerentes de asilo para Estados onde estes correm “risco real“, na expressão do Tribunal, de sofrerem tortura, penas ou tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos. As decisões fundadoras foram as dos casos Cruz Varas e Vilvarajah, referidas em nota anterior. Entre as mais recentes, salientamos as decisões dos casos M.S.S. contra a Bélgica e a Grécia, de 21 de janeiro de 2011, Sufi e Elmi contra o Reino Unido, de 28 de junho de 2011, e Hirsi Jamaa e outros contra Itália, de 23 de fevereiro de 2012.

14 Salientamos, nesta sede, a decisão no caso Amuur contra a França, de 25 de Junho de 1996, e o caso Chahal contra o Reino Unido, de 15 de novembro de 1996.

15 Sobre o direito ao recurso efectivo, destacamos as decisões do Tribunal de Estras-burgo no caso Conka contra a Bélgica, de 5 de fevereiro de 2002, e no caso Gebremedhin contra a França, de 26 de abril de 2007.

16 Sobre a história do direito e da política comunitária de asilo, ver, entre muitos outros, Lucas Pires, “O Direito e a Política de Asilo na União Europeia – Por uma maior juridificação do direito comunitário de asilo”, em A Inclusão do Outro, Coimbra, Coimbra

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Inicialmente, todos os esforços realizados no sentido de harmonizar os direitos internos nesta matéria surgiram no âmbito de procedimentos de direito internacional clássico, mediante os quais alguns dos Estados da União Europeia conseguiram chegar a acordos para a eliminação das fron-teiras internas. Referimo-nos ao Acordo de Schengen de 198517. O obje-tivo de criar um espaço sem fronteiras na Europa não podia ser atingido, sem graves prejuízos para a segurança e a estabilidade europeias, se não se definissem regras, contendo aquilo a que se haveria depois de chamar “medidas compensatórias”, destinadas a controlar os efeitos da liberdade de circulação no espaço europeu. Essas medidas vieram a ser consagradas na Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen, de 14 de junho de 1990. Nos artigos 28.º a 38.º desta Convenção é referida esta matéria, impondo-se que todos os pedidos de asilo devam ser apreciados uma vez – apenas uma – quando o requerente de asilo pretenda aceder ao espaço europeu.

Na linha do disposto neste instrumento de direito internacional, foi ainda, em 1990, assinada a Convenção de Dublin sobre a determinação do Estado responsável pela análise de um pedido de asilo apresentado num Estado-membro das Comunidades Europeias, que só veio, no entanto, a entrar em vigor em Setembro de 199718.

Editora, 2002, Hailbronner, Immigration and Asylum Law and Policy of the European Union, Hague, Kluwer Law International, 2000, p. 35 e Henri Labayle, “La libre circulation de personnes dans l’Union européenne, de Schengen à Amesterdam”, em AJDA, 1997, p. 923. Entre nós, ver ainda Teresa Cierco, A Instituição do Asilo na União Europeia, Almedina, Coimbra, 2010.

17 Ainda antes do acordo de Schengen de 1985, houve entre a França e a Alemanha um acordo de Sarrebruck, tendo como finalidade a abolição das fronteiras entre os dois países. A Bélgica, o Luxemburgo e a Holanda decidiram aderir aos princípios do referido acordo e assinaram em Schengen o acordo que, desde então, passou a designar-se como Acordo de Schengen. Mais tarde aderiram a estes acordos, Portugal (em 1991) e Espanha, seguidos da Itália, da Grécia, da Áustria e dos países nórdicos. Só as ilhas britânicas recusam integrar o espaço Schengen que foi “comunitarizado” através do Tratado de Amesterdão. Sobre esta matéria, Maria Luísa Duarte, A Liberdade de Circulação de Pessoas e a Ordem Pública no Direito Comunitário, Coimbra, Coimbra Editora, 1992, p. 174 e 175, M. M. Fernandes Antão, “Abolição dos Controlos nas Fronteiras de Schengen e sua Relação com a Comunidade Europeia”, em Portugal, a Europa e as Migrações, Lisboa, Conselho Econó-mico e Social, 1995.

18 Atualmente, esta matéria está tratada num acto de Direito Comunitário derivado. Referimo-nos ao Regulamento UE 604/2013, que veio substituir o Regulamento (CE) n.º 343/2003 do Conselho, de 18 de fevereiro de 2003, estabelecendo os critérios e meca-

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Os critérios aí definidos, na linha do que já fora preconizado na Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen, visavam “desencorajar os pedidos de asilo múltiplos (sucessivos ou simultâneos) e solucionar conflitos negativos de competência entre os Estados-membros”19 que resultavam da invocação da regra do país de primeiro asilo e que geravam a situação dos chamados “requerentes de asilo em órbita”. A ideia que presidiu a esta Convenção foi a da economia de recursos, obrigando a que os requerentes de asilo vejam os seus pedidos uma vez – só uma vez, mas também, neces-sariamente, uma vez – apreciados no interior dos Estados-membros das Comunidades Europeias20.

Com Maastricht, em 1992, o asilo foi introduzido no tratado consti-tutivo da União Europeia, passando a constar das matérias abrangidas pelo terceiro pilar, relativo à cooperação nos domínios da justiça e dos assuntos internos. Desde então, as Comunidades passaram a ter poder de decisão em matéria de asilo, mas os atos relativos a esta matéria, adotados na vigência do Tratado de Maastricht, não respeitavam nenhuma das características próprias da ordem jurídica comunitária. Assim, todas as decisões deviam ser tomadas por unanimidade, os atos adotados não eram diretamente apli-cáveis e não gozavam do primado do direito comunitário. O resultado desta tentativa de criar, entre os diversos governos dos Estados europeus, compro-

nismos de determinação do Estado-Membro responsável pela análise de um pedido de asilo apresentado num dos Estados-Membros por um nacional de um país terceiro. Este regula-mento não introduziu alterações significativas aos critérios que foram definidos na Convenção de Dublin e na Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen, como veremos na parte III deste estudo. Sobre os objectivos destes dois instrumentos de direito internacional, Lucas Pires, “O Direito e a Política de Asilo na União Europeia – Por uma maior juridificação do direito comunitário de asilo”, em A Inclusão do Outro, Coimbra, Coimbra Editora, 2002, p. 33-35, Agnès Hurwitz, “The 1990 Dublin Convention: A Compreensive Assessment”, em IJRL, 1999, p. 646. Sobre o Regulamento 343/2003/CE, ver Ulrike Brandl, “Distribution of asylum seekers in Europe? Dublin II Regulation determining the responsability for exami-ning an asylum application”, em Emergence of a European Asylum Policy / L´émergence d´une politique européenne d´asile, Bruxelles, Bruylant, p. 33 e “Commentaires sur la déter-mination de l´Etat membre responsable de l´examen d´une demande d´asile et la répartition des charges entre Etats membres» em idem, p. 71.

19 Garcia da Rocha, “O Direito de Asilo no âmbito comunitário e no acordo de Schengen”, em Portugal, a Europa e as Migrações, Lisboa, Conselho Económico e Social, 1995, p. 219.

20 É o chamado princípio da exclusividade ou da oportunidade única, Lucas Pires, “O Direito e a Política de Asilo na União Europeia – Por uma maior juridificação do direito comunitário de asilo”, em A Inclusão do Outro, Coimbra, Coimbra Editora, 2002, p. 34.

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missos de harmonização do direito de asilo haveria de ser muito pequeno, o que se ficou a dever à complexidade do mecanismo instituído em Maas-tricht. Alguns passos foram dados de 1992 a 1999, mas praticamente nada de vinculativo para os Estados-membros. Assim, na reunião de Londres em 30 de novembro e 1 de dezembro de 1992, os ministros responsáveis pela imigração adotaram, nomeadamente, uma resolução relativa aos pedidos de asilo manifestamente infundados, outra relativa a uma abordagem harmo-nizada das questões referentes aos países terceiros de acolhimento21. Em 1995, o Conselho da União Europeia, reunido em Bruxelas, adotou uma outra resolução sobre as garantias mínimas nos processos de asilo e em 2005 aprovou uma Diretiva22.

O asilo foi uma das matérias do terceiro pilar que veio a ser “comu-nitarizada” pelo Tratado de Amesterdão, passando a constar do Título IV do Tratado Constitutivo das Comunidades. Tal não significa, no entanto, que todos os Estados-membros tenham aceitado a transferência de compe-tências para as Comunidades, pois, em relação ao Reino Unido, à Irlanda e à Dinamarca, foram assinados protocolos que excluem aqueles Estados dos desenvolvimentos que se venham a dar em matéria de asilo no âmbito das Comunidades europeias (o chamado opt-out) e estabelecem, ao mesmo tempo, os termos em que estes Estados podem vir a participar no processo de integração comunitária (a possibilidade de opt-in).

Além destes protocolos, por altura da assinatura do Tratado de Ames-terdão, foi ainda assinado um protocolo que integrou parte do sistema Schengen no direito comunitário (Protocolo Schengen) e um outro proto-colo sobre o asilo para os nacionais dos Estados-membros da União Euro-peia. No âmbito da Conferência Intergovernamental, foram formuladas, por parte dos Estados-membros, diversas declarações relativas ao direito de asilo.

Nos termos do Tratado de Amesterdão, foi instituído um período tran-sitório de cinco anos, no qual podem ser adotadas medidas por parte do Conselho, deliberando este por unanimidade (sem contar os votos da Irlanda, do Reino Unido e da Dinamarca), sob proposta da Comissão ou por iniciativa

21 Sobre estas, Danièle Joly, “The Porous Dam: European Harmonization on Asylum”, em IJRL, 1994, p. 166-171 e José Noronha Rodrigues, “Políticas de Asilo e Direito de Asilo na União Europeia”, em Scientia Iuridica, 2010, p. 20-26.

22 Sobre esta, Elsperth Guild, The Developing Immigration and Asylum Policies of the European Union, Hague, Kluwer Law International, 1996, p. 426-439.

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de um Estado-Membro, após consulta ao Parlamento Europeu23. Findo este período transitório, só a Comissão é que passaria a deter direito de inicia-tiva e passaria o Conselho a poder, por unanimidade, decidir se se aplica à totalidade ou a parte dos domínios do terceiro pilar comunitarizados pelo Tratado de Amesterdão o procedimento previsto no artigo 251.º que prevê deliberações do Conselho por maioria qualificada, desde que chegue a um acordo com o Parlamento Europeu sobre o conteúdo das medidas (vulgar-mente designado como procedimento de codecisão). O período transitório de cinco anos decorreu entre Maio de 1999 (data da entrada em vigor do Tratado de Amesterdão) e Maio de 2004, mas não chegaram a ocorrer quais-quer alterações do processo de decisão.

Além destas limitações procedimentais, verificava-se que, em termos substanciais, só os aspetos relacionados com a regulação do asilo referidos no artigo 63.º, tais como receção de requerentes de asilo, procedimento, proteção temporária, afluxos massivos de nacionais de Estados-terceiros, é podiam, no âmbito do Tratado, ser objeto de intervenção normativa comu-nitária e, mesmo sobre estes, as Comunidades não podem fazer mais do que fixar “standards” mínimos24.

A competência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias foi também alargada ao domínio do asilo, como consequência da comu-nitarização desta matéria. Os poderes do Tribunal, nesta matéria, foram, no entanto, objeto de limitações importantes, quando os comparamos com outros domínios de intervenção normativa comunitária. Assim, nos termos do artigo 68, números 1 e 2, só podia ser suscitada uma questão prejudicial por um tribunal cuja decisão não seja suscetível de recurso25 e o Tribunal não podia conhecer as medidas adotadas pelos Estados em matéria de ordem pública e de segurança interna. Nos termos do número 3 do mesmo artigo, era possível à Comissão, ao Conselho e aos Estados membros acionarem um “processo de interpretação abstrato, sem dependência de qualquer

23 Kay Hailbronner, Immigration and Asylum Law and policy of the European Union, Hague, Kluwer Law International, 2000, em especial sobre o significado desta disposição sobre co-iniciativa da Comissão e dos Estados-membros, p. 92-93.

24 Kay Hailbronner, op. cit., p. 36-37 e 79-85.25 Precisamente por esta razão não foi admitido o pedido de decisão prejudicial apre-

sentado em matéria de imigração e de asilo. Referimo-nos ao Despacho do Tribunal (Quarta Secção) de 31 de Março de 2004, no caso Georgescu, em http://www.europa.eu.int/eur-lex.

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litígio”26. Estas limitações justificaram o “protagonismo tardio” do Tribunal de Justiça em matéria de asilo a que nos referíamos.

O primeiro resultado dos primeiros cinco anos de uma política europeia comum em matéria de asilo foi a Diretiva 2001/55/CE, do Conselho, de 20 de julho, relativa a normas mínimas em matéria de concessão de proteção temporária no caso de afluxo maciço de pessoas deslocadas e a medidas tendentes a assegurar uma repartição equilibrada do esforço assumido pelos Estados membros ao acolherem estas pessoas e suportarem as consequên-cias decorrentes desse acolhimento27. A ela se seguiu a Diretiva 2003/9/ /CE, do Conselho, de 27 de janeiro, relativa a normas mínimas em matéria de acolhimento dos requerentes de asilo nos Estados-Membros28. No termo do período de cinco anos, surgiu a Diretiva 2004/83/CE, do Conselho, que estabelece normas mínimas relativas às condições a preencher por nacio-nais de países terceiros ou apátridas para poderem beneficiar do estatuto de refugiado ou de pessoa que, por outros motivos, necessite de proteção inter-nacional, bem como relativas ao respetivo estatuto, e relativas ao conteúdo da proteção concedida29. Em dezembro de 2005, foi publicada a Diretiva 2005/85/CE, do Conselho, de 1 de dezembro, relativa a normas mínimas aplicáveis ao procedimento de concessão e retirada do estatuto de refugiado nos Estados-membros.

Com o Tratado de Lisboa, foi abandonada a insistência na definição apenas de “normas mínimas”30 e, em vez disso, passou a falar-se de um “sistema europeu comum de asilo”, que corresponde a uma nova fase, a

26 Ana Maria Guerra Martins, A Natureza Jurídica da Revisão do Tratado da União Europeia, Lisoa, Lex, 2000, p. 194 e seguintes. Ver também Kay Hailbronner, op. cit., p. 94-102. Lucas Pires, “O Direito e a Política de Asilo na União Europeia – Por uma maior juridificação do direito comunitário de asilo”, em A Inclusão do Outro, Coimbra, Coimbra Editora, 2002, p. 46-47.

27 Transposta entre nós pela lei n.º 67/2003, de 23 de agosto.28 Transposta pela lei n.º 20/2006, de 23 de Junho. Sobre esta, ver John Handoll,

“Reception conditions of asylum-seekers”, em Emergence of a European Asylum Policy / L´émergence d´une politique européenne d´asile, Bruxelles, Bruylant, p. 113, Örjan Edström, “The reception conditions of asylum-seekers: a comment, 2004, idem, p.149 e Stefano Vicenzi, “Reception conditions of asylum seekers: Comments”, idem, p. 157.

29 Sobre as iniciativas da Comissão neste sentido, António Vitorino, “O Futuro da Política de Asilo na União Europeia”, em Themis, 2001, p. 295 e seguintes.

30 Ver crítica a esta expressão em Nuno Piçarra, “Em Direcção a um Procedimento Comum de Asilo”, em Themis, 2001, p. 285.

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uma segunda geração de diretivas europeias em matéria de asilo, que tenta levar mais longe a harmonização europeia na regulação destas matérias.

O Tratado de Lisboa prevê ainda que a regra de votação passe a ser a maioria qualificada e são também eliminadas as limitações à competência do Tribunal de Justiça das Comunidades previstas no anterior Tratado.

À Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que contempla o conjunto dos direitos já reconhecidos pelos Estados-membros ou pela União, foi reconhecida pelo Tratado de Lisboa eficácia vinculativa e aquela consagra, no artigo 18.º, o direito de asilo, nos termos seguintes: “É garan-tido o direito de asilo, no quadro da Convenção de Genebra de 28 de Julho de 1951 e do Protocolo de 31 de Janeiro de 1967, relativos ao estatuto dos refugiados, e nos termos do Tratado que institui a Comunidade Europeia”.

A segunda geração de diretivas pós-Lisboa implicou, além da revisão do Regulamento de Dublim, três novos instrumentos normativos norma-tivos. Em primeiro lugar, a Diretiva 2011/95/UE, de 13 de dezembro, que estabelece normas relativas às condições a preencher pelos nacionais de países terceiros ou por apátridas para poderem beneficiar de proteção inter-nacional, a um estatuto uniforme para refugiados ou pessoas elegíveis para proteção subsidiária e ao conteúdo da proteção concedida, que substitui a Diretiva 2004/83/CE, de 29 de abril. Em segundo lugar, surgiu a Diretiva 2013/32/UE, de 26 de junho, sobre os procedimentos de concessão e retirada do estatuto de proteção internacional, substituindo a Diretiva 2005/85/CE, de 1 de dezembro. Finalmente, a Diretiva 2013/33/UE, de 26 de junho, que estabelece normas em matéria de acolhimento dos requerentes de proteção internacional e revoga a Diretiva 2003/9/CE.

A lei 26/2014, de 5 de maio, transpôs para a ordem jurídica portuguesa todas estas Diretivas. Frequentemente acusado de atrasos na transposição das Diretivas, o legislador português foi, neste caso, especialmente expedito.

Da primeira geração de Diretivas, parece-nos que foi a Diretiva 2004/83/CE, de 29 de abril, determinando as condições de que depende a proteção internacional, o instrumento mais inovador, não apresentando a Diretiva 2011/95/UE alterações substanciais31. Na segunda geração de Diretivas, a matéria dos procedimentos teve um avanço importante, que,

31 Ver, sobre a Diretiva 2004/83/CE, do Conselho, de 29 de abril, “The European Union Qualification Directive: The Creation of a Subsidiary Protection Regime”, em Inter-national Journal of Refugee Law, 2005, p. 461-516 e Hugo Storey, “EU Refugee Qualifi-cation Directive: a Brave New World?”, em International Journal of Refugee Law, 2008, p. 1-49.

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infelizmente, a lei 26/2014, de 5 de maio, não reflete devidamente, como adiante explicaremos.

Em matéria de definição das pessoas carecidas de proteção interna-cional, apesar de todos os Estados-membros partilharem uma referência comum na definição de quem deve ser refugiado – a Convenção de Genebra sobre o Estatuto do Refugiado, de 1951, e o Protocolo de Nova Iorque, de 1967 – as interpretações das normas destes instrumentos internacionais quanto à definição de refugiado (contida no artigo 1A) divergiam largamente antes de 2004. Impunha-se, por isso, uma harmonização a nível europeu e uma densificação dos critérios da Convenção de Genebra como condição essencial para um futuro sistema mais harmonizado em matéria de asilo, mais conforme a uma Europa já sem fronteiras internas. E as Diretivas dão passos muito significativos nesse sentido, muito embora, alguns anos volvidos, se constate ser ainda hoje incipiente o processo de harmonização em curso, como o demonstram as estatísticas com taxas de sucesso dos pedidos muito divergentes, mesmo quando lidas tendo em conta os países de origem dos requerentes.

1.3. figurAs Afins

Trataremos aqui como figuras afins do direito de asilo a proteção temporária e a proteção face à expulsão e à extradição. Todos estes insti-tutos jurídicos têm de comum com o direito de asilo o facto de constituírem formas de proteção essencialmente dirigidas a estrangeiros ou apátridas. A razão por que essa proteção se reconhece necessária varia consoante a figura em causa, mas, em todos os casos, há uma situação de grande vulne-rabilidade do não-nacional perante uma autoridade estrangeira, na medida em que as decisões que sejam tomadas podem decidir da sua permanência no território a salvo de poderes ou entidades que podem pôr em causa os seus direitos fundamentais.

Não consideramos nesta categoria de “figura afins” a proteção subsi-diária (que, uma vez concedida, permite ao requerente beneficiar de uma autorização de residência por razões humanitárias prevista na lei do asilo), porque entendemos que entre esta proteção e o direito de asilo há mais do que uma simples afinidade. Existe uma verdadeira continuidade entre as duas figuras, estando as mesmas tratadas numa só lei, sendo o mesmo pedido que constitui as autoridades portuguesas na obrigação de verificar 

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os pressupostos de ambas as formas de proteção, havendo um procedimento único para ambas e sendo o estatuo de proteção concedido também larga-mente coincidente.

Por isso, entendemos que deve olhar-se para a proteção subsidiária como integrando ainda o instituto do direito de asilo, compreendido lato sensu e não confinado nas fronteiras que historicamente a Constituição ou a Convenção de Genebra lhe definiram. 

Também não consideraremos entre as “figuras afins” o direito ao reco-nhecimento do estatuto de refugiado. Em certas ordens jurídicas, distingue-se o direito de asilo, consagrado na respetiva ordem jurídica interna, do direito ao reconhecimento do estatuto do refugiado, tal como este é descrito e pres-crito em convenções internacionais, constituindo os dois mecanismos formas paralelas de proteção a estrangeiros32. O direito de asilo, quando consagrado numa certa ordem jurídica, seria um verdadeiro direito atribuído a deter-minadas pessoas no sentido de estas poderem exigir do Estado proteção no seu território. O estatuto de refugiado seria uma forma de proteção que resulta fundamentalmente da Convenção de Genebra, segundo a qual as pessoas definidas como refugiadas nessa Convenção devem beneficiar de um conjunto mínimo de direitos nos Estados em que se encontrem e, nos termos do artigo 33 daquela Convenção, não devem ser expulsas ou extra-ditadas para o país onde alegam sofrer perseguição.

Na ordem jurídica portuguesa, cremos que esta distinção não tem sentido.

A nosso ver, deve entender-se que existe uma relação causa-conse-quência entre o direito de asilo, aqui entendido stricto sensu, e o estatuto do refugiado, sendo o reconhecimento do primeiro que determina o acesso ao segundo. É o que resulta da interpretação das normas contidas nos números 8 e 9 do artigo 33.º da Constituição. O asilo é o direito de que os refugiados são titulares face ao Estado português, nos termos em que vimos. Uma vez reconhecido por este, o requerente de asilo passa a beneficiar de um estatuto próprio: o estatuto de refugiado político. Este estatuto é definido por lei33.

32 Assim em Espanha na vigência da lei de 1984 antes da revisão de 1994, e, de certa maneira, também em França, ver supra. Henri Labayle considera a assimilação entre direito ao asilo e direito ao estatuto de refugiado um “abuso de linguagem”, ver do autor, “Le droit d’asile en France: normalisation ou neutralisation”, em Revue Française de Droit Adminis-tratif, 1997, p. 245.

33 No mesmo sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 1993, comentários aos núme-

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O mesmo resulta também claramente da lei atual do asilo que, no artigo 4.º, esclarece: “A concessão do direito de asilo nos termos do artigo anterior confere ao beneficiado o estatuto do refugiado”34 e da Diretiva 2011/95/UE, em cujo artigo 13.º se pode ler que “os Estados-Membros concedem o estatuto de refugiado ao nacional de um país terceiro ou ao apátrida que preencha as condições para ser considerado como refugiado, nos termos dos capítulos II e III”.

1.3.1. A proteção temporária

A proteção temporária foi uma figura desenvolvida no direito europeu para dar resposta a situações de grave crise humanitária onde se verifiquem deslocações de grandes massas de pessoas carecidas de proteção. Esta foi objeto de uma Diretiva comunitária (Diretiva 2001/55/CE do Conselho, de 20 de julho de 2001, relativa a normas mínimas em matéria de concessão de proteção temporária em caso de afluxo maciço de pessoas deslocadas e a medidas tendentes a assegurar uma repartição equilibrada do esforço assumido pelos Estados-membros ao acolherem estas pessoas e a supor-tarem as consequências decorrentes desse acolhimento), transposta para o ordenamento jurídico português através da lei 67/2003, de 23 de agosto35.

ros 6 e 7 do artigo 33, Damião da Cunha, comentário aos números 8 e 9 do artigo 33 da Constituição, em Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra, Coimbra Editora, 2005 e Constança Urbano de Sousa, em “Etude comparée sur la protection subsidiaire – Portugal”, em Subsidiary protection of refugees in the European Union: complementing the Geneva Convention?/ La protection subsidiaire des réfugiés dans l’Union Européene: um complément à la Convention de Genève?, Bruxelles, Bruylant, 2002, p. 693.

34 No mesmo sentido, artigo 4 da Lei 38/80, de 1 de agosto e artigo 3 da lei 70/93, de 29 de setembro.

35 A proteção temporária foi desenvolvida na Europa na sequência dos acontecimentos da ex-Jugoslávia, tendo sido já antes praticada nos Estados Unidos e na Austrália. Ao nível da União Europeia, na sequência do Tratado de Amesterdão, foi imposta ao Conselho a obrigação de adoptar normas mínimas sobre esta matéria. Dessa imposição surgiu a “Dire-tiva 2001/55/CE do Conselho, de 20 de Julho de 2001, relativa a normas mínimas em matéria de concessão de proteção temporária em caso de afluxo maciço de pessoas deslocadas e a medidas tendentes a assegurar uma repartição equilibrada do esforço assumido pelos Estados-membros ao acolherem estas pessoas e a suportarem as consequências decorrentes desse acolhimento”. Sobre a então “Proposta de Diretiva relativa a normas mínimas em matéria de concessão de proteção temporária no caso de afluxo maciço de pessoas deslo-

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Nos termos da diretiva, a decisão quanto à concessão desta medida de proteção compete ao Conselho (que decide por maioria qualificada), sob proposta da Comissão (artigo 5.º). Nada na diretiva obrigava os Estados--membros a suprimirem os mecanismos internos que lhes permitiam sobe-ranamente decidir quanto à aplicação de medidas nesta natureza, que, entre nós, se encontravam à data da entrada em vigor da Diretiva, previstas no artigo 9.º da lei 15/98, de 26 de março.

A lei portuguesa que transpõe a diretiva consagra duas possibilidades de concessão da proteção temporária: por decisão do Conselho da União Europeia ou por resolução do Conselho de Ministros Português (artigo 4º da lei 67/2003, de 23 de agosto). Apesar de assim estar previsto na lei, em todo o texto da mesma, parece existir apenas a proteção temporária decidida ao nível do Conselho da União Europeia, não se referindo nunca a aspetos próprios da tramitação dos casos de proteção temporária decididos pelo Conselho de Ministros.

Há três traços que distinguem a proteção temporária da proteção que o asilo confere: o facto de a primeira ser dirigida a grupos e a segunda ser uma forma de proteção individual; o facto de a primeira ser o resultado de uma decisão política e a segunda ser o resultado de uma decisão adminis-trativa vinculada, tomada no âmbito de um procedimento iniciado através de requerimento individual; e, finalmente, o facto de a proteção temporária ser um instrumento de carácter excecional, aplicável em situações de crise, de anormal afluxo de refugiados em grande escala36, e o asilo ser um insti-tuto ao qual, em qualquer altura, se pode recorrer.

A atual legislação prevê a articulação das duas figuras, no sentido de permitir aos beneficiários da proteção temporária a apresentação de um pedido de asilo (aspeto que não se encontrava regulado segundo a legis-lação anterior). Assim, a qualquer momento, podem apresentar pedidos de asilo e aguardam a respetiva decisão, mantendo o estatuto de pessoas protegidas, mesmo que tenha entretanto expirado o prazo previsto para a proteção temporária (artigos 19.º a 21.º da lei 67/2003, de 23 de agosto).

cadas e a medidas tendentes a assegurar uma repartição equilibrada do esforço assumido pelos Estados-membros ao acolherem estas pessoas e suportarem as consequências desse acolhimento”, ver entre nós, Constança Urbano de Sousa, “A Proteção Temporária enquanto elemento de um sistema europeu de asilo”, em Themis, 2001, p. 263-279.

36 Segundo a definição contida na alínea a) do artigo 2 da Lei 67/2003, de 23 de gosto, a proteção temporária consiste num “procedimento de carácter excecional”.

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A proteção temporária não está, no entanto, concebida como uma “antecâmara” dos requerentes de asilo. Apesar de a nova legislação poder induzir nesse sentido, quando define a proteção temporária como um proce-dimento de carácter excecional, destinado a assegurar uma proteção imediata “designadamente se o sistema de asilo não puder responder a esse afluxo sem provocar efeitos contrários ao seu correto funcionamento, no interesse das pessoas em causa e de outras pessoas que solicitem proteção”, suge-rindo que se trata de um mecanismo de carácter subsidiário37 – que permite acorrer num primeiro momento a situações de crise, que normalmente seriam passíveis de ser resolvidas pela via do “sistema de asilo”, dando tempo a que este, depois, possa funcionar –, noutros aspetos do regime previsto para a proteção temporária, parece que o legislador assume os dois mecanismos como tendo fins específicos diferenciados. Nomeadamente quando admite que um beneficiário de proteção temporária que apresente um pedido de asilo que venha a ser recusado continua a beneficiar daquela proteção, o legis-lador está a admitir que, em certos casos, se justifica a proteção temporária, mesmo não havendo lugar à proteção que o asilo consubstancia. Deve, pois, entender-se que o asilo e a proteção temporária são duas vias para conceder proteção em situações de carência humanitária aplicáveis em diferentes circunstâncias e também com diferentes pressupostos: os pressupostos da proteção temporária são de carácter objetivo – verificação de um caso de afluxo em massa de pessoas deslocadas, em virtude de conflito armado, de situação de violência endémica ou de violações sistemáticas ou gene-ralizadas dos direitos humanos –; os pressupostos do direito de asilo que a seguir melhor analisaremos referem-se à situação particular do requerente, não bastando provar que se verificam determinadas circunstâncias no país  de origem.

Apesar das virtualidades desta figura de proteção internacional, cons-tata-se que o recurso das instâncias europeias a este mecanismo é inexistente. Mesmo confrontada com graves situações de fluxos intensos de refugiados no seu território e de graves crises humanitárias em zonas próximas – como tem acontecido nesta segunda década do século XXI, com as sucessivas crises políticas no Norte de África e, de modo mais grave, na Síria – a União Europeia não lançou mão da figura da proteção temporária, que parece assim condenada, infelizmente, a cair em desuso.

37 A classificação é de Constança Urbano de Sousa, “A Proteção Temporária enquanto elemento de um sistema europeu de asilo”, em Themis, 2001, p. 269.

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1.3.2. A proteção face à expulsão e à extradição

Na Constituição portuguesa, o direito de asilo insere-se no mesmo artigo donde constam também normas limitadoras do poder de extradição e de expulsão do Estado português.

Tanto a extradição como a expulsão visam o mesmo resultado concreto: o afastamento de pessoas do território nacional. Constituem, aliás, as únicas formas através das quais o Estado português pode determinar a saída invo-luntária de estrangeiros.

Pode entender-se a figura da extradição como uma subespécie da expulsão. Não é essa, no entanto, a nossa perspetiva, nem cremos que assim se possa interpretar face à Constituição portuguesa, que as apresenta como distintas, atendendo à sua especificidade, quer funcional quer estrutural38.

A extradição constitui uma forma de cooperação judiciária interna-cional e surge apenas no âmbito de uma relação triangular, em que a entrega de determinada pessoa é requerida ao Estado português por um Estado estrangeiro, com base na acusação ou suspeição de prática de um crime. O pedido de extradição tem de ser objeto de apreciação por uma autoridade judicial.

A expulsão consiste numa ordem ditada por autoridades públicas – administrativas ou judiciais – de afastamento do território nacional, deter-minada por razões de segurança e de ordem pública, sendo, para nós, uma figura de carácter residual39.

Os poderes de expulsão e de extradição dos Estados estão constitucio-nalmente limitados. Estas limitações afirmam-se, em primeira linha, rela-tivamente aos próprios nacionais que o Estado não pode, em caso algum, expulsar e, só excecionalmente, pode extraditar.

38 No mesmo sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 1993, comentário ao artigo 33.º.

39 Segundo Ernst Reichel, na extradição (Auslieferung), o Estado age de forma “altruísta” no interesse do Estado requerente; na expulsão (Ausweisung), o Estado age de forma “egoísta” no seu próprio interesse de salvaguardar a segurança e ordem pública internas. Ver Das staatliche Asylrecht “im Rahmen des Völkerrechts“, Berlim, Dunckler & Humbolt, 1987, p. 192. Esta distinção é sugestiva, mas parece-nos que não traduz, com precisão, a diferença entre as duas figuras, porque tanto numa como noutra se ponderam (ou devem ponderar) interesses variados do Estado que aplica a medida, de outros Estados implicados na mesma e, obviamente, da(s) pessoa(s) a quem a medida é aplicada.

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Aqui interessa-nos fundamentalmente o confronto entre a garantia do asilo e as garantias face à extradição e à expulsão dos estrangeiros.

Do ponto de vista do conteúdo, a proteção face à extradição e à expulsão atribui ao estrangeiro uma posição jurídica que se pode caracte-rizar como um status negativus: um direito a não ser afastado do território nacional senão mediante ato de expulsão ou de extradição que respeite os requisitos materiais e procedimentais que constam da Constituição. O direito de asilo atribui aos seus titulares uma verdadeira pretensão jurídica positiva, um direito a exigir do Estado o reconhecimento de um estatuto, de um conjunto de direitos e de deveres, sendo até alguns deles de natureza prestacional40.

1.3.2.1. Asilo e expulsão

A proteção contra a expulsão aplicada a estrangeiros encontra-se prevista na Constituição portuguesa, no artigo 33.º, número 2, e também em Convenções internacionais.

O conteúdo da proteção prevista na norma constitucional portuguesa é muito limitado. Apenas se estabelece a necessidade de a decisão de expulsão de estrangeiros “ser determinada por autoridade judicial” e se cria para o legislador o dever de criar “formas expeditas de decisão” para estes processos.

Mais limitado é ainda o âmbito pessoal de aplicação desta garantia procedimental: não se aplica a todos os estrangeiros que se encontram em Portugal, mas só a “quem tenha entrado ou permaneça regularmente no território nacional”, a quem tenha obtido autorização de residência ou a quem tenha apresentado pedido de asilo não recusado.

No Direito internacional aplicável em Portugal, encontramos também disposições limitadoras do poder dos Estados de expulsarem estrangeiros. Ao nível do sistema universal de proteção das Nações Unidas, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos reconhece aos estrangeiros que permaneçam regularmente no território dos Estados-parte o direito de apre-sentarem as suas razões face a uma decisão de expulsão pendente contra si, de recorrerem a uma entidade competente para a revisão da decisão e de serem representados para esse fim perante a autoridade competente. Ao 

40 Ver supra.

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mesmo tempo, obriga a que as medidas de expulsão sejam aplicadas em respeito pela lei. Estas garantias podem, no entanto, ser afastadas quando haja razões de segurança nacional que o justifiquem41.

Ao nível do Conselho da Europa existem também disposições apli-cáveis nesta matéria. Estas encontram-se nos Protocolos números 4 e 7 da CEDH, ambos ratificados por Portugal. O Protocolo número 4 proíbe as expulsões coletivas. Estas definem-se como medidas que determinam o abandono do país por um grupo de estrangeiros, sem uma análise particular da situação de cada membro do grupo42.

Apesar de este direito a não ser objeto de uma medida de expulsão coletiva qua tale não se encontrar expressamente consagrado na Constituição portuguesa, cremos que decorre das garantias procedimentais consagradas no artigo 33.º, número 2, o carácter necessariamente individual da medida de expulsão43. O que o Protocolo número 4 tem de novo relativamente à Constituição portuguesa é o facto de aquele se aplicar aos estrangeiros, independentemente de estes se encontrarem ou não regularmente em terri-tório português. O que significa que o Estado português está vinculado a não aplicar medidas de expulsão coletiva, mesmo relativamente a pessoas que se encontrem em situação irregular. Mesmo nestes casos, está obrigado a uma análise da situação individual e concreta de cada uma das pessoas que pretende afastar do seu território.

O Protocolo número 7 não proíbe a expulsão, esclarece apenas quais as garantias procedimentais que devem ser reconhecidas aos estrangeiros que residam regularmente no território dos Estados-membros, antes de lhes ser

41 Artigo 13 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos. Sobre esta matéria, ver, para mais desenvolvimentos, Hailbronner, Immigration and Asylum Law and policy of the European Union, Hague, Kluwer Law International, 2000, p. 487 e seguintes. Ver ainda decisão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem no caso Hirsi Jamaa e outros contra Itália, de 23 de Fevereiro de 2012, em que o Tribunal considerou haver violação deste Proto-colo por parte da Itália por esta ter interceptado em águas internacionais uma embarcação carregada de imigrantes e refugiados e de não lhes ter permitido aceder a território italiano acompanhando-a até à costa líbia onde esta veio a desembarcar todas aa pessoas que tentavam aceder a território italiano.

42 Ver sobre este Hailbronner, Immigration and Asylum Law and policy of the Euro-pean Union, Hague, Kluwer Law International, 2000, p. 489 e seguintes e Frédéric Sudre, «Le contrôle des mesures d’expulsion et d’extradition par les organes de la Convention euro-péenne de sauvegarde des droits de l’homme», em Dominique Turpin, Immigrés et Réfugiés dans les démocraties occidentales – défis et solutions, Paris, Economica, 1989, p. 253.

43 No mesmo sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 1993, comentário ao artigo 33.

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aplicada uma medida de expulsão. Estas traduzem-se, fundamentalmente, em três direitos: o direito à apresentação de razões contra a medida de expulsão, o direito ao recurso da decisão e o direito a ter um representante perante as autoridades competentes para a apreciação do caso44. No entanto, de acordo com outra disposição do mesmo protocolo, o estrangeiro pode ser expulso, antes de ter exercido estes direitos, se tal expulsão for exigida por razões de ordem pública ou de segurança nacional45.

A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem também desenvolvido importantes limitações ao poder de expulsão dos Estados a partir das normas que consagram a proibição de sujeição a penas ou tratamentos cruéis degradantes ou desumanos (artigo 3 da CEDH46) e o direito ao respeito pela vida familiar (artigo 8 da mesma Convenção47). Os juízes têm entendido, em diversos casos submetidos à sua apreciação, que a aplicação de medidas de expulsão pode constituir violação destes direitos.

44 Ver artigo 1(1) do Protocolo número 7 à CEDH.45 Artigo 1(2) do Protocolo número 7 à CEDH.46 Nos termos que referimos supra, no ponto 2.1., onde identificamos a jurisprudência,

a nosso ver, mais marcante nesta sede no domínio específico do asilo.47 Ver o estudo de Paulo Manuel Abreu da Silva Costa, “A Proteção dos Estrangeiros

pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem perante Processos de Asilo, Expulsão e Extradição – a Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem”, em Separata da Revista da Ordem dos Advogados, 2000 e de Abel Campos, “A Convenção Europeia dos Direitos do Homem e o direito dos estrangeiros ou do último recurso”, em O Asilo em Portugal, volume II, Lisboa, Conselho Português para os Refugiados, 1994. Ver ainda Kay Hailbronner, Immigration and Asylum Law and policy of the European Union, Hague, Kluwer Law International, 2000, p. 496-499. O Tribunal pronunciou-se , a este propósito, no caso Moustaquim, em que a um marroquino, imigrante na Bélgica desde os dois anos de idade, na sequência de numerosos crimes de pequena importância, foi condenado à expulsão daquele país. O Tribunal entendeu que, atentas as particularidades do caso, não se justificava a expulsão do jovem para Marrocos por todos os seus familiares viverem e estarem integrados na Bélgica – ver decisão do caso Moustaquim contra Bélgica, de 18 de fevereiro de 1991, em www.echr.coe.int. Não havendo nenhuma proteção absoluta face à expulsão quando esta possa pôr em causa a manutenção de uma vida familiar normal, neste e noutros casos, tem entendido aquele Tribunal haver um condicionamento do poder de expulsão dos Estados relativamente a estrangeiros residentes com as suas respetivas famílias no Estado-parte. A jurisprudência do TC já se debateu com questões semelhantes em que estava em causa a opção pelo exercício do poder de expulsão ou a garantia da vida familiar e optou pelo respeito pela vida familiar. Ver acórdão 181/97, de 5 de março, publicado no DR, II Série, de 22 de abril de 1997; 470/99 e Acórdão 232/2004, em www.tribunalconstitucional.pt. Ver também comentário em Anabela Leão, “Expulsão de estrangeiros com filhos menores a cargo”, em Jurisprudência Constitucional, n.º 3, p. 25.

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Estes mecanismos de proteção face à expulsão funcionam autonoma-mente relativamente aos procedimentos de apreciação de pedidos de asilo. Significa isto que o facto de alguém não poder ser expulso por força das normas que acima expusemos não é invocável para efeitos de reconheci-mento do direito de asilo.

1.3.2.2. Asilo e devolução para o país de origem (refoulement)

A proteção face à devolução para o país de origem (refoulement) rela-ciona-se diretamente com a proteção face à expulsão de que vimos falando. A proibição de refoulement consiste na proibição de expulsar estrangeiros especificamente para o país relativamente ao qual estes manifestam, por alguma razão, receio de voltar48.

É uma proteção ainda mais limitada no seu escopo do que a proteção face à expulsão, na medida em que esta proíbe o afastamento do território nacional, enquanto a proteção face à devolução o permite, mas apenas para outros Estados que não o autor da violação de direitos humanos essenciais da pessoa em causa.

A razão por que autonomizamos aqui a figura da devolução face à da expulsão reside na especial afinidade que existe entre a proteção do asilo e a proteção contra o refoulement.

O núcleo essencial do direito de asilo é o direito à proteção face à perseguição, mas parece-nos que deve entender-se que o direito ao non--refoulement constitui o conteúdo essencial do direito de asilo. O dever de não expulsar para o país onde o requerente é vítima de perseguição é o limite inultrapassável para o legislador e para as autoridades administrativas em geral relativamente aos estrangeiros e apátridas carentes de proteção inter-nacional que a requeiram em Portugal. É o mínimo dos mínimos de proteção a que o Estado está obrigado (a que os alemães chamam o “pequeno asilo” klein Asyl).

48 Na Diretiva 2011/95/UE, que estabelece normas mínimas relativas às condições a preencher por nacionais de países terceiros ou apátridas para poderem beneficiar do estatuto de refugiado ou de pessoa que, por outros motivos, necessite de proteção internacional, bem como relativas ao respetivo estatuto, e relativas ao conteúdo da proteção concedida, “refou-lement” aparece traduzido por repulsão (considerandos 2 e 36 e artigo 21.º). A lei portuguesa atualmente em vigor usa a mesma expressão Esta parece-nos uma forma muito imperfeita de traduzir “refoulement”.

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Estruturalmente, a grande diferença entre o direito de asilo, entendido como direito subjetivo das pessoas vítima de ameaças de perseguição, e a proteção face ao refoulement é o facto de aquele ser um direito que tem como correspetivo uma obrigação de facto positivo: o dever de acolher e de garantir proteção, enquanto a não devolução (non-refoulement) cria apenas nos Estados uma obrigação de carácter negativo, um dever de não expulsar a pessoa exatamente para o país onde este alega sofrer tratamento violador da sua dignidade humana.

A proteção face à devolução tem sido desenvolvida, fundamentalmente, ao nível do direito internacional, em diversos tratados internacionais. Há quem entenda mesmo que o non-refoulement deve ser visto como um direito humano49. O princípio do non-refoulement pode ser entendido em sentido restrito e em sentido amplo50.

49 Defendendo ter força de direito consuetudinário internacional, Goodwin-Gill, “Nonrefoulement and the new asylum seekers”, em David A. Martin (ed.), The New Asylum Seekers: Refugee Law in the 1980s – The Ninth Sokol Colloquium on International Law; Dordrecht, Martinus Nijhoff Publishers, 1988, p. 104 e Gilbert Gornig, “Das ‘non--refoulement’-Prinzip, ein Menschenrecht ‘in statu nascendi’ – Auch ein Beitrag zu Art. 3 Folterkonvention –” em EuGRZ, 1986, p. 521-529. Considerando tratar-se de uma caso de “wishful legal thinking”, Kay Hailbronner, “Nonrefoulement and ‘humanitarian’ refugees: customary international law or wishful legal thinking?”, em David A. Martin (ed.), The New Asylum Seekers: Refugee Law in the 1980s – The Ninth Sokol Colloquium on International Law; Dordrecht, Martinus Nijhoff Publishers, 1988, p. 123-144. Os últimos anos têm aumen-tado as incertezas quanto ao valor e ao alcance deste princípio, já que os Estados se mani-festam cada vez menos dispostos ao cumprimento desta regra, quando sentem existir razões de segurança pública que obriguem à expulsão para o país de origem. Estas situações ocorrem, sobretudo, quando há suspeitas de que os estrangeiros em causa, apesar de correrem sérios riscos em caso de devolução, estão ligados a organizações terroristas. Sobre estas mudanças, ver comentário a uma decisão do Tribunal Supremo canadiano, Stephane Bourgon, “The Impact of Terrorism on the Principle of ‘Non-Refoulement’ of Refugees: The Suresh Case before the Supreme Court of Canada”, em Journal of International Criminal Justice, 2003, p. 169-185 (www3.oup.co.uk/jijjus), Rene Bruin e Kees Wouter, “Terrorism and the Non--derogability of Non-refoulement”, em IJRL, 2003, p. 24-26.

50 Neste sentido, Frowein e Kühner, “Drohende Folterung als Asylgrund und Grenze für Auslieferung und Ausweisung”, em Zeitschrift für ausländisches öffentliches Recht und Völkerrecht, Stuttgart, Kohlhammer, 1983, p. 551-558. Sobre este princípio, ver também o trabalho de Ana Luísa Riquito, “The Public/Private Dichotomy in International Refugee Law”, em Boletim da Faculdade de Direito, 2001, p. 403 e seguintes.

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Em sentido estrito, o “non-refoulement” é um instituto de direito internacional dos refugiados e está consagrado no artigo 33.º, número 1 da Convenção de Genebra, nos termos em que vimos51.

Em sentido amplo, o princípio aplica-se às situações em que a extra-dição ou a expulsão para o país de origem possa significar uma violação insuportável da dignidade da pessoa humana e decorre de normas contidas em diversas convenções internacionais proibindo a tortura e outros trata-mentos cruéis, desumanos e degradantes. Referimo-nos, concretamente, à Convenção para a eliminação da Tortura (artigo 3.º), ao Pacto Interna-cional de Direitos Civis e Políticos (artigo 7.º), à CEDH (artigo 3.º) e, mais recentemente, à Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (artigo 19.º), que também consagra uma obrigação absoluta de não expulsão para um Estado onde haja risco sério de aplicação da pena de morte, tortura ou outras penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes (artigo 19.º, número 2).

As obrigações que decorrem para os Estados destas normas não contemplam uma cláusula de exceção semelhante à do artigo 33.º, número 2 da Convenção de Genebra, segundo a qual o direito à não devolução não pode ser invocado por um refugiado relativamente ao qual haja razões sérias para considerar perigo para a segurança do país onde se encontra, ou que,  tendo sido objeto de uma condenação definitiva por um crime ou delito particularmente grave, constitua ameaça para a comunidade do dito país.

Por esta razão tem sido muito discutido nos últimos anos52 se a obri-gação de não devolução é absoluta ou pode ser derrogada quando esteja em causa a segurança nacional e, feita a ponderação dos valores em causa, possa, em concreto, aquela prevalecer sobre o dever de não devolver a pessoa em causa ao país de origem.

Algumas instâncias jurisdicionais estrangeiras têm entendido que, quando o risco para a segurança nacional é muito elevado, pode haver ponderação entre este e o risco de que a pessoa em causa sofra tortura ou tratamento cruel, desumano e degradante, admitindo-se, no limite, a expulsão

51 Ver, sobre este, Margarida Salema Oliveira Martins, “O refugiado no Direito Inter-nacional e no Direito Português“, in Jorge Miranda (coord.), Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Martim de Albuquerque, vol. II, Coimbra, Coimbra Editora, 2010, p. 25.

52 Em particular, na sequência das preocupações com a segurança nacional que os ataques de 11 de setembro vieram suscitar.

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de um estrangeiro para o seu país de origem mesmo sabendo-se que este corra aí riscos significativos53.

Também a Comissão Europeia emitiu um documento de trabalho no âmbito do qual afirmou a necessidade de harmonizar os direitos básicos reconhecidos às pessoas que, não sendo refugiadas, não podem, nos termos do artigo 3.º da CEDH, ser expulsas com a necessidade de os Estados se defenderem face ao risco que essas pessoas podem representar nos seus territórios54.

Contra esta possibilidade têm-se levantado diversas vozes defendendo o carácter absoluto da proibição de devolução nos casos referidos55. Assim, a devolução de alguém que tema poder vir a sofrer perseguição, caso seja remetido para o seu país de origem, não poderá nunca acontecer, se houver o risco de a pessoa em causa vir a ser vítima de tortura ou de penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes.

A expulsão para Estados terceiros, que, depois, entregam as pessoas em causa ao país onde estas alegam correr riscos elevados, do ponto de vista dos seus direitos, constitui o chamado refoulement indireto, sendo proibido na mesma medida em que o é a prática de devolução direta e imediata ao país de origem.

53 Foi sobretudo o Tribunal Supremo canadiano que, no caso Suresh defendeu que se um estrangeiro representa um perigo previsível para o país de acolhimento, este pode exce-cionalmente expulsá-lo para o país de origem, ainda que possa vir aí a ser vítima de tortura, precisamente porque, lembrando os acontecimentos do 11 de Setembro, os erros em matéria de segurança nacional podem custar muito caro aos Estados. Ver sobre esta matéria, Rene Bruin e Kees Wouter, “Terrorism and the Non-derogability of Non-refoulement”, em IJRL, 2003, p. 5 e seguintes, Obiora Chinedu Okafor e Pius Lekwuwa Okoronkwo, “Re-configu-ring Non-refoulement? The Suresh Decision, ‘ Security Relativism’, and the International Human Rights Imperative”, em IJRL, 2003, p. 30 e seguintes e Stephane Bourgon, “The Impact of Terrorism on the Principle of ‘Non-Refoulement’ of Refugees: The Suresh Case before the Supreme Court of Canada”, em Journal of International Criminal Justice, 2003, p. 169-185 www3.oup.co.uk/jijjus (data da última consulta: 13/10/2014). Ver também Ana Isabel Soares Quintas, “O Equilíbrio entre o Princípio do Non-Refoulement e as Cláusulas de Exclusão do Estatuto do Refugiado: uma breve resenha das suas implicações” in Revista Onis Ciência, Vol. II, Ano II, n.º 7, Tomo I, Maio-Agosto 2014, pág. 9 e ss, disponível em http://www.revistaonisciencia.com (data da última consulta: 13/10/2014).

54 Ver Com(2001) 743, de 5 de Dezembro.55 Assim, James Hathaway e Colin Harvey, “Framing Refugee Protection in the New

World Disorder” e Lauterpacht e Bethelem, “The Scope and Content of the Principle of Non-refoulement”, apud Rene Bruin e Kees Wouter, “Terrorism and the Non-derogability of Non-refoulement”, em IJRL, 2003, p. 20-21.

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O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos tem, como referimos, apli-cado o artigo 3.º a casos de afastamento de estrangeiros do território de um Estado parte na CEDH para países onde estes correm o risco de sofrer trata-mentos cruéis, degradantes ou desumanos56. Os juízes de Estrasburgo têm entendido que a aplicação de medidas de expulsão para o país de origem, nestas situações, viola a proibição de sujeição da pessoa humana a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, que é uma proibição de carácter absoluto57. Para que aquele risco possa ser estabelecido, não basta provar a existência de uma situação de anarquia ou de violência generali-zada, de conflito armado ou de desrespeito pelos direitos humanos, impõe--se que esse risco se afigure particularmente intenso para a pessoa que pode ser obrigada a regressar ao país de origem58.

Dado que, entre nós, existe um verdadeiro direito subjetivo ao asilo, poderia pensar-se que a proteção face ao refoulement teria perdido todo o interesse e importância, mas não é assim. A proteção face à expulsão permanece importante, mas apenas nas situações em que o pedido de asilo tenha sido recusado e o seu requerente deva ser expulso, já que, caso este beneficie daquela proteção, a solução terá que respeitar os compromissos 

56 A primeira vez que o fez foi num caso de extradição. Caso Soering contra Reino Unido, de 7 de julho de 1989, envolvendo requerentes de asilo, seguiram-se os casos Cruz Varas contra Suécia, de 20 de março de 1991, e de Vilvarajah contra o Reino Unido, de 30 de novembro de 1991, ver em www.echr.coe.int.

57 Sobre o impacto desta jurisprudência nos sistemas nacionais de asilo, ver Elspeth Guild, “Jurisprudence of the European Court of Human Rights: lessons for the EU Asylum Policy”, em The Emergence of a European Asylum Policy / L’Emergence d’une Politique Européenne d’Asile, Bruxelles, Bruylant, 2004, p. 329.

58 Assim o entendeu o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem no caso Chahal contra Reino Unido, de 15 de novembro de 1996, em que o queixoso, de nacionalidade indiana, era considerado, pelas autoridades britânicas, um terrorista, mas o Tribunal entendeu que, mesmo nestas circunstâncias, os Estados-parte estavam obrigados a não expulsar estran-geiros se estes pudessem ser sujeitos a tratamentos contrários ao artigo 3.º da Convenção, e também nos casos Vilvarajah e outros contra Reino Unido, de 30 de outubro de 1991 e H.L.R. contra França, de 29 de abril de 1997, tendo nestes dois últimos recusado a aplicação do artigo 3 da Convenção por não terem os queixosos provado correrem um risco acrescido de sofrerem tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos, por comparação com a generalidade da população. Ver Hailbronner, Immigration and Asylum Law and policy of the European Union, Hague, Kluwer Law International, 2000, p. 492-494. Cremos que, no entanto, no caso D. contra o Reino Unido, de 2 de maio de 1997, em que D. alegava que, sendo seropo-sitivo, caso fosse expulso, a sua morte ia ser acelerada e ocorreria provavelmente em condi-ções desumanas e degrandantes, o Tribunal não foi totalmente coerente com este raciocínio e entendeu que a expulsão não podia ter lugar.

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internacionais do Estado português, nos termos em que vimos acima. Assim, pode a mesma pessoa não ter direito ao asilo (por ocorrer, por exemplo, uma cláusula de exclusão, nos termos em que veremos infra), mas não poder ser expulsa para o país de origem por poder ser aí exposta a tortura, por exemplo. Isto mesmo resulta atualmente de modo direto e expresso do artigo 47.º da lei do asilo atualmente em vigor

O asilo e a proteção contra o refoulement devem ser vistos, então, como institutos autónomos. Embora o reconhecimento do direito de asilo implique o non-refoulement, a inversa não é verdadeira. Pode alguém ser titular apenas de um direito ao non-refoulement, fundado na Convenção de Genebra ou fundado noutro instrumento internacional, como a CEDH, Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, ou Convenção contra a Tortura.

1.3.2.3. Asilo e extradição

Ao contrário do que sucede com a expulsão, não há, em matéria de extradição, normas aplicáveis de direito internacional que protejam espe-cificamente os estrangeiros da aplicação deste instituto de cooperação judi-ciária penal internacional.

No entanto, as normas que acima referimos de proteção face à expulsão – quer as normas que proíbem a expulsão em determinadas circunstâncias, quer as que exigem a satisfação de determinadas garantias procedimentais prévias – aplicam-se também a este instituto, porque, em termos materiais, a medida de extradição concretiza-se numa expulsão, logo, as garantias que assistem ao estrangeiro, para efeitos de expulsão, devem também aplicar-se a casos de extradição.

No que se refere à jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, que referimos acima, esta tem sido sempre aplicada igualmente a casos de expulsão e de extradição.

Além das limitações na execução de decisões de extradição que decorrem para os Estados por força das obrigações internacionais, há garan-tias especificamente previstas na Constituição portuguesa para os casos de extradição de estrangeiros, que afastam a possibilidade de extradição no caso de crimes a que corresponda “pena ou medida de segurança privativa ou restritiva da liberdade com carácter perpétuo ou de duração indefinida”, salvo se o Estado requisitante “for parte de convenção internacional a que Portugal esteja vinculado” e oferecer “garantias de que tal pena ou medida

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de segurança não será aplicada ou executada” (artigo 33.º, número 4 da Constituição) ou “pena de morte ou outra de que resulte lesão irreversível da integridade física” (artigo 33.º, número 6 da Constituição).

A estas garantias acresce uma outra: a proibição da extradição por prática de crimes com motivos políticos, que tem até historicamente uma relação especial com o direito de asilo59.

Nas situações em que ao requerente de asilo seja igualmente imputada a autoria de um crime e venha a ser deduzido pedido de extradição, pode pôr-se um problema de concurso de um pedido de asilo e de um pedido de extradição relativamente à mesma pessoa.

Em situações como esta, impõe-se uma articulação entre os dois pedidos – o de asilo, formulado pela própria pessoa, e o de extradição, de que é autor o Estado que se considera competente para proceder à ação penal.

Nos termos do artigo 48.º da atual lei do asilo, nestas situações, a apre-sentação de um pedido de asilo suspende a apreciação do pedido de extra-dição durante o tempo necessário à apreciação do primeiro – quer durante a fase administrativa, quer na fase jurisdicional que, eventualmente, lhe suceda60.

Os dois pedidos são autónomos e devem ser apreciados separadamente, não se podendo deduzir do eventual não-reconhecimento do pedido de asilo a anuência relativamente à extradição. Podem bem verificar-se situações em que não se cumprem os pressupostos do direito de asilo (atenta a natu-reza e a gravidade do crime cometido), mas também não há garantias de que o Estado requisitante, por exemplo, não proceda à aplicação de “pena de morte ou outra de que resulte lesão irreversível da integridade física” (artigo 33.º, número 6 da Constituição)61.

59 Sobre esta matéria, ver o nosso O Direito de Asilo na Constituição Portuguesa – Âmbito de Proteção de um Direito Fundamental, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, p. 47-49 e 89-91.

60 Ver, porém, o Acórdão 219/04, de 30 de março, do Tribunal Constitucional, no qual estava em causa uma situação em que, na sequência de uma decisão que determinou a extradição, foi formulado um pedido de asilo, pretendendo o requerente que tal suspendesse a execução da decisão de extradição. O Tribunal entendeu que “o limite para o exercício do direito de asilo e consequente pedido de suspensão do processo de extradição” é o “momento em que se torna definitiva a decisão de extradição”, pelo que um pedido de asilo apresen-tado após a decisão final do processo de extradição não tem o efeito de suspender a respetiva execução.

61 O grande problema destas situações em que nem o pedido de asilo nem o pedido de extradição procedem é o facto de não haver um estatuto jurídico para regular a sua relação

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2. CONDIÇÕES PARA O RECONHECIMENTO DE PROTEÇÃO

Para que a proteção internacional seja reconhecida, é necessário que seja possível verificar um conjunto de condições relativamente ao reque-rente: se se verificam os pressupostos para o reconhecimento do direito de asilo ou, em alternativa, para a concessão da proteção subsidiária e se o requerente não é abrangido por nenhuma das cláusulas de exclusão previstas na lei.

No que diz respeito às condições positivas para obtenção da proteção, as leis portuguesas em matéria de asilo encontram aqui um elemento de continuidade. Ao longo de todo o desenvolvimento legislativo que o asilo sofreu desde 1980, a lei sempre distinguiu três vias de proteção internacional (embora não as designasse assim): a via do asilo constitucional, a via do asilo aos refugiados na aceção da Convenção de Genebra e a via do asilo por razões humanitárias.

A via do asilo constitucional consiste na garantia de que quem prove ser vítima de perseguição ou de ameaça de perseguição “em consequência da sua atividade em favor da democracia, da libertação social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana” tem direito de asilo em Portugal e, nos termos do artigo 33.º, número 9, da Cons-tituição, beneficia de estatuto de refugiado político.

A segunda via para obter asilo entre nós depende da prova de que o requerente receia, com razão, ser perseguido “em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, opiniões políticas ou integração em certo grupo social” 62.

A terceira via consiste em o requerente provar que não pode voltar ao seu país de origem por motivos de insegurança devida a conflitos armados 

com o Estado de acolhimento, já que não são considerados refugiados, não reúnem, muitas vezes, os requisitos para lhes ser concedida uma autorização de permanência e acabam por ficar sem um estatuto definido, sendo, por isso, em França, genericamente designados por “clandestinos oficiais”. A sua presença é conhecida pelas autoridades nacionais, mas a sua situação não é regular.

62 Em nossa opinião a distinção entre a primeira e a segunda via é meramente apa- rente, uma vez que defendemos que, não se justifica a distinção entre pedidos de asilo constitucional e outros pedidos de asilo que não configuram exercício de direito funda- mental. Sobre esta nossa interpretação, em termos mais desenvolvidos, ver o nosso, O Direito de Asilo na Constituição Portuguesa – Âmbito de Proteção de um Direito Fundamental, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, p. 167-188 e, em termos muito sucintos, “Direito de Asilo” em Dicionário Jurídico da Administração Pública, 3.º Suplemento, Lisboa, 2007, p. 309-310.

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ou sistemática violação dos direitos humanos. Esta “terceira via” desig-nava-se na lei de 1980 por “asilo por razões humanitárias (artigo 2.º da lei 38/80, de 1 de agosto); na lei de 1993, por “regime excecional por razões humanitárias” (artigo 10.º da lei 70/93, de 29 de setembro), na lei de 1998, por “autorização de residência por razões humanitárias” (artigo 8.º da lei 15/98, de 26 de março).

A nova lei do asilo não interrompe esta linha de continuidade, dá-lhe até, a nosso ver, uma maior consistência. Assim, o requerente passa a dirigir às autoridades um pedido de proteção internacional e, depois, à Adminis-tração compete ver se tal pedido configura um pedido de asilo (primeira ou segunda via) ou, no caso de não se encontrarem preenchidos os pressupostos daquele, um pedido de proteção subsidiária (terceira via).

Não é fácil enumerar, em termos gerais, quais são os pressupostos de facto para a constituição do direito à proteção internacional na esfera jurí-dica do requerente. Nuns casos são determinantes as convicções políticas ou religiosas; noutros, elementos referidos à identidade étnica ou sexual; noutros ainda, aspetos da história pessoal do requerente, uma situação polí-tica conturbada no país de origem, havendo ou não envolvimento pessoal do requerente em atividades ou organizações mal vistas pelas autoridades do país de origem. As causas que podem fundamentar um pedido de proteção são, pois, de natureza muito diferente, o que dificulta a apresentação dos pressupostos do direito de asilo e da proteção subsidiária: os elementos que, uma vez verificados numa situação concreta, justificam o reconhecimento de proteção internacional. A realidade oferece sempre elementos novos ou faces diferentes de elementos já conhecidos.

Frequentemente, o requerente de asilo invoca uma pluralidade de motivos para justificar a sua fuga, em que aos motivos relacionados com uma eventual perseguição ou o risco de sofrer ofensa grave se juntam outros rela-cionados, por exemplo, com circunstâncias socioeconómicas ou familiares. Nestas situações deve entender-se que se se provarem as condições para o reconhecimento do direito de asilo ou da proteção subsidiária, todas as outras razões de fuga são irrelevantes para a determinação do estatuto de proteção internacional, não podendo a sua invocação por parte do requerente ser fundamento para o indeferimento do seu pedido de proteção internacional.

Os motivos apresentados pelo requerente – quer apontem para o reco-nhecimento do direito de asilo; quer apontem para a concessão da proteção subsidiária – hão-de ser apreciados em relação ao Estado de origem do reque-rente. Este será, na maioria dos casos, o Estado da sua nacionalidade. Situa-

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ções de apatridia ou de plurinacionalidade levantam, no entanto, problemas específicos63. Assim, em relação aos apátridas, o país de origem é o país da sua residência habitual. Nos casos de plurinacionalidade, só há lugar a proteção internacional se nenhum dos Estados de que é nacional lhe puder conceder proteção nacional64.

De seguida, apresentaremos as condições para o reconhecimento de proteção internacional em três partes: primeiro, os critérios para o reconhe-cimento do direito de asilo; segundo, os pressupostos para a concessão de proteção subsidiária; terceiro, as cláusulas de exclusão, ou seja, situações ou pressupostos que, uma vez verificados, impedem o reconhecimento de proteção internacional.

2.1. conDições pArA o reconhecimento Do Direito De Asilo stricto sensu

Para o reconhecimento do direito de asilo stricto sensu, o conceito--chave em que assentam quase todas as normas determinando o âmbito subjetivo do direito de asilo é o conceito de perseguição65. Dedicaremos de

63 Sobre esta matéria, ver o nosso O Direito de Asilo na Constituição Portuguesa – Âmbito de Proteção de um Direito Fundamental, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, p. 221 e seguintes.

64 Ver, neste sentido, o artigo 3.º, número 3, da lei do asilo atualmente em vigor. É importante ter em atenção na análise da(s) nacionalidade(s) do requerente o problema das nacionalidades não efetivas, em que o requerente pode ser nacional de um Estado, mas não poder valer-se da proteção desse mesmo Estado. Sobre este problema, ver mais desenvolvi-damente o nosso O Direito de Asilo na Constituição Portuguesa – Âmbito de Proteção de um Direito Fundamental, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, p. 239-242.

65 A exceção será, porventura, a Constituição italiana, onde se lê: “o cidadão estran-geiro que veja recusado no seu país o exercício efectivo das liberdades democráticas garan-tidas pela Constituição italiana tem direito de asilo no território da República segundo as condições estabelecidas na lei“. Esta formulação, inspirada na doutrina universalista dos direitos humanos, dispensa o conceito de perseguição e considera que se verifica uma situação de facto suscetível de justificar a proteção do asilo sempre que uma pessoa não goze no seu país “das liberdades democráticas garantidas pela Constituição italiana“, o que é uma formulação muito mais ampla desse âmbito de titularidade. Excetuando a Constituição deste Estado – cuja prática se revela bem menos generosa do que o texto anuncia –, todos os outros instrumentos de proteção dos refugiados assentam na noção de perseguição. Como alguém observou, em face desta norma, “a grande maioria dos Homens que hoje vive sobre a terra teria direito de asilo na Itália” – Mazziotti, citado por Giustino D`Orazio, Lo Straniero nella Costituzione Italiana, Milão, CEDAM, 1992, p. 104.

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seguida a nossa atenção a este conceito e a todos os problemas que lhe estão associados – determinação dos motivos de perseguição relevantes para este fim, atualidade de perseguição, receio de perseguição superveniente à saída do país (ou proteção sur place), agentes de perseguição.

Antes, porém, de analisarmos estas questões, impõe-se que reflitamos sobre o modo como devem articular-se as duas vias para o reconhecimento do direito de asilo entre nós consagradas – a via constitucional, reprodu-zida no artigo 3.º, número 1, da lei atualmente em vigor, e a via do asilo aos refugiados, segundo a definição presente na Convenção de Genebra e reproduzida no artigo 3.º, número 2, da lei66.

Há várias posições a este respeito. Vital Moreira, pronunciando-se a propósito da lei de 1993, que, à semelhança da atual lei, estendia a garantia do direito de asilo “aos estrangeiros e aos apátridas perseguidos ou grave-mente ameaçados de perseguição em consequência de atividade exercida no Estado da sua nacionalidade ou da sua residência habitual em favor da democracia, da libertação social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana” (artigo 2, número 1) e “que, receando com fundamento ser perseguidos em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, opiniões políticas ou integração em certo grupo social não possam ou, em virtude desse receio, não queiram voltar ao Estado da sua nacionalidade ou da sua residência habitual”(artigo 2, número 2), defendeu que “é apenas o asilo político que goza de proteção constitucional. Não garante a Constituição o direito de asilo aos perseguidos por outras razões (de raça, religião, etc.), aos quais, todavia, a lei anterior e o novo diploma estenderam tal direito”67.

66 Já tivemos ocasião de nos debruçar mais profundamente sobre esta questão. Este foi, aliás, o tema central do nosso trabalho O Direito de Asilo na Constituição Portuguesa – Âmbito de Protecção de um Direito Fundamental, Coimbra, Coimbra Editora, 2009.

67 Vital Moreira, “O direito de asilo entre a Constituição e a lei”, volume I, Lisboa, Conselho Português para os Refugiados, 1994. No comentário à Constituição elaborado com Gomes Canotilho, repete-se a mesma ideia: “(...) a Constituição só garante o direito funda-mental de asilo quando a perseguição (ou ameaça de perseguição) seja motivada pela luta por esses valores”: democracia, libertação social e nacional, paz entre os povos, liberdade e direitos da pessoa humana, em Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da Repú-blica Portuguesa Anotada, 4.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, comentário ao artigo 33, número 8, p. 536. Uma concepção semelhante parece ser perfilhada também por Damião Cunha, que, em comentário ao artigo 33 da Constituição, afirma: “Neste sentido, a norma em causa garante um direito subjectivo a quem seja perseguido ou ameaçado de perseguição, pelos valores constitucionais referidos, a encontrar protecção no Estado de Direito Portu-

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Discordamos desta interpretação. Em nosso entender, as condições para o reconhecimento do estatuto de refugiado não devem ser vistas deste modo estanque e, fazendo apelo a um princípio de interpretação dos direitos fundamentais à luz das normas de direito internacional, entendemos que se deve estender o âmbito de proteção do direito de asilo constitucional às situações abrangidas pela definição de refugiado da Convenção de Genebra.

A definição de refugiado presente na Convenção de Genebra (e no número 2 do artigo 3.º da lei atualmente em vigor) é mais abrangente nalguns aspetos do que a definição constitucional de quem pode beneficiar de direito de asilo – na medida em que inclui as vítimas de perseguição que não é motivada pela “atividade” do requerente de asilo em favor de determinadas causas (a democracia, a libertação social e nacional, a paz entre os povos e os direitos da pessoa humana), mas inclui também a perseguição moti-vada pelo simples facto de o requerente pertencer a uma etnia, religião ou grupo social perseguido em determinado Estado, a chamada “perseguição da diferença”. Noutros aspetos é mais restritiva, porque a Convenção de Genebra e a DUDH excluem do âmbito de proteção do estatuto de refu-giado pessoas que tenham cometido atos graves, como crimes de direito comum, crimes contra a Humanidade, crimes de guerra ou crimes contra a paz e, finalmente, por quem tenha cometido atos contrários aos fins e aos princípios das Nações Unidas.

No nosso entendimento, é no cruzamento da norma constitucional com a definição da Convenção de Genebra e da DUDH, que deve ser achado o âmbito subjetivo do direito de asilo stricto sensu. As duas definições de quem pode beneficiar de proteção (a contida na Convenção de Genebra e a contida na Constituição) não se combinam por simples adição, soma de dois âmbitos subjetivos, não se justapõem, antes limitam, em alguns pontos, a sua extensão e alargam-na noutros68.

guês, mas impõe também ao Estado Português o dever de garantir o asilo, pelo menos nestes casos.”, em Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra, Coimbra Editora, 2005, p. 369.

68 No trabalho O Direito de Asilo na Constituição Portuguesa – Âmbito de Protecção de um Direito Fundamental, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, defendemos que a via que nos conduz a este resultado é, precisamente, a de uma interpretação do enunciado constitu-cional amiga do Direito Internacional, “amiga” da Convenção de Genebra, instrumento que entendemos, pelas razões acima expostas, apto para desempenhar as funções de parâmetro hermenêutico das normas constitucionais portuguesas, dada a sua sedimentação na consci-ência jurídica nacional e internacional. Ao mesmo resultado poderíamos ter chegado por outro caminho: considerar que a lei quando reconhece direito de asilo aos refugiados segundo

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Assim, em nosso entender, não deve entender-se que há em Portugal duas vias de reconhecimento do direito de asilo, ao contrário do que sugere o artigo 3.º, números 1 e 2 da lei atualmente em vigor, mas apenas um direito de asilo, entendido aqui stricto sensu.

2.1.1. Perseguição

Apesar da importância central do conceito de perseguição para a deter-minação do estatuto de refugiado, dos instrumentos em vigor de direito internacional de refugiados não consta uma definição jurídica de “perse-guição”. A Convenção de Genebra não define perseguição e mesmo uma análise dos trabalhos preparatórios ajuda pouco à compreensão do sentido que se quis dar ao conceito de refugiado69. Nem por via doutrinal, nem por via da jurisprudência se alcançou um entendimento comum do que se deve entender por ato persecutório. Na sequência da Diretiva 2004/83/CE, de 29 de abril70, a lei portuguesa passou a incluir uma norma sobre “atos de perse-guição” (artigo 5.º), que se manteve sem alterações significativas depois da lei de 2014, mas, mesmo aqui, não apresenta propriamente um conceito de perseguição, mas apenas uma tentativa de aproximação a este, incorporando no direito europeu, alguns dos contributos que, ao longo de décadas, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) foi dando para a interpretação do conceito de perseguição71.

Em todo o caso, o que se tem verificado é que, em geral, as instâncias judiciais, obrigadas a tomar decisões sem um conceito normativo de perse-guição, tendem a apoiar-se no significado comum e corrente da palavra, tal como se encontra descrito nos dicionários, ou fazem uma aproximação ao

a Convenção de Genebra consagra um direito materialmente fundamental. Atendendo à analogia do direito consagrado na lei com o direito constitucional, não seria, aliás, difícil justificar a “fundamentalidade” material deste direito. Foi essa a via que o STA aparente-mente seguiu em dois acórdãos – referimo-nos aos acórdãos de 9 de novembro de 1999, processo 37809, publicado em Antologia de Acórdãos do STA e TCA, Ano III, n.º 1, 1999, p. 6-8, e de 31 de outubro de 2000, processo 44667.

69 Neste sentido, Daniel Steinbock, “The refugee definition as law: issues of interpre-tation”, em Frances Nicholson e Patrick Twomey (eds.), Refugee rights and Realities: evolving international concepts and regimes, Cambridge, Cambridge University Press, 1999, p. 14-19.

70 Artigo 9.º da Directiva 2004/83/CE, de 29 de abril.71 Presentes, desde logo, no Manual do ACNUR sobre Procedimentos e Critérios a

Aplicar na Determinação do Estatuto de Refugiado (pontos 51 e seguintes).

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conceito através dos casos concretos submetidos a apreciação sem grande construção conceptual72.

Alguns autores apresentam propostas ou tentativas de densificação do conceito de perseguição. De destacar é a proposta de Goodwin-Gill que, com base na Convenção de Genebra, difunde o conceito de perseguição num “complexo de razões, bens jurídicos e medidas”73.

“As medidas afetam ou vão diretamente contra grupos ou indivíduos por razões de raça, religião, nacionalidade, pertença a um grupo social particular ou opinião política. Estas razões, por sua vez, provam que grupos e indiví-duos são identificados através de uma classificação que deveria ser irrele-vante para o gozo de bens jurídicos protegidos fundamentais. A perseguição resulta do facto de as medidas em causa afetarem aqueles bens jurídicos e a integridade e inerente dignidade do ser humano de uma forma considerada inaceitável de acordo com os padrões internacionais ou de acordo com os padrões mais exigentes que prevalecem no Estado a quem compete apreciar o pedido de asilo ou de reconhecimento do estatuto de refugiado”74.

Esta definição tem duas grandes vantagens: por um lado, por ser inspi-rada na Convenção de Genebra e por ter sido concebida para o direito dos refugiados, serve bem o fim para que foi concebida; por outro lado, pelo seu carácter englobante, permite compreender a complexidade do conceito, que resulta da combinação de elementos objetivos (medidas e bens jurídicos) e elementos subjetivos (razões).

O já referido artigo 9.º da Diretiva 2011/95/UE tem subjacente uma noção de perseguição muito próxima desta que acabámos de expor. No número 1 tenta-se a definição de atos perseguição pela via da gravidade, da fundamentalidade dos bens jurídicos afetados pelas medidas persecutórias – os atos de perseguição devem ser suficientemente graves “devido à sua natu-reza ou persistência, para constituírem grave violação dos direitos humanos

72 Dirk Vanhleule, “A comparison of the judicial interpretations of the notion of refugee”, em Jean-Yves Carlier e Dirk Vanheule (eds.), Europe and Refugees: A Challenge? L’Europe et les réfugiés: un défi?, The Hague, Kluwer Law International, 1997, com base no estudo comparativo publicado no livro Qu’est-ce qu’un réfugié?(eds. Jean-Yves Carlier e outros), Bruxelas, Bruylant, 1998.

73 Guy Goodwin-Gill, The Refugee in International Law, 2.ª edição, Oxford, Clarendon Press, 1996, p. 77.

74 Guy Goodwin-Gill, op. cit., p. 77.

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fundamentais, em especial dos que não podem ser derrogados”, nos termos do artigo 15.º da CEDH. No número 2, são exemplificadas algumas das medidas que podem consubstanciar atos de perseguição, havendo o cuidado de esclarecer algumas situações em relação às quais havia grandes dúvidas e divergências de interpretação entre os Estados-membros. No número 3, exige-se que os atos de perseguição estejam relacionados com os motivos, as razões – de raça, nacionalidade, religião ou outras, que analisaremos no ponto seguinte – que se consideram relevantes para efeitos de reconheci-mento do estatuto de refugiado.

Para se concluir pela existência de perseguição é necessário que se veri-fique que o requerente de asilo sofreu (ou pode vir a sofrer) uma privação de direitos fundamentais ou, nos termos do artigo 5.º, número 1, da lei atual-mente em vigor, uma “grave violação de direitos fundamentais”.

A primeira questão que se pode colocar é sobre o referente com base no qual se hão-de descobrir os direitos cuja violação é relevante neste contexto. Deverá ser o catálogo de direitos fundamentais constitucionais? Deverá ser o conjunto dos direitos reconhecidos internacionalmente como direitos humanos? Em nosso entender, é por referência aos direitos fundamentais da Constituição portuguesa que tal privação se deve considerar ou não rele-vante. São os direitos considerados fundamentais em Portugal – não apenas os do catálogo constitucional, mas também os reconhecidos ao abrigo do artigo 16.º, número 1 – que devem permitir ao aplicador do direito traçar a fronteira entre compressão a direitos fundamentais e não fundamentais para efeitos de determinação da existência ou não de perseguição.

As razões para esta escolha são duas: em primeiro lugar, de ordem pragmática; em segundo lugar, por atenção à natureza do instituto.

Em primeiro lugar, constituindo os direitos fundamentais na Consti-tuição portuguesa um catálogo extenso, a sua adoção permite-nos abranger situações em que o bem jurídico não é protegido na esfera internacional, mas é-o na ordem jurídica interna – o que, de outro modo, implicaria a sua não consideração para este efeito.

Em segundo lugar, o direito fundamental de asilo não constitui outra coisa senão uma forma de proteção dos bens jurídicos considerados funda-mentais para o Estado de acolhimento e objeto de violações no Estado de origem. É no confronto entre maneiras diferentes de encarar e de respeitar a dignidade inerente à pessoa humana que o instituto do asilo adquire sentido. É, pois, em face do conjunto de direitos fundamentais assumidos pelo direito constitucional português que se deve verificar a ocorrência ou 

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não de uma situação de privação de direitos suscetível de ser integrável no conceito de perseguição para efeitos de determinar o âmbito de proteção do direito de asilo. Não significa isto que consideremos que os direitos funda-mentais consagrados na Constituição portuguesa são direitos universais e que, como tal, qualquer privação desses direitos, onde quer que ocorra, é suscetível de justificar a concessão de asilo. O catálogo constitucional dos direitos fundamentais não vincula Estados estrangeiros. O Estado portu-guês não assume um dever geral de proteção face a eventuais violações de direitos fundamentais cometidas por entidades estrangeiras75. No entanto, em situações de excecional gravidade, o Estado, quando esteja em causa uma decisão de expulsão, de extradição ou de asilo, assume um papel protetor face à atuação de entidades estrangeiras (as do país de origem ou do país que requer a extradição). O receio de que os estrangeiros presentes em território português possam vir a sofrer medidas tais como pena de morte, prisão perpétua ou de duração indefinida, lesão irreversível da integridade física, no caso da extradição, ou perseguição, no caso do asilo, justifica a exceção. É precisamente a circunstância de alguém poder vir a sofrer perse-guição que justifica que o Estado estenda a proteção dos direitos fundamen-tais a estrangeiros presentes em território português em relação aos quais seja possível provar que têm fundado receio de virem a sofrer, por motivos inaceitáveis face aos princípios fundamentais da Constituição portuguesa, atos gravemente violadores dos seus direitos fundamentais76.

É, pois, por referência aos direitos reconhecidos como fundamentais na ordem jurídica portuguesa que o reconhecimento do direito de asilo se justifica.

75 Neste sentido, Joseph Isensee, “Das Grundrecht als Abwehrrecht und als staatliche Schutzpflicht”, em Joseph Isensee e Paul Kirchhof (eds.), Handbuch des Staatsrechts, volume V, 2.ª edição, Heidelberg, C. F. Müller, 2000, p. 210. Ver também supra.

76 Isensee identifica seis tipos de funções jurídico-constitucionais de proteção inter-nacional: a proteção de direitos fundamentais através da política externa e da política comu-nitária; a proteção diplomática; o dever de defesa militar; a protecção contra ameaças que se fazem sentir em território interno, mas que vêm de organizações ou Estados estrangeiros; a proteção de estrangeiros contra perseguições no estrangeiro que ponham em causa os seus direitos fundamentais; e, finalmente, a discriminação de cidadãos, de produtos ou serviços nacionais que pode verificar-se como consequência da participação do Estado em organiza-ções de natureza supranacional. No penúltimo tipo inclui o direito de asilo, a proteção contra a expulsão e a extradição. Ver Joseph Isensee, “Das Grundrecht als Abwehrrecht und als staatliche Schutzpflicht”, em Joseph Isensee e Paul Kirchhof (eds.), Handbuch des Staats-rechts, volume V, 2.ª edição, Heidelberg, C. F. Müller, 2000,.p. 211-213.

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Para que a violação de direitos fundamentais seja considerada medida persecutória, é necessário provar que aquela ofensa é grave. A fluidez e a subjetividade da noção de gravidade tornam particularmente difícil a apre-sentação de critérios que possam auxiliar o intérprete na aplicação deste pressuposto. A generalidade dos autores opta, nesta matéria, por fórmulas gerais, assentes na importância dos bens jurídicos que podem ser afetados pela situação que se verifica no país de origem.

Goodwin-Gill defende que a perseguição é grave quando afeta “a inte-gridade e inerente dignidade do ser humano de uma forma considerada inaceitável de acordo com os padrões internacionais ou de acordo com os padrões mais exigentes que prevalecem no Estado a quem compete apre-ciar o pedido de asilo ou de reconhecimento do estatuto de refugiado”77. Esta posição, embora desenvolva um pouco a ideia do que se deve entender por gravidade, consubstancia uma formulação ampla do conceito e deixa ao intérprete grande margem de liberdade na apreciação em concreto da gravidade da medida persecutória.

A jurisprudência do STA tem também recorrido a estas formulações abertas para aferir da gravidade da perseguição, remetendo para conceitos como o de medida “atentatória do núcleo essencial da dignidade humana”78.

Foi também defendida a aplicação neste contexto da figura do estado de necessidade do Direito Penal, devendo considerar-se consequentemente grave uma medida atentatória dos direitos fundamentais diante da qual se torne irrazoável exigir à pessoa em causa outra coisa que não a fuga79.

A atual lei do asilo, no seu artigo 5.º, número 1, insiste muito na gravi-dade fundada numa ideia de repetição, de reiteração de medidas, parecendo--nos querer com isto aderir à recomendação constante no do Manual sobre Procedimentos e Critérios a Aplicar para Determinar o Estatuto de Refu-giado do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, onde poder ler-se:

77 Goodwin-Gill, The Refugee in International Law, 2.ª edição, Oxford, Clarendon Press, 1996, p. 77, citado supra.

78 Veja-se a título de exemplo, o acórdão STA, processo 043576, de 27 de outubro de 1998. “O facto de se pertencer a um grupo étnico, que se diz ser alvo de discriminação, só poderia integrar o fundamento para o asilo (...) se aquela for actual e atingir tal grau de intensidade e extensão, que permita caracterizá-la como atentatória do núcleo essencial da dignidade humana.”

79 Niraj Nathwani, “The Purpose of Asylum”, em International Journal of Refugee Law, 2000, p. 354.

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“(...) o requerente pode ter sido sujeito a várias medidas que, por si só, não constituem perseguição (por exemplo, discriminação sob diferentes formas), em alguns casos combinadas com outros fatores adversos (por exemplo, ambiente geral de insegurança no país de origem). Em tais situa-ções, os diversos elementos envolvidos pode, se considerados conjuntamente, produzir um estado de espírito no requerente que pode justificar de modo razoável a fundamentação do receio de perseguição por motivos cumula-tivos”. (Manual sobre Procedimentos e Critérios a Aplicar para Determinar o Estatuto de Refugiado, ponto 53).

A violação de alguns direitos fundamentais, como a vida, a integridade física e a liberdade, que constituem o núcleo de direitos fundamentais deve, sem mais, presumir-se grave. Há uma essencialidade absoluta de gozo dos bens jurídicos subjacentes a estes direitos – vida, respeito pela integridade física, liberdade80. Estes bens são essenciais para todos.

Nos restantes direitos, a importância dos mesmos só pode ser corre-tamente determinada em concreto, através de ponderação, atendendo ao caso individual. A sua importância é relativa. Quando estejam em causa outros bens jurídicos que não a vida, a liberdade e a integridade física, o juízo sobre a gravidade da privação de direitos deve, pois, resultar de uma ponderação entre três aspetos: a severidade da medida, a dignidade do(s) bem(ns) jurídico(s) afetado(s) e a força dos motivos alegados para justificar a privação. Nestes casos, a gravidade não se pode deduzir sem mais a partir do bem jurídico afetado, mas tem de ser ponderada atendendo à situação concreta em que ocorre a privação do bem. A ponderação de diversos elementos é a chave para apreciar a gravidade da perseguição. E os elementos

80 Esta solução é também inspirada na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão que começou por considerar apenas relevantes as privações de direitos fundamentais que atingissem a vida, a integridade física ou a liberdade e se alargou, suces-sivamente, a outros bens jurídicos (como o acesso à educação, a liberdade profissional), consoante as circunstâncias concretas do caso. Segundo o mesmo Tribunal é em função do princípio de inviolabilidade da dignidade humana (Unverletzlichkeit der Menschenwürde) que se deve apreciar a gravidade da perseguição e sempre que esteja em perigo a integridade física, a vida ou a liberdade, a perseguição deve considerar-se grave, dando-se como adqui-rido haver nestas situações atentados à dignidade humana; quando não haja perigo directo ou indirecto para aqueles bens jurídicos, a gravidade da perseguição avalia-se pela gravidade e intensidade com que a dignidade humana é afectada. Cabem aqui situações em que o bem jurídico directamente atingido é a liberdade de exercício de uma profissão ou de prática religiosa, por exemplo, mas a intensidade com que estes bens jurídicos são afectados justi-fica o reconhecimento do direito de asilo.

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que devem ser tidos em conta são, em nossa opinião, três: o bem jurídico atingido, a medida aplicada e as razões desta. Estes três elementos – que coincidem com os três elementos da noção de perseguição de Goodwin-Gill, que apresentamos, – devem ser ponderados em conjunto e, quanto mais se afastarem daquilo que o Estado de acolhimento considera ser tolerável, mais grave se deve considerar a privação de direitos humanos. A mesma ideia subjaz à tese de Jean-Yves Carlier, que defende que a avaliação da gravi-dade da perseguição depende de um juízo de ponderação entre medidas e bens jurídicos afetados e entende que o critério para apreciar a gravidade da privação dos direitos fundamentais é o de desproporcionalidade entre a medida persecutória e o direito atingido.

“Quanto mais fundamental for o direito (vida, integridade física, liber-dade), menos severa tem de ser a medida quer quantitativa, quer qualitativa-mente. Quanto menos prioritária for a liberdade atingida, mais severa, quer quantitativa, quer qualitativamente tem de ser a medida”81.

Quando as razões que sustentam a privação de direitos fundamentais repugnam vivamente à consciência jurídica da comunidade de acolhimento, a privação de direitos deve ter-se, a nosso ver, igualmente, por grave, ainda que a severidade da medida e o bem jurídico afetado não sejam, por si, muito graves. Imagine-se uma situação em que os membros de uma determinada religião são obrigados a usar na roupa um sinal distintivo que os identifique como membros daquele grupo. A medida em si afeta o direito à imagem, mas, podendo ser um sinal discreto, não é particularmente severa. O bem jurídico atingido – o direito à imagem – não é fortemente comprimido pela medida aplicada e, no entanto, a razão da medida repugna à consciência jurídica do Estado de acolhimento em termos tais que, só por si, pode justi-ficar a consideração de tratar-se de uma privação grave de direitos funda- mentais.

No artigo 5.º, número 2, da lei do asilo atualmente em vigor, o legis-lador, repetindo o enunciado do artigo 9.º da Diretiva 2011/95/UE, identi-fica seis “formas” que podem assumir os atos de perseguição, esclarecendo que se trata de uma enumeração com intenção meramente exemplifica-tiva. Assim, na alínea a), esclarece que a perseguição pode ser concreti-

81 Jean-Yves Carlier, “The ‘theory of the three scales’”, em Frances Nicholson e Patrick Twomey (eds.), Refugee rights and Realities: evolving international concepts and regimes, Cambridge, Cambridge University Press, 1999, p. 45.

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zada através de “atos de violência física ou mental, inclusive de natureza sexual”. Na alínea e), encontramos uma tentativa de superar as divergên-cias na prática dos Estados europeus quando estes lidavam com os deser-tores. Neste preceito, pode ler-se que a perseguição pode assumir a forma de “ações judiciais ou sanções por recusa em cumprir o serviço militar numa situação de conflito em que o cumprimento do serviço militar impli-casse a prática de crime ou ato abrangido pelas cláusulas de exclusão previstas no número 2 do artigo 12.º”82. Na alínea f), encontramos uma norma que não se refere propriamente a uma forma que podem assumir os atos de perseguição, mas identifica, fundamentalmente, dois dos motivos de perseguição que se devem entender como relevantes para o reconhecimento do direito de asilo – “atos cometidos especificamente em razão do género ou contra menores”. Na alínea b), acrescenta-se que as medidas discrimi-natórias podem constar de atos legislativos, administrativos ou judiciais, que tenham conteúdo discriminatório ou que sejam aplicadas de maneira discriminatória. Na alínea c), de modo algo redundante em relação à alí- nea b), refere-se que também “ações judiciais ou sanções desproporcio-nadas ou discriminatórias” podem ser consideradas atos persecutórios. Na alínea d), sublinha-se a importância do direito fundamental de acesso à justiça ao considerar que uma das formas que os atos de perseguição podem revestir é a “recusa de acesso a recurso judicial que se traduza em sanção desproporcionada ou discriminatória”.

Nestas alíneas b), c) e d) do número 2 do artigo 5.º da atual lei do asilo são feitas diversas associações entre medidas persecutórias e discriminató-rias. Para que exista, efetivamente, perseguição, é necessário que as viola-ções de direitos humanos sejam motivadas por qualquer intenção discrimi-natória. A perseguição é necessariamente discriminatória, mas nem toda a discriminação é persecutória83. De acordo com o Manual de Procedimentos e critérios a aplicar para determinar o estatuto de refugiado:

82 Encontra-se, neste momento, pendente no Tribunal de Justiça da União Europeia, uma caso interessantíssimo, de um soldado americano, Shepherd, que estava a combater no Iraque, desertou e pediu asilo na Alemanha, tendo o Tribunal Administrativo da Baviera, que estava a apreciar o caso, formulado reenvio prejudicial no sentido de apurar se se preen-chem as condições para o reconhecimento do estatuto de refugiado – caso C-472/13.

83 Ver sobre a relação entre discriminação e perseguição o nosso O Direito de Asilo na Constituição Portuguesa – Âmbito de Protecção de um Direito Fundamental, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, p. 286 e seguintes.

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“Só em determinadas circunstâncias é que discriminação equivale a perseguição. Será, assim, se as medidas discriminatórias tiverem conse-quências gravemente prejudiciais para a pessoa em causa, por exemplo, sérias restrições ao seu direito de exercer uma profissão, de praticar a sua religião, ou de acesso aos estabelecimentos de ensino normalmente abertos a todos. Nos casos em que as medidas discriminatórias, por si só, não sejam graves, elas podem, no entanto, levar a pessoa em causa a recear com razão ser perseguida se provocarem no seu espírito um sentimento de apreensão e insegurança quanto à sua existência futura”, (Manual..., pontos 54 e 55).

A discriminação define-se por associar desvantagens sociais a carac-terísticas e condutas individuais que não são motivo legítimo para tais penalizações, à luz da nossa consciência jurídica. É à luz do conceito de “violação grave de direitos fundamentais” que se poderão distinguir situa-ções de discriminação e de perseguição, sendo apenas esta última relevante para o reconhecimento do direito de asilo stricto sensu.

2.1.2. Motivos de perseguição

A perseguição, não é, em si, ainda, condição suficiente para que se considerem cumpridos os pressupostos do direito de asilo.

Nem sempre a perseguição é ilícita. Quando alguém foi proibido de abandonar o seu domicílio e é permanentemente vigiado pelas autoridades policiais do seu país porque é suspeito de ter praticado um crime grave, é perseguido, mas as razões que determinam os atos em causa são legítimas face ao direito dos Estados de defenderem a ordem pública e a segurança. Se, nessas circunstâncias, o visado lograr fugir para um outro país, é, aliás, provável que venha a ser extraditado, caso o Estado onde cometeu o crime solicite a sua entrega, pois, no que diz respeito a muitas infrações penais, há um interesse comum dos Estados no combate ao crime.

O direito de asilo pressupõe que a violação de direitos fundamentais obedeça a uma motivação específica que convoque como fatores de perse-guição motivos especialmente censuráveis.

Como já vimos, a Constituição e a Convenção de Genebra apresentam motivos diferentes de perseguição nas respetivas definições de titulares do direito de asilo e de refugiado político.

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A Constituição é bastante mais restritiva do que a Convenção de Genebra.

Nesta última relevam não apenas as situações em que haja atividade em favor de causas ou ideais, como os que estão descritos na norma portu-guesa, mas também – e sobretudo – situações em que a perseguição resulte da raça, da religião, da “nacionalidade” (quer em sentido próprio, quer como identidade étnica), da pertença a certo grupo social ou das opiniões políticas perfilhadas84. Nestas situações, o motivo de perseguição prende-se, genericamente, com o estatuto das pessoas protegidas e não com a sua ativi-dade, é a “perseguição da diferença”85. Pelo contrário, a Constituição portu-guesa exige que a perseguição seja consequência da “atividade em favor” das causas enunciadas no artigo 33, número 8. Em suma, a Convenção de Genebra enumera cinco motivos de perseguição que podem fundamentar um pedido de reconhecimento do estatuto de refugiado – raça, religião, nacio-nalidade, pertença a um grupo social, opiniões políticas –, a Constituição considera que a atividade em favor de seis ideais – democracia, libertação social e nacional, paz entre os povos, liberdade e direitos da pessoa humana – justifica o reconhecimento do direito de asilo.

A conceção de refugiado presente nos instrumentos internacionais, em particular da Convenção de Genebra, sendo marcada pela memória histórica das perseguições ocorridas na Europa nos anos que rodearam a Segunda Guerra Mundial, abrange as situações de “vítimas passivas” de perseguição.

Face a esta diferente apresentação dos motivos que tornam ilícita a perseguição em termos que possam justificar o reconhecimento da necessi-dade de proteção por parte do Estado de acolhimento, poderíamos considerar ser apenas relevante, do ponto de vista constitucional, a perseguição dirigida a pessoas individualmente consideradas por força da sua atividade em favor das causas descritas no artigo 33.º, número 8, da Constituição. Não é esse, no entanto, o nosso entendimento, como já expusemos. Entendemos que se

84 O Estatuto do Tribunal Penal Internacional retoma, genericamente, os mesmos motivos constantes da Convenção de Genebra na tipificação do crime de perseguição, artigo 7, número 1, alínea h) – “motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou de sexo”. Ver, sobre estes, Otto Thiffterer, Commentary on the Rome Statute of the Inter-national Criminal Court, Baden-Baden, Nomos Verlagsgesellschaft, 1999, comentário ao artigo 7, p. 148-150.

85 Daniel Steinbock, “The refugee definition as law: issues of interpretation”, em Frances Nicholson e Patrick Twomey (eds.), Refugee rights and Realities: evolving inter-national concepts and regimes, Cambridge, Cambridge University Press, 1999, p. 20-21.

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deve fazer uma interpretação extensiva do âmbito de proteção da garantia constitucional do asilo, no sentido de nela incluir as pessoas perseguidas por causa da sua pertença a um grupo social específico, seja este definido em função da raça, da nacionalidade, da religião, da ideologia política ou de outra circunstância qualquer, tal como prevê a Convenção de Genebra sobre o Estatuto do Refugiado86.

Cremos que a exclusão destas pessoas do âmbito de proteção da norma constitucional não é uma interpretação constitucionalmente adequada da norma consagradora do direito fundamental de asilo. Defendemos que a determinação do âmbito normativo do direito de asilo, atendendo à globa-lidade do sistema jurídico-constitucional com as suas notas características de abertura ao direito internacional, em geral, e ao direito internacional dos direitos humanos, em particular, nos conduz a este entendimento alargado – e sem descontinuidades – dos motivos relevantes para o reconhecimento do estatuto de refugiado.

Não pretendemos, com isto, fazer tabula rasa do enunciado do artigo 33.º, número 8, e ignorar as situações aí referidas como merecedoras da proteção internacional que o asilo garante. A individualização dessas situa- ções permite-nos compreender, pelo menos, a quem a Constituição quis e não quis reconhecer o direito de asilo quando este se funda em razões polí-ticas (opiniões políticas), nos termos da Convenção de Genebra de 1951 sobre o Estatuto do Refugiado. Assim, a norma constitucional ajuda na determinação positiva do âmbito de proteção do direito de asilo e também revela, a nosso ver, limites implícitos à proteção internacional.

Assim, da combinação entre as duas definições de quem deva ser merecedor da proteção que o asilo consubstancia, resulta que a perseguição baseada em razões de nacionalidade, de raça ou de etnia (conceitos que a seguir apresentaremos como referindo-se à mesma realidade), de reli-gião, de opinião ou atividade política (identificada com os valores cons-titucionais da ordem jurídica portuguesa87) ou orientada contra um grupo

86 Ver, sobre as razões para esta opção, em termos mais detalhados e desenvolvidos, o nosso O Direito de Asilo na Constituição Portuguesa – Âmbito de Protecção de um Direito Fundamental, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, p. 167-188.

87 Gomes Canotilho e Vital Moreira consideram que o direito de asilo tem “uma dimensão constitucional objectiva, enquanto meio de protecção dos valores constitucionais da democracia, da libertação social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana”, em Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 1993, comentário ao artigo 33.º, então número 5. Consideramos

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social específico pode justificar o reconhecimento da garantia do direito  de asilo.

Temos assim dois tipos fundamentais de motivação da perseguição relevantes para fins de asilo: motivação individual, sempre que seja uma pessoa concretamente definida o alvo da medida persecutória, e motivação coletiva ou de grupo, sempre que a perseguição atinja determinadas pessoas em função da sua pertença a um grupo social bem definido.

2.1.2.1. Opiniões políticas

Historicamente, em particular no século XIX, este tipo de perseguição era aquele que normalmente estava na origem da concessão de asilo.

A ideia de que o exercício das liberdades cívicas (de pensamento, de expressão88, de associação) deve ser respeitado pelos Estados, não podendo estes perseguir membros da sua população com base nas opiniões políticas, obriga ao reconhecimento de asilo a quem seja vítima de perseguição por estes motivos.

Na forma como a Constituição e a Convenção de Genebra se referem a esta perseguição motivada pelas opiniões políticas da vítima, são detetáveis algumas diferenças. A Constituição afastou-se do conceito de refugiado em dois pontos: primeiro, restringiu a proteção que o asilo confere à atividade em defesa de determinadas causas, não sendo a mera convicção razão sufi-ciente para o reconhecimento do direito de asilo e, segundo, restringiu ainda a proteção que o asilo confere à defesa de convicções políticas aí especi-ficadas: democracia, libertação social, libertação nacional, liberdade, paz entre os povos, direitos humanos.

esta dimensão particularmente relevante. Simplesmente, entendemos que não deve ser inter-pretada de modo redutor, no sentido de que “a Constituição só garante o direito fundamental de asilo quando a perseguição (ou ameaça de perseguição) seja motivada pela luta por esses valores” (ibidem), tal como eles se encontram positivados no enunciado da norma constitucional, mas entendemos que é no conjunto dos valores e princípios constitucionais que se deve buscar o fundamento para justificar a necessidade de protecção constitucional em determinadas situações específicas.

88 Ou liberdades da comunicação no sentido que lhe dá Jónatas Machado de uma categoria genérica que abrange, entre outras, a liberdade de imprensa, a liberdade de infor-mação e a liberdade de criação artística. Ver do autor Liberdade de Expressão – Dimensões constitucionais da esfera pública no sistema social, Coimbra, Coimbra Editora, 2002, p. 370-373.

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Face à diferença que primeiramente referimos, cremos que se deve fazer uma interpretação extensiva da norma constitucional no sentido de reconhecer que o asilo não é apenas um direito que premeia a atividade e o empenhamento em favor de determinadas causas, mas é um instituto desti-nado à proteção de pessoas que são vítimas de perseguição em consequência do exercício do seu direito à liberdade de pensamento e de expressão, pelo que quer a perseguição se funde na atividade, quer se funde na suspeita – que até não pode ter correspondência na realidade89 – de que perfilha determinada ideologia política, desde que seja esse o fundamento para a perseguição, deve entender-se que se cumprem os requisitos para o reconhecimento do direito de asilo90.

Relativamente à segunda restrição operada pela norma constitucional, no sentido de reconhecer o asilo só a pessoas vítimas de perseguição por lhes serem imputadas simpatias políticas com a democracia, a paz entre os povos, a liberdade, os direitos da pessoa humana e a libertação social e nacional, não podemos optar pela simples interpretação extensiva no sentido de considerar que todas e quaisquer convicções políticas objeto de perse-guição por parte das autoridades do Estado de origem se devem considerar relevantes. Tal seria, a nosso ver, não uma interpretação extensiva, mas uma verdadeira interpretação contra constitutionem, na medida em que se reco-nheceria o direito de asilo também a quem fosse perseguido pela sua ativi-dade contra a democracia, contra a libertação social e nacional, contra a paz entre os povos, contra a liberdade e contra os direitos da pessoa humana. Ora, a norma constitucional, interpretada a contrario, afasta expressamente estas situações do seu âmbito de proteção. Estas devem, pois, considerar--se limites ao âmbito subjetivo do direito de asilo. Sempre que se conclua que determinado indivíduo é perseguido por defender opiniões contrárias aos valores expressos na norma constitucional sobre o direito de asilo, a proteção que este direito confere não deve aplicar-se.

Concluímos, então, que atos persecutórios dirigidos contra os indi-víduos, com fundamento nas opiniões políticas que estes perfilham ou na 

89 Como expressamente prevê a lei do asilo atualmente em vigor no artigo 3.º, nú- mero 4.

90 Esta posição parece-nos reflectida no artigo 2.º, número 1, alínea n), subalínea v), da lei atualmente em vigor que entende ser invocável o motivo “opiniões políticas”, sempre que o requerente possua uma “opinião, ideia ou ideal em matéria relacionada com os poten-ciais agentes de perseguição às suas políticas ou métodos, quer essa opinião, ideia ou ideal sejam ou não manifestados pelo requerente”.

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atividade política desenvolvida, se devem ter como fundamentos legítimos para a invocação do direito de asilo, desde que os meios empregues na luta política e as próprias ideias perfilhadas não preencham nenhuma das cláu-sulas de exclusão.

2.1.2.2. Raça e nacionalidade

Estes dois motivos de perseguição aparecem diferenciados na Con- venção de Genebra. Na atual lei, por inspiração das diretivas europeias, aparecem também diferenciados, muito embora a referência da pertença a grupo étnico diferenciado conste de ambas as definições. Assim, “raça” inclui “nomeadamente, considerações associadas à cor, à ascendência ou à pertença a determinado grupo étnico” e nacionalidade “não se limita à cidadania ou à sua ausência, mas abrange também, designadamente, a pertença a um grupo determinado pela sua identidade cultural, étnica ou linguística, pelas suas origens geográficas ou políticas comuns ou pela sua relação com a população de outro Estado” (ver artigo 2.º, número 1, alí- nea n), subalíneas i) e iii) da lei atualmente em vigor).

A referência a características raciais tem caído progressivamente em desuso. A noção de raça carece de fundamento científico. É apenas uma construção social através da qual se sustenta a discriminação de grupos identificados por características físicas, herdadas geneticamente, normal-mente a cor da pele.

A Convenção Internacional sobre Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial, de 1965, celebrada sob a égide da ONU, define a discriminação racial como “qualquer distinção, exclusão, restrição ou prefe-rência baseada na raça, cor, descendência, ou origem étnica ou nacional”. Opta-se aqui, pois, por um conceito amplo de raça que não se refere apenas a aspetos físicos, mas abrange também grupos cuja identidade resulta da partilha de uma nacionalidade, uma língua ou uma crença comum, diluindo--se, por isso, a ideia de raça num complexo de motivos capazes de gerar atitudes de discriminação arbitrária.

Por outro lado, no que se refere ao sentido da perseguição fundada na “nacionalidade”, é o próprio Manual de Procedimentos e critérios a aplicar para determinar o estatuto de refugiado de acordo com a Convenção de 1951 e o Protocolo de 1967 relativos ao Estatuto dos Refugiados a defender que “o termo ‘nacionalidade’ não deve ser entendido apenas no sentido de

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‘nacionalidade jurídica’, ‘cidadania’, vínculo que une um indivíduo a um Estado. Refere-se também à integração num grupo étnico ou linguístico e pode, ocasionalmente, sobrepor-se ao termo ‘raça’”91.

A autonomização da perseguição fundada na “nacionalidade” justifica--se historicamente pela experiência que, no período entre as duas grandes guerras, se viveu na Europa de que a coexistência no mesmo Estado de grupos com nacionalidade diferente da maioria era potencialmente geradora de situações de perseguição – o que fez com que a perseguição motivada pela diferente identidade nacional viesse a ser incluída na definição de refu-giado da Convenção de Genebra.

Dada a imprecisão com que as palavras “raça” e “nacionalidade” são usadas na Convenção de Genebra, parece-nos mais correto assimilar estes dois motivos de discriminação e abarcar nesta referência ainda a perse-guição dirigida a “grupos étnicos”, definidos em função de determinadas heranças biológicas (isto é, um “padrão cromossómico dominante, que determina a cor da pele, o grupo sanguíneo, a tipo de crânio, a estrutura do cabelo, enfim, as formas físicas características”92) e/ou heranças culturais (“concepções do mundo e da vida, língua, hábitos quotidianos”93 e outras características semelhantes).

Uma minoria étnica é um conjunto de pessoas que tem uma carac-terística cultural diferente da maioria – ou linguística, ou nos costumes e hábitos de um povo94.

Não é legítimo a nenhum Estado pôr em causa bens jurídicos essen-ciais à pessoa humana por causa de características como sejam a pertença a um determinado grupo étnico, nacional ou “raça”. Sempre que se verifique perseguição nos termos acima descritos fundada em razões nesta natureza, deve entender-se que se cumprem os pressupostos positivos do direito de asilo stricto sensu.

91 Manual de Procedimentos e critérios a aplicar para determinar o estatuto de refu-giado de acordo com a Convenção de 1951 e o Protocolo de 1967 relativos ao Estatuto dos Refugiados, p. 19. No mesmo sentido, James Hathaway, The Law of Refugee Status, Toronto, Butterworths, 1991, p. 144-145.

92 A Marques Bessa, “Etnia”, em Enciclopédia Pólis, volume II, Lisboa, Verbo 1984, p. 1250.

93 Ibidem. 94 Ver também neste sentido o Manual de Procedimentos a aplicar para determinar

o Estatuto dos Refugiados do Alto Comissariado nas Nações Unidas para os Refugiados, pontos 68 e 69, p. 18-19.

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2.1.2.3. Religião

O asilo está, na Europa, pelas suas origens, especialmente ligado ao exercício da liberdade religiosa95. Ainda hoje, a perseguição a grupos reli-giosos constitui razão para grandes deslocações de pessoas. O respeito pela dignidade humana supõe o respeito pela liberdade religiosa, não podendo nenhum Estado perseguir os seus cidadãos ou as pessoas que residam no seu território por causa das convicções religiosas perfilhadas.

A perseguição religiosa tanto pode manifestar-se na imposição de medidas discriminatórias aos membros de uma determinada comunidade que podem ou não refletir-se no domínio religioso, em impedimentos ou proibições dirigidas ao exercício da liberdade religiosa, como seja o direito de praticar o culto, em privado ou em público.

A privação de direitos fundamentais que se traduza numa fragilização do estatuto dos cidadãos que tenham uma determinada opção religiosa ou que não tenham nenhuma (a liberdade religiosa também abrange a possi-bilidade de não ter nenhuma religião sem sofrer por isso nenhuma desvan-tagem) constitui uma forma de perseguição relevante para efeitos de reco-nhecimento do direito de asilo96. Nestes casos, o motivo da perseguição é religioso, mas o direito fundamental que é objeto de privação pode não ser o direito de liberdade religiosa. A vítima de perseguição pode ter autêntica liberdade religiosa e, no entanto, sofrer discriminações por se identificar como membro de determinada comunidade religiosa.

Outra forma de perseguição religiosa consiste na restrição de algumas das dimensões em que se analisa a liberdade religiosa. Aqui, o direito funda-mental que é objeto de perseguição é o direito à liberdade religiosa como direito individual, que abrange o direito de escolher livremente um credo ou de escolher não ter nenhum e abrange igualmente o direito de viver de acordo com as suas crenças e de praticar o culto97. A perseguição está, assim,

95 Foram os movimentos relacionados com as perseguições religiosas que geraram os primeiros grandes fluxos de refugiados na Europa. Em particular de finais do século XV ao século XVII, o asilo ligava-se, em particular, a estes motivos. Ver, sobre este assunto, em termos sucintos, o nosso O Direito de Asilo na Constituição Portuguesa – Âmbito de Protecção de um Direito Fundamental, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, p. 35-38.

96 Ver definição de religião para este efeito no artigo 2.º, número 1, alínea j), ii) da lei de asilo actualmente em vigor.

97 Para um estudo mais aprofundado do conteúdo da liberdade religiosa individual, Jónatas Machado, Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva – dos

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duplamente relacionada com a religião: o motivo é religioso e o domínio da vida em que se faz sentir a privação de direitos é também o religioso.

Para permitir, nestes casos, apurar se há ou não efetivamente perse-guição, a jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão desen-volveu, para estes casos, o conceito de “mínimo de existência religiosa” (religiöses Existenzminimum). Assim, para que se possa considerar rele-vante a perseguição invocada, é necessário que ao requerente seja negada a possibilidade de praticar a sua religião e o culto em privado e de exprimir a sua crença no domínio das suas relações sociais98.

Numa decisão muito interessante do Tribunal de Justiça da União Euro-peia, de 5 de setembro de 2012, nos processos C-71/11 e C-99/11, caso Y e Z contra República Federal da Alemanha, o Tribunal de Justiça entendeu que a liberdade religiosa relevante para apreciar se há ou não perseguição para efeitos de proteção internacional tem de ter um sentido lato, não podendo considerar-se irrelevante a perseguição que apenas se dirige às manifesta-ções externas, públicas da religião (forum externum), permitindo embora a expressão da religião no seu forum internum, projetando neste último o «núcleo essencial» do direito da liberdade religiosa.

direitos da verdade aos direitos dos cidadãos, Coimbra, Coimbra Editora, 1996, p. 220-234. Ver também do mesmo autor, sobre as dificuldades de apreciar o fenómeno religioso de forma livre de pré-compreensões, em particular, no que toca ao conceito de liberdade reli-giosa, de religião, de confissão religiosa, de igualdade religiosa e de restrições à liberdade religiosa, “Pré-Compreensões na Disciplina Jurídica do Fenómeno Religioso, em Boletim da Faculdade de Direito, volume LXVIII, 1992, p. 165. Ver ainda Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, 3.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2000, p. 405 e seguintes, em particular, a análise das diferentes dimensões, “dos diferentes níveis de conteúdo da liberdade religiosa” no direito constitucional português, p. 366-367.

98 Ver decisões do Tribunal Constitucional Federal alemão que desenvolveram esta doutrina – citadas por Albrecht Randelzhofer, “Asylrecht”, em Josef Isensee e Paul Kirchhof (eds.), Handbuch des Staatsrechts, 2.ª edição, volume VI, Heidelberg, C.F. Müller Juristis-cher Verlag, 2001, p.195-196 e Thomas Roeser, “Stattgebende Kammerentscheidungen des Bundesverfassungsgerichts zum Grundrechte auf Asyl, 1994, p. 90 e, sobre decisões mais recentes, ver as decisões do Tribunal Constitucional Federal alemão, de 3 de maio de 1995, em que este tribunal considerou existir perseguição religiosa no Paquistão contra a comuni-dade religiosa Ahmadiyya, na medida em que as práticas religiosas, mesmo em privado, próprias dessa comunidade são susceptíveis de acção penal, mesmo tendo o Tribunal Admi-nistrativo Federal alemão considerado que a perseguição criminal aos membros desta comu-nidade religiosa tinha baixado para números quase insignificantes. Ver Thomas Roeser, “Staatgebende Kammerentscheidungen des Bundesverfassungsgerichts zum Grundrecht auf Asyl im Jahre 1994”, 1995, p. 102 e “Staatgebende Kammerentscheidungen des Bundes-verfassungsgerichts zum Grundrecht auf Asyl im Jahre 1995”, 1996, p. 133-134.

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O Tribunal considerou que esta distinção não era compatível com a definição ampla do conceito de «religião» dada pela diretiva 2004/83/CE, no seu artigo 10.°, n.º 1, alínea b)99, que integra todos os seus componentes, sejam públicos ou privados, coletivos ou individuais. Assim, “os atos que podem constituir uma «violação grave» na aceção do artigo 9.°, n.° 1, alínea a), da diretiva incluem os atos graves de ingerência na liberdade do requerente não apenas de praticar o seu credo num círculo privado mas igualmente de professá-lo em público” (considerando 63 da decisão). Na perspetiva do Tribunal do Luxemburgo o que releva é a gravidade dos atos de perseguição religiosa, mais do que saber-se se esta é atingida apenas nas suas manifestações públicas ou também nas suas manifestações íntimas, privadas100.

2.1.2.4. Filiação em certo grupo social

Este é, indiscutivelmente, o motivo de perseguição apresentado na Convenção de Genebra em termos menos definidos, na medida em que não se vislumbra exatamente qual é o sentido da discriminação cujas vítimas, por esta via, se pretende proteger101.

Esta cláusula foi objeto de uma interpretação restritiva, que defendia que esta se aplicava apenas a grupos sociais definidos em função dos outros motivos de perseguição que constam da Convenção de Genebra – raça, nacionalidade, religião e opiniões políticas. No outro extremo de uma

99 Que se manteve na Directiva 2011/95/UE, de 13 de dezembro.100 Aparentemente revelador de um entendimento restritivo é o Acórdão do Supremo

Tribunal Administrativo, de 24 de março de 2014, no Processo 0238/14, em que se pode ler que o requerente, nacional dos Camarões, “não foi eventualmente perseguido por ser cristão, mas sim, segundo alega, por estar em desacordo com os rituais em uso no seu país no tocante à transmissão de poderes e usos post mortem de pais para filhos. Assim, a alegada perse-guição não é religiosa, étnica ou política mas antes decorrente do facto de o ora recorrente não querer seguir a tradição do país de origem, a qual sendo embora difícil de aceitar pelo padrão civilizacional europeu, por certo não constitui o que se designa de “actos violentos”“. O Acórdão não especifica a que rituais se refere, mas prima facie tenderíamos a defender que a perseguição fundada na circunstância de uma pessoa não aderir a determinados rituais fúnebres é uma perseguição com motivação religiosa.

101 Sobre esta matéria, ver o trabalho de Ana Luísa Riquito, “The Public/Private Dichotomy in International Refugee Law”, em Boletim da Faculdade de Direito, 2001, p. 375, em particular, p. 394 e seguintes.

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interpretação mais liberal, entendia-se constituir uma espécie de cláusula aberta que permitia uma interpretação dinâmica da definição da Convenção de Genebra e a sua aplicação a situações de perseguição não previstas na altura102.

Discordamos da interpretação mais restritiva, por retirar toda a utili-dade a mais este motivo de perseguição a que a Convenção entendeu dar relevância autónoma. Cremos que, para que da sua inclusão na definição se possam retirar consequência positivas, deve adotar-se uma interpretação ampla do que se possa entender por grupo social no sentido de, por esta via, se conceder proteção a grupos ou indivíduos que não são perseguidos nem por razões de raça, nem de religião, nem de nacionalidade, nem em virtude das suas opiniões ou do seu empenhamento políticos. Todavia, também urge especificar os critérios que permitam identificar quais são as situações em que a perseguição, não obstante não se fundar em nenhum dos motivos especificados nos textos previstos para o efeito, deve justificar a possibili-dade de recorrer ao asilo por parte das suas vítimas.

Assim, importa, provar, em primeiro lugar, que existe um grupo, com uma ou várias características próprias, e que esse grupo é perseguido por causa dessa(s) mesma(s) característica(s) aglutinadora(s).

Em segundo lugar, impõe-se considerar se os motivos que levam à perseguição daquele grupo constituem ou não uma forma de discriminação que seja inaceitável à luz da consciência jurídica do país de acolhimento, em termos análogos ao que sucede na discriminação fundada na raça, na nacionalidade, na religião ou nas opiniões políticas.

Estes dois critérios, usados conjuntamente, permitem considerar situ-ações em que a “consciência de grupo” está ausente. O “grupo social” não se vê enquanto tal, mas é ameaçado de perseguição pela característica que externamente lhe é associada e que permite encará-lo como um grupo.

A atual lei do asilo define “grupo social específico a partir de dois requisitos que têm de se verificar conjuntamente para que se possa concluir pela sua existência: primeiro, “os membros desse grupo partilham uma característica inata ou uma história comum que não pode ser alterada, ou partilham uma característica ou crença considerada tão fundamental para a identidade ou para a consciência dos membros do grupo que não se pode

102 Do vasto espectro de interpretações que esta cláusula permitiu dá-nos conta James Hathaway, The Law of Refugee Status, Toronto, Butterworths, 1991, p. 157 e seguintes. A elas faz também referência Ana Luísa Riquito, op. cit., p. 394, notas 69 e 70.

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exigir que a ela renunciem”; e, segundo, “esse grupo tem uma identidade distinta no país em questão, porque é encarado como diferente pela socie-dade que o rodeia” (artigo 2.º, número 1, alínea j), iv))

Recentemente tem sido discutida, com frequência, a aplicação desta cláusula em situações de perseguição fundada no género ou na orientação sexual. Um dos problemas que, nesta sede se tem posto é o de saber se, por exemplo, nos países em que as mulheres são todas objeto de discriminação, se pode dizer que constituem um grupo social específico para efeitos da Convenção de Genebra ou se para tal existem aquelas outras exigências de coerência ou de coesão do grupo103. A lei do asilo atualmente em vigor parece perfilhar esta perspetiva mais exigente ao prever que o género “só por si não deva criar uma presunção para a qualificação como grupo” (artigo 2.º, número 2). Assim terão de acrescentar-se outras características diferenciadoras para que se possa falar das mulheres como um grupo social específico para este efeito104.

103 Ver sobre isto e sobre a diferença que se tem notado entre a jurisprudência dos Estados Unidos e do Canadá, Jacqueline R. Castel, “Rape, sexual assault and the meaning of persecution”, 1992, p. 52.

104 Assim, por exemplo, diante de situações específicas como a prática dos casamentos forçados, por exemplo, o elemento definidor do grupo poderá ser mulheres solteiras, situadas numa faixa etária determinada sobre as quais recaia o risco de serem forçadas a casar em função de arranjos familiares, nos quais não intervêm. Ou nas situações recentes de mulheres muçulmanas que conseguem o divórcio mas a quem são retirados os filhos quando estes atingem a idade em que devem deixar os cuidados maternos para integrar a família paterna, limitando severamente os direitos de visita da mãe, o grupo social específico poderão ser, por exemplo, mulheres divorciadas com filhos menores a cargo. Sobre este caso particular, ver Ekaterina Krivenko, “Muslim Women´s Claims to Refugee Status Within the Context of Child Custody Upon Divorce Under Islamic Law”, em International Journal of Refugee Law, 2010, número 1, p. 48-71. As situações de casamentos forçados são frequentemente invocadas nos pedidos de asilo formulados em Portugal por requerentes da Guiné-Bissau e da Guiné-Conacri. Um acórdão de 30 de julho de 2013 do Tribunal Central Administrativo Sul, no Processo 10075/13, considerou que o “direito ao asilo ou à autorização de residência por razões humanitárias não pode ser justificado pela alegação de que a requerente pretende ser coagida por seu pai a casar com um muçulmano”. Tal circunstância é de ordem mera-mente privada e insusceptível de preencher o conceito de asilo ou sequer de autorização de residência por razões humanitárias.” Esta interpretação merece, a nosso ver, as mais severas críticas. Os motivos de perseguição – em particular, aqueles que afectam as mulheres – resultam, muitas vezes, de actos de privados praticados com a conivência, por acção ou omissão, das autoridades públicas. Tais actos, se forem graves, devem entender-se (e têm-se entendido) como relevantes para o reconhecimento de asilo.

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Relativamente à perseguição baseada na orientação sexual, esta também deve ser entendida como motivo relevante de proteção para efeitos do reconhecimento do estatuto de refugiado, tal como é aflorado na nossa lei de asilo (artigo 2.º, número 2), sendo um indicador importante (embora não necessário) da existência de perseguição o facto de as condutas homos-sexuais, por exemplo, serem consideradas crime no Estado de origem do requerente105.

O acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 7 de Novembro de 2013 enfrentou, precisamente, a questão de saber se, primeiro, a circuns-tância de um requerente vir de um Estado em que as leis punem a homosse-xualidade era suficiente para qualificar os homossexuais nesse Estado como um grupo social específico e, segundo, para considerar existirem, nesse Estado, práticas persecutórias em relação aos homossexuais. A resposta foi positiva à primeira questão, mas negativa à segunda106.

Uma última nota sobre esta matéria: é particularmente difícil indi-vidualizar, em face dos casos concretos e das histórias pessoais de perse-guição que a jurisprudência relata, o motivo que, num caso concreto, tornou aquela perseguição fundamento para o direito de asilo. Isso não constitui, no entanto, um problema. Podem cumular-se diversos motivos numa mesma situação concreta. O importante é que a perseguição esteja associada a um dos motivos enumerados.

2.1.3. Atualidade da perseguição

A Constituição portuguesa afirma garantir o direito de asilo “aos estrangeiros e aos apátridas perseguidos ou gravemente ameaçados de perseguição”. Não eram estes os termos da norma originária da Constituição, que não incluíam a possibilidade de ameaça grave de perseguição entre as situações que poderiam justificar o direito de asilo, tendo a expressão em itálico sido acrescentada com a revisão constitucional de 1982.

105 Ver o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 20 de março de 2014, no Processo 10920/14, em que este aspecto não foi, a nosso ver, devidamente valorado, tendo sido aceite uma decisão de inadmissibilidade de um pedido apresentado por um cidadãos senegalês, onde a homossexualidade é crime.

106 Ver Acórdão de 7 de novembro de 2013 nos casos C-199/12 a C-201/12. Atual-mente está pendente no Tribunal de Justiça uma decisão relativa à perseguição fundada na orientação sexual, mas desta vez relativo aos meios de prova aplicáveis nestes casos – casos C-148/13, C-149/13 e C-150/13.

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No fundo, o que está aqui em causa é a definição do momento em relação ao qual se há-de verificar a existência ou não de perseguição. Será em relação ao passado, como pode sugerir o uso da forma perseguidos? Deverá depender da existência de medidas persecutórias atualmente pendentes? Ou será relevante aqui apenas um juízo relativamente ao risco de perseguição no futuro, caso o regresso ao país de origem venha a ter lugar?

A prova de que já se sofreram atos persecutórios é, naturalmente, da maior relevância para, por ela, se poder fundar a probabilidade de, no futuro, esses atos se poderem repetir sobre a mesma vítima, caso esta regresse ao país de origem. Não é, no entanto, nem condição necessária, nem suficiente para o sucesso do pedido de asilo. Têm direito ao asilo pessoas que ainda não sofreram perseguição, mas relativamente às quais se crê que esta pode vir a consumar-se em caso de expulsão, em função das informações reco-lhidas sobre a situação no país de origem. Pode acontecer que não tenham direito ao asilo pessoas que, não obstante conseguirem provar que já foram vítimas de perseguição, tais factos históricos não se revelam suficiente para sustentar o pedido, já que é necessário ainda aduzir-se sempre prova de que o risco de perseguição é atual e a ameaça de perseguição pode ser consu-mada em caso de regresso ao país.

Nos casos em que não seja possível provar que o requerente já foi vítima de perseguição, a prova tem de basear-se em factos que revelem que pessoas situadas em circunstâncias semelhantes à do requerente, em função do grupo étnico, da comunidade religiosa, das opiniões políticas, etc., estão a ser vítimas de perseguição.

A gravidade da ameaça afere-se pela sua seriedade, ou seja, pela proba-bilidade da sua consumação. O reconhecimento do asilo assenta sempre, pois, num juízo de prognose, o que suscita problemas especiais em sede de prova107.

A Convenção de Genebra, em termos ligeiramente diferentes da Cons-tituição, estende a condição de refugiado a todas as pessoas que receiem com razão ser perseguidas. O juízo de prognose mantém-se, mas acentuam--se os elementos subjetivos – os sentimentos de receio, de medo, ansie- dade –, combinados com elementos objetivos – a razoabilidade desses

107 Ver Albrecht Randelzhofer, “Asylrecht”, em Joseph Isensee e Paul Kirchhof (eds.), Handbuch des Staatsrechts, volume VI, 2.ª edição, Heidelberg, C.F. Müller Juristischer Verlag, 2001, p. 185, p. 197.

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mesmos sentimentos face às informações que é possível obter sobre a situação no país de origem108.

A proteção que o asilo concede só pode ser efetivamente reconhecida como um direito, se se fundar numa situação objetiva, de grave ameaça para a vida, a liberdade ou a dignidade da pessoa humana. Assim, o medo e o receio são apenas indicadores de uma situação dessa natureza, não sendo, em si, pressupostos para o reconhecimento do asilo109.

Este tem sido, também, o entendimento do Supremo Tribunal Admi-nistrativo (STA), que, em diversos acórdãos, tem considerado exigir-se aqui “um receio ‘com razão’, que o mesmo é dizer, receio justificado, objetivo, fundado, razoável”110 e, de forma ainda mais clara quanto a este aspeto, num acórdão de 1998, afirmou-se que o “receio de perseguição tem de ser avaliado objectivamente partindo dos factos invocados, não relevando, neste particular contexto, um receio subjetivo, um estado pessoal de inquie-tação e medo”111.

Em alguns acórdãos, os conselheiros do STA, sem deixar de consi-derar preponderante o elemento objetivo, têm, no entanto, atribuído uma relevância relativa ao elemento subjetivo, apreciado segundo o critério do “homem médio”112. Tal justifica-se, a nosso ver, na medida em que o estado 

108 Sobre a história deste preceito, James Hathaway, The Law of Refugee Status, Toronto, Butterworths, 1991, p. 66-69.

109 Defendendo a mesma ideia de que o risco de perseguição deve ser apreciado objec-tivamente, mesmo face aos critérios da Convenção de Genebra, James Hathaway, op. cit., p. 65, 69-75. Segundo este autor, se assim não fosse, obrigar-se-iam os aplicadores do direito a uma tarefa praticamente impossível – avaliar as condições psicológicas que os requerentes de asilo apresentam – e poderiam ser tratadas desigualmente situações objectivamente iguais apenas porque algumas pessoas controlam melhor as suas emoções do que outras.

110 Acórdão STA, Processo 043802, de 9 de junho de 1999.111 Acórdão STA, Processo 042793, de 7 de maio de 1998,.112 Ver Acórdão STA, Processo 043838, de 2 de Fevereiro de 1999: “O requerente

de asilo político deve demonstrar que tem receio de perseguição e que tal receio tem razão de ser. O eventual receio de perseguição pelas autoridades do país de origem implica que o mesmo não se reduza a uma mera condição subjectiva, devendo antes fundar-se numa situação de carácter objectivo, normalmente geradora de um tal receio para um homem médio.” e Acórdão STA, Processo 036867, de 6 de Fevereiro de 1996: “Perante a ratio legis, e atenta a exigência legal da respectiva razoabilidade (“com razão”), o eventual receio de perseguição pelas autoridades do país de origem implica que o mesmo não se reduza a uma mera condição subjectiva (estado de espírito do impetrante) devendo antes fundar-se numa situação (ou realidade fáctica) de carácter objectivo, normalmente geradora de tal receio para um homem médio”.

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de ansiedade e de medo que o requerente de asilo manifeste face à possibi-lidade de repatriamento pode funcionar como elemento que ajude à prova da gravidade da situação no país de origem113.

2.1.4. Receio de perseguição superveniente à saída do país de origem (proteção sur place)

Normalmente, a proteção que o asilo confere foi pensada para situ-ações em que determinada pessoa é vítima de perseguição no seu país de origem e decide, por essa razão, fugir do país de origem e esta fuga motiva a carência de proteção que o asilo supre. Estas são as histórias que normal-mente estão na origem de um pedido de asilo. Existe, no entanto, a possi-bilidade o asilo ser invocado também por quem estando fora do país e não tendo sido obrigado à fuga por estar ameaçado de perseguição se considere impedido de regressar ao país de origem por razões posteriores à saída deste. Esta ameaça não foi, porém, a causa da fuga. O requerente já se encontrava no estrangeiro quando surgiram as razões que o levaram a temer poder vir a sofrer perseguição caso regressasse ao seu país.

Internacionalmente, nestas situações, as pessoas em causa são desig-nadas como refugiados sur place ou, nos termos do artigo 5.º da Diretiva 2011/95/UE, situações em que necessidade de proteção surgiu in loco114, assim se justificando a epígrafe do artigo 8.º da lei do asilo atualmente em vigor.

Impõe-se aqui distinguir duas situações: aquelas em que o receio de perseguição resulta de um facto alheio à vontade do refugiado, como sejam alterações políticas profundas no país de origem que tornam a pessoa em causa alvo de perseguição (são os chamados, pela doutrina alemã, objektive Nachfluchtgründe) e aquelas outras situações em que o próprio estrangeiro, depois de sair do país de origem, se colocou em situação de poder vir a ser vítima de perseguição, por se ter envolvido em atividades que justificam 

113 Sobre a aplicação destes elementos à protecção subsidiária, veja-se a formulação contida num Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 4 de outubro de 2012, no Processo 09098/12.

114 A doutrina alemã distingue as situações de Vorfluchtgründe (motivos anteriores à fuga) e Nachfluchtgründe (motivos supervenientes à fuga). Ver, sobre esta matéria, Albrecht Randelzhofer, “Asylrecht”, em Joseph Isensee e Paul Kirchhof (eds.), Handbuch des Staats-rechts, volume VI, 2.ª edição, Heidelberg, C.F. Müller Juristischer Verlag, 2001, p. 199-201.

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atos de perseguição por parte das autoridades do país de origem (selbstges-chaffene ou subjektive Nachfluchtgründe).

Em termos gerais, podemos dizer que, nas primeiras situações, se veri-fica uma necessidade de proteção que só se distingue das situações normais por ser superveniente relativamente à fuga. A ratio do instituto, no entanto, mantém-se. Nas segundas situações, há uma dúvida sobre se o requerente se terá colocado deliberadamente em situação de carência de proteção de modo a poder beneficiar de asilo, admitindo-se que possa ter havido preor-denação, pelo que a invocação do asilo não corresponderia a uma necessi-dade imperiosa de proteção, mas o requerente teria feito um aproveitamento “oportunista” da situação (assim o estabelece o artigo 8.º, número 2, da lei atualmente em vigor).

Assim, as primeiras situações, apesar de não configurarem histórias típicas na fundamentação de pedidos de asilo, devem ser consideradas para este efeito, desde que o requerente consiga provar que está sob ameaça de autêntica perseguição caso regresse ao seu país. Não é, pois, necessário que a fuga tenha sido motivada pelo receio de perseguição que sustenta o pedido. O receio de perseguição, nesta como em todas as outras situações, deve apreciar-se no momento em que é apresentado o pedido.

Nas segundas situações, que, em geral, fazem presumir que os atos praticados pelo recorrente tiveram lugar com o objetivo de fundamentar o pedido de asilo, facilitado pelo facto de o indivíduo se encontrar fora do país, excecionalmente, a motivação do requerente poderá ser conside-rada relevante para efeitos de asilo. Assim sucederá se for produzida prova suplementar de que a pessoa em causa sempre na sua vida se manifestou simpatizante ou convicta dos ideais que defendeu, mas a intolerância por parte das autoridades do país de origem se agravou injustificadamente em sequência da sua atividade no exterior115.

Nestes casos, a prova tem de ser feita em relação a estes dois requisitos: em primeiro lugar, a autenticidade das posições tomadas a partir do estran-geiro e a sua coerência com o passado do refugiado e, em segundo lugar, o eco que essas mesmas posições tiveram junto das autoridades do país de origem e da forma como habitualmente estas reagem a atividades do género, em termos que justifiquem falar-se de uma autêntica ameaça de perseguição116.

115 Ver, neste sentido, artigo 8.º, número 1, in fine, da lei actualmente em vigor.116 Esta posição é basicamente coincidente com aquela que tem sido adoptada pelo

Tribunal Constitucional Federal alemão, embora, em algumas decisões, este tenha tido uma posição mais liberal do que a que acima expusemos relativamente à prova acrescida que é

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Donde pode concluir-se que não é condição sine qua non o facto de a fuga ser motivada pelo receio de perseguição, como é, por vezes afirmado na jurisprudência, mas, nas situações de superveniência das razões de receio de perseguição, há que apreciar com especial cuidado se as circunstâncias que fundamentam o pedido foram intencionalmente criadas ou, dito de outro modo, se houve preordenação.

2.1.5. Agentes de perseguição

Em relação a esta questão levantaram-se vários problemas na Europa, por haver profundas divergências na forma como se circuns-crevia o âmbito subjetivo das pessoas que podem requerer asilo em função da qualificação do agente de perseguição como entidade estadual  ou não.

Tradicionalmente, o direito de asilo era quase sempre uma proteção conferida a pessoas condenadas ao exílio pelas autoridades de outro Estado, nos termos em que vimos. Essa imputação do ato persecutório a agentes estatais só em finais do século passado é que começou a ser posta em causa com o aparecimento de um grande número de pedidos que não se funda-mentam em atos por parte de autoridades públicas.

Estas situações têm vindo a surgir em cada vez maior número sobre-tudo por causa do fenómeno correntemente designado por “falhanço do Estado”: situações de anarquia generalizada ou de guerra civil em que os detentores do poder de facto não são as autoridades políticas, mas outros agentes117.

necessário produzir nas situações em que os motivos de perseguição resultam de actividades desenvolvidas a partir do país de destino do requerente, considerando, por exemplo, dispen-sável provar que estas correspondam a uma convicção profunda e firme do requerente, mani-festada já anteriormente à fuga, nos casos de requerentes muito jovens. Ver Thomas Roeser, “Stattgebende Kammerentscheidungen des Bundesverfassungsgerichts zum Grundrecht auf Asyl Spiegel der verfassungsrechtlichen Probleme in der Rechtsanwendung”, em EuGRZ, 1994, p. 93. Ver igualmente Rainer Hofmann, “Recent jurisprudence of the German Cons-titutional Court on asylum law“, em Gudmundur Alfredsson and Peter Macalister-Smith (eds.), The living Law of Nations: essays on refugees, minorities, indigenous peoples and the human rights of other vulnerable groups in memory of Atle Grahl-Madsen, Kehl-am Rhein-Estrasburgo, Engel, 1996, p. 99-101.

117 Ver também referência a esta polémica em Ana Luísa Riquito, “The Public/Private Dichotomy in International Refugee Law”, em Boletim da Faculdade de Direito, 2001, p. 375.

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Com base no conceito de perseguição política presente no enunciado da norma constitucional consagradora do direito fundamental de asilo, a Alemanha, por exemplo, adotou uma posição restritiva e entendeu dever recusar asilo a todas as pessoas que fossem vítimas de situações de guerra civil ou de violência generalizada, mas em que o autor da perseguição não era o Estado, nem uma entidade equiparável ao Estado (staattsähnliche Hoheitsgewalt118).

A perseguição cometida por facões ou por organizações sem base terri-torial entendia-se como sendo perseguição privada e não política, logo, não cabia no âmbito subjetivo do direito de asilo, a não ser que se provasse que se tratava de perseguição política indireta, já que a omissão do Estado na proteção dos seus cidadãos significava a sua concordância com tais formas de perseguição. Indiciava cumplicidade do Estado, na medida em que este, se não apoiava, pelo menos aprovava ou tolerava tais privações de direitos. A isto se designa a teoria da responsabilidade ou da culpabilidade do Estado pelo ato persecutório119.

A esta interpretação restritiva opunha-se uma outra que considerava relevantes para efeitos de asilo todas as situações em que o agente de perse-guição era privado, mas o Estado demonstrava incapacidade de facto para proteger os seus nacionais das violações de direitos fundamentais de que eram vítimas. Esta é a teoria da proteção, segundo a qual, não é função do Estado, ao conceder asilo, emitir juízos quanto à atuação do Estado de origem, mas apenas verificar a necessidade de proteção internacional por parte de quem invoca o asilo e a possibilidade de essa proteção ser conce-dida internamente pelo Estado da nacionalidade ou da residência habitual.

118 Ou “de-facto-Regimes”, na expressão de Ernst Reichel, Das staatliche Asylrecht “im Rahmen des Völkerrechts”, Berlim, Dunckler & Humbolt, 1987, p.99.

119 Esta interpretação do Estado alemão era vivamente contestada por várias entidades, entre as quais o próprio ACNUR. Entre os autores que contestam esta interpretação encon-tram-se também Ernst Reichel, op. cit., p. 82 e seguintes. A posição restritiva alemã foi atenuada por decisões do Tribunal Administrativo Federal e do Tribunal Constitucional Federal, versando os pedidos apresentados por afegãos que tinham apoiado o regime sovi-ético em Cabul e que eram vítimas de perseguição por parte dos “mujahedin”, em que aqueles tribunais entenderam que os “mujahedin” eram entidades para-estaduais (state-like entities), criadas no decurso da guerra civil, não obstante a situação dos “mujahedin” ainda não compreender um território estável. Ver Jasper Finke, “Granting Asylum and Protection from Deportation to Civil War Refugees under German Constitutional Law and the German Aliens Act: The Judgement of the German Federal Constitutional Court of 10 August 2000“, em GYIL, 2000, p. 283-297.

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Trata-se apenas de fazer avaliação objetiva da situação do Estado de origem quanto à sua capacidade para conferir a proteção de que o requerente diz carecer120. Entendendo o asilo como resposta a situações de grave violação dos direitos humanos, não podemos deixar de aderir à conceção subja-cente à teoria da proteção, no sentido de que a existência de perseguição e a incapacidade objetiva de o Estado garantir a proteção de que o indivíduo carece devem ser consideradas suficientes para justificar o reconhecimento do asilo mesmo nos casos em que a perseguição não tem como autoras enti-dades públicas, mas sim privadas. Assim, sempre que o requerente consiga convencer as autoridades nacionais que, caso regresse ao país de origem, vai ser com toda a probabilidade vítima de perseguição e não vai poder contar com a proteção do Estado, já que este, por incapacidade ou por falta de vontade, não consegue pôr cobro a situações daquela natureza – sendo inútil recorrer, por isso, às autoridades do país de origem –, deve ser-lhe reconhecido o direito ao asilo.

Atualmente, a lei admite, no artigo 6.º, como agentes da perseguição o Estado, partidos ou organizações que controlem o Estado ou uma parte significativa do território, ou agentes não estatais quando seja possível comprovar a incapacidade ou a falta de vontade do Estado ou dos ditos partidos ou organizações em proporcionar proteção contra a perseguição.

2.2. conDições pArA A concessão De proteção subsiDiáriA

Nos termos da lei atualmente em vigor e da Diretiva europeia que a inspirou, o conceito-chave em matéria de proteção subsidiária é o conceito de “ofensa grave”, combinada, entre nós, com o conceito de “sistemática violação dos direitos humanos” no país de origem.

A lei do asilo atualmente em vigor alargou os pressupostos que constam da Diretiva 2011/95/UE. Assim, enquanto o artigo 15.º da Diretiva se centra

120 Hailbronner, Immigration and Asylum Law and policy of the European Union, Hague, Kluwer Law International, 2000, p. 374-375. A House of Lords britânica tem apli-cado esta teoria nas decisões dos casos Adan, Shah, Islam e Horvath , embora certos autores entendam que o faz de uma maneira tão restritiva que quase não se distingue a posição desta instância da de outras que defendem a teoria da responsabilidade. Ver, neste sentido, Daniel Wilsher, “Non-State Actors and the Definition of Refugee in the UK”, em IJRL, 2003, p. 68 e seguintes. Ver ainda Hélène Lambert, “The Conceptualisation of ‘Persecution’ by the House of Lords: Horvath v. Secretary of State for the Home Department”, em IJRL, p. 16-31.

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no conceito de “ofensa grave”121, o artigo 7.º da lei portuguesa refere, igual-mente, o conceito de “ofensa grave”, mas não reduz esta forma de proteção a esse conceito. A legislação portuguesa inclui, claramente, normas mais favoráveis de determinação da proteção subsidiária do que aquelas que constam da Diretiva, nos termos, aliás, do que a própria Diretiva autoriza no seu artigo 3.º.

Assim, há três diferenças evidentes que ressaltam da comparação entre o artigo 7.º da lei portuguesa e 15.º da Diretiva europeia. Em primeiro lugar, enquanto a Diretiva se refere a um “risco real de sofrer ofensa grave” como motivo do pedido de proteção, a lei portuguesa apresenta dois motivos em alternativa: a “sistemática violação dos direitos humanos” no país de origem ou o “risco de sofrer ofensa grave”. Em segundo lugar, na clarificação do que deve entender-se por “ofensa grave”, a Diretiva abre três hipóteses, a última das quais se refere a “ameaça grave e individual contra a vida e a integridade física”, no contexto de conflito armado internacional ou interno, e a lei portuguesa não exige que se trate de uma ameaça individual, limi-tando-se à ideia de “ameaça grave”. Em terceiro lugar, na mesma alínea, a Diretiva restringe a invocação da proteção subsidiária a “civis” em contexto de situações de violência indiscriminada ou de conflito armado122, enquanto que tal restrição, não consta do enunciado da lei portuguesa que se refere apenas a “requerente”.

Apesar destas diferenças é notória a influência da Diretiva europeia no enunciado do artigo 7.º da lei do asilo atualmente em vigor.

Em síntese, podemos afirmar que há uma condição para a concessão de proteção subsidiária e cinco vias alternativas de a fundamentar, apresen-tadas na lei no artigo 7.º, em termos algo confusos.

A condição básica para que a figura da proteção subsidiária  tenha aplicação é negativa e consiste na não verificação dos pressupostos para o reconhecimento do estatuto de refugiado. Trata-se de uma forma de proteção subsidiária, pelo que só se verificar que o requerente não reúne claramente condições para lhe ser reconhecido o direito de asilo é que se pode partir para a análise dos pressupostos da proteção subsidiária.

121 Ver sobre a centralidade do conceito de “ofensa grave” na Directiva o artigo de Hugo Storey, “EU Refugee Qualification Directive: a Brave New World?”, em International Journal of Refugee Law, 2008, p. 14 e seguintes.

122 Ver sobre esta restrição a “civis”, Hugo Storey, “EU Refugee Qualification Direc-tive: a Brave New World?”, em International Journal of Refugee Law, 2008, p. 36.

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As cinco fundamentações possíveis para a concessão do estatuto da proteção subsidiária são, a nosso ver, as seguintes: primeiro, sistemática violação dos direitos humanos no país de origem; segundo, risco de sofrer ofensa grave concretizado em pena de morte ou execução; terceiro, risco de sofrer ofensa grave, que consista em tortura ou pena ou tratamento cruel, degradante ou desumano; quarto, risco de sofrer ofensa grave, em contexto de conflito armado internacional ou interno, que ameace a vida ou a integridade física do requerente; finalmente, em quinto lugar, risco de sofrer ofensa grave, em situação de violação generalizada e indiscri-minada de direitos humanos, que ameace a vida ou a integridade física do requerente.

A circunstância objetiva de se verificar no país de origem uma situação de sistemática violação dos direitos humanos pode justificar a concessão da proteção subsidiária, desde que tal seja motivo para impedir ou justificar um receio de regresso ao país de origem do requerente de proteção inter-nacional. Nos termos da lei, o requerente não tem de provar que é alvo de uma ameaça particular ou que lhe é individualmente dirigida, nem tem de provar que essa ameaça se projeta na sua vida ou integridade física, mas basta-lhe fundamentar o seu pedido na existência de condições objetivas de desrespeito sistemático pelos direitos humanos no país de origem, que atingem suficiente gravidade para impossibilitar o regresso ao país de origem do requerente. Como aferir essa gravidade em concreto? Terá de projetar-se numa ameaça aos direitos fundamentais básicos do requerente, em termos análogos ao que dissemos sobre o conceito de perseguição. Trata-se de uma opção da lei portuguesa, que alarga significativamente o âmbito da proteção subsidiária, face ao que se encontra previsto no Direito da União Europeia, mas cuja virtualidade expansiva não tem sido usada pelas autoridades admi-nistrativas e judiciais nacionais.

O risco de sofrer ofensa grave concretizada em pena de morte ou execução é fundamento de proteção subsidiária, nos termos da Diretiva euro-peia (artigo 15.º, alínea a)) na sequência daquilo que se encontra previsto nos Protocolos sexto e décimo terceiro à CEDH123. Assim, sempre que tal risco se verificar fora do quadro de uma situação de perseguição, não se ligando aos motivos de perseguição que a Convenção de Genebra refere –

123 Ver, sobre esta, Jane McAdam, “The European union Qualification Directive: The Creation of a Subsidiary Protection Regime”, em International Journal of Refugee Law, 2005, p. 476-478.

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raça, religião, nacionalidade, opiniões políticas ou pertença a grupo social específico – há lugar a proteção subsidiária.

O risco de sofrer tortura, pena ou tratamento cruel, degradante ou desumano pode também justificar a concessão de proteção subsidiária. Nesta previsão particular, o Direito português e o Direito da União Euro-peia vão ao encontro das exigências do artigo 3.º da CEDH e da abundante jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem sobre esta norma já referida124. O Tribunal de Estrasburgo tem sempre sublinhado que, nos termos da Convenção, os Estados estão não apenas obrigados a não aplicar tais formas consideradas desumanas de tratamento, mas também a não expulsar para o país de origem pessoas que enfrentariam o risco de aí sofrer tais tratamentos. Esta proibição tem carácter absoluto, não pode estar sujeita a exceções ou derrogações (artigo 15.º da Convenção), não havendo aqui qualquer margem de apreciação concedida aos Estado para ponderar a necessidade de proteção com outros interesses, valores ou bens como a segurança nacional ou a ordem pública125. Há, no entanto, que atender a três condições: primeiro, a gravidade, a severidade do tratamento e da ofensa a que a vítima possa ser sujeita – o que tem de ser apreciado atendendo a todas as circunstâncias do caso, nomeadamente a natureza, a forma e o método da execução desse tratamento, a sua duração, os seus efeitos físicos e mentais e mesmo as circunstâncias da vítima, como a sua idade, sexo e estado de saúde – ; segundo, a probabilidade do risco se concretizar – não bastando a mera possibilidade da sua concretização, antes se exigindo que o requerente persuada as autoridades que há um risco real de vir a ser alvo de tais formas de tratamento, ou porque pertence a um grupo de risco126 ou porque se verifica uma situação de extrema violência no país de origem de tal gravidade que o requerente pode comprovar que existe uma probabilidade séria de ser vítima de maus tratos127. Situações em que se verifica risco de 

124 Jane McAdam, “The European union Qualification Directive: The Creation of a Subsidiary Protection Regime”, em International Journal of Refugee Law, 2005, p. 478-479.

125 Ver, sobre esta matéria, decisão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 28 de fevereiro de 2008, no caso Saadi contra Itália.

126 Vejam-se, por exemplo, as decisões do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem dos casos NA contra o Reino Unido ou Salah Sheek contra a Holanda, de 17 de julho de 2008 e de 11 de janeiro de 2007, respectivamente.

127 Ver, sobre este ponto, a decisão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, no caso Sufi e Elmi contra o Reino Unido, de 28 de junho de 2011, em que o Tribunal consi-derou existir uma tal situação de violência extrema em Mogadiscio, na Somália.

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sofrer tortura ou tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos só são, no entanto, relevantes para efeitos de proteção subsidiária se não se ligarem a nenhum dos motivos de perseguição que justificam o estatuto de refugiado. Se tal suceder, a situação do requerente deve ser protegida pela via do asilo e não da proteção subsidiária.

A quarta via prevista na lei para justificar a proteção subsidiária rela-ciona-se com o risco de sofrer ofensa grave, em contexto de conflito armado internacional ou interno, que ameace a vida ou a integridade física do reque-rente. Esta via protege os chamados “refugiados de guerra”, pessoas cuja razão para a fuga não é a perseguição, mas a necessidade de procurar um lugar seguro para viverem dada a circunstância de o seu país de origem ser palco de um conflito armado, com suficiente gravidade para justificar um receio do requerente pela sua vida ou pela sua integridade física. Sobre esta previsão normativa, existe uma decisão importante do Tribunal de Justiça da União Europeia, que, no caso Elgafaji128, foi confrontado com a questão de saber se é necessário provar que se é “visado especificamente em razão de elementos próprios da situação pessoal do requerente”. A resposta do Tribunal foi de reforçar que, em princípio, é necessário fazer prova de uma ameaça individual, mas, a existência de uma ameaça grave e individual contra a vida e a integridade física do requerente da proteção subsidiária não está necessariamente subordinada à condição de este fazer prova de que se é visado especificamente em razão de elementos próprios da sua situação pessoal. A existência de uma tal ameaça pode excecionalmente ser dada como provada quando o grau de violência indiscriminada que carac-teriza o conflito armado em curso, apreciado pelas autoridades, seja de um nível tão elevado que existem motivos significativos para acreditar que um “civil” expulso para o país ou para a região em causa poderia correr, pelo simples facto de se encontrar no território destes, um risco real de sofrer uma ameaça grave e individual. Esta decisão que alargou, em termos europeus, os horizontes de aplicação da proteção subsidiária, tem, a nosso ver, uma incidência menor no quadro normativo português, dado que a lei do asilo, no seu artigo 7.º, se refere a ameaça grave, mas não a “ameaça individual”, pelo que pensamos que, no que diz respeito a Portugal, deve entender-se que a lei não exige que se faça prova de que se é pessoalmente visado.

128 Decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia, de 17 de fevereiro de 2009, processo C-465/07.

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As situações de fuga de conflito armado não constituem, normal-mente, condições suficientes para o reconhecimento do direito de asilo, não podendo, só por si, fundar um pedido de asilo129. Em determinados casos, quando se prove ter a guerra como objetivo a destruição ou aniquilação de um grupo étnico ou religioso, como sucede em certos cenários de guerra civil, aí há perseguição. Ou então, em situações de conflitos armados (sobre-tudo não-internacionais) em que um determinado grupo é chamado para cumprir serviço militar nas zonas mais perigosas. São situações em que a violação dos direitos fundamentais ocorre em situação de conflito armado e é, simultaneamente, um ato persecutório, sendo o direito de asilo e não a proteção subsidiária a resposta jurídica adequada a estas situações130.

O último motivo invocável para a concessão de proteção subsidiária face à lei é risco de sofrer ofensa grave, em situação de violação genera-lizada e indiscriminada de direitos humanos, que ameace a vida ou a inte-gridade física do requerente131. Poderá legitimamente questionar-se como se distingue este motivo daquele indicado em primeiro lugar de “violação sistemática de direitos humanos”. Há aqui uma aparente redundância na lei. A diferença está no facto de o enunciado, previsto no artigo 7.º, número 2, alínea c), se referir exclusivamente a ameaças graves contra a vida ou a integridade física, parecendo querer abranger situações em que a violência indiscriminada no país de origem atinja uma gravidade análoga àquela que se verifica em situações de conflito armado. A “violação sistemática de direitos humanos” abrange também outras situações de desrespeito pelos direitos humanos que não se traduzem em ameaças à vida e à integridade física, nos termos em que acima referimos.

A concessão da proteção subsidiária assume-se como um dever de Estado, desde que se cumpram os pressupostos para o seu reconhecimento. O artigo 18.º da Diretiva é, neste aspeto, muito claro: “Os Estados-membros

129 Assim o tem entendido também entre nós a jurisprudência. Ver Acórdão do STA, Processo 042793, de 7 de maio de 1998:”Se a perseguição e o receio de perseguição se fundarem apenas na guerra civil existente no país de origem, não é aplicável a tal situação o artigo 2, n. 2, da Lei 70/93, de 29 de Setembro.”

130 Sobre o conceita aplicável de conflito armado não internacional veja-se o acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia no caso Diakite, de 30 de janeiro de 2014, no processo C-285/12.

131 Ver Jane McAdam, “The European union Qualification Directive: The Creation of a Subsidiary Protection Regime”, em International Journal of Refugee Law, 2005, p. 479-487.

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concedem o estatuto de proteção subsidiária ao nacional de um país terceiro ou ao apátrida elegível para proteção subsidiária(...)”. Em Portugal, já no âmbito da lei de 1998, a redação da norma que previa a autorização de resi-dência por razões humanitárias apontava para estarmos perante um domínio em que a Administração se encontrava vinculada à concessão (que não ao reconhecimento) dessa autorização de residência, sempre que se cumprissem os pressupostos de facto expressos na norma132.

2.2.1. Atualidade da ameaça de “ofensa grave”

Nos termos da lei atualmente em vigor, a existência de uma ameaça de ofensa grave aos direitos fundamentais do requerente, para poder sustentar uma pretensão de reconhecimento de proteção subsidiária, tem de justi-ficar que os requerentes “sejam impedidos ou se sintam impossibilitados de voltar ao país da sua nacionalidade”. Valem, pois, aqui as considerações que fizemos a propósito da atualidade da perseguição e da necessidade de o pedido de proteção internacional ser apreciado em função da “probabili-dade da sua consumação”, cabendo às autoridades proceder a um juízo de prognose133.

132 No artigo 10.º da lei 70/93, de 29 de setembro, o legislador dizia que o regime excepcional da autorização de residência por razões humanitárias “pode ser aplicado”, cumpridos os pressupostos enunciados na norma. No artigo 8 da actual lei, lê-se, de forma mais determinada: “É concedida autorização de residência por razões humanitárias (....)”. A jurisprudência, no entanto, ainda se dividiu, durante algum tempo, quanto à questão de saber se a concessão desta autorização de residência mantinha ou não natureza de acto discricio-nário. Ver acórdãos do STA de 17 de junho de 1999, processo 44569 e de 31 de outubro de 2000, processo 44667, em www.dgsi.pt/jsta, ambos no âmbito da lei de 1998. No primeiro, pode ler-se que, na apreciação do pedido de autorização de residência, “age a Administração no exercício de poderes discricionários”. De acordo com o segundo, o acto proferido ao abrigo do artigo 8 da lei 15/98, de 26 de março, “é sindicável nos termos gerais dos actos praticados no uso de poder vinculado.” Face à actual lei e mesmo face ao artigo 18.º da Directiva 2004/83/CE, de 29 de abril, não podem subsistir dúvidas quanto à natureza vincu-lada do acto de concessão de protecção subsidiária.

133 Ver, sobre esta questão, um Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 4 de outubro de 2012, no processo 09098/12, em que, fazendo apelo a jurisprudência ante-rior do Supremo Tribunal Administrativo e do Tribunal Central Administrativo Sul (concre-tamente ao acórdão de 24 de maio de 2007, no processo 2543/2007), se pode ler: “a autori-zação de residência por razões humanitárias, prevista no artigo 8.º da Lei n.º 15/98, de 26/3 [hoje, artigo 7.º da Lei n.º 27/2008, de 30/6, sob a epígrafe “protecção subsidiária”], só pode ser concedida se, no país de origem do interessado, existir «grave insegurança devida a

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2.2.2. Proteção subsidiária sur place

O artigo 8.º da lei do asilo atualmente em vigor estende à proteção subsidiária a possibilidade de esta ser concedida mesmo nas situações em que o requerente já se encontrava fora do país de origem no momento em que passa a invocar o risco de sofrer ofensa grave aos seus direitos funda-mentais por alterações entretanto ocorridas na situação política do Estado da sua nacionalidade ou da sua residência habitual. Valem aqui as considera-ções que fizemos acima sobre este requisito a propósito do direito de asilo.

2.2.3. Autores da ameaça de “ofensa grave”

Por remissão expressa do artigo 7.º, número 3, da lei 27/2008, de 30 de junho, os autores de ameaça de “ofensa grave” não têm de ser autori-dades públicas, estaduais, mas podem ser “partidos ou organizações que controlem o Estado ou uma parcela significativa do seu território” e podem ser ainda “agentes não-estatais”, se as autoridades oficiais não tiverem capa-cidade ou vontade de proporcionar a proteção adequada às necessidades do requerente. Vejam-se as considerações supra sobre agentes de perseguição não-estatais, no contexto do direito de asilo.

2.3. cláusulAs De exclusão

Para que o reconhecimento do estatuto de refugiado ou a concessão de proteção subsidiária possam ocorrer, não basta que se verifiquem as condições que expusemos nos pontos 2.1.e 2.2.. É ainda necessário que aos requerentes que cumpram aquelas condições não se apliquem as cláusulas de exclusão a que se refere o artigo 9.º da lei do asilo atualmente em vigor. Neste norma, estão presentes situações em que o benefício da proteção internacional não pode aplicar-se por o requerente dispor de formas alter-nativas de proteção, descritas no número 1, alíneas a)134 e b), e situações

conflitos armados ou à sistemática violação dos direitos humanos» que, em concreto, impeça [“pulsão objectiva”] ou impossibilite [“pulsão subjectiva”] o regresso [e permanência] do requerente ao país da sua nacionalidade”.

134 Ver, sobre esta, decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 17 de junho de 2010, no caso Bolbol, processo C-31/09.

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de cláusulas de exclusão típicas e inspiradas nos instrumentos de direito internacional, apresentadas no alínea c) do número 1 e nos números 2 e 3. Referir-nos-emos a estas situações de cláusulas de exclusão.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos – no artigo 14.º, número 2 – e a Convenção de Genebra sobre o Estatuto do Refugiado – no artigo 1F – contêm cláusulas de exclusão, ou seja, definem situações em que, apesar de se cumprirem os pressupostos para a aplicação das respetivas normas de proteção dos direitos dos refugiados, estas não devem ser aplicadas por ocor-rerem circunstâncias que justificam a não concessão da proteção na situação concreta. Estas circunstâncias passam ou pela comissão de crimes graves ou pela prática de atos contrários aos fins e aos princípios das Nações Unidas. A inimizade pelo direito patente neste tipo de condutas justifica que cesse, nestes casos, a proteção do instituto do asilo ou do direito dos refugiados.

A Constituição Portuguesa não faz referência expressa a quaisquer limites à proteção que o asilo concede. Apenas faz o elenco das causas de perseguição que são objeto de proteção constitucional. Contudo, ao iden-tificar e particularizar os valores que entende serem dignos do direito de asilo – a democracia, a libertação social e nacional, a paz entre os povos, a liberdade e os direitos da pessoa humana –, os constituintes portugueses preferiram um direito de asilo que não fosse neutro, como o que está consa-grado na Lei Fundamental alemã135. A opção constitucional por um direito de asilo enunciado nos termos do artigo 33.º, número 8, obriga a que, por interpretação a contrario, se excluam do âmbito de proteção da norma cons-titucional, por exemplo, ex-ditadores no exílio, ou ex-governantes opres-sores da liberdade e dos direitos humanos, apoiantes de golpes de Estado falhados contra democracias e situações análogas136.

135 Sobre a opção constituinte alemã, ver Otto Kimminich, Grundprobleme des Asyl-rechtes, Darmstadt, Wissenschaftliche Gesellschaft, 1983, p. 97-98 e Helmut Quaritsch, Recht auf Asyl, Berlim, Dunckler&Humbolt, 1985, p. 34 e seguintes. A mesma “neutrali-dade” está também presente na Convenção de Genebra, que se refere a “opiniões políticas” tout court. Donde se poderia deduzir que, qualquer que seja a ideologia perfilhada pelo indivíduo, é possível a protecção que o asilo lhe reconhece. António Francisco de Sousa defende também o “princípio da neutralidade política do direito de asilo”, que, a nosso ver, não tem acolhimento na Constituição Portuguesa. Ver do autor “Perseguição Política no Direito de Asilo”, em Direito e Cidadania, 1999, p. 29.

136 Sobre as consequências que decorrem desta interpretação, ver, mais desenvolvi-damente, o nosso O Direito de Asilo na Constituição Portuguesa – Âmbito de Protecção de um Direito Fundamental, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, p. 157-188 e 323-341.

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A Diretiva 2011/95/UE, contém duas normas referindo-se a clausulas de exclusão – o artigo 12.º, que se aplica ao direito de asilo, e o artigo 17.º, que se aplica à proteção subsidiária. Da Diretiva constam especificações quanto às cláusulas – concretamente a que se refere aos “crimes graves de direito comum” – e prevê-se ainda apenas para os casos de proteção subsi-diária a exclusão deste benefício quando o requerente represente “um perigo para a comunidade ou para a segurança do Estado-membro em que se encontra”(artigo 17.º, número 1, alínea d)). A principal novidade da Dire-tiva é a aplicação destas cláusulas à proteção subsidiária.

A lei portuguesa atualmente em vigor prevê quatro cláusulas de exclusão, aplicáveis quer para o reconhecimento do direito de asilo, quer para a concessão de proteção subsidiária, no artigo 9.º: primeiro, a prática de crimes contra a paz, crimes de guerra ou crimes contra a humanidade, nos termos dos instrumentos internacionais que estabelecem disposições relativas a estes crimes; segundo, a prática de crimes graves de direito comum; terceiro, a prática de atos contrários aos fins e aos princípios das Nações Unidas; quarto, a existência de “perigo ou fundada ameaça para a segurança interna ou externa ou para a ordem pública”137.

Esta última cláusula permite ao Estado português a recusa de proteção internacional para defesa dos seus interesses de segurança interna ou externa ou de ordem pública. Esta cláusula é problemática, em particular no que diz respeito às pessoas que cumpram as condições para o reconhecimento do direito de asilo. Os compromissos internacionais a que Portugal está obrigado não preveem tal possibilidade de exclusão – quer ao nível das Nações Unidas e da Convenção do Estatuto de Refugiado que referimos; quer ao nível da União Europeia. A lei portuguesa, ao alargar as cláusulas de exclusão aplicáveis ao direito de asilo para além do permitido pela Dire-tiva 2004/83/CE, de 29 de abril, definiu claramente em termos menos favo-ráveis do que os que constam da Diretiva a matéria relativa às cláusulas de exclusão, opção legislativa que não pode aceitar-se, desde logo, pela sua desconformidade ao Direito da União Europeia e ao artigo 3.º da Diretiva.

137 Sobre a aplicação em concreto destas cláusulas e o quadro problemático que tal aplicação convoca, veja-se Ana Isabel Soares Quintas, “O Equilíbrio entre o Princípio do Non-Refoulement e as Cláusulas de Exclusão do Estatuto do Refugiado: uma breve resenha das suas implicações” in Revista Onis Ciência, Vol. II, Ano II, n.º 7, Tomo I, maio-agosto 2014, pág. 9 e ss,, disponível em http://www.revistaonisciencia.com (data da última consulta: 13/10/2014).

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2.3.1. Atos contrários aos fins e aos princípios das Nações Unidas

O objetivo fundamental da Organização das Nações Unidas é a manu-tenção da paz e da segurança. É, por isso, o primeiro a ser enunciado no artigo 1 da Carta das Nações Unidas. Deve, aliás, entender-se que os outros fins estão subordinados – no sentido de que são instrumentais – a este fim principal e maior. O segundo fim presente no enunciado do artigo 1 da Carta é o das relações amigáveis entre as nações baseadas nos princípios da igualdade e da autodeterminação dos povos. O terceiro fim orienta-se para a proteção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais e também para a promoção da cooperação internacional destinada a resolver os problemas de carácter económico, social e humanitário existentes.

Os princípios que orientam a atividade das Nações Unidas são sete: igualdade soberana; boa-fé;  resolução pacífica de conflitos;  renúncia à ameaça no uso da força; dever de cooperação; abertura à adesão de novos Estados; respeito pelas instâncias nacionais.

A aplicação destes fins e princípios a casos concretos suscita algumas dificuldades, dado que, por um lado, o seu conteúdo é vago, impondo-se proceder a uma interpretação atualista, flexível e adaptada à conjuntura contemporânea; por outro lado, alguns dos princípios não parecem poder ter uma relação direta com pedidos de asilo – referimo-nos aos princípios da igualdade soberana e da abertura à adesão de novos Estados. Na prática, as limitações ao direito de asilo decorrentes desta cláusula de exclusão, inscrita quer na Declaração Universal dos Direitos Humanos quer na Convenção de Genebra, não são objeto de aplicação frequente.

2.3.2. Prática de crimes graves de direito comum

De muito maior relevo prático se revela a interpretação desta cláu-sula de exclusão, prevista na Convenção de Genebra e na DUDH, e que é também explicitada na Diretiva 2011/95/UE e na lei atualmente em vigor.

O direito de asilo ou a proteção subsidiária só podem ser concedidos se o requerente não tiver praticado um crime grave de direito comum. É o que decorre da interpretação do artigo 33.º, número 8, da Constituição à luz do artigo 14.º, número 2, da DUDH138. É o que decorre ainda da definição de 

138 “Este direito [de asilo] não pode, porém, ser invocado no caso de processo real-mente existente por crime de direito comum (...)” – artigo 14.º, número 2 da DUDH:

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refugiado da Convenção de Genebra, em que a própria exclui do seu campo de aplicação as pessoas “acerca das quais existam razões ponderosas para pensar: (...) que cometeram um crime grave de direito comum fora do país que lhes deu guarida, antes de neste serem aceites como refugiados”(artigo 1F, alínea b)).

Para que haja lugar à aplicação desta cláusula impõe-se, por isso, que se qualifique um ato, quanto à sua natureza, como crime de direito comum e também quanto à sua gravidade.

A qualificação de um crime como de direito comum equivale ao reco-nhecimento de que não tem natureza política. Há duas questões maiores que esta qualificação levanta: quem determina a natureza do crime e como é que esta se determina.

A competência para a determinação da natureza do crime é, inevita-velmente, das autoridades do país a que foi apresentado o pedido de asilo. Aliás, a própria qualificação de uma conduta como crime, como ato com relevância penal, deve ser feita em função dos critérios da ordem jurídica do Estado de acolhimento.

Se um determinado crime for qualificado como crime comum no Estado de origem (que pode, com base nessa qualificação, pedir, inclusivamente, a extradição do seu autor) e for qualificado como político no Estado de acolhi-mento, é esta última qualificação que se tem por relevante para efeitos de apreciação do pedido de asilo. E o contrário é, igualmente, verdadeiro. Se uma pessoa cometeu um crime que, no seu país de origem e local da prática do crime, era uma infração de natureza política, mas não tem essa natureza face às conceções do Estado onde é apresentado o pedido, para efeitos de asilo, o crime é de natureza não política. O facto de o delito ser ou não ser considerado de natureza política no país de origem do requerente é total-mente irrelevante.

É, pois, à luz do direito português que devemos ensaiar critérios para a determinação da natureza dos crimes.

Apesar disso, não é fácil traçar uma linha de fronteira entre crimes de natureza política e não-política, dada a ausência de uma definição exata de delito político quer em convenções internacionais, quer no direito interno.

Há, no entanto, normas de direito internacional e de direito interno que ajudam a precisar o conceito de crime político. Estas normas que tratam da qualificação da natureza de algumas infrações têm, fundamentalmente, em vista impedir que a qualificação de certos atos como delitos políticos possa impedir que os seus autores sejam alvo de medidas de cooperação judiciária

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penal, não obstante a gravidade dos atos cometidos. Assim, a Convenção Europeia para a Repressão do Terrorismo impede que sejam qualificadas como infrações políticas as que se encontrem compreendidas no campo de aplicação da Convenção para a Repressão da Captura Ilícita de Aeronaves139, no campo de aplicação da Convenção para a Repressão de atos ilícitos Diri-gidos contra a Segurança da Aviação Civil140, infrações graves constituídas por um ataque contra a vida, a integridade física ou a liberdade das pessoas que gozem de proteção internacional, inclusive os agentes diplomáticos; as infrações comportando o rapto, a detenção de reféns ou o sequestro arbi-trário; os crimes comportando a utilização de bombas, granadas, foguetões, armas de fogo automáticas ou embrulhos armadilhados, na medida em que essa utilização apresente perigo para quaisquer pessoas. Também não se consideram de natureza política o “genocídio, os crimes contra a humani-dade, os crimes de guerra e infrações graves segundo as Convenções de Genebra de 1949” e segundo o Estatuto do Tribunal Penal Internacional e, além destes, os atos referidos na Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, adotada pela Assembleia das Nações Unidas em 17 de Dezembro de 1984, e quaisquer outros crimes a que seja retirada natureza política por tratado, convenção ou acordo de que Portugal seja parte.

Nos últimos anos, têm sido feitos esforços no sentido de impedir que quaisquer atos terroristas possam ser qualificados como crimes políticos. A ausência de uma definição jurídica de terrorismo aconselha a que se evite a manipulação deste conceito141.

Tirando estes casos em que a qualificação da infração como política está liminarmente excluída por normas de direito internacional, como é que se pode atribuir a natureza de crimes políticos a outras infrações?

Existem, fundamentalmente, duas vias. A via objetiva tipifica deter-minadas condutas como ofensas políticas de natureza penal. Por esta via, acentua-se o aspeto objetivo do crime: o tipo de crime. A via subjetiva elege como critérios determinantes para a qualificação da natureza da infração a 

139 Assinada em Haia em 16 de dezembro de 1970.140 Assinada em Montreal em 23 de setembro de 1971.141 “What is terrorism for the one, is heroism for the other”, apud Giustino D’Orazio,

Lo Straniero nella Costituzione Italiana, Milão, CEDAM, 1992, p. 6. Ver, sobre esta matéria, a decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia, de 9 de novembro de 2011, no caso B. e D., processos C-57/09 e C-101/09.

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intenção, a motivação política do crime, independentemente do tipo concreto em que aquela se revele142.

A tendência atual que vimos referindo e que nos parece muito positiva é no sentido de optar por uma determinação objetiva dos atos qualificáveis como delitos políticos, sem necessidade de apreciar as causas em nome das quais esses atos foram cometidos. A possibilidade de serem qualificados como crimes políticos e de, como tal, os seus autores serem objeto de um trata-mento mais favorável fica, assim, excluída. Isto deve valer para todos os tipos de crimes graves, especialmente, “crimes de sangue”143. A Diretiva 2011/95/ /UE, aponta nesse sentido, ao avançar que “poderão ser classificados” como crimes graves de direito comum, para efeitos de exclusão do estatuto de refu-giado, “os atos particularmente cruéis ou desumanos, mesmo que praticados com objetivos alegadamente políticos” (artigo 12.º, número 2, alínea b)).

No caso de delitos cuja gravidade não seja tão evidente ou elevada, devem ponderar-se elementos subjetivos e objetivos144. Assim, por exemplo, se a lesão do bem jurídico for pequena, o móbil político é relevante, se a lesão for significativa, a motivação exigida para a prática do ato tem de ser mais forte.

No que diz respeito à qualificação de um crime como grave, o legis-lador português, em 1998, entendeu – e, a nosso ver, bem – precisar o que se deve entender por “crime grave”, diminuindo, assim, a indeterminação legal subjacente à noção de “gravidade”. Fê-lo com recurso à valoração dos crimes que a própria lei portuguesa faz através das suas normas penais. Assim, são, para este efeito, crimes graves aqueles que tenham sido come-tidos com dolo e sejam puníveis com pena de prisão superior a três anos (artigo 3.º, número 1, alínea d) da lei 15/98, de 26 de março). A lei atual-mente em vigor manteve esta opção no artigo 9.º, número 1, alínea c), ii). Parece, apesar disso, criticável definir em três (e não em cinco anos), o 

142 Ver Puente Egido, “L’ extradition en droit internationale”, em Recueil des Cours, 1991, p. 154 e seguintes, Ernst Reichel, Das staatliche Asylrecht “im Rahmen des Völker-rechts“, Berlim, Dunckler & Humbolt, 1987, p. 43.

143 Neste sentido, ver Helmut Quaritsch, Recht auf Asyl, Berlin, Dunckler&Humbolt, 1985, p. 62: Blutschuldklausel – é possível a extradição “wenn der Verfolgte wegen vollen-deten oder versuchten Völkermordes, Mordes oder Tatschlags oder wegen der Beteiligung hieran verfolgt wird oder verurteilt worden ist”.

144 Como sejam a necessidade do crime para atingir o fim político pretendido e gravi-dade dos danos. Ver Puente Egido, “L’extradition en droit internationale”, em Recueil des Cours, 1991, volume VI, tomo 231, p. 228 e 229.

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limiar mínimo de gravidade dos crimes, atendendo às valorações implícitas no nosso Código Penal145.

A comissão de crimes coloca problemas práticos especialmente difíceis de ponderar quando esses crimes são cometidos em nome de fins entendidos como nobres, à luz do direito internacional e também do direito português, como sejam, por exemplo, os crimes cometidos como parte da luta pela autodeterminação de um povo146.

A Constituição portuguesa, na formulação que deu ao artigo 33.º, número 8, não fez nenhuma referência à legitimidade dos meios de luta empregues nas atividades realizadas em prol da “libertação nacional”. Esta leitura é reforçada pela interpretação de que o reconhecimento do direito de asilo aos perseguidos em consequência da sua atividade “em favor da democracia, da libertação social e nacional” é um afloramento do direito dos povos à insurreição, reconhecido no artigo 7.º147. O direito de asilo seria, assim, um mecanismo que poderia funcionar como meio de apoio aos povos oprimidos, dando relevo prático à afirmação do direito à insurreição pelo reconhecimento aos “insurretos” da proteção que o asilo confere. A ênfase posta pelo enunciado constitucional na atividade e na luta em favor de causas, deixando na sombra a legitimidade dos meios empregues, dificulta o reconhecimento de limites ao âmbito de proteção do direito, em função dos meios empregues nessa luta. Nestes casos, cremos ser determinante proceder a uma interpretação da lei portuguesa em conformidade com o disposto no artigo 17.º, número 2, alínea b) da Diretiva 2011/95/UE: “os atos

145 Mais desenvolvidamente, Ana Isabel Soares Quintas, O equilíbrio entre o princípio do Non-Refoulement e as cláusulas de exclusão do estatuto de refugiado : análise jurispru-dencial, p. 170, em http://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/28417 (data última consulta. 13/10/2014).

146 Ver, sobre esta problemática, numa perspectiva de direito internacional, o trabalho de Azeredo Lopes, “Autodeterminação dos Povos, Uso da Força e Responsabilidade Inter-nacional”, em Juris et de Jure, Porto, Universidade Católica Portuguesa, 1998, p. 453.

147 Mário José de Araújo Torres, em O Asilo em Portugal, volume I, Lisboa, Conselho Português para os Refugiados, 1994. A relevância prática da afirmação do “direito dos povos à insurreição contra todas as formas de opressão” era negada por André Gonçalves Pereira, com fundamento no número 1 do mesmo artigo 7, que afirmava a vinculação do Estado português ao princípio da “não-ingerência nos assuntos internos dos outros Estados”. Assim, “ainda que o Estado reconheça o direito dos povos à insurreição, não poderá intervir em qualquer caso concreto”. Ver do autor “O Direito Internacional na Constituição de 1976”, em Estudos sobre a Constituição, Lisboa, Livraria Petrony, 1977, p. 37. Toda esta matéria da ingerência internacional é, hoje, face às novas realidades de intervenções internacionais justificadas por razões humanitárias, compreendida de modo diferente.

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particularmente cruéis ou desumanos, mesmo que praticados com objetivos alegadamente políticos” devem ser classificados como crimes de direito  comum.

Na Diretiva europeia, a relevância dos crimes graves de direito comum para a exclusão do benefício da proteção aparece exposta em termos dife-renciados quando esteja em causa uma situação de asilo ou de proteção subsidiária. Assim, nos termos do artigo 17.º, número 3, da Diretiva, se a pessoa elegível para proteção subsidiária tiver cometido um ou mais crimes que não se possam qualificar como crimes graves, mas que seriam puníveis com pena de prisão caso tivessem sido praticados em território nacional e se se provar que a fuga do país de origem teve como único objetivo evitar ser punido por tais crimes, pode tal facto servir como fundamento para a exclusão do benefício da proteção subsidiária. A lei atualmente em vigor revogou o artigo 9.º, número 3, que admitia essa possibilidade, sendo por isso, neste aspeto particular, a lei portuguesa mais favorável, nos termos autorizados pelo artigo 3.º da Diretiva 2011/95/UE.

2.3.3. Crimes contra a paz, crimes de guerra, crimes contra a huma-nidade

Nos termos da ordem jurídica portuguesa, não se consideram de natu-reza política o “genocídio, os crimes contra a humanidade, os crimes de guerra e infrações graves segundo as Convenções de Genebra de 1949”148 e – acrescentamos nós – também segundo o Estatuto do Tribunal Penal Internacional.

Face a isto, entendemos que é redundante, face às conceções do direito português, referir entre as “cláusulas de exclusão” do asilo estes crimes e os crimes graves de direito comum (subalíneas i) e ii) da alínea c) do número 1 do artigo 9.º da lei do asilo). Estes crimes são considerados crimes de direito comum e a sua gravidade é de tal modo flagrante que se gerou à sua volta um consenso internacional quanto à necessidade de combater a impunidade de quem os pratica.

148 Ver artigo 7, número 2, alínea a) da lei 144/99, de 31 de agosto.

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2.3.4. Nota final sobre as cláusulas de exclusão

Nos termos da atual lei, se algum destes “pressupostos negativos” ou “cláusulas de exclusão” se encontrar preenchido em relação a alguém que tenha pedido proteção internacional, não só não se lhe poderá reconhecer o estatuto de refugiado, como também não lhe poderá ser concedida proteção subsidiária. A pergunta que subsiste é: qual é o regime a que, então, essas pessoas devem ficar sujeitas? Muitas vezes, não poderão ser expulsas para os respetivos países de origem, porque têm fundado receio de sofrer perse-guição ou ofensas graves aos seus direitos fundamentais e a sua expulsão consubstanciaria, eventualmente, uma violação das obrigações internacio-nais do Estado Português. Mas qual é o estatuto adequado para tais pessoas? Que “proteção subsidiária” poderá ser concedida a quem é excluído da proteção subsidiária, tal como a lei a prevê? Nada se encontra previsto no sistema português de proteção internacional que possa dar resposta cabal a estas questões.

3. PROCEDIMENTO DE ASILO149

O direito a obter por parte de um Estado proteção internacional pres-supõe um procedimento conformado em termos que possibilitem o exercício efetivo do direito. O procedimento integra a garantia (constitucional, pelo menos no caso do direito de asilo stricto sensu) do direito.150. Pode, por isso,

149 Trataremos aqui apenas do procedimento de determinação das condições para o reconhecimento do direito de asilo e para a concessão da protecção subsidiária – que desig-namos, uma vez mais, por sinédoque, como procedimento de asilo –, deixando de fora os procedimentos de perda do direito de protecção internacional, previstos nos artigos 41.º e seguintes da lei de asilo. Também não versaremos com o detalhe merecido as regras espe-ciais dos procedimentos quando os requerente de asilo são menores ou pessoas especialmente vulneráveis.

150 Segundo a classificação de Denninger, em “Staatliche Hilfe zur Grundrechtausü-bung durch Verfahren, Organisation und Finanzierung” em Joseph Isensee e Paul Kirchhof (eds.), Handbuch des Staatsrechts, volume V, Heidelberg, C. F. Müller, 2000, p 293 e sobre o asilo em particular, p. 297. A projecção da defesa dos direitos fundamentais para o domínio do procedimento foi, sobretudo, desenvolvida pela doutrina alemã nos anos 70. O Tribunal Constitucional Federal alemão veio a desenvolver esta ideia da tutela de direitos fundamen-tais através de procedimentos adequados numa série de acórdãos, um dos quais sobre direito de asilo. Ver também Goehrlich, Grundrechte als Verfahrensgarantien, Baden-Baden, Nomos Verlagsgesellschaft, 1981, em especial sobre direito de asilo, p. 62-65.

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inserir-se o direito de asilo na categoria dos direitos fundamentais procedi-mentalmente dependentes, caracterizados por serem “direitos carecedores de um procedimento intrínseca e necessariamente conformador e condicio-nador da própria eficácia subjetiva dos direitos fundamentais”151. Vieira de Andrade qualifica expressamente o direito de asilo como um direito sujeito a um procedimento, pois entende que, embora seja possível pensar o exercício do direito sem procedimentos, a Constituição ou a lei entenderam exigi-lo. Temos dúvidas sobre se esta será, de facto, a classificação adequada. Sendo, na maior parte dos casos, o asilo invocado por quem se encontra em situação irregular, sem a previsão de um procedimento específico que faça suspender a decisão de expulsão do território, a garantia constitucional do direito de asilo fica, na generalidade dos casos, neutralizada. Parece-nos, por isso, que é mais correto tratar o direito de asilo como um direito dependente de um procedimento, porque, na maior parte das situações, o acesso à proteção que o asilo confere, “o exercício individual do direito só é possível, de facto, através de uma organização e segundo um procedimento”152.

Esta qualificação significa, fundamentalmente, que o direito de proteção internacional inclui um direito à apresentação de um requerimento que dê início ao procedimento (o direito ao pedido), implica também o dever de disponibilizar um procedimento adequado à efetivação do direito e implica o direito a uma decisão informada, justa e imparcial. Se a questão da tutela dos direitos através de procedimentos adequados é, em geral, importante e, se essa importância é ainda maior quando estão em causa direitos funda-mentais, num direito como o direito à proteção internacional, a questão do procedimento assume importância fundamental.

A relevância dos procedimentos para a efetivação dos direitos e a consequente irradiação das normas de direitos fundamentais para as maté-rias da organização e do procedimento não é um dado novo, nem é uma marca específica do direito de asilo – é hoje unanimemente reconhecida 

151 Ver “Tópicos de um Curso de Mestrado sobre direitos fundamentais, procedimento, processo e organização”, Separata do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, volume LXVI, 1990, p. 167.

152 Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 3.ª edição, Coimbra, Almedina, 2012, p. 142. Curiosamente, em trabalho anterior, o mesmo autor, no quadro de uma outra categorização, considerava o direito de asilo um direito dependente de um procedimento, sendo que nele as garantias procedimentais são condição do exercício individual do direito. Ver O Dever da Fundamentação Expressa de Actos Admi-nistrativos, 2.ª edição (reimpressa), Coimbra, Almedina, 2003, p. 188, nota 28.

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a importância que, em geral, os procedimentos têm para o exercício dos direitos, sendo, no entanto, essa importância mais ou menos intensa conso-ante a dependência específica do procedimento para o direito em causa153.

Assim, não nos deteremos mais tempo a salientar essa importância, que nos parece evidente. Gostaríamos, em lugar disso, de chamar a atenção para alguns aspetos peculiares do procedimento de que depende o reconhe-cimento do direito de proteção internacional.

A definição legal de um procedimento de asilo (aplicável também aos casos de proteção subsidiária) é um exercício difícil em que terão de ser ponderadas as dificuldades inerentes a estes pedidos, as garantias adequadas que deverão ser concedidas aos requerentes (uma decisão errada e a conse-quente expulsão para o pais de origem pode implicar, no limite, risco de vida para o requerente) e a especial celeridade com que estes procedimentos devem ser tramitados.

Os procedimentos de asilo são, de facto, particularmente complexos. Está em causa a prova de que a pessoa em causa tem fundado receio de perseguição com base nos motivos enunciados na Convenção de Genebra, na Constituição e na lei. E são casos em que o material probatório é quase sempre escasso e os meios de obtenção de prova são quase sempre inaces-síveis. Sem grande esforço, conseguimos perceber que quando alguém foge do seu país por receio de estar a ser perseguido não traz consigo um arquivo de todos os documentos que provem as razões por que é perseguido. O mais provável é até que se desembarace desses documentos comprometedores para melhor conseguir atravessar a fronteira em segurança. Ao chegar ao país de acolhimento, exigem-lhe, no entanto, que prove que é perseguido e quais são as razões que fazem daquele requerente um alvo de perseguição por parte do Estado da sua nacionalidade ou da sua residência habitual. Na maior parte dos casos, não possui consigo esses documentos (muitas vezes, não possui sequer documentos de identificação pessoal válidos) e não pode denunciar o seu paradeiro às autoridades do país de origem, pelo que a via

153 Ver, entre nós, Gomes Canotilho, “Tópicos de um Curso de Mestrado sobre direitos fundamentais, procedimento, processo e organização”, Separata do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, 1990, p. 151, Vieira de Andrdade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 3.ª edição, Coimbra, Almedina, 2004, p. 150 e seguintes, Jorge Reis Novais, As Restrições aos Direitos Fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição, Coimbra, Coimbra Editora, 2003, p. 82 e seguintes e Pedro Machete, A Audiência dos Interessados no Procedimento Administrativo, Lisboa, Universidade Cató-lica Portuguesa,1995, p. 40 e seguintes.

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diplomática, como meio de obter elementos relevantes para a prova, lhe está vedada154.

Nos procedimentos de determinação da necessidade de proteção em que não esteja em causa a apreciação da situação pessoal do requerente, mas apenas a existência de uma situação de violação sistemática dos direitos humanos ou de conflito armado, a matéria a provar pode ser um pouco mais simples do que nos casos do direito de asilo stricto sensu, se bem que a recolha de informação sobre o país de origem seja uma tarefa exigente para as autoridades a quem compete a decisão do pedido.

A celeridade é também um aspeto fundamental que não pode ser subes-timado. Uma das ameaças para o direito de asilo é a possibilidade de o seu uso abusivo poder funcionar como uma via fácil para escapar aos controles migratórios. Se a simples invocação do asilo constituir o requerente no direito de aceder ao território e aí permanecer por um período de meses, por hipótese, enquanto aciona todas as garantias que o sistema lhe concede, para, no final, concluir que o pedido é improcedente e que o requerente deve ser expulso, o mais provável é que nunca venha a sê-lo. A credibilidade de um sistema de asilo exige, pois, celeridade na resposta aos pedidos de asilo. E a própria vida das pessoas que requerem asilo não se compadece com períodos de espera desnecessariamente longos, em que as pessoas perma-necem provisoriamente no país sem certezas quanto ao seu futuro.

Compreende-se, pois, que os prazos sejam curtos, mas não podem ser irrazoáveis. Ora o legislador tem, muitas vezes, caído nesta armadilha. Propõe prazos curtos em que devem ser apreciados elementos complexos e, depois, o resultado são decisões em que ou não se cumprem os prazos ou que surgem pouco ponderadas e pouco fundamentadas no final de procedi-mentos que comprimiram insuportavelmente um mínimo de garantias que não pode ser recusado a quem requer proteção internacional155.

154 Ver o nosso “Quem prova o que pode a mais não é obrigado? – Sobre a medida e o ónus da prova nos processos de asilo”, em Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 70, julho/agosto 2008, p. 61-70.

155 Sobre a necessidade desse equilíbrio numa breve nota comparativa entre o direito europeu e o direito americano, Stephen Legomsky, “A USA Comparative Perspective on the European Immigration Policy“, em Nuno Piçarra (coord.), A União Europeia segundo o Tratado de Lisboa – Aspectos Centrais, Coimbra, Almedina, 2011, p. 183.

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3.1. o proceDimento De Asilo nA lei AtuAl em portugAl

O procedimento de asilo previsto na lei portuguesa atualmente em vigor tem como obrigação responder às exigências do Direito da União Europeia. A Diretiva 2013/32/UE, de 26 de junho, relativa a procedimentos comuns de concessão e retirada do estatuto de proteção internacional – de ora em diante Diretiva sobre procedimentos de asilo – introduziu alterações substanciais na Diretiva anterior – Diretiva 2005/85/CE, de 1 de dezembro. Constata-se que as alterações introduzidas pela lei 26/2014, de 5 de maio, não refletem muitas daquelas alterações substanciais. Isso é particularmente visível no que diz respeito às normas sobre as entrevistas aos requerentes de asilo – artigos 16.º e 17.º da Diretiva sobre os Procedimentos de Asilo e no artigo relativo ao direito a um recurso efetivo, artigo 46.º, que trata-remos no ponto 4.

Uma vez que esta Diretiva confere direitos aos particulares requerentes de asilo, os deveres do legislador na transposição de tais diretivas são deveres reforçados de plena transposição. O princípio da segurança jurídica exige que, nos domínios abrangidos pelo Direito da União Europeia em que são criados direitos dos particulares, a ação legislativa dos Estados-membros conduza à criação de normas que permitam aos interessados conhecer de forma precisa e clara quais os seus direitos de modo a poderem exigir o seu cumprimento efetivo diante das autoridades nacionais administrativas ou judiciais156.

É certo que a circunstância de a transposição ser insuficiente não obsta à possibilidade de invocação das normas da Diretiva contra o Estado que não cumpriu os deveres de transposição.

Em todo o caso, impunha-se que a lei 26/2014, de 5 de maio, que visou especificamente a transposição das Diretivas de 2011 e de 2013, não fosse omissa em relação a aspetos tão essenciais para a apreciação dos pedidos como são as entrevistas, em que o legislador não introduziu alterações subs-tanciais aos artigos 16.º e 17.º da lei do asilo, apesar das inovações contidas na Diretiva.

Para além das normas impostas pelas Diretivas, o legislador português tomou algumas opções próprias na configuração do procedimento de asilo. 

156 Existe abundante jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia a exigir esta acção legislativa reforçada quando estão em causa normas de Directivas que conferem direitos aos particulares. Vejam-se, sobre esta matéria, a jurisprudência referida por António Pinto Pereira, A Directiva Comunitária, Coimbra, Coimbra Editora, 2014, p. 249-252.

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Destas são de destacar duas: a opção pelo princípio do guichet único e a opção por um procedimento que integra duas fases.

Foram duas opções, a nosso ver, bem pensadas, que já se encontram bastante sedimentadas na atuação das autoridades administrativas e que, independentemente de algumas críticas que possam ser formuladas quanto ao modo como são aplicadas na prática, constituem aspetos estruturantes e simplificadores do procedimento de asilo que em muito ajudam à trami-tação dos procedimentos.

O princípio do ”guichet único” ou “balcão único” desonera o reque-rente com a obrigação de classificar o seu pedido como pedido de asilo stricto sensu, isto é, pedido de reconhecimento do estatuto de refugiado, ou como pedido de proteção subsidiária. O requerente limita-se a formular um pedido de proteção às autoridades e a estas depois compete adequar a resposta à situação do requerente, sendo que, nos termos do artigo 10.º da lei do asilo, se presume que um pedido de proteção internacional é um pedido de asilo, stricto sensu, devendo as autoridades proceder primeiro à análise dos pres-supostos deste, e, só depois de concluírem que o requerente não é elegível para o estatuto de refugiado, é que podem passar à análise dos pressupostos da proteção subsidiária. Esta opção legislativa foi adotada pela lei 27/2008, de 30 de junho e manteve-se após a revisão de 2014. Acabaram-se assim as dúvidas sobre se existia ou não um dever de as autoridades administra-tivas convolarem oficiosamente os pedidos de asilo recusados em pedidos de autorização de residência por razões humanitárias.

A consagração de um procedimento em duas fases já vem desde a lei 15/98, de 26 de março157, e foi mantida pelo legislador em 2008 e em 2014. Os pedidos de asilo são objeto de uma primeira apreciação sumária quanto à sua admissibilidade e, depois, de uma apreciação mais extensa e profunda quanto ao seu mérito.

O objetivo desta configuração legal do procedimento é permitir fazer uma triagem dos pedidos que são manifestamente destituídos de funda-mento, pelo que devem ser rapidamente recusados, através de uma decisão de inadmissibilidade, permitindo que as autoridades se concentrem nos pedidos que exigem mais meios instrutórios. Esta opção legislativa, que nos parece acertada, foi, a nosso ver, pervertida pelo facto de a Administração

157 Para uma descrição mais detalhada do procedimento previsto na lei de 1998, ver o nosso “A Recusa dos Pedidos de Asilo por Inadmissibilidade”, em Estudos em Comemo-ração do 10.º Aniversário da Licenciatura em Direito da Universidade do Minho, Coimbra, Almedina, 2003, p. 79-94.

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não distinguir bem a diferente fundamentação de uma decisão de inadmis-sibilidade face a uma decisão de recusa158.

3.1.1. A apresentação do pedido

Nos termos da lei atualmente em vigor, o procedimento inicia-se com a apresentação do pedido, que deve ser feita “sem demora” por parte do requerente. A lei 27/2008, de 30 de junho, lei do asilo, não especifica nenhum prazo para essa apresentação, mas a lei de estrangeiros, lei 23/2007, de 4 de julho, com a redação que lhe foi dada pela lei 29/2012, de 9 de agosto, refere, no seu artigo 146.º, número 5, alínea a) que não será organizado processo de afastamento coercivo contra estrangeiro, que, “tendo entrado irregularmente no território nacional, apresente pedido de asilo a qualquer autoridade policial dentro das 48 horas após a sua entrada”. Pensamos, no entanto, que tal não significa a imposição de um prazo para a apresentação do pedido, mas apenas que, quando o pedido seja apresentado dentro das 48 horas previstas na lei, não chega a ser aberto o processo de afastamento coercivo (expulsão); nas situações em que o pedido de asilo seja feito mais tarde, este impõe a suspensão do procedimento de afastamento coercivo, nos termos do artigo 12.º da lei do asilo, que prevê que a “apresentação do pedido obsta ao conhecimento de qualquer procedimento administrativo ou processo judicial por entrada irregular em território nacional instaurado contra o requerente e membros da família que o acompanhem”159.

Em todo o caso, não deixaremos de referir que não se deve inferir da lei que o prazo de 48 horas após entrada em território nacional constitui um prazo razoável para a apresentação de um pedido de asilo por parte de um estrangeiro recém-chegado a território nacional. Muito embora seja dese-

158 No ponto 3.1.2., teremos ocasião de desenvolver melhor este aspecto, mas para que se tenha, desde já, uma ideia das dificuldades de distinção entre inadmissibilidade e recusa, veja-se que, em determinados anos, não houve em Portugal nenhuma decisão final de recusa de asilo. Todas as decisões negativas foram proferidas em sede de admissibilidade, o que indicia que as autoridades administrativas fazem, na fase de admissibilidade, não uma apreciação sumária sobre a viabilidade do pedido, mas uma apreciação bem mais profunda sobre a procedência ou improcedência dos motivos invocados pelo requerente.

159 A lei de asilo prevê, no artigo 33.º-A, uma tramitação mais célere para os pedidos apresentados na sequência de uma decisão de afastamento do território nacional, tendo sido esta uma novidade da lei 26/2014.

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jável que o pedido seja feito de modo célere, há que ter sempre em conta as circunstâncias individuais do requerente, o modo como chegou ao país e a forma como foi informado e encaminhado relativamente à necessidade e ao modo de apresentação do pedido. Acresce ainda que, embora, nos termos do artigo 13.º da lei do asilo, o pedido possa ser feito ao Serviço de Estran-geiros e Fonteiras (SEF) ou a qualquer autoridade policial, nem sempre as autoridades policiais estão preparadas para essa função. Insistimos, por isso, na ideia de que a oportunidade do pedido só pode ser apreciada, tendo em conta as circunstâncias individuais do requerente e o momento em que este se vê, por um lado, efetivamente carecido de proteção internacional e, por outro lado, esclarecido quanto ao que deve fazer para apresentar o pedido.

Do pedido devem constar elementos de identificação do requerente, nacionalidade, indicação quanto a pedidos de asilo anteriormente apre-sentados e relato das circunstâncias ou factos que fundamentam o asilo160. A lei não faz qualquer referência à necessidade de garantir ao requerente logo nesta fase que o seu pedido será tratado com total confidencialidade, estando as autoridades portuguesas impedidas de divulgar informações que possam pôr em causa a segurança do requerente e da sua família, em particular aquela que se encontra no país de origem. Muito embora, a lei do asilo preveja o dever de tratar com a maior confidencialidade o pedido e os dados do pedido – artigos 5.º, número 3 e 83.º da lei do asilo –, importa que garantias de confidencialidade sejam dadas expressamente ao reque-rente, de modo a não comprometer a recolha de informações por parte da Administração nesta fase inicial do procedimento.

O pedido pode ainda ser apresentado nos postos de fronteira, nos termos previstos no artigo 23.º da lei do asilo, sendo o mais frequente entre nós a apresentação do pedido no aeroporto. A tramitação subsequente do pedido é diferente no caso dos pedidos apresentados em “território nacional”161 ou nos postos de fronteira, sendo significativamente mais célere neste último caso. Além disso, no caso dos pedidos do primeiro tipo, o requerente é autorizado a permanecer no país, dispondo de um comprovativo de apresentação do pedido e, no caso dos segundos, o requerente fica em situação de detenção até haver decisão final quanto à admissibilidade do respetivo pedido. Dadas 

160 Nos termos previstos no artigo 15.º da lei 27/2008, de 30 de junho.161 Usamos aspas, porque entendemos que os postos de fronteira a que nos referimos

não são outra coisa senão território nacional. As zonas internacionais dos portos e dos aero-portos são território nacional.

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estas especificidades trataremos depois separadamente do procedimento de asilo no caso dos pedidos apresentados nos postos de fronteira.

Uma vez apresentado um pedido é fornecida informação do mesmo ao Conselho Português para os Refugiados, enquanto organização não gover-namental que atua em nome do Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados162.

3.1.2. Fase de admissibilidade

Estando concebido o procedimento como repartido em duas fases, a primeira função das autoridades é a de analisar sumariamente a viabilidade de todos os pedidos que lhes são submetidos.

Esta é objeto de uma decisão de admissibilidade ou inadmissibilidade do pedido, proferida pelo Diretor Nacional do SEF, nos termos do artigo 20.º da lei atualmente em vigor, estando igualmente prevista a possibilidade de, não sendo proferida qualquer decisão no prazo de 30 dias, se dever consi-derar admitido o pedido.

Uma correta interpretação das normas sobre procedimento obriga a que sejam admitidos todos os pedidos que não sejam ostensivamente destituídos de fundamento, isto é aqueles relativamente aos quais a sua improcedência não é evidente. Verificamos, no entanto, que nem sempre tem sido esta a interpretação feita pelas autoridades administrativas e judiciais. Muitas vezes, são considerados logo inadmissíveis pedidos com fundamento na prestação de declarações demasiado vagas, por exemplo163, sem conseguir

162 Artigo 13.º, número 3 da lei do asilo.163 Os tribunais administrativos não têm feito também a devida destrinça entre uma

decisão de inadmissibilidade e uma decisão de recusa. Veja-se, por exemplo, o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 20 de março de 2014, no Processo 10920/14,em que estava em causa a apreciação de uma decisão que considerou inadmissível um pedido de asilo de um cidadão senegalês, homossexual, cujo companheiro, de acordo com as suas declarações, foi morto naquele país e em que o SEF considerou que o pedido não estava suficientemente fundamentado, pelo que devria ser indeferido. Ora, no Senegal, a homos-sexualidade é punida com pena de prisão de 1 a 5 anos e multa. Veja-se o Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 7 de novembro de 2013 nos casos C-199/12 a C-201/12. O TCASul considerou que a “decisão recorrida, cujo excerto se transcreve procede a um correcto julgamento dos factos e do Direito, além de que se mostra fundamentada quanto à falta de preenchimento dos requisitos de que a lei faz depender, quer para a concessão de asilo por razões humanitárias, quer para a protecção subsidiária”. Estas são razões de

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persuadir as autoridades através da apresentação de factos concretos que provem a verificação dos pressupostos de que depende o direito de asilo. Tal fundamentação pode ser adequada a uma decisão final negativa de um pedido de asilo, mas é inadequada para uma decisão de inadmissibilidade.

Na atual lei do asilo, as causas da inadmissibilidade de um pedido estão elencadas em dois artigos: o artigo 19.º e o artigo 19.º-A.

O artigo 19.º reproduz, fundamentalmente, as alíneas do artigo 31.º, número 8, da Diretiva 2013/32/UE, contendo um conjunto extenso de causas que permitem às autoridades concluir pelo carácter infundado do pedido mesmo numa análise sumária e superficial do caso.

O artigo 19.º-A reproduz o artigo 33.º da Diretiva 2013/32/UE, contendo um conjunto de seis causas que autorizam uma decisão de não admissibilidade por se revelar desnecessária uma vez que há outro Estado que já assumiu ou que pode assumir a responsabilidade pela proteção daquela pessoa – ou, pelo menos, pela apreciação das suas necessidades de proteção – ou porque já há outro pedido no âmbito do qual a necessidade de proteção daquela pessoa está a ser ponderada (caso previsto na alínea f) do artigo 19.º-A.

Há uma situação que conduz à inadmissibilidade do pedido que está regulada na nova lei de modo particularmente confuso. Diz respeito aos pedidos subsequentes, apresentados na sequência de uma decisão de recusa, previstos no artigo 33.º da lei do asilo, e igualmente previstos no artigo 19.º, número 1, alínea g) e 19.º-A, número 1, alínea e). Não se compreende esta triplicação de normas sobre pedidos subsequentes. O artigo 33.º define um prazo mais curto, de 10 dias, para uma apreciação preliminar do pedido da qual deve resultar uma decisão quanto à sua admissibilidade. Esta norma, de carácter especial, torna incompreensível e incoerente a inclusão dos pedidos subsequentes nos artigos 19.º e 19.º-A.

A simples leitura do artigo 19.º da nova lei é elucidativa da barreira normativa criada por esta fase de admissibilidade, que, incorretamente inter-pretada, deixou de servir como um filtro de pedidos abusivos, fraudulentos, manifestamente infundados, para se ter convertido numa teia onde a maioria dos pedidos de asilo acabarão emaranhados164.

fundo, que não se justificam se a instrução do pedido foi sumária e visou apenas uma decisão quanto à admissibilidade do pedido. No caso concreto, o CPR pronunciou-se, em parecer, no sentido da admissibilidade.

164 No International Journal of Refugee Law foi publicado em 2005 (ainda na vigência da anterior lei) um artigo com o sugestivo título “Inadmissible in Iberia: The Fate of Asylum

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Sem pretendermos aqui analisar uma a uma as causas de inadmissibili-dade previstas nos artigos 19.º e 19.º-A, importa atender a que estas se podem agrupar em causas ligadas à ausência de fundamento para o pedido por desnecessidade de proteção absoluta, em que o requerente não tem nenhuma razão para requerer proteção internacional (artigo 19.º-A, número 1, alínea b), que prevê a inadmissibilidade de um pedido por parte de quem já beneficia de proteção internacional noutro Estado-membro e artigo 19.º, número 1, alínea f), que prevê o mesmo destino para os pedidos formulados por quem vem de um país de origem seguro165; desnecessidade de proteção relativa, em que o requerente, muito embora possa carecer de proteção inter-nacional, tem uma alternativa de proteção, que desonera o Estado Portu-guês da obrigação de conhecer autonomamente o pedido (artigo 19.º-A, número 1, alíneas a), c), d) e f)); pedidos fraudulentos, feitos com intenção de induzir em erro as autoridades (artigo 19.º, número 1, alíneas a) e b)); e pedidos abusivos, em que o requerente já viu o seu caso apreciado ou o caso está a ser apreciação num outro procedimento ou o requerente está em risco iminente de expulsão ou de extradição e apresenta pedido de asilo,

Seekers in Spain and Portugal” (Inadmissíveis na Península Ibérica: o Destino dos Reque-rentes de Asilo em Espanha e em Portugal), em que a autora relaciona o baixo número de pedidos de asilo existente entre nós (e também na vizinha Espanha) com esta opção legis-lativa de prever um conjunto tão extenso de causas de inadmissibilidade que demoveria os requerentes de asilo de apresentarem os seus pedidos às autoridades nacionais. Maryellen Fullerton, “Inadmissible in Iberia: The Fate of Asylum Seekers in Spain and Portugal”, em International Journal of Refugee Law, 2005, p. 659-687. Temos dúvidas quanto a esta conclusão de que é possível explicar o baixo número de pedidos de asilo apresentados em Portugal apenas com recurso ao factor legal e que este seja um factor dissuasor da apresen-tação de pedidos de protecção internacional, mas não duvidamos de que esta fase de admis-sibilidade, tal como está concebida, põe em risco a apreciação e a instrução cuidadosa dos pedidos de asilo apresentados em Portugal.

165 A lei do asilo define país seguro no artigo 2.º, número 1, alínea q) como o “país de que o requerente é nacional ou, sendo apátrida, residente habitual, em relação ao qual o requerente não tenha invocado nenhum motivo grave para considerar que o mesmo não é seguro, tendo em conta as circunstâncias pessoais do requerente no que respeita ao preen-chimento das condições para ser considerado refugiado e avaliado com base num conjunto de fontes de informação, incluindo, em especial, informações de outros Estados membros, do Alto –Comissário das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), do Conselho da Europa e de outras organizações internacionais pertinentes”. Sobre esta questão, ver a decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia, de 6 de Maio de 2008, no processo C-133/06 e ver também o nosso O Direito de asilo na Constituição Portuguesa – âmbito de protecção de um direito fundamental, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, p. 226-233.

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sem nenhum fundamento que se possa considerar pertinente para justificar o pedido (artigo 19.º, número 1, alínea c), d), e), h)).

Há uma situação em que a decisão de inadmissibilidade funda-se exclu-sivamente na não disponibilidade do requerente para colaborar na recolha das suas impressões digitais, prevista no artigo 19.º, número 1, alínea j), surgindo assim como uma “sanção” para o requerente pela sua indisponi-bilidade para colaborar. É compreensível que, numa primeira abordagem das autoridades, os requerentes se sintam intimidados perante o pedido de recolha de impressões digitais, atentas as circunstâncias que viveram ou testemunharam nos seus países de origem. Pensamos, por isso, que esta norma só por si não deveria fundamentar uma decisão automática de inad-missibilidade. Independentemente desta opção legislativa plasmada no artigo 19.º, número 1, alínea j), em concordância com o que se encontra previsto no artigo 31.º, número 8, alínea i), esta “sanção” não deve também nunca, a nosso ver, ter aplicação nas situações de requerentes particularmente vulneráveis, em especial as vítimas de tortura ou outras formas graves de violência, situações previstas no artigo 80.º da lei do asilo.

Também deve merecer especial cuidado a aplicação do artigo 19.º, número 1, alínea d), relativa à morosidade na apresentação do pedido. Cumpre relembrar o que dissemos supra sobre a necessidade de ter sempre em conta as circunstâncias pessoais do requerente para avaliar se o pedido às autoridades portuguesas foi ou não apresentado em momento que faça suspeitar da efetiva necessidade de proteção internacional. Impõe-se, por isso, uma consideração de todas as circunstâncias que rodearam a entrada do requerente em território nacional.

A justificação da decisão de inadmissibilidade nas alíneas c) e e) do artigo 19.º, número 1 também deve revestir-se de especiais cautelas. Quando o requerente tenha feito declarações incoerentes, contraditórias ou inverosí-meis ou quando invoque apenas questões irrelevantes face aos pressupostos legais de proteção internacional, o seu pedido pode ser considerado inad-missível se for seguro concluir que o pedido padece de manifesta falta de fundamento. É necessário que resulte, de modo inequívoco, da análise das declarações prestadas pelo requerente que o pedido é infundado, abusivo ou fraudulento, nos termos do parágrafo anterior. O enunciado destas alíneas c) e e) do artigo 19.º, número 1, mais não trazem consigo do que indícios de que o pedido pode ser infundado, abusivo ou fraudulento, mas cabe à autoridade administrativa provar que não lhe restam dúvidas quanto à justeza da classificação do pedido como tal, de modo a justificar que não 

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passe a uma análise do mérito e o considere, mediante uma análise sucinta do mesmo, inadmissível.

Uma situação grave na nossa lei é a possibilidade de a inadmissibilidade do pedido se basear na consideração de que o requerente representa “um perigo para a segurança interna ou para a ordem pública”, podendo este motivo ser invocado independentemente da existência de qualquer processo judicial em que se determine tal perigosidade (artigo 19.º, número 1, alínea i)). Embora seja obviamente dever dos Estados defender a segurança interna e a ordem pública, justificando-se, nestas situações, uma especial celeridade da decisão, esta não pode ser irrefletida e funcionar como causa isolada para a recusa liminar de proteção internacional166.

Antes de proferir decisão quanto à admissibilidade, as autoridades estão obrigadas a ouvir o requerente, nos termos do artigo 16.º da lei do asilo, “em condições que garantam a devida confidencialidade e que lhe permitam expor as circunstâncias que fundamentam a respetiva pretensão”. Estas declarações devem ser prestadas pouco tempo depois da apresentação do pedido. Nos termos do mesmo artigo 16.º, “logo que receba o pedido de asilo, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras notifica de imediato o reque-rente para prestar declarações no prazo de dois a cinco dias”. Nem sempre é possível cumprir este prazo por dificuldades, nomeadamente, de disponi-bilidade de intérprete. A lei do asilo, no seu artigo 16.º, número 5, admite a exclusão da entrevista ao requerente em duas situações concretas: quando a Administração disponha de elementos que lhe permitam logo uma decisão de favorável do pedido (alínea a) do artigo referido); quando o requerente seja inapto ou incapaz para o efeito “devido a circunstâncias duradouras, alheias à sua vontade”, caso em que a Administração tem o dever de providenciar para que o requerente ou um representante do requerente167 comuniquem as informações relevantes (artigo 16.º, número 5, alínea b) e número 6).

Após a entrevista pessoal ao requerente, compete ao SEF elaborar um relatório escrito do qual constam “as informações essenciais relativas ao pedido”, que é notificado ao requerente e ao Conselho Português para os Refugiados, atuando em nome do ACNUR. Uma vez ocorrida a notificação, o requerente tem cinco dias para sobre ele se pronunciar.

Um dos problemas que esta fase de admissibilidade levanta é a questão do respeito pelo direito de audiência prévia dos requerentes relativamente

166 Ver, sobre esta matéria, o que dissemos supra sobre cláusulas de exclusão.167 A lei não se refere a representante do requerente, mas a “pessoa a cargo do reque-

rente”, o que só pode ser interpretado como um lapso legislativo.

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à decisão das autoridades administrativas, tendo presente que tal audiência constitui uma oportunidade para os interveniente no procedimento, que resulta de uma imposição constitucional de participação democrática dos interessados na formação das decisões que lhes digam respeito. É certo que os requerentes são ouvidos, mas as declarações são prestadas numa fase inicial do procedimento a que sucede a atividade instrutória do SEF, que compreende a recolha de informações sobre o país de origem e uma análise mais detalhada da situação e das circunstâncias pessoais do requerente. Pode suceder – e sucede, muitas vezes – serem detetadas nesta fase incongruên-cias entre as declarações do requerente e as informações disponíveis sobre o país de origem, por exemplo. Ou pode o SEF obter informações sobre o requerente que não confirmam as declarações por este prestadas. Pode o requerente ser surpreendido por uma decisão baseada em elementos novos para si relativamente aos quais não teve oportunidade de se pronunciar? Ou deve ser assegurado o direito de audiência prévia, nos termos do Código do Procedimento Administrativo? A urgência destes procedimentos (prevista expressamente no artigo 84.º da lei do asilo) poderia justificar a dispensa de audiência prévia. Pensamos, no entanto, que, obrigando a lei à elaboração de um relatório após a entrevista, que é notificado ao requerente e sendo-lhe concedido um prazo de cinco dias para se pronunciar, não pode proceder o argumento da urgência e deve entender-se que do relatório deve constar uma indicação quanto ao sentido provável da decisão (em especial, se esta for no sentido da inadmissibilidade, de modo a cumprir as exigências da lei geral sobre o procedimento administrativo). A exceção à regra da audi-ência prévia só se justifica quando a urgência seja de tal modo evidente e determinante que torne totalmente impossível a audiência prévia, quando, de facto, a escolha seja “entre praticar o ato com audiência ou não o praticar de todo”168. Ora, não nos parece que, na configuração atual da fase de admissibilidade no procedimento de asilo se possa entender que há um tal grau de urgência (que existirá, porventura, apenas nos casos de pedidos de asilo apresentados nos postos de fronteira, nos termos em que a seguir veremos)169.

168 Pedro Machete, A Audiência dos Interessados no Procedimento Administrativo, Lisboa, Universidade Católica Portuguesa, 1995, p. 475.

169 O Tribunal de Justiça da União Europeia já se pronunciou em termos particular-mente exigentes sobre a necessidade de audiência prévia nestes procedimentos de protecção internacional no Acórdão de 22 de novembro de 2012, proferido no âmbito do processo C-277/11, processo M. M. contra Minister for Justice, Equality and Law Reform, Irlanda.

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A decisão de  inadmissibilidade é notificada ao requerente, com a informação de que deve abandonar o país no prazo de 20 dias, sob pena de expulsão imediata uma vez esgotado esse prazo (artigo 21.º, núme- ros 2 e 3).

Há possibilidade de impugnação judicial desta decisão com efeito suspensivo, tendo o requerente oito dias para apresentar petição no tribunal (artigo 22.º, número 1 da lei do asilo). Veja-se, a propósito deste prazo, o Acórdão 587/2005, de 2 de novembro, do Tribunal Constitucional, em que o Tribunal Constitucional decidiu, face à anterior lei, que um prazo de oito dias para impugnar contenciosamente uma decisão de recusa do pedido de asilo, por inadmissibilidade, não era um prazo exíguo. A atual lei mantém o mesmo prazo.

3.1.2.1. Procedimento especial para os pedidos apresentados nos postos de fronteira

A lei do asilo prevê um procedimento especialmente célere para a apreciação dos pedidos apresentados nos postos de fronteira, tendo a lei aqui em vista as situações em que o requerente não cumpre os requisitos previstos na lei de estrangeiros para entrar em território nacional e apresenta às autoridades portuguesas pedido de proteção internacional. O que carac-teriza fundamentalmente estes procedimentos é a sua urgência, dado que os requerentes permanecem, normalmente, detidos na zona internacional do porto ou aeroporto enquanto aguardam decisão quanto à admissibilidade do seu pedido e essa circunstância obriga, naturalmente, as autoridades, a uma atuação muito expedita (veja-se o disposto no artigo 35.º-A, número 3, alínea a)).

No caso destes pedidos, a lei prevê que a decisão quanto à admissibi-lidade dos pedidos seja proferida no prazo de sete dias após a apresentação do pedido (artigo 24.º, número 4), sendo dada ao requerente a oportuni-dade de prestar declarações através de uma entrevista, aplicando-se aqui as regras do artigo 16.º da lei do asilo, por remissão do artigo 24.º, número 3 da mesma lei. Nestas situações, em que urgência é evidente, a lei refere expressamente que a entrevista vale como audiência prévia do interessado (artigo 24.º, número 2, in fine).

Cumpre, no entanto, ter presente que a detenção, que era, até 2014, a regra para os casos de pedidos apresentados nos postos de fronteira, deve

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passar a ser a exceção, face ao disposto no artigo 35.º-A, só justificada por motivos de segurança nacional, ordem pública, saúde pública ou quando exista risco de fuga e, mesmo nestas situações, só se outras medidas alter-nativas menos gravosas, como a apresentação periódica no SEF ou a obri-gação de permanência na habitação, provem ser ineficazes170.

A detenção de requerentes de asilo é excecional e nunca pode ser justificada pela apresentação do pedido em si mesma, mas sim sempre pela circunstância de o requerente não cumprir os requisitos que lhe permitam entrar em território nacional e ter, por isso, que aguardar que uma primeira avaliação do pedido quanto à sua admissibilidade seja proferida para, depois, poder beneficiar de uma autorização de residência provisória e poder perma-necer e circular em território nacional até à decisão final do pedido (ver artigo 35.º-A da lei do asilo). A detenção deve ser, por isso, muito curta, devendo ser salvaguardada a situação de crianças (e não apenas dos menores não acompanhados, ao contrário do que sugere a lei no artigo 35.º-B, número 6) e de outros requerentes especialmente vulneráveis, nos termos dos artigos 77.º a 80.º do capítulo VIII da lei do asilo.

Aparentemente a lei garante a celeridade do procedimento em caso de requerentes detidos no artigo 24.º, número 4 e no artigo 26.º, número 4, em que se prevê que, se o prazo de sete dias não for cumprido, o requerente entra em território nacional. Porém, verifica-se que podem ocorrer duas importantes exceções dilatando significativamente o prazo dos sete dias. A primeira encontra-se prevista no artigo 39.º da lei do asilo in fine e refere-se às situações dos pedidos que devam passar por um procedimento especial para a determinação do Estado-membro que deve assumir a responsabilidade pelo pedido. A segunda resulta da previsão da possibilidade de impugnação judicial com efeito suspensivo no artigo 25.º da lei do asilo. A lei prevê um prazo curto para a apresentação da petição inicial, de quatro dias (artigo 25.º, número 1), mas a decisão judicial, apesar da previsão da sua tramitação de acordo com o estabelecido no Código do Processo nos Tribunais Adminis-trativos para a intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias, sempre tardará, previsivelmente, algumas semanas, até mesmo porque, na maior parte das vezes, se impõe a nomeação de defensor oficioso171.

170 Estas normas resultam da transposição das Diretivas 2013/32/UE e 2013/33/UE.171 A lei prevê a celebração de um Protocolo entre o Ministério da Administração

Interna e a Ordem dos Advogados, no artigo 25.º, número 4, in fine, mas, tanto quanto sabemos, este não foi ainda ser celebrado.

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Estas duas situações fazem com que um número significativo dos requerentes que apresenta os seus pedidos nos postos de fronteira fique detido muito para além dos sete dias que a lei prevê para a decisão sobre a admissibilidade.

A lei do asilo prevê no artigo 35.º-B, número 1 que a detenção não ultrapasse nunca os 60 dias. Este prazo de sessenta dias é superior ao prazo máximo previsto na Diretiva 2013/32/UE, de 26 de junho para os proce-dimentos na fronteira, em que se prevê que “na ausência de uma decisão no prazo de quatro semanas, o requerente de asilo deve ser autorizado a entrar no território do Estado-membro (...)” (artigo 43.º, número 2 da Diretiva 2013/32/UE, de 26 de junho). Esta falha na transposição – grave, atendendo à sensibilidade da matéria em causa – deve ser rapidamente corri-gida, impondo-se, no entanto, desde já, em nome do princípio do primado do Direito da União Europeia, que não se aplique o prazo máximo de 60 dias previsto na lei portuguesa, mas sim o prazo de quatro semanas imposto pela Diretiva como prazo máximo.

Há um outro problema que é suscitado pela articulação entre a legis-lação geral e a legislação sobre asilo e que se relaciona com a confiden-cialidade dos pedidos de asilo. Grande parte dos pedidos apresentados nos postos de fronteira surge na sequência de uma decisão de recusa de entrada em território nacional, nos termos dos artigos 32.º e seguintes da lei de estrangeiros. Confrontados com tal decisão e na iminência de serem obri-gados a regressar, muitos estrangeiros apresentam o pedido de proteção internacional. Sucede, porém, que, nos termos do artigo 38.º, número 1 da lei de estrangeiros, a decisão de recusa de entrada é imediatamente comu-nicada à representação diplomática e consular do país de origem, mesmo que a pessoa em causa possa ter motivos para querer omitir às autori-dades do país de origem o seu paradeiro e mesmo que venha a ser apre-sentado pedido de asilo. Esta comunicação às autoridades diplomáticas e consulares do país de origem é referida na Convenção de Viena sobre as Relações Consulares, concretamente no artigo 36.º, número 1, alínea b), mas faz-se aí referência expressa a que tal comunicação só deve suceder quando a pessoa em causa o requeira. Impõe-se que a lei de estran-geiros venha a ser alterada e que a comunicação às autoridades do país de origem ocorra apenas se o estrangeiro assim o requerer expressamente. De outro modo, quando venha a suceder a apresentação de um pedido de asilo, a segurança do requerente poderá estar irremediavelmente posta em causa.

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Se o pedido apresentado no posto de fronteira vier a ser considerado inadmissível, esta decisão, em princípio, “determina o regresso do reque-rente ao ponto onde iniciou a sua viagem” (artigo 26.º, número 3) e será, normalmente, da responsabilidade da transportadora que trouxe o estrangeiro para território nacional sem que este reunisse as condições para entrar em território nacional, nos termos do artigo 41.º da lei de estrangeiros.

3.1.3. O procedimento Dublin

Este procedimento serve a lógica do princípio da exclusividade ou da oportunidade única no espaço da União para a apresentação de um pedido de asilo172.Com a criação de um espaço sem fronteiras internas na Europa, os Estados decidiram estabelecer normas, definindo qual é o Estado respon-sável pela apreciação dos pedidos de asilo apresentados por nacionais de Estados terceiros ou apátridas, de modo a garantir que todos os pedidos eram apreciados uma vez – apenas uma – no interior das fronteiras da União Europeia, visando “desencorajar os pedidos de asilo múltiplos (sucessivos ou simultâneos) e solucionar conflitos negativos de competência entre os Estados-membros” que resultavam da invocação da regra do primeiro país de asilo e que geravam a situação dos chamados “requerentes de asilo em órbita”173.

Foi assim assinada, em 1990, a Convenção de Dublin sobre a deter-minação do Estado responsável pela análise de um pedido de asilo apresen-tado num Estado-membro das Comunidades Europeias, que veio a entrar em vigor em setembro de 1997174.

Esta Convenção, instrumento clássico de direito internacional, viria depois a ser transformado num instrumento normativo de Direito da União, concretamente, um regulamento comunitário, o Regulamento CE n.º 343/2003 do Conselho, de 18 de fevereiro de 2003, que estabelece os

172 Ver sobre este Lucas Pires, “O Direito e a Política de Asilo na União Europeia – Por uma maior juridificação do direito comunitário de asilo”, em A Inclusão do Outro, Coimbra, Coimbra Editora, 2002, p. 34.

173 Garcia da Rocha, “O Direito de Asilo no âmbito comunitário e no acordo de Schengen”, em Portugal, a Europa e as Migrações, Lisboa, Conselho Económico e Social, 1995, p. 219.

174 Ver sobre esta, Agnès Hurwitz, “The 1990 Dublin Convention: A Compreensive Assessment”, em International Journal of Refugee Law, 1999, p. 646.

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critérios e mecanismos de determinação do Estado-membro responsável pela análise de um pedido de asilo apresentado num dos Estados-membros por um nacional de um país terceiro, conhecido como o Regulamento Dublin II175. Este regulamento não introduziu alterações significativas aos critérios que foram definidos na Convenção de Dublin176.

O Regulamento atual, conhecido como Dublin III, é o Regulamento 604/2013, de 26 de junho, que entrou em vigor em julho de 2013, que mantém, no essencial, o mesmo sistema, mas introduziu-lhe alguns corre-tivos e algumas garantias adjetivas, que não foram, no entanto, suficientes para eximir este instrumento normativo às severas críticas de que foi alvo, desde o momento da sua adoção.

O sistema Dublin compreende ainda o Regulamento EURODAC (Regulamento 603/2013, de 26 de junho, que autoriza o registo das impres-sões digitais de requerentes de asilo e de nacionais de países terceiros que atravessem irregularmente fronteiras externas da União). Os Estados--membros podem ainda registar as impressões digitais de estrangeiros que se encontrem irregularmente no seu território. Estes dados são enviados para a unidade central EURODAC, que os regista e faz a respetiva comparação, permitindo detetar situações de pedidos múltiplos ou sucessivos apresen-tados pelo mesmo requerente.

De modo a poder decidir qual o Estado responsável pela análise de um pedido, o Regulamento Dublin estabelece uma hierarquia de critérios de alocação daquela responsabilidade. De acordo com o artigo 7.º do Regula-mento, os critérios estabelecidos devem ser aplicados pela ordem com que são descritos no Regulamento.

Assim, nos termos do artigo 8.º, o primeiro critério aplica-se aos “menores não acompanhados”, sendo o Estado membro responsável aquele onde um membro da sua família se encontra em situação regular, desde que

175 Neste momento, está a ser discutida a proposta de um novo Regulamento Dublin III, que ainda não foi, no entanto, aprovada. O texto em discussão intitula-se Commission (EC) Proposal for a Regulation of the European Parliament and of the Council establishing the criteria and mechanisms for determining the Member State responsible for examining an application for international protection lodged in one of the Memeber States by a third--country national or a stateless person COM(2008) 0243 final, 3 de Dezembro de 2008.

176 Ver Ulrike Brandl, “Distribution of asylum seekers in Europe? Dublin II Regula-tion determining the responsability for examining an asylum application, em Emergence of a European Asylum Policy / L´émergence d´une politique européenne d’asile, Bruxelles, Bruylant, p. 33.

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seja esse o “superior interesse da criança”. Na falta de qualquer membro da família nos termos expostos, é responsável o Estado onde o pedido foi apresentado. Nos termos do artigo 9.º, sempre que um requerente de asilo tenha membros da sua família – cônjuge, filhos menores não casados ou pais, no caso de o requerente ser menor não casado – a residir com estatuto de refugiado num Estado-membro, este deve ser responsável pela análise do novo pedido, se a pessoa em causa assim o desejar (e manifestar por escrito). Nos termos do artigo 10.º, se um pedido for apresentado por alguém que tenha ligações familiares com um requerente de asilo cujo pedido está a ser analisado por outro Estado-membro, este deve assumir a responsabilidade pelo novo pedido, se as pessoas em causa assim o expressarem. O artigo 11.º prevê as regras para as situações em que diversos membros da família tenham apresentado pedidos de proteção internacional perante o mesmo Estado-membro em datas próximas e em que a determinação do Estado responsável pela sua apreciação deve ser feita conjuntamente de modo a que Dublin não seja fator de desmembramento da família, estabelecendo-se regras especiais que responsabilizam o Estado que é responsável pela apli-cação da parte mais numerosa de membros da família ou, subsidiariamente, o Estado responsável pela apreciação do pedido do requerente mais velho. Os artigos 8.º a 11.º do Regulamento privilegiam, assim, as ligações familiares como critérios de alocação da responsabilidade pela análise de um pedido de asilo.

O artigo 12.º prevê que, quando um requerente de asilo esteja munido de uma autorização de residência ou de um visto emitido por um Estado--membro, é o Estado que tenha autorizado a sua presença em território europeu que deve assumir a responsabilidade pela análise do respetivo pedido de asilo177. O artigo 13.º atribui responsabilidade pela análise do pedido ao Estado que, de acordo com os dados obtidos pelo sistema EURODAC tenha sido a “porta de entrada” do requerente, por via terrestre, marítima ou aérea, no espaço da União ou, em alternativa, ao Estado no qual o requerente tenha residido por um período mínimo de cinco meses. Estes dois artigos do Regulamento basicamente ligam a responsabilidade pela análise do pedido de asilo à atuação dos Estados no sentido de controlarem

177 O mesmo artigo 9.º prevê regras de alocação da responsabilidade no caso de o requerente estar na posse de mais do que uma autorização de residência ou mais do que um visto e no caso de tais títulos já terem perdido a sua validade. Prevê também as situações em que a obtenção de visto ou de autorização de residência resultou de actuação fraudulenta do requerente.

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de modo eficaz as entradas no território da União e a concessão de títulos válidos de permanência no seu território.

O artigo 14.º atribui a responsabilidade pelo pedido ao Estado que permita a entrada do requerente no território sem visto, exceto se houver um visto emitido por outro Estado, situação em que é este último a assumir a responsabilidade. O artigo 15.º atribui a responsabilidade ao Estado que recebe o pedido formulado na zona internacional de trânsito do aeroporto.

Se nenhum destes critérios se aplicar no caso concreto, o Estado--membro responsável será aquele onde o pedido é apresentado pela primeira vez, nos termos do artigo 3.º, número 2 do Regulamento 604/2013/UE.

A aplicação sucessiva destes critérios na busca pelo Estado responsável pela determinação do estatuto de refugiado é mitigada pela existência de cláusulas que permitem aos Estados levar em consideração outros aspetos na decisão de transferir ou não o requerente de asilo. Referimo-nos às cláu-sulas humanitárias previstas nos artigos 16.º e 17.º e à “cláusula de sobe-rania”, prevista no artigo 3.º /2, ambos do Regulamento UE 604/2013, de 26 de junho.

A cláusula humanitária do artigo 17.º não é uma pura cláusula discri-cionária e está vocacionada para considerar aspetos relacionados com as ligações familiares dos requerentes. Assim, nos termos do artigo 17.º, número 1, os Estados podem decidir reunir os membros de uma família, por motivos familiares ou culturais, desde que as pessoas em causa deem o seu consentimento.

Nos termos do artigo 16.º, relativo a dependentes, os Estados deverão manter juntos ou reunirão um requerente de asilo em situação de especial vulnerabilidade por se tratar de pessoa dependente da assistência de outra, se encontrar grávida ou ter dado à luz recentemente, ser portadora de defi-ciência ou pessoa de idade avançada com membros da sua família que se encontrem no território de um dos Estados-membros, desde que os laços familiares existissem já no país de origem178.

Já a cláusula de soberania, prevista no artigo 3.º, era, até 2013, uma faculdade discricionária dos Estados de assumirem a análise de um pedido mesmo não sendo, de acordo com os critérios de Dublin, os responsáveis pelo mesmo.

178 Ver sobre a aplicação deste artigo 15.º, número 2, do Regulamento Dublin II a decisão do TJUE no processo C-245/11, K contra Bundesasylamt, de 6 de novembro de 2012.

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Esta cláusula servia também para permitir aos Estados afastar a apli-cação dos critérios Dublin sempre que as suas obrigações internacionais os obrigassem a tal, isto é, sempre que a aplicação hierárquica dos critérios pudesse conduzir a resultados incompatíveis com aquelas obrigações.

Esta cláusula foi objeto de particular atenção por parte da doutrina desde que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem considerou, no caso M.S.S. contra a Bélgica e a Grécia, de 21 de janeiro de 2011, que a transferência – no caso concreto, requerida e executada pela Bélgica – de requerentes de asilo para um Estado-membro em dificuldades pelo elevado número de pedidos que estava a receber – concretamente, a Grécia – cons-tituía violação do artigo 3.º da CEDH. O Tribunal de Justiça da União Europeia secundou esta posição na decisão de 21 de dezembro de 2011 no caso N.S..

Refletindo esta evolução, o Regulamento 604/2013/UE veio prever expressamente que quando haja falhas sistémicas no sistema de asilo do Estado para que o requerente deva ser transferido, havendo o risco de ser desrespeitado o direito absoluto do requerente a não ser sujeito a penas ou tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos, não pode haver lugar à trans-ferência do requerente ainda que os critérios Dublin se achem cumpridos.

A aplicação dos critérios previstos no Regulamento pode originar dois tipos de procedimentos: procedimento de “tomada a cargo” – “take charge procedures”, que visa a alocação de responsabilidade de acordo com os critérios estabelecidos – e procedimentos de “retoma a cargo” – “take back procedures”, dirigidos às situações de pedidos múltiplos, em que o que está em causa é colocar o requerente no primeiro país onde requereu o asilo.

A lei portuguesa prevê um procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de asilo, nos artigos 36.º a 40.º, em que o SEF solicita às autoridades de outro Estado-membro a aceitação de pedido pelo qual aquele seja responsável e, aceite a responsabilidade pelo Estado requerido, o diretor nacional do SEF profere, no prazo de cinco dias, decisão de transferência da responsabilidade que é notificada ao requerente e comunicada ao representante do ACNUR e ao Conselho Português para os Refugiados, desde que o requerente o consinta. Esta decisão é suscetível de impugnação judicial perante os tribunais administrativos no prazo de cinco dias, com efeito suspensivo.

Prevê-se ainda a possibilidade inversa de ser Portugal solicitado para aceitar um pedido de asilo apresentado por outro Estado, tendo, nesta situação, o SEF dois meses para decidir da respetiva aceitação, salvo nos

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casos qualificados como urgentes pelo Estado onde foi apresentado o pedido, em que o prazo é reduzido para oito dias (artigo 40.º).

Este sistema de transferência dos procedimentos de asilo entre os Estados-membros suscitou sempre – e continua a suscitar – problemas do ponto de vista da sua eficácia179 e eficiência180 e, sobretudo, do ponto de vista da proteção dos direitos dos requerentes. Centrar-nos-emos nos problemas do sistema nesta última vertente.

O sistema de Dublin tem sido aplicado desde finais dos anos 90 igno-rando que os pedidos de asilo na União Europeia não são apreciados segundo critérios uniformes. Mesmo tendo sido dados passos importantes no sentido da harmonização sobretudo desde a entrada em vigor das Diretivas, continua a ser fácil de verificar que as hipóteses de sucesso de um mesmo pedido variam enormemente consoante o Estado-membro responsável pela respe-tiva apreciação.

A circunstância de se proceder à determinação do Estado responsável pelo pedido antes de se proceder à apreciação do pedido propriamente dito cria uma dilação importante no procedimento de análise dos pedidos, deixando os requerentes um tempo suplementar à espera de uma decisão quanto a uma eventual transferência, em situação de grande vulnerabilidade.

O sistema Dublin incentiva os Estados a recorrerem à detenção dos requerentes, uma vez que tal lhes garante uma maior facilidade na execução de uma futura transferência.

Estas são as objeções maiores que a aplicação de um tal sistema suscita e que tiveram recentemente importantes ecos na jurisprudência dos tribu-nais europeus.

179 Embora não haja dados estatísticos muito seguros sobre o número de pedidos de transferências relacionadas com este sistema, é notório que os pedidos são poucos e as trans-ferências são efectivamente muito, muito poucas e que estas têm lugar, fundamentalmente, nas situações de pedidos múltiplos, sendo o requerente trasferido para o primeiro Estado onde apresentou o pedido. Os outros critérios preferenciais de alocação de responsabilidade permanecem praticamente sem aplicação. Veja-se o documento de avaliação do sistema Dublin elaborado pela Comissão Europeia em 2007 – Report from the Commission to the European Parliament and the Council on the evaluation of the Dublin system SEC (2007) 742, COM/2007/0299.

180 O estudo referido na nota anterior não procedeu a uma análise dos custos do sistema, mas existe uma percepção generalizada de que o sistema é caro. Verificou-se ainda que há Estados que transferem entre si um número muito similar de requerentes – o que se revela um desperdício de recursos sem nenhuma vantagem para os intervenientes.

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No que ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem diz respeito, já desde há muito que este vinha sendo confrontado com queixas de reque-rentes de asilo que afirmavam que a aplicação dos critérios de Dublin no seu caso particular implicariam o insucesso dos seus pedidos e o seu retorno ao país de origem, representando este uma grave ameaça aos seus direitos fundamentais, concretamente ao direito a não ser sujeito a tortura, penas ou tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos, nos termos previstos no artigo 3.º da Convenção. O primeiro caso em que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem se pronunciou claramente sobre esta situação foi no caso TI versus Reino Unido, de 7 de março de 2000, em que estava em causa uma queixa de um cidadão do Sri Lanka da etnia Tamil que apresentara o seu pedido na Alemanha, tendo este sido rejeitado. Fugiu para o Reino Unido onde pediu asilo, consciente de que o seu pedido tinha melhores hipóteses de ser bem sucedido naquele país. O Reino Unido decidiu, no entanto, não o apreciar e transferir o requerente de novo para a Alemanha, por aplicação da Convenção de Dublin vigente naquela altura. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, muito embora tenha considerado que não havia risco de a Alemanha violar as obrigações que decorrem para os Estados-parte da CEDH, nomeadamente no que diz respeito ao artigo 3.º, afirmou que a aplicação dos critérios de Dublin não dispensa os Estados de verificarem se a transferência dos requerentes pode ou não iniciar uma cadeia de trans-ferências dos requerentes que venha no final a resultar numa violação dos direitos da Convenção Europeia dos Direitos do Homem que os Estados tinham o dever de proteger.

O passo decisivo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem nesta matéria veio, no entanto, a ser dado mais recentemente no caso M.S.S contra a Bélgica e a Grécia, de 21 de janeiro de 2011, em que a queixa foi apresen-tada por um afegão que entrou na União Europeia através da Grécia, onde foi detido e posteriormente libertado com uma ordem de expulsão do terri-tório grego, não tendo chegado a pedir asilo na Grécia. Depois conseguiu chegar à Bélgica onde apresentou pedido de asilo. Uma vez que a Grécia tinha gravado as suas impressões digitais, a Bélgica requereu ao Estado grego que assumisse a sua responsabilidade por este pedido. A Grécia não respondeu a este requerimento e, de acordo com o artigo 18, número 7 do Regulamento Dublin, este silêncio vale como aceitação tácita do pedido. O requerente veio a ser transferido para a Grécia onde foi imediatamente detido em muito más condições, veio a ser libertado e ficou a viver na rua. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem considerou que a Grécia violou

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os artigos 3.º e 13.º da CEDH pelas condições de detenção e de vida a que sujeitou o requerente e pela circunstância de o ter deixado demasiado tempo sem uma análise substancial do seu pedido e sem acesso efetivo à proteção judicial. Mais relevante, para efeitos de avaliação do sistema Dublin é o facto de o Tribunal considerar que a Bélgica também violou o artigo 3.º da CEDH ao tê-lo transferido para a Grécia, quando a falência do sistema grego de acolhimento de requerentes de asilo era conhecida pelas autori-dades belgas e o próprio requerente já tinha sofrido na Grécia um trata-mento degradante aquando da sua entrada no território europeu, facto de que informou as autoridades gregas.

Este caso leva às últimas consequências a decisão do caso TI contra o Reino Unido e produz um profundo abalo no funcionamento do sistema Dublin, pois significa que os Estados-membros da União Europeia não podem partir do princípio de que as transferências de requerentes de asilo entre si são seguras do ponto de vista da proteção dos mais básicos direitos humanos e põe a nu as falhas existentes em Estados da União em matéria de proteção dos requerentes de proteção internacional181.

O Tribunal de Justiça veio a ser confrontado com dois casos seme-lhantes: o caso N.S. (processo n.º C-411/10), em que também estava em causa a transferência de um afegão do Reino Unido para a Grécia, e o caso de cinco requerentes provenientes do Afeganistão, Irão e Algéria (processo n.º C-493/10), que entraram em território europeu via Grécia e que depois chegaram à Irlanda que pretendia o seu retorno para a Grécia, de acordo com os critérios Dublin. Na decisão que veio a ser tomada conjuntamente nestes dois casos, o Tribunal secundou a decisão do Tribunal de Estrasburgo no caso M.S.S. e entendeu que, muito embora não se deva entender que qualquer desrespeito por direitos fundamentais dos requerentes obste às transferên-cias Dublin, quando se verifiquem deficiências sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes, como aquelas que verificavam na altura na Grécia, e estas sejam de tal modo evidentes que os Estados-membros não possam ignorá-las, os Estados não podem proceder a transferências Dublin para esses Estados com sistemas em colapso. Os Estados que pretendam executar transferências estão pois obrigados a não

181 Em decisões posteriores relativas a Itália o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem considerado não haver nesse Estado-membro falhas sistémicas semelhantes às que existiam na Grécia. Ver casos Mohammed Hussein contra Holanda e Itália, de 2 de abril de 2013, Halimi contra Áustria e Itália e Abubeker contra Áustria e Itália, ambos de 18 de junho de 2013.

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transferir requerentes de asilo nestas situações para os Estados responsáveis de acordo com os critérios do Regulamento Dublin II.

Na sequência destas decisões dos tribunais europeus de Estrasburgo e do Luxemburgo, diversos Estados – sobretudo por ação das respetivas auto-ridades judiciárias começaram a bloquear diversas transferências Dublin não só para a Grécia, mas também para outros Estados, como a Hungria ou a Bulgária, relativamente aos quais dúvidas se poderiam colocar quanto à fiabilidade dos respetivos sistemas de proteção internacional. 

O resultado desta evolução jurisprudencial está plasmado no artigo 3.º do Regulamento 604/2013/UE, de 26 de junho suprarreferido. A cláu-sula de soberania aí prevista impõe aos Estados um juízo de prognose relativamente à situação a que o requerente ficará exposto após a transfe-rência Dublin, devendo o Estado onde se encontra o requerente paralisar o processo de transferência sempre que entenda que esta pode significar a sujeição do requerente a tratamento cruel, degradante ou desumano num Estado-membro.

A jurisprudência portuguesa em matéria de asilo até à adoção do Regulamento 604/2013 foi, ao contrário do que sucedeu noutros Estados europeus, bastante indiferente a estas precauções que hoje se impõem em relação ao sistema criado pelo Regulamento Dublin, tendendo a aceitar uma aplicação dos critérios Dublin sem quaisquer reservas. Essa indiferença é particularmente visível no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 29 de setembro de 2011, no Processo 07810/11, após a decisão no caso M.S.S., em que pode ler-se, relativamente à cláusula de soberania prevista no artigo 3.º, número 2, do Regulamento 343/2003, que “esta norma, cuja análise não configura uma questão a apreciar pelo tribunal recorrido, mas sim e apenas um mero argumento jurídico invocado pelo A., confere apenas uma faculdade ao Estado, neste caso a Portugal, faculdade essa que Portugal não exerceu”. Mais recentemente, no mesmo sentido, o Acórdão do mesmo Tribunal, de 29 de agosto, no Processo 11359/14, em que estava em causa uma transferência para a Hungria, um dos Estados-membros consi-derados “de risco”, a sentença judicial é também imune a quaisquer consi-derações de ordem humanitária. Esta confiança no sistema Dublin, como se não pudessem existir boas razões, razões assentes nos compromissos internacionais – e mesmo obrigações constitucionais – do Estado português para recusar uma aplicação cega dos critérios a aplicar hierarquicamente, e a interpretação do artigo 3.º como uma faculdade puramente discricionária do Estado, têm hoje pouca sustentação.

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3.1.4. A fase de apreciação do mérito dos pedidos (fase de instrução)

Superada a fase da admissibilidade, o requerente passa, como vimos, a beneficiar de uma autorização de residência provisória, válida por quatro meses e renovável, e passa a beneficiar de um estatuto mais protegido,  nomeadamente, passa a beneficiar também do acesso ao mercado de trabalho, nos termos do artigo 54.º da lei do asilo182.

Nesta fase compete à Administração, concretamente ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, proceder a diligências requeridas pelo autor do pedido e averiguar “todos os factos cujo conhecimento seja conve-niente para uma justa e rápida decisão” (artigo 28.º, número 1, da lei do asilo).

Esta decisão tem de ser, nos termos da lei, proferida pelo Ministro da Administração Interna, nos termos do artigo 29.º da lei atualmente em vigor, estando previsto um prazo de instrução de seis meses. Embora a lei não o diga expressamente, deduz-se da interpretação conjunta dos artigos 27.º e 28.º que este prazo se conta da data da notificação da decisão de admissão do pedido de asilo. Este prazo pode ser prorrogado até aos nove meses em casos de especial complexidade.

As regras para a condução desta fase (que a lei designa como fase de instrução) encontram-se nos artigos 18.º e 28.º da lei do asilo, que contêm, fundamentalmente, regras sobre a obtenção e valoração da prova.

O requerente pode, a todo o momento, desistir do pedido, o que deter-mina a extinção do procedimento, a ser declarada pelo Ministro da Admi-nistração Interna. Se, chamado a colaborar com as autoridades, não o fizer, originando com este seu comportamento a paralisia do procedimento, tal facto dá também origem a uma extinção do procedimento. Se se apresentar novamente às autoridades pode requerer a reabertura do procedimento, nos termos previstos no artigo 32.º da lei do asilo.

Apesar de ser esta a fase que se designa como de instrução, na prática de aplicação da lei 27/2008, de 30 de junho, na sua versão originária, veri-ficávamos que poucas diligências instrutórias eram efetuadas nesta fase por parte da Administração, concretamente do Gabinete de Asilo e dos Refu-giados do SEF. A entrevista era feita antes da decisão de admissibilidade,

182 Sobre os direitos dos requerentes de protecção internacional, ver Maria José Rangel de Mesquita, Os Direitos Fundamentais dos Estrangeiros na Ordem Jurídica Portuguesa: uma perspetiva constitucional, Coimbra, Almedina, 2013, p. 222 a 225.

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não sendo repetida nesta fase e mesmo a investigação sobre a situação no país de origem não é substancialmente diferente nas decisões sobre a admis-sibilidade e nas decisões finais. As decisões de admissibilidade anunciam quase sempre decisões finais positivas, sendo excecionais os casos em que tal não acontece.

Importa, no entanto, ter presente, que a lei refere expressamente que, nesta fase, as decisões deverão ser informadas por pareceres de peritos, que possam ajudar à melhor instrução destes procedimentos. De parti-cular relevância podem revelar-se as perícias médico-legais, em particular naquelas situações em que haja dúvidas quanto a situações de violência sexual ou outras formas de violência que tenham deixado marcas físicas de cuja autenticidade as autoridades duvidem. Sobre esta matéria, a Dire-tiva 2013/32/UE, no seu artigo 18.º veio introduzir normas que valorizam precisamente estes exames médicos para ver se há indícios de perse-guição ou danos graves. Os Serviços de Medicina Legal portugueses rara-mente são chamados a colaborar com as autoridades nos procedimentos de asilo e a aplicar a estes pedidos o Protocolo de Istambul – Manual para a Investigação e Documentação Eficazes da Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Degradantes ou Desumanos, elaborado no âmbito do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos183.

Finda a instrução, compete ainda ao SEF elaborar “proposta funda-mentada de concessão184 ou recusa do asilo” (artigo 29.º, número 1). A lei omite aqui, neste artigo 29.º, qualquer referência à decisão de concessão de proteção subsidiária, muito embora tal só possa ser considerado um lapso do legislador, porque o desfecho destes procedimentos pode ser um de três:

183 Veja-se, neste sentido, a decisão do Tribunal Central Administrativo do Sul, de 24 de fevereiro de 2011, no processo 07157/11, em que o tribunal entendeu “existir um défice de instrução procedimental gerador da ilegalidade do acto final do procedimento no caso presente“, porque uma boa decisão do caso implicaria “determinar se esta é portadora de sequelas físicas visíveis resultantes das sevícias que lhe terão sido infligidas pelo namorado César, o que poderá ser constatado através de uma perícia médico-legal“, no caso concreto não realizada.

184 Em rigor, a lei devia referir-se ao “reconhecimento” e não à “concessão” do esta-tuto de refugiado, uma vez que se trate de um acto com valor declarativo e não constitutivo. É-se refugiado, porque se preenchem os pressupostos para aceder a esse estatuto, tal como definidos na Constituição e na Convenção de Genebra sobre o Estatuto do Refugiados de 1951, limitando-se o Estado a reconhecer tal facto.

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reconhecimento do estatuto de refugiado, concessão da proteção subsidiária ou recusa da proteção internacional185.

A proposta de decisão é notificada ao requerente, que pode pronunciar--se sobre a mesma num prazo de 10 dias, assim se satisfazendo a garantia de audiência prévia do interessado (artigo 29.º, número 2 da lei do asilo) Não se prevê, no entanto, que o SEF aprecie as alegações do requerente, revendo a proposta que consta do número 1. Pensamos, no entanto, que de modo a não reduzir a audiência prévia a uma mera formalidade destituída de qualquer efeito útil, se impõe tal revisão da proposta.

É dado conhecimento da proposta de decisão também ao Conselho Português para os Refugiados (desde que o requerente tenha consentido na intervenção deste), que pode também pronunciar-se no mesmo prazo sobre essa mesma proposta. Esse parecer ou é também ponderado nos termos referidos no parágrafo anterior ou deve, pelo menos, ser remetido à enti-dade responsável pela decisão, o Ministro da Administração Interna, como estava, aliás, previsto na versão originária da lei 27/2008, de 30 de Junho.

O Ministro da Administração Interna emite decisão final sobre o proce-dimento no prazo de oito dias (artigo 29.º, número 5 da lei do asilo).

185 A legislação de alguns Estados, nomeadamente a Itália, prevê ainda a possibilidade de, na sequência de um pedido de protecção internacional, vir a ser concedido ao requerente pelo Estado um terceiro estatuto de protecção internacional, mais enfraquecido do que o estatuto de refugiado ou a autorização de residência por razões humanitárias, desde logo, por lhe corresponder uma decisão discricionária do Estado. A previsão legal de um tal “esta-tuto C” visa, fundamentalmente, acautelar aquelas situações em que, não obstante não se verificarem as condições para a concessão de uma daquelas duas formas de protecção, o requerente também não possa ser expulso para o país de origem por correr risco de sofrer tortura ou penas e tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos, nos termos previstos no artigo 3.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e no artigo 19.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. A legislação portuguesa não acautela esta possi-bilidade, que se encontra expressamente referida no artigo 143.º da lei de estrangeiros, como fundamento válido de oposição a uma decisão de afastamento coercivo ou de expulsão. Deve admitir-se que o artigo 143.º da lei de estrangeiros se aplica também aos casos de expulsão determinada nos termos do artigo 21.º ou do artigo 26.º, número 3 da lei do asilo. No entanto, não fica esclarecida nem na lei de estrangeiros nem na lei do asilo qual o estatuto destas pessoas cuja expulsão não é possível. Poderá entender-se que se deve aplicar aqui o regime excepcional do artigo 123.º da lei de estrangeiros, mas não está prevista nenhuma articulação entre esta figura e o procedimento de protecção internacional. Ver sobre a interpretação do artigo 123.º da lei de estrangeiros, o acórdão do Tribunal central Administrativo do Norte, de 7 de março de 2013, no processo 01949/10.8BEPRT, em que aquele Tribunal entendeu que o procedimento é de natureza oficiosa e não susceptível de ser iniciado por requerimento do interessado.

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A decisão final é notificada ao requerente e comunicada ao Conselho Português para os Refugiados. Esta decisão é suscetível de impugnação judicial, no prazo de 15 dias, com efeito suspensivo (artigo 30.º).

A decisão de recusa implica que a perda de estatuto de requerente de asilo e a sujeição do estrangeiro ao regime da lei de estrangeiros. A lei concede, no entanto, ao requerente, um período provisório de 30 dias em que este pode ainda permanecer em território nacional, não esclarecendo, no entanto, ao abrigo de que estatuto pode permanecer em território nacional (artigo 31.º, número 1 da lei do asilo).

3.2. regrAs sobre provA

O procedimento de asilo é de índole essencialmente probatória. Através dele tenta-se, fundamentalmente, estabelecer se a pessoa que requer a proteção tem ou não um receio justificado de sofrer perseguição ou ofensa grave, caso regresse ao seu país de origem. Esta prova é particularmente difícil.

Em primeiro lugar, está em causa um juízo de prognose: saber se, no futuro e na eventualidade do regresso de uma pessoa a um local, esta corre riscos e de que gravidade são esses riscos. Em segundo lugar, os meios de prova são quase sempre muito escassos, não existindo, na maioria das vezes, nenhuns documentos em forma escrita. Muitas vezes, a pessoa leva consigo simplesmente a sua história.

Face a estas dificuldades impõe-se, em matéria de prova, a definição de regras claras quanto aos deveres de carrear prova para o procedimento, quanto ao grau de convicção que as autoridades nacionais têm de ter para reconhecer o direito de asilo (a medida da prova186); e quanto à definição da decisão (positiva ou negativa) que se impõe nos casos (que serão – à partida, sabemo-lo – muitos) em que tal grau de convicção não seja alcançado (ónus da prova ou de persuasão187, entendido em sentido objetivo, como a deter-minação de quem deve suportar os riscos de não produção de prova sufi-

186 Em inglês designado“standard of proof” ou, em alemão, “Beweismass”.187 A ideia de “burden of persuasion” vem do sistema americano que a aplica aos

jurados, mas deve entender-se que quando estão em causa juízos de prognose que não se reportam a factos, mas essencialmente à avaliação que deles se faça, é este o termo mais correcto. Neste sentido, Juliane Kokott, The Burden of Proof in Comparative and Interna-tional Human Rights Law, The Hague, Kluwer Law International, 1998, p. 3.

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ciente188). Sem essas regras, o grau de imprevisibilidade quanto ao sucesso ou insucesso dos pedidos de asilo é incompatível com o facto de se tratar de um direito fundamental, cuja regulação impõe sempre especiais cuidados na determinação das regras a que há-de obedecer o seu reconhecimento189.

A tarefa de trazer ao processo elementos de prova compete, desde logo, ao requerente de asilo, que deve acompanhar o relato das circunstân-cias que fundamentam o seu pedido da indicação dos elementos de prova de que dispõe relativamente à sua identidade e nacionalidade, e também relativamente aos motivos pelos quais pede proteção. Assim o dispõe o artigo 15.º. Entre esses elementos, deve constar a sua identificação, a indi-cação da nacionalidade ou de outro país no qual tenha residido e o “relato das circunstâncias ou factos que fundamentam o pedido”. Nos termos do número 2 do mesmo artigo 15.º, exige-se do requerente que, “juntamente com o pedido de proteção internacional, apresente os seus documentos de identificação e de viagem, bem como elementos de prova, podendo indicar testemunhas em número não superior a 10”. Este dever legal não significa, no entanto, que é ao requerente que compete provar todos os factos neces-sários a que se cumpram os pressupostos da sua pretensão. Significa apenas que é o requerente está obrigado a apresentar uma prova prima facie, um princípio de prova, que equivale a um ónus de alegação dos factos em que baseia a sua pretensão, de modo a convencer quem decide da seriedade das razões do seu pedido190.

Posteriormente, nos procedimentos de asilo, as declarações prestadas pelo requerente desempenham, naturalmente, um papel decisivo, pelo que devem ocorrer “em circunstâncias que garantam a devida confidenciali-

188 Trata-se aqui “da definição das regras de decisão nas quais o tribunal se deve basear, quando nenhuma conclusão clara for possível extrair de toda a prova reunida, evitar o non liquet e decidir a questão em favor de uma das partes”, Mário Aroso de Almeida, “Sobre as regras de distribuição do ónus material da prova no recurso contencioso de anulação de actos administrativos”, em Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 20, 2008, p. 46. Sobre o conceito, ver também o nosso “A prova no processo administrativo contencioso”, em Themis, n.º 2, 2000, p. 117-119.

189 Sobre esta exigência, ver acórdãos do Tribunal Constitucional 285/92, de 22 de julho, e publicado no Diário da República, I Série, de 17 de agosto, e 458/93, de 12 de agosto, publicado no Diário da República, I Série, de 17 de setembro.

190 Ver Mario Nigro, “Il giudice amministrativo ‘signore della prova’”, em Foro Italiano, vol. LXXX, 1967, p. 9-12, citado no nosso, “A Prova no Processo Administrativo Contencioso (maxime, no recurso contencioso de anulação)”, em Themis, ano I, n.º 2, 2000, p. 118.

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dade” e devem permitir ao requerente “expor as circunstâncias que funda-mentam a respetiva pretensão” (artigo 16.º, número 1). Ou seja, deve ser dada ao requerente a oportunidade de contar a sua história e explicar o seu problema. A maior parte das vezes não o poderá fazer na mesma língua das autoridades do Estado a que pede acolhimento e, muitas vezes, a gravidade das experiências sofridas e a ansiedade própria de quem se sabe vulnerável levam a que o seu relato nem sempre se apresente imediatamente coerente e claro para quem o ouve. Daí que seja importante que os funcionários do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, perante quem as declarações são pres-tadas, tenham formação específica e que organizações não governamentais especializadas nestas questões – como o ACNUR ou, entre nós, o Conselho Português para os Refugiados –, intervenham no procedimento.

A Diretiva 2013/32/UE, de 26 de junho, nos artigos 15.º e 17.º, contém muitas normas específicas quanto ao relatório e à eventual gravação da entrevista e quanto às condições que devem ser exigidas a quem conduz a entrevista e ao intérprete. Infelizmente, a lei portuguesa não reflete, como se impunha, tais exigências.

As autoridades administrativas têm o dever de ter uma intervenção ativa na recolha de prova – o que, entre nós, resulta, aliás, dos princípios gerais da prova no procedimento administrativo, concretamente do princípio do inquisitório191. Para além da intervenção do requerente e das autoridades administrativas acresce a possibilidade de o Conselho Português para os Refugiados também carrear informações para o procedimento, nos termos do artigo 28.º, número 4.

A lei atualmente em vigor ajuda também na circunscrição do tema da prova, do objeto da prova nestes procedimentos, ao indicar, no artigo 18.º, que o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras deve analisar as declarações do requerente, os factos pertinentes quanto ao país de origem – recolhendo quanto a estes informação precisa e atualizada – a situação e as circuns-tâncias pessoais do requerente.

Quanto aos meios de prova, a lei admite “todos os meios de prova admi-tidos em direito” (artigo 18.º, número 4). No artigo 28.º, número 3, faz-se referência a um meio de prova muito importante nestes procedimentos: a

191 O mesmo consta do Manual de Procedimentos e Critérios a Aplicar para Deter-minar o Estatuto de Refugiado, do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, que, no ponto 196, afirma: “enquanto o ónus da prova em princípio incumbe ao requerente, o dever de certificar e avaliar todos os factos relevantes é repartido entre o requerente e o examinador”.

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prova pericial, em particular, perícias médico-legais, que podem ser essen-ciais naquelas situações em que o requerente indique ter marcas físicas de tortura ou outras sevícias sofridas192, e informações de peritos sobre outras culturas, que ajudem a enquadrar devidamente o pedido (artigo 28.º, número 3 da lei do asilo).

Apesar da amplitude dos meios de prova admitidos, a experiência comprova que, mesmo assim, estes se revelam, na grande maioria dos casos, insuficientes para que se forme no julgador uma convicção forte de que aquela pessoa corre mesmo risco de perseguição se voltar ao seu país de origem. A prova produzida quase nunca é tal que não subsista qualquer dúvida razoável sobre os factos em análise e raramente é inteiramente clara e convincente.

E as dificuldades não resultam apenas da escassez de material proba-tório, mas também do facto de estar aqui em causa um juízo de prognose: saber se, no futuro e na eventualidade do regresso de uma pessoa a um país, esta corre risco de perseguição e por que motivos corre esse risco.

Estas circunstâncias fazem com que as regras sobre a medida e o ónus da prova assumam uma importância fundamental neste domínio, sendo dese-jável que o legislador esclareça quais as regras aplicáveis em relação a dois aspetos fundamentais: em primeiro lugar, qual é o grau de convicção exigido para se tomar uma decisão sobre um pedido, o problema da medida da prova; e, em segundo lugar, se esse grau de convicção não for atingido, qual deve ser o sentido da decisão a tomar, o problema da repartição do ónus da prova193.

Na nova lei do asilo, o legislador não esclarece ainda totalmente estas regras, mas dá orientações importantes no que diz respeito ao primeiro problema – o da medida da prova. No artigo 18, número 4, o legislador esta-belece que (1) se o requerente tiver feito um esforço autêntico para funda-mentar o seu pedido; (2) se o requerente apresentar todos os elementos que tem ao seu dispor e der uma explicação satisfatória para a falta de outros considerados pertinentes; (3) se as suas declarações forem consideradas coerentes, plausíveis, e não contraditórias face às informações disponíveis;

192 Ver, no mesmo sentido, acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul, de 24 de fevereiro de 2011, no processo 07157/11.

193 Ver, sobre estes conceitos de standard of proof e de burden of proof, Juliane Kokott, The Burden of Proof in Comparative and International Human Rights Law – Civil and Common Law Approaches with Special Reference to the American and German Legal Systems, The Hague, Kluwer Law International, 1998.

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(4) se o pedido tiver sido apresentado com a maior brevidade possível (ou haja justificação para um eventual atraso) e (5) se tiver sido apurada a credi-bilidade geral do requerente194, se “dispensa” a confirmação das declara-ções do requerente mediante prova documental ou outros meios de prova admitidos em direito.

Esta norma não limita os poderes instrutórios da Administração e do juiz, no sentido de os impedir de desenvolverem as diligências que consi-derem necessárias e adequadas se aquelas cinco condições se encontrarem reunidas. Muito embora essa interpretação encontre aparente sustento na letra do preceito – onde pode ler-se: “As declarações do requerente devem ser confirmadas mediante prova documental ou outros meios de prova admitidos em direito, a não ser que estejam reunidas cumulativamente as seguintes condições: (...)” –, tal violaria frontalmente o princípio do inqui-sitório e da verdade material. Temos, pois, de concluir que o legislador se exprimiu mal e o que quis verdadeiramente dizer foi que, se não for possível confirmar os factos tal como eles foram apresentados pelo requerente através de outros meios de prova, mas aqueles também não tenham sido contradi-tados pelas diligências probatórias desenvolvidas, deve considerar-se que as declarações do requerente de asilo constituem prova suficiente, devendo o pedido ser deferido.

Do que se trata aqui é, a nosso ver, de definir a medida da prova apli-cável, o grau de persuasão que é necessário existir para se poderem consi-derar os factos como provados. Esse grau de persuasão é particularmente atenuado nos casos de asilo. Não se exige que não subsista dúvida razoável quanto aos factos, não se exige prova clara e convincente dos mesmos, não se exige sequer a sua probabilidade, mas apenas a sua plausibilidade195.

194 Este juízo quanto à credibilidade do requerente não pode basear-se na impressão subjectiva do instrutor do processo, mas terá de basear-se e comprovar-se pelos factos e declarações prestadas, que, pelo seu carácter demasiado vago, podem suscitar suspeitas quanto à sua veracidade ou então pode conclui-se que as declarações do requerente pecam por falta de coerência interna (declarações incoerentes, não obstante ter sido dada oportuni-dade ao requerente para clarificar as razões de tais incoerências) ou de coerência externa (as declarações do requerente são contrariadas pelas informações obtidas pelos instrutor, por exemplo, quanto ao país de origem e o requerente não é capaz de explicar essa incoerência, não obstante lhe ter sido dada oportunidade de o fazer).

195 Também no direito alemão a medida da prova (Beweismaß) nos processos de asilo é atenuada. Ver Michael Nierhaus, Beweismaß und Beweislast, Untersuchungsgrundsatz und Beteiligtenmitwirkung im Verwaltungsprozeß, Munique, Vahlen, 1989 e Julia Dürig, Beweismaß und Beweislast im Asylrecht, Munique, Beck, 1990.

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Esta menor exigência quanto à medida da prova tem consequências no campo de atuação das regras do ónus da prova. Quanto menos exigente for a medida da prova, menor é o campo de atuação das regras do ónus da prova. Quanto mais exigente for a medida da prova, maior é o risco de a prova produzida ser insuficiente e de o caso ter de ser decidido com recurso às regras do ónus da prova196.

Sobre o ónus da prova, há um consenso generalizado no sentido de considerar que é o requerente que sofre as consequências da não produção de prova suficiente quanto aos factos que alega. No entanto, quanto às cláusulas de exclusão, devem aplicar-se regras de prova particularmente exigentes. Nos termos do artigo 9.º, número 1, alínea c), as cláusulas de exclusão só devem levar à exclusão do benefício da proteção internacional quando “existam razões ponderosas” para pensar que foram efetivamente cometidos atos graves que obstam ao reconhecimento do benefício. Assim, parece-nos que, dada a gravidade da decisão de exclusão de alguém do âmbito de proteção internacional, não basta uma simples “probabilidade” que se verifique no caso concreto uma das cláusulas de exclusão – no sentido de, feita uma ponderação, se concluir que a probabilidade de a cláu-sula se verificar ser superior à probabilidade contrária –, mas é necessário que não subsista dúvida razoável quanto aos factos integradores daquelas cláusulas.

Não dispondo a lei atualmente em vigor de regras específicas quanto ao ónus da prova em matéria de asilo, regras de decisão para aquelas situações em que da instrução do processo não resulte nenhuma conclusão clara no sentido de dever ou não ser concedida proteção internacional ao requerente, devemos valer-nos das regras gerais de distribuição do ónus da prova, que devem ser as mesmas no procedimento administrativo e no processo judi-cial que, eventualmente, lhe suceda, uma vez que taus regras não devem ser estabelecidas “em função da posição formal que as partes ocupam no quadro da relação processual (...), mas atendendo às posições das partes na relação material que se encontra subjacente ao recurso”197.

196 Será até mais correcto falar aqui de um ónus de persuasão (burden of persuasion) e não de um ónus da prova, uma vez que estão em causa juízos de prognose e não factos passados. Sobre estes conceitos, ver também Juliane Kokott, op. cit., p. 3.

197 Mário Aroso de Almeida, “Sobre as regras de distribuição do ónus material da prova no recurso contencioso de anulação de actos administrativos”, em Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 20, 2008, p. 46. Sobre o conceito, ver também o nosso “A prova no processo administrativo contencioso”, em Themis, n.º 2, 2000, p.48.

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Ora, uma vez que o interesse do particular é um interesse pretensivo e não defensivo, se não ficarem provados os pressupostos para o benefício que este pretende obter – no caso, a concessão de proteção internacional– o pedido deve ser-lhe negado. Deve ser-lhe negado através do indeferimento do seu pedido de asilo e, depois, também, no âmbito da ação administra-tiva especial que este poderá propor198. Se, porém, a razão para a recusa do benefício assentar em factos impeditivos do benefício da proteção interna-cional, como seja a verificação no caso concreto da ocorrência de cláusulas de exclusão, o ónus da prova deve recair sobre a Administração, devendo o risco da falta de prova no preenchimento destes pressupostos (negativos) do benefício internacional ser suportado pela Administração.

4. A IMPUGNAÇÃO JUDICIAL DAS DECISÕES ADMINISTRATI-VAS EM MATÉRIA DE ASILO

A importância de reconhecer aos requerentes de asilo adequadas garan-tias abrange também necessariamente o recurso a autoridades judiciais.

Este mesmo aspeto foi aflorado pelo Tribunal Constitucional português no Acórdão 962/96, de 11 de Julho, em que foi apreciado o regime legal que limitava a possibilidade de prestar patrocínio judiciário ao requerente de asilo, porque se exigia a residência prévia em território nacional pelo período mínimo de um ano. Na fundamentação do Acórdão, lê-se que tal fundamentação é inconstitucional “porque ela desconstrói a efectividade do direito de asilo, garantido aos estrangeiros e apátridas, nos termos do artigo 33, número 6, da Constituição. A desejabilidade constitucional de realização do direito de asilo, que se radica nos valores da dignidade do homem, na ideia de uma República de ‘indivíduos’, e não apenas de cida-dãos, e na proteção reflexa da democracia e da liberdade seria claramente inconseguida aí onde à proclamação do direito apenas correspondesse o

198 Ver, sobre estas regras, Carlos Alberto Fernandes Cadilha, “A prova em conten-cioso administrativo – Ac. TCA Sul de 14.11.2007, p. 2982/07”, em CJA, n.º 69, maio/junho 2008, p. 49; Mário Aroso de Almeida, “Sobre as regras de distribuição do ónus material da prova no recurso contencioso de anulação de actos administrativos– Ac. do STA de 26.1.2000, P. 37739, em CJA, n.º 20, março/abril 2000, p.45 e seguintes; ver ainda o nosso. “A prova no processo administrativo contencioso (maxime, no recurso contencioso de anulação), em Themis, ano I, n.º 2, 2000, p. 117 e seguintes.

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poder de impetrar o asilo junto da Administração sem garantia de controlo judicial”199.

Aliás, pelo menos no que diz respeito ao asilo stricto sensu, por ser um direito, liberdade e garantia pessoal, o legislador está obrigado não só a garantir o acesso aos tribunais para tutela do direito fundamental de asilo, mas também a assegurar “aos cidadãos procedimentos judiciais carac-terizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efetiva e em tempo útil contra ameaças ou violações” do seu direito (artigo 20.º, número 5).

Uma das questões que mais controvérsia tem gerado ao longo das sucessivas alterações ao regime jurídico português do asilo tem sido preci-samente esta: a questão da justiciabilidade das decisões administrativas tomadas nesta matéria200.

Ao contrário do que sucedia na lei 70/93, de 29 de setembro, que omitia a possibilidade de recurso de decisões administrativas que considerassem os pedidos manifestamente infundados201, a lei 15/98, de 26 de março, veio admitir expressamente a impugnabilidade judicial de todas as decisões administrativas em matéria de asilo, mesmo as de mera inadmissibilidade do pedido, mas não atribuía efeito suspensivo a estas ações judiciais, o que significava que um requerente de asilo cujo pedido não fosse admitido, podia impugnar essa decisão, mas esse facto não impedia a execução de medida de expulsão do território nacional, que é o desfecho comum das decisões de inadmissibilidade do pedido. Os prazos para a execução das expulsões eram tão curtos que tornavam inviável, na prática, mesmo a apresentação

199 Acórdão 962/96, de 11 de julho, publicado no DR, I Série, de 15 de outubro de 1996, que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, as normas contidas no artigo 7.º, número 2, do Decreto-Lei 387-B/87, de 29 de dezembro e no artigo 1, númeos 1 e 2 do Decreto-Lei 391/88, de 26 de outubro, na parte em que veda o apoio judiciário a quem pretenda impugnar contenciosamente o acto que lhe negou asilo (negritos nossos).

200 Ver, sobre esta matéria, o controverso acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, proferido em 28 de julho de 2010, no caso Samba Diouf v. Ministre du Travail, de l‘Emploi et de l‘Immigration (Luxembourg), processo C-69/10.

201 Ver sobre esta lei o nosso “A Recusa dos Pedidos de Asilo por Inadmissibilidade”, em Estudos em Comemoração do 10.º Aniversário da Licenciatura em Direito da Univer-sidade do Minho, Coimbra, Almedina, 2003, p. 79-94 e, criticando esta solução limitadora da tutela jursidicional dos requerentes de asilo, Vital Moreira, “O Direito de asilo entre a Constituição e a Lei””, em AAVV, O Asilo em Portugal, publicação do Conselho Português para os Refugiados, vol. I, Lisboa, 1994, p. 77.

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de um pedido de suspensão de eficácia da decisão enquanto medida cautelar adequada a evitar o afastamento do território nacional na pendência do processo judicial (uma vez que a execução da decisão de afastamento ocorria quase inevitavelmente antes de que houvesse lugar à citação da entidade demandada). Este era um aspeto muito criticado na lei de 1998, que previa apenas efeito suspensivo automático da decisão de recusa de pedido de asilo na fase de concessão, mas não para o recurso de decisão de inadmis-sibilidade, o que permitia que fosse executada, na sequência da decisão de inadmissibilidade, a expulsão do território nacional, sem que fosse dada ao requerente possibilidade de recurso efetivo à tutela judicial – já que, embora pudesse impugnar a decisão de inadmissibilidade, se viesse a ser dada razão ao requerente, esta decisão encontraria o requerente já afastado do território nacional.

Também esta solução legislativa gerou, entre nós, controvérsia. Assim, segundo Nuno Piçarra, “no âmbito específico do direito de asilo (...) um recurso jurisdicional com efeito meramente devolutivo perde toda a sua eficácia protectora (...)” e “(...) frustra o princípio da tutela judicial efetiva dos direitos e interesses legalmente protegidos”202.

Entretanto, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos foi chamado a pronunciar-se sobre a questão de saber se a execução de decisões de expulsão antes de haver apreciação judicial das decisões administra-tivas em matéria de asilo era compatível com o direito ao recurso judicial efetivo previsto no artigo 13.º da CEDH. E, em 2007, no caso Gebre-mehdin contra a França, o Tribunal foi claro no sentido de entender que o direito ao recurso judicial efetivo impõe que os requerentes possam perma-necer em território nacional até haver uma decisão judicial relativamente aos atos praticados pela autoridade administrativa que estes pretendam impugnar203.

A lei portuguesa, desde 2008, prevê, na linha desta jurisprudência, a possibilidade de impugnação de todos os atos desfavoráveis em matéria de asilo e associou efeito suspensivo automático a todas as impugnações judi-ciais de decisões administrativas em matéria de asilo.

202 Nuno Piçarra, “Em Direcção a um Procedimento Comum de Asilo”, em Themis, 2000, p. 291-292.

203 Ver decisões do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem no caso Gebremedhin contra França, de 16 de abril de 2007. Antes desta decisão, já o caso Conka contra Bélgica, de 5 de fevereiro de 2002 tinha chegado a conclusões próximas, embora não tão radicais.

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Esta decisão vai mais longe do que as diretivas europeias preveem quanto às garantias judiciais dos requerentes de asilo. Nos termos da Dire-tiva de 2005/85/CE, de 1 de dezembro, a previsão de efeito suspensivo era uma possibilidade e não uma obrigação dos Estados (artigo 39.º, número 2). Nos termos da Diretiva atualmente em vigor, Diretiva 2013/32/UE, de 26 de junho, “os Estados-membros devem autorizar os requerentes a permanecer no território até ao termo do prazo em que podem exercer o seu direito a um recurso efetivo ou, quando este direito tenha sido exercido dentro do prazo, enquanto aguardam o resultado do recurso” (artigo 46.º, número 5). Porém, quando a impugnação incida sobre decisões que considerem o pedido manifestamente infundado ou inadmissível – que corresponde entre nós, às situações do artigo 19.º, 19.º-A e 33.º, então, nesse caso, impõe a intervenção de um órgão jurisdicional que tenha “competência para decidir se o requerente pode ou não permanecer no território do Estado-membro a aguardar o resultado do recurso” (artigo 46.º, número 6), desde que o requerente disponha da necessária interpretação e assistência jurídica para elaborar o pedido, exigindo-se pelo menos uma semana para o efeito (artigo 46.º, número 7). Ou seja, a União Europeia impõe apenas aos Estados que estes prevejam mecanismos que obriguem os tribunais a apreciar se a decisão de inadmissibilidade deve ou não ser suspensa na pendência do processo judicial, quando estejam em causa decisões em que a decisão negativa do pedido surge antes de uma ponderada e detalhada instrução do mesmo.

A previsão de um efeito suspensivo ope legis representa, pois, um plus do legislador português relativamente ao Direito da União, nos termos, aliás, autorizados pelo artigo 5.º da mesma Diretiva 2013/32/UE, de 26 de junho.

A lei portuguesa de 2008 foi, assim, neste aspeto, particularmente garantística. Previu a possibilidade de impugnação de todos os atos desfa-voráveis em matéria de asilo e associou efeito suspensivo automático a todas essas impugnações judiciais. De modo a garantir que os procedi-mentos judiciais são céleres, não pondo em causa a eficácia na aplicação das consequências que decorrem de decisões negativas – e que implicam, na quase totalidade dos casos, a expulsão do território nacional –, previu prazos muitos curtos para estes processos.

Estes prazos, na versão originária da lei 27/2008, de 30 de junho, eram, nalguns casos, irrazoáveis. O requerente tinha de impugnar decisões desfavoráveis em 72 horas, 8 dias ou 15 dias. Prazos iguais – e igualmente curtos – impunham-se aos tribunais, que tinham de decidir em 72 horas,

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8 dias ou 15 dias (artigos 25.º, 22.º e 30.º, respetivamente, da lei do asilo 27/2008, de 30 de junho, na sua versão originária)204.

A lei 2008, não previa, no entanto, regras especiais para a tramitação destes processos, nem previa a necessidade de a tramitação dos pedidos de assistência judiciária ser simplificada e especialmente célere nestes casos, em que é normalmente ostensiva a falta de meios dos requerentes. Ou seja, até à nomeação de defensor oficioso decorria muito tempo. Os advogados dispunham depois de um tempo extremamente curto para apresentarem as petições em tribunal.

Os prazos de impugnação e os prazos para os tribunais proferirem decisões judiciais eram especialmente comprimidos no caso do procedi-mento especial dos pedidos apresentados nos postos de fronteira, que era de 72 horas. Estes prazos não eram por razões diversas cumpridos pelos tribunais205. Não raramente entre a notificação da decisão administrativa que considerava o pedido inadmissível e a decisão judicial passavam vários meses. Impunha-se, por conseguinte, rever esta situação de modo a obter um maior equilíbrio entre as garantias efetivas dos requerentes de asilo e a neces-sidade de garantir a tomada e execução de decisões céleres nesta matéria, sob pena de a eficácia e até a credibilidade do sistema ficar afetada206.

204 A interpretação feita no Acórdão do Tribunal Administrativo Sul, no processo 10733/13, de 2 de abril de 2014, quanto à contagem dos prazos nos casos em que haja lugar a apoio judiciário (que sucede na maioria dos processos de asilo) é, no mínimo, surpreen-dente e dela resulta uma solução que protela significativamente tais prazos. Pensamos que se impõe uma melhor harmonização entre a lei do apoio judiciário e a lei do asilo.

205 No primeiro ano de aplicação desta nova lei, a situação foi ainda mais grave. Mais de um ano depois da entrada em vigor desta lei, o dispositivo mais radicalmente inovador, permanecia sem aplicação – pelo menos em relação aos pedidos formulados nos postos de fronteira, cujos autores se encontram na situação mais vulnerável, continuando, por isso, a mesma prática de expulsão dos requerentes de asilo cujos pedidos foram declarados inad-missíveis, antes de haver lugar à apreciação de um tribunal. Tal deveu-se ao facto de o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras entender que o efeito suspensivo só existiria relativa-mente ao recurso efetivamente apresentado no tribunal. Se, no prazo de setenta e duas horas, o requerente de asilo ainda aguardasse, por exemplo, a nomeação de defensor, a expulsão podia ser executada. Esta prática foi alterada no Outono de 2009 e que, segundo o entendi-mento atual do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, o efeito suspensivo aplica-se a partir do momento em que é formulado o pedido de apoio judiciário para preparação da impug-nação da decisão de inadmissibilidade.

206 Verificava-se, com frequência, que, apesar de o tempo de detenção dos requerentes de protecção internacional ser longo, de dois meses, estes acabavam por entrar em território antes de haver decisão judicial que confirmasse ou não a decisão de inadmissibilidade.

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A lei 26/2014, de 5 de maio, veio introduzir alguma melhoria nesta definição legislativa dos prazos e da tramitação dos processos judiciais.

Assim, o prazo de 72 horas passou para um prazo de quatro dias. Pensamos que teria sido preferível um prazo de impugnação de oito dias para todas as impugnações judiciais de decisões de inadmissibilidade, de modo a conciliar os interesses de celeridade com a necessidade de uma preparação adequada das peças processuais. Não nos parece que um prazo de oito dias tornasse excessivamente moroso o processo. Do ponto de vista da preparação do pedido e da concatenação dos fundamentos do mesmo, a dife-rença é, a nosso ver, muito significativa para a proteção dos interesses dos requerentes e para garantir a qualidade – e até a dignidade – dos processos judiciais sobre asilo, que, muitas vezes, são iniciados por petições muito pobres na sua fundamentação e formulação. Estas falhas não são devidas apenas certamente à exiguidade do prazo, mas esta também contribui para aquele resultado207.

Foram eliminados pela lei 26/2014, de 5 de maio, os prazos para os órgãos jurisdicionais apreciarem os pedidos de impugnação judicial das deci-sões administrativas em matéria de asilo. Apesar de a Diretiva 2013/32/UE, de 26 de junho, manter essa possibilidade, no artigo 46.º, número 10, a opção do legislador português foi no sentido de eliminar tais prazos – que, como referimos, nunca eram cumpridos. Em lugar de determinar prazos, o legis-lador optou por garantir a celeridade da decisão através da determinação de uma tramitação especialmente célere, com a remissão para o artigo 110.º do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA). O legislador decidiu, por isso, que as impugnações judiciais de decisões de asilo deve-riam seguir o modelo de tramitação previsto para a intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias.

Excluiu, no entanto, a possibilidade de o tribunal decidir, por aplicação do previsto no número 3 do artigo 110.º do CPTA, que o processo seguisse os termos da ação administrativa especial, ainda que com os prazos redu-zidos a metade, se entendesse que a complexidade do caso o justificava. E excluiu também a aplicação da tramitação excecionalmente célere prevista no artigo 111.º do CPTA.

207 Sobre a contagem do prazo e o momento em que esta se deve iniciar, veja-se o Acórdão de 11 de setembro de 2014, no Processo 11427/14.

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A elasticidade que caracteriza a tramitação do processo de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias aqui não se aplica. A trami-tação destes processos é rígida. Recebido o pedido, o juiz notifica o SEF para responder no prazo de sete dias. O Tribunal procede, depois, às dili-gências que se mostrem necessárias e, depois, cabe ao juiz decidir no prazo de cinco dias.

A aplicação destas regras de tramitação previstas no artigo 110.º do CPTA aos processos em que estejam em causa situações de asilo era uma solução ensaiada pelos tribunais administrativos que já vinham propondo, no âmbito dos seus (limitados) poderes de conformação do processo, e ouvindo previamente a autoridade administrativa, que as ações seguissem esta tramitação, dada a lacuna existente na lei quanto à definição das regras aplicáveis a estes processos judiciais.

A nova lei vem, por isso, positivar uma prática que já se vinha impondo nos tribunais208, não sendo de esperar, por isso, grandes dificuldades na sua aplicação.

Mais confusa é a solução consagrada na lei 26/2014, de 5 de maio, quanto aos efeitos dos recursos das decisões em primeira instância.

Nalguns casos, a própria  lei define os efeitos dos recursos. Assim sucede no artigo 25.º, número 3, e no artigo 37.º, número 3 da lei do asilo, em que atribui efeito suspensivo aos recursos jurisdicionais nessas situações em que estão em causa decisões de inadmissibilidade nos pedidos apresen-tados nos postos de fronteira ou decisões de transferência Dublin. Também define o efeito do recurso das decisões jurisdicionais em que estejam em causa pedidos subsequentes, mas, neste caso, como sendo um efeito mera-mente devolutivo – artigo 33.º da lei do asilo.

Noutros casos, porém, a lei é omissa quanto ao efeito do recurso juris-dicional. Assim sucede no artigo 22.º (decisões de inadmissibilidade) e no artigo 30.º (decisões finais de recusa de proteção após normal instrução do pedido209. Nestes casos, fica a dúvida sobre qual o regime aplicável. Será o regime-regra previsto no artigo 143.º, número 1, do CPTA, efeito suspen-sivo? Ou o regime especial, previsto no artigo 143.º, número 2, do CPTA, do efeito meramente devolutivo para os recursos de decisões nos processos de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias? Parece-nos

208 Veja-se o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 26 de setembro de 2013, no Processo 10286/13.

209 Sucede o mesmo no artigo 44.º relativo aos procedimentos de perda do direito à protecção internacional, que aqui não tratamos especificamente.

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que se deve aplicar nos casos omissos o regime-regra do efeito suspensivo. Desde logo, parece-nos que existe um elemento literal a suportar tal solução. A lei do asilo remete para o regime das intimações para proteção de direitos, liberdades e garantias apenas no que diz respeito à tramitação e aos prazos. De um ponto de vista sistemático, também não se compreenderia, a nosso ver, que os efeitos dos recursos das decisões de inadmissibilidade fossem diferentes nos casos em que estivesse em causa um pedido apresentado nos postos de fronteira.

A terminar este ponto relativo à impugnação judicial das decisões administrativas em matéria de asilo, importa fazer uma referência àquela que é, para nós, a norma mais inovadora da Diretiva sobre Procedimentos de Asilo, constante do artigo 46.º, número 3, da Diretiva 2013/32/UE, de 26 de junho. De acordo com o enunciado aí contido, “os Estados--membros asseguram que um recurso efetivo inclua a análise exaustiva e ex nunc da matéria de facto e de direito, incluindo, se aplicável, uma apre-ciação das necessidades de proteção internacional, na aceção da Diretiva 2011/95/UE, pelo menos no recurso perante um órgão jurisdicional de primeira instância”.

Nos termos desta norma, o papel dos tribunais não pode consistir apenas em verificar se, face à prova produzida, a decisão foi ou não a mais adequada, num intuito meramente cassatório. O Tribunal tem de assumir um processo de plena jurisdição cujo objeto é a pretensão material do inte-ressado a obter proteção internacional. Muito embora a filosofia que subjaz hoje ao Código de Processo nos Tribunais Administrativas seja já a de um princípio de plena jurisdição, seria, a nosso ver, positivo se a nova lei do asilo, na versão de 2014, que transpõe aquela Diretiva, fizesse uma refe-rência expressa a esta norma da Diretiva europeia.

Não se pode, no entanto, esquecer que a realização de uma tal tarefa por parte dos tribunais administrativos não é possível se estes não dispu-serem de estruturas adequadas de apoio à instrução destes processos. Não havendo – nem se justificando face ao reduzido número de pedidos – secções especializadas na apreciação dos processos de asilo, impõe-se que os tribu-nais administrativos possam dispor de estruturas dedicadas, por exemplo, à investigação de informação sobre o país de origem de modo a poder realizar cabalmente a sua função.

Na maioria das situações,  justifica-se  também ouvir o requerente. Muitas vezes, os pedidos são rejeitados na sequência de apreciações nega-tivas sobre a credibilidade do requerente sem que este seja ouvido, acei-

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tando a Tribunal o juízo feito pelo agente administrativo210. Esta via torna, na prática, insindicáveis as decisões administrativas em matéria de asilo. Sendo as declarações do requerente o meio de prova mais importante – na maior parte das vezes, o único a que é possível aceder sem mediação da Administração –, desejavelmente, os tribunais administrativos deveriam ouvir os requerentes, confrontá-los com as informações obtidas sobre o país de origem, suprindo as deficiências instrutórias que detetam nos processos administrativos.

Sem estas diligências, a impugnação judicial de decisões administra-tivas em matéria de asilo é, muitas vezes, um meio ilusório de garantia dos direitos dos requerentes de asilo, ficando muito aquém das ambições que a Diretiva formula e sobretudo defraudando o princípio da tutela jurisdi-cional efetiva.

5. NOTAS FINAIS

O direito de asilo assenta numa ficção: a de que é possível traçar uma linha que divida as pessoas que migram em situação de carência de proteção internacional e as que migram voluntariamente em busca de melhores condi-ções de vida.

Essa linha é necessária, mas muito difícil de definir.O conceito de refugiado, previsto na Convenção de Genebra de 1951,

tem sido objeto de sucessivos alargamentos. Os deveres de proteção inter-nacional dos Estados incluem, hoje, na Europa, também os refugiados de guerra e todos os que podem ser vítimas nos seus países de origem de tortura ou penas ou tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos. Entre nós, acrescentam-se ainda as violações sistemáticas de direitos humanos como fundamento de proteção internacional.

Esta evolução confere fluidez àquela linha que permite colocar num espaço protegido todos os que apresentam fortes argumentos de direitos humanos para não voltarem aos respetivos locais de origem.

Por outro lado, entre os que não são abrangidos pela proteção interna-cional, temos também uma multiplicidade grande de estatutos de imigrantes. Não estão todos sujeitos aos mesmos constrangimentos de acesso e regula-

210 Veja-se, neste sentido, o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 20 de março de 2014, no processo 10920/13.

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rização de permanência. A nacionalidade condiciona a liberdade migratória e o estatuto do estrangeiro, mas também a invocação de direitos humanos vários por parte dos migrantes vai restringindo o poder de recusar a admissão ao território ou de expulsar quem nele se encontre. Assim, tem acontecido com o direito humano à vida familiar como fundamento de uma pretensão migratória.

Existe, pois, uma zona de fronteira, de transição entre os que preenchem todos os pressupostos para o reconhecimento da proteção internacional e os que os preenchem parcialmente ou não preenchem, mas que, ainda assim, não podem ser sem mais conduzidos aos respetivos países de origem.

Em alguns Estados europeus (por exemplo, em Itália), prevê-se que, no termo do procedimento de apreciação de um pedido de proteção inter-nacional, mesmo ocorrendo a recusa desse pedido por não se verificarem in casu os respetivos pressupostos, se pode conferir, de imediato, uma auto-rização excecional de permanência no país ditada por razões humanitárias. Uma tal solução parece-nos desejável. Os pedidos de entrada e permanência no território devem merecer respostas várias, graduais, que operem concer-tadamente.

Importa, pois, repensar em termos globais, o regime do direito dos estrangeiros – no âmbito do qual o direito de asilo é um fragmento que não pode subsistir desarticulado do resto.

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ALGUMA BIBLIOGRAFIA RECOMENDADA SOBRE O TEMA

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DIREITO ADMINISTRATIVODA MAGISTRATURA JUDICIAL

Isabel Graes1

APRESENTAÇÃO

Enredados na análise do estatuto da magistratura portuguesa do período do liberalismo monárquico2, e por que na altura havíamos delimitado como termo a mudança da forma de governo verificada em 1910, verificámos por diversas vezes que as alterações estruturais pareciam não ter acontecido como uma consequência da ocorrência daquele ano, sendo necessário alargar o horizonte, até 1928, para que as mudanças significativas se verificassem. Ainda que por várias vezes nos tenhamos questionado sobre o que mudaria e como mudaria, no âmbito do estatuto jurídico da magistratura judicial3, por imperativos metodológicos apenas podíamos deixar em aberto a conti-nuidade de tal estudo, optando, temporariamente, por enunciar os diplomas legais que se seguiriam. Eis chegado o momento de nos dedicarmos a estas questões.

O presente estudo terá por objecto o estatuto jurídico da magistratura judicial, tal qual ele foi consagrado nos estatutos jurídicos que estiveram vigentes durante o século XX e demais legislação avulsa que os comple-mentou. Não analisaremos, por consequência, as características próprias que assistem ao exercício da judicatura nos tribunais especiais, como sejam os

1 Professora auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.2 A respeito da história judiciária do período do constitucionalismo liberal e, em espe-

cial, do estatuto jurídico da magistratura, vide o nosso trabalho: O Poder e a Justiça, AAFDL, Lisboa, 2014.

3 O sentido é o do art. 2.º da Lei n.º 21/85, ou seja, apenas consideraremos juízes do Supremo Tribunal de Justiça, juízes das relações e juízes de direito.

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juízes dos tribunais militares, marítimos, administrativos e fiscais ou ainda do Tribunal de Contas4 e do Tribunal Constitucional5 dado que pelas espe-cificidades que apresentam carecem de estudos autonomizados. Excluída da nossa apreciação, ficará, igualmente, a situação dos funcionários judi-ciais. Por último, e pelos motivos já apresentados apenas em circunstâncias muito pontuais estabeleceremos uma breve complementação, por vezes de destrinça ou comparação com a magistratura do Ministério Público.

§1.º BREVE EXPOSIÇÃO INTRODUTÓRIA

Volvido um século de experiência constitucional, a monarquia portu-guesa apresenta, nas vésperas de 1910, características de ruptura política e social. Ainda que em 24 de Agosto se tenha pretendido pôr um fim a inúmeros vícios, falhas ou abusos, como eram definidos, este ideal não veio a concretizar-se, dado que ora se adequavam os costumes tão arreigados ora se substituíam os beneficiários das falhas acerrimamente apontadas nas Constituintes de 1821-1822. Ressalvando as ténues excepções do Fontismo, o Reino viveria durante a mencionada centúria dificuldades incontornáveis, agravadas desde o Ultimatum de 1890. O Poder Judiciário enquanto pilar da construção constitucional de oitocentos perecia às mãos do Executivo que não hesitava em manietá-lo. Alheio à possibilidade de controlar a cons-titucionalidade das leis ou de uniformizar a jurisprudência, o modelo que se encontrava vigente e que a Carta tinha delineado, apresentava contornos híbridos de um tribunal supremo que não era nem supremo e muito debil-mente se evidenciava como órgão judiciário, caso atendamos às caracterís-ticas do seu instrumento por excelência, o recurso de revista bem como a uma pluralidade de funções administrativas que lhe são acometidas e que se sobrepunham às demais6. De igual modo, os actores judiciários também assistem ao sufocamento do seu estatuto, em tudo dependendo da voluntas

4 Lei n.º 98/97, de 26 de Agosto com as alterações introduzidas pelas Leis n.os 3-B/2010, de 28 de Abril; 61/2011, de 7 de Dezembro e 2/2012, de 06 de Janeiro.

5 Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, alterada pelas Leis n.os 143/85, de 26 de Novembro, n.º 85/89, de 7 de Setembro; n.º 88/95, de 1 de Setembro; n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, e n.º 1/2011, de 30 de Novembro.

6 Cfr. arts. 192.º da Constituição de 1822, 131.º da Carta Constitucional, 243.º do Decreto n.º 24, de 16 de Maio de 1832, e em especial, o Decreto de 19 de Maio do mesmo ano e a Lei de 19 de Dezembro de 1843.

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Direito Administrativo da Magistratura Judicial 135

arbitrária do Executivo que não hesitava, por conseguinte, em obnubilar as garantias constitucionais. Nomeações, promoções, licenças, transferências, aposentações e demissões, nada escapava ao crivo do Ministério do Reino que, sob a tutela legitimista da Carta Constitucional, tudo controlava forma directa ou indirecta.

O modelo que pretendemos analisar e que está norteado pelo período da I à III República (1910-2012) pretenderá revelar-se como inovador, beneficiando desde logo de críticas e trabalhos do final do período do constitucionalismo monárquico, ainda que as alterações sejam cuidadosa e paulatinamente introduzidas. Relativamente a este último aspecto, dir--se-ia que permaneciam as palavras de Martens Ferrão, ou seja, mais uma vez, tal como sucedera no século anterior, não seria possível mudar as instituições de um País tão fortemente arraigado ao peso tradicionalista. Importa enão verificar se o statu quo se manteve, ou se, pelo contrário, a magistratura judicial viu finalmente reconhecida a autonomia, indepen-dência e inamovibilidade que os textos constitucionais lhe conferiam, mas que a prática governativa parecia preferir esquecer. Para este efeito, torna--se imperativo conhecer as medidas insurgentes que o espírito de 1910 carreia. Desde logo, é notória a proximidade deefeitos que os períodos subsequentes à ruptura de 1820 e de 1910 indiciam, em nossa opinião. Em ambos os casos, a revolução não se subsumiria ao movimento militar, tanto no século XIX como na centúria seguinte, não assistimos a uma única ruptura, até porque as réplicas que se verificariam ao longo das décadas seguintes acabariam por ser mais ferozes senão mesmo mais sangrentas do que os episódios pretensamente fracturantes7. O elemento comum é traduzido, de imediato, pela instabilidade e insegurança governamental, agora pontuada por governos de ínfima duração8. Se não podemos unificar

7 Recordem-se, a este respeito, as palavras de Ortega y Gasset, segundo o qual todas as revoluções são pós-revolucionárias, devendo ser medidas menos pelas intenções dos revolucionários e mais pelas acções dos homens que lhes sucederam que fazem a história, sem saberem que história vão fazendo.

8 A este respeito, dir-se-á, na óptica de José Adelino Maltez, que a I República, segundo “…a linguagem chistosa do secretariado da Propaganda nacional do salazarismo, terá cometido quinze pecados: 17000 funcionários em 10 de maio de 1919; uma sucessão cinematográfica de governos-relâmpago; um ministério de 12 horas, que a canalha impede de tomar posse; um governo exautorado perante a revolução feita pelo próprio chefe de estado; a indecorosa balbúrdia parlamentar e caldivana por muitos mexida; um copo de vidro como argumento e os bombistas nas galerias; pára-raios; escândalo dos bairros sociais, dos abastecimentos dos TME; miséria das estradas; legião Vermelha; fragor da

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o século XIX português e sempre entendemos que é um período em que se vive a revolução, sendo a convulsão sociopolítica e filosófica uma cons-tante, também não poderemos afirmar que o século XX trouxe a calmaria, ainda que tenha sido tomado por momentos de acalmação. Recorde-se que antes de atingir a metade da centúria, duas guerras mundiais avassalaram a Europa, não deixando Portugal completamente alheio ao que o rodeava. Outro aspecto que aproxima os dois momentos históricos diz respeito à corporização de certos momentos e linhas de opção governativa que esti-veram particularmente associadas a certas personalidades. Durante o século XIX associamos, ao Ministério dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça e às reformas judiciárias, nomes como Mouzinho da Silveira, António Bernardo da Costa Cabral e Veiga Beirão, o século XX revelar-se-ia, sobretudo, na sua componente judiciária através da obra de Manuel Rodrigues, Vaz Serra e João de Matos Antunes Varela, os quais se destacariam, respectivamente, nas décadas de trinta, quarenta e cinquenta, na qualidade de ministros da justiça, tendo sido o primeiro o autor de reformas notáveis que muito contribuíram para a credibilidade do Estado Novo como regime político9. Todavia, o nosso objecto de estudo centrar-se-á não numa abordagem polí-tica, mas jurídica, e por este motivo, passaremos à apresentação das linhas que caracterizaram o estatuto da magistratura judicial ao longo de cerca de cem anos.

Ante a pulverização de diplomas existentes no final do século XIX, sobretudo em termos judiciários, Veiga Beirão propõe, em 1888, um texto que a ter sido aprovado, teria permitido uma certa unificação legislativa sobretudo em termos da construção dos quadros estatutários da magistra-tura e da advocacia, a qual só seria atingida cerca de quarenta anos mais tarde, em 1928. Por ora, o resultado pretendido apenas seria alcançado com

dinamite; 19 de Outubro; libertação do assassino de Sidónio Pais; balbúrdia dos partidos; fraqueza do exército. Segundo Costa Brochado: oito chefes de estado, dos quais 2 foram barbaramente assassinados, outros dois exilados, um resignou, dois renunciaram e outro foi destituído; cinquenta e dois governos, ou seja mais de três governos, em média, por ano; oito parlamentos, dos quais cinco foram dissolvidos violentamente, e 11 ditaduras signifi-cando que dos 16 anos de regime democrático-parlamentar, só 5 conseguiram arrastar-se dentro da constituição.” (in Tradição e Revolução, vol. II (1920-2005), Tribuna da História, Lisboa, 2005, p. 322).

9 Cfr. Caetano, Marcello, Minhas Memórias de Salazar, Lisboa/São Paulo, 1977, cap. 19, págs. 104-108.

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os regimentos judiciários ultramarinos e os códigos de justiça militar (1895 e 189610).

Ávidos de uma ruptura, como o demonstram as palavras de Afonso Costa, os primeiros passos da República pretendem introduzir alterações contundentes, umas por medo de um retorno ao passado, outras por consci-ência de necessidade de mudança. É notória a influência de um positivismo epidémico, como o definiria Antero de Quental, ao qual se seguirá uma escola mais naturalista de onde se destacará Manuel Emídio Garcia, e mais tarde, as linhas das escolas francesa e alemã. Sem dúvida que se clamou pela mudança nas constituintes de 1910, bem como nas sessões ordinárias que se seguiram nas legislaturas subsequentes, no entanto, é indiscutível que de 1910 a 1926, a organização judiciária continuava a regular-se subs-tancialmente pela Novíssima Reforma Judiciária, esfrangalhada, remen-dada, cerzida e acrescentada por uma infinidade de diplomas posteriores, na descrição vigorosa de Barbosa de Magalhães. A I República daria a conhecer uma série de tentativas de reforma do sistema judicial em que se contam os projectos dos deputados Mesquita Carvalho (1912), Abraão de Carvalho (1915), Catanho de Menezes (1916) e o do juiz Alfeu Cruz (1918). Todavia só, em 1927, se iniciaria uma nova época, em que se sucederiam desde aquele ano até aos dias de hoje, osseis estatutos que regulariam o cursus honorum judiciário. Ainda assim não podemos esquecer um universo complexo e vastíssimo de legislação avulsa, à qual caberia complementar os diplomas de 1927-1928, 1944, 1962, 1977 e 1985. Como teremos oportu-nidade de indicar, entre estes diplomas há uma certa linha de continuidade, dado que a estrutura é, mais ou menos, mantida pelo que somos forçados a reconhecer que o arquétipo judiciário que temos hoje assenta no figurino oitocentista (1841) tendo as grandes alterações começado a evidenciar-se, não em 1910, mas nas correntes renovadoras do final do século.

10 Seguir-se-iam o Decreto de 16 de Março de 1911; o Decreto n.º 11 292, de 26 de Novembro de 1925 revogado pelo Decreto-lei n.º 141/77 de 9 de Abril e o actual Código de Justiça Militar aprovado pela Lei n.º 100/2003, de 15 de Novembro. Note-se em comple-mento a estes diplomas seria promulgado um número bastante elevado de legislação avulsa. A respeito dos magistrados militares, deve ser observado o Estatuto dos Juízes Militares e dos Assessores Militares do Ministério Público aprovado pela Lei n.º 101/2003, de 15 de Novembro.

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§2.º OS QUADROS JUDICIAIS DA REPÚBLICA

2.1. o poder judICIal nos textos ConstItuCIonaIs e na leGIslação ordInárIa

A análise e compreensão do estatuto da magistratura, bem como a consagração do poder judiciário no século XX passam indubitavelmente, não apenas pelo texto da Lei Fundamental, mas sobretudo pelos diplomas que traçam o desenho geográfico judiciário dado que a adequação e deter-minação do número de magistrados de primeira instância procura responder às necessidades locais de aplicação da justiça.

Tal como referimos anteriormente, o regime instituído em 1910 está muito próximo, politicamente, dos ideais trilhados em 1820 e 1837, ainda que não adopte os arquétipos revolucionários de um jacobinismo republi-cano. A fórmula clássica dos três poderes “independentes e harmónicos entre si” é mantida no art. 6.º da Constituição de 1911, terminologia que o regime autoritário instaurado, em 1926, em consequência da revolução de 28 de Maio do mesmo ano, abandonaria no texto constitucional seguinte (1933) para falar apenas em órgãos de soberania e não mais em poderes políticos.

Tendo por antecedentes a experiência ditatorial e os textos constitu-cionais de 1826 e 1911, e sem desconhecer as experiências constitucionais estrangeiras, como é o caso da Constituição de Weimar (1919), o novo Esta-tuto Constitucional seria redigido vindo a constituir, ainda que com ligeiras alterações, o texto do Decreto n.º 22241, de 21 de Fevereiro de 1933 o qual seria submetido, por determinação do diploma da mesma data (Decreto n.º 22229) a plebiscito nacional (19 de Março de 1933). Neste último, estavam identificados como órgãos de soberania: o Chefe de Estado, a Assembleia Nacional, o Governo e os Tribunais (art.71.º)11. Explica Jorge Miranda que a Constituição de 1933 “repudia a separação de poderes liberal e, se conserva uma assembleia política electiva na base do sufrágio individual directo, é como que a título precário, à espera de a substituir pela Câmara Corporativa”12.

11 Da letra do art. 116.º da C1933, podemos enumerar, exemplificativamente, como tribunais especiais: os de execução de penas (Lei n.º 2000, de 16 de Maio de 1944 e o Decreto n.º 34553, de 30 de Abril de 1945); os de execução fiscais; o tribunal colectivo de fiscali-zação de géneros alimentícios; os tribunais militares e os tribunais arbitrais (art. 1561.º CPC 1939); e ainda, os tribunais administrativos e o Tribunal de Contas.

12 MIranda, Jorge, Manual de Direito Constitucional, tomo I, Coimbra editora, Coimbra, 2.ª edição revista, 1982, pág. 269.

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Em seguida, após a revolução de 1974 que marcaria para Gomes Cano-tilho mais um momento de descontinuidade formal da história constitu-cional portuguesa, tal como havia sucedido em 1822, 1826, 1838 e 191113, o texto constitucional de 197614, o terceiro a ser elaborado e decretado por uma assembleia constituinte, acolheria a divisão de poderes como prin-cípio objectivamente estruturante enumerando como órgãos de soberania: o Presidente da República, o Conselho da Revolução15, a Assembleia da República, o Governo e os Tribunais (art. 113.º), os quais devem observar a separação e interdependência estabelecidas na Magna Lei (art. 114.º)16. Nesta qualidade, aos tribunais é atribuída “ competência para administrar a justiça em nome do povo” (art. 205.º), enquanto órgãos independentes (art. 208.º), cumprindo-lhes “reprimir a violação da legalidade democrá-tica” (art. 206.º)17.

Da estrutura arquitectónica judiciária prevista nos vários textos cons-titucionais portugueses do século XX fazem parte os tribunais de primeira e segunda instância e o Supremo Tribunal de Justiça, doravante designado STJ, (art. 56.º da Constituição de 1911, art. 115.º Constituição de 193318, art. 209.º da Constituição de 197619), estando os primeiros distribuídos pelo

13 CanotIlho, Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 6.ª edição, Almedina, Coimbra, 2002, págs. 195-199.

14 Doravante designado CRP.15 Este órgão seria extinto ex vi da primeira revisão constitucional (1982). 16 A CRP 1976 não fala em poderes mas em órgãos de soberania nos quais se incluem

os tribunais (art. 110.º/1). Esta classificação remonta à Constituição de 1911 que, no seu art. 6.º, considerava como “órgão da soberania nacional” o “poder judicial”.

A este respeito, Gomes Canotilho, classifica o poder judicial como um “poder sepa-rado” atendendo à sua estrutura organizativa e funcional o que lhe permite garantir a liber-dade e a independência da magistratura (in Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, 6.ª ed., Coimbra, pp. 653-654).

17 No mesmo sentido, art. 2.º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto, alterada pela Lei n.º 115/2009, de 12 de Outubro e pelo DL n.º 295/2009, de 13 de Outubro).

18 O texto do art. 115.º introduz a distinção entre tribunais ordinários e especiais. Com a revisão constitucional de 1945 (Lei n.º 2009, de 17 de Setembro) o artigo seria renume-rado, passando o seu texto a remeter para a legislação ordinária, em termos de competência territorial e material. Vd. ainda os arts. 38.º, 71.º e 117.º da Constituição Política; e os arts. 1.º e 2.º do DL n.º 33547/1944, de 23 de Fevereiro, in DG IS, n.º 37.

19 Vd. ainda art. 16.º da Lei n.º 3/99 e art. 17.º da Lei n.º 52/2008.

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país, conforme as necessidades da administração da justiça o exijam e tendo o STJ a sua sede em Lisboa20.

Como garantia da magistratura, sobretudo em prol da sua indepen-dência, são enunciadas e consagradas constitucionalmente as regras da inamovibilidade, independência e responsabilidade dos magistrados bem como o reconhecimento do carácter vitalício do cargo (arts. 57.º, 119.º e 120.º C.1911, arts. 118.ºe 119.º da Constituição de 193321, arts. 203.º, 216.º, 218.º, 221.º, 222.º CRP 197622), preceitos que o legislador ordinário reiterará nos estatutos judiciários (EJ) de 1927-1928 (arts. 13.º-16.º, 60.º-61.º), 1944 (art. 241.º), 1962 (art. 111.º), 1977 (arts. 4.º-5.º e 8.º), 1985 (arts. 4.º-6.º) e ainda no art. 4.º/2 da Lei n.º 3/99 e nos arts. 4.º e 5.º/2 da Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto)23.

O art. 215.º/1 do actual texto constitucional português bem como o art. 1.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais de 1985 ao consagrarem o

20 Disposição igual ao n.º 2 do art. 25.º da Lei n.º 3/99, de 3 de Janeiro – LOFTJ. O n.º 1 do mesmo artigo define o STJ como o órgão superior da hierarquia dos tribunais judi-ciais, sem prejuízo da competência própria do Tribunal Constitucional. Vd. art. 2.º do Regu-lamento da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais de 1999 (DL n.º 186-A/99, de 31 de Maio). Sobre as categorias de tribunais, vd. art. 16 da Lei n.º 3/99, de 3 de Janeiro – LOFTJ e o art. 32.º da Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto.

A hierarquia judiciária traduz-se em duas grandes manifestações, uma é o poder juris-dicional do tribunal superior para conhecer dos recursos interpostos do tribunal inferior que lhe está subordinado; outro é o poder disciplinar que compete ao tribunal superior sobre o tribunal inferior na graduação hierárquica (cfr. RLJ, ano 65.º, pp. 247 e 326).

21 Do mesmo texto constitucional, vd. art. 93.º, al. g) introduzida na revisão de 1959, segundo a qual pertence à exclusiva competência da Assembleia Nacional a definição dos princípios legais relativos ao “carácter vitalício, inamovibilidade e irresponsabilidade dos juízes dos tribunais ordinários e os termos em que pode ser feita a respectiva requisição para comissões permanentes ou temporárias”.

22 O texto do art. 221.º seria alterado e renumerado com as revisões constitucionais de 1992 e 1997, da mesma forma que o art. 222.º seria alvo de renumeração em 1989, sendo--lhe aditado um segundo número.

Vd. por todos, European Charter on the statue for judges, Strasbourg, 8-10 Julho 1998 e o Estatuto Universal do juiz, de 17 de Novembro de 1999.

Mais recentemente há jurisprudência do Tribunal Constitucional que admite que a existência dos conselhos superiores não viola qualquer princípio de independência dos magistrados como decorre dos seguintes acórdãos 290/99 (Processo n.º 614/98, 2.ª Secção), 257/98 (Processo n.º 494/97, 1.ª Secção) e 7/87 (Processo n.º 302/86, Plenário).

23 Em relação aos magistrados do Tribunal Constitucional vd. art. 222.º/5 da CRP e os arts. 22.º da LOFPTC, art. 4.º da LOFTJ de 1999 e no art. 5.º da LOFTJ de 2008. Rela-tivamente aos juízes dos tribunais militares, vd. art. 3.º da Lei n.º 101/2003.

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princípio da unidade da magistratura judicial, não esquecem o princípio vigente da pluralidade de jurisdições, procurando através daquele que seja observada a independência do corpo judiciário. Tal circunstância leva à existência de juízes com estatuto diferenciado ou integrados em corpos distintos o que permite, por isso, a criação de “pontos de vulnerabilidade não só no interior da função como também aos olhos do público”24. A este aspecto voltaremos, mais tarde.

2.1.1 Os estatutos judiciários

A reforma significativa que desde logo merece destaque, prende-se com a nova arquitectura legal, ao optar pela introdução de estatutos em 1927. Frise-se que a partir desta data se assistiria a um conjunto de outras alterações provocados pela entrada em vigor de novos diplomas, de que podemos citar exemplificativamente o Código de Processo Civil (Decreto--Lei n.º 29637, de 28 de Maio de 1939) que sucedia ao texto de 187625, o Código das Custas26 e o Código de Notariado.

Aprovado pelo Decreto n.º 13.809, de 22 de Junho de 1927, o primeiro estatuto judiciário, representa a primeira iniciativa codificadora deste século relativamente a todo o sistema judicial. A sua sistematização (por capítulos) consagrará os órgãos judiciários; o funcionalismo judiciário; a disciplina judiciária; o mandato judiciário; e, por fim, alguns aspectos finais e tran-sitórios. Com este diploma são agrupados, num mesmo texto, as matérias relativas à organização judicial do território, ao estatuto das magistraturas judicial e do Ministério Público, à organização das secretarias e estatuto dos funcionários judiciais, ao mandato judicial, incluindo a organização da Ordem dos Advogados, ao estatuto dos solicitadores e à assistência judici-ária. Por este motivo entendemos poder dizer que, de uma certa maneira,

24 Cfr. rodrIGues, Cunha, A Constituição e os tribunais, Lisboa, 1977, p. 62.25 O diploma de 1876 seria actualizado em 1918 pelo Decreto n.º 4618, de 13 de Julho,

de Osório de Castro, tomando por base a proposta de lei apresentada em 1903 na Câmara dos Deputados (vd. DG n.º 108, de 1903).

26 A título meramente exemplificativo, vd. os Decretos n.ºs 12353, de 1926 e 12694, de 1932. Por sua vez também a legislação ultramarina sofreria alterações (Decretos n.os 14453, de 20 de Outubro de 1927, 17880, de 15 de Janeiro de 1930 e 20235, de 19 de Agosto de 1931).

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se reabilitava o ensejo e o modelo de Veiga Beirão mantendo-se, em geral, as linhas estruturais de 1841.

Em termos formais, este é, sem dúvida, e tal como referimos, o primeiro código judiciário do século XX27, a cujo modelo obedeceram os Estatutos posteriores. Em termos materiais vemos que a matriz tem a sua génese no modelo apresentado e posto em prática no século XIX. Por este motivo não hesitaremos em dizer que Portugal vive, ainda hoje, e, em inúmeros aspectos, sob a égide do modelo do constitucionalismo oitocentista, não obstante todas as críticas que possam ter ecoado ao longo do século XX, seja em matéria da organização judiciária, seja em termos de reconhecimento da indepen-dência da magistratura.

Já o modelo legislativo que se acentuou após 1974 tende a autonomizar estatutariamente cada um dos quadrantes da realidade judiciária bem como dos actores judiciários que até então estavam agrupados num só texto ainda que profusamente complementado por legislação avulsa. Cada corporação judiciária tem agora um diploma autónomo. Só agora é afastado o modelo de Veiga Beirão, o qual entendemos ter sido, inequivocamente o texto esta-tutário mais completo do século XIX, após a reforma de 1841.

O primeiro Estatuto Judiciário seria substituído pelo texto de 1928 (Decreto n.º 15344, de 10 de Abril28), o qual introduzirá algumas altera-ções pontuais29, como teremos oportunidade de identificar, por oposição ao Decreto n.º 22279, de 29 de Junho de 193330.

A justificação para o Estatuto Judiciário de 1928 é apresentada pelo Decreto n.º 17955, de 12 de Fevereiro de 1930, ao mencionar que aquele

27 O sublinhado é nosso.28 Decreto n.º 15334, in DG, IS, n.º 83, de 12 de Abril de 1928 rectificado no DG de

18 de Abril de 1928, com as alterações posteriores dos decretos n.ºs 17955, de 12 de Feve-reiro de 1930; 18227, de 21 de Abril de 1930; 19537, de 31 de Março de 1931; 19772, de 27 de Maio de 1931; 21485, de 22 de Julho de 1932; decreto-lei n.º 22779, de 29 de Junho de 1933.

Doravante os estatutos judiciários serão designados pela sigla EJ seguido do ano a que dizem respeito, com excepção das leis de 1977 e 1985, sendo a primeira definida pelo número do diploma e o segundo por EMJ.

29 Por este motivo, apenas identificaremos o Estatuto Judiciário de 1927 quando este divergir em termos de articulado, do diploma de 1928.

30 A citar: o regime de acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, a reformulação do regime de ingresso na metrópole dos juízes das colónias, a reclassificação das comarcas, o novo regime aplicável as secretarias, o pessoal e a reorganização do Conselho Superior Judi-ciário.

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“constituiu, sem dúvida (…) uma das obras legislativas mais importantes da ditadura, pois veio dar estrutura à organização Judiciária Portuguesa, cujo funcionamento estava sendo regulado por uma legislação fragmen-tária e, em grande parte, quase obsoleta (…) ”, não se tendo limitado a ser “…a uma obra de justaposição, antes introduzindo, em certos capítulos de organização judiciária, bases inteiramente novas, não podia ter a pretensão de ficar imutável, estando, pelo contrário, naturalmente indicado que se fossem observando os resultados da sua aplicação à prática e se objecti-vassem, em alterações oportunas, os frutos da experiência quotidiana.”.

Desta feita, e ainda segundo a exposição do legislador de 1930, o diploma de 1928 tem o cuidado de identificar alguns problemas que haviam afectado o regime jurídico vigente no século XIX, ou seja, “…Quem se propõe fazer alterações numa lei orgânica não deve porém esquecer que é indispensável evitar a pulverização do diploma fundamental com modifica-ções dispersas que não respeitem a sistematização estabelecida.”.

Posto que “…o ingresso nos quadros superiores ficou dependente da existência de pressupostos característicos, que, se é certo que não passam, de um modo geral, de termos vagos de significação assaz arbitrária, não menos certo é que têm uma importância de traduzir uma orientação nova”, o mesmo legislador de 1930 defendia que o Governo da Ditadura tinha dado “uma nova orientação ao princípio da independência do poder Judicial, apresentando como um dos seus aspectos fundamentais o de ser exercida pelo Conselho Superior Judiciário, sem qualquer interferência do Poder executivo, a acção administrativa relativa ao provimento de lugares.”31

31 Recorde-se que por esta altura, se encontra vigente o Código de Processo Civil de 1876, com as alterações introduzidas pelos Decretos n.º 3, de 29 de Maio de 1905 e n.º 4618, de 13 de Julho de 1918, a que se seguiria o Decreto n.º 12353, de 22 de Setembro de 1926, continuado pelos Decretos n.os 21287, de 26 de Maio de 1932 e 21694, de 29 de Setembro de 1932. Aquele diploma seria revogado pelo Decreto n.º 29637, de 28 de Maio de 1939, a que se seguiria o Decreto-lei n.º 44129, de 28 de Dezembro de 1961 alterado por uma multi-plicidade de diplomas de que podemos destacar as que ultimamente foram introduzidas pelos seguintes diplomas: DL 329-A/95, de 12 de Dezembro, com as alterações introduzidas pelos seguintes diplomas: Decreto-lei n.º 180/96, de 25-9; Decreto-lei n.º 125/98, de 12 de Maio; Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto; Decreto-lei n.º 269/98, de 1 de Setembro; Decreto-lei n.º 315/98, de 20 de Outubro; Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro; Decreto-lei n.º 375-A/99, de 20 de Setembro; Decreto-lei n.º 183/2000, de 10 de Agosto; Lei n.º 30-D/2000, de 20 de Dezembro; Decreto-lei n.º 272/2001, de 13 de Outubro; Decreto-lei n.º 323/2001, de 17 de Dezembro; Lei n.º 13/2000, de 19 de Fevereiro; Decreto-lei n.º 38/2003, de 8 de Março; Decreto-lei n.º 199/2003, de 10 de Setembro; Decreto-lei n.º 324/2003, de 27 de Dezembro;

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Não bastava identificar os problemas, ainda que tal medida fosse, desde já um avanço. Assim, e ainda que se procurasse dar resposta a um número de dificuldades sentidas em termos processuais e de gestão dos actores judiciários e se procedesse paulatinamente à introdução de alterações, a resposta que o poder judiciário apresentava manter-se-ia insuficiente, pelo menos até ao início da segunda metade do século XX, até porque, convém não esquecer, o mapa judiciário estabelecido pelo Decreto n.º 13917, de 9 de Julho de 1927, estaria vigente até 196232. Muito embora nem todas as respostas para uma execução deficiente e fragilizada da justiça possam ser encontradas num mapa judiciário desajustado às necessidades sentidas, a verdade é que nele reside a maioria das causas justificativas, a qual nunca será resolvida com múltiplas revogações parciais. Nesta linha também, anos mais tarde, em 1978, o legislador mencionava uma permanente dependência do texto de 1962 que se encontrava em vigor, acusando este Estatuto de ser uma “verdadeira manta de retalhos de difícil e arriscada aplicação pelas sucessivas alterações sofridas, as mais das vezes para acudir a situações pontuais…”.

Ante o exposto e em tom de resposta aos problemas sentidos, em 1944, é promulgado um novo Estatuto Judiciário (Decreto-Lei n.º 33547, de 23 de Fevereiro33), mais tarde revogado pelo diploma de 1962, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 44278, de 14 de Abril34. Com efeito, a letra dos diplomas de 1944 e 1962 revela, em muitos aspectos, uma linha de continuidade, tendo-se

Decreto-lei n.º 53/2004, de 18 de Março; Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro; Decreto-lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março; Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril; L 53-A/2006, de 29 de Dezembro; Decreto-lei n.º 8/2007, de 17 de Janeiro; Decreto-lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto; Decreto-lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro; Decreto-lei n.º 116/2008, de 4 de Julho; Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto; Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro; Decreto-lei n.º 226/2008, de 20 de Novembro; Lei n.º 29/2009, de 29 de Junho; Decreto-lei n.º 35/2010, de 15 de Abril; Lei n.º 43/2010, de 3 de Setembro; Lei n.º 52/2011, de 13 de Abril e a Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro.

32 Vd. Lei n.º 2048, de 11 de Junho de 1951.33 Alterado pelos Decretos-leis n.os 35388, de 22 de Dezembro de 1945, 35389, de 22

de Dezembro de 1945, 37047, de 7 de Setembro de 1947.34 Alterado pelos Decretos-Leis n.os 44959, de 5 de Abril de 1963, 45134, de 13 de

Julho de 1963, 45732, de 27 de Maio de 1964, 46140, de 31 de Dezembro de 1964, 46538, de 16 de Setembro de 1965, 47.139, de 6 de Agosto de 1966, e 47.691, de 11 de Maio de 1967, 49213, de 29 de Agosto de 1969; 487/70, de 21 de Outubro, 281/71, de 24 de junho, 696/73, de 22 de Dezembro, 201/76, de 19 de Março, 483/76, de 19 de Junho (Estatuto dos Solicitadores) 761/76, de 22 de Outubro e 540/77, de 31 de Dezembro, 31/77, de 25 de Janeiro.

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operado sobretudo uma integração de várias alterações legislativas avulsas produzindo, desta forma, um único texto. Cerca de uma década depois e após um ano da entrada em vigor do actual texto constitucional, é aprovado o quinto estatuto judiciário novecentista (Lei n.º 85/77, de 13 de Dezembro35). No mesmo ano seria promulgada a Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais (Lei n.º 82/77, de 6 de Dezembro regulamentada pelo DL n.º 269/78, de 1 de Setembro36), a que se seguiriam a Lei Orgânica do MP (Lei n.º 39/78, de 5 de Junho precedida do Decreto-Lei n.º 917/76, de 31 de Dezembro que aprovou a Lei Orgânica da Procuradoria Geral da República); o decreto sobre a organização das secretarias judiciais e os funcionários de justiça (Decreto-Lei n.º 450/78, de 30 de Dezembro ratificado, com emendas, pela Lei n.º 35/80, de 29 de Julho e revisto pelos Decretos-Lei n.º 385/82, de 16 de Setembro e n.º 320/85, de 5 de Agosto); e o Estatuto da Ordem dos Advogados (Decreto-Lei n.º 84/84, de 16 de Março). Mantendo em muitos aspectos as soluções ditadas pelo legislador de 1977, e sem alterar a sistema-tização do diploma precedente, em 1985, entraria em vigor o actual estatuto da magistratura judicial (Lei n.º 21/85, de 30 de Julho37), o qual deve ser conjugado com as Leis n.º 101/2003, de 13 de Novembro n.º 36/2007, de 14 de Agosto (Conselho Superior da Magistratura) e a Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (Lei n.º 3/99, de 3 de Janeiro e Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto).

35 Alterada pelos Decretos-lei n.º 264-B/81, de 3 de Setembro, 348/80, de 3 de Setembro, pelo Decreto Regulamentar n.º 42/79, de 17 de Agosto e pela Declaração de Rectificação de 31 de Janeiro de 1978.

36 Vd. também o Decreto-Lei n.º 348/80, de 3 de Setembro. Relativamente às várias leis orgânicas dos tribunais judiciais posteriores ao Estatuto judiciário de 1962, vd. Decreto--lei n.º 450/78, de 30 de Dezembro, o Decreto-lei n.º 385/82, de 16 de Setembro, a Lei n.º 38/87, de 23 de Dezembro e a actual Lei n.º 3/99, de 3 de Janeiro. Vd. ainda o Decreto--lei n.º 376/87, de 11 de Dezembro e o Decreto-lei n.º 343/99, de 26 de Agosto.

37 Alterada pelo Decreto-lei n.º 342/88, de 28 de Setembro, e pelas Leis n.os 2/90, de 20 de Janeiro, 10/94, de 5 de Maio, 44/96, de 3 de Setembro, 81/98, de 3 de Dezembro, 143/99, de 31 de Agosto, 3-B/2000, de 4 de Abril, 4/2005, de 29 de Agosto, 26/2008, de 27 de Junho, 52/2008, de 28 de Agosto63/2008, de 18 de Novembro, 37/2009,de 20 de Julho, 55-A/2010, de 31 de Dezembro, 9/2011, de 12 de Abril e 64-B/2011, de 30 de Dezembro. Cfr. ainda a Lei n.º 16/98, de 8 de Abril, que regula a estrutura e funcionamento do Centro de Estudos Judiciários.

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2.2 o novo MaGIstrado e as exIGênCIas da repúblICa. vICIssItudes de uM novo reGIMe

“O juiz velho é uma criatura que dificilmente evoluciona e, sobretudo, se integre (sic) num espírito novo, qual é o espírito da República.”

(António Caetano Macieira Júnior, in DCD, de 22 de Dezembro de 1911, pp. 9-10)

Tal como referimos, a forma de governo instituída, em 1910, avança com um conjunto de acusações ao regime deposto38. Defendendo que a consolidação da República apenas se conseguiria com uma profunda reforma das instituições, Afonso Costa, titular da pasta da Justiça do Governo Provi-sório de 1910, apresenta uma série de alterações, de que podemos destacar a criação do Registo Civil, dos tribunais de honra, a substituição da Procu-radoria-Geral da Coroa e Fazenda e das Procuradorias Gerais das Relações por entidades congéneres agora designadas Procuradoria-Geral e Procurado-rias da República. De igual modo, são criados os tribunais criminais de 1.ª instância e os juízos municipais do Continente e Ilhas; os juízos de investi-gação criminal nas comarcas de Lisboa e Porto39; a que se sucederia, mais tarde, a Comissão de Reforma Penal e Prisional. Já durante o ministério de Álvaro de Castro (1913) seriam remodelados os conselhos disciplinares do Ministério da Justiça. No mesmo ano (1913) assiste-se também à transfe-rência de alguns aspectos antes da competência dos juízes de paz para os de comarca, bem como são criados ou restabelecidos alguns lugares notariais. Durante o ministério de Guilherme Moreira (1914), legisla-se em matéria da organização do Ministério Público, actualizando-se assim o regime de 1901. De igual modo é reorganizada a Secretaria de Estado do Ministério da Justiça e dos Cultos (Decreto n.º 1105, de 26 de Novembro de 1914), a qual seria remodelada, mais tarde, pelo Decreto n.º 5021, de 3 de Dezembro de 1918. As novidades pareciam imparáveis. Todavia, a realidade estaria distante deste cenário introdutório.

38 Cfr., entre outros, serrão, Joaquim Veríssimo, História de Portugal, vols. XIV--XVIII, Editorial Verbo, Lisboa, 2000-2002.

39 Vd., acerca das novas medidas tomadas, o Diário do Governo de 5 de Outubro de 1910 a 31 de Julho de 1911 bem como a relação sumária dos actos de Afonso Costa até 31 de Março de 1911, in leItão, Joaquim, Annaes Políticos da República Portuguesa, vol. I, Porto, 1916, pp. 259-266.

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A explicação para algumas, senão para todas as modificações ora intro-duzidas, reside num misto de desconfiança face ao quadro até então vigente e de desejo de afirmação e de assunção dos novos quadros. Ainda que pudesse ser exemplificativo de uma medida inovadora, o texto do decreto de 20 de Dezembro de 1910, ao criar o mecanismo de aposentação obrigatória para os juízes que completassem setenta anos de idade, muito embora o Governo pudesse, excepcionalmente, e a pedido dos próprios autorizar a permanência daqueles que até aos 75 anos mostrassem estar dotados de robustez física e raro valor intelectual; pretendia pôr termo a uma estagnação nos quadros dos tribunais de segunda instância e do Supremo Tribunal de Justiça. Todavia, a verdade é que subjacente a tal solução, o Governo Provisório procurava afastar aqueles que tinham jurado lealdade ao regime anterior. Esta medida bem como o elevado número de sindicâncias que se verificaram desde o movimento de 191040 revela a inequívoca suspeita quanto à imparcialidade da judicatura relativamente à judicatura existente41 e que conduziria à quase total recomposição do STJ42. Ainda assim, o ministro da justiça tentava actuar com a maior precaução para com os magistrados, procurando intro-duzir ou dar lugares de destaque a homens da sua confiança. Dir-se-á que as relações entre o Governo Provisório e a magistratura foram assaz delicadas e não menos conturbadas, pondo em causa o verdadeiro sentido de inde-

40 Exemplo paradigmático do controlo do Judiciário pelo Executivo é dado pelo caso do juiz da Relação de Lisboa, Carlos Augusto Vellez Caldeira Castelo Branco, na sequência da sua renúncia em assinar o acórdão de 4 de Janeiro de 1911, alegando que os tribunais comuns eram incompetentes para julgar os crimes imputados a António Teixeira de Abreu, último ministro da justiça do regime monárquico que redigira os decretos de 28 de Janeiro de 1908 sobre delitos de ordem política. Como consequência, foi transferido para a Relação de Luanda com o argumento que o voto apresentado continha “um propositado menosprezo pelos princípios estabelecidos pela República Portuguesa, de responsabilidade e igualdade de todos os cidadãos perante a lei e os tribunais” (cfr. Decreto de 14 de Janeiro de 1922, in DG n.º 12, de 16 de Janeiro do mesmo ano). Outros casos poderiam ser mencionados como o do conselheiro Basílio Alberto Lencastre da Veiga transferido coercivamente para a Relação de Goa, em 1911.

Vd. ainda os Decretos de 22 de Dezembro de 1910 e 5 de Junho de 1911.41 Vd. Portaria de 11 de Novembro de 1910.42 Em 1912, seriam aposentados por limite de idade vários conselheiros do STJ, sendo,

em seguida, nomeado o novo colégio da magistratura da República composto por Augusto de Castro, Almeida Fernandes, Almeida Pessanha, Tovar de Lemos, Joaquim de Melo, Pestana de Vasconcelos, Luís Berquó, Poças Falcão, Abel de Pinho, Fernandes Braga e Alexandre de Sousa Melo. Apesar de alguns defenderem princípios monárquicos, a sua inte-gridade valer-lhes-ia a recondução e respectiva nomeação.

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pendência e autonomia daquela. Note-se que as discussões na Constituinte de 1911 espelham bem esta realidade tão fragilizada entre os dois poderes, especialmente quando a tónica recaiu na proposta de autogoverno da magis-tratura. Afinal esta sempre tinha sido e seria a eterna vexata quaestio.

Recorde-se que ainda na I República ocorreriam alguns casos de lealdade obsessiva ao regime tendo o poder judiciário recusado declarar a insconstitucionalidade de certos diplomas, como o fizera antes, tratando-se agora das leis eleitorais de 1913 e 1915 de Pimenta de Castro. A agravante residia neste momento no facto da Constituição prever a regra da fiscali-zação da constitucionalidade no seu art. 63.º43. Acaso o poder judiciário não se manifestasse de modo contrário e inviabilizasse a execução das ditas leis, podemos dizer que se estavam a reviver os acontecimentos de 1907. A realidade não mudara tanto assim.

Em suma, sucedem-se as amnistias, mantem-se o clientelismo, sufocam-se as vozes contrárias, ou seja, a I República não conseguiria distinguir-se dos vícios que pretendera combater.

§3.º A CARREIRA JUDICIÁRIA

3.1 o CandIdato à MaGIstratura: requIsItos de InGresso

Nas vésperas de 1910, os quadros da magistratura judicial apresentam uma estrutura hierarquizada composta por juízes de direito (de primeira instância), das Relações e do STJ sendo o exercício da judicatura desem-

43 Esta disposição conferia competência ao poder judicial para apreciar a legitimidade constitucional ou a conformidade com a Constituição e com os princípios nela consagrados, dos diplomas emanados do poder executivo ou das corporações com autoridade pública, desde que nos feitos submetidos a juízo qualquer uma das partes impugnasse a validade daqueles diplomas. A Constituição de 1933 tutela o conhecimento oficioso da constitucio-nalidade das normas , mas restringindo esse conhecimento à inconstitucionalidade material, cabendo à Assembleia Nacional a fiscalização da inconstitucionalidade orgânica e formal (art. 123.º §2). A situação seria totalmente alterada, sendo conferida competência aos tribu-nais para conhecerem de todas as manifestações de inconstitucionalidade nos termos dos arts. 207.º, 277.º/2 e 280.º do texto de 1976.

Vd. Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, I ano, 1914, Julho n.º 1, págs. 10-17 e Chorão, Luís Bigotte, Politica e Justiça na I República, vol. I: 1910- -1915, Letra Livre, Lisboa, 2011, págs. 439-445.

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penhado por juízes municipais, juízes de paz, juízes de comarca, desembar-gadores e juízes conselheiros do STJ.

Os estatutos de 1927, 1928 e 194444 não alterarão esta estrutura, consa-grando-a, respectivamente, nos arts. 17.º e 18.º e 217). Também a legislação ordinária posterior a 1974 a manteria45.

Em termos quantitativos, o número de juízes de 1.ª instância irá aumen-tando, naturalmente, ao longo do século XX, apresentando apenas o Esta-tuto de 1944 uma redução do número de magistrados de 2.ª instância e do STJ, face ao quadro anterior, situação que seria reposta pelo diploma de 196246. Posteriormente, o vector teria um sentido continuamente ascendente, conforme decorre da legislação em vigor47.

Ao longo do século XIX haviam-se apresentado como candidatos à magistratura os bacharéis em Direito, sendo exigida, ou não, a leitura no Desembargo do Paço, consoante o período em apreço, necessitando contudo que o mérito e o amor à causa constitucional estivessem preenchidos e comprovados. De modo mais específico poderiam habilitar-se ao lugar de juiz de 1.ª instância: os delegados do Procurador Régio; os subdelegados do Procurador Régio, desde que fossem bacharéis em Direito e contassem com dois anos de serviço; os administradores de concelho, que fossem bacha-réis; os conservadores do registo predial com provas prestadas em concurso público e com habilitações para serem nomeados delegados do Procurador Régio; os juízes municipais; o secretário da Procuradoria Geral da Coroa e Fazenda; os juízes de direito de primeira instância das províncias ultra-marinas (estes últimos, nos termos dos arts. 132.º e 133.º do Decreto de 20 de Fevereiro de 1894)48. Frise-se que estes últimos eram providos não pelo Ministério dos Negócios Eclesiásticos e de Justiça, mas pela Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar, atendendo para o efeito às

44 Note-se que a redacção dada pelo diploma de 1933 não introduzirá quaisquer alte-rações neste sentido. Cfr. art. 17.º deste diploma.

45 Cfr. art. 2.º da Lei n.º 85/77 e art. 1.º da Lei n.º 21/85.46 Vd. Decreto-lei n.º 202/73, de 4 de Maio, a Lei n.º 414/73, de 21 de Agosto e o

Decreto-lei n.º 217/77, de 27 de Maio.47 Cfr. arts. 38.º-39.º da Lei n.º 3/99, 3.º do Decreto-lei n.º 186-A/99 e 46.º-47.º da

Lei n.º 52/2008. 48 Cfr. Decreto n.º 3, de 29 de Março de 1890, o Decreto de 15 de Janeiro de 1891 e

o Decreto de 24 de Outubro de 1901.Vide art. 6.º da proposta de lei de Artur Montenegro, datada de 1905 e ainda o Decreto n.º 11716, de 12 de Junho de 1926, sobre a primeira nome-ação dos delegados da Procuradoria da República, contadores e escrivães, bem como acerca da constituição dos júris para os concursos a realizar àqueles.

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mais distintas habilitações literárias, aos bons serviços no ultramar, espe-cialmente na magistratura do MP, às melhores informações sobre o proce-dimento e serviços, obtidas oficialmente e à antiguidade da formatura49. De igual modo poderiam habilitar-se os advogados de número dos tribunais de comércio para o lugar de juiz destes tribunais.

Assim, uma vez nomeados, os juízes de Direito exerceriam o seu cargo de forma vitalícia50 (a menos que fossem demitidos, devendo para tanto tal decorrer de uma sentença judicial). A judicatura de primeira instância compreendia períodos de três, quatro ou seis anos, a depender da legislação em vigor, muito embora o período trienal tenha sido o que mais perdurou, findo os quais se procedia à transferência de uma para outra comarca ou, segundo o texto da própria Magna Lei, de uns a outros lugares, como a lei determinar e se promovia o magistrado da 3.ª à 2.ª classe e, por fim, à 1.ª a que se seguia depois a 2.ª instância.

Até 1928, o candidato à magistratura judicial deveria ter, no mínimo, vinte e cinco anos de idade, ser cidadão português e não apresentar qualquer capitis diminutio sendo a nomeação feita por acto do Ministro da Justiça e dos Cultos, visto que a proposta de cooptação apresentada nas Constituintes não tinha vingado.

No momento que entendemos dever designar por fase de transição, ou seja entre 1910 e 1927, coube à Lei de 12 de Julho de 191251 regular esta situação ao estabelecer as Bases do Estatuto dos juízes52. O Decreto n.º 4172, de 30 de Abril de 1918 manterá a nomeação dos magistrados por parte do Ministro da Justiça e dos Cultos, sob proposta do Conselho Supe-rior da Magistratura Judicial (CSMJ)53, segundo o critério do mérito, ainda que logo em Julho de 1918, o decreto com data de 23 condicione a nome-ação e a transferência dos magistrados à vontade do Ministro da Justiça, a qual poderá divergir da proposta do CSMJ para seguir o critério da anti-

49 A este respeito, vd. designadamente a Lei de 14 de Junho de 1913, do Decreto n.º 5391, de 14 de Abril de 1919, do Decreto n.º 7925, de 15 de Dezembro de 1921, dos arts. 168.º e 172.º-174.º do Decreto n.º 14453, de 20 de Outubro de 1927 e do Decreto n.º 21275, de 22 de Abril de 1932.

50 Tal seria o resultado das votações ocorridas nas sessões da Câmara Constituinte entre os dias 14 e 18 de Janeiro de 1822.

51 DG n.º 171, de 23 de Julho de 1912.52 Regulamentada em 26 de Agosto do mesmo ano (DG n.º 255, de 30 de Outubro de

1912) e alterada pelos decretos n.º 4172, de 30 de Abril de 1918 e pelo Decreto n.º 10310, de 19 de Novembro de 1924.

53 Sobre a importância dos Conselhos Superiores,vd. n.º 4.5.

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guidade, no caso das nomeações e promoções (art.4.º/1) ou para escolher outro, no caso das transferências (art. 4.º), frisando o mesmo diploma que os presidentes do STJ e das Relações deixam de ser eleitos, para passarem a ser livremente escolhidos pelo Governo de entre os juízes dos respectivos tribunais (art. 5.º).

Recorde-se que o Decreto n.º 1499, de 13 de Abril de 1915, havia tornado obrigatória a candidatura dos delegados do Ministério Público à magistratura judicial, proibindo, em seguida, os decretos n.ºs 3786 e 3950, de 30 de Janeiro e 21 de Março de 1918, os mesmos magistrados de renun-ciarem à magistratura judicial, determinando o primeiro diploma, como inválidas as renúncias já feitas54.

As soluções legislativas oscilarão, como veremos, até 1928. Assim, ainda que a regra fosse a da nomeação governativa, nas vésperas da redacção do primeiro estatuto judiciário, o provimento no cargo de magistrado regu-lado, nos termos do Decreto n.º 11751, de 23 de Junho de 1926, confere ao Conselho Superior Judiciário (doravante designado CSJ), competência para selecionar os candidatos que julgue mais idóneos55. Este diploma pretendia impor o princípio da cooptação, vindo o art. 14.º do EJ1927 definir como princípio da independência da magistratura “o direito de, por intermédio do CSJ, escolher os seus membros para os diversos cargos judiciais…”. Tratava-se do mesmo raciocínio e preceito que havia sido infrutiferamente apresentado em 1910 no projecto de Constituição, mas que a Assembleia Nacional Constituinte rejeitara, por iniciativa de Afonso Costa, entendendo que tal nomeação deveria competir apenas ao Governo. A solução seria efémera, dado que o EJ1928 reiteraria a linha vitoriosa de 1911, não mais contemplando, logo na versão originária aquela primeira parte do art. 14.º, apenas consagrando como característica da independência da magistratura o exercício livre das funções, tal como sucederia no art. 241.º/ al. a) do EJ 1944.

54 Por sua vez, o recrutamento dos quadros superiores do Ministério Público (ajudantes do procurador-geral da República e ouvidor da Junta do Crédito Público) - passa a fazer-se entre juízes de direito de 1.ª classe, de 2.ª instância e dos lentes da Faculdade de Direito, o que denota uma maior proximidade entre as duas carreiras, sem ferir o princípio da auto-nomia e independência entre aquelas. Os procuradores da República são nomeados de entre os seus ajudantes ou de entre juízes de direito de primeira classe e os ajudantes do procurador da República são nomeados de entre secretários da Procuradoria-Geral da República ou das procuradorias da República ou de entre juízes de direito de 1.ª classe.

55 Vd. Decreto n.º 21485, de 22 de Julho de 1932, DG n.º 170.

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Com a introdução dos estatutos, são as seguintes as regras de habi-litação e provimento de magistrados. O candidato deveria ser português, do sexo masculino, maior de idade56, bacharel57 ou doutor em Direito ou delegado de 1.ª classe do Ministério Público58-59, não poderia estar inibido de exercer os seus direitos civis e políticos; nem ter sido processado crimi-

56 Determina o legislador de 1962 que deverá ter uma idade não inferior a 21 anos nem superior a 35 anos, ex vi do disposto no art. 365.º/1, al. a).

57 O grau de bacharel formado é substituído pelo de licenciado ex vi Decreto n.º 4554, de 6 de Julho de 1918. Este diploma permite ainda a concessão do grau de doutor aos profes-sores ordinários e extraordinários que o não possuam, bem como a eminentes individuali-dades, dignas dessa distinção. Vd. ainda a Lei n.º 616, de 19 de Junho de 1916.

58 Recorde-se que o EJ 1928 previa nos termos do art. 417.º o envio de apenas duas listas de candidatos ao concurso a magistrado: os doutores em direito e os delegados de 1.ª classe do Ministério Público que constituíam o terço superior da respectiva lista de antigui-dade. Estes últimos, eram candidatos obrigatórios, o que não impedia que o CSJ excluísse todos aqueles que não tivessem mostrado aptidão para a função de julgar (art. 417.º§1), decisão que poderia ser alvo de recurso nos termos do §2 do mesmo artigo. Na verdade, por altura da discussão do EJ de 1944, as correntes teóricas que pontuavam, ora indicavam o recrutamento entre os advogados e os delegados do Ministério Público, ora a solução eclé-tica que defendia o recrutamento entre delegados, advogados e outros funcionários concre-tamente identificados. Mais tarde, alargar-se-ia o leque de candidatos, impondo-se, nesta circunstância, apenas a licenciatura em direito, cf. 40.º, al. c) da Lei n.º 21/85.

59 Os magistrados judiciais das colónias podem também requerer o seu ingresso na magistratura judicial da metrópole quando nelas tiverem prestado, pelo menos: três anos, na 3.ª classe; oito anos, na segunda; doze anos, na primeira; dezoito anos, nas Relações, sendo três na 2.ª instância (art. 29.º EJ 1927 e 1928).

O novo texto dado ao art. 29.º pelo DL n.º 22779, de 29 de Junho de 1933 determi-naria que os magistrados judiciais das colónias pudessem requerer o seu ingresso na magis-tratura judicial da metrópole quando nelas tivessem prestado, pelo menos, dois anos (para ingressar na 3.ª classe); seis anos, na 2.ª; dez anos, na 1.ª; dezasseis anos, nas Relações, sendo dois na 2.ª instância. Neste sentido, vd. arts. 258.º-259.º do DL n.º 33547/1944 e art. 7.º do DL n.º 35388, de 22 de Dezembro de 1945 que confere competência ao CSJ para dar parecer sobre o ingresso dos magistrados judiciais das províncias ultramarinas, antes das colónias; nos quadros da magistratura da metrópole.

Caberá ao art. 160.º do EJ 1962 dispor sobre as condições de passagem para a magis-tratura da metrópole, impondo a classificação de Bom ou superior para a 1.ª instância e a de Muito Bom para a 2.ª; bem como a prestação de serviço judicial efectivo durante dois anos para a 3.ª classe, seis para a 2.ª, dez para a 1.ª e dezasseis anos, sendo dois na 2.ª instância, para a Relação.

O tempo de serviço efectivo dos magistrados do ultramar seria contado nos termos do art. 161.º EJ 1962.

Mais tarde, após 1974, esta matéria seria regulada pelo Decreto-Lei n.º 402/75, de 25 de Julho (vd. Lei n.º 39/78, de 5 de Julho) e pelo art 196.º da Lei n.º 85/77, de 13 de Dezembro.

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nalmente ou sujeito ao cumprimento de qualquer pena; devendo ainda ter cumprido os preceitos da lei do recrutamento militar e estar quite com a Fazenda Nacional60. Os concorrentes poderiam ainda juntar quaisquer outros comprovativos de habilitações que possuíssem e de serviços públicos que tivessem prestado (art. 401.º EJ 192861). Cumulativamente deveriam depo-sitar na CGD a importância exigida por lei62 e proceder às declarações a que se referiam o art. 3.º da Lei n.º 1901, de 21 de Maio de 1935 e o art. 1.º do Decreto-lei n.º 27003, de 14 de Setembro de 193663.

O texto preambular do Estatuto de 1944 menciona ainda que cons-tituindo o recrutamento dos serventuários dos lugares da justiça “um dos problemas mais delicados que a organização judiciária põe à consideração do legislador”, exige em virtude do melindre das funções desempenhadas que “estes cargos sejam exercidos por homens íntegros, insensíveis às tentações capazes de comprometer a sua honestidade ou a sua rigorosa fidelidade ao dever (…) [sendo] necessário também que a ela se alie uma comprovada competência técnica, pois só assim se conseguirá um regular funcionamento dos serviços, condição indispensável para se conseguir uma boa justiça”. Ainda no mesmo texto se acrescentavam como características incontornáveis do juiz de comarca, que pretenda prestigiar a aplicação da justiça, a disciplina e competência

O art. 338.º do mesmo diploma de 1944 mantém a regra vestibular estabelecida entre a magistratura do Ministério Público e a magistratura judicial, indicando explicitamente como critério vigente que figurem como concorrentes obrigatórios os delegados do Procurador da República (art. 339.º), sendo imperativamente chamados ao concurso os que constituam os dois terços superiores da lista de antiguidade de 1.ª classe com mais de 3 anos de bom e efectivo serviço64. Seriam voluntários os diplomados com o 5.º ano de direito e a informação final universitária de bom com distinção ou superior, desde que não tivessem idade superior a 45 anos, e tivessem

60 Art. 400.º EJ 1927 e 1928. 61 Vd neste sentido art. 365.º/2 do EJ 1962.62 Vd. ainda art. 402.º do EJ 1927 e 1928, bem como o art. 366.º EJ 1962.63 Cfr. art. 365.º/1, al. e) do EJ 1962.64 Note-se que a este respeito, os diplomados em direito com o grau de doutor eram,

nos termos do art. 421.º do EJ de 1928, classificados em primeiro lugar na categoria que lhes competisse. Vd ainda FerreIra, Flávio Pinto, Uma abordagem sociológica da magis-tratura judicial, comunicação feita ao instituto da Conferência do Porto, em 14 de Junho de 1972, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 33 (1973), Lisboa, pp. 83-137.

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pelo menos 10 anos de bom e efectivo serviço na profissão de secretário do STJ, da Procuradoria-Geral da República ou das Relações, secretário-geral, chefe de secretaria ou de secção, ou sete anos nas funções de advogado ou juiz municipal ou de delegado do Procurador da República. O EJ1962 intro-duziria algumas modificações (art. 380.º) passando a ser obrigatoriamente chamados: os delegados do procurador da República que constituíssem a metade65 superior da lista de antiguidade da 1.ª classe e não tivessem classificação inferior a Bom66. Como voluntários passavam a ser admitidos, os diplomados em Direito com informação final universitária de Bom com distinção, desde que tivessem o mínimo de sete anos de bom e efectivo serviço na função de delegado do procurador da República, inspector da polícia Judiciária, advogado ou juiz municipal (n.º 2).

Os delegados que não fossem admitidos a concurso pela segunda vez, bem como aqueles que faltassem à prestação de provas ou não fossem apro-vados em dois concursos, e os que, tendo faltado a um concurso, fossem excluídos no seguinte, ou vice-versa, eram colocados na inactividade com metade dos seus vencimentos, devendo ser providos, independentemente de concurso e de preferência a quaisquer outros concorrentes, nas vagas de oficiais do registo civil, em concelhos de 2.ª classe, ou de conservadores do registo predial, em comarcas de 3.ª ou 2.ª classe (art. 423.º EJ 192867 e art. 367.º/1 EJ 1962).

Em geral, o critério de distribuição e nomeação para o cargo de juízes dos candidatos aprovados em mérito absoluto classificados com as notas de Muito Bom ou Bom é feita, no período de 1928 a 1977, nos seguintes moldes:

a) Na vigência do EJ1928, por cada grupo de 4 vagas, as três primeiras eram providas em delegados e a quarta em juiz municipal, advo-gado, chefe de secretaria judicial, contador das Relações, ou distri-buidor geral que a tenha requerido, observando-se sempre a ordem de preferência resultante da melhor classificação no exame. Se esta fosse igual, atender-se-ia à antiguidade no quadro, na data da nomeação, tratando-se de delegados; e à antiguidade de formatura e, subsidiariamente, à maior idade, se fossem juízes municipais,

65 O sublinhado é nosso.66 Vd também o art. 382.º EJ 1962.67 Cfr. art. 422.º segundo redacção dada pelo Decreto-lei n.º 22279, de 29 de Junho

de 1933.

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chefes de secretarias, contadores, distribuidores ou advogados. A ratio relativa aos candidatos voluntários aprovados e colocados nas comarcas de 3.ª classe e aqueles que pudessem requerer a sua colocação independentemente de exame corresponderá nos termos do art. 347.º pr. do EJ1944 a metade das vagas.

b) As vagas destinadas aos requerentes enumerados anteriormente eram anunciadas no Diário do Governo devendo os requerimentos dos concorrentes ser apresentados, dentro dos oito dias imediatos à publicação do anúncio, no Ministério da Justiça, que os enviaria ao CSJ para serem informados quanto a classificações no exame. No caso de não ter havido concorrentes, as vagas eram providas em delegados;

c) os advogados aprovados no exame em caso algum poderiam, durante um período de cinco anos, segundo o texto de 1928, e depois de três anos (conforme o texto de 1944) ser colocados em comarcas do continente pertencentes à área da Relação onde tivessem tido a sede do seu escritório de advocacia no triénio ante-rior à sua nomeação68;

d) os candidatos aprovados numa época de exames não poderiam ser nomeados como juízes sem que o tivessem sido todos os apro-vados na época anterior, excepto se estes, sendo juízes municipais, chefes de secretaria, contadores, distribuidores ou advogados, não tivessem requerido a sua nomeação, como o definia o legislador de 1928, ou ainda, salvo se tivessem uma classificação inferior a Muito Bom obtida pelos candidatos do concurso posterior (arts. 347.º§3 EJ1944 e 116.º EJ1962);

e) se os delegados, depois de aprovados no exame, perdessem, por qualquer motivo, tempo de serviço superior a 60 dias, atender-se--ia na sua colocação, exclusivamente à antiguidade que tivessem à data desta, sem ter em atenção à classificação no exame e à data em que este teve lugar (art. 421.º do EJ de 1928, conforme redacção dada pelo diploma de 1933, preceito que seria mantido na letra do art. 347.º§4 do EJ1944).

A Lei n.º 85/77, indicaria como idade mínima dos candidatos à magis-tratura os 25 anos de idade e manteria os requisitos da cidadania portu-

68 Vd. sub capítulo relativo às incompatibilidades.

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guesa, o pleno gozo dos direitos políticos e civis e a licenciatura em Direito, introduzindo agora um novo requisito que se traduzia na frequência com aproveitamento de cursos ou estágios de ingresso que, nos termos do art. 41.º do mesmo diploma decorreriam no Centro de Estudos Judiciários, em moldes a definir por lei, vindo esta instituição a ser criada apenas em 1979 (Decreto-lei n.º 374-A/79, de 10 de Setembro)69.

O legislador de 197770 remetia ainda o modo de recrutamento de magistrados judiciais, até ao momento da criação do CEJ, em 197971, para

69 Cfr. art. 42.º da Lei n.º 85/77 acerca das regras atinentes à primeira nomeação. No que diz respeito à formação profissional dos magistrados, o legislador constitucional de 1976 apenas refere que deverá ser adequada às leges artis da profissão, e que revele o grau de cientificidade suficiente à aplicação correcta do direito e à dignidade da função judicial como explica CanotIlho, Gomes, Direito Constitucional..., p. 672.

Vd. ainda arts. 40.º-41.º da Lei n.º 85/77. Cfr. Lei 16/98, de 8 de Abril (DR, IS-A, n.º 83, de 8 de Abril) e Lei n.º 2/2008, de 14 de Janeiro (DR, IS, n.º 9, de 14 de Janeiro). Recorde-se que já anteriormente o legislador de 1975 havia consagrado a frequência de um período de estágio como modo de ingresso nas magistraturas judicial e do MP (DL n.º 714/75, de 20 de Dezembro) cabendo ao CSJ determinar o período e o lugar da sua realização, ainda que a priori este decorra nas comarcas de Lisboa e Porto (art. 2.º/1 e 2). Os juízes estagiários declarados aptos serão nomeados juízes de direito segundo a ordem de antiguidade na magis-tratura do MP e no exercício da advocacia (art. 12.º/1). Enquanto não forem nomeados, são colocados pelo CSJ, como juízes auxiliares, em comarcas cujas exigências de serviço o justifiquem (art. 12.º/2).

70 Cfr. arts. arts. 35.º, 45.º-46.º, 49.º, 55.º e 57.º do Estatuto de 1977. Sobre a possi-bilidade de realização de cursos especiais de formação, vd. art. 79.º do Decreto-lei n.º 374-A/79, com a redacção dada pelo Decreto-lei n.º 264-A/81, de 3 de Setembro.

71 Criado pelo Decreto-Lei n.º 374-A/79, de 10 de Setembro, enquanto entidade responsável pela formação profissional de magistrados judiciais e do Ministério Público e estando na dependência do Ministro da Justiça, o CEJ veria a sua missão formativa alargada pelo Decreto-Lei n.º 146-A/84, de 9 de Maio, à formação profissional de conservadores e notários, e à realização de acções formativas no quadro das Direcções-Gerais dos Serviços Prisionais e dos Serviços Tutelares de Menores e do Instituto de Reinserção Social. A Lei n.º 16/98, de 8 de Abril, passaria a regular a estrutura e funcionamento do Centro de Estudos Judiciários a partir de 9 de Abril de 1998, revogando o citado Decreto-Lei n.º 374-A/79, de 10 de Setembro, com as alterações que lhe haviam sido introduzidas pelos Decretos-Leis n.os 264-A/81, de 3 de Setembro, 146-A/84, de 9 de Maio, 404/88, de 9 de Novembro, 23/92, de 21 de Fevereiro, e 395/93, de 24 de Novembro. Por sua vez a Lei n.º 16/98 seria alterada pela Lei n.º 3/2000, de 20 de Março, e pelo Decreto-Lei n.º 11/2002, de 24 de Janeiro, seria revogada pela Lei n.º 2/2008, de 14 de Janeiro, a qual com as alterações introduzidas pela Lei n.º 60/2011, de 28 de Novembro regula actualmente o ingresso nas magistraturas, a formação de magistrados e a natureza, estrutura e funcionamento do Centro de Estudos Judi-ciários.

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o disposto na Lei n.º 102/77, de 21 de Março, que introduzira várias alte-rações á letra do diploma de 1962. assim, passariam a ser chamados, por ordem de antiguidade, delegados do procurador da República de 1.ª classe com classificação de serviço não inferior a Bom, os advogados, conserva-dores e notários com, pelo menos, dez anos de actividade profissional à data de abertura do estágio, não podendo o número destes últimos exceder um quinto do número total de estagiários, preferindo os mais antigos e, em caso de igualdade, os que primeiro requereram a admissão (art. 12.º/2 e 3 e art. 187.º/1 e 2 da Lei n.º 85/77). Não havendo delegados do procurador da República em número suficiente, o número de advogados, conservadores e notários a admitir ao estágio poderia exceder um quinto do total de esta-giários (art. 187.º/3).

Findo o regime de recrutamento e formação previsto no Decreto-Lei n.º 102/77, de 21 de Março, os delegados do procurador da República ao tempo e os que viessem a ser nomeados poderiam ingressar na magistratura judicial (art. 188.º da Lei n.º 85/77).

Os requisitos enunciados no diploma de 1977 manter-se-iam no texto estatutário de 1985, o qual não faria contudo qualquer menção à idade mínima, apenas indicando a conclusão da licenciatura em Direito (art. 40.º da Lei n.º 21/85)72.

Tal como o legislador de oitocentos, o seu congénere de novecentos persiste no uso do vocábulo mérito para caracterizar o candidato à magis-tratura, tal como o fizera anteriormente o legislador oitocentista. Se antes o termo estava intrinsecamente ligado a aspectos de cariz político, reve-lando uma maior ou menor proximidade face às ideologias seguidas pela entidade governativa, o legislador do século XX faz prevalecer a vertente ou sentido científico resultante, por exemplo, das várias inspecções de que o juiz é alvo73.

Ainda assim, Marcello Caetano ao reproduzir o testemunho de um advogado coevo da década de setenta, segundo o qual “qualquer magistrado que não esteja com a Revolução que a Constituição de 1976 instituciona-lizou ou que não a tenha, sequer minimamente compreendido, será sempre

72 Contrariamente, o art. 23.º, al. c) da Lei n.º 78/2001, determina que o juiz de paz não deverá, entre outros requisitos, ter uma idade inferior a 30 anos.

73 Por este motivo, é imposto o concurso curricular como forma de acesso aos tribu-nais de 2.ª instância e ao STJ a que se associam as várias inspecções feitas aos magistrados e a antiguidade.

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um mau juiz”74, deixa antever uma certa continuidade com aquela que tinha sido a linha exposta para o período vigente até 1910, ou seja, o bom juiz era aquele que se apresentava como partidário dos ideais políticos então vencedores. Assim parecia, para o insigne Professor, continuar a aplicar-se o conceito de meritocracia.

Em resumo, e especificando a matéria relativa às habilitações acadé-micas do candidato, os estatutos judiciários de 1928, 1944 e 1962 elegem entre os possíveis candidatos, os delegados, os doutores e diplomados em direito com informação final universitária mínima de Bom com distinção75 e que por um período determinado na lei, tivessem exercido o bom e efectivo serviço da profissão de advogado ou das funções de delegado, juiz municipal, chefe de secretaria judicial, contador ou chefe de secção das Relações e de distribuidor geral, sendo em princípio entre os delegados do Procurador da República que se recrutarão os juízes de direito. O Estatuto de 1944 mantém este princípio ainda que admita a nomeação de doutores em Direito, com 28 anos de idade, pelo menos, e três de exercício de determinadas profissões, sem necessidade do exame de habilitação de que falaremos. De igual modo é reduzido o prazo de exercício de algumas das profissões que habilitam os licenciados em direito com informação final de 16 valores, pelo menos, a requerer o exame para juiz, dada a prática ter demonstrado ser aquele exces-sivo bem como ser necessário atrair para a magistratura os estudantes mais destacados das Faculdades de Direito.

Os estatutos subsequentes exigirão, entre os vários requisitos, a licen-ciatura em Direito e a frequência com aproveitamento de um curso de prepa-ração e selecção ministrado pelo Centro de Estudos Judiciários.

Comum a todos os estatutos e revestindo um cariz inovador, encontra--se a prestação de dois tipos de provas: uma de carácter teórica e outra de natureza prática, como veremos.

74 Caetano, Marcello, Constituições Portuguesas, 5.ª edição, Verbo, 1981, Lisboa, p. 156.

75 A possibilidade das mulheres integrarem a carreira judiciária será apenas introdu-zida pelo disposto no art. 32.º do DL n.º 281/71, de 24 de Junho, mas apenas para os lugares de oficial de diligências, em virtude das características das respectivas funções (art. 343.º). Só, mais tarde, quase no final da década de setenta seria nomeada a primeira juíza portu-guesa.

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3.2. IneleGIbIlIdades e InCoMpatIbIlIdades

3.2.1. Regime jurídico aplicável

Presente já na legislação oitocentista76, o regime instituído em 5 de Outubro mantém, em alguns casos, o princípio da inelegibilidade assim como impede a acumulação de cargos ou do exercício de profissões, quando o sujeito envolvido é um magistrado77. Note-se que a enunciação de um conjunto de incompatibilidades e inelegibilidades que são impostas ao magistrado judicial equivalem à consagração da independência pessoal e funcional e da exclusividade da actividade de julgar, ainda que, v.g. quer o legislador constitucional (de 1976) quer o legislador ordinário do actual

76 Em sede de inelegibilidades, a matéria foi regulada pela Constituição de 1838 (art. 75.º/XI), Código Administrativo de 1842, Decreto de 28 de Março de 1895 e o Decreto elei-toral de 8 de Agosto de 1901. Recordamos que anteriormente o legislador administrativista afastava da possibilidade de serem eleitos para vogais dos corpos administrativos: os juízes do continente e ilhas, os magistrados do Ministério Público, os oficiais de justiça indepen-dentemente da sua categoria (art. 8.º, §1, n.º 4 e 5 Código Administrativo de 1842); não podendo também ser eleitos deputados pelo círculo em que estivesse compreendida a circuns-crição judicial em que exerciam funções. Desta última inelegibilidade estavam isentos os juízes do STJ e o Procurador-Geral da Coroa e Fazenda que podiam ser eleitos deputados por qualquer círculo (art. 5.º do Decreto eleitoral de 8 de Agosto de 1901). Também quer os magistrados da magistratura judicial quer os do Ministério Público e respectivos agentes e os oficiais de justiça em exercício de funções nas províncias ultramarinas eram absoluta-mente inelegíveis para vogais de corpos administrativos; não podendo ser eleitos deputados pelo círculo em que exercessem as suas funções (art. 17.º do Código Administrativo de 1842).

77 Cfr. designadamente, os arts. 9.º/1 da Lei de 14 de Março de 1911, 9.º/1 do Decreto de 5 de Abril de 1911, 7.º/3 da Lei n.º 3, de 3 de Julho de 1913, 8.º/1 e 9.º/1 do Decreto n.º 3997, de 30 de Março de 1918, art. 10.º do Decreto-lei n.º 24631, de 6 de Novembro de 1934, art. 13.º do Decreto-lei n.º 34938, de 22 de Setembro de 1945, art. 14.º do Decreto-lei n.º 35570, de 3 de Outubro de 1949.

Para a situação actual, cfr. Lei n.º 14/79, de 16 Maio, (Declaração de Rectificação de 17 de Agosto de 1979 e de 10 de Outubro de 1979) com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro (Declaração de Rectificação de 3 de Novembro de 1982 e de 31 de Janeiro de 1983), Lei n.º 14-A/85, de 10 Julho, Decreto-Lei n.º 55/88, de 26 Fevereiro, Lei n.º 5/89, de 17 Março, Lei n.º 18/90, de 24 Julho, Lei n.º 31/91, de 20 Julho, Lei n.º 72/93, de 30 Novembro, (Declaração de Rectificação n.º 13/93, de 31 de Dezembro e n.º 3/94, de14 de Fevereiro), Lei n.º 10/95, de 7 Abril, Lei n.º 35/95, de 18 Agosto, Lei Orgânica n.º 1/99, de 22 Junho, Lei Orgânica n.º 2/2001, de 25 Agosto, Lei Orgânica n.º 3/2010, de 15 de Dezembro, e Lei Orgânica n.º 1/2011, de 30 de Novembro, em especial o art. 5.º, als. c) e d).

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EMJ (Lei n.º 21/85) tenha optado por não as associar, indicando, ao invés, as “garantias e incompatibilidades”, sendo mencionadas as primeiras nos n.os 1 e 2 do artigo 216.º, enquanto as segundas constam dos n.os 3 a 5, do mesmo modo que no âmbito do segundo diploma, a independência é anali-sada no art. 4.º enquanto a irresponsabilidade e a inamovibilidade estão consagradas nos arts. 5.º e 6.º, recebendo as incompatibilidades um lugar distinto noutro capítulo, juntamente com os deveres, direitos e regalias, no art. 13.º.

A incompatibilidade pode ser traduzida como um tipo de incapaci-dade lato sensu78 por oposição ao sentido restrito que respeita à deficiência no indivíduo de condições gerais ou especiais para a sua admissão a um cargo público. Ou seja, não estamos perante a falta de qualquer elemento, mas perante a presença de um elemento novo, que reflectirá, por si só, um impedimento à admissão ao cargo, ou pelo menos ao exercício da função respectiva no desempenho do cargo ou ofício público.

Entre os vários tipos de incompatibilidade, podemos destacar o conceito de inelegibilidade relativa. Neste caso, tem-se em vista a impos-sibilidade por parte de um indivíduo acumular dois cargos electivos, ou de acumular um cargo electivo com um cargo de nomeação ou, numa terceira hipótese acumular o exercício de uma determinada profissão ou situação pessoal com um cargo electivo. Tais casos representam verdadeiras incom-patibilidades e só porque em ambos ou apenas num dos membros da relação de incompatibilidade intervém o princípio electivo, tal incompatibilidade toma então a designação de inelegibilidade.

Já a inelegibilidade absoluta equivale a uma incapacidade em que se não verifica o preenchimento dos requisitos impostos por lei para a admissão de um indivíduo num determinado cargo público.

Frise-se que o exercício simultâneo de cargos públicos por uma mesma pessoa e o exercício de um cargo por uma pessoa que se encontre em determinadas condições podem ser origem de graves inconvenientes para o serviço público frisando-se, ainda, que a simultaneidade do exercício de dois cargos pode ser fisicamente impossível.

Assim sendo, o princípio das incompatibilidades não só procura manter a recíproca independência dos diversos poderes e ofícios públicos como traduz a impossibilidade da coexistência de duas qualidades que se excluem.

78 Cfr. pedrosa, Guimarães, Curso de ciência da administração e direito adminis-trativo, segunda edição, Imprensa da Universidade, Coimbra, 1908, p. 259.

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Por este motivo, as incompatibilidades importam numa limitação ao livre exercício de direitos individuais e políticos e devem ser interpretadas restritivamente. Note-se que o princípio exposto não implica forçosamente que a lei declare expressamente todo e qualquer caso. Tal entendimento pode decorrer dos princípios fundamentais ínsitos na legislação, da natu-reza dos cargos ou quando a natureza das funções estão em oposição com os interesses da pessoa que se propõe exercê-lo.

A incompatibilidade pode dar-se pela acumulação na mesma pessoa dos elementos que constituem aquela relação; ou pode surgir por virtude de relações especiais que se dêem entre pessoas diversas, como no caso do parentesco em determinados graus.

Como efeito da incompatibilidade verifica-se a não admissão a um determinado ofício público, a perda do cargo de que fala a incompatibili-dade, sendo aceite o outro e a renúncia do cargo por declaração expressa ou por presunção prevista na lei quando o indivíduo é admitido a outro cargo público. A incompatibilidade também pode ser apenas efectiva na divisão territorial em que o funcionário exerce as suas funções; ou determinar a suspensão de um cargo enquanto as funções do segundo estiverem a ser desempenhadas79.

Ainda que não se trate de um caso de incompatibilidade ou inelegi-bilidade, é expressamente proibido aos magistrados judiciais: o exercício de funções judiciais na comarca da sua naturalidade ou do seu cônjuge, salvo se esta for sede de distrito administrativo80; residir fora da sede da sua circunscrição judicial81; ausentar-se da sua circunscrição judicial, salvo

79 No caso dos magistrados judiciais, a acumulação de funções encontra-se prevista nos arts. 69.º da Lei n.º 3/99 e 77.º da Lei n.º 52/2008.

80 Cfr. arts. 81.º EJ 1927 e 1928, art. 220.º do EJ1944 e art. 117.º EJ1962. Estas dispo-sições apresentam um sentido mais abrangente do que aquele que é consagrado no art. 124.º CPC.

Não poderão servir simultaneamente na mesma comarca, vara ou juízo, como magis-trados ou oficiais de justiça, indivíduos ligados por parentesco de consanguinidade ou afini-dade em qualquer grau da linha recta ou no primeiro grau da linha colateral (art. 82.º pr EJ1927 e de 1928). Neste sentido vd. também art. 256.º do DL n.º 33547/1944 e o art. 9.º da Lei n.º 85/77.

81 O Ministro da Justiça pode, porém, mediante parecer favorável do CJS, autorizar a residência fora da comarca em localidade que não diste da sede mais de 30 km, desde que a facilidade das comunicações permita rápida deslocação entre a residência e o tribunal (art. 135.º/1 EJ 1962). Vd. ainda art. 10.º da lei n.º 85/77.

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por virtude de licença ou nas férias judiciais82, ou deixar de exercer as suas funções sem justificação legal83; convocar, promover ou assistir na área da sua jurisdição a reuniões, manifestações e outros actos públicos de carácter político84, ou praticar, com respeito a eleições, outros actos que não sejam o de votar e os que lhes forem cometidos por lei; manifestar-se pela imprensa, em comícios públicos ou em mensagens individuais ou colectivas sobre actos dos poderes do estado, funcionários e corporações oficiais, apoiando--os ou censurando-os, salvo em apreciação meramente doutrinária85; revelar opiniões por eles, ou por outros, emitidas durante as conferências dos tribu-nais e fazer declarações que não constem das respostas, acórdãos, actas ou documentos oficiais correlativos; renunciar a qualquer promoção que lhes competir86 (art. 44.º EJ 1927 e de 192887 e do Decreto n.º 17955, de 12 de Fevereiro de 193088, bem como os arts. 132.º/1, 133.º, 134.º/1 e 3 e 135.º/1, al. f) e n.º 2 do EJ 1962, art. 11.º, 13.º, 15.º e 26.º da Lei n.º 85/7789 e art. 8.º-11.º90 e 13.º da Lei n.º 21/85), sob pena de incorrer em responsabilidade

82 São férias, nos tribunais, os dias que decorrerem desde 23 de Dezembro a 2 de janeiro inclusive; a segunda e terça de Carnaval; desde domingo de Ramos a segunda-feira de Páscoa inclusive, e desde 1 de Agosto a 30 de Setembro inclusive. São considerados feriados os domingos e os dias assim declarados em diplomas especiais (art. 191.º EJ 1928) Cfr. ainda o art. 560.º do CPC de 1939, o Decreto n.º 39596, de 4 de Janeiro de 1952. Vd. ainda os arts. 12.º da Lei n.º 3/99 e da Lei n.º 52/2008. A legislação actual contempla ainda a figura dos turnos nomeadamente nos arts. 31.º-33 do Regulamento à Lei n.º 3/99 e o art. 39.º do Regulamento à Lei n.º 52/2008.

Vd. nota 235.83 Vd. no mesmo sentido art. 9.º da lei n.º 21/85.84 A proibição de actividade política seria mantida pelo art. 11.º da Lei n.º 21/85,

sendo excepcionada a ocupação do cargo Presidente da República e de membro do Governo ou do Conselho de Estado (n.º 2).

85 Ainda que com contornos distintos, o actual EMJ continua a proibir o exercício da actividade política aos magistrados (art. 12.º) ainda que reconheça a possibilidade de serem eleitos para cargos de Presidente da República e de membro do Governo ou do Conselho de Estado. (art. 11.º/2).

86 Cfr. a este respeito, já no EJ 1962, o art. 135.º/1, al.g). a prestação de serviço militar não impede a promoção, mas a posse é dada após o regresso, contando-se a antiguidade a partir da publicação (art. 2.º do DL n.º 32678, de 20 de Fevereiro de 1943).

87 Estes impedimentos seriam mantidos pelo art. 227.º do diploma de 1944.88 Este art. 44.º voltou depois da redacção de 1930 a ter a redacção primitiva (Decreto

n.º 15344), emvirtude do disposto no art. 1.º do decreto n.º 21485, de 22 de Julho de 1931.89 Sobre os impedimentos dos juízes sociais, cfr. art. 8.º do DL n.º 156/78, de 30 de

Junho.90 Para o caso especial de dispensa de serviço, cfr. art. 10.º-A do EMJ.

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disciplinar e na perda total de vencimentos incluindo a parte do transgressor na partilha de emolumentos, durante o tempo de ausência (art. 227.º§1 do DL n.º 33547/1944). Caberia ao legislador de 1973 (DL n.º 414) introduzir algumas alterações, passando a permitir que os magistrados residam em qualquer ponto dentro da área da comarca que seja servida por carreira regular de transportes urbanos, podendo o Conselho Superior Judiciário (CSJ) autorizar a residência fora da comarca em localidade que não diste da sede desta mais de 30 km, desde que a facilidade das comunicações permita rápida deslocação entre a residência e o tribunal. O mesmo diploma consa-graria que o juiz se ausente legitimamente da sua circunscrição judicial por virtude de doença, férias judiciais ou nos domingos e feriados, devendo sempre providenciar pela sua rápida localização em caso de urgência91. No caso de um juiz ser nomeado para um grupo de comarcas, nos termos do n.º 3 do artigo 26.º do EJ conforme redação dada pelo DL n.º 414/73 compete ao Conselho Superior Judiciário decidir sobre a sua residência para efeitos do disposto no artigo 168.º92.

Outros deveres são impostos aos magistrados judiciais de que cabe citar, o dever de sigilo, nos termos do art. 12.º da Lei n.º 21/8593.

Ante o exposto, e em termos de incompatibilidades, o legislador nove-centista impede, expressamente, os juízes de direito, da Relação e do STJ, na efectividade do serviço, de exercerem, seja em que caso for, por si ou por seus cônjuges, as profissões de comerciante e de advogado94, ou de desem-penharem quaisquer funções nos corpos administrativos (arts.42.º-45.º do EJ 1927, art. 42.º pr. do EJ 1928, art. 42.º do Decreto n.º 17955, de 12 de Fevereiro de 1930, art. 225.º do DL n.º 33547/194495, bem como os arts. 7.º

91 Mais tarde, o art. 10.º da Lei n.º 21/85 vem determinar o tipo de faltas justificadas que podem ser dadas pelos magistrados judiciais, ou seja quando ocorra motivo ponderoso desde que o número de dias não exceda três em cada mês e dez em cada ano, comunicando previamente o facto ao Conselho Superior da Magistratura ou, não sendo possível, imedia-tamente após o seu regresso (n.º 1); não são contadas como faltas as ausências em dias úteis fora das horas de funcionamento normal da secretaria, quando não impliquem falta a qual-quer acto de serviço ou perturbação deste (n.º 2); são equiparadas às ausências referidas no número anterior, até ao limite de quatro por mês, as que ocorram em virtude do exercício de funções de direcção em organizações sindicais da magistratura judicial (n.º 3).

92 No mesmo sentido, vd. o art. 8.º da Lei n.º 21/85.93 Vd. ainda art. 14.º da Lei n.º 85/77.94 Cfr. art. 19.º da Lei n.º 21/85.95 Vd arts. 27.º §único, 89.º, al. b) e §3, 90.º/2 e 102.º §3 da C1933; arts. 1.º, 3.º-5.º,

15.º, 19.º e 23.º do DL n.º 15538, de 1 de Julho de 1928; arts. 1.º e 24.º do DL n.º 26115, de 23 de Novembro de 1935; art. 39.º do Estatuto do Trabalho Nacional.

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e 27.º da Lei n.º 21/85) 96. No âmbito das alterações introduzidas pelo DL n.º 414/73, passa a ser permitido que o magistrado judicial exerça funções arbitrais que lhes não caibam por disposição legal, desde que previamente autorizado pelo Conselho Superior Judiciário.

De igual modo, também os magistrados judiciais que haviam sido proclamados senadores ou deputados da nação ou tomassem posse de cargos administrativos de nomeação do Governo, não poderiam acumular o exercício dessas funções com as do seu cargo na magistratura judicial, o qual seria interinamente provido (art. 43.º pr. do EJ 1927 e de 1928). Se os magistrados desempenhassem cargos de comissão, em que se não exer-cesse a função de julgar em matéria civil, comercial ou criminal, poderia o Governo autorizar que eles continuassem no exercício dos mesmos cargos (art. 43.º §único EJ 1927 e 1928)97.

À semelhança do disposto no texto constitucional98, o art. 13.º da Lei n.º 21/85, vem permitir, o exercício das funções docentes ou de investigação científica de natureza jurídica, não remuneradas, desde que não envolva prejuízo para o serviço, e ainda de funções directivas em organizações sindi-cais da magistratura judicial99.

96 Sobre o quadro complementar de juízes e a bolsa de juízes em caso de falta ou impedimento dos juízes de primeira instância, cfr. art. 71.º da Lei n.º 3/99.

97 Vd. no mesmo sentido o art. 226.º do DL n.º 33547/1944. Cfr., entre outros, o art. 119.º C1933 e arts. 14.º §único, 27.º, 44.º do Decreto-lei n.º 35388, de 22 de Dezembro de 1945, assim como a Lei de 9 de Setembro de 1908; o Decreto n.º 26148, de 14 de Dezembro de 1935; os Decretos n.ºs 26115, de 23 de Novembro de 1935, 26487, de 31 de Março de 1936, 36134, de 5 de Fevereiro de 1947, 36738, de 29 de Janeiro de 1948; o Decreto-lei n.º 27485, de 15 de Janeiro de 1937, o Decreto-lei n.º 23185, de 30 de Outubro de 1933, o Decreto-lei n.º 38517, de 20 de Novembro de 1951; o Decreto-lei n.º 35044, de 20 de Outubro de 1945; o Decreto n.º 37021, de 21 de Agosto de 1948, o Decreto-lei n.º 35047, de 7 de Setembro de 1948; o Decreto-lei n.º 37824, de 18 de Maio de 1950; a Resolução do Conselho de Ministros de 18 de Outubro de 1951 (DG de 22 de Outubro de 1951), a Lei n.º 2050, de 27 de Dezembro de 1951; o Decreto-lei n.º 38738, de 2 de Maio de 1952 e o Despacho do Conselho de Ministros de 13 de Janeiro de 1954. E ainda o art. 320.º do Decreto n.º 12393, de 26 de Novembro de 1925, o Decreto n.º 19982, de 15 de Junho de 1931com a redacção dada pelo Decreto n.º 20060, de 11 de Junho de 1931 para o exercício de funções nos tribu-nais militares.

98 Vd. art. 218.º/3, na redacção de 1992 e, art. 216.º/3 nas redacções de 1997 e subse-quentes. A matéria das acumulações seria ainda regulada no art. 77.º da Lei n.º 52/2008 e no art. 69.º da Lei n.º 3/99.

99 Para o caso dos juízes dos tribunais administrativos e fiscais, cfr. art. 3.º/3 e do art. 57.º do ETAF, e o art. 74.º/2, al. p) do EMJ. Vd. nota 82.

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Distinta da realidade que acabamos de expor, é a invocação de impe-dimentos, suspeições e escusas que são mencionados pela legislação adjec-tiva100. Assim, ao aplicar o princípio da imparcialidade101 enquanto caracte-rística fundamental do exercício legítimo do poder de julgar e garantia da própria magistratura, o legislador ordinário enuncia para além dos impedi-mentos (arts. 122.º e 124.º CPC1939102 e arts. 122.º-131.º do actual CPC); as suspeições (art. 127.º) e as escusas (art. 126.º)103, citando entre os impe-dimentos que obstaculizam o magistrado de exercer as suas funções, em jurisdição contenciosa ou em jurisdição voluntária, ser parte na causa, por si ou como representante de outra pessoa, ou quando estiver, a respeito do objecto, na mesma situação em que se encontra qualquer das partes.

3.3. ForMas de seleCção

Ainda que tenha sido tema de aceso debate das constituintes do sé- culo XIX, a forma de recrutamento e selecção dos magistrados mantém--se por acto governativo ao longo de todo o século XIX, muito embora a doutrina enumere outros modelos como o concurso ou tirocínio e a coop-tação ou agregação.

Para os defensores da corrente da agregação, só esta via permite proceder a uma correcta selecção dado que só o poder judiciário pode sabia-mente eleger os seus agentes. Deste modo, só o poder judiciário possui o conhecimento técnico para ajuizar da capacidade ou não de um juiz, ainda que se corra o risco de se cair no isolamento e alheamento das necessidades populacionais. Não tanto para evitar o suposto isolamento ora mencionado, mas antes para satisfazer os intentos do poder executivo, durante quase todo o período do século XIX vingou o sistema de nomeação governativa apli-cado à magistratura de vara branca, tendo o método electivo sido aplicado apenas às magistraturas não letradas.

Convém não esquecer que criar tribunais, cargos judiciais, ministros e oficiais de justiça era um direito majestático que permitiam ao monarca fazer

100 Vd. art. 7.º EMJ.101 Sobre imparcialidade, vd. art. 6.1 da Convenção dos Direitos do Homem e do

Cidadão. 102 Explica Alberto dos Reis que os impedimentos mencionados no art. 124.º são antes

incompatibilidades entre magistrados.103 Saliente-se que cabe às leis de processo estabelecer estas garantias.

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aplicar a sua vontade governativa, ou seja, a lei. Por este motivo, também o século XIX avocaria esta prerrogativa ainda que a justificação se adequasse a novos contornos. Em bom rigor, a um governo forte se associa uma política de nomeações sobretudo de novos magistrados. Por conseguinte, nomear alguém para o exercício da magistratura impunha, como vimos, o preenchimento de requisitos que determinavam não só a selecção do mais apto, mas sobretudo daquele que mais mérito tivesse ou demonstrasse ter, na perspectiva do nomeante.

Os primeiros passos com vista à alteração desta forma de recrutamento são dados com as magistraturas menores e com os ofícios dos auxiliares de justiça. Seria apenas em 1887, que a proposta de Veiga Beirão deixaria bem claro dever também a magistratura sujeitar-se às regras de concurso, como o defendera academicamente anos antes Joaquim Teófilo Braga. Todavia, como referimos, esta proposta não passaria disso mesmo, isto é de um mero projecto que não produziria efeitos práticos.

Em suma, a ideia de proceder ao recrutamento e fazer preceder a nome-ação dos magistrados de um exame de habilitação ainda que defendida na proposta de Veiga Beirão, viria apenas a ser adoptada no Estatuto Judici-ário de 1928 (título V), reproduzindo este monumento legal os Decretos n.os 12013 e 12890, respectivamente de 29 de Junho e 27 de Dezembro de 1926104. A citada teoria que havia sido já consagrada no projecto da comissão nomeada para rever a proposta de Veiga Beirão (art. 32.º) estaria, igualmente, presente na proposta de Reforma Judiciária do conselheiro Artur Montenegro, de 22 de Agosto de 1905 (art. 34.º), na proposta do juiz Medeiros, de 1909 (art. 11.º), no projecto de Luís Augusto Pinto Mesquita de Carvalho, de 1912 (base 55.ª) e no projecto de Catanho de Meneses de 25 de Abril de 1916 (art. 9.º).

Afastada a proposta inicial de 1910, e excepcionada a forma de coop-tação introduzida pelo Decreto n.º 11751, de 23 de Junho de 1926, seria adoptado, como veremos, o método concursal, devendo para o efeito ser constituído um júri para aferir ao conhecimento científico dos candidatos105. Esta opção seria bem acolhida pela doutrina como é o caso de Alberto dos Reis. Para este processualista, só o concurso permite o acesso de todos à profissão visto que põe termo aos favoritismos e ao arbítrio, dando azo a que

104 Cfr. o Decreto n.º 5265, de 19 de Março de 1919 que regulava o concurso para provimento dos lugares de delegado do Procurador da República, conservadores do registo predial, notários, contadores e escrivães de direito.

105 Cfr. art. 149.º do EMJ.

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cada candidato seja apreciado e julgado por um júri idóneo e de elevados conhecimentos técnicos. Quem procederá posteriormente à nomeação, é irrelevante para este autor, já que o que importa é escolher um profissional competente. Ao longo de cerca de seis décadas foi adoptado o modelo de nomeação governativo precedido de concurso de habilitações tal como é defendido no EJ1928, no n.º 10 do Preâmbulo do diploma estatutário de 1944 e, em 1962, sendo determinado que os membros do júri de selecção seriam da responsabilidade do Ministro da Justiça (respectivamente, arts. 341 EJ1944 e 363.º EJ1962).

Acolhendo o método do tirocínio, o legislador de 1927 e 1928 deter-mina que recebidos os requerimentos e terminado o prazo de candidaturas, para o preenchimento dos cargos judiciais, são analisados os documentos, sendo em seguida publicada a lista geral dos concorrentes, distinguindo os admitidos daqueles que não satisfizem os requisitos indicados106. Cabia à Direcção-Geral da Justiça mandar publicar no Diário do Governo, dentro dos trinta dias seguintes ao termo do prazo fixado para a apresentação dos requerimentos, a lista provisória dos concorrentes, com a indicação das deficiências verificadas na documentação, as quais deveriam ser supridas nos quinze dias imediatos à publicação. Seriam excluídos logo da lista provisória, os concorrentes que não obedecessem às condições exigidas na lei geral para a admissão nos quadros do funcionalismo civil do Estado107.

Decorrido o prazo fixado para o suprimento das deficiências que a documentação entregue poderia oferecer, era publicada a relação definitiva dos candidatos admitidos ao concurso e anunciados os dias, horas e local em que as provas eram prestadas108.

Entretanto a Direcção-Geral da Justiça deveria fornecer a cada membro do júri uma lista dos concorrentes admitidos109.

106 Acerca do suprimento de deficiências, vd. art. 403.º § único.107 Art 325.º do DL n.º 33547/1944 e art. 367.º/1 EJ 1962.108 Art. 367.º/2 EJ 1962.109 Art. 341.º do EJ 1944 e 367.º/3 EJ 1962. Faziam parte do júri que analisaria as

candidaturas, os vogais efectivos do CSJ, e por quatro arguentes , sendo dois professores catedráticos, um da Faculdade de Direito de Coimbra e outro da de Lisboa, e dois juízes, todos nomeados pelo Ministro da Justiça, aqueles directamente e estes sob proposta do CSJ (art. 383.º/1 ). A presidência do júri era conferida ao presidente do Conselho Superior Judi-ciário (idem, ibidem). Sobre o júri, cfr. ainda arts. 368.º-370.º EJ 1962. Esta estrutura seria alterada pelo texto do Decreto-Lei n.º 575/74, de 5 de Novembro que veio conceder nova redacção aos artigos 371.º, 373.º, 384.º, 385.º, 390.º e 391.º do Estatuto Judiciário em ordem

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No caso específico de concursos para juiz de direito, a lista dos candi-datos admitidos ao concurso era organizada pelo CSJ e publicada no Diário do Governo em data anterior ao início das provas 110.

A Direcção-Geral da Justiça forneceria ao CSJ, quando este a solici-tasse, uma relação dos delegados de 1.ª classe que constituíssem a metade superior da respectiva lista de antiguidades111.

O CSJ poderia excluir os delegados e demais candidatos que não satis-fizessem os requisitos legais ou os que, pelos elementos recebidos ou pelas indagações a que houvesse procedido, entendesse não possuírem as condi-ções necessárias à função de julgar. Para tanto, requisitaria às entidades competentes os elementos curriculares e o processo individual de todos os candidatos, do qual constariam todas as informações, louvores, relatórios e acórdãos de inspecções, queixas e processos disciplinares e quaisquer outros elementos de interesse112.

Se o motivo de exclusão fosse de ordem moral, deveria ser instaurado ao candidato excluído o devido procedimento disciplinar113.

Uma vez apreciada a candidatura apresentada, eram prestadas as provas de natureza prática e teórica, ou seja, escrita e oral, respectivamente (arts. 405.º-413.º EJ 1928, arts. 326.º-329.º EJ1944 e arts. 371.º-373.º, 384.º-385 EJ 1962). Uma vez admitidos, a habilitação resultante do concurso não teria limitação de prazo de validade (art. 414.º, 421.º-422.º EJ 1927 e 1928)114. Alterando o disposto nos diplomas anteriores, o legislador de 1962 intro-duzirá um prazo de validade de cinco anos (art. 377.º/1).

Frise-se que o legislador de 1933, contra a anterior realização de duas provas exigia a realização de quatro provas escritas consistindo na resolução de pontos de direito civil, comercial ou internacional privado, processo civil e direito processual penal (art. 419.º pr.). Por sua vez, a prova oral constaria também de quatro interrogatórios sobre pontos de direito e processo civil,

a imprimir uma orientação mais prática aos concursos para os cargos de juízes de direito e delegados do procurador da República. Vd. nota 115.

110 Cfr. arts. 416.º-417.º EJ 1928 e art. 381.º/1 EJ 1962. Vd ainda art. 14.º do Decreto--lei n.º 202/77 e art. 12.º da Lei n.º 2/2008, de 14 de Janeiro, in DR, 1.ª S, n.º 9.

111 Arts. 417.º pr. EJ 1928, 340.º§2 EJ1944 e 381.º/2 EJ 1962.112 Arts. 417.º§1 EJ 1928, 340.º§2 EJ1944 e 381.º/3EJ 1962.113 Arts. 342.º§3 EJ1944 e 381.º/4 EJ1962.114 O art. 338.º do DL n.º 33547/1944 fala na periodicidade anual dos concursos para

juízes de direito.

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direito e processo comercial, direito e processo penal e direito internacional privado (420.ºpr.) 115.

Com o estatuto de 1977 abre-se um novo modelo de selecção ao fazer depender o acesso à magistratura judiciária de um estágio que se desdobra numa fase de formação inicial e noutra de formação complementar (art.1.º/1). O diploma de 1985 alargará o leque de candidatos e imporá o método de prestação de provas de conhecimentos (escrita e oral) como aferidor do conhecimento e mérito do futuro juiz (arts. 14.º-16.º e 19.º-21.º da Lei n.º 2/2008, de 14 de Janeiro e arts. 40.º-41.º EMJ) a que acresce a avaliação curricular e um exame psicológico de selecção (art. 21.º da Lei n.º 2/2008). A forma de selecção e classificação estaria sujeita à realização do curso e estágio de formação desencadeado pelo CEJ (arts. 34.º-39.º e 49.º-50.º da Lei n.º 2/2008), sendo os novos magistrados colocados nas comarcas de ingresso em função da classificação final obtida (arts. 41.º e 42.º do EMJ). Ao longo da carreira judiciária, é mantido um plano de formação contínua que os magistrados deverão cumprir e, em especial, os presidentes dos tribunais de comarca116, nos termos dos arts. 73.º e 74.º da Lei n.º 2/2008 e 10.º-B do EMJ.

3.4. o IníCIo de Funções. a posse

Devidamente habilitado para o exercício da judicatura, o início de funções por parte do futuro magistrado está dependente da realização ou celebração de um acto solene e formal, o qual visa a obter do funcionário a prestação do compromisso moral de acatamento as leis e instituições polí-ticas vigentes e o cumprimento escrupuloso das obrigações do seu cargo.

A declaração de compromisso de honra apresentada pelo Decreto de 18 de Outubro de 1910117 que consistia na seguinte fórmula:”Declaro pela minha honra que desempenharei fielmente as funções que me são confiadas” (art. 3.º)118, punha termo às palavras constantes da fórmula de juramento

115 Vd. arts. 342.º-344.º do DL n.º 33547/1944.116 Portaria n.º 1125/2009, de 1 de Outubro.117 In DG n.º 12, de 19 de Outubro. Cfr. ainda a Portaria de 31 de Outubro do mesmo

ano assim como a Revista de Legislação e Jurisprudência, vol. 43, p. 456 e o acórdão da Relação de Lisboa de 28 de Outubro de 1911, publicado e anotado na Gazeta da Relação de Lisboa, t. 25, n.º 42, p. 330-331.

118 Cfr. art. 127.º/1 EJ 1962.

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constante do art. 1.º do Decreto de 5 de Março de 1856 (“juro guardar e fazer guardar a Carta Constitucional da monarquia, ser fiel ao rei reinante, cumprir as leis, e bem desempenhar as funções do meu cargo”119). A pres-tação da declaração de compromisso de honra manter-se-ia até aos dias de hoje120 tendo lugar no momento da posse perante as entidades mencionadas nos arts. 59.º, 70.º e 85.º EJ 1928, 249.º, 252.º e 255.º do EJ 1944, 127.º/1 do EJ 1962, arts. 60.º-61.º da Lei n.º 85/77 e arts. 61.º-62.ºEMJ.

A posse traduz a investidura no cargo121, tendo de ser prestada pesso-almente122. Com este acto é tornada efectiva a qualidade de funcionário ou empregado público, dela nascendo o marco do cômputo para efeitos de promoção, antiguidade, transferência e remuneração.

Este acto formal e solene deverá ocorrer na sede do lugar onde os magistrados exercerão as suas funções (art. 25.º§1 EJ 1928, art. 222.º DL n.º 33547/1944, art. 126.º/1 EJ1962, art. 58.º/1 da Lei n.º 85/77123) no prazo de 30 dias para o continente e de 60 para as ilhas adjacentes, entre estas ou delas para o continente124. O prazo pode ser reduzido para metade no

119 In DG n.º 70. 120 Cfr. art. 9.º do DL n.º 427/89, de 7 de Dezembro revogado pelo art. 15.º/3 da Lei

n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro, para efeitos da prestação desta mesma declaração pelos funcionários públicos.

121 Cfr. Decreto de 4 de Janeiro de 1841, as Portarias de 3 de Junho de 1844 e de 14 de Agosto de 1863, o Decreto de 29 de Julho de 1886, as Portarias de 29 de Dezembro de 1886 e de 28 de Fevereiro de 1887, os Decretos de 24 de Outubro de 1901 e de 29 de Novembro de 1901 e o Regimento de 20 de Fevereiro de 1894.

122 Durante o Governo Provisório da República, em 1910, seriam estabelecidas novas regras relativas à posse, de que são exemplo o Decreto com força de lei de 18 de Outubro de 1910 e a Portaria de 31 de Outubro de 1910. Em 2 de Março de 1911, seria expedida uma Portaria pela Direcção Geral da Justiça aos Presidentes das Relações dando a conhecer que por despacho do Ministro da Justiça de 3 de Março do mesmo ano deveriam os juízes substi-tutos tomar posse no prazo marcado de que seria subsequentemente lavrado o respectivo auto.

123 Vd. art. 4.º § único do Decreto n.º 34945, de 27 de Setembro de 1945.124 A respeito do prazo para a tomada de posse, vd. DL n.º 34945, de 27 de Setembro

de 1945. As nomeações, promoções e quaisquer colocações dos magistrados, consideram-se comunicadas pela publicação dos despachos no Diário do Governo e o prazo para a posse dos cargos começa a contar-se do dia seguinte ao da publicação. No caso de doença prolon-gada, devidamente comprovada, o Ministro da Justiça pode prorrogar o prazo concedido para a tomada de posse até mais 60 dias, nos termos do art. 4.º§único do DL n.º 34945. Saliente-se a incoerência criada pelo Despacho do Subsecretário de Estado e das Finanças, de 3 de Março de 1938 que considerou as prorrogações como situações de licença graciosa. Ora dado que os magistrados não podem gozar licenças graciosas não podem ser abonados durante o período em questão, salvo se os mesmos correrem em períodos de férias judiciais.

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caso dos magistrados que houverem de reassumir as funções do seu cargo efectivo, por deixarem de desempenhar comissões de serviço de carácter temporário (art. 25.º§2 EJ1928, 1933 e art. 222.º/§2 DL n.º 33547/1944125, art. 58.º/2 da Lei n.º 85/77, art. 59.º da Lei n.º 21/85126).

Se se tratar da primeira nomeação, a falta de posse, dentro do prazo legal, sem motivo justificado, importa a imediata anulação do respectivo despacho, sem precedência de qualquer formalidade (art. 25.º§3 EJ1928, art. 222.º/§3 DL n.º 33547/1944, art. 126.º/3 EJ 1962, art. 59.º da Lei n.º 85/77, art. 60.º da Lei n.º 21/85).

Quando se tratar de promoção, transferência ou reassunção de funções, a falta de posse dentro do prazo legal importa, pela primeira vez, na passagem à inactividade sem vencimento, só podendo verificar-se o rein-gresso após o decurso de um ano. Caso ocorra uma segunda vez, é equi-parado a abandono de lugar (art. 38.º do EJ 1928 EJ 1928, art. 25.º§4, art. 222.º/§4 do DL n.º 33547/1944, art. 126.º/4 EJ 1962). Por sua vez, as Leis n.os 85/77 e 21/85 determinam respectivamente nos arts. 59.º e 60.º que tratando-se da primeira nomeação, a falta não justificada de posse dentro do prazo importa, sem dependência de qualquer formalidade, a anulação da nomeação e inabilita o faltoso para ser nomeado para o mesmo cargo durante dois anos. Nos demais casos, a falta não justificada de posse é equi-parada a abandono de lugar.

Havendo lugar a justificação, esta deve ser apresentada no prazo de 10 dias (art. 60.º/3 da Lei n.º 21/85).

Anteriormente ao EMJ, os magistrados judiciais prestavam o compro-misso de honra e tomavam posse perante: o Ministro da Justiça, caso se tratasse do presidente e vice-presidente do STJ, do vice-presidente do CSJ e os presidentes das Relações; o presidente do STJ, caso se tratasse dos demais juízes do STJ; o vice-presidente do CSJ, quando se tratava dos inspectores e do secretário do Conselho; o presidente da Relação, no caso dos juízes deste tribunal, bem como do presidente do tribunal criminal, dos corre-gedores presidentes dos círculos judiciais, de todos os juízes da comarca sede da Relação e aqueles que devessem tomar posse apenas da sua nova categoria; e, perante quem estivesse a desempenhar as funções, nos casos

125 Vd. art. 126.º/2 EJ 1962.126 Em casos justificados, o Conselho Superior da Magistratura pode prorrogar o prazo

para a posse ou autorizar que esta seja tomada em local diverso, cfr. art. 59.º/3 da Lei n.º 21/85.

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dos juízes das restantes comarcas (arts. 26.º do EJ1928, 249.º, 252.º e 255.º EJ1944 e art. 127.º EJ1962).

Actualmente, o EMJ, tal como o art. 60.º da Lei n.º 85/77 o havia consagrado, determina que são competentes para conferir posse o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça face aos juízes do Supremo Tribunal de Justiça e aos presidentes das relações; os presidentes das relações relativa-mente aos respectivos juízes; o presidente da relação tratando-se de juízes em exercício de funções na sede do distrito judicial e o substituto do juiz de direito face aos juízes de direito em geral (art. 61.º da Lei n.º 21/85). Em casos justificados, o Conselho Superior da Magistratura pode autorizar que a posse seja tomada perante entidade diversa das mencionadas anteriormente (art. 61.º/2) e em local distinto do estipulado no art. 58.º daquele memsmo diploma de 1985127).

Os magistrados judiciais que estiverem a exercer cargos ou comissões de serviço em que devam permanecer, se entretanto forem promovidos de classe ou de instância, tomam posse da sua nova categoria, independente-mente de diploma e de designação de comarca ou tribunal, perante o presi-dente da Relação em cujo distrito estiverem a servir, ou perante o presidente do STJ, se tiverem a categoria de juízes deste tribunal (art. 26.º EJ 1928128, art. 128.º EJ 1962129, art. 62.º da Lei n.º 85/77 e art. 63.º da Lei n.º 21/85).

Os juízes de 2.ª instância que forem nomeados juízes do STJ, só poderão continuar no exercício das comissões que desempenharem à data da nomeação se estiverem a desempenhar funções de inspectores judiciais,

127 Na vigência do EJ1962, a reforma introduzida pelo DL n.º 281/71, de 24 de Junho, permite que em casos justificados o Ministro da Justiça possa autorizar que os magistrados judiciais tomem posse em local diferente daquele onde tenham sido colocados. Neste caso, até que assumam o exercício efectivo das novas funções, serão apenas abonados dos venci-mentos correspondentes aos cargos que desempenhavam.

128 A redacção de 1933 dispensaria os magistrados que fossem promovidos à classe ou instância superior, ou nomeados juízes do STJ, durante o exercício de cargos ou comis-sões de serviço nos quais pudessem continuar após a promoção ou nomeação, da tomada de nova posse nos mesmos cargos ou comissões, devendo, contudo, tomar posse da sua nova categoria perante o presidente da Relação em cujo distrito estiverem servindo, ou perante o presidente do STJ se tiverem a categoria de juízes deste tribunal. Vd ainda a este respeito o art. 223.º/pr. do EJ1944 bem como o art. 24.º/3 do DL n. 37 047, de 7 de Setembro de 1948.

129 Com a reforma dada pelo DL n.º 281/71, de 24 de Junho, os magistrados que sejam promovidos à classe ou instância superior durante o exercício de cargos ou comissões de serviço, nos quais continuem após a promoção ou nomeação, ingressam na nova classe ou categoria a partir da data da publicação dos respectivos despachos no Diário do Governo, independentemente da nova posse.

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vogais do Supremo Conselho de Administração Pública e do Tribunal Superior do Contencioso das Contribuições e Impostos, relator e adjunto do Supremo tribunal Militar e Procurador-Geral da República. (art. 26.º do EJ 1928 e (art. 223.º § único do EJ1944, art. 131.º EJ1962. Actualmente a situação é regulada pelos arts. 39.º, 53.º-56.º e 63.º do EMJ130).

3.5. proMoção e antIGuIdade

Conexo com aspectos como a promoção na carreira e, subsequente-mente, a aposentação, a temática da antiguidade ocupa o discurso jurídico desde o período da época moderna. Definida, desde logo, quer na legis-lação vigente quer precisada nas decisões jurisprudenciais, a antiguidade é frequentemente alvo de não só alguma discórdia como de celeumas assaz acesas. Ao longo do século XIX, ainda que o legislador tenha regulado cuida-dosamente esta matéria, fazendo-a integrar o objecto de vários diplomas (art. 15.º do Decreto n.º 24, de 16 de Maio de 1832, art. 36.º NRJ, Decreto de 7 de Dezembro de 1836, a Lei de 21 de Julho de 1855, art. 12.º do Decreto n.º 3, de 1890), não deixamos de verificar que, em alguns momentos, as regras são esquecidas, senão mesmo preteridas em prol de dispensas ou nepotismos políticos disfarçados, dando forma à meritocracia, enquanto critério de promoção, muito embora estas opções sejam descobertas, ainda que não seja apenas pela voz daquele que fora prejudicado131.

Durante o século XIX, as regras de contagem ou aferição da anti-guidade atendem, até 1855, à data do despacho de nomeação (art. 15.º do Decreto de 1832, art. 36.º da NRJ e Lei de 21 de Julho de 1855), excepto no caso dos juízes do ultramar em que o início da contagem da antiguidade era marcado pela data em que embarcavam para os seus destinos (Decreto de 7 de Dezembro de 1836)132. Depois daquela data (1855), a graduação

130 Cfr. arts. 51.º, 54.º e 62.º Lei n.º 85/77.131 Graes, Isabel: Da antiga à nova magistratura: passos da vida de um magistrado

(José Duarte Machado Ferraz), in Revista de História do Direito e do Pensamento Político, n.º 2, pp. 43-81 e Em torno de uma sindicância judicial extraordinária: o processo da comarca de Meda (1850), in Cuadernos de Historia del Derecho, Universidad Complutense de Madrid, n.º 21, Madrid, 2014, pp. 113-165) e A permanência de velhos vícios, sob o mito de novos tempos. As opções judiciais de D. Pedro, Duque de Bragança (1832-1834), in RFDUL, vol. LV, Coimbra Editora, Coimbra, 2014, pp. 129-188..

132 Para o cálculo do tempo de serviço atender-se-ia ao critério aplicado na Lei de 9 de Julho de 1849 sem excluir o tempo em que serviram em lugares diferentes daqueles para

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dos magistrados passa a ser feita em presença das sindicâncias, quando a estas se tivesse procedido e das informações documentadas das Relações e dos magistrados do MP motivada com todas as provas de mérito e demérito que desses documentos se pudesse extrair, sendo, para o efeito, publicada uma lista anual.

O Decreto de 1890, tomará em conta, para efeitos de promoção o tempo de serviço efectivo, sem descurar o período exercido na magistratura superior do Ministério Público, de juiz sindicante, de Par do Reino, de deputado e de governador civil, fazendo ainda depender a análise da contagem do parecer de uma Comissão composta por membros do STJ e da Relação de Lisboa sobre o que convenha estabelecer-se em relação aos direitos e deveres dos membros da magistratura judicial no exercício das suas funções (art. 12.º). Ainda que estabelecidas as incompatibilidades, é de frisar que, na prática, todo o tempo de serviço público prestado era tido em linha de conta.

Uma palavra para o sistema constante da proposta de 9 de Julho de 1887 e para os projectos de Artur Montenegro (1888 e 1905133) e Francisco José de Medeiros (1909)134 que adoptam apenas a antiguidade exclusiva

que foram despachados enquanto duraram as circunstâncias ponderadas no Decreto de 11 de Janeiro de 1833.

Não havendo serviço feito na magistratura antiga ou moderna, ou seja, dos magistrados nomeados no período anterior ou posterior a 1832, atender-se-ia ao tempo que tiveram de serviço na moderna magistratura nos lugares de auditores ou do Ministério Público. Se mesmo assim se não pudesse decidir a antiguidade respectiva dos juízes de primeira instância recorrer-se-á: primeiro à antiguidade do grau de bacharel; segundo, à maior idade.

Desta forma, os demais magistrados precedem entre si pelas datas dos despachos, se a posse foi tomada no prazo da lei, ou pela data da posse, se esta foi tomada fora do dito prazo. Havendo mercês de igual data, atender-se-á, salvas as indicadas condições quanto à posse, ao tempo de serviço feito na moderna e na antiga magistratura, desde que observados os preceitos constantes dos §§ 3 a 6 do art. 2.º da Lei de 21 de Julho de 1855.

133 A proposta de lei de 22 de Agosto de 1905, contava a antiguidade dos juízes em cada uma das três classes da primeira instância, na segunda instância e no Supremo Tribunal de Justiça, desde a data do despacho, ou da posse se esta tivesse sido tomada fora do prazo legal, ou pelo tempo de serviço efectivo (art. 14.º) sendo subtraído o período das licenças superiores a 30 dias em cada ano, o tempo de permanência no quadro ou na situação de adido sem exer-cício de substituição; assim como o excesso tomado e não justificado dos prazos legais para a entrega dos processos; o tempo de suspensão como pena ou na consequência dela, em caso de procedimento disciplinar ou de pronúncia quando se lhe seguisse alguma condenação. Só seria equiparado ao serviço efectivo na magistratura judicial o exercício de funções legisla-tivas, o exercício do cargo de ministro de estado e de comissões autorizadas por lei.

134 No que diz respeito à aposentação, transferências e colocações fora do quadro da magistratura, Medeiros só as admitia no caso de requerimento do próprio, aceitando que se

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para a promoção de classe. No que diz respeito à promoção de instância, a proposta de 1887 (arts. 33.º, 34.º e 36.º135) e o projecto de 1888 determinam que as vagas sejam providas uma por antiguidade e outra por distinção, ao passo que o projecto de 1909 estabelece que em cada três vagas, somente deveriam ser providas duas por antiguidade e uma por distinção (art. 11.º136).

Caberá ao legislador de 1927-1928 conjugar a antiguidade e o mérito determinando, para efeitos de promoção à classe superior, à Relação e ao STJ, que as classificações dos magistrados judiciais serão feitas, em lista graduada, pelo Conselho Superior Judiciário que, para tal efeito, atenderá não só ao seu tempo de serviço, mas também e principalmente aos méritos e deméritos dos magistrados137. Frise-se que para o apuramento das quali-

fizessem por “conveniência do serviço público” estando obviamente dependente de consulta afirmativa do STJ, excepto nos casos de limite de idade. A partir desta idade, propunha que fosse realizado um exame periódico anual para verificação das capacidades do magistrado para o exercício da função judicial. Outro aspecto a ressalvar diz respeito à total oposição que este autor fazia face ao percebimento de emolumentos, os quais repudiava. O mesmo proponente era defensor da proibição aos magistrados de se ausentarem sem licença por mais de oito dias, bem como residirem fora da comarca.

135 Aos juízes de 1.ª instância, com a excepção da promoção para a primeira classe e os da Relação com destino ao STJ era aplicado o critério da antiguidade.

136 Deste modo era cometido ao STJ a qualificação dos juízes, sobre informação das Relações em cujos distritos eles houvessem servido, devendo para esse efeito as Relações reunir-se em tribunal pleno no fim de cada ano judicial (art. 11.º). Cfr. Lei de 14 de Junho de 1913 e o Decreto n.º 4342, de 3 de Junho de 1918, o qual alterava o Decreto n.º 4250, de 11 de Maio de 1918 sobre a colocação de juízes na Relação de Lisboa.

Refira-se ainda que os arts. 20.º-22.º do Projecto Medeiros davam ao STJ o direito de excluir os juízes que não devessem ser promovidos, atendendo-se na promoção, à antigui-dade e mérito, mandando então aposentar o juiz que fosse três vezes preterido. Os motivos para tal prática eram apresentados no próprio Relatório: “ Assim, e reguladas as cousas de maneira que não seja promovido à classe superior, à 2.ª instância e ao Supremo Tribunal de Justiça, o juiz a respeito de quem este Tribunal assim o resolveu, todos ficarão sabendo e especialmente os juízes, que na magistratura judicial ser ou não ser honesto, trabalhar ou não trabalhar, trabalhar muito ou pouco, bem ou mal, melhor ou pior, não é tudo a mesma cousa.”.

137 No caso dos magistrados ultramarinos, vd. arts. 29.º-30 e 32.º EJ1928, arts. 258.º- -264.º EJ1944 e art. 160.º EJ1962, mais tarde revisto pela Lei n.º 39/78, de 5 de Julho. Neste caso também, o Conselho Superior envolvido seria não o CSJ, mas o Conselho Superior Judiciário das Colónias, mais tarde designado do Ultramar. Frise-se que as duas magistra-turas se encontram separadas, tendo a solução encontrada para a conciliação sido encontrada atrávés dos Decretos-lei n.ºs 33069, de 29 de Setembro de 1943 e 31667, de 22 de Novembro de 1941, bem como do EJ1944, tendo, inclusive, sido colocado um termo à categoria de agregados às Relações da metrópole e passando a ser aplicado um critério de maior exigência

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dades manifestadas durante a judicatura, são periodicamente realizadas inspecções. Passamos a especificar.

O CSJ, e não mais o STJ, como tinha vingado até 1912, ainda que na verdade o Ministério do Reino pudesse manipular estes movimentos; deveria doravante, classificar e graduar, de cada vez, cinco juízes de entre os que compusessem o terço superior de cada classe ou categoria, sendo a promoção feita segundo aquela ordem. Saliente-se que só, poderiam ser classificados para a promoção ao STJ, os juízes das Relações de assinalado merecimento enquanto para a promoção à segunda instância só poderiam ser classificados, para, os juízes de direito de 1.ª classe que o Conselho considerasse merece-dores, pelo menos, da classificação de Bom (art. 517.º). Assim, estruturada a classificação, era elaborada uma lista, a qual era proposta e colocada a despacho do Ministro da Justiça que poderia não concordar com a mesma, comunicando ao CSJ a lista definitiva138, passo que revela uma dependência marcada face ao Executivo. O EJ1944 conferiria ao Ministro da Justiça a escolha de metade das vagas que ocorrerem no STJ (art. 247.º§2) sendo os demais designados pelo CSJ. Esta última opção poderia parecer conduzir a uma certa autonomia da magistratura caso esquecessemos que a compo-sição deste órgão era definida por nomeação governativa. Ainda assim, é notória a evolução face ao regime anterior como os próprios arts. 119.º/1, 121.º e 403.º do EJ1962 o evidenciarão também. O magistrado que fosse excluído da promoção seria, por proposta do CSJ e decisão do Ministro da Justiça, transferido ou colocado em comissão de serviço fora da judica-tura; a segunda exclusão implicaria sempre a aposentação do magistrado, excepto quando este estivesse a desempenhar alguma daquelas comissões. A aposentação decretada nestes casos seria ordenada oficiosamente, não dependendo de exame médico, nos termos do art.3.º do Decreto n.º 16669, de 27 de Março de 1927139.

Precisava, ainda, o art. 14.º das Disposições Transitórias do EJ 1927 que os juízes que, à data da entrada em vigor daquele diploma, se encon-

que tenha em atenção os trabalhos e informações relativos aos juízes ultramarinos, visto que estes não eram alvo de inspecções periódicas, facto que lhes permitia um tratamento mais benevolente quando comparados com os da metrópole.

Não obstante a determinação da extinção do quadro judiciário ultramarino, o art. 196.º da Lei n.º 85/77 regularia ainda alguns aspectos relativos à antiguidade daqueles magistrados.

138 Art. 517.º pr. cfe redacção dada pelo Decreto n.º 17955, de 12 de Fevereiro de 1930.

139 Vd. ainda o Decreto n.º 21485, de 20 de Julho de 1932.

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trassem colocados em comarcas ou cargos de categoria superior àquela que pessoalmente tinham, continuariam a servir nos seus lugares, e poderiam ser deslocados, nos termos legais, de uns para outros cargos iguais ou idênticos dentro da mesma comarca140.

As promoções poderiam também ser propostas pelo CSJ ao Ministro da Justiça por distinção dos juízes que revelassem excepcionais mere-cimentos, não significando, contudo, a exclusão dos outros magistrados (art. 517.º/§5 do EJ 1928, cfe. Decreto n.º 17955, de 12 de Fevereiro de 1930).

O texto de 1933 procede à alteração do número de magistrados propostos para promoção à classe superior e à segunda instância, passando doravante o CSJ a apreciar, de cada vez, os cinco juízes mais antigos de cada classe, excluindo da classificação os que julgasse em condições de não deverem ser promovidos e graduando os restantes. A promoção seria feita rigorosamente segundo a ordem de graduação.

Em caso algum e fosse a que título fosse, entendia o legislador de 1933 que poderiam ser graduados para a promoção os juízes cuja última classificação de serviço tivesse sido inferior à de Regular (art. 517.º§1 do diploma de 1933).

O Boletim Oficial do Ministério da Justiça seria, para todos os efeitos, considerado a lista oficial de antiguidade dos magistrados judiciais sendo a sua distribuição anunciada na II Série do Diário do Governo (art. 46.º EJ 1927-28 e art. 151.º do EJ 1962.141)

Em resumo, na organização da lista de antiguidade os quatro primeiros estatutos judiciários novecentistas (1927-1928, 1944 e 1964) indicam que deverão observar-se as seguintes regras142:

140 Sobre a colocação dos magistrados judiciais que ocuparem lugares dependentes do Ministério da Justiça e dos Cultos em comarcas de classe diferente da que eles detêm, vd. Decreto n.º 16642, de 23 de Março de 1929 (DG IS, n.º 67).

141 Com a reforma dada pelo DL n.º 281/71, de 24 de Junho, os magistrados e funcio-nários são graduados em cada categoria ou classe de harmonia com o tempo de serviço que lhes for contado, mencionando-se ainda, a respeito de cada um, a data do nascimento, o cargo ou função que desempenham e a data da colocação nessa situação.

Relativamente aos magistrados judiciais e do MP, indicar-se-á também a comarca da sua naturalidade. (art. 151.º/2).

De cada edição do Boletim passavam a ser enviados doze exemplares à secretaria do CSJ (n.º 3).

142 Cfr. art. 45.º EJ 1928.

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a) a antiguidade contar-se-á dentro de cada classe ou categoria e desde a data da publicação do despacho no diário oficial, quando a posse for tomada no prazo legal143;

i. não é contado como tempo de serviço efectivo, o tempo de ausência ilegítima da comarca ou do cargo144, nem o que exceder o prazo legal para a posse, a não ser que no despacho que autorizou a prorrogação se declarem os fundamentos que a justificaram como caso de força maior. O motivo de doença só constitui, para este efeito, caso de força maior, quando comprovada por exame médico especialmente ordenado pelo Ministério da Justiça145;

ii. o desconto do tempo de prorrogação de prazo para a posse contar-se-á desde o fim do prazo legal, até à data da posse;

iii. quando um despacho depois de publicado for declarado sem efeito, e o magistrado for colocado em outra comarca ou situa- ção, a seu requerimento, o prazo legal para a posse contar--se-á desde a data da publicação do último despacho, se o primeiro tiver sido anulado dentro do prazo legal para a posse dele consequente; mas na antiguidade descontar-se-á sempre o tempo superior a 30 dias para o continente ou 60 dias para as ilhas, que decorrer entre o despacho de exoneração da última situação de serviço e a posse do novo lugar 146;

iv. se o despacho for declarado sem efeito por conveniência de serviço, o prazo legal para a posse contar-se-á desde a data da publicação do último despacho, mas a antiguidade contar- -se-á desde a data da exoneração da última situação de exer-cício efectivo 147;

143 No mesmo sentido art. 146.º/1 EJ 1962 e art. 222.º pr.EJ 1944. Vd. redacção dada a este artigo pelo DL n.º 281/71, de 24 de Junho.

144 O tempo de ausência ilegítima da comarca ou cargo, nem o que exceder trinta dias em cada ano de não comparência ao serviço por motivo de licença ou faltas justificadas está contemplado como tempo não contabilizado para efeitos de antiguidade nos termos do art. 146.º/5 do EJ 1962 e art. 229.º e 238.º pr.EJ 1944.

145 Cfr. arts. 222.º pr e §4 EJ 1944 e 146.º/2 EJ 1962.146 Art. 47.º§4 EJ1928 e art. 146.º/3EJ 1962.147 Art. 47.º§5 EJ1928 e art. 146.º/4 do EJ 1962.

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b) na fixação da antiguidade tem de atender-se exclusivamente ao exercício efectivo das funções de magistrado judicial ou do MP, e ao exercício efectivo de funções públicas, que alguma lei, vigente ao tempo em que foram exercidas, mande levar em conta para os efeitos de promoção. As funções de inspectores judiciais e de secre-tários do CSJ são consideradas como efectivas funções judiciais148;

c) não será deduzido na antiguidade o tempo que decorrer desde a publicação do despacho até á posse tomada no prazo legal; o das férias judiciais; o de trinta dias de licença em cada ano; o de ausência do lugar ou da comarca por motivo de sindicância que foi julgada improcedente; o de suspensão em consequência do processo que foi anulado ou que terminou por absolvição; o tempo que decorrer desde a data da guia passada pelo Ministério das Coló-nias aos juízes das duas instâncias do ultramar, que tenham sido colocados na magistratura judicial da metrópole, para se apresen-tarem ao Ministério da Justiça, até à posse dos respectivos lugares tomada no prazo de 30 dias para o continente e 60 dias para as ilhas adjacentes, entre estas, ou delas para o continente; e o exer-cício das funções efectivas de magistrado superior do MP, de juiz sindicante ou inquiridor, de director e adjuntos da polícia de inves-tigação criminal e administrativa, de juízes do contencioso fiscal, de auditores dos tribunais militares, de Ministro, de Senador, de deputado, de governador civil, de exercício do magistério nas facul-dades de direito, de presidente dos exames da mesma faculdade e de vogal da comissão jurisdicional dos bens culturais, de chefes de gabinete ou secretários de ministros e o prestado no cumprimento dos deveres militares 149;

d) o tempo em que os magistrados estiverem na situação de adidos, sem exercício, será contado, salvo se nesta situação se encontrarem em virtude de exoneração concedida a seu pedido 150;

e) quando dois ou mais magistrados judiciais tiverem, pela data do despacho e da posse no prazo legal, a mesma antiguidade, para a determinação da precedência deve observar-se o seguinte:

148 Art. 47.º§6 EJ 1928, art. 417.º§3EJ1944 e art. 147.º EJ1962.149 Art. 47.º§7 EJ 1928. A al. c) do n.º 1 do art. 148.º do EJ 1962 acresce: o tempo de

exercício de funções efectivas na qualidade de adjunto da Direcção do Serviço de Justiça e Disciplina do Ministério do Exército.

150 Art. 47.º§8 EJ1928, art. 230.º EJ 1944 e art. 149.º EJ 1962.

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i. em relação aos juízes do STJ, deverá atender-se à antiguidade que tiverem na categoria anterior, e, em relação aos juízes de 2.ª instância, à que tiverem na classe de onde foram promo-vidos, salvo se o lugar que tinham nesta foi alterado pelo CSJ na graduação para a promoção, caso em que se atenderá à ordem dessa graduação151;

ii. em relação aos juízes de primeira instância, na 1.ª e 2.ª classes, a precedência estabelecer-se-á atendendo à ordem da gradua- ção feita pelo CSJ, se esta alterou o lugar que eles ocupavam na lista de antiguidades da classe imediatamente inferior e ao tempo de serviço efectivo nesta prestado, se a graduação não alterou aquele lugar. Quanto aos de 3.ª classe, a antiguidade será regulada pela ordem da graduação que lhes tiver sido dada no concurso, nos termos do art. 421.º (art. 47.º§9 EJ1928).152

Determinava pontualmente o art. 568.º do EJ1927 que os dias de demora, além do prazo legal na remessa dos relatórios e informações a que se refere o art. 468.º (durante os meses de Janeiro e Março de cada ano), das relações dos emolumentos pagos e das guias de depósito das importâncias pertencentes aos cofres de emolumentos, do CSJ e das multas criminais, são descontados aos magistrados e funcionários responsáveis, para efeitos de antiguidade e distribuição da receita dos mesmos cofres, salvo quando o Conselho julgue a demora justificada153.

Igualmente será contado, para efeitos de antiguidade, o tempo de serviço que magistrados, funcionários de justiça, notários e conservadores prestaram como interinos desde que venham a ser providos definitivamente na mesma função, satisfaçam, à data da nomeação interina, aos requisitos exigidos para a nomeação efectiva e se tenham observado as formalidades de que esta nomeação depende (artigo único do decreto-lei n.º 32827, de 5 de Junho de 1943).

151 Nos termos do art. 45.º do Decreto-lei n.º 35388, de 22 de Dezembro de 1945, na nomeação dos juízes do STJ, metade das vagas será preenchida por escolha do CSJ entre os juízes da Relação e a outra metade será preenchida por escolha do Ministro da Justiça entre os juízes da Relação, professores das Faculdades de Direito e juízes ou advogados com mais de quinze anos de exercício dessas profissões.

152 Vd. arts. 519.º-522.º do EJ 1927 sobre as reclamações contra a lista. Cfr. ainda art. 150.º EJ 1962.

153 Cfr. arts. 390.º-392.º EJ1944.

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3.5.1. Critérios utilizados na classificação dos magistrados judiciais

Ao determinar as regras de classificação fundamentais para a promoção dos magistrados, o legislador de 1962 enuncia que deverão ser adoptados os critérios ordinário e extraordinário (art. 425.º). Em termos de classifi-cação ordinária, são atribuídas as notas de serviço de Muito Bom, Bom com distinção, Bom, Regular, Medíocre e Mau; enquanto a classificação extra-ordinária corresponde à nota de Muito Bom com mérito.

Para este efeito, os critérios utilizados são os seguintes (art. 426.º):

a) na apreciação dos magistrados atender-se-á não apenas ao modo como cumprem os seus deveres de natureza formal, mas, de prefe-rência, à categoria mental e moral que tenham revelado no exer-cício do cargo e também fora da função.

b) As notas de Muito Bom, só podem ser atribuídas aos magistrados com cinco anos, pelo menos, de serviço efectivo em funções judiciais e cuja última classificação não tenha sido inferior à de Bom154;

c) Uma classificação de Mau ou duas de Medíocre, seguidas ou inter-poladas, implicam a suspensão imediata do magistrado e a instau-ração de procedimento disciplinar por inaptidão para o exercício do cargo;

d) Os magistrados colocados em comissão de serviço são classifi-cados se o CSJ dispuser de elementos bastantes; se os julgar insu-ficientes, sobrestará na classificação até que disponha de elementos seguros de informação, podendo para este efeito mandar proceder às inspecções que se mostrem necessárias.

A classificação ordinária é feita, pelo menos, de três em três anos, rela-tivamente a cada magistrado de 1.ª instância (art. 427.º/1 daquele mesmo estatuto). Se um magistrado não tivesse sido abrangido por inspecção no último triénio, mandava-se inspeccionar o serviço do tribunal onde esti-vesse colocado e, se necessário, qualquer outro serviço prestado no triénio (art. 427.º/2).

154 A classificação inferior a Regular pode determinar a aplicação do disposto no art. 534.º EJ 1962.

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Na classificação ordinária, seriam tomados em atenção, (art. 428.º):

a) os resultados das inspecções anteriores;b) os relatórios e acórdãos de inquéritos, sindicâncias ou processos

disciplinares instaurados;c) as informações anualmente prestadas pelos presidentes das Rela-

ções e procuradores da República;d) outras informações complementares, devidamente documentadas,

que estejam na posse do Conselho.

O requisito da classificação ordinária é substituído, quando se trate de magistrados judiciais que exerçam em comissão os cargos de juiz do STA e de ajudante do procurador-geral da República ou de ajudante do procu-rador da República que sirva junto deste, por proposta, respectivamente do presidente daquele tribunal ou do procurador-geral da República, que para tanto intervirão, com voto, na sessão do CSJ em que a classificação haja de se fazer (art. 430.º/3). Fora destes casos, o Procurador-geral da República intervém ainda com direito a voto nas sessões do CSJ em que se proceda a classificações extraordinárias de magistrados judiciais em comissão de serviço no MP (art. 430.º/4).

A classificação extraordinária consistiria, por conseguinte, num complemento das classificações ordinárias, destinando-se a regular a promoção dos magistrados à classe ou instância superiores (art. 429.º/1).

A esta classificação são chamados obrigatoriamente todos os magis-trados judiciais que se encontrem na metade superior da escala de anti-guidade da 1.ª classe ou no terço superior dessa escala na 2.ª ou 3.ª classe; bem como os magistrados que em classificação efectuada há menos de dois anos, tenham obtido nota não inferior a Bom com distinção (art. 430.º/1)155. É ordenada a inspecção extraordinária ao serviço dos magistrados que não tenham obtido nota não inferior a Bom com distinção em classificação efec-tuada há menos de dois anos, mas que se encontrem na metade superior da escala de antiguidade da 1.ª classe ou no terço superior dessa escala na 2.ª ou 3.ª classe (art. 430.º/2).

Deste modo, atender-se-á ao exame curricular, segundo os registos existentes no CSJ, à apreciação os resultados das inspecções anteriores;

155 Este artigo seria alterado pelo Decreto-lei n.º 414/73, atendendo agora à razão de um quinto superior da escala de antiguidade da respectiva classe.

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aos relatórios e acórdãos de inquéritos, sindicâncias ou processos discipli-nares instaurados; às informações anualmente prestadas pelos presidentes das Relações e procuradores da República; e a outras informações comple-mentares, devidamente documentadas, que estejam na posse do Conselho, desde que circunscritos ao tempo de serviço do magistrado na classe em que se encontra; e à apreciação de quaisquer trabalhos jurídicos livremente escolhidos pelo magistrado em número não superior a dez, e que não tenham sido apreciados em qualquer classificação anterior, ordinária ou extraordi-nária (art. 429.º/2).

O CSJ providenciaria no sentido de que a classificação extraordinária se realizasse de três em três anos, se antes não tivesse sido promovida metade dos magistrados chamados à classificação anterior (art. 431.º/1). Na 1.ª classe, porém, a classificação não poderia ser antecipada enquanto não tivessem sido promovidos todos os magistrados classificados com Muito Bom com mérito (art. 431.º/2). Logo que fosse aberta a classificação extra-ordinária seriam notificados todos os magistrados chamados para, no prazo de trinta dias, apresentarem os trabalhos jurídicos por eles escolhidos, sob a forma de cópia autenticada, se estivessem arquivados ou fizessem parte de qualquer processo. Seria motivo de exclusão a falta de apresentação dos trabalhos (art. 431.º/3).

A nota de Muito Bom com mérito obtida em classificação extraordi-nária deixa de produzir os efeitos estabelecidos nos termos das alíneas a) e b) do art. 119.º do estatuto judiciário, ou seja, não é conducente à promoção à classe superior e à 2.ª instância, se ao magistrado for posteriormente atri-buída, em resultado de classificação ordinária ou de inquérito, nota infe-rior a Muito Bom. Em qualquer caso, a nota obtida na última classificação extraordinária prevalece sobre a anterior (art. 431.º/4 do mesmo diploma de 1962).

Feita a classificação, os magistrados que forem apurados serão gra- duados segundo a ordem de mérito relativo que lhes for atribuída pelo Conselho (art. 432.º).

Introduzindo algumas alterações aos diplomas anteriores, tal como antevimos, os magistrados passam a ser promovidos à classe superior e à 2.ª instância nos seguintes termos:

a) metade das vagas existentes tanto na 1.ª como na 2.ª classe é reser-vada à promoção por mérito, segundo a ordem de graduação feita pelo CSJ; sendo a outra metade preenchida segundo a ordem de

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antiguidade, com exclusão dos magistrados cuja classificação seja inferior à de Bom;

b) dois terços das vagas existentes nas Relações são reservados à promoção por mérito, segundo a ordem de graduação feita pelo CSJ; o terço restante é preenchido segundo a ordem de antiguidade, com exclusão dos magistrados cuja classificação seja inferior à de Bom;

c) na falta de classificação actualizada de algum dos magistrados a quem competir a promoção por antiguidade ou no caso de pender contra o magistrado procedimento disciplinar com base em acusa-ções graves ou ainda quando se ofereçam fundadas dúvidas sobre a sua idoneidade moral e profissional, o CSJ suspenderá a apreciação até possuir elementos bastantes para se pronunciar;156

d) os juízes excluídos da promoção por motivos de obtenção de clas-sificação inferior a Bom continuam ao serviço e serão novamente apreciados em futuras promoções, salvo se lhes for aplicável o disposto no art. 426.º/3 do EJ, ou seja, quando obtiverem uma clas-sificação de Mau e duas de Medíocre, seguidas ou interpoladas, o que implica, neste caso a suspensão imediata do magistrado e a instauração de procedimento disciplinar por inaptidão para o exer-cício do cargo157;

e) os magistrados que estiverem a exercer cargos ou comissões de serviço estranhos à função judicial só poderão ser promovidos por mérito nos termos do art. 119.º/1 EJ1962 quando a lei expressa-mente o permitir, isto é, quando seja considerado o exercício dos cargos ou comissões equivalente ao efectivo serviço judicial (art. 120.º do mesmo diploma).

Face ao exposto, a promoção era feita segundo o mérito e a antiguidade, na razão de atribuição de metade das vagas na 1.ª instância em função do mérito e 2/3 das mesmas nas Relações, pelo que, o critério da antiguidade apenas era considerado na atribuição, respectivamente, de metade das vagas existentes na primeira instância e 1/3 nas Relações.

No caso específico do STJ, e pondo termo ao recrutamento apenas por antiguidade dos juízes das Relações, os diplomas estatutários de 1927 a

156 Redacção dada pelo DL n.º 46140, de 31 de Dezembro de 1964. 157 A respeito das promoções, vd. ainda os arts. 151.º, 425.º-432.º EJ 1962.

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1962 fazem conjugar o critério da antiguidade com o mérito, não excluindo a possibilidade de serem recrutadas determinadas individualidades de incon-fundível prestígio e mérito reconhecido pelo meio jurídico como é o caso dos professores das Faculdades de Direito, da secção de ciências jurídicas, com vinte anos de serviço158 e advogados que tivessem sido ou fossem presi-dentes do Conselho Geral da respectiva Ordem e membros do Conselho Geral com mais de vinte anos de exercício da advocacia e que tivessem publicado trabalhos notáveis sobre a ciência do direito159. Entendimento distinto seria feito para as Relações160, dado que a legislação oscilou entre o sistema puro da promoção por antiguidade e o da antiguidade e mérito reservando o diploma de 1962 para a 1.ª instância e 1.ª classe o sistema da promoção por antiguidade e mérito para o preenchimento de metade das vagas e para a outra metade a nomeação segundo o critério puro do mérito (art. 250.º EJ 1944, arts. 115.º, 116.º,119.º e 120.º EJ 1962). Esta realidade manter-se-ia até 1977161.

Após 1974, a antiguidade dos magistrados judiciais compreende o tempo de serviço prestado na magistratura do Ministério Público, nomea-damente para efeito do disposto no n.º 3 do artigo 27.º do estatuto de 1977, sendo ressalvadas as posições relativas constantes de listas definitivas de antiguidade elaboradas ao abrigo de legislação anterior à entrada em vigor daquele diploma (art. 190.º do mesmo monumento legal).

Tal como o EJ1962 dispunha, também o legislador de 1977 reconhece ao CSM, dever classificar, a cada três anos, os juízes de direito de acordo com o seu mérito, atribuindo-lhe a classificação de Muito Bom, Bom, Sufi-ciente e Medíocre (art. 33.º162).

158 Cfr. Decreto n.º 16563, de 5 de Março de 1929 (DG IS, n.º 52) que consagrava que estes docentes com mais de 10 ou quinze anos, poderiam ser nomeados para as Relações e para o STJ (art. 8.º§2) e ainda o Decreto n.º 17955, de 12 de Fevereiro de 1930.

159 Preâmbulo do EJ de 1944, p. 152. Cfr. ainda art. 517.º.160 Cfr. n.º161 Os magistrados que estejam a exercer cargos ou comissões de serviço estranhos à

função judicial só podem ser promovidos por mérito nos termos do art. 119.º/1 EJ1962 quando a lei expressamente o permitir ou considere o exercício dos cargos ou comissões equivalente ao efectivo serviço judicial (art. 120.º/1 do mesmo diploma). Ainda que sejam promovidos, os magistrados que continuem nas comissões de serviço que desempenham não contam para efeitos da distribuição de vagas a que se referem as alíneas a) e b) do já mencio-nado n.º 1.º do art. 119.º.

162 O art. 33.º da Lei n.º 21/85 introduz outros índices de classificação.

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Segundo o modelo anterior, esta apreciação decorria da acção perió- dica das inspecções ordinárias feitas aos magistrados de 1.ª instância163.

Ao definir o mérito, o legislador de 1985, dispõe que na classificação dos juízes de direito deve atender-se ao modo como desempenham a função, à sua preparação técnica e à sua categoria intelectual e idoneidade cívica164. A classificação de Medíocre implica, por consequência, a suspensão do magistrado e a instauração de inquérito por inaptidão para o exercício do cargo (art. 34.º da Lei de 1977).

Nas classificações são sempre considerados os resultados de inspecções anteriores, inquéritos, sindicâncias ou processos disciplinares, os relatórios anuais e quaisquer elementos complementares que estejam na posse do Conselho Superior da Magistratura (art. 37.º/1 do mesmo diploma de 1977) sendo o magistrado obrigatoriamente ouvido sobre o relatório da inspecção podendo, para o efeito, fornecer os elementos que entender convenientes (n.º 2)165.

No caso específico dos juízes de direito em comissão de serviço166, estes serão classificados, se o Conselho Superior da Magistratura dispuser de elementos bastantes ou se os puder obter através das inspecções necessárias.

Ainda para efeitos de cálculo da antiguidade, o início da contagem é dado pela data da publicação do provimento no Diário Oficial, devendo a publicação dos provimentos respeitar a graduação feita pelo Conselho Supe-rior da Magistratura (art. 67.º da mesma Lei n.º 85/77). Não será descontado: o tempo de exercício de funções como membro da Comissão Constitucional; o tempo de exercício de funções como membro do Governo; o tempo de suspensão preventiva ordenada em processo disciplinar ou determinada por despacho de pronúncia, quando os processos terminem por arquivamento ou absolvição; o tempo de prisão preventiva, quando o processo termine por arquivamento ou absolvição e o tempo correspondente à prestação de serviço militar obrigatório (art. 68.º)167. Por sua vez, não será tido em conta: o tempo

163 Cfr. art. 36.º da Lei n.º 85/77 e do actual EMJ.164 Vd. arts. 33.º-34.º da Lei n.º 21/85.165 Cfr. art. 37.º da Lei n.º 21/85.166 Vd. arts. 51.º-57.º da mesma lei de 1977. Cfr. arts. 35.º e 53.º-58.º da Lei n.º 21/85.167 O artigo 73.º/1 da Lei n.º 21/85, disporia que não seria descontado, para efeitos de

antiguidade o tempo de exercício de funções como Presidente da República e membro do Governo; o tempo de suspensão preventiva ordenada em processo disciplinar ou determinada por despacho de pronúncia em processo criminal quando os processos terminarem por arqui-vamento ou absolvição; o tempo de suspensão de exercício ordenada nos termos do n.º 3 do mesmo artigo.Cfr. também art. 65.º.

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decorrido na situação de inactividade ou licença ilimitada; o tempo que, de acordo com as disposições sobre procedimento disciplinar, for considerado perdido e o tempo de ausência ilegítima do serviço (art. 69.º)168.

Quando vários magistrados forem nomeados ou promovidos por deli-beração publicada na mesma data: se as nomeações forem precedidas de cursos ou estágios de formação, findos os quais tenha sido elaborada lista de graduação, a antiguidade é determinada pela ordem estabelecida; se as promoções forem por mérito, a antiguidade é determinada pela ordem de acesso; se as nomeações forem por escolha, aplicar-se-á a regra anterior169. Em quaisquer outros casos, a antiguidade é determinada pela antiguidade relativa ao lugar anterior (art. 70.º).

A lista de antiguidade dos magistrados judiciais é, doravante, publicada anualmente no Boletim Oficial do Ministério da Justiça (art. 71.º/1 da Lei n.º 85/77170), sendo os magistrados graduados em cada categoria de harmonia com o tempo de serviço que lhes for contado, mencionando-se, a respeito de cada um, a data de nascimento, o cargo ou função que desempenha, a data da colocação e a comarca da naturalidade. De cada edição do Boletim são enviados exemplares ao Conselho Superior da Magistratura (art. 71.º).

As listas para a promoção podem ser alteradas por motivos superve-nientes171. Assim sendo, se depois da publicação ocorrer algum facto com repercussão na situação que um ou mais magistrados ocupem na lista de antiguidades, ou por terem passado à inactividade, ou por terem excedido licenças, ou por qualquer outra circunstância de efeitos análogos, a Direcção--Geral da Justiça irá fazendo na lista publicada as alterações devidas (art. 153.º EJ 1962).

As alterações nas listas de antiguidades que provenham de decisão do CSJ ou sejam feitas pela Direcção-Geral da Justiça, na conformidade das disposições constantes no EJ 1962, serão reciprocamente comunicadas (art. 155.º EJ 1962).

Actualmente, a antiguidade é contada desde a data do provimento (art. 72.º/1 EMJ172) determinando os arts. 50.º-52.º do mesmo texto legal

168 No mesmo sentido, artigo 74.º da Lei n.º 21/85.169 Arts. 75.º e 76.º da Lei n.º 21/85.170 No mesmo sentido, art. 72.º da Lei n.º 21/85. 171 Art. 567.º EJ 1928, cfe. Decreto n.º 17955, de 12 de Fevereiro de 1930.172 A respeito das regras de contagem da antiguidade, cfr. arts. 73.º-77.º do mesmo

Estatuto. A publicação do provimento deve respeitar, na sua ordem, a graduação feita pelo CSM, nos termos do art. 72.º/2.

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que o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça será feito mediante concurso curricular aberto a magistrados judiciais e do Ministério Público e outros juristas de mérito, sendo concorrentes necessários os juízes da Relação que se encontrem no terço superior da lista de antiguidade e não declarem renunciar ao acesso e concorrentes voluntários os procuradores-gerais--adjuntos que o requeiram, com antiguidade igual ou superior à do mais moderno dos juízes referidos no n.º 2 e classificação de Muito Bom ou Bom com distinção e os juristas que o requeiram, de reconhecido mérito e idonei-dade cívica, com, pelo menos, vinte anos de actividade profissional exclu-siva ou sucessivamente na carreira docente universitária ou na advocacia, contando-se também até ao máximo de cinco anos o tempo de serviço que esses juristas tenham prestado nas magistraturas judicial ou do Ministério Público. Recorde-se que a promoção à Relação também é feita, actualmente, por meio de concurso curricular com prevalência do critério do mérito, entre os juízes de 1.ª instância (arts. 46.º-47.º e 72.º segs. EMJ).

3.5.2. Reclamações contra as listas de antiguidade

Os magistrados que se considerassem lesados pela graduação efectuada nas listas de antiguidades tinham a faculdade de, no prazo de noventa dias, a contar da publicação do anúncio no Boletim Oficial do Ministério da Justiça, reclamar contra a lista em petição dirigida ao CSJ e acompanhada de tantos duplicados quantos os magistrados a quem o deferimento da reclamação pudesse prejudicar (EJ 1962, art.152.º/1)173.

Aqueles a quem a reclamação pudesse causar prejuízo eram notificados para, no prazo que fosse designado e que não seria superior a 15 dias, a contestarem, podendo apresentar os documentos que julgassem convenientes (EJ 1962, art.152.º/2).

Em seguida, era ouvida a Direcção-Geral da Justiça, que tinha vista, por cinco dias, do processo; sendo a questão depois decidida. Eram julgadas à revelia as reclamações que respeitem a interessados que não as contestassem dentro do prazo fixado na notificação (EJ 1962, art.152.º/3).

Quando a Direcção-Geral verificasse que havia erro na graduação em consequência de inexactidões materiais ou lapso manifesto, podia por inicia-

173 Vd. arts. 519.º-522.º EJ 1928 e 504.º-508.º EJ 1944.

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tiva própria e a todo o tempo fazer as correcções devidas, desde que fossem autorizadas pelo Ministro da Justiça (EJ 1962, art.152.º/4).

Enquanto não fossem decididas as reclamações interpostas, as listas publicadas na conformidade do art. 151.º e as rectificadas nos termos dos artigos antecedentes eram consideradas definitivas, sem prejuízo das alte-rações que viessem a sofrer, caso as reclamações fossem atendidas (EJ 1962, art. 155.º).

Por sua vez, a Lei n.º 21/85, determina que os magistrados judiciais que se considerem lesados pela graduação constante da lista de antiguidade podem reclamar, no prazo de sessenta dias a contar da data referida no n.º 3 do artigo anterior, em requerimento isento de selo dirigido ao Conselho Superior da Magistratura, acompanhado de tantos duplicados quantos os magistrados a quem a reclamação possa prejudicar (art. 78.º/1). Os magis-trados que possam ser prejudicados devem ser identificados no requerimento e serão notificados para responderem no prazo de quinze dias (n.º2). Apre-sentadas as respostas ou decorrido o prazo a elas reservado, o Conselho Superior da Magistratura delibera no prazo de trinta dias (n.º 3).174

Sempre que o Conselho Superior da Magistratura verificar que houve erro material na graduação, pode a todo o tempo ordenar as necessárias correcções oficiosas (art. 79.º/1175).

§4.º O EXERCÍCIO DA FUNÇÃO JUDICIAL

4.1. CoMpetênCIa

A República recebe do período anterior a magistratura electiva e vitalícia176, fazendo parte do primeiro grupo os juízes de paz e os árbitros (arts. 127.º da Carta; art. 30.º do Decreto n.º 24, de 16 de Maio de 1832, os arts. 150.º§3 e 152.º NRJ e o art. 44.º CPC1876177) e do segundo, os juízes

174 Vd. ainda art. 78.º da mesma Lei para as transferências já efectuadas.175 As correcções referidas, logo que publicadas na lista de antiguidade, ficam sujeitas

ao regime dos artigos 77.º-79.º da Lei n.º 21/85.176 Cfr. arts. 177.º-179.º C1822, art. 118.º da Carta Constitucional e arts. 123.º-127.º

da C1838.177 Sobre os juízes arbitrais, vd. na sequência da declaração de inconstitucionalidade

com força obrigatória geral do Decreto-lei n.º 243/84, de 17 de Julho pelo acórdão do Tribunal Constitucional n.º 230/86, os tribunais arbitrais seriam regulados pela Lei n.º 31/86, de 26 de Agosto.

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municipais (Decreto de 29 de Julho de 1886178), os juízes de direito (art. 120.º da Carta), os quais exerciam períodos de judicatura correspondentes a três, quatro ou seis anos, a depender do diploma vigente179; seguindo-se os desembargadores dos tribunais de segunda instância e conselheiros do STJ e STA. A classificação utilizada permanecerá, ao longo do século XX, nos estatutos de 1927-1962, pelo que, nesta perspectiva podemos afirmar, de imediato que não foram cortados os laços com o quadro então vigente180. A

178 Subordinados hierarquicamente aos juízes de primeira instância, estavam os juízes municipais, aos quais competia, em matéria cível, preparar e julgar em 1.ª instância todas as acções e seus incidentes cujo valor seria determinado em lei; conhecer de todas as execu-ções fundadas em sentença do tribunal municipal e, além destas, das fundadas nos outros títulos quando o valor não excedesse 6000$00; intervir em todos os actos e termos dos processos do inventário quando o valor deste não seja superior a 6000$00; ordenar actos preventivos e conservatórios nos processos que preparam ou julgam; cumprir os mandados, cartas, ofícios e telegramas de outros tribunais para citação, notificação, afixação de editais ou outros actos da sua competência; praticar, por delegação do juiz de direito a que estão subordinados, os actos de que ele os incumbir, com exclusão porém dos que digam respeito à produção de prova e ao julgamento; em matéria criminal compete-lhes preparar e julgar os processos sumários, de transgressões e de polícia correcional, salvo se tiver de intervir o tribunal colectivo; nos demais processos penais só têm competência para os actos anteriores à queixa e à querela, podendo, porém, havendo réus presos, proferir despachos de pronúncia provisória (art. 76.º/als. a) e b) do EJ 1944 e arts. 62.º-64.º EJ 1962). Estava excluído da competência dos juízes municipais o conhecimento dos processos de curadoria definitiva dos bens dos ausentes; de interdição; sobre estado das pessoas; reforma de livros, processos e documentos; recursos de conservadores dos registos civil e predial e notários; e o cumpri-mento de rogatórias (idem, §1). Vd. ainda os §§ 2 e 3 do mesmo artigo, bem como o art. 77.º também do EJ 1944. Vd. ainda arts. 65.º-66.º EJ 1962.

Sobre a criação dos julgados municipais em todos os concelhos onde as necessidades da boa administração da justiça o exijam, vd. Decreto n.º 19578, de 11 de Abril de 1931 (DG, IS, n.º 84) e o Decreto n.º 19900, de 18 de Junho de 1931 (DG, IS, n.º 139). Posterior-mente esta matéria seria regulada pela Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho e pelo art. 3.º do Decreto-lei n.º 9/2004, de 9 de Janeiro.

Sobre a alçada destes magistrados, cfr. art. 77.º EJ1944 e sobre a sua competência, vd. ainda Decreto-lei n.º 37047, de 7 de Setembro de 1948.

179 Cfr. arts. 120.º da Carta e 89.º NRJ.180 Vd. arts. 56.º e 57.º C1911, o art. 115.º C1933 e o art. 209.º da CRP que corres-

ponde ao texto inicial, renumerado em 1982 e em 1989, ficando então o artigo com o n.º 211.º; em 1997 a revisão atribuir-lhe-ia o n.º 212.º. O n.º 2 do art. 209.º c/c art. 213.º da CRP prevê ainda a existência de tribunais militares (Código de Justiça Militar, Decreto-lei n.º 141/77, de 9 de Abril e a Lei n.º 100/2003), marítimos, arbitrais e julgados de paz. Sobre estes últimos, recorde-se que muito embora tenham sido previstos na Lei n.º 82/77 (arts 12.º/2 e 73.º e segs e regulamentados pelo Decreto-Lei n.º 539/79, não seriam ratificados pela Assembleia Nacional vindo apenas a ser criados pela Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho e

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lei de organização e funcionamento dos tribunais judiciais enumeraria entre as várias classes de tribunais judiciais os de primeira e segunda instância e o Supremo Tribunal de Justiça. Os tribunais de comarca poderão ainda desdobrar-se em juízos e varas; sendo os primeiros de competência gené-rica, especializada ou específica enquanto os segundos deterão competência específica, quando o volume e a complexidade do serviço o justificarem181.

Atendendo à organização judiciária constante dos vários estatutos, procede-se à divisão do território continental português e dos arquipélagos da Madeira e dos Açores em distritos judiciais, estes em comarcas e, por último, em julgados de paz. Com base nestes contornos geo-judiciários, analisaremos sumariamente a competência dos juízes de paz, dos magis-trados de 1.ª instância, dos desembargadores das Relações e dos juízes conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça.

4.1.1. Os juízes de paz

Definidas as competências dos juízes de paz nos arts. 155.º-167.º do EJ 1928; arts. 20.º-22.º e 80.º§§ 2 e 3 e 81.º-84.º EJ 1944; e art. 69.º EJ 1962182),

Decreto-lei n.º 321/2001, de 20 de Dezembro. Vd. os arts. 29.º-A e 50-A da Lei n.º 3/99 e os arts. 37.º e 61.º da Lei n.º 52/2008 e a Lei n.º 101/2003, de 15 de Novembro (Estatuto dos Juízes Militares e Assessores do MP).

Vd. FerreIra, J. O. Cardona Ferreira, Justiça de Paz, Julgados de Paz: abordagem numa perspectiva de justiça ética, paz, sistemas e historicidade, Coimbra Editora, 2005. O modo de nomeação e do tipo de órgão competente para a gestão e disciplina destes magis-trados, os quais fogem ao disposto no EMJ, leva-nos a ter algumas dúvidas quanto à cons-titucionalidade dos arts. 25.º/2 e 65.º/1 e 2.

O EJ 1962 integrará a figura do síndico de falências (arts. 71.º-74.º e 82.º), o qual estava já previsto nos arts. 10.º e 43.º§3 do Decreto-lei n.º 37047, de 7 de Setembro de 1948.

Previsto no texto constitucional de 1976 (art. 209.º), ainda que a doutrina não seja unânime na sua caracterização como órgão jurisdicional, o Tribunal Constitucional não se integra no modelo estrutural judiciário, desde logo pelo modo de selecção dos seus membros. Também o Tribunal de Contas reveste contornos especiais. Todavia, dadas as caracterís- ticas particulares destes órgãos de soberania, tal como afirmámos anteriormente, não nos deteremos sobre estes dois órgãos de soberania, cabendo apenas referir que, no caso do primeiro, seis dos seus membros são escolhidos entre os magistrados judiciais; e, do segundo, não há qualquer obrigatoriedade para que todos os seus conselheiros venham da magistratura judicial.

181 Cfr. ainda arts. 63.º e 64.º da Lei n.º 3/99.182 Nas sedes de concelho, que não sejam sedes de comarca ou de julgado municipal,

a função de juiz de paz é inerente ao cargo de conservador do registo civil, e nos restantes

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das quais podemos destacar exemplificativamente, a direcção do processo de conciliações nos termos do CPC e a prática, por delegação do juiz de direito da respectiva comarca, dos actos de que este os incumbir, tais como deferir o compromisso de honra a louvados, tutores, curadores, vogais do conselho de família e cabeças de casal, cabe-lhe ainda presidir a conselhos de família; determinando, actualmente, o art. 9.º da Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho a concessão, a este magistrado de competência cível, cabendo-lhe proferir, de acordo com a lei ou equidade, as decisões relativas a questões que sejam submetidas aos julgados de paz, devendo, previamente, procurar conciliar as partes183. Dado que o juiz de paz não está sujeito a critérios de legalidade estrita, pode, se as partes assim o acordarem, decidir segundo juízos de equidade quando o valor da acção não exceder metade do valor da alçada do tribunal de 1.ª instância184.

4.1.2. Juízes de direito de primeira instância

No palco anterior a 1928, conheciam os juízes de direito de primeira instância nos seus distritos de matéria civil185 e criminal (art. 83.º NRJ) respectivamente até 20$000 réis em bens de raiz e 30$000 réis em bens móveis e nas de polícia correccional até 10$000 réis ou um mês de prisão (arts. 82.º e 109.º NRJ) e orfanológica (art. 84.º NRJ). A eles competia

julgados de paz é inerente ao cargo de professor, do sexo masculino, do ensino primário da sede da respectiva freguesia. Esta função era exercida independentemente de nomeação, diploma e posse (art. 156.º pr. cfr. redacção dada pelo decreto-lei n.º 22779, de 29 de Junho de 1933). Vd. ainda art. 10.º, 40.º, 201.º, 217.º EJ1944.

O art. 109.º/1 do EJ1962 não menciona os juízes de paz nem os jurados, ainda que consagre aos primeiros a secção VI do capítulo I do título II. Sobre os juízes de paz, vd. art. 10.º EJ1944. Sobre a sua competência, vd. Base XII da Lei n.º 2113, de 11 de Abril de 1962. Por úitimo,. cfr. Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho.

Sobre a competência destes magistrados, vd. ainda arts. 177.º e 192.º CPC 1939; arts. 44.º, 162.º e 172.º§§ 1 e 2 do CPP.

183 Cfr. ainda os arts. 6.º, 8.º-14.º e 26.º da mesma Lei. Sobre os requisitos que deverá preencher o juiz de paz, cfr. arts. 23.º e 24.º da Lei n.º 78/2001. A matéria relativa ao modo de recrutamento, selecção e provimento está regulada nos arts. 24.º e 25.º. Vd. nota 96.

184 Vd. ainda os arts. 6.º, 8.º-14.º e 26.º do mesmo texto legal.185 Sobre a competência dos juízes de 1.ª instância dos tribunais comerciais, cfr. arts.

103.º e 104.º NRJ, art. 74.º da proposta de Lei de 9 de Julho de 1887 e o Decreto n.º 5, de 31 de Março de 1890.

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também conferir juramento aos juízes eleitos, nos termos da Reforma Judiciária de 1837, art. 40.º§1, I Parte e da Portaria de 7 de Dezembro de 1840.

Com a entrada em vigor dos estatutos judiciários, para cada comarca são nomeados tantos juízes de direito da classe correspondente quantas as varas ou juízos que nela existirem (art. 78.º EJ1928, art. 16.º, 57.º-59.º, 65.º-66.º EJ 1944 e ainda os Decretos-lei n.º 37047, de 7 de Setembro de 1948 e n.º 35044, de 20 de Outubro de 1945, bem como os arts. 26.º-33.º EJ 1962186, arts. 17.º-21.º, 71.º-103.ºda LOFTJ de 1999 e arts. 73.º-74.º e 110.º-134.º da Lei n.º 52/2008187), aos quais é conferida competência civil, comercial e criminal (art. 87.º§1 EJ 1928, art. 58.º-60.º EJ 1944, arts. 33.º- -43.º EJ 1962188) sendo a alçada em matéria cível, comercial e penal defi-nida na lei189. Ser-lhes-ia também atribuída competência administrativa,

186 Cfr. ainda as alterações introduzidas pelo DL n.º 414/73.187 Alterada pela Lei n.º 115/2009, de 12 de Outubro e pelo Decreto-lei n.º 295/2009,

de 13 de Outubro. Frise-se que a Lei n.º 52/2008 é aplicável apenas a um número limitado de comarcas piloto.

188 Em matéria criminal, vd. ainda arts. 88.º-96.º EJ 1962. Os juízes de primeira classe detêm ainda competência em matéria de direito dos menores (arts. 100.º-105.º EJ 1928, art. 70.º EJ1944), bem como procede ao recenseamento de jurados e da organização do tribunal de júri (arts. 107.º-111.º, 113.º, 115.º, 127.º, 133.º, 135.º, 142.º, 147.º EJ1928).

Vd. art. 70.º-72.º EJ 1944 e arts. 56.º-58.º EJ 1962 bem como o Decreto-Lei n.º 44288, de 20 de Abril de 1962 (DG, IS, n.º 89) e os arts. 962.º ss e 1452.º ss CPC 1939.

Ainda sobre os tribunais de menores, vide, entre outros, o Decreto de 27 de Maio de 1911, o Decreto n.º 10767, de 15 de Maio de 1925; as Portarias n.ºs 4463, de 16 de Setembro de 1925 e 4882, de 6 de Maio de 1927, o Decreto n.º 15162, de 5 de Março de 1928; a Portaria n.º 5437, de 21 de Junho de 1928; os Decretos n.os 2431, de 24 de Outubro de 1931; 21228, de 11 de Maio de 1932; os Decretos-lei n.os 22708, de 20 de Junho de 1933 e 24828, de 31 de Dezembro de 1934; a Portaria n.º 8262, de 6 de Novembro de 1935; o Decreto n.º 26156, de 26 de Dezembro de 1935; o decreto-lei n.º 26643, de 28 de Agosto de 1936; o Despacho ministerial de 16 de Junho de 1936; o Decreto-lei n.º 33262, de 24 de Novembro de 1943.

Os juízes das tutorias centrais de Lisboa, Porto e Coimbra serão substituídos, nas suas faltas e impedimentos por três juízes substitutos propostos anualmente pelo juiz proprietário ao Ministro da Justiça e dos Cultos numa lista tríplice e escolhidos de entre os indivíduos de um e outro sexo com o curso de direito preferindo os especializados no serviço de juris-dição tutelar de menores (art. 36.º do Decreto-lei n.º 20431, de 24 de Outubro de 1931 e art.1.º §2 do Decreto n.º 21228, de 11 de Maio de 1932.

189 Vd. arts. 87.º EJ 1928, 60.º EJ1944, 54.º EJ1962, 63.º, 78.º-95.º e 96.º-102.º da Lei n.º 3/99, 23.º-30.º da Lei n.º 52/2008 e arts. 61.º-121.º CPC.

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designadamente, dar posse a determinados actores judiciais, como teremos oportunidade de expor, e exercer a acção disciplinar190.

Em matéria cível compete, nomeadamente, aos juízes de direito preparar e julgar, em primeira instância, todas as acções e conhecer das execuções que não pertencerem a juízo especial, conhecer das questões emergentes dos acidentes de trabalho, quando por lei não forem da compe-tência dos tribunais especiais; conhecer dos processos de inventário, determinar e julgar as partilhas; conhecer das acções de perdas e danos contra os juízes de paz da respectiva comarca e contra todos os oficiais de justiça, tanto do juízo de direito como do julgado de paz; cumprir os mandados, as cartas de ordem e precatórias de outros juízos ou tribunais; e também as rogatórias quando forem para simples citação ou intimação, ou quando tiverem por fim alguma diligência que não importe execução; conhecer dos recursos dos funcionários do registo predial, notariado e registo civil; condenar, em custas, todos os oficiais de justiça da comarca e impor multas nos termos da lei; prover interinamente, excepto nas sedes das Relações, os lugares de oficiais de justiça e notários das comarcas, dando parte ao Governo; dar conhecimento ao MP de quaisquer factos criminosos que constem dos processos, quando a acção penal pública deva ter lugar191.

Paralelamente era e é-lhes conferida competência administrativa para, no caso actual do presidente destes tribunais, orientar superiormente os serviços das secretarias judiciais; dar posse ao secretário judicial; exercer a acção disciplinar sobre os funcionários de justiça relativamente às penas de gravidade inferior à de multa; elaborar anualmente um relatório sobre o estado dos serviços; e exercer as demais funções conferidas por lei (art. 75.º da Lei n.º 3/99).

190 A todos os juízes compete abrir anualmente as correições sobre o pessoal judiciá- rio e solicitadores, sem prejuízo da correição que são obrigados a fazer em cada processo nos termos da lei. Vd. no mesmo sentido os arts. 395.º-396.º EJ 1944.

191 Cfr. ainda Decreto n.º 20415, de 20 de Outubro de 1931 (DG IS, n.º 243) arts. 65.º CPC 1939 e 69.º e 647.º CPP.

Sobre a competência dos tribunais regulada no CPC, vd. arts. 62.º-100.º do texto de 1939, do Decreto-lei n.º 44129, de 28 de Dezembro de 1961alterado e republicado pelo Decreto-lei 329-A/95, de 12 de Dezembro.

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4.1.3. Juízes dos tribunais de 2.ª instância

Os desembargadores192 nomeados para as Relações, actualmente de Lisboa193, Porto194, Guimarães, Coimbra, Évora195 e Faro196 decidem os conflitos de jurisdição e competência entre os juízes de direito do respectivo distrito, ou entre as autoridades judiciais de diversas comarcas do mesmo distrito; conhecem por meio de recurso dos despachos, sentenças e acór-dãos proferidos em matéria cível e comercial e das decisões em processo criminal dos juízes de direito nas causas que excederem a alçada destes últimos e da decisão do conselho de tutela que revogar a do conselho de família; das acções de perdas e danos propostas contra os juízes de direito ou magistrados do MP, nas comarcas do respectivo distrito; assim como preparam e julgam os processos por infracções não disciplinares come-tidas por uns e outros no exercício das suas funções ou por causa delas, e julgam os processos pelas infracções cometidas fora desse exercício; julgam as habilitações deduzidas em causas pendentes de recurso, quando forem confessadas, bem como revêm as sentenças proferidas por tribunais estran-

192 Art. 68.º EJ 1928, art. 56.º EJ 1944 e o art. 24.º EJ 1962.193 O Decreto-Lei n.º 46140, de 31 de Dezembro de 1964 (DG, IS, n.º 305) aumenta

para mais quatro juízes o número dos magistrados desta Relação (art.1.º); total que seria, novamente, aumentado para mais dois (ex vi Decreto-Lei n.º 487/70, de 21 de Outubro (DG, IS, n.º 244), art. 1.º.

194 O Decreto-Lei n.º 487/70, de 21 de Outubro, aumenta para mais um desembar-gador, o quadro da Relação do Porto (art.1.º).

195 Frise-se que enquanto medida do Governo Provisório da República, seria extinta a Relação dos Açores, com sede em Ponta Delgada, ex vi do Decreto de 24 de Outubro de 1910 (DG n.º 17, de 25 de Outubro).

Ainda a respeito da composição das Relações, vd. a Lei n.º 1631, de 16 de Julho de 1924 que vem conferir, além do presidente, um número total de 16 juízes à Relação de Lisboa, 14 à do Porto, 10 à de Coimbra por contraposição ao número consagrado no EJ 1928, na razão, respectivamente, de 20, 16 e 10. E ainda o art. 50.º da Lei n.º 3/99, o art. 1.º do Decreto-lei n.º 186-A/99, de 31 de Maio, os arts. 18.º-20.º e 60.º da Lei n.º 52/2008. A situa- ção dos magistrados supra numerários encontra-se regulada, actualmente, no art. 13.º do Decreto-lei n.º 250/2007, de 29 de Junho.

196 Sobre a ordenação geográfica judiciária, vd. por último, o Decreto-lei n.º 186-A/99, de 31 de Maio com as alterações introduzidas pelos Decretos-Lei n.º 290/1999, de 30 de Julho; n.º 27-B/2000, de 03 de Março; n.º 178/2000, de 09 de Agosto; n.º 246-A/2001, de 14 de Setembro; n.º 148-2004, de 21 de Junho; n.º 25/2009, de 26 de Janeiro e pela Reso-lução do Conselho de Ministros n.º 59/2007, de 24 de Abril. E ainda o art. 47.º da Lei n.º 3/99 e o art. 4.º do já mencionado Decreto-lei n.º 186-A/99.

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geiros e confirmam-nas; cumprem as cartas de ordem e precatórias que lhes sejam dirigidas; condenam em custas os juízes de direito e todos os empre-gados judiciais do respectivo distrito e impõem multas, nos termos da lei de processo; e participam ao MP qualquer facto criminoso que conste de algum processo, quando houver lugar à acção penal pública197. Estas competên-cias são mantidas pelo art. 55.º da Lei n.º 3/99, a qual viria a acrescentar a concessão do exequatur às decisões proferidas pelos tribunais eclesiásticos (art. 56.º do mesmo diploma)198.

4.1.3.1. Presidente e o Vice-Presidente da Relação

Para cada uma das Relações é nomeado de entre os juízes do STJ um presidente, pelo período de três anos, o qual não poderá servir mais de dois triénios sucessivos (art. 69.º pr. EJ 1928, arts. 54.º-55.º EJ 1944 e arts. 21.º-22.º EJ 1962), devendo prestar o compromisso de honra e tomar posse perante o Ministro da Justiça (art. 70.º EJ 1928, art. 252.º EJ 1944 e arts. 122.º e 127.º EJ 1962). Actualmente o período trienal passou tal como no caso do presidente do STJ, a quinquenal sendo a posse tomada perante este último (art. 61.º/1 al. a) do EMJ e arts. 68-69.º da Lei n.º 52/2008).

Compete aos presidentes das Relações as atribuições designadas para o presidente do STJ, assim como lhe caberá exercer sobre os juízes, oficiais de justiça e demais funcionários da área da sua jurisdição, as atribuições indicadas no EJ199; devendo tomar as assinaturas dos notários, em livro especial200, e conceder até trinta dias de licença em cada ano aos da sede da Relação, participando-o ao Governo; procederá anualmente à correição; dará posse e tomará o compromisso de honra aos procuradores da Repú-blica e aos juízes nomeados para cargos na sede da Relação; proverá inte-rinamente, nas sedes das relações, os empregos das suas secretarias e os lugares de oficiais de justiça e de notários; e concederá aos juízes de direito

197 Cfr. arts. 75.º-77.º e 76.º EJ 1928; o art. 25.º EJ1962; os arts. 71.º e 678.º CPC 1939; o arts. 37.º CPP e o art. 31.º da Lei n.º 52/2008; bem como o Decreto-lei n.º 35978, de 23 de Novembro de 1946, rectificado no DG, IS, de 16 de Janeiro de 1947; o Decreto-Lei n.º 47691, de 11 de Maio de 1967 e o Decreto-lei n.º 37047, de 7 de Dezembro de 1948.

198 Cfr. também os arts. 58.º e 65.º-66.º da Lei n.º 52/2008.199 Cfr. Decreto-lei n.º 35388, de 22 de Dezembro de 1945 e o Decreto-lei n.º 37047,

de 7 de Dezembro de 1948.200 A utilização deste livro viria, rapidamente, a cair em desuso.

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e aos funcionários sob a sua jurisdição até trinta dias de licença em cada ano (art. 73.º EJ 1928, art. 55.º EJ 1944 e o art. 22.º EJ 1962). A actual Lei n.º 52/2008 regula esta matéria no art. 69.º atribuindo competência a estes magistrados para conhecerem dos conflitos de competência entre tribunais de comarca sedeados na área do respectivo tribunal, podendo delegar essa competência no vice-presidente; e para dar posse ao vice-presidente, aos juízes e ao secretário do tribunal.

4.1.4. Os juízes conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça

Aos iniciais quinze membros, à data de 1910, ao quadro do STJ passariam a pertencer dezasseis conselheiros201, número a que acrescia o presidente, vindo numa escala ascendente a perfazer actualmente o total de sessenta magistrados202. A legislação subsequente ao recrutá-los da magis-tratura judicial e do Ministério Público permite ainda o acesso de outros juristas de mérito (art. 49.º Lei 85/77 e arts. 50.º-52.º EMJ).

Compete a estes magistrados203, designadamente, conhecer dos conflitos de jurisdição e competência entre as Relações, entre quaisquer autoridades judiciais dos distritos de diversas Relações, entre as autori-dades ou tribunais administrativos, fiscais ou militares204 e as autoridades ou tribunais judiciais, e entre quaisquer tribunais especiais e os tribunais comuns; conceder, nos termos da lei, a revisão de sentenças penais205 conhecer por meio de recurso das decisões proferidas pelas Relações nas causas que excederem a sua alçada ou nas questões e causas para as quais

201 A designação de conselheiro nasce no art. 131.º da Carta Constitucional. A selecção destes magistrados está consagrada na Carta e é reiterada no art. 12.º do Decreto n.º 24, de 16 de Maio de 1832, no art. 1.º § 2 da 1.ª Parte da Reforma Judiciária de 1837; nos arts. 82.º e 123.º § 2 da Constituição de 1838 e nos arts. 8.º e 33.º §2 da NRJ que defendiam a promoção fundada no critério da antiguidade.

202 Art. 57.º, pr. EJ 1928, art. 13.º pr. EJ 1944 e art. 11.º EJ 1962 e arts. 38.º-39.º da Lei n.º 3/99 e 46.º-47.º da Lei n.º 52/2008.

203 Note-se que estes magistrados estão distribuídos pelas secções que formam o STJ, nos termos do art. 62.º EJ 1928. Vd. também art. 14.º EJ 1944 e arts. 12.º e 14.º EJ 1962 bem como a respectiva legislação avulsa a este respeito, exemplificativamente o Decreto-lei n.º 35044, de 20 de Outubro de 1945. E ainda os arts. 29.º, 33.º e seguintes da Lei n.º 3/99.

204 Vd. art. 403.º/2 do Código de Justiça Militar.205 Arts. 603.º-604 e 155.º CPC 1939, 412.º CPP, 3.º do Decreto n.º 37166, de 17 de

Novembro de 1948.

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não há alçada; conhecer das acções de perdas e danos intentadas contra os juízes conselheiros do STJ, contra os desembargadores das Relações ou contra os magistrados do MP junto de qualquer destes tribunais; preparar e julgar os processos por infracções cometidas por uns e outros no exercício das suas funções e julgar os processos por infracções cometidas fora desse exercício206; mandar suspender a execução de sentenças penais contraditó-rias nos termos da legislação processual207, tal como o dispõem também, ainda que com as devidas adaptações, os arts. 41.º-45.º da Lei n.º 52/2008.

O STJ terá um presidente e um vice-presidente, nomeados de entre os juízes do respectivo quadro (art. 58.º EJ 1928, arts. 13.º-14.º e 248.º EJ 1944, art. 13.ºEJ 1962, art. 50.º e 62.º Lei n.º 21/85 e o art. 210.º/2 CRP), os quais prestam o compromisso de honra e tomam posse perante o Ministro da Justiça e os demais juízes, perante aquele presidente (art. 59.º EJ 1928, art. 249.ºEJ 1944, art. 127.º/1, al. a) EJ 1962). Actualmente, a posse dos conselheiros é tomada perante o presidente do STJ e a deste último, em acto público, perante o plenário do mesmo tribunal (art. 51.º/1, al. a) e 61 da Lei n.º 21/85).

Compete ao presidente do STJ dirigir os trabalhos do tribunal, retirar a palavra aos advogados, quando for caso disso, e manter a ordem nos actos a que presidir, advertindo os perturbadores, podendo fazê-los sair do tribunal ou lugar onde o acto se realize, e impor-lhes pena de prisão correcional até três dias, sem outra forma de processo mais do que mandar tomar nota na acta, e sem prejuízo de, no caso de falta grave ou de desobediência, os mandar autuar e prender, remetendo-os ao juiz competente; manter a ordem nas conferências e apurar o vencido nelas; votar sempre que a lei o deter-minar; assinar as ordens que expedir; mandar afixar à porta do tribunal a lista dos processos que houverem de ser julgados em cada sessão; reunir o tribunal em sessão plena, pelo menos uma vez em cada ano, por iniciativa própria, de algum dos juízes ou do MP, para se apurarem e consignarem os casos de direito sobre que tenham recaído julgados divergentes, e comu-nicar o resultado ao CSJ e ao Ministro da Justiça; superintender na secre-taria; prover interinamente os empregos da secretaria, dando logo parte ao Governo; dar posse e receber a declaração ou compromisso de honra, aos juízes do tribunal e aos empregados da secretaria; conceder aos juízes do

206 Arts. 595.º ss, 609.º e 613.º todos do CPP, 207 Art. 66.º EJ 1928; art. 53.º EJ 1944; os arts. 18.º-19.º EJ 1962 e 33.º e 34.º da Lei

n.º 3/99.

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tribunal e aos empregados até trinta dias de licença em cada ano, dando logo parte ao Governo; mandar lavrar termo de encerramento no livro em que os juízes se inscrevem; exercer sobre os magistrados e empregados seus subordinados as atribuições disciplinares determinadas na lei; mandar processar as folhas de vencimentos dos juízes e empregados seus subordi-nados e assinar o expediente; desempenhar as demais atribuições que por lei lhe incumbirem (art. 65.º EJ 1928, art. 62.º EJ 1944 e art. 15.º EJ1962). Actualmente, o leque de competências que lhe é conferido por lei encerra, tal como antes, actos de natureza judicial e administrativa (art. 52.º da Lei n.º 52/2008).

4.2. a InaMovIbIlIdade

4.2.1. Aspectos gerais

Tal como mencionámos, uma das garantias ou princípios reconhecidos à magistratura judicial é a inamovibilidade, ainda que esta não seja total208. Outrora ligada ao princípio da venalidade, ao direito de propriedade sobre o cargo e à possibilidade do titular do ofício dele dispor como entendesse, a regra ou princípio da inamovibilidade proibida pela legislação anterior ao Liberalismo, era não só aplicada de forma dissimulada, mas também frequentemente violada, até que os textos de Oitocentos a consagram. Ainda assim, terá neste período um sentido de mobilidade ou deslocamento parcial, distinguindo-o assim de irremovibilidade e de intransferibilidade. Este é o sentido que novecentos também lhe reconhecerá, visando distinguir a inamovibilidade da magistratura judicial209 e a perpetuidade do exercício da judicatura à amovibilidade da magistratura do Ministério Público210, cabendo doravante ao CSJ propor os movimentos judiciais, com indicação

208 Ao princípio ou regra da inamovibilidade está associado o do domicílio necessário, como referimos supra.

209 Nesta condição estavam nas vésperas de 1910, os juízes letrados, os juízes de paz e municipais. Cfr. 16.º do Decreto n.º 13809, de 22 de Junho de 1927.

210 Ou estabilidade, para usar a expressão do art. 78.º do Estatuto do Ministério Público (aprovado pela Lei n.º 47/86, de 15 de Outubro, republicado pela Lei n.º 60/98, de 27 de Agosto, e alterado pelas Leis n.os 42/2005, de 29 de Agosto, 67/2007, de 31 de Dezembro, 52/2008, de 28 de Agosto, 37/2009, de 20 de Julho, 55-A/2010, de 31 de Dezembro e 9/2011 de 12 de Abril).

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das comarcas, tribunais ou cargos em que hajam de ser colocados os juízes de qualquer classe ou categoria, por nomeação, transferência, promoção, cessação de comissão ou regresso à efectividade do serviço o que revela uma ligeira alteração face ao regime anterior (arts. 449.º/5 EJ 1928 e 403.º/1, al. g) EJ1962).

4.2.2. Substituição

Por motivo de impedimento do titular do cargo, tanto podem substi-tuir como ser substituídos os juízes letrados (da magistratura judicial e do Ministério Público), os juízes eleitos e os funcionários judiciais. Os motivos são os mais variados, no entanto, podemos exemplificativamente referir aspectos de natureza política, motivos de saúde, a morte do titular do cargo e a impossibilidade legal de acumulação de cargos, as quais determinam que, por um período determinado, o lugar do titular do cargo seja ocupado legitimamente por outrem.

Tal matéria era regulada pelo art. 87.º da NRJ e pelo Decreto n.º 3, de 29 de Março de 1890, assim como pelos arts. 3.º e 4.º da Lei de 18 de Julho de 1855, a Lei de 8 de Maio de 1884 e a Portaria de 14 de Agosto de 1886, os quais seriam revistos pelos Decretos de 20 de Outubro de 1910211, de 4, 5 e 14 de Novembro de 1910212 e pelo Decreto n.º 12433, de 7 de Outubro de 1926, rectificado em 6 de Novembro de 1926.

Com a entrada em vigor do Estatuto Judiciário de 1928, sempre que circunstâncias especiais o exigiam, podia o CSJ, durante o impedimento do juiz efectivo, fazer prover o seu lugar num dos magistrados que se encon-trasse na situação de adido ou no mais graduado dos delegados do procu-rador da República aprovados em concurso para juízes de direito (art. 92.º EJ 1928 e art. 63.º do DL n.º 33547/1944).

Nos termos do art. 90.º do EJ 1928, as substituições dos juízes de direito respeitavam a seguinte ordem: primeiramente os conservadores do registo predial; seguindo-se os conservadores ou oficiais do registo civil e os presidentes dos senados municipais dos concelhos sedes das respectivas comarcas, ou quem fizesse suas vezes213.

211 DG n.º 14, de 21 de Outubro.212 DG n.º 27.213 Cfr. ainda art. 91.º.

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Direito Administrativo da Magistratura Judicial 201

Tendo o sentido e a letra do preceito regulado nos arts. 90.º, 95.º e 175.º do EJ 1928 sido sobejamente inutilizado pelo disposto no parágrafo único do art. 93.º que determinava que o substituto a quem o juiz entregasse a jurisdição conservá-la-ia por todo o tempo que durasse a ausência ou impe-dimento do efectivo, salvo se estivesse também legalmente impedido, o que implicou que fosse passada a jurisdição para o substituto imediato, circuns-tância que muitas vezes foi de difícil execução dado o número reduzido de substitutos legais em algumas comarcas, dispôs o Decreto n.º 19772, de 27 de Maio de 1931, à semelhança do procedimento estabelecido para os delegados do Procurador da República, que os substitutos dos juízes só têm jurisdição quando, naquela qualidade, são chamados legalmente para suprir os juízes proprietários nos seus impedimentos temporários, ou estando vaga a comarca. O novo entendimento implicaria então na nova redacção dada ao art. 90.º bem como aos arts. 95.º e 175 do mesmo EJ.

No caso do STJ, na falta do presidente servia o vice-presidente que deixaria de exercer as funções de juiz, excepto nos processos em que já tivesse posto o visto; e, na falta ou impedimento de ambos, serviria o mais antigo dos juízes desimpedidos (arts. 63.º EJ 1928, 50.º EJ1944, 13.º EJ1962, e, actualmente, os arts. 45.º da Lei n.º 3/99 e 54.º da Lei n.º 52/2008).

Na vigência do EJ 1944, o legislador veio consignar, especificamente, as seguintes regras de substituição de magistrados:

a) os juízes dos tribunais criminais e dos tribunais cíveis das comarcas, que tiverem mais de um, substituir-se-ão uns aos outros, quando as suas faltas ou impedimentos não excedam o prazo de quinze dias, pela ordem numérica e sucessiva, de modo que os últimos substituam os primeiros; porém, quando as faltas ou impedimentos excederem aquele prazo, ou quando, mesmo sem o excederem, as conveniências do serviço o exigirem, serão substituídos pelos conservadores do registo predial e civil das mesmas comarcas que os presidentes das respectivas Relações designarem (art. 62.º);

b) os juízes dos tribunais de polícia são substituídos nas suas faltas e impedimentos pelos subdirectores da Polícia Judiciária (art. 9.º §2 do Decreto-Lei n.º 5044, de 20 de Outubro de 1945)214;

214 Os tribunais de polícia foram criados pelo Decreto-lei n.º 35044, de 20 de Outubro de 1945, com dois juízes em Lisboa e um no Porto, número que foi elevado a três juízes em Lisboa pelo art. 18.º do Decreto-lei n.º 37047, de 7 de Setembro de 1948.

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c) quando circunstâncias especiais de interesse público o exigirem, poderá o CSJ, durante o impedimento do juiz efectivo, indicar para o seu lugar um juiz de classe igual ou inferior à do mesmo lugar ou o mais graduado dos delegados do procurador da República apro-vados em exame de habilitação para juízes de direito (art. 63.º EJ 1944);

d) compete ao presidente da respectiva relação a elaboração da escala dos substitutos que, em cada mês, devem fazer parte dos tribunais colectivos das comarcas de Lisboa e Porto (art. 66.º §3 EJ 1944);

e) o desembargador presidente dos tribunais criminais de Lisboa e Porto é substituído nas suas faltas e impedimentos pelo juiz mais moderno dos respectivos juízos criminais e, em segundo lugar, pelo juiz auditor do Tribunal Militar Territorial (art. 11.º § único pr. do DL n.º 35044, de 20de Outubro de 1945);

f) No tribunal criminal de Lisboa os vogais serão substituídos, em primeiro lugar, pelo juiz mais moderno dos respectivos juízos criminais e, em segundo lugar, pelo juiz auditor do Tribunal Militar Territorial (art. 11.º § único do DL n.º 35044, de 20de Outubro de 1945);

g) No tribunal criminal do Porto os vogais serão substituídos, em primeiro lugar, pelo juiz auditor do Tribunal Militar Territorial e, em segundo lugar, pelo juiz do tribunal de execução de penas (art. 11.º § único do DL n.º 35044, de 20de Outubro de 1945);

h) Os juízes municipais são substituídos pelos conservadores que não for o juiz municipal e, em segundo lugar, pelo presidente da câmara municipal ou quem legalmente o substituir (art. 79.º EJ 1944).215

Mais tarde, o Estatuto de 1962 determinaria que a substituição dos juízes de direito nas suas faltas e impedimentos competiria: ao juiz do outro juízo, quando o houvesse (podendo ser um juiz auxiliar216); aos conserva-dores do registo predial; aos conservadores do registo civil; ao presidente da câmara municipal do concelho sede da respectiva comarca ou quem fizesse as suas vezes (art.45.º/1). Só quando não pudesse assumir a jurisdição aquele

215 Relativamente à substituição dos magistrados do Ministério Público, vd. art. 102.º EJ 1944 bem como os seguintes diplomas avulsos: DL n.º 34553, de 30 de Abril de 1945, DL n.º 37047, de 7 de Setembro de 1948, a Circular n.º 1739, de 9 de Novembro de 1948, da Procuradoria da República junto da Relação do Porto.

216 Cfr. arts. 26.º/2, 29.º/1 e 49.º do mesmo EJ.

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Direito Administrativo da Magistratura Judicial 203

a quem a substituição primeiro competiria, era chamado o imediato. O exer-cício da função jurisdicional preferiria, porém, a quaisquer outras funções próprias do substituto (art. 45.º/2).217

Ainda na vigência do estatuto de 1962, no tribunal cível de Lisboa, os juízes substituem-se uns aos outros, quando as suas faltas ou impedimentos não excedam o limite de quinze dias, nos seguintes termos: os presidentes das varas são substituídos pelos respectivos adjuntos, começando pelo mais antigo; os adjuntos, pelos presidentes das varas do mesmo grupo segundo a ordem crescente da numeração destas, e, no impedimento deles, pelos presi-dentes das restantes varas, segundo a mesma ordem; os juízes dos juízos cíveis, uns pelos outros, segundo a ordem numérica e sucessiva dos juízos, de modo que o último substitua o primeiro; como presidentes do tribunal colectivo, os juízes dos juízos cíveis são substituídos pela forma estabele-cida para as varas (art. 46.º)218.

217 Cfr. art. 45.º do DL n.º 414/73 que ao alterar o EJ vem prever a possibilidade do juiz de direito ser substituído, na falta do juiz do outro juízo ou ao juiz auxiliar, pelo juiz do tribunal tutelar central de menores, quando o haja; pelos conservadores do registo predial; conservadores do registo civil; presidente da câmara municipal do concelho da sede da respectiva comarca, ou quem suas vezes fizer, ou a outra pessoa de reconhecida idoneidade, designada pelo presidente da Relação. Havendo na comarca mais de um conservador, cabe ao presidente da Relação determinar a ordem da substituição.

Quando na comarca haja um único juiz de instrução criminal ou as suas funções sejam exercidas nos termos do n.º 2 do artigo 26.º, o substituto será outro juiz em serviço na comarca ou um conservador do registo civil ou do registo predial, segundo o estabelecido pelo presi-dente da Relação.

Para as substituições ocorridas no tribunal criminal de Lisboa, cfr. art. 47.º do mesmo diploma, bem como a redacção introduzida pelo DL n.º 202/73.

Vd. ainda art. 49.º da Lei n.º 88/77.218 Estas regras são aplicadas aos juízes do tribunal cível do Porto (art. 48.º/1). Cfr. a

redacção introduzida pelo DL n.º 202/73.O DL n.º 202/73, daria uma nova redacção ao art. 46.º do EJ 1962, passando doravante

os presidentes das varas a ser substituídos pelos respectivos adjuntos, começando pelo mais antigo; os corregedores de cada vara substituem-se reciprocamente; quando tal não for possível ou suficiente, são substituídos pelos adjuntos das outras varas, começando pelo mais moderno; os juízes dos juízos cíveis, uns pelos outros, segundo a ordem numérica e sucessiva dos juízos, de modo que o último substitua o primeiro; na qualidade de presidente do tribunal colectivo, os juízes dos juízos cíveis são substituídos pela forma estabelecida para as varas. Sempre que a substituição dos juízes dos tribunais de família não seja possível por aplicação das regras do art. 46.º/1, alíneas a) e c) cabe ao presidente da Relação desig-nará o substituto.

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No tribunal criminal de Lisboa, as substituições seguem a seguinte regra: o presidente do tribunal criminal é substituído pelo juiz mais moderno da respectiva Relação; e os vogais do plenário, pelos juízes presidentes dos outros juízos criminais, segundo a ordem da sua antiguidade; os presidentes dos juízos criminais são substituídos uns pelos outros segundo a ordem numérica e sucessiva dos juízos, de modo que o último substitua o primeiro, e, estando todos impedidos, pelos juízes dos juízos correccionais, segundo a mesma ordem, começando, porém, pelos que não entrem na constituição dos tribunais colectivos; os juízes dos juízos correccionais, uns pelos outros, também segundo a ordem numérica e sucessiva dos juízos, de modo que o último substitua o primeiro219; os juízes dos juízos de polícia substituem-se reciprocamente, e, estando ambos impedidos, são substituídos pelos juízes do tribunal de execução das penas, segundo a ordem numérica e sucessiva dos juízos (art. 47.º)220.

Quando seja de prever que o impedimento do juiz vai ser prolongado, o CSJ, ponderando o volume de serviço da comarca e a possível insufici-ência do regime de substituições pode determinar que vá prestar serviço ao tribunal, enquanto durar o impedimento, um juiz de classe igual ou inferior à do juiz impedido (art. 51.º). Relativamente aos juízes municipais, deter-mina o art. 60.º que estes sejam substituídos, em primeiro lugar, pelo outro conservador da sede do concelho221, e, em segundo lugar, pelo presidente da câmara municipal ou por quem legalmente o substitua na função admi-nistrativa (art. 60.º EJ 1962).

Em suma, estava, assim, consagrado um conjunto de preceitos relati-vamente à substituição de magistrados. A saber:

a) os juízes não podiam cometer a outrem o exercício da sua juris-dição, excepto nos casos em que a lei o autorizasse; e escreviam pelo seu próprio punho, os despachos, sentenças e acórdão, que

219 Estas regras são aplicadas aos juízes do tribunal criminal do Porto (art. 48.º/2). Os vogais do plenário do tribunal criminal são, porém sucessivamente substituídos pelo juiz auditor do tribunal militar territorial e pelo juiz do tribunal de execução das penas. O juiz do tribunal de polícia é substituído pelo juiz do tribunal de execução das penas, e, estando este também impedido, pelo subdirector da Polícia Judiciária (art. 48.º/2).

220 A respeito dos juízes do tribunal de execução das penas de Lisboa, vd. ainda o art. 90.º/1.

221 Quando o conservador a quem incumbam as funções de juiz municipal seja também notário, prevalece a inerência da função judicial (cfr. arts. 45.º/2 e 180.º/3).

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por eles fossem também datados e assinados (art. 91.ºEJ 1928 e art. 221.º do EJ1944);

b) Os substitutos só tinham jurisdição quando, naquela qualidade, fossem chamados legalmente para suprir os juízes proprietários nos seus impedimentos temporários, ou quando estivesse vaga a comarca (art. 93.º EJ1928 e art. 64.º do EJ1944, art. 50.º EJ 1962);

c) O substituto a quem o juiz entregasse a jurisdição conservá-la-ia por todo o tempo que durasse a ausência ou impedimento do efec-tivo, salvo provado achar-se também legalmente impedido (art. 93.º § único EJ 1928, art. 61.º-64.ºEJ1944, arts. 45.º-51.ºEJ1962);

d) Quando os juízes de direito efectivos não estivessem no exercício das suas funções, poderiam ser substituídos no tribunal colec-tivo pelos respectivos substitutos, mas o tribunal nunca poderia funcionar sem que estivessem presentes, pelo menos, dois juízes de direito efectivos (art. 95.º§1 EJ 1928 e art. 29.º EJ1962);

e) Eram chamados a substituírem os juízes municipais, os conserva-dores que não fossem juízes municipais e o presidente da Câmara Municipal ou quem legalmente o substituisse (art. 79.º do EJ1944 e art. 60.º EJ1962);

Na vigência da Lei n.º 85/77, nas suas faltas ou impedimentos, o juiz de direito é substituído pelo 2.º vogal do tribunal colectivo. Nos tribunais com dois juízos a substituição compete ao juiz do outro juízo e, na falta ou impedimento deste, ao juiz da mesma comarca ou de comarca próxima, a indicar pelo Conselho Superior da Magistratura (art. 21.º/1 do DL 269/78); havendo mais de dois juízos, o juiz do primeiro substitui o do segundo, o do segundo o do terceiro e assim sucessivamente, de modo a que o do último juízo substitua o do primeiro (n.º 2). A substituição do juiz de círculo é feita por outro juiz de círculo, onde o houver, ou pelo juiz do processo (art. 22.º).

Em tribunais de competência específica os juízes são substituídos por juízes de igual competência (art. 23.º)222.

Os juízes de instrução criminal que não possam ser substituídos de acordo com o disposto no artigo 21.º sê-lo-ão sucessivamente: pelo juiz do tribunal do trabalho sediado na mesma localidade, preferindo o mais antigo;

222 No caso dos juízes dos tribunais de trabalho, vd. art. 25.º, para os juízes dos tribu-nais de menores, art. 26.º, dos juízes dos tribunais de execução de penas, art. 27.º. Cfr. ainda o art. 76.º da Lei n.º 52/2008.

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por juiz de comarca próxima designado anualmente pelo Conselho Superior da Magistratura ou por pessoa designada pelo CSM (art. 24.º).

O art. 28.º cria ainda um regime supletivo para a substituição, desde que se tratasse de actos de carácter urgente ou relativos a réus presos ou quando se tornasse necessária à constituição do tribunal colectivo, consagrando que aquela seria assegurada sucessivamente: pelo conservador do registo predial da sede do tribunal; pelo conservador do registo civil da sede do tribunal; ou por pessoa designada anualmente pelo Conselho Superior da Magistratura (n.º1). Havendo mais de um conservador, caberia ao Conselho Superior da Magistratura indicar aquele a quem compete a substituição (n.º 2).

Dada a omissão da Lei n.º 21/85, a Lei n.º 3/99, de 3 de Janeiro (LOFTJ) e ao Decreto-lei n.º 186-A/99, de 31 de Maio regulariam a subs-tituição dos juízes de direito indicando que pode ser feita por outro juiz de direito e por pessoa idónea, licenciada em direito, designada pelo CSM; nos tribunais com mais de um juízo, o juiz do 1.º juízo é substituído pelo do 2.º, este pelo do 3.º, e assim sucessivamente, de modo a que o juiz do último juízo seja substituído pelo do primeiro (art. 68.º do primeiro diploma e art. 10.º do segundo texto)223. Quando a substituição for superior a 30 dias, a remuneração é feita por despacho do Ministro da Justiça recebendo parecer favorável do CSM, tendo por limites os enunciados no art. 68.º/6 do citado Regulamento de 1999224.

4.2.3. Transferência

Ligada à temática da inamovibilidade, impõe-se falar agora nas trans-ferências dos magistrados judiciais, as quais nem sempre estiveram apenas dependentes do decurso do período de judicatura ou da abertura de vagas. Recorde-se que um dos mais ferozes debates do século XIX prendeu-se

223 Vd. ainda art. 10.º do Regulamento da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais de 1999 e o art. 76.º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribu-nais Judiciais (Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto), segundo o qual a substituição de um juiz de 1.ª instância decorre de determinação do presidente do tribunal de comarca.

224 Ponderadas as necessidades do serviço, o CSM pode com carácter excepcional, determinar que um juiz, obtida a sua anuência, exerça funções em mais de um juízo ou em mais de um tribunal, ainda que de circunscrição diferente (art.69.º/1). Vd. ainda art. 11.º do do Regulamento da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais de 1999 e os arts. 12.º e 77.º da Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto.

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com o ensejo cabralino de estender, em 1844, aos magistrados de segunda instância a imposição da transferência periódica, circunstância que a magis-tratura apenas admitia para os juízes de direito (entenda-se em exercício de funções nas comarcas). Em outras situações, o governo não hesitava em socorrer-se de medidas, mais ou menos habilidosas, para afastar algum ou alguns magistrados que se poderiam apresentar de modo inconveniente225.

Defendida a inamovibilidade ilimitada (no caso dos juízes do STJ e da Relação) ou limitada, para os demais casos, o Decreto de 29 de Março de 1890 introduziria a classificação e distinção entre transferência ordinária ou periódica e a transferência extraordinária aplicada aos juízes de direito de 1.ª instância.

A primeira verificava-se no final de cada período de judicatura, veri-ficando-se dentro da mesma classe e sendo somente imposta aos juízes de direito do continente e ilhas adjacentes226, excluindo assim os juízes de direito das províncias ultramarinas desta deslocação, já que o movimento ordinário nas promoções desta magistratura não lhes permitia a residência numa localidade por mais de seis anos, o qual era o período de judicatura conferido naquele diploma; reconhecendo-lhes, por conseguinte, no final deste prazo o direito de passar para a magistratura judicial no reino.

A segunda (a transferência extraordinária) poderia ocorrer relativa-mente a todos os juízes a pedido dos próprios227 e por conveniência de serviço público, exceptuados os juízes de paz e populares. A sua efectivação estava apenas dependente do consentimento do próprio ou da consulta afirmativa

225 Vd. nota n.º 2.226 Situação peculiar onde a transferência teve contornos de penalização pela prática

de um acto contrário ao regime, ou como o próprio decreto afirmava por terem os magis-trados pretendido intrometer a magistratura na política, veio a ser dada a lume pelo Decreto de 21 de Dezembro que nomeava quatro juízes do Tribunal da Relação de Lisboa (Basílio Alberto Lencastre da Veiga, António Augusto Barbosa Vianna e Manuel Pereira Pimenta de Sousa e Castro) para a Relação de Nova Goa, cfr. Decreto de 21 de Dezembro de 1910 (DG n.º 66, de 22 de Dezembro. A situação ora descrita seria resposta ex vi do Decreto de 5 de Junho de 1911 (DG n.º 131, de 6 de Junho).

A pena idêntica e pelos mesmos motivos seria sujeito o desembargador da Relação de Lisboa, Carlos Augusto Vellez Caldeira Castelo Branco, o qual seria colocado na Relação de Luanda, ex vi do Decreto de 14 de Janeiro de 1911 (DG n.º 12, de 16 de Janeiro, rectifi-cado no n.º 14, de 18 do mesmo mês). Vd. nota 39.

227 Para Alberto dos Reis, esta circunstância permitia uma ampla margem de manobra que permitia ao Governo atender ao favoritismo político o que conduzia indiscutivelmente à corrupção partidária.

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do STJ que deveria ser previamente ouvido, assim como do competente Presidente da Relação, uma vez que lhe cabia ouvir o magistrado que fosse alvo da transferência (art. 11.º do Decreto n.º 3, de 29 de Março de 1890).

Logo em 1918, o Decreto n.º 4172, de 30 de Abril sujeita as transfe-rências aos resultados das sindicâncias, em detrimento da aplicação singular do critério da antiguidade que havia sido defendido por Adriano Machado e Veiga Beirão. No caso de vacatura de comarca por motivo de promoção, falecimento, aposentação, termo do sexénio e passagem ao quadro ou trans-ferência, seria designado pelo Ministro e segundo proposta do Conselho Superior da magistratura Judicial, o juiz que ocupasse o lugar vago de uma “lista de três nomes, sendo possível organizá-la, de entre os juízes que houverem requerido cada comarca” (art. 11.º/3)228.

O Decreto n.º 4691, de 23 de Julho de 1918 acentuaria a dependência da decisão nas transferências e promoções face à decisão do Ministro da Justiça ainda que continuasse a prever a apresentação prévia da proposta por parte do CSMJ, a qual deveria ser remetida ao secretário de Estado dos Negócios da Justiça e dos Cultos (arts. 2.º e 3.º).

Respeitando o princípio da inamovibilidade, o art. 28.º do EJ 1928, determinaria que os magistrados judiciais só poderiam ser transferidos a pedido dos próprios, excepto nos casos de procedimento disciplinar ou caso estivessem na situação de agregados aos tribunais superiores229. Ainda assim, não era permitida a permanência na mesma comarca, vara ou juízo aos juízes de direito por período superior a seis anos, contados desde a última posse, salvo se o CSJ autorizasse maior permanência quando houvesse motivos excepcionais, referentes quer às circunstâncias peculiares de uma comarca ou cargo, quer às do magistrado, oficial de justiça ou outro funcionário que nele servisse, podendo este órgão propor a sua transferência ou afastamento

228 A transferência extraordinária, por motivos disciplinares, continuava a ser aplicada (art. 11.º/5.

229 Cfr. art. 562.º EJ segundo redacção dada pelo Decreto n.º 17955, de 12 de Feve-reiro de 1930.

Mais tarde o art. 224.º do DL n.º 33547/1944 salvaguardará que excepto quando as conveniências do serviço o aconselharem ou por motivo disciplinar, os magistrados não poderão ser transferidos dos lugares que ocupam antes de decorridos dois anos após a colo-cação, se nesses lugares foram colocados a pedido seu, e antes de decorrido um ano em caso contrário. Este entendimento manter-se-ia no texto do art. 123.º do EJ 1962.

Sobre a transferência dos magistrados de 2.ª instância, no decurso de pedido apresen-tado pelos próprios, cfr. art. 25.º §único do Decreto-lei n.º 37047, de 7 de Setembro de 1948.

Vd. ainda a redacção introduzida pelo DL n.º 22779, de 29 de Junho de 1933.

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temporário do cargo, sem qualquer carácter de penalidade, e apenas tendo em vista uma imperiosa e ocasional necessidade de obviar aos inconve-nientes da permanência de um determinado funcionário numa determinada situação (art. 561.º pr. do mesmo Estatuto)230. Deste modo, verificamos que se mantém a regra da transferência ordinária, para os juízes de 1.ª instância.

Os estatutos de 1944 e 1962 fazem depender a transferência como aliás qualquer colocação de magistrados do despacho do Ministro da Justiça (arts. 222.º e 229.º e 124.º, respectivamente)sendo respeitado o prazo de dois anos se a colocação foi a pedido do próprio e de um ano nos demais casos co o limite de permanência de seis anos em cada comarca (arts. 224.º EJ1944 e 123.º EJ1962).

O período da judicatura manter-se-ia, ao longo do século XX, por períodos de seis anos231, permanecendo, igualmente, a mesma regra que inviabiliza o desempenho de funções numa mesma comarca por tempo superior ao indicado, a menos que o CSJ, atendendo aos merecimentos do magistrado em questão o autorizasse e desde que exceptuados as comarcas de Lisboa e Porto. Esta regra constaria, de igual modo, do art. 123.º/3 do EJ 1962232.

Do mesmo modo, a Lei n.º 85/77, ainda que enuncie que os magis-trados judiciais só podem ser transferidos a seu pedido ou em virtude de decisão disciplinar (art. 8.º), determina ser possível a transferência daqueles quando decorridos dois anos ou um ano sobre a data da posse no cargo anterior, consoante a precedente colocação tenha ou não sido realizada a pedido, assim como só permite que a transferência a pedido de comarcas ou lugares de ingresso para comarcas ou lugares de diferente natureza só possa fazer-se decorridos cinco anos sobre a data da primeira nomeação, bem como impede os juízes de direito de poderem recusar a primeira colo-cação após o exercício de funções em comarcas ou lugares de ingresso e os juízes de direito com mais de cinco anos de serviço efectivo de requererem a sua colocação em comarcas ou lugares de ingresso (art. 43.º).

No provimento de lugares em tribunais de competência especializada atender-se-á, de preferência, à formação especializada dos concorrentes

230 Mais tarde, o Decreto n.º 17955, de 12 de Fevereiro de 1930 sujeitará a perma-nência na comarca por período superior a seis anos, não só à autorização do CSJ, mas sobre-tudo à determinação final por parte do Ministro da Justiça.

231 Vd. DL n.º 24090, de 29 de junho de 1934, o art. 246.º do DL n.º 33547/1944 e o art. 7.º da Lei n.º 85/77.

232 Vd a este respeito a Base XXI da Lei n.º 2113, de 11 de Abril de 1962.

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(art. 44.º), ainda que constituam factores atendíveis nas colocações a classificação de serviço, a antiguidade e a situação pessoal e familiar dos requerentes (art. 45.º/1)233. Saliente-se, contudo, que o Conselho Superior da Magistratura pode não respeitar os factores enunciados quando houver necessidade de colocar juízes que findaram o sexénio, que se encontrem na situação de disponibilidade ou que estejam a prestar serviço, como auxi-liares, no tribunal onde ocorrer a vaga (art. 45.º/2).

Ante a previsão de realização dos movimentos judiciais nos meses de Março, Julho e Dezembro,ainda que possam ocorrer em épocas distintas por motivos de disciplina ou de urgência no preenchimento de vagas (art. 38.º da Lei n.º 21/85), o actual estatuto introduz umas alterações ao disposto no art. 43.º do diploma de 1977 como é o caso do texto introduzido pela Lei n.º 10/94, de 5 de Maio.

4.2.4. Licenças

Ainda que o magistrado esteja vinculado à obrigatoriedade de residir na comarca onde exerce funções234, sem prejuízo do serviço público, é legi-timada a ausência por tempo determinado revestindo a forma ordinária ou extraordinária implicando, neste último caso a figura de licença registada e de prémio de serviços prestados no ultramar, configurando assim a concessão de uma licença. Recorde-se que ainda no período de férias, é imposta, ao magistrado de 1.ª instância a obrigatoriedade de residência na comarca em que serve235. Caso a regra mencionada fosse violada, incorreria o magistrado

233 No mesmo sentido, art. 44.º da Lei n.º 21/85. Vd. ainda os n.os 3 e 4 do mesmo articulado.

234 Tal como referimos, a regra do domicílio necessário apenas é aplicada aos juízes de direito. Os juízes dos tribunais superiores estão dispensados da obrigação de domicílio, conforme art. 8.º/3 do EMJ têm direito nos termos do art. 17.º/1, al. c) do mesmo diploma, e dos arts. 1.º e 2.º, n.os 1, als. a) e b) e 2, do Decreto-lei n.º 274/78, de 6 de Setembro, à utilização gratuita de transportes colectivos públicos terrestres e fluviais, para todo o terri-tório, no caso dos juízes do STJ, ou dentro da área do respectivo distrito judicial em que exercem funções, no caso dos juízes das relações, e ainda entre a sua residência e a sede da respectiva circunscrição judicial. No caso de deslocação aérea, entre o continente e as regiões autónomas, vd. Parecer da procuradoria-Geral da República, n.º 23/2007, de 14 de Março de 2008, publicado no DR, 2.ªS, n.º 64, de 1 de Abril de 2008.

235 Em termos de calendário judicial e subsequente funcionamento da estrutura judi-ciária que a abertura do ano judicial só passa a coincidir com o ano civil por determinação da Lei n.º 1631, de 1924.

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na suspensão do vencimento. Tal como explicaremos, esta regra sofrerá algumas alterações face ao actual EMJ.

A autorização das licenças é durante a vigência dos estatutos anteriores a 1977, da exclusiva responsabilidade do ministro da justiça, conforme resulta da leitura do disposto nos arts. 229.º EJ1944 e 136.º EJ1962.

Deste modo, poderia ser concedida, anualmente, uma licença ordi-nária pelo período de 30 dias, a qual seria deferida aos magistrados e aos funcionários judiciais do continente e ilhas, por motivo justificado, tendo este de ser sempre comprovado, tal como ocorre no caso da licença extraor- dinária.

Também poderia ser reconhecida e atribuída aos magistrados e funcio-nários judiciais do ultramar durante 30 dias em cada ano, ou durante um período determinado de tempo como consequência de prémio de serviços judiciais prestados no ultramar ainda que não produzisse efeitos na anti-guidade na carreira. Este período não podia exceder o limite de 3 meses236,

Para o período republicano de transição relativo ao Governo Provisório, vide o Decreto de 12 de Outubro de 1910 (DG n.º 7, de 13 de Outubro), que manda considerar apenas como feriados os dias 1 e 31 de Janeiro, 5 de Outubro, 1 e 25 de Dezembro; o Decreto com força de lei de 26 de Outubro de 1910 (DG n.º 19, de 27 de Outubro) que regula ainda o período de férias; o Decreto de 19 de Novembro de 1910 (DG n.º 42, de 23 de Novembro) que tornava extensivas às províncias ultramarinas as disposições do Decreto de 12 de Outubro do mesmo ano e o Decreto de 30 de Dezembro de 1910, in MaGalhães, Barbosa e CASTRO, Pedro, Colecção da legislação promulgada pelo Ministério da Justiça durante o governo provisório da República, Empresa Lusitana Editora, Lisboa, s/d. Para além das datas mencionadas, apenas se consideravam dias de descanso para os tribunais os domingos.

Vd. nota 82.236 Nos casos de licenças concedidas compreende-se o tempo necessário para o regresso

aos respectivos lugares, de modo que no dia imediato àquele em que a licença terminar o funcionário deve entrar novamente no exercício das suas funções. Se não o puder fazer no prazo da licença concedida, em virtude de moléstia tão grave que do seu regresso possa resultar perigo para a sua existência ou grave risco de deterioração de saúde, ou por alguma outra causa igualmente justa, deve fazê-lo constar ao seu superior imediato o qual reenca-minharia essa mesma informação ao Governo (Portaria de 29 de Agosto de 1863, n.os 1 e 2). Não sendo tomadas estas medidas de precaução pelo juiz de 1.ª e 2.ª instância, o mesmo seria colocado no quadro da magistratura sem exercício sendo-lhe concedido ou suspenso o vencimento a depender de terem ou não sido justos os motivos que tenham impedido o regresso às suas funções. Nestes casos poderia ainda o magistrado em causa incorrer na pena prevista no art. 308.º§1 Código Penal. Se a ausência exceder a 3 meses seguidos ou inter-polados, no mesmo ano, seria demitido (art. 5.º do Decreto n.º 4 de 15 de Dezembro de 1894).

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seguidos ou interpolados, no mesmo ano237, sob pena de não mais se tratar de uma licença ordinária, mas extraordinária.

O art. 36.º do EJ 1928 considera o tempo de férias como licença graciosa238, contrariamente ao texto dos diplomas subsequentes, os quais apenas referem o direito às férias, como é o caso dos arts. 229.º§2 EJ1944 e 28.º EMJ. Durante este período, os magistrados judiciais poderiam ausentar--se dos seus cargos, mediante prévia comunicação ao seu imediato superior hierárquico, sendo actualmente comunicado ao CSM239, na qual indicarão a data da saída e o lugar onde permanecerão, sendo obrigados a assumir as suas funções logo que tal lhes for ordenado, sob pena de perda da anti-guidade e dos vencimentos e de processo disciplinar pela desobediência ou abandono do lugar240.

Se os magistrados necessitassem de se ausentar para o estrangeiro, durante as férias ou em gozo de qualquer licença, poderiam fazê-lo, mas apenas com autorização do Ministro da Justiça e mediante parecer favorável dos respectivos superiores hierárquicos (art. 36.º§1 EJ 1928, art. 229.º EJ 1944 e art. 137.º EJ 1962). De igual modo sempre que o limite fixado fosse extrapolado, a justificação das faltas, por motivo imperioso seria da compe-tência do Ministro da Justiça (art. 139.º EJ1962)241.

A licença concedida por motivos de doença devidamente comprovada, até 60 dias em cada ano importava a perda das gratificações e do direito à partilha dos emolumentos, pelo tempo que aquela licença durasse. Caso este período fosse extrapolado, a licença implicaria também na perda de um

237 Cfr. arts. 21.º/6, 47.º/9, 85.º/16 da NRJ, arts. 1.º, 2.º e 9.º do Decreto de 25 de Agosto de 1845, art. 10.º do Decreto de 30 de Agosto de 1845; art. 5.º do Decreto n.º 4 de 15 de Dezembro de 1894 e a Portaria de 1 de Junho de 1895. Acerca da ausência ilegítima de magistrados e funcionários de justiça, cfr. Decreto de 18 de Novembro de 1910 (DG n.º 39, de 19 de Novembro).

238 Vd ainda o art. 238.º do mesmo diploma para efeitos da substituição dos magis-trados judiciais durante o período em causa.

239 A lei n.º 85/77 imporá esta comunicação ao CSM, nos termos do art. 31.º/3. Sobre o direito a férias, em geral, dos magistrados judiciais, vd o mesmo artigo bem como os arts. 28.º e 28.º-A da Lei n.º 21/85 cabendo a aprovação dos respectivos mapas de férias também ao CSM, dado que se tem em vista garantir o regular funcionamento dos tribunais. Cfr. Lei n.º 43/2010, de 3 de Setembro.

240 Cfr. também arts. 36.º EJ1928 e 565.º, este último com a redacção introduzida pelo texto de 1933 e o art. 3.º §2 do Decreto n.º 21694, de 29 de Setembro de 1930. Sobre esta matéria, vd. art. 137.º EJ 1962.

241 Relativamente demais funcionários, a concessão de licenças caberia ao director--geral da Justiça (art. 229.º§1 EJ 1944). Vd. também art. 139.º EJ 1962.

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sexto do ordenado. Por último, se o limite de 180 dias fosse excedido, seria observado o regime da passagem à inactividade (arts. 36.º e 37.º EJ1928, art. 229.º§3 EJ 1944 e art. 138.ºEJ 1962).

No caso de falecimento do cônjuge ou de parente por consanguinidade nos 1.º e 2.º graus da linha recta e nos 2.º e 3.º graus da linha transversal ou no de outros parentes que coabitassem com o magistrado; bem como no caso de acidente ou doença grave ocorridos a qualquer uma das pessoas enunciadas supra, o magistrado poderia justificar o ocorrido até 8 dias de ausência perante o seu superior hierárquico (art. 36.º§§2 e 9 EJ1928, art. 229.º§3 EJ 1944 e art. 138.ºEJ 1962).

Qualquer licença ou falta por outro motivo que não o gozo de férias importaria na perda total dos respectivos vencimentos com a única excepção da que fosse, para o efeito, concedida, até 8 dias, em virtude do falecimento de parentes por consanguinidade ou afinidade nos primeiro e segundo graus da linha recta, e nos segundo e terceiro graus da linha transversal, ou de outros que com eles coabitassem (art. 36.º§3 EJ1928, art. 238.º pr. EJ 1944).

No caso de faltas que não fossem por falecimento de parentes e de licença por motivo de doença por período superior 30 dias, o interessado era obrigado a pagar o respectivo selo e emolumento (art. 36.º§5 EJ1928, art. 229.º§3 EJ 1944 e art. 137.º§2 e 138.ºEJ 1962).

Para efeitos de faltas e suas consequências, o legislador de 1928 consa-graria singularmente que o não comparecimento a cada sessão dos tribu-nais e conselhos a que os magistrados estivessem obrigados equivalente ao número de dias úteis que decorram entre a realização de cada duas sessões, excluindo aqueles que pertencessem a períodos de férias. O não compareci-mento a sessões por motivo de serviço não era considerado falta, ainda que o magistrado que não tivesse estado presente deixasse de receber a gratifi-cação de presença, se a esta houvesse lugar (art. 36.º§4 EJ1928).

Dado que as licenças não poderiam ser gozadas interpolarmente, caso não fossem utilizadas na sua totalidade, poderiam os magistrados, mediante nova autorização, gozar por uma só vez o tempo que remanescente. Esta nova autorização não careceria de ser publicada no Diário do Governo nem estava sujeita ao pagamento de novo selo e emolumento (art. 36.º§6 EJ1928). Caso não fossem gozadas no prazo de 30 dias, a contar da publi-cação do despacho que as concedeu, consideravam-se caducas (art. 36.º §§ 7 e 8). Por sua vez, os estatutos de 1944 e 1962 configuram a possibili-dade de independentemente da concessão prévia de licença, ser permitido aos magistrados ausentarem-se dos seus lugares mediante autorização, ainda

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que aquela possa ser concedida quando se considere imperioso o motivo invocado para a ausência (desde que não exceda 10 dias por ano, nem 3 dias em cada mês). Se pela gravidade e urgência do motivo, não tiver sido possível ao magistrado requerer previamente autorização, poderá ausentar--se sem esta, cumprindo-lhe contudo avisar directamente ou por telegrama o respectivo superior hierárquico e mandar na primeira oportunidade a conveniente justificação, a fim de se legalizar devidamente a ausência (art. 229.º §§ 3 e 4 EJ 1944 e art. 138.º EJ 1962242).

Diversa da figura da licença ou do reconhecimento a férias, é a decla-ração de inactividade atribuída aos magistrados que por motivo de doença estiverem inibidos de exercer os seus cargos por mais de 180 dias conse-cutivos, os quais serão colocados na inactividade, deixando vagos os seus lugares, e perceberão apenas os vencimentos a que tiverem direito, segundo as regras de contabilidade aplicáveis aos funcionários públicos (art. 37.º pr. EJ 1928, art. 230.º pr. EJ 1944 e art. 140.ºEJ 1962).

O Governo pode, por conseguinte, mandar inspeccionar os magistrados colocados na inactividade por motivo de doença, quando o julgar conve-niente; os quais, desde que sejam considerados aptos para o serviço, serão colocados por ocasião das primeiras vacaturas que ocorrerem nas respec-tivas classes ou categorias, segundo as antiguidades (art. 37.º§1 EJ 1928). Enquanto tal não ocorrer, estes magistrados serão considerados como agre-gados ou adidos e poderão ser mandados prestar serviço nos tribunais supe-riores, nas comarcas ou em comissões, segundo a sua categoria e conforme as necessidades do serviço o exijam (art. 37.º§2 EJ 1928). Salvo este caso, só podem ficar na situação de adidos os magistrados que aguardem colocação, por terem sido extintos os lugares de carreira ou comissão que anteriormente desempenhavam; por terem sido exonerados destes; ou por terem terminado a pena de suspensão ou inactividade que lhes tenha sido aplicada (art. 39.º pr. EJ 1928, 230.º§único EJ 1944 e art. 140.º/1 EJ 1962).

Os juízes que fora do caso de doença passarem à inactividade a seu pedido, não perceberão vencimento algum e só poderão reingressar ao serviço decorrido pelo menos um ano. Findo este período, serão colocados, se o requererem, por ocasião da primeira vaga que se der, no cargo que o CSJ lhes determinar (art. 38.ºpr. EJ 1928243).

242 Vd. alteração introduzida pelo DL 414/73.243 Vd. Decreto n.º 17955, de 12 de Fevereiro de 1930.

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Os juízes que permanecerem na inactividade, na sequência de pedido apresentado pelo próprio, por período igual ou superior a 10 anos, não poderão voltar à efectividade de funções (não sendo, para este efeito, compu-tado o tempo anterior à vigência do EJ nos termos do art. 38.º§único EJ 1928).

Os magistrados na situação de adidos serão colocados, segundo a ordem de antiguidade, por ocasião das primeiras vacaturas que se derem, na classe ou categoria a que pertencerem, e perceberão por inteiro os seus vencimentos orçamentais, salvo se nessa situação se encontrarem em virtude de exoneração concedida a seu pedido. Enquanto não forem colocados, terão o estatuto de adidos ou agregados (art. 39.º § único EJ 1928, 230.º§único EJ 1944, art. único do Decreto n.º 38577, de 28 de Dezembro de 1951 e art. 140.º EJ 1962).

Por sua vez, a legislação pós 1974 utiliza a classificação de situação de disponibilidade com um sentido mais abrangente das figuras enunciadas anteriormente, para os casos dos magistrados que se encontrem a aguardar a colocação em vaga da sua categoria por: ter findado a comissão de serviço em que se encontravam; terem regressado à actividade após cumprimento de pena ou cessação de licença ilimitada; terem sido extintos os lugares que ocupavam; terem terminado a prestação de serviço militar obrigatório e nos demais casos previstos na lei (art. 75.º/1 da Lei n.º 85/77 e art. 80.º/1 da Lei n.º 21/85) não implicando nestes casos a perda de antiguidade ou vencimento.

Também se encontra regulado o regime de faltas nos termos do art. 10.º do EMJ, prevendo-se que quando ocorrer motivo ponderoso, os magistrados judiciais poderão ausentar-se da circunscrição respectiva por um número de dias não superior a três em cada mês e dez em cada ano, comunicando previamente o facto ao CSM ou, não sendo possível, imediatamente após o seu regresso. Sendo considerada a ausência ilegítima, o magistrado incorre em responsabilidade disciplinar bem como na perda de vencimento durante o período em causa244.

4.2.5. Abandono do lugar e demissão

Determinada a obrigatoriedade de residir no local para onde havia sido despachado, salvo nos casos legalmente previstos, sempre que os magistrados e os funcionários judiciais violem este princípio, configura-se uma situação de abandono do cargo, motivo que conduz à instauração de

244 Sobre as dispensas de serviço, vd. art. 10.º-A do mesmo diploma de 1985.

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um processo disciplinar, desde a legislação oitocentista245. Recorde-se que, a falta de posse pela segunda vez é equiparada ao abandono do lugar (art. 222.º do EJ 1944246)

Dado que o exercício da judicatura era reconhecido como vitalício, os magistrados judiciais só por virtude de sentença judicial passada em julgado poderiam ser demitidos, nomeadamente quando fundado na prática de alguns delitos. Hodiernamente, a cessação de funções poderá ocorrer como conse-quência de outras penas disciplinares, para além da demissão.

4.3. aposentação. proCedIMento adoptado

Entendemos por aposentação, a cessação do exercício de funções que o funcionário até então desempenhava em virtude do preenchimento de um conjunto de factores que se prende com o seu estado físico e/ou intelectual que não mais permite a continuação das funções profissionais até então praticadas. Com a aposentação extingue-se a relação de serviço ou emprego público iniciando uma nova relação jurídica (a de aposentado) que permite salvaguardar e proteger os direitos adquiridos pelo até então funcionário público, conservando certas honras inerentes do cargo247.

O direito à aposentação é reconhecido pela legislação oitocentista (Leis de 9 de Julho de 1849, 21 de Julho de 1855 e o Decreto n.º 1, de 17 de Julho de 1886 que classificava a aposentação em ordinária e extraordi-nária248) seguindo-se após o golpe de 1910, a regulação constante no Decreto

245 Cfr. o art. 125.º do EMJ.246 Sobre o abandono de funções, vd. art. 286.º CP e art. 458.º EJ1944.247 Recorde-se que até 1924 não foi conferido aos funcionários das secretarias judi-

ciais a possibilidade de se aposentarem, existindo outrossim o regime da substituição que se revelaria bastante deficiente no seu funcionamento, como o dá a conhecer o relatório do Decreto-lei n.º 22779. A Lei n.º 1631, de 16 de Julho de 1924, autorizaria o governo a criar a Caixa Geral de Aposentações dos oficiais de Justiça; tendo sido publicado, no uso desta autorização, ainda em 29 de Dezembro daquele ano, o decreto n.º 10417 que criaria a refe-rida Caixa de Aposentações. São várias as alterações legislativas, até que o decreto-lei n.º 31669, de 22 de Novembro de 1941 passa a integrar a Caixa de Aposentações dos Conser-vadores, notários e funcionários da Justiça na CGA.

248 Eram condições para a verificação da primeira ter o requerente completado sessenta anos de idade ou trinta de serviço; ter absoluta impossibilidade, física ou moral, de continuar no desempenho do cargo, a qual seria verificada através do exame de três facultativos nomea- dos pelo Governo e segundo parecer fundamentado pelo chefe da repartição ou serviço a que pertença o empregado a aposentar e ter contribuído pelo menos durante dez anos, com

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de 20 de Dezembro de 1910, na Lei de 29 de Janeiro de 1912 e no Decreto n.º 5022, de 3 de Dezembro de 1918. Todavia, tal como o dá a conhecer o preâmbulo do decreto de Dezembro de 1918, a aplicação deste regime não foi regular até este ano, só tendo sido aplicada de modo excepcional a arbí-trio do Governo, o que levantou o protesto dos atingidos249.

A aposentação por limite de idade250 para o exercício de funções judi-ciais é contemplada primeiramente nas propostas de lei de 9 de Julho de 1887 (art. 40.º/3 251) e de 20 de Março de 1900252, já que a Lei de 15 de Julho de 1885 253 e o Regulamento de 23 de Dezembro de 1885254 não indicavam uma

a quota legal para a Caixa Nacional de Aposentações; enquanto, ara a segunda, extraordi-nária era exigido que o empregado tivesse quarenta anos de idade e quinze de serviço devendo encontrar-se impossibilitado de continuar no exercício de funções por motivo de doença não contraída ou acidente não ocorrido no exercício das suas funções ou que estivesse inabilitado para o serviço por desastre que resulte do exercício das suas funções; por ferimento ou muti-lação em combate ou luta no desempenho do cargo; por moléstia adquirida na prática de algum acto humanitário ou de dedicação à causa pública.

Concedida a aposentação extraordinária e caso cessasse, subsequentemente, a impos-sibilidade, o empregado deveria voltar ao exercício de funções no serviço onde até então havia servido ou noutro equivalente e na primeira vacatura que se verificasse. Sobre o esta-tuto da aposentação oitocentista, vide Graes, Isabel, O Poder e a Justiça e Da antiga à nova magistratura: passos da vida de um magistrado (José Duarte Machado Ferraz).

249 Vd a este respeito MedeIros, Francisco de, Reformas judiciárias, Lisboa, Imprensa Nacional, 1909.

250 Frise-se que a idade dos magistrados do STJ era bastante elevada como o revela o documento lavrado por aquela entidade estando datado de 1880, onde as idades estavam norteadas pelos 71 e 78 anos de idade (in Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Ministério dos Negócios Eclesiásticos e de Justiça, maço 651/7).

251 Recorde-se que esta proposta apresentava como idade limite setenta e cinco anos. A este respeito viria posteriormente a comissão legislativa a entender que o limite de idade fixado no art. 40.º não seria aplicável aos juízes que à publicação da presente lei o tivessem excedido.

252 Cfr. art. 13.º/1 do Decreto n.º 3 de 29 de Março de 1890; proposta n.º 16-A, apre-sentada a 20 de Março de 1900 por José Maria de Alpoim Cerqueira Borges Cabral, publi-cada no Diário do Governo n.º 63, discutida nas sessões de 11, 12 e 14 de Maio e que seria aprovada em 14 de Maio de 1900 que propunha, segundo a linha da proposta de Veiga Beirão a fixação da idade de 75 anos como limite para o exercício de funções. A este respeito, vide ainda discussão ocorrida na sessão de 11 de Junho de 1900. Caberia ao já mencionado Decreto de 20 de Dezembro de 1910 e ao Decreto n.º 5022, de 3 de Dezembro de 1918 fixar, respec-tivamente, em setenta e em setenta e cinco anos, o limite de idade para o exercício da magis-tratura judicial.

253 In DG n.º 158.254 In DG n.º 293.

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idade limite, apenas consagrando como fundamento para a aposentação a completa impossibilidade de servir (arts. 7.º e 11.º, respectivamente). Malo-gradas as tentativas ora enunciadas, caberia ao art. 1.º do Decreto de 20 de Dezembro de 1910 introduzir a idade limite para o exercício de funções judiciais (70 anos), posição que seria retomada pelo art. 1.º do Decreto n.º 5022, de 3 de Dezembro de 1918. Excepcionalmente era permitido que este limite de idade fosse ultrapassado nos casos de verificação de “robustez física e raro valor intelectual”, podendo neste caso o Governo autorizar o desempenho de funções judiciais até ao limite de 75 anos, mas apenas no caso dos conselheiros do STJ255.

Recorde-se que, a maioria da doutrina defendera durante o século XIX que a idade avançada permitiria um acentuar da experiência e da sabe-doria, pelo que o entorpecimento pontual das faculdades não deveria ser alvo de exposição vexatória256 traduzida no afastamento imposto pela apo- sentação.

Em termos procedimentais, sessenta dias antes de atingir o limite de idade, o magistrado deveria participar, por escrito, à Direcção-Geral da Justiça e dos Cultos, o dia em que cessa o exercício das suas funções, enviando juntamente a certidão do seu auto de posse (art. 3.º do Decreto n.º 5022, de 3 de Dezembro de 1918).

Os magistrados atingidos pelo limite de idade, enquanto não fossem aposentados definitivamente receberiam, pela Secretaria de Estado da Justiça e dos Cultos, desde o dia em que atingissem esse limite, uma pensão provi-sória de aposentação igual à que lhes competiria se fossem definitivamente aposentados (art.4.º idem).

Os juízes que já tivessem completado 75 anos de idade cessariam as suas funções sessenta dias depois da publicação do Decreto n.º 5022, de 1918, e comunicariam, no prazo de 15 dias, o sucedido à Direcção-Geral da Justiça e dos Cultos (art. 6.º idem).

Anteriormente à entrada em vigor das disposições constantes do Decreto n.º 15344, de 1928, entre os vários magistrados judiciais era reco-

255 Vd. ainda a Lei n.º 403, de 9 de Setembro de 1915.256 Afirma Dias Ferreira, na sessão da Câmara dos Deputados, de 12 de Maio de 1900,

que uma idade mais avançada permitiria melhores decisões pois “em regra os homens revelam na epocha mais adiantada da vida os seus dotes de intelligencia, quando os tiveram’ na flor da idade; e a larga experiencia e o estudo amadurecida dos assumptos, sobretudo nas ques-tões judiciaes, são a melhor garantia de decisões acertadas”.

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nhecido o direito à aposentação aos conselheiros do STJ257; ao conselheiro juiz relator do Supremo Conselho de Justiça Militar258; aos juízes de direito de segunda instância259; aos juízes de direito de primeira instância e os audi-tores260; aos juízes pertencentes à antiga magistratura261; ao Procurador-geral da Coroa e Fazenda262 e respectivos ajudantes e procuradores régios das Relações263; aos ajudantes e delegados dos procuradores régios264, secretá-rios dos tribunais de comércio de primeira instância e os curadores gerais dos órfãos; bem como a todos os funcionários dos tribunais superiores de

257 Cfr. o art. 2.º da Lei de 9 de Julho de 1849, o Decreto n.º 1 de 17 de Julho de 1886; a Lei de 9 de Julho de 1849 e o Decreto de 24 de Outubro de 1901.

258 Art. 2.º §3 da Lei de 9 de Julho de 1849.259 Cfr. o art. 3.º da Lei de 9 de Julho de 1849, o Decreto n.º 1 de 17 de Julho de 1886;

a Lei de 9 de Julho de 1849 e o Decreto de 24 de Outubro de 1901.260 Cfr. o art. 4.º da Lei de 9 de Julho de 1849, o Decreto n.º 1 de 17 de Julho de 1886,

a Lei de 9 de Julho de 1849 e o Decreto de 24 de Outubro de 1901.261 Art. 6.º da Lei de 9 de Julho de 1849.262 Art. 7.º da mesma lei de 1849.263 A propósito da aposentação dos magistrados do Ministério Público estabelecia o

art. 163.º da proposta de lei de Veiga Beirão datada de 9 de Julho de 1887 que àqueles seriam aplicadas as mesmas regras dos magistrados judiciais. Nos termos do art. 29.º do Decreto de 24 de Outubro de 1901 passam a ser colocados no quadro os magistrados do Ministério Público que se impossibilitassem por doença temporariamente do exercício das suas funções. Com a presente medida era dada uma solução ao problema vigente até 1897 que considerava que estes magistrados deveriam, face às circunstâncias indicadas, ou abandonar o lugar ou licenciar-se sucessivamente, com grave detrimento dos seus legítimos interesses. Isto é, se tivessem tempo para se aposentar era-lhes facultada essa possibilidade, caso contrário eram forçados a perder todo o tempo de serviço não lhes garantindo o Estado vantagem de espécie alguma, para utilizar a expressão do próprio legislador. Recorde-se ainda, que o citado diploma de 1897 tinha avançado com uma possível resposta ao problema em análise confe-rindo aos delegados do procurador régio, em caso de incapacidade por doença temporária, a sua substituição com dois terços do ordenado.

264 No que diz respeito aos funcionários da secretaria da Procuradoria-Geral da Coroa e Fazenda, estabelece o Decreto de 29 de Dezembro de 1876 que serão aposentados com o ordenado por inteiro os empregados do quadro que, tendo trinta anos de bom e efectivo serviço, dos quais pelo menos cinco foram exercidos no lugar que estivessem a servir e fizessem prova da impossibilidade física ou moral de continuar no serviço (art. 32.º). O exame em questão, do qual seria lavrado o auto respectivo, seria feito por três peritos na presença do Procurador-geral ou da autoridade administrativa da localidade. Sendo verifi-cada a impossibilidade física ou moral, eram aposentados com metade do ordenado os empregados que tivessem vinte anos ou mais de bom e efectivo serviço e com um terço os que tivessem completado quinze anos ou mais (art. 32.º §2).

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justiça que não gozassem à data de 17 de Julho de 1886 do direito de apo- sentação265.

Estavam excluídos os juízes municipais, de paz e os oficiais de justiça do continente, pois no caso dos primeiros, estes não eram suportados finan-ceiramente pelo Tesouro Público ao passo que os últimos não recebiam ordenado, mas salário pelo que estava excluída a pensão de aposentação (Decreto n.º 1, de 17 de Julho de 1886). Frise-se, todavia, que a legis-lação de 1886 conferiria aos funcionários judiciais ou oficiais de justiça266 dos tribunais superiores de justiça o direito de reforma desde que estes se sujeitassem, antes dos quarenta e cinco anos, ao pagamento de quotas por idades.

De igual modo não poderia aposentar-se o empregado que fosse demi-tido ou exonerado, a menos que viesse a ser readmitido, regra que se manterá nos termos dos estatutos novecentistas.

Com a entrada em vigor do Estatuto Judiciário de 1928, podemos afirmar que se mantêm os conceitos de aposentação voluntária (a requeri-mento do interessado quando completa 60 anos de idade e 40 de serviço activo, seguido ou interpolado267; ou 40 anos de idade e 15 de serviço268); obrigatória (quando se atinge 70 anos de idade269 ou por incapacidade moti-vada por demência incurável, independentemente da idade (art. único do DL n.º 24824, de 29 de dezembro de 1934) ou por aplicação de pena disci-

265 Recorde-se que os empregados das secretarias das presidências das Relações e das procuradorias régias, os das secretarias da Procuradoria-Geral da Coroa e do STJ só adquirem direito à aposentação ex vi do Decreto de 29 de Dezembro de 1876 e das Leis de 20 de Março de 1884, de 30 de Dezembro de 1890 e de 15 de Janeiro de 1891.

Cfr. Lei de 29 de Novembro de 1901. Acerca dos funcionários menores, em especial dos contadores e revedores das Relações, previa o art. 163.º§1 da proposta de lei de Veiga Beiro, datada de 9 de Julho de 1887 o direito à aposentação.

266 São estes os serventes da secretaria do STJ e da secretaria da Procuradoria-geral da Coroa e os oficiais de diligências das Relações. Quanto aos oficiais de diligências dos juízos de direito estes não podem ser incluídos nesta categoria uma vez que o juízo de direito não é obviamente um tribunal superior.

267 Cfr. art. 5.º do Decreto n.º 16669, de 27 de Março de 1929. 268 Idem, art. 7.º.269 Recorde-se que o EJ 1928 ainda que tenha indicado inicialmente a idade limite de

setenta e cinco anos para o exercício de funções jurisdicionais veio na vigência da alteração introduzida pelo Decreto n.º 17955, de 12 de Fevereiro de 1930 a consagrar o limite de setenta anos. Cfr. arts. 228.º e 239.º do EJ1944; os arts. 156.º/1 e 158.º EJ 1962; o art. 65.º/1, al. a) da Lei n.º 85/77 e o art. 65.º da Lei n.º 21/85.

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plinar (a chamada aposentação compulsiva270), por pena de inactividade de 1 a 2 anos e quando após ter cumprido a pena não houver mais vaga onde possa ser colocado271; e a aposentação extraordinária que pode ter origem numa das seguintes causas: desastre no exercício de funções, ferimento ou mutilação grave em combate ou na manutenção da ordem pública, moléstia, ferimento ou mutilação resultante da prática de algum acto humanitário ou de dedicação à causa pública, moléstia contraída no exercício das funções e por motivo do seu desempenho, a qual independe da idade e do tempo de serviço (DL n.º 28404, de 31 de Dezembro de 1937).

O mesmo Estatuto de 1928 conferia o direito de aposentação aos magistrados judiciais, nos termos das leis que regulavam as aposentações dos funcionários do estado, com as seguintes especificidades:

a) a pensão de aposentação dos magistrados judiciais é fixada em relação à categoria e vencimento dos lugares que desempenham, independentemente do tempo de serviço neles prestado, tendo-se porém em atenção o seu tempo de serviço público para as correc-ções a fazer nos termos das leis em vigor (art. 40.º §1);

b) os professores das faculdades de Direito que forem juízes de direito, não podem aposentar-se com a categoria de magistrados judiciais sem terem, pelo menos, 3 anos de exercício efectivo na magistra-tura judicial (art. 40.º§2);

c) os magistrados com mais de 40 anos de serviço que requererem a sua aposentação, e os que, com menos tempo, forem julgados absolutamente incapazes, são, por decreto do Ministro da Justiça, desligados do serviço e os lugares declarados vagos logo que o respectivo processo dê entrada na Direcção-Geral da Contabilidade Pública com consulta favorável ao CSJ (art. 40.º §3). Frise-se que

270 Nos termos do art. 156.º/3 do EJ 1962, os magistrados mandados aposentar com- pulsivamente são desligados do serviço mediante comunicação feita pelo CSJ; sendo a comunicação efectuada telegraficamente para os magistrados que prestem serviço nas ilhas adjacentes, os quais cessam funções no dia imediato ao do seu recebimento.

O art. 1.º/3 do Decreto com força de lei n.º 19468, de 16 de Março de 1931 determina que a aposentação compulsória por acto do ministro competente só pode ter lugar por castigo imposto aos funcionários em processo disciplinar de que não resulte a pena de demissão nos casos de incapacidade moral, incompetência profissional e alcoolismo incorrigível.

271 Cfr. também o art. 1.º§6 do Decreto n.º 19468 e a Circular n.º 76 C, de 30 de Março de 1949.

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a estes magistrados seria abonada desde logo a pensão provisória de aposentação que lhes competisse, procedendo-se também nesta conformidade, e desde o dia em que cessassem funções, para com os magistrados atingidos pelo limite de idade (art. 40.º §4);

d) aos juízes do ultramar é contado o tempo durante o qual estiveram à disposição do Ministério da Justiça, até à sua colocação na magis-tratura da metrópole, tomando-se por base o vencimento do primeiro lugar nesta exercido para a liquidação das cotas a pagar à Caixa Geral de Aposentações, doravante designada CGA (art. 40.º §5);

e) todos os magistrados judiciais cessam o exercício das suas funções no dia em que completem setenta anos de idade (art. 41.º)272.

O procedimento adoptado traduzia-se no seguinte trâmite. Ao pretender solicitar a aposentação ordinária, extraordinária ou por limite de idade deve-riam ser apresentados, pelos interessados, os respectivos requerimentos à Secretaria do CSJ sendo acompanhados da certidão de idade daqueles, da certidão ou certidões comprovativas do tempo de serviço público e das que atestarem o pagamento das quotas legais para a CGA relativas aos cargos que serviram273.

272 Vd. art. 239.ºEJ 1944 e 158.ºEJ 1962. A contagem do tempo de serviço era feita ainda nos termos dos seguintes diplomas:

arts. 10.º §único, 12.º-14.º, 16.º, 17.º, 19.º §único do Decreto n.º 16669, de 27 de Março de 1929 com a redacção dada pelo art. 11.º do Decreto-lei n.º 36610; despacho publicado no Diário do Governo, 1.º Série, de 25 de Julho de 1935; art. 3.º do Decreto-lei n.º 19935, de 24 de Junho de 1931; art. 19.º do Decreto-lei n.º 26503, de 6 de Abril de 1936 com a redacção dada pelo Decreto-lei n.º 32691, de 20 de Fevereiro de 1943; art. 11.º com a prorrogação quanto ao prazo pelo Decreto n.º 27586, de 18 de Março de 1937; arts. 2.º e 4.º do Decreto--lei n.º 31672, de 22 de Novembro de 1941; art. 15.º do Decreto-lei n.º 32691, de 20 de Fevereiro de 1943; decreto-lei n.º 33540, de 21 de Fevereiro de 1944; art. 6.º Decreto-lei n.º 36610, de 24 de Novembro de 1947 e os arts. 8.º e 13.º do Código Administrativo de 1940.

A respeito da jubilação de magistrados, vd. o art. 67.º da Lei n.º 21/85. Ainda sobre a polémica suspensão temporária da condição de jubilado, vd. art. 72.º/5 do Decreto-lei n. 10/211, de 20/1 (Lei de Arbitragem em matéria tributária), na redacção do art. 14 da Lei n.220/2012 de 14 de Maio (1.2 alteração ao Orçamento do Estado para 2012) e a deliberação do CSM constante da acta n.º 15/2012, de 10 de Julho de 2012, exarada no âmbito do processo n.º DSQMJ (sobre esta e outras deliberações do CSM, consultar http://www.csm.org.pt/ficheiros/deliberacoes/deliberacoescsm2000-2012.pdf).

273 Vd. a este respeito o art. 512.º EJ 1928, o DL n.º 32827, de 5 de Junho de 1943, art. 239.ºEJ 1944, o art. 157.º EJ 1962 e o DL n.º 281/71, de 24 de Junho.

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Direito Administrativo da Magistratura Judicial 223

Salvo no caso de aposentação por limite de idade ou quando os requerentes tiverem quarenta, ou mais, anos de serviço, o CSJ solicitará à Direcção-Geral da Contabilidade Pública (DGCP) o exame médico daqueles a fim de averiguar a efectiva incapacidade absoluta de continuarem na efec-tividade do serviço. Instruído o processo, é dada vista do mesmo ao MP e, em seguida, se não for ordenada outra diligência é levado pelo relator à conferência para decisão, independentemente de vistos. Lavrada a consulta, o processo é remetido à DGCP 274.

Os magistrados e oficiais de justiça que se considerarem lesados pela graduação que lhes foi dada na lista de antiguidade poderão, no prazo de 90 dias a contar da publicação do anúncio respectivo, apresentar as suas reclamações em petição dirigida ao CSJ275.

O CSJ poderia propor ainda a aposentação ou substituição do magis-trado, oficial de justiça ou outro funcionário, quando, pela debilidade ou entorpecimento das suas faculdades físicas ou mentais, manifestado no exercício das suas funções, estes não pudessem, sem grave transtorno da administração da justiça ou dos respectivos serviços, continuar no exercício do seu cargo276.

Se a situação relativamente ao limite de idade apresentasse algumas dúvidas e abrisse a possibilidade a uma aplicação discricionária, o art. 41.º do EJ1928, segundo a redacção dada pelo Decreto n.º 17955, de 12 de Feve-reiro de 1930 determinaria inequivocamente que todos os magistrados judi-ciais cessam o exercício de funções no dia em que completarem 70 anos de idade, medida que os diplomas subsequentes manteriam, disposição que se manterá nos diplomas subsequentes277.

Em regra, o direito à aposentação não sofreria alterações significativas nos diplomas seguintes.

Por sua vez, a legislação de 1977 consagraria também o direito dos magistrados e demais funcionários judiciais à aposentação nos termos gerais aplicados para a função pública (art. 63.º da Lei n.º 85). As condições

274 Art. 512.º §1.275 Vd. arts. 519.º-522.º EJ 1928 e ainda o art. 152.º EJ1962.276 Art. 561.º/§1 EJ 1928. A impossibilidade física constante do art. 382.º do EJ1928,

segundo redacção do Decreto n.º 17955, de 12 de Fevereiro de 1930 exige a realização de um exame por parte de três facultativos nomeados pelo presidente da Relação a cujo distrito pertencer o oficial de justiça a aposentar, sob parecer fundamentado do presidente do tribunal perante o qual estiver servindo.

277 Art. 228.º EJ1944 e art. 158.º EJ1962.

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224 Isabel Graes

mantinham-se em tudo semelhantes ao disposto no EJ 1962278, dependendo a aposentação por incapacidade de um magistrado, de um acto do CSM, quando, pela debilidade ou entorpecimento das suas faculdades físicas ou mentais, manifestados no exercício da função, se verifique que aquele não pode continuar no exercício do cargo, sem grave transtorno da justiça ou dos respectivos serviços (art. 64.º). O momento da cessação de funções, para este e outros casos, está consagrado no art. 65.º do mesmo diploma.

O actual EMJ continua a prever as figuras da aposentação voluntária e extraordinária, ainda que esta última designação não seja adoptada. Assim, é possível a um magistrado apresentar o pedido voluntário de aposentação, devendo para o efeito enviá-lo ao CSM que o remeterá, por sua vez, para a instituição de segurança social ompetente para a atribuir (art. 64.º). Quando se trate de aposentação por debilidade ou entorpecimento das faculdades físicas ou intelectuais, manifestados no exercício da função, não possam continuar nesta sem grave transtorno da justiça ou dos respectivos serviços, os magistrados em questão são notificados para, no prazo de trinta dias, requererem a aposentação ou produzirem, por escrito, as observações que tiverem por convenientes (art. 65.º/ 1 e 2), podendo no primeiro caso o Conselho Superior da Magistratura determinar a imediata suspensão do exercício de funções do magistrado cuja incapacidade especialmente a justifique (art. 65.º/3). Tal medida visa resguardar o prestígio da função e a dignidade do magistrado não produzindo quaisquer efeitos sobre as remu-nerações auferidas (art. 65.º/4). Quer num quer noutro caso, está previsto o percebimento de uma pensão (arts. 66.º e 68.º EMJ)279. A cessação de funções ocorre nos termos do art. 70.º devendo, para efeitos de jubilação, ser considerado o disposto no art. 67.º do mesmo diploma.

4.3.1. Efeitos da aposentação

Ao magistrado com mais de quarenta anos de serviço que requerer a aposentação, bem como aos que com menos tempo forem julgados absolu-tamente incapazes, e que por decreto do Ministério da Justiça foram desli-gados do serviço, é abonada a pensão provisória de aposentação que lhes competir, desde o dia da publicação da portaria, o mesmo sucedendo face

278 Cfr. arts. 63.º/2-4 da Lei n.º 85/77.279 Em matéria de aposentação, cfr. as alterações introduzidas à Lei n.º 21/85 pela Lei

n.º 9/2011, de 12 de Abril.

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Direito Administrativo da Magistratura Judicial 225

aos que atingiram o limite de idade. (art. 40.º§§ 2 e 3 do EJ 1928, art. 239.º §3 EJ 1944, art. 156.º/4 EJ 1962, art. 67.º da Lei n.º 85/77 e art. 68.º da Lei n.º 21/85), a qual será posteriormente substituída pela pensão definitiva.

O valor da pensão definitiva será calculado, sem qualquer dedução no quantitativo apurado, em função de todas as remunerações sobre as quais incidiu o desconto respectivo (art. 68.º/2 da Lei n.º 21/85).

Os magistrados judiciais jubilados continuam vinculados aos deveres estatutários e ligados ao tribunal de que faziam parte, gozam dos títulos, honras, regalias e imunidades correspondentes à sua categoria e podem assistir de traje profissional às cerimónias solenes que se realizem no refe-rido tribunal, tomando lugar à direita dos magistrados em serviço activo (art. 67.º/2 da Lei n.º 21/85)280.

4.4. venCIMentos e outras reMunerações

Abandonando o carácter da venalidade, o século XIX remuneraria os seus magistrados e funcionários judiciais, atribuindo-lhes salários e orde-nados complementados com os emolumentos, por vezes, mais rentáveis e apelativos do que aqueles, condicionando, em muitos casos, a escolha das comarcas e permitindo que escrivães recebessem valores superiores a juízes e delegados.

Aos magistrados judiciais e do Ministério Público eram processados os ordenados e aos funcionários, os salários. Ambos recebiam emolumentos cujo valor não era fixo, estando assim dependente do valor total arrecadado ex vi da aplicação de uma tabela e que cabia às partes pagar em função dos serviços que eram prestados pelos órgãos do poder judiciário revestindo a natureza jurídica de taxa, como contrapartida de um serviço prestado281, contrariamente ao ordenado que constituía um valor fixo, determinado em lei e pago pelo Estado282.

280 Cfr. art. 67.º/3 da Lei n.º 21/85, para o caso dos magistrados que se aposentem por limite de idade, incapacidade ou nos termos do artigo 37.º do Estatuto da Aposentação e estando excluída a aplicação de pena disciplinar. Vd. ainda o art. 181.º EMJ.

281 Os emolumentos também poderiam tomar uma de duas designações: assinaturas quando se referem às quantias que o juiz recebe por assinar sentenças ou mandados inde-pendentemente da natureza destes e espórtulas, ou seja, valores pagos por quaisquer outros actos judiciais que não sejam a assinatura.

282 Vd designadamente o Decreto n.º 5942, de 7 de Julho de 1919 (DG, IS, n.º 132); Decreto n.º 8436, de 21 de Outubro de 1922 (DG, IS, n.º 220); Decreto n.º 10291, de 13 de

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Com tal medida, pretendia-se também inviabilizar as inúmeras tenta-ções particulares a que os indivíduos pudessem estar sujeitos, configurando a situação de corrupção passiva ou peita.

A legislação novecentista manterá as funções judiciais remuneradas283 como o revelam os arts. art. 48.º-56.º EJ 1928 sendo o vencimento devido a contar da posse de exercício (DL n.º 18381, de 24 de Maio de 1930, art. 39.º) e passando a ser processado pelo novo lugar, no caso de nova nomeação, a partir da data do despacho e da posse (art. 222.ºEJ 1944 e arts. 141.º e segs. EJ 1962)284 e não podendo incidir sobre os vencimentos impostos votados pelos corpos administrativos (art. 48.º pr. EJ 1928, 114.º/1, al. a) EJ 1962). O art. 231.º/pr. do EJ 1944 e o art. 141.º/1 do EJ 1962 criavam uma limi-tação aos valores auferidos pelos magistrados judiciais, ao disporem que estes só poderiam receber os vencimentos que lhes fossem atribuídos no Orçamento Geral do Estado e quaisquer gratificações que, por acumulação ou outro motivo legal, lhes deveriam ser abonadas segundo os preceitos da contabilidade pública. Ou seja, muito embora o art. 48.º do EJ1928 ainda contemplasse o processamento de remuneração e emolumentos, a partir da entrada em vigor do Código das Custas Judiciais, em 1940285 apenas seria conferido o direito a perceber emolumentos aos juízes municipais e de paz (art. 47.º/4 e 5) circunstância que seria revista, mais tarde286. Assim se punha

Novembro de 1924 (DG,IS, n.º 254); Decreto n.º 13978, de 25 de Julho de 1927 (DG, IS, n.º 157), Decreto n.º 22780, de 29 de Junho de 1933 (DG, IS, n.º 144, 1.º Supl.) e os respec-tivos Códigos das Custas Judiciais de 1940 (Decreto-lei n.º 30688, de 26 de Agosto), de 1962 (Decreto n.º 44329, de 8 de Maio) e de 1996 (Decreto-lei n.º 224-A, de 20 de Novembro, DR IS, 2.º Supl.).

283 Sobre as remunerações dos magistrados e funcionários dependentes do Ministério da Justiça, no período posterior a 1910, vide a Portaria de 13 de Dezembro daquele ano (DG n.º 60, de 15 de Dezembro). No âmbito das primeiras medidas tomadas pelo governo provi-sório da República, saliente-se o Decreto de 18 de Novembro de 1910, sobre o processamento de emolumentos aos funcionários judiciais.

284 Caso a posse não fosse seguida de exercício, cfr. DL n.º 42800, de 11 de Janeiro de 1960; nos casos de doença prolongada era autorizado o abono de vencimento de exercício (Decreto n.º 19478, de 18 de Março de 1931, art. 9.º).

285 Vd. nota 236.286 No mesmo sentido vd. arts. 54.º/1, als. d) e e) e 55.º do Código das Custas Judiciais

de 1962.Sobre a actual legislação, vd. os arts. 6.º, 7.º, 17.º e 26.º do Decreto-lei n.º 34/2008,

de 26 de Fevereiro com as alterações introduzidas pelos seguintes diplomas: Declaração de Rectificação n.º 22/2008, de 24 de Abril; Lei n.º 43/2008, de 27 de Agosto; Decreto-Lei n.º 181/2008, de 28 de Agosto, Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro; Lei n.º 3-B/2010, de

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Direito Administrativo da Magistratura Judicial 227

termo à atribuição de uma verba que por mais de um século havia conduzido e condicionado os mais variados pedidos de transferência dos magistrados de 1.ª instância. Actualmente, o sistema retributivo dos magistrados judiciais compreende apenas a remuneração base e os suplementos (art. 22.º EMJ)287.

O marco inicial que define o direito à remuneração é estabelecido pelo EMJ com tomada de posse (arts. 22.º-27.º288). Até à revisão de 1990, o Ministro da Justiça poderia autorizar a atribuição aos magistrados judi-ciais de uma participação emolumentar até ao limite de 30% dos respec-tivos vencimentos e nunca inferior a 20%, ouvidos o Conselho Superior da Magistratura e as organizações representativas dos magistrados (art. 23.º/1 do texto inicial da Lei n.º 21/85), a qual teria a mesma natureza do venci-mento e era incorporada neste para todos os efeitos, designadamente o de aposentação (n.º 2). Na fixação da participação emolumentar não poderia fazer-se discriminação que não tivesse por base a categoria do tribunal ou da comarca em que o magistrado exercia funções (n.º3). Contudo, esta verba deixaria de ser processada ex vi da revisão operada pela Lei n.º 2/90, de 20 de Janeiro, passando doravante apenas a constituir o sistema retributivo dos magistrados judiciais a remuneração base e suplementos previstos no mesmo estatuto289.

Ante o exposto, o ordenado é recebido na totalidade pelos magistrados em exercício de funções290 e pelos seus substitutos durante o tempo em que servirem (art. 48.º§2 EJ 1928, 231.º EJ 1944 e 141.º EJ 1962, art. 27.º da Lei n.º 85/77, arts. 68.º/5 e 6 e 147.º da Lei n.º 3/99, de 3 de Janeiro, art. 11.º do Decreto-lei n.º 186-A/99, art.12.º da Lei n.º 52/2008 e o art. 22.º da

28 de Abril, Decreto-Lei n.º 52/2011, de 13 de Abril; Lei n.º 7/2012, de 13 Fevereiro; Decla-ração de Retificação n.º 16/2012, de 26 de Março, e a Lei n.º 66-B/2012, 31 de Dezembro.

Esclareça-se que, actualmente, o juiz de paz é remunerado nos termos do art. 28.º da Lei n.º 78/2001 e do art. 13.º/2 do Decreto-lei n.º 329/2001, ou seja, sendo-lhe processado o valor correspondente ao escalão mais elevado da categoria de assessor principal da carreira técnica superior do regime geral da Administração Pública.

287 Cfr. arts. 23.º-27.º do mesmo diploma.288 Note-se que a Lei n.º 85/77 não faz também qualquer menção ao processamento

de valores emolumentares apenas prevendo em termos remuneratórios o vencimento e os abonos enumerados nos arts. 28º-30º.

289 Ultimamente e por circunstâncias político-financeiras, os valores remuneratórios dos magistrados sofreriam algumas restrições no âmbito do disposto no art. 20.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro.

290 Os juízes e subdelegados municipais são remunerados nos termos do Código das Custas Judiciais.

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Lei n.º 21/85291), bem como pelos juízes em comissão de serviço tempo-rária ao Ministério da Justiça. Na vigência dos estatutos de 1928 e 1962, os magistrados na situação de adidos também recebiam o vencimento de cate-goria na totalidade, salvo se tiverem sido exonerados a pedido dos próprios (respectivamente, art. 39.º § único e art. 140.º/2 EJ).

O art. 27.º/3 da Lei n.º 85/77 vem atribuir aos juízes de direito o percebimento de uma diuturnidade, por cada cinco anos de serviço, corres-pondente a 10% do vencimento ilíquido, até ao limite de quatro, as quais são, para todos os efeitos, incorporadas no vencimento292. Recorde-se que a medida não é inovadora, dado que ainda que com contornos próprios, o legislador de 1928, à semelhança do congénere oitocentista, abonava aos magistrados com mais de vinte anos de efectivo serviço mais 1/3 dos seus ordenados, o qual se considerava para todos os efeitos, integrado nestes últimos, incluindo a aposentação (art. 49.º EJ1928).

Ao longo dos vários textos estatutários são processados de modo parcial os seguintes valores:

a) Na vigência do EJ 1928, o substituto do juiz impedido recebe apenas os emolumentos pelos actos que praticar nos primeiros 60 dias recebendo pelo tempo excedente mais 1/6 do ordenado e as gratificações que competir aos efectivos (art. 48.º§2293);

b) Os juízes nomeados em comissão de serviço temporária têm apenas direito ao vencimento da sua classe, acrescido do respectivo subsídio e das ajudas de custo que lhes forem fixadas, sendo estes encargos suportados pelo Cofre Geral dos tribunais (art. 141.º/5 EJ 1962);

c) Os juízes em comissão transitória de serviço estranho ao Minis-tério da Justiça não podem em caso algum, salvo se se tratar de inquérito ou sindicância, receber por este Ministério, decorridos 60 dias, mais que o seu ordenado de categoria, sendo o vencimento de exercício294 e as gratificações que lhes competirem atribuídos

291 Vd. ainda o Decreto-lei n.º 37047, de 7 de Setembro de 1948292 Sobre o regime de diuturnidades na Lei n.º 21/85, cfr. arts. 22.º/2. É extensivo aos

magistrados judiciais e cumula-se com os valores processados o regime de diuturnidades fixado para os funcionários judiciais (art. 22.º/6 da lei n.º 21/85).

293 Vd. art. 238.º EJ1944294 Sobre o vencimento de categoria, vd. Decreto-lei n.º 26115, de 23 de Novembro

de 1935 e sobre o vencimento de exercício, vd. Decreto-lei n.º 19478, de 18 de Março de 1931.

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Direito Administrativo da Magistratura Judicial 229

a quem os substituir no exercício dos seus cargos efectivos (art. 48.º§3 do EJ 1928 com a redacção dada pelo DL n.º 22779, de 1933, art. 231.º§2 do EJ 1944 e art. 141.º/3 do EJ 1962);

d) Durante o período de turno, é também processado o valor respec-tivo (art. 82.º/4 da Lei n.º 52/2008 e art. 38.º do Decreto-lei n.º 186-A/99).

Paralelamente são atribuídos outros abonos como subsídios de trans-porte e ajudas de custo, de deslocação, diárias no caso de desempenho cumulativo de funções e para despesas de representação, os quais passamos a especificar:

a) os magistrados promovidos e os transferidos ou colocados em outra localidade, não sendo a seu pedido ou por motivo disciplinar terão direito, por ocasião de cada deslocação, ao subsídio constante da tabela em anexo ao EJ (art. 48.º§1 EJ1928, art. 48.º§1 do DL n.º 22779, de 1933, art. 231.º §1 EJ 1944 e o art. 141.º/2 EJ 1962, art. 29.º da Lei n.º 85/77 e art. 26.º da Lei n.º 21/85)295;

b) aos juízes de direito efectivos das comarcas das ilhas adjacentes será concedido mais ¼ dos vencimentos totais e a todos os que desempenharam, desempenham ou venham a desempenhar aqueles cargos, o tempo de serviço assim prestado será acrescido de 25% para os efeitos da aposentação (art. 50.ºpr.). Estas percentagens são contadas a partir do dia da tomada de posse, não entrando para o cômputo os períodos de licença superiores a 30 dias/ano (art. 50.º §§ 1 e 2 EJ1928);

c) Aos magistrados efectivos das comarcas nas ilhas adjacentes (desde o dia da posse e entrada em exercício até ao dia em que chegar à comarca o Diário do Governo que publicar a sua transferência ou promoção para o continente, ou no caso de o magistrado se

295 Os juízes dos tribunais superiores têm direito nos termos do art. 17.º/1, al. c) EMJ, e dos arts. 1.º e 2.º, n.ºs 1, als. a) e b) e 2, do Decreto-lei n.º 274/78, de 6 de Setembro, à utilização gratuita de transportes colectivos públicos terrestres e fluviais, para todo o terri-tório, no caso dos juízes do STJ, ou dentro da área do respectivo distrito judicial em que exercem funções, no caso dos juízes das relações, e ainda entre a sua residência e a sede da respectiva circunscrição judicial. No caso de deslocação aérea, entre o continente e as regiões autónomas, vd. Parecer da Procuradoria-Geral da República, n.º 23/2007, de 14 de Março de 2008, publicado no DR, 2.ªS, n.º 64, de 1 de Abril de 2008.

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230 Isabel Graes

encontrar aqui em gozo de licença, até ao dia da publicação do respectivo despacho, art. 232.º§1 EJ 1944, art. 142.º/1 EJ 1962) é conferida uma gratificação, salvo se a licença for superior a 30 dias em cada ano, pelo tempo de serviço prestado em qualquer comissão de serviço público não dependente do Ministério da Justiça, mesmo que seja exercida nas ilhas adjacentes e nunca o serão se a comissão for exercida no continente (art. 232.º§2 EJ 1944 e art. 142.º/2 EJ1962)296;

d) Aos juízes de direito que são nomeados ou estiverem na situação de adidos ou na inactividade, transferidos sem ser a seu pedido ou promovidos para as comarcas das ilhas adjacentes é abonado o subsídio para viagem desde o porto de embarque até ao de desem-barque (arts.51.º EJ1928, art. 231§§ 1 e 3 e 233.ºEJ 1944, art. 141.º/4, 143.º-144.ºEJ 1962), o qual deverá ser restituído caso o magistrado não venha a exercer funções naquela comarca (art. 233.º§§2 e 3 EJ 1944, arts. 143.º/4 e 145.º EJ1962). Se antes de dois anos de serviço efectivo nas ilhas adjacentes passarem, a pedido dos próprios, à inactividade, forem transferidos para o continente ou nomeados para desempenharem neste cargo ou comissão de serviço público, ainda que dependente do Ministério da Justiça, ser-lhes-á descontado o valor recebido nos vencimentos futuros e em doze prestações iguais (art. 52.º EJ 1928 e 234.º EJ 1944);

e) Os magistrados judiciais nomeados para inquéritos ou sindicâncias, terão direito a uma gratificação (art. 53.º EJ1928)297;

f) Os inspectores dos serviços judiciários recebem abono para trans-porte e ajudas de custo (art. 455.º EJ 1928) 298, tal como todos os magistrados que sejam forçados a deslocar-se por motivos de serviço(art. 231.º§4 EJ 1944, 141.º/4 EJ 1962);

g) Os presidentes das Relações recebem uma gratificação fixada para este efeito, a qual acrescerá aos vencimentos auferidos (que serão neste caso os dos juízes do STJ);

h) É concedida uma gratificação diária aos vogais do júri dos concursos para juízes, delegados do Procurador da República, contadores e escrivães dos juízos de direito;

296 Sobre o subsídio de deslocação, cfr. art. 246.º do Código das Custas Judiciais vigente à data deste último estatuto.

297 Cfr. Decreto com força de lei n.º 19977, de 30 de Junho de 1931.298 Vd. art. 30.º da Lei n.º 85/77 e art. 27.º da Lei n.º 21/85.

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Direito Administrativo da Magistratura Judicial 231

i) O presidente e vogais do CSJ recebem uma gratificação por cada sessão a que assistam por secção e por mês;

j) O presidente do Supremo Tribunal de Justiça tem direito a um subsídio correspondente a 10% do vencimento, a título de despesas de representação (art. 28.º Lei n.º 85/77);

k) Os presidentes do Supremo Tribunal de Justiça e das relações têm direito a um subsídio correspondente, respectivamente, a 20% e 10% do vencimento, a título de despesas de representação (art. 25.º da lei n.º 21/85);

l) Os juízes de direito presidentes de tribunal colectivo bem como os juízes das relações e dos juízes do Supremo Tribunal de Justiça recebem uma gratificação adicional na razão de 5%, 64% e 82% respectivamente ao vencimento correspondente à letra A da função pública (art. 22.º/3 e 4 da Lei n.º 21/85).

Em contrapartida, são efectuados os seguintes descontos:

a) Os abonos para viagem serão descontados aos magistrados que antes de dois anos de serviço efectivo nas ilhas adjacentes sejam, a seu pedido, passados à inactividade, transferidos para o conti-nente ou nomeados para desempenharem neste qualquer cargo ou comissão de serviço público, mesmo que seja dependente do Minis-tério da Justiça (art. 52.º299 neste sentido vd. também art. 234.º do EJ 1944 e art. 145.º EJ 1962);

b) As pensões de aposentação ficam sujeitas apenas às mesmas dedu-ções e imposições legais que as dos demais funcionários públicos, mantendo-se para os escrivães-notários a dedução de 20% a que se refere o art. 167.º da tabela dos emolumentos judiciais e a cessação de pensão determinada no período final do § único do art. 388.º (art. 381.º§3 do EJ 1928 com a redacção dada pelo Decreto n.º 17955, de 12 de Fevereiro de 1930).

299 O art. 52.º seria revisto pelo Decreto n.º 19537, de 31 de Março de 1931, sendo reduzido o prazo de dois para um ano de serviço efectivo de funções. Ex vi do disposto no art. 1.º do Decreto n.º 21485, de 22 de Julho de 1932, voltou a ter a redacção primitiva (Decreto n.º 15344).

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232 Isabel Graes

O vencimento é perdido na totalidade nas seguintes situações:

a) Pelo magistrado ausente quando o motivo não seja de impedimento;b) Pelo magistrado que passe à inactividade a seu pedido (art. 38.º

do EJ 1928 com a redacção dada pelo Decreto n.º 17955, de 12 de Fevereiro de 1930);

c) Qualquer outra licença que não seja a que é concedida por motivos de morte, doença grave ou acidente do cônjuge ou de parentes por consanguinidade no 1.º e 2.º graus da linha recta e nos 2.º e 3.º graus da linha transversal de algum magistrado e desde que não exceda o período de seis meses, implica na perda do vencimento (art. 36.º §5 EJ 1928);

d) O magistrado que apresentar escusa relativamente à nomeação ou eleição para os cargos de vogais do CSJ, inspectores judiciais, sindicantes e inquiridores, bem como os de presidentes e vice--presidentes do STJ e das Relações e se aquela for desatendida, caso não tomem posse do cargo, passarão à inactividade por um ano sem vencimento (art. 45.º EJ 1928);

e) Se durante as férias judiciais os magistrados não assumirem funções se tal lhes for ordenado perderão o vencimento relativo aos dias em questão (art. 238.º EJ 1944 e art. 135.º/2 EJ 1962);

f) Igualmente, o magistrado que é demitido não recebe qualquer tipo de remuneração300;

g) De igual modo, ao magistrado ausente era subtraída a totalidade do vencimento pelo tempo em que fosse substituído; excepto se apenas estivesse impedido, sendo estas verbas recebidas, como referimos, pelos juízes substitutos;

h) Os magistrados judiciais que forem proclamados senadores ou deputados da nação ou nomeados pelo governo para cargos admi-nistrativos, deixarão de receber pelo Ministério da Justiça os vencimentos que competem aos seus cargos judiciais (art. 48.º§4 EJ1928, art. 231.º§2 EJ1944).

Igualmente o magistrado que estiver no uso da licença por motivo de doença devidamente comprovada até 180 dias, perde as gratificações de exercício e especiais bem como os emolumentos a que pudesse ter direito (art. 36.º§1 EJ 1928).

300 Vd. n.º 4.4.

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Direito Administrativo da Magistratura Judicial 233

4.5. responsabIlIdade dIsCIplInar. as sIndICânCIas e os Conselhos dIsCI-plInares

A matéria relativa à disciplina dos magistrados judiciais ocupa um lugar significativo nos vários Estatutos301 revestindo uma enorme delicadeza, sobretudo porque a ideia de fiscalização dos actos praticados pelo magis-trado e da subsequente responsabilização é conexa à contraprestação de uma função que lhe é delegada. Logo, o acto de julgar um magistrado ou ainda a sua punição, pondo fim a abusos e usurpações, implica na correcta e boa aplicação da Justiça302. Para este efeito torna-se fulcral identificar a entidade que poderá conhecer desta matéria, ou seja, determinar a entidade que tem competência para proceder a tal fiscalização, sendo o modo de selecção e nomeação dos seus membros, bem como a sua composição reveladora da existência, ou não, do reconhecimento da independência externa da magis-tratura. Por este motivo também nos deteremos na figura do CSJ substituído integralmente pelo CSM, em 1977.

Para aferir da boa aplicação da justiça, o legislador teve como instru-mento a realização de inspecções ou sindicâncias, as quais poderiam ser periódicas ou pontuais, entenda-se excepcionais, em virtude do motivo que lhes estivesse subjacente, como veremos.

Com a sua génese em preceitos que remontam às Ordenações do Reino (OM, 1.40-42) e a alguma legislação avulsa (Alvará de 7 de Janeiro de 1588 e Decretos de 18 e 26 de Janeiro de 1635), os séculos XIX e XX manterão, então, o recurso às sindicâncias ou residências enquanto procedimento oficial para se inquirir acerca da conduta do magistrado, da sua probidade, diligência e honestidade, do rigor e transparência com que exerce as suas funções, da violação de alguma incompatibilidade ditada na lei, das habi-litações literárias que detém, do efectivo cumprimento da lei ou, ainda, da prática de abusos e prevaricações303.

301 Arts. 437.º ss. EJ1928, 362.º ss EJ1944, 399.º ss EJ1962, 76.º ss. Lei n.º 85/77 e 81.º e ss. EMJ.

302 Garapon, Antoine, Bem julgar, ensaio sobre o ritual judiciário, Instituto Piaget, Editorial Minerva, 1999, Lisboa, p. 29-32, afirma que “…O mau juiz, se condenado, não macula a justiça: “ a condenação do juiz é a última vitória da justiça. É pelo facto de os próprios juízes estarem sujeitos à justiça que o seu ministério os transcende e se apresenta como a forma mais elevada e mais pura da autoridade que certos homens podem exercer sobre outros.”

303 Cfr. Decreto de 1 de Agosto de 1844 regulamentado pelo Decreto de 25 de Setembro do mesmo ano a que se seguiria a Lei de 18 de Agosto de 1848, a Lei de 10 de Abril de 1849 revista pela Lei de 28 de Novembro também de 1849. Vide Graes, Isabel, Em torno de uma

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234 Isabel Graes

Assim sendo ao longo do tempo foram levadas a cabo sindicâncias ordi-nárias e extraordinárias, tomando lugar as primeiras no final do período da judicatura que oscilou entre, três, quatro e seis anos; e, as segundas sempre que ocorresse qualquer denúncia podendo, neste caso, ser sindicados todos os magistrados e funcionários judiciais, inclusive os do Ministério Público. Ambas eram determinadas pelo Ministro e Secretário de Estado dos Negó-cios Eclesiásticos e de Justiça através de ordem expedida pela Secretaria do respectivo Ministério. Ainda que a legislação previsse a criação de um órgão inspectivo e disciplinador, inicialmente o Conselho Disciplinar do STJ e, mais tarde, o Conselho Disciplinar da Magistratura Judicial (CDMJ), somente, em 1912, viria a ser constituído o respectivo órgão fiscalizador304, o que quer dizer que a magistratura portuguesa ficou totalmente ao arbítrio do poder executivo até àquele momento305, como já tivemos oportunidade de

sindicância judicial extraordinária: o processo da comarca de Meda (1850), in Cuadernos de Historia del Derecho, Universidad Complutense de Madrid, n.º 21, Madrid, 2014, pp. 113-165).

304 Cfr. Lei de 12 de Julho de 1912, os Decretos n.ºs 4172, de 30 de Abril de 1918, 5499, de 5 de maio de 1919, 7725, de 6 de Outubro de 1921 e 10310, de 19 de Novembro de 1924.

305 Recorde-se que a criação do Conselho Superior da Magistratura Judicial foi apro-vada em Julho de 1911, tendo estado na Comissão de legislação os seguintes deputados: João de Meneses, Alberto de Moura Pinto, José Vale de Matos Cid, José Frederico Velez Caroço, Henrique José dos Santos Cardoso, Rodrigo Fontinha, Amílcar Ramada Curto, António Granjo, Barbosa de Magalhães, Álvaro de Castro e Caetano Gonçalves, sendo este último o relator do projecto de lei em causa. Este órgão funcionaria junto do Ministério da Justiça, sendo composto por três vogais nomeados pelo Governo de entre os juízes do STJ e da Relação de Lisboa, exercendo junto dele as funções do MP, o Procurador-Geral da República. Era presidido pelo vogal mais antigo, sendo secretariado pelo director-geral da Justiça. Entre as suas atribuições, competia-lhe: investigar por meio de inspecções o modo como era adminis-trada a Justiça em todos os tribunais da república e ilhas, podendo para esse fim requisitar de todas as autoridades os elementos de informação que carecesse, e indicar ao Governo, no interesse da mesma Justiça, as providências indispensáveis e urgentes que o bem do serviço reclamasse. Detinha ainda uma natureza consultiva sobre matéria atinente à aposentação dos magistrados por limite de idade ou impossibilidade moral de continuarem em exercício de funções; e disciplinar no âmbito de inspecções ou sindicâncias e conferir a classificação por mérito aos candidatos a juízes de 2.ª e 1.ª classe e dos juízes das Relações.

O seu número de membros e modo de selecção também variou. Assim, o Decreto de 1892 constituiu o Conselho por eleição que a Lei de 1912 substituiria pela nomeação gover-nativa. O Decreto n.º 4172, de 26 de Abril de 1918, voltou a adoptar o método electivo de todos os vogais, sistema que, novamente, seria revisto pelo Decreto n.º 5499, de 5 de Maio de 1919, tendo-se regressado ao regime anterior. Mais tarde, o Decreto n.º 11751, de 23 de Junho de 1926 estabeleceu um regime misto de nomeação e eleição para os vogais conse-

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indicar. Ainda em 1925, o Decreto n.º 10734, de 2 de Maio306 determinava que a acção disciplinar sobre os magistrados, funcionários e empregados civis e militares, por apreciação ou julgamento das infracções disciplinares de carácter político cabem exclusivamente ao Poder Executivo.

Note-se que paralelamente haviam sido também previstos, em 24 de Outubro de 1901, o Supremo Conselho de Magistratura do Ministério Público (SCMMP)307 e em 29 de Novembro do mesmo ano, o Conselho Disciplinar dos Oficiais de Justiça (CDOJ) 308. Mais tarde, o Decreto de 6 de Outubro de 1921 reuniria os vários conselhos disciplinares existentes no Conselho Superior Judiciário309. Esta tendência centralizadora viria a acen-tuar-se com as reformas operadas posteriormente (vd. relatório do Decreto n.º 10310, de 19 de Novembro de 1924, rectificado em 5 de Dezembro de 1924 e a Lei n.º 1631, de 16 de Outubro de 1924), sendo, mais tarde, aban-donada com a promulgação dos decretos-lei n.ºs 35388, 35389 e 35390, todos de 22 de Dezembro de 1945310.

lheiros e a eleição para os outros vogais especiais, salvo quanto a magistrados do MP, regime este que se manteve no EJ1928. O Decreto n.º 16563, de 2 de Março de 1929, voltou à nomeação integral e o Decreto n.º 17955, de 12 de Fevereiro de 1930, novamente, estabe-leceu o regime da eleição total que seria substituído pelo de nomeação governativa (Decretos n.ºs 18255, de 28 de Abril de 1930 e 21485, de 20 de Julho de 1932) até 1977. Eleição (1892, 1918 e 1930), nomeação governativa (1912, 1929, 1930, 1932-1977), misto: 1926, 1927 e 1928. Actualmente é regulado pelos arts. 136.º ss da Lei n.º 21/85.

306 DG IS, n.º 96, de 2 de Maio.307 Art. 35.º do Decreto n.º 4172, de 30 de Abril de 1918 após dissolução operada ex

vi art. 8.º da Lei de 24 de Outubro de 1910. Vd. ainda Decreto-lei n.º 35389, de 22 de Dezembro de 1945.

308 Decreto n.º 7128, de 18 de Novembro de 1920.309 O Regulamento deste conselho consta do Decreto de 26 de Outubro de 1921. Em

execução do art. 9.º da Lei n.º1231, de 27.09.1921, o Decreto n.º 7726, de 6 de Outubro desse ano, instituiu o CSJ em que são fundidos todos os conselhos disciplinares existentes.

310 O exercício da jurisdição disciplinar sobre os magistrados do MP passará a pertencer ao CSMP competindo ao Ministro da Justiça a acção disciplinar devendo correr pela secre-taria da Procuradoria-Geral da República o expediente respeitante a tal acção disciplinar e o arquivo dos respectivos processos (Decreto-lei n.º 35389, de 22 de Dezembro de 1945). No que diz respeito aos conservadores e notários, compete áquele mesmo Ministro por intermédio da Direcção-Geral dos registos e Notariado exercer sobre eles a jurisdição disciplinar (Decreto--lei n.º 35390, de 22 de Dezembro de 1945). Recorde-se que o EJ 1928 indicava a existência de três inspectores para o notariado, três para o registo civil e dois para o registo predial, nomeados pelo Ministro da Justiça (art. 462.º), atribuindo o EJ de 1933 três inspectores para o registo civil, dois para o predial e três para o notariado, os quais seriam nomeados em concurso, com excepção dos inspectores para o registo civil que serão escolhidos entre os

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Enquanto o EJ1927 dava ao CSJ amplas atribuições, fazendo dele tal como o Decreto n.º 11751, de 23 de Junho de 1926, o órgão supremo do Poder judicial, situação que conduziria Pinto Osório a tecer as críticas mais elogiosas em virtude da instituição do regime de nomeação misto que previa a possibilidade de serem nomeados dois vogais trienalmente pelo Ministro da Justiça e dois vogais efectivos eleitos, também trienalmente, de entre os juízes do STJ, pela magistratura judicial do continente e ilhas, poste-riormente, e sobretudo com o Decreto-lei n.º 35388, de 22 de Dezembro de 1945 as suas atribuições vão sendo restringidas, embora continue a ser o órgão central de tudo o que diz respeito à magistratura. Evidenciador da redução da importância efectiva deste órgão, ainda que a legislação esta-tutária de 1926-77 continue a contemplá-lo, é não só a notória redução das suas atribuições, onde na verdade apenas lhe é facultada a apresentação de propostas quer no que diz respeito a nomeações, promoções, transferências e aplicação de penas disciplinares, dependendo sempre da última palavra que era afinal do Ministro da Justiça; mas sobretudo o modo de selecção dos seus membros, os quais passam também a caber apenas à decisão do Executivo. Frise-se que, se inicialmente apenas se procede à cooptação, em 1918, rapidamente o modelo é alterado passando os membros do CSJ a ser nomeados pelo ministro da justiça, tal como havia ocorrido já com os diplomas de 1912, a citar a Lei de 12 de Julho e o Regulamento de 26 de Novembro, inspirados talvez pela lei italiana de 14 de Julho de 1907. Assim sendo, o regime de nomeação governativa ainda que com algumas breves interrupções seria mantido até 1930311 para se instalar definitivamente de 1932 a 1977. Ainda que até 1977 o CSJ seja integrado apenas por magis-trados, não podemos deixar de verificar uma fragilidade deste órgão, como deixámos antever anteriormente já que não é permitido aos magistrados

conservadores ou oficiais do registo civil de reconhecida competência ou de entre os bacha-réis ou licenciados em direito, tendo-se em conta, neste caso, a respectiva classificação no acto da formatura (art. 462.º§3). A estes inspectores competia fiscalizar os respectivos serviços, visitando os cartórios, conservatórias e repartições, verificando o estado dos seus serviços e o cumprimento das leis e regulamentos, bem como a observância das exigências do selo e a legalidade dos emolumentos recebidos, propor as reformas necessárias e verificar se os respec-tivos funcionários cumprem todos os deveres do seu cargo (art. 463.º pr. EJ 1928). O legis-lador de 1962 vedaria aos inspectores, inquiridores e sindicantes qualquer tipo de ingerência na execução dos serviços judiciais, os quais deveriam evitar a perturbação do serviço e abster--se de impor a sua opinião pessoal ou de advertir os magistrados (art. 458.º).

311 Vd. os Decretos n.ºs 7725, de 6 de Outubro de 1921, 10310, de 19 de Novembro de 1924, 10734, de 2 de Maio de 1925 e 16563, de 2 de Março de 1929.

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elegerem os seus pares. O motivo vários vezes invocado, como seria mais tarde a respeito dos trabalhos preparatórios da Lei n.º 85/77, diria respeito a uma necessidade de se inviabilizar um corporativismo indesejável e preju-dicial como em tempos oitocentos também invocara mostrando a tendência desculpabilizante que esse tipo de órgão assim composto poderia permitir, criando uma realidade em tudo apartada do sistema vigente. Todavia não podemos aceitar este entendimento, antes reconhecemos estar subjacente uma ingerência indiscutível de um poder político noutro, de um órgão se soberania noutro, ainda que não fossem admitidos elementos alheios à magistratura, como o previra desde logo, em 1972, a proposta de lei apre-sentada em 1972 por Sá Carneiro e Joaquim Rosa de Figueiredo, e que só teria efeitos práticos em Portugal a partir de 1977.

De modo inovador, o legislador consagrará no texto constitucional de 1976 a figura dos conselhos superiores, enquanto órgãos de defesa da inde-pendência externa dos magistrados relativamente a outros poderes estranhos à organização judiciária, a saber: o Conselho Superior da Magistratura (art. 217.º e 218.º CRP312), o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais (art. 217.º/2 CRP) e o Conselho Superior do Ministério Público (art. 220.º/2 CRP), muito embora só o primeiro tenha a sua constituição defi-nida na Magna Lei, deixando o legislador constitucional a composição dos demais para a lei ordinária. Logo em 1976, o Decreto-lei n.º 926, de 31 de Dezembro instituiria a lei orgânica do CSM determinando que este passasse a ser constituído apenas por magistrados, salvo os quatro funcionários de justiça que interviriam apenas nas matérias que lhes dissessem directamente respeito, visto que aqueles se encontravam então subordinados à gestão e disciplina do Conselho. Seria uma efémera existência, como o havia sido também o diploma que merecera as felicitações de Pinto Osório décadas antes. Assim, logo no ano seguinte a Lei n.º 85, de 13 de Dezembro alteraria este modelo prevendo no art. 140.º que o CSM passaria a ser composto por elementos natos e eleitos. Dos primeiros fazem parte o Presidente da Repú-

312 A composição deste órgão ficaria definida após a revisão de 1982 (art. 223.º). Vd. Lei n.º 36/2007, de 14 de Agosto e arts.136.º-167.º EMJ.

Vd. também o Diário da Assembleia Constituinte n.º 98, de 18 de Dezembro de 1975, pp. 3185 e seguintes; o Diário da Assembleia da República , 2.ª legislatura, 2.ª sessão legis-lativa, suplemento ao n.º 49, pp. 1020 (12) e 1020 (18) e seguintes; suplemento ao n.º 90, pp. 1676 (3) e 2.º suplemento ao n.º 106, pp. 1998 (57)-1998 (58); e 1.ª Série, n.º 124, de 22 de Julho de 1982, pp. 5219 e seguintes; 5.ª legislatura, 1.ª sessão legislativa, 2.ª S, n.º 49-RC, pp. 1538-1539; e 2.ª sessão legislativa, n.º 91-RC, pp. 2673-2674; e 1.ª S, n.º 89, de 30 de Maio de1989, pp. 4411.

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238 Isabel Graes

blica (que era simultaneamente o presidente deste órgão), o Presidente do STJ, os presidentes dos tribunais da Relação e o Provedor de Justiça. Nos segundos, contaríamos quatro personalidades designadas pela Assembleia da República, dois juízes do STJ, seis juízes de direito e quatro funcionários de justiça. Ainda que os magistrados estivessem em maioria e se deixasse intacta a composição da secção disciplinar, não podemos deixar de consi-derar que a verdadeira essência do órgão de gestão e disciplina da magis-tratura judicial estava, desde então, descaracterizada313.

A Lei n.º 21/85, no seu art. 137.º alterará esta composição, dela fazendo parte agora o Presidente do STJ, na qualidade de presidente daquele órgão e mais dezasseis vogais (dois designados pelo Presidente da República, sendo um deles magistrado judicial; sete eleitos pela Assembleia da Repú-blica314 e sete eleitos de entre e por magistrados judiciais315) continuamos a notar uma certa debilidade da instância que tem por atribuições gerir os aspectos administrativos do cursus honorum da magistratura judicial, bem como lhe cabe a matéria do contencioso disciplinar e consultivo, em sede de providências legislativas, restando verificar até que ponto são atendidas as suas manifestações nesta última.

Feitas estas considerações, e na esteira de Barbosa de Magalhães, podemos definir seja o Conselho Superior Judiciário seja o Conselho Superior da Magistratura como um órgão com funções disciplinares, fisca-lizadoras, consultivas de iniciativa e judiciais316 fragilizadas inicialmente pela total dependência face ao Executivo e após 1974 pela intromissão de elementos estranhos à magistratura naquele que é o seu órgão por excelência, aquele que melhor deveria espelhar a sua independência317. Recorde-se

313 Em sentido contrário cfr. FIGueIredo dIas, Nótulas sobre Temas de Direito Judi-ciário, RLJ, 127.º ano, 1994-1995, n.ºs 3838-3849, pp. 354-359 e 128.º ano, n.os 3850-3861, pp. 8-13.

314 Arts. 255.º-260.º do Regimento da Assembleia da República, n.º 1/2007, de 20 de Agostoe Declaração de Rectificação n.º 96-A/2007, de 19 de Setembro com as alterações introduzidas pelo Regimento da AR n.º1/2010, de 14 de Outubro.

315 Regulamento do processo Eleitoral para o CSM, publicado no DR, n.º 295, 2.ª S, de 23 de Dezembro de 2003 (Deliberação n.º 1894/2003) actualizado pela Deliberação n.º 3289/2009, DR, 2.ªS, n.º 239, de 11 de Dezembro de 2009.

316 MaGalhães, Barbosa, Processo Civil e Comercial, 2.ª ed., 1941, III vol., págs. 10 e segs. As funções de consulta destacam-se pela apreciação dos processos de aposentação bem como outro tipo de processo de consulta não especificada.

317 Em momento algum é sequer posta em causa a idoneidade e mérito das individua-lidades que são eleitas, apenas colocamos em causa a interferência de um órgão de soberania alheio e de indivíduos alheios à magistratura para conhecer e julgar da mesma magistratura.

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que o melhor conceito de independência dos magistrados é dado por meio de uma outra definição, a do CSM que é apresentada pelo art. 4.º/2 da Lei n.º 3/99 abreviada mais tarde pelo actual EMJ318.

Importa recordar que, após um conjunto de diplomas que se sucederiam nos primeiros anos da República, o EJ 1928 sintetizaria, entre as atribuições do CSJ a promoção do aperfeiçoamento das leis e instituições judiciárias; o relato anual do estado da administração da justiça e dos serviços judiciais, a manutenção da disciplina nos serviços judiciais e relativamente aos magis-trados judiciais e aos funcionários, cabendo-lhe ainda propor os movimentos judiciais, decidir as reclamações sobre antiguidade e contagem de tempo de serviço de magistrados e funcionários, dar parecer sobre ingresso de magis-trados nos quadros da magistratura da metrópole e ainda proceder à abertura de concursos de habilitação para juízes de direito e à organização da lista de candidatos admitidos; escolher os juízes a nomear para metade das vagas existentes no STJ e designar os juízes das várias secções do mesmo STJ319, fixar a distribuição do serviço entre os magistrados que prestem serviço em um mesmo tribunal, juízo ou vara, quando não haja acordo, propor a alte-ração da composição dos tribunais colectivos ou providenciar sobre a sua constituição, mandar prestar serviço em tribunal cujo juiz esteja impedido por tempo prolongado um outro juiz, se o regime normal das substituições dos magistrados se revelar insuficiente, apreciar a suficiência das instala-ções dos tribunais municipais para o efeito de a eles se deslocar o tribunal da comarca a fazer julgamentos, dar parecer sobre o exercício do cargo de juiz municipal, pronunciar-se sobre a nomeação de juízes de paz, deliberar sobre a não dedução na antiguidade do tempo de exercício em comissão de certas funções não judiciais, pronunciar-se sobre a alteração da compo-sição de qualquer secretaria judicial, dar informação para a promoção dos funcionários de justiça e graduá-los para essa promoção320-321.

318 Classifica o diploma de 1999, o CSM como o órgão privativo de gestão e disciplina que paralelamente com a independência, inamovibilidade e não sujeição a quaisquer ordens ou instruções. As alterações constitucionais levariam o legislador ordinário de 1985 a deixar cair a última expressão “não sujeição a quaisquer ordens ou instruções”.

319 Vd. Decreto-lei n.º 35044, de 20 de Outubro de 1945.320 De modo a tornar mais célere a marcha dos processos no CSJ, o Decreto-lei

n.º 32419, de 23 de Novembro de 1942 vem extinguir as secções especiais desta Conselho. O julgamento por juízes do STJ, sobre relatório dos inspectores dos serviços respectivos parecia garantir assim a justiça das decisões.

321 Arts. 437.º-452.º EJ 1928, 362.º-375.ºEJ1944, 399.º-404.ºEJ1962, 139.º e 152.º Lei n.º 85/77 e arts. 136.º e 149.º EMJ. Cfr. ainda a XIX Base da Lei n.º 2113, de 11 de Abril de 1962 e o art. 399.º do Decreto-lei n.º 44278, de 14 de Abril de 1962.

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A enumeração ora exposta parece fazer crer que o CSJ deteria uma posição preponderante no Direito Judiciário, não fora a dependência que detinha face ao Ministro da Justiça, como vimos ao longo dos capítulos anteriores. Por este motivo, e atendendo não só à composição mas também ao modo de selecção e acervo de competências do CSJ não lhe podemos reconhecer a importância que já se almejara para o CDMJ, logo em oito-centos. Há, de facto, uma alteração, mas bastante ténue. Do mesmo modo, e não obstante as actuais características do CSM, entendemos que face também à sua composição e modo de escolha dos seus membros é visível um comprometimento da autonomia da magistratura e do princípio da separação de poderes que não pode ser explicado por uma avocação do princípio da legimitidade democrática, pelo que aquele nunca poderá ser um verdadeiro órgão de auto-gestão ou auto-administração322.

Mais tarde, e com as ressalvas já enunciadas, entendemos o CSM como um órgão de auto-administração, ao qual são conferidas atribuições de gestão e disciplina.

4.5.1. Realização das sindicâncias e entidade competente

Uma vez propostas, as inspecções visam facultar quer ao CSJ quer ao CSMP o perfeito conhecimento do estado, necessidades e deficiências dos serviços judiciais e do MP, a fim de ficarem habilitados a tomar as provi-dências convenientes ou a propor ao Ministro da Justiça as medidas que dependam da intervenção do Governo (art. 442.º/1 do EJ 1962). Comple-mentarmente, visam colher informações sobre o serviço e mérito dos magistrados e funcionários de justiça, a fim de se proceder à sua classifi-cação e correição disciplinar (arts. 409.º-410.º EJ 1944 e 442.º/2 e 445.º EJ 1962). Face ao exposto está implícito o entendimento de que o processo de inspecção constituirá a fase acusatória do processo disciplinar quando o

322 Em sentido contrário, MIranda, Jorge, Entrevista concedida ao Boletim da Ordem dos Advogados, n.º 98/99, Janeiro/Fevereiro 2013, p.42, vem defender não só a viabilidade e naturalidade da interferência do órgão executivo no órgão superior de disciplina da magis-tratura judicial do mesmo modo que admite que a cumulação do cargo de presidente do STJ com o de presidente do CSM é uma realidade que deveria ser revista podendo passar a ser da competência do Presidente da República a nomeação do presidente do CSM permitindo assim o reforço da componente democrática do Conselho.

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inspector deduzir a acusação ao magistrado ou funcionário visado323. Sempre que o julgue conveniente, o CSJ pode aprovar um modelo de questionário sobre os elementos a recolher em cada inspecção (art. 442.º/3 EJ 1962).

Cada inspecção (ordinária) abrange os serviços judiciais da comarca ou tribunal desde o termo da anterior, normalmente a cada três anos, se outro período não for determinado pelo CSJ, por iniciativa própria ou proposta do inspector (arts. 411.º EJ1944324 e 443.º/1 EJ 1962). Os inspectores tomarão conhecimento de todos os elementos existentes no CSJ relativos aos serviços dos tribunais a inspeccionar e devem iniciar as inspecções sem qualquer aviso prévio (art. 443.º/2 EJ 1962). 325

À semelhança do disposto nos estatutos anteriores, o diploma de 1962 atribuirá competência para proceder à fiscalização e superintendência admi-nistrativa e disciplinar sobre os serviços judiciais, com exclusão dos serviços do MP, dadas as alterações legislativas verificadas em 1945: ao CSJ, como última instância de recurso e como órgão superior hierárquico de toda a organização judiciária no continente e arquipélagos dos Açores e Madeira;

323 Cfr. art. 63.º §2 do Estatuto Disciplinar dos Funcionários Civil e o art. 21.º §único do Decreto-lei n.º 35390, de 22 de Dezembro de 1945.

324 Art. 21.º do Decreto-Lei n.º 35388, de 22 de Dezembro de 1945.325 Vd ainda o art. 444.º sobre esta matéria.Dispunha ainda o art. 457.º EJ1928 que as inspecções do STJ seriam feitas por um

dos vogais efectivos do CSJ e as das relações por um inspector que tenha a categoria de juiz do STJ ou por outro juiz do mesmo STJ que o CSJ designar, auxiliados, quando necessário por um juiz da Relação, podendo os presidentes das Relações e os procuradores da República quando entendessem conveniente, verificar pessoalmente a forma como corriam os serviços judiciais nas comarcas da sua jurisdição, apresentando ao CSJ o respectivo relatório sumário (art. 458.º pr. EJ1928 e art. 456.º/2 EJ 1962).

Ainda na vigência do EJ1928, tendo de ser sindicado ou de responder a processo disciplinar qualquer juiz do STJ ou o Procurador-Geral da República, todas as diligências seriam feitas pelo juiz mais antigo do tribunal, ou, sendo este o acusado, pelo respectivo presidente, auxiliados, quando necessário, por um inspector judicial ou por um juiz da Relação requisitados ao Conselho (art. 459.º). Se o acusado fosse um juiz de 2.ª instância, seria competente um inspector judicial ou um juiz da mesma categoria, designado pelo CSJ (art. 460.º do mesmo estatuto). O CSJ poderia por conveniência de serviço ou por economia de despesas, encarregar qualquer magistrado, ou funcionário sujeito à sua jurisdição, de proceder a inquéritos ou sindicâncias, e bem assim requisitar de todos os juízes das comarcas e tribu-nais superiores, as diligências indispensáveis à instrução dos processos que perante ele se instaurarem (art. 461.º EJ1928). O Governo, por qualquer dos Ministérios, poderá requisitar magistrados judiciais para inquéritos, sindicâncias e outros cargos ou comissões de serviço público, remuneradas ou gratuitas, mas a indicação dos magistrados a nomear pertencerá exclusivamente ao Ministro da Justiça (art. 27.º EJ 1928).Cfr. art. 457.º EJ1962 e 160.º EMJ.

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ao presidente do STJ; aos presidentes das Relações, nos respectivos distritos judiciais; e aos juízes de direito, nas respectivas comarcas ou tribunais. Nos termos ainda do art. 485.º do mesmo EJ, competia aquele Conselho, por iniciativa própria ou mediante participação, ordenar as investigações assim como indicar quem as deve efectuar (n.º1). De igual modo, era conferida competência aos presidentes dos tribunais, ao procurador-geral e aos procu-radores da República para procederem a inquéritos sobre factos praticados por funcionários sob a sua dependência (n.ºs 3 e 4)326.

As inspecções ordinárias são mantidas pelo legislador de 1977 e 1985 (art. 36.º) sendo as primeiras realizadas decorrido um ano sobre a perma-nência do juiz de direito em lugares de primeiro acesso e, posteriormente, com uma periodicidade, em regra de quatro anos. Para as funções de inspector judicial são nomeados, em comissão de serviço, juízes da Relação ou, excepcionalmente, juízes de direito com antiguidade superior a quinze anos e classificação de serviço de Muito Bom (art. 162.º/1 EMJ).

Independentemente das avaliações periódicas a que os magistrados estão sujeitos, e tal como referimos anteriormente, os estatutos novecen-tistas mantêm a prática das inspecções que a legislação liberal designava por sindicância extraordinária, sempre que haja notícia de factos que exijam uma averiguação geral acerca do funcionamento dos serviços (art. 135.º/2 da Lei n.º 85/77 e art. 132.º/2 Lei n.º 21/85), a qual seria desempenhada por um conjunto de inspectores nomeados bienal ou trienalmente para o efeito (arts. 454.º EJ1928, 413.º pr. EJ 1944, 130.º 451.º EJ1962, 160.º-162.º Lei n.º 85/77, 160.º-162.º EMJ).

4.5.2. As infracções disciplinares

Ao longo dos vários estatutos, o legislador elegeu um conjunto de falhas e infracções que uma vez cometidas pelos magistrados judiciais, sujeitava-os à aplicação de uma pena disciplinar, tal como sucede nos mais variados casos em que são exercidas funções públicas. As situações contem-pladas seriam gradualmente apreciadas desde os casos de faltas leves, negli-gência, grave desinteresse pelo cumprimento dos deveres profissionais a situações de definitiva incapacidade de adaptação às exigências da função; falta de honestidade, conduta imoral ou desonrosa; inaptidão profissional; ou ainda condenação do magistrado por crime praticado com flagrante e

326 Vd a este respeito a Base XIX da Lei n.º 2113, de 11 de Abril de 1962.

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grave abuso da função ou com manifesta e grave violação dos deveres a ela inerentes. As penas estabelecidas poderiam ser, consoante os casos, de advertência, multa, transferência, suspensão, inactividade, aposentação compulsiva e demissão (arts. 523.º EJ1928, 465.º EJ1944, 459.º EJ1962, 84.º Lei n.º 85/77, 91.º EMJ).

4.5.3. As penas e seu efeito

4.5.3.1. Os Estatutos Judiciários de 1928, 1944 e 1962

Os estatutos anteriores a 1977, estabelecem a seguinte tipologia de penas disciplinares a aplicar aos magistrados judiciais: mera advertência; advertência registada; censura verbal ou por escrito327; multa328; repreensão em sessão329; transferência; suspensão de exercício e vencimentos de quinze até 180 dias330; passagem à inactividade, sem vencimento, de um ano até dois; aposentação ou substituição disciplinar331 e demissão332 (art. 523.º EJ 1928).333.

A pena de mera advertência não é registada e não produz, tal como a pena de advertência registada, quando sofrida pela primeira ou segunda vez, qualquer efeito para a classificação, promoção ou transferência (art. 524.º EJ 1928 e art. 471.º-472.ºEJ 1962). Todavia, quando das vezes subsequentes, a pena de advertência registada será equiparada à censura, ou seja, impor-tará a perda de trinta dias na antiguidade (art. 525.º EJ 1928 e art. 472.º EJ 1962334). A aplicação destas penas decorre independentemente de processo,

327 O EJ 1962 fala apenas em censura (art. 459.º/1 n.º 3).328 Para efeitos do quantum cfr.ainda art 459.º/4 do EJ 1962 e da redacção dada pelo

Decreto-Lei n.º 414/73.329 Esta pena será revogada pelo EJ 1962.330 O EJ 1962 determina o período de 15 dias a 1 ano (art. 459.º/1, n.º 6).331 O diploma de 1962 fala em aposentação compulsiva (art. 459.º/1, n.º 8).332 O texto de 1962 utiliza a expressão demissão ou rescisão imediata do contrato (art.

459.º/1, n.º 9).333 Há penas que poderão não ser aplicadas pelo CSJ, como são os casos enunciados

no art. 540.º EJ 1927. Cfr. ainda art. 550.º do mesmo Estatuto sobre as penas que são da exclusiva competência do CSJ. Frise-se que o Decreto n.º 10734, de 2 de Maio de 1925 autonomizará a infracção disciplinar de carácter político, isto é, a ofensa ou injúria contra a República ou a Constituição.

334 Frise-se que o articulado de 1962 não menciona o período de trinta dias em que é perdida a antiguidade.

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apenas sendo prevista a realização de uma simples audiência do arguido (art. 463.º/1 EJ 1962), salvo quando se trate da aplicação da pena de advertência registada a magistrados dos tribunais superiores, em que há a necessidade de processo disciplinar (art. 463.º/2 EJ 1962).

A pena de censura consiste numa exprobação formal pela falta come-tida e, quando verbal, pode ser aplicada directamente pelo Conselho ou por sua delegação expressa num superior hierárquico do censurado; quando escrita poderá ser comunicada directamente ao interessado, ser-lhe trans-mitida por intermédio de um superior hierárquico ou mandada registar em protocolo de audiência. Importa a perda de trinta dias para efeitos de anti-guidade (art. 526.º EJ1928 e art. 473.º EJ 1962).

A pena de multa é proporcional à gravidade da infracção e aos proventos do cargo do infractor (art. 527.º EJ 1928 e art. 464.º/1 EJ 1962335) e tem como resultado a perda de noventa dias para efeitos de antiguidade podendo ser acumulada com as penas de advertência registada, censura verbal ou por escrito e repreensão em sessão336.

A pena de repreensão em sessão consiste numa exprobação formal pela falta cometida, sendo dada em sessão plena e secreta do STJ se o funcionário a repreender for juiz ou director geral do mesmo tribunal, juiz da Relação ou magistrado de categoria correspondente; em sessão plena e secreta da Relação a que o funcionário pertencer, se for magistrado judicial ou do MP de primeira instância ou secretário do mesmo tribunal; em sessão judicial do CSJ, se for secretário do mesmo Conselho ou magistrado judicial no desempenho de cargos de comissão, dependentes ou não do Ministério da Justiça, perante o pessoal da secretaria da relação a que o funcionário pertencer e os escrivães e contadores da comarca sede da mesma Relação que o respectivo presidente mandar comparecer, se for oficial de justiça de primeira ou segunda instância ou empregado daquela secretaria; e perante o pessoal das respectivas secretarias se for funcionário não magistrado dos tribunais, da Procuradoria-Geral da República e das procuradorias da repú-blica (art. 528.º pr. EJ 1928)337.

A repreensão será dada: pelo presidente do STJ, se ela respeitar a juízes ou pessoal da secretaria do mesmo tribunal, juízes da Relação, Procurador-

335 As penas específicas de multa por infracções cometidas simultaneamente ou suces-sivamente são acumuláveis, mas o seu quantitativo total não pode exceder 10000$00 (art. 464.º/2 segundo redacção introduzida pelo DL n.º 414/73).

336 Cfr. arts. 527.º EJ 1928 e 474.º EJ 1962.337 Esta pena seria revogada pelo EJ 1962.

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-Geral da República e aos funcionários que sejam repreendidos em sessão do CSJ; pelos presidentes das Relações, se respeitar a magistrados judiciais de primeira instância, aos oficiais de justiça e aos funcionários das suas secre-tarias; pelo Procurador-Geral da república, se respeitar aos seus ajudantes, aos procuradores da república e aos seus ajudantes e ao pessoal da sua secre-taria; e pelos procuradores da república, se respeitar aos seus delegados e subdelegados e ao pessoal das suas secretarias (art. 528.º §1 EJ1928).

Se o funcionário a repreender não obedecer à notificação para compa-recer em sessão, aquela será publicada no Diário do Governo, por meio de nota expedida pela Secretaria do CSJ (art. 528.º/§2 EJ 1928).

A pena de suspensão importa a perda do tempo da sua duração, para efeitos de aposentação; a perda do dobro do tempo da sua duração, não podendo esta ser inferior a 180 dias, para efeitos de colocação na lista de antiguidade; para os magistrados judiciais e do MP implica a transferência obrigatória para cargo da sua categoria em comarca diferente daquela em que exerciam funções à data da aplicação da pena, para os demais funcionários só se verificará a transferência quando for expressamente decretada pelo CSJ338. A suspensão associada a transferência tem como resultado a imediata vacatura do lugar ocupado pelo funcionário suspenso, o qual cumprida a pena, ficará adido para ser colocado no lugar que lhe for determinado pelo CSJ, na ocasião do movimento proveniente da primeira vaga que se der. O diploma de 1962 consagra o afastamento completo do serviço durante o tempo de suspensão e a perda total de quaisquer proventos correspondentes a esse período (art. 476.º), bem como importa para efeitos de aposentação, na perda do tempo da sua duração; reflectindo-se em termos de antiguidade, na perda do dobro do tempo da sua duração e nunca menos de 180 dias; bem como na perda da faculdade de gozar licença graciosa no período de 1 ano, contado do termo do cumprimento da pena; na impossibilidade de promoção durante 1 ano, contado do termo do cumprimento da pena, se a suspensão for de mais de 60 dias; e na transferência obrigatória para cargos da sua categoria em tribunal diferente daquele em que exerciam funções à data da prática da infracção. Tal como no regime anterior, a suspensão que importe transferência determina a imediata vacatura do lugar ocupado pelo magis-trado ou funcionário suspenso, o qual, cumprida a pena, fica na situação de

338 Acrescentava o diploma de 1933: “e se estiverem servindo em comarca de classe inferior à que pessoalmente têm, serão colocados em comarca de classe correspondente àquela em que se encontravam à data da infracção”.

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adido para ser colocado no lugar que lhe for determinado em consequência do provimento das primeiras vagas que se dêem e não pode ser transferido desse lugar antes de decorrido um ano sobre a data da posse (n.º 2).

Nos textos de 1928, 1944 e 1962, a pena de aposentação ou substi-tuição disciplinar será aplicada aos magistrados judiciais e do MP, oficiais de justiça e demais funcionários com, pelo menos, 15 anos de serviço efec-tivo que, por actos praticados no exercício dos seus lugares ou pela sua conduta como funcionários e cidadãos, mostrem que a sua continuação na efectividade do serviço pode causar graves transtornos à boa administração e prestígio da justiça (art. 532.º pr. EJ1928). A aposentação ou substituição disciplinar não exclui o procedimento criminal, nem os efeitos legais das sentenças condenatórias, ainda que importem a perda da própria pensão (arts. 532.º/§2 EJ 1928, 473.º EJ1944 e 465.º EJ1962).339

Ex vi da aplicação da pena de passagem à inactividade, o magistrado é totalmente afastado do serviço durante o tempo de suspensão e perderá a totalidade dos proventos correspondentes a esse período. O tempo em causa não contará para efeitos de aposentação e será descontado em dobro na antiguidade no total nunca inferior a 180 dias. Cumulativamente perderá a faculdade de gozar licença graciosa no período de 1 ano, contado do termo do cumprimento da pena, bem como ficará impossibilitado de ser promovido durante dois anos, contados do termo do cumprimento da pena. A suspensão que importe transferência determina a imediata vacatura do lugar ocupado pelo magistrado ou funcionário suspenso, o qual, cumprida a pena, fica na situação de adido para ser colocado no lugar que lhe for determinado em consequência do provimento das primeiras vagas que se dêem e não pode ser transferido desse lugar antes de decorrido um ano sobre a data da posse.

A pena de demissão será aplicada àqueles que, por actos de manifesta gravidade ou de intolerável repetição, mostrem ser inconfidentes ou dolosos na revelação ou divulgação de assuntos confidenciais em prejuízo do Estado ou de particular; abandonem os seus lugares ou faltem injustificadamente ao serviço por mais de 30 dias seguidos ou 45 interpolados no decurso de seis meses; pratiquem factos ou actos desonrosos; pratiquem actos de grave insubordinação; insistiam no exercício de funções incompatíveis ou inacu-muláveis com as do seu cargo; aceitem promessas ou dádivas ou participação

339 Quando o acto ou omissão for simultaneamente considerado crime pela lei penal, o processo disciplinar não depende do processo criminal, nem prejudica as consequências disciplinares mais graves deste último (art. 564.º EJ 1927).

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em lucros provenientes da marcha ou resolução de processos pendentes; comparticipem em oferta ou negociação de emprego público; colaborem em perturbações graves de ordem pública; recusem sob qualquer pretexto o juramento ou declaração de fidelidade às instituições políticas ou à Consti-tuição, pela fórmula adoptada no respectivo Ministério (arts. 533.º EJ 1928, 474.º EJ 1944 e 466.º/1 EJ 1962).340 Como efeito da pena, determina o art. 478.º do mesmo estatuto de 1962, a perda definitiva dos vencimentos ou da pensão de aposentação e do cargo ou título por que eram abonados. Os magistrados e funcionários demitidos ou aposentados compulsivamente não podem ser reintegrados ou novamente nomeados para quaisquer cargos públicos, salvo o caso de, em revisão de processo, ter sido anulada a pena.

Se antes de iniciado ou ultimado o processo disciplinar em que venha a ser aplicada a pena de demissão, for concedida ao arguido a sua exone-ração, será esta declarada sem efeito e substituída por aquela pena (art. 466.º/3 EJ 1962).

A pena de transferência conduz à deslocação para cargo da mesma classe ou categoria, dentro ou fora da sede do antigo lugar, importando a perda de 150 dias de antiguidade e de 30 para efeitos de aposentação (arts. 529.º EJ1928, 470.º EJ1944 e 475.º EJ1962).

Os magistrados a quem forem aplicadas as penas de transferência, suspensão e passagem à inactividade serão inábeis para o exercício das funções de presidente dos tribunais superiores, de vice-presidente do CSJ, de inspector judicial e para os cargos de representação do MP na Procuradoria--Geral da República ou junto dos tribunais superiores (arts. 539.º EJ1928, 479.º EJ1944 e 479.º EJ 1962).

As condenações impostas em outros processos têm também repercus-sões disciplinares, ou seja: a condenação em custas e a repreensão correc-cional são equiparadas, para efeitos disciplinares, à pena de censura; as penas disciplinares resultantes das leis de processo ou decisão criminal são equiparadas às penas do mesmo nome impostas pelo EJ, sem prejuízo do disposto acerca da pena de multa; a condenação civil em perdas e danos é equiparada à pena de multa e importa transferência, se o condenado ainda estiver na circunscrição judicial onde tiver sido praticado o facto que deu lugar à condenação e o CSJ a julgar necessária (arts. 540.º EJ1928 e 480.º EJ 1962).

340 Vd. art. 536.º EJ 1927 para efeitos da aplicação das leis de processo civil e penal nos casos de demissão ou suspensão por efeito de pena aplicada nos tribunais criminais.

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Estando pendente um recurso de decisão proferida nos tribunais ordi-nários, com efeitos disciplinares, ou tendo sido ordenado procedimento disciplinar contra qualquer magistrado, oficial de justiça ou outro funcio-nário, estes não poderão ser promovidos, transferidos, ou por outro modo mudados da situação anterior até final decisão. Se o magistrado ou oficial de justiça for absolvido, ou forem as arguições havidas por improcedentes, e entretanto outros mais modernos tiverem sido promovidos, ser-lhe-á atri-buída, na nova classe ou categoria, antiguidade imediatamente superior à destes, o que será declarado no respectivo decreto (art. 541.º EJ 1928 e art. 481.º EJ1962).

A intimação do despacho de pronúncia por qualquer crime341 determina a suspensão de exercício e vencimento dos magistrados e demais funcio-nários sob jurisdição do CSJ até julgamento final (art. 537.º pr. EJ 1928). A perda de vencimento só será reparada no caso de absolvição (§ único do mesmo art. 537.º)342.

4.5.3.2. Estatutos de 1977 e 1985

Frise-se que os estatutos de 1977 e 1985, contrariamente aos ante-riores343, apenas se aplicam aos magistrados judiciais, não prevendo mais a aplicação de penas a outro tipo de actores judiciais. Deste modo passam a estar previstas os seguintes tipos de penas disciplinares: advertência; adver-tência registada; censura344; transferência; multa de cinco a trinta dias de vencimento; suspensão de exercício de quinze dias até um ano; inactividade de um até dois anos; aposentação compulsiva e demissão. Com excepção da advertência, todas deverão ser registadas. Nos termos do n.º 3 do art. 85.º da Lei n.º 21/85, tal como antes o determinava o art. 532.º EJ1962, as amnis-tias não destroem os efeitos produzidos pela aplicação das penas, devendo ser averbadas no competente processo individual345.

341 Em 1962, frisa-se que seja doloso, art. 468.º/2.342 Vd a este respeito art. 468.º EJ 1962. A perda de vencimentos por este motivo será

reparada somente no caso de absolvição (art. 468.º/3).343 Atentem-se as ressalvas feitas ao longo do presente estudo.344 As penas de advertência registada, censura e multa de cinco a trinta dias de venci-

mento deixam de ser aplicadas pelo art. 85.º da Lei n.º 21/85.345 Sobre os efeitos da amnistia nos vencimentos, vd. BMJ n.º 38, p. 39.

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As penas de advertência e de censura346 são aplicáveis a faltas leves que não devam passar sem reparo; a pena de transferência é aplicável a infrac-ções que impliquem a quebra do prestígio exigível ao magistrado para que possa manter-se no meio em que exerce funções; a pena de multa é apli-cável a casos de negligência ou incompreensão dos deveres profissionais; a pena de transferência é aplicável a infracções que impliquem a quebra do prestígio exigível ao magistrado para que possa manter-se no meio em que exerce funções; as penas de suspensão e de inactividade são aplicáveis nos casos de negligência grave ou de grave desinteresse pelo cumprimento de deveres profissionais, ou quando os magistrados forem condenados em pena de prisão, salvo se a condenação envolver a aplicação da pena de demissão; as penas de aposentação compulsiva e de demissão são aplicáveis quando os magistrados revelem: definitiva impossibilidade de adaptação às exigências da função; falta de honestidade, grave insubordinação, ou conduta imoral ou desonrosa; inaptidão profissional ou tenham sido condenados por crime praticado com flagrante e grave abuso da função ou com manifesta e grave violação dos deveres a ela inerentes. Ao abandono de lugar corresponde sempre a pena de demissão (arts. 101.º- 105.º da Lei n.º 85/77 e 85.º-90.º EMJ)347.

As penas de advertência e advertência registada podem ser aplicadas independentemente de processo mediante simples audiência do arguido (art. 84.º/3 da Lei n.º 85/77)348.

Enquanto as penas de advertência consistem em mero reparo pela irregularidade praticada, a pena de censura traduz-se na repreensão desti-nada a prevenir o magistrado de que a acção ou omissão praticadas são de molde a causar perturbação no exercício das funções e a repercutir-se no decoro349 e dignidade que lhes são inerentes (art. 85.º da Lei n.º 85/77) não produzindo qualquer efeito na promoção. Enquanto a pena de advertência registada é equiparada à pena de censura quando aplicada por três ou mais

346 Note-se que o legislador de 1985 deixa de contemplar a pena de censura, cfr. art. 85.º.

347 Cfr. arts. 85.º-90.º EMJ.348 Pelos motivos já enunciados, relativamente à revogação da pena de advertência

registada, a Lei n.º 21/85 prevê apenas que a pena de advertência seja aplicada independen-temente de processo, desde que com audiência e possibilidade de defesa do arguido (art. 85.º/4). Cfr. ainda art. 91.º do mesmo diploma.

349 Este vocábulo será omitido pelo legislador de 1985, cfe. decorre da leitura do art. 86.º.

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vezes (art. 91.º da Lei n.º 85/77); a pena de transferência implica a colocação do magistrado em cargo da mesma categoria fora da área de jurisdição do tribunal ou serviço em que anteriormente exercia funções (art. 86.º da Lei n.º 85/77350) determinando a perda de sessenta dias de antiguidade (93.º da Lei n.º 85/77 e art. 103.º EMJ).

Por sua vez, a pena de multa corresponde ao desconto no vencimento do magistrado da importância correspondente (art. 87.º Lei n.º 85/77) impli-cando no caso do diploma de 1977 na perda de noventa dias de antiguidade (art. 94.º) ou ao desconto da importância correspondente ao número de dias aplicados, que poderão ser no mínimo de cinco e no máximo de trinta (art. 85.º e 102.º EMJ).

As penas de suspensão e de inactividade traduzem-se no afastamento completo do serviço durante o período da pena (art. 88.º Lei n.º 85/77) entendendo o legislador de 1985, tal como sucedeu em alguns dos casos anteriores, estabelecer um limite para a aplicação da pena de inactividade, a qual não pode ser inferior a um ano nem superior a dois (cfr. arts. 104.º e 105.º), implicando no caso da suspensão na perda das remunerações corres-pondentes ao período de suspensão; a perda do tempo correspondente à sua duração para efeito de aposentação; a perda do tempo correspondente ao dobro da sua duração, para efeito de antiguidade, mas nunca menos de cento e oitenta dias; a impossibilidade de promoção durante um ano, no caso de suspensão ou dois, quando se tratar da inactividade, contados do termo do cumprimento da pena, se a suspensão for superior a sessenta dias e a trans-ferência obrigatória para cargo idêntico em tribunal ou serviço diferente daquele em que o magistrado exercia funções à data da prática da infracção (arts. 95.º e 96.º da Lei n.º 85/77 e arts. 94.º, 104.º-105.º EMJ).

A pena de aposentação compulsiva consiste na aposentação imposta com direito à pensão fixada por lei e a pena de demissão ao afastamento definitivo do magistrado, com cessação de todos os vínculos com a função (art. 89.º e 97.º da Lei n.º 85/77 e arts 95.º e 106.º da Lei n.º 21/85).

A pena de demissão implica a perda do estatuto de magistrado confe-rido pela presente lei, sem direito a vencimento ou pensão de aposentação, e a incapacidade de ser provido em novo cargo público (art. 98.º da Lei n.º 85/77 e art. 107.º da Lei n.º 21/85).

As penas de suspensão de exercício de quinze dias até um ano e de inactividade de um até dois anos têm como resultado a incapacidade para

350 Art. 88.º EMJ.

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provimento em cargos electivos e em qualquer comissão de serviço de natu-reza judicial (art. 99.º da Lei n.º 85/77). Para os magistrados aposentados ou que, por qualquer outra razão, se encontrem fora da actividade, as penas de multa, suspensão ou inactividade são substituídas pela perda de pensão ou vencimento de qualquer natureza, pelo tempo correspondente (art. 111.º da Lei n.º 85/77 e art. 100.º EMJ).

Verifica-se a reincidência quando a infracção for cometida antes de decorrido um ano sobre a data em que o magistrado tenha findado o cumpri-mento da pena imposta em virtude de infracção anterior ou em que a pena lhe tenha sido aplicada, conforme os casos (art. 108.º da Lei n.º 85/77). O prazo seria alargado pelo legislador de 1985 para três anos (art. 98.º).

4.5.3.3. Entidade competente para a aplicação das penas

Definido na lei e uma vez constituído, cabia ao CSJ, a acção disciplinar face aos magistrados, oficiais de justiça e funcionários nos termos do art. 449.º/4 EJ1928; definindo o diploma de 1944 que a aplicação das penas disciplinares caberá aos vários magistrados nos termos dos arts. 486.º-488.º.

Ainda na vigência do EJ 1944, em conformidade com o disposto no Decreto-lei n.º 35388, de 22 de Dezembro de 1948, é conferida competência ao Ministro da Justiça para aplicar todas as penas a todos os funcionários judiciais, podendo delegar essa competência no CSJ que decidirá em sessão de secção (art. 46.º §único do Decreto-lei n.º 35388, de 22 de Dezembro de 1948). Esta atribuição acrescia à que o mesmo órgão já detinha para aplicar todas as penas, com excepção da de aposentação compulsiva e demissão, aos juízes de 1.ª e 2.ª instância (art. 28.º/3). Disposição semelhante seria consa-grada pelo legislador em 1962, face ao CSJ (art. 460.º/d) daquele estatuto), mantendo também a competência para em sessão plenária aplicar todas as penas aos magistrados judiciais de todas as categorias (art. 28.º/4).

O diploma seguinte conferiria competência ao presidente do STJ para aplicar as penas de mera advertência e advertência registada aos juízes conselheiros do seu tribunal (art. 460.º/a) EJ 1962351) e aos presidentes das Relações relativamente às penas de mera advertência e advertência registada dirigidas aos juízes e desembargadores do seu tribunal (art. 28.º/1 EJ1944) bem como aos juízes de direito, municipais e de paz dos seus distritos judi-ciais (art. 459.º/b) EJ 1962).

351 No mesmo sentido, art. 28.º/1 EJ1944.

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Nos termos do estatuto de 1977, a matéria disciplinar seria da exclusiva competência do CSM, reservando o primeiro diploma o seu conhecimento para a secção disciplinar daquele Conselho (arts. 154.º/1 e 155.º da Lei n.º 85/77 e Decreto-lei n.º 348/80, de 3 de Setembro). Por sua vez, o legis-lador de 1985 considera tacitamente delegada no Conselho Permanente do CSM a competência para exercer a acção disciplinar (art. 152.º/2).

4.5.4. O procedimento disciplinar. Trâmite aplicado

Tal como referimos anteriormente, o legislador exigiu continuamente a realização de inspecções periódicas, não invalidando que pudessem ser feitas inspecções extraordinárias desde que para tanto fossem noticiados factos graves pelo número ou pela qualidade.352 De igual modo, também deveriam ser remetidos relatórios periódicos que dessem a conhecer a situ-ação dos serviços judiciais das respectivas circunscrições e do desempenho dos magistrados e funcionários judiciais353.

Os presidentes das Relações e os Procuradores da República deveriam enviar ao CSJ até ao dia 31 de Março de cada ano o seu relatório acompa-nhado de um dos exemplares da informação que deve ser remetido pelo juiz de direito e dos delegados do procurador da república e de informações suas acerca dos magistrados que lhe são subordinados nas quais são mencionados todos os factos indicadores de mau procedimento ou mau serviço e especial-mente se os despachos, sentenças, tenções, acórdãos, vistos e promoções que são lavrados e postos nos prazos que a lei determina, bem como aqueles que pudessem assinalar o zelo e dedicação pelo serviço, a competência profis-sional e a idoneidade moral (art. 468.º§1 EJ1928354).

352 O procedimento do envio dos relatórios periódicos de 1944 (arts. 390.º-391.º) é idêntico ao de 1962. O mesmo se passa com as correições (art. 395.º-408.º), inspecções (arts. 409.º-412.º), instauração do processo (arts. 423.º-424.º), instrução do processo (425.º-430.º), processo de sindicância (art.432.º-442.º), julgamento (443.º), recursos (444.º c/c DL 35388, de 22 de Dezembro de 1945), revisão (448.º-452.º), especialidades relativas a alguns processos (arts. 453.º-457.º), processos e abandono de lugar que estão separados dos anteriores (art. 458.º), penas e efeitos das penas (arts. 465.º-490.º), prescrição (que consagra já os 5 anos (491.º-492.º).

353 Vd. art. 468.º EJ1928 e 433.º/ 1 e 2 EJ 1962 e a alteração introduzida pelo DL n.º 414/73.

354 Vd. no mesmo sentido art. 433.º/3 e 5 EJ 1962.

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Paralelamente, os presidentes dos tribunais enviariam ao CSJ certidões das decisões dos tribunais respectivos, nas quais algum magistrado, oficial de justiça ou outro funcionário sujeito à acção disciplinar do mesmo CSJ for advertido ou multado disciplinarmente, condenado em custas ou perdas e danos por acções e omissões no exercício do seu cargo, e bem assim das pronúncias e condenações em processo criminal, certificando-se a remessa nos autos e fazendo-se depois comunicações sucessivas de terem ou não transitado em julgado e haverem sido confirmadas, alteradas ou revogadas em recurso (art. 469.º EJ1928 e art. 34.º EJ1962).

Face ao exposto e atendendo a uma zelosa aplicação da justiça, onde o controlo era considerável, o legislador de 1962 vem conferir ainda a possibi-lidade de todas as entidades, funcionários ou simples particulares poderem participar ao CSJ ou ao Procurador-Geral da República quaisquer factos referentes à má administração da justiça ou ao procedimento dos magis-trados e funcionários que estejam sob a sua jurisdição (art. 436.º/1). Estas participações deveriam apresentar-se de modo escrito, ter a identificação e assinatura dos seus remetentes ou autores e ser acompanhadas de docu-mentos e informações comprovativas dos factos alegados ou, pelo menos, da indicação, dos meios de prova a que utilmente haja de recorrer-se, podendo oferecer-se até ao limite de vinte testemunhas, sem contudo exceder o de cinco para cada facto (art. 436.º/2 EJ 1962). Quando feitas por particulares ou por funcionários na sua qualidade de particulares, a assinatura das parti-cipações seria devidamente reconhecida, sem o que não teriam seguimento (art. 436.º/3 EJ 1962).

Uma vez distribuída a queixa, deveria o relator do processo mandar ouvir o arguido, sendo designado prazo para a resposta, indicando as peças cujas cópias devem ser entregues no acto da notificação, se não preferisse mandar remeter o próprio processo (art. 478.º pr. EJ 1928). Recebida a resposta ou não tendo o arguido respondido no prazo legal, o relator levaria os autos à conferência para decidir se haveria ou não motivo para inquérito ou sindicância (art. 479.º EJ 1928 e art. 486.º EJ 1962).

Tratando-se de uma inspecção seria averiguado: se os magistrados e demais funcionários judiciais tinham residido nas respectivas comarcas ou se, por algum motivo, se se haviam ausentado indevidamente, assim como se tinham sido assíduos, diligentes, urbanos para com as partes, se tinham exercido as profissões proibidas por lei (como as de advogado); se possuiam os livros necessários para a escrituração e registo e se os utilizavam; se as custas, selos e receitas dos cofres dos juízos tinham sido devidamente pagas

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e depositadas; se os mapas e relatórios periódicos tinham sido periodica-mente enviados; se tinham recebido peitas ou eram sensíveis a pedidos; se haviam beneficiado malfeitores, participado em reuniões de natureza política, usado de linguagem inadequada e envergado os trajes devidos nas audiências; e por fim, se as instalações dos tribunais se encontravam asseadas (art. 480.º EJ 1928 e art. 427.º EJ1944). O art. 445.º do EJ 1962 introduzia como aspectos a ter em atenção a competência para o exercício da função, através do conhecimento da legislação e jurisprudência, a correcta aplicação das leis e investigação cuidadosa da matéria de facto a julgar; a idoneidade moral, apreciada pela independência e dignidade com que o cargo é exer-cido; as qualidades de método, bom senso, equilíbrio e sensatez demons-tradas nos critérios de julgamento; o prestígio no meio social; a marcação dos serviços para horas e tempo conveniente e sua continuidade; a obser-vância dos prazos legais e diligências no exercício do cargo; a existência de faltas, erros ou divergências de interpretação na forma de processar e contar os processos que convenha suprir, emendar ou uniformizar, propondo nesses casos as providências a adoptar; as reclamações dos presos à ordem do tribunal acerca dos seus processos, e boa ordem dos serviços da cadeia; tudo quanto sirva, em geral, para demonstrar o estado dos serviços, o grau de dedicação, método, energia física e moral do servidor, a inteligência, saber, cultura e sentimento jurídico, a independência, austeridade de carácter e outras qualidades necessárias aos magistrados e funcionários, para perfeição e prestígio das funções judiciais.

Em todas as inspecções, os inspectores deveriam ouvir os magistrados e funcionários sobre as faltas que fossem notadas (art. 446.º EJ 1962355). De cada inspecção era elaborado um relatório, dividido em capítulos, extraindo-se no final, relativamente a cada um deles conclusões sucintas e precisas (art. 447.º EJ 1962356). O primeiro capítulo trataria da actuação do tribunal como órgão de administração da justiça, distinguindo entre a jurisdição criminal e a cível e destacando nesta os inventários obrigatórios e as acções do estado (art. 447.º/2 EJ 1962). No capítulo segundo focar-se--ia a organização e funcionamento dos serviços, designadamente das secre-tarias e tesourarias (art. 447.º/3 EJ 1962). O terceiro capítulo referir-se-á à instalação dos serviços judiciais e às casas dos magistrados (art. 447.º/4 EJ 1962). O quarto e último capítulo, subdividido em três secções, versaria

355 Vd. alteração ao art. 446.º/1 introduzida pelo DL n.º 414/73.356 Cfr. alteração introduzida pelo DL n.º 414/73.

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sobre os méritos e deméritos dos juízes, magistrados do MP357 e funcioná-rios da justiça (art. 447.º/5 EJ 1962).

No acórdão final dos processos de inspecção far-se-ia a classificação ordinária dos magistrados e, nos mesmos termos, a dos funcionários de justiça (art. 448.º/1 EJ 1962) podendo na mesma peça processual ser apli-cadas as penas disciplinares (art. 448.º/2 EJ 1962).

Era este o trâmite processual a seguir, podendo o CSJ a todo o tempo ordenar que, simultaneamente com a inspecção, se procedesse a inquérito ou sindicância em relação a um ou mais magistrados ou funcionários; e, oficiosamente ou, por sugestão do inspector, deveria aquele conselho tomar ou propor ao Governo ou a outras entidades que tomassem, as providências que as circunstâncias impusessem (art. 449.º/1 EJ 1962)358.

As inspecções não poderiam exceder o prazo de quinze dias nas comarcas de 3.ª classe, 20 dias nas de 2.ª classe e 25 dias nas de 1.ª classe, salvo se fosse indicado qualquer motivo ponderoso, o qual deveria ser parti-cipado ao CSJ (art. 482.º EJ1928, art. 429.º EJ1944 e art. 450.º EJ 1962). 359

Havendo lugar a inquérito, o Conselho escolheria o magistrado ou funcionário que deveria desempenhar as funções de inspector (art. 484.º), o qual procederia a todas as diligências (art. 485.º360)361. Tratando-se de sindi-cância, o sindicante logo que recebesse a ordem, comunicá-la-ia ao sindi-cado, declarando-lhe o dia em que haveria de ter início, a fim de que saísse da comarca caso fosse magistrado (art. 486.º EJ1928 e art. 492.º EJ 1962). Assim que o sindicado se ausentasse da comarca, deveria ser publicamente anunciada a existência da sindicância, marcando-se o dia em que deveriam ter início os trabalhos. O sindicante procederia desde logo ao exame dos

357 A este respeito, vd ainda o art. 447.º/6 EJ 1962.358 Frise-se que não há qualquer preceito legal que obrigue o Ministro da Justiça a

deferir um pedido de inquérito, devendo considerar-se como discricionário o acto que inde-fere tal pedido, dado que cabe à Administração decidir da oportunidade ou conveniência de ordenar diligências desta natureza (Ac. STA, de 29 de Abril de 1938, in DG, 2S, de 29 de Junho de 1938).

359 Para os casos em que a acusação for desencadeada pela imprensa, vd. arts. 487.º- -492.º e arts. 453.º e segs. EJ 1944.

360 O diploma de1933 introduz uma alteração ao §5 do art. 485.º do EJ1928 no sentido de que caso se verifique a existência de factos previstos pela lei penal, o CSJ remeterá, ao juízo competente, o processo, depois de julgada a infracção disciplinar ou uma certidão das peças que se lhes refiram, tendo um ou outra a força do corpo de delito, sem prejuízo das diligências complementares que em juízo pareçam necessárias.

361 Sobre esta matéria, vd. arts. 487.º-490.º EJ 1962.

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processos que corressem os seus termos nos últimos seis anos do tempo em que o sindicado servira, dando preferência aos feitos crimes, da Fazenda Nacional e de orfanologia bem como de todos os livros que foram atribuídos ao sindicado. Terminadas as averiguações que deveriam recair apenas sobre a conduta do sindicado (o que revela uma alteração face ao procedimento que era seguido desde o período da monarquia constitucional, segundo o qual não só era analisado o sindicado, mas também os funcionários judiciais que com ele serviam), de resto todo o procedimento é mantido, sendo, em seguida, comunicado apenas àquele o dia em que pode regressar ao exer-cício do cargo, excepto se as faltas verificadas forem de tal forma graves que julgue dever propor ao CSJ o seu afastamento por mais tempo362.

O relatório da sindicância seria criteriosa e exaustivamente elaborado por capítulos (art.486.º/7).

A todo o tempo, se do decorrer das investigações resultasse conve-niente, o Conselho poderia mandar que o inquérito ou inspecção seguisse como sindicância, em relação a um ou mais funcionários (arts. 501.º EJ1928 e 459.º/2 e 490.º EJ 1962.

O funcionário implicado em qualquer processo disciplinar, quando não fosse magistrado judicial, poderia ser desligado do serviço pelo CSJ, sem vencimento, ou com parte dele, enquanto durasse a instrução, ou até julgamento final (art. 502.º pr.). A perda de vencimento seria reparada, confirmada ou levada em conta na decisão final do processo (idem, §único).

Tratando-se de abandono do lugar, o processo consistiria apenas no levantamento de um auto de abandono pela autoridade a quem competir a fiscalização da comparência do infractor ou faltoso ao serviço (art. 493.º EJ 1928). O legislador de 1962 disporia de modo distinto, entendendo que nenhuma pena poderia ser aplicada sem que o acusado fosse ouvido sobre a arguição (arts. 462.º e 514.º c/c art. 262.º EJ1962). 363 Verificada a não comparência por parte do magistrado seria levantado o auto de abandono.

362 Sobre o procedimento adoptado, vd. arts. 494.º-503.º EJ1928 e os arts. 492.º-503.º EJ1962.

363 A Lei n.º 85/77 também autonomiza o abandono de lugar (art. 129.º) ao configurar como tal a falta de comparência de um magistrado por dez dias dias, manifestando expres-samente a intenção de abandonar o lugar, ou faltar injustificadamente durante trinta dias úteis seguidos, será levantado auto por abandono de lugar. Constitui presunção da intenção de abandono a ausência injustificada do lugar durante trinta dias úteis seguidos, a qual poderá ser ilidida por qualquer meio de prova (art.130.º). A Lei n.º 21/85 vem determinar que nestas circunstâncias será levantado um auto (art. 125.º c/c art. 126.º).

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Os processos de inspecção, depois de julgados, seriam enviados aos presidentes das Relações ou aos procuradores da República a que perten-cessem as comarcas inspeccionadas, segundo respeitassem a juízes e oficiais de justiça ou a magistrados do MP, a fim de que eles, examinando-os, tomassem as devidas notas, adoptassem as providências da sua competência conducentes à correcção das faltas e abusos notados, informassem os inte-ressados das respectivas decisões e as registassem em livro especial (art. 507.º pr. EJ1928 e art. 504.º EJ 1962).

O CSJ, no acórdão final dos processos de inspecção, classificaria expressamente os inspeccionados com: Muito Bom, Bom, Regular, Medí-ocre e Mau (art. 430.º EJ1944).

As decisões do CSJ transitadas em julgado, e que aplicassem as penas de demissão, transferência, suspensão, passagem à inactividade ou aposen-tação e substituição dos arguidos, seriam executadas por meio de decretos; e as restantes através de notificações dirigidas aos interessados, por inter-médio de notificações dirigidas aos interessados, por intermédio dos seus imediatos superiores hierárquicos imediatos364. Para este efeito, o juiz de direito seria o superior hierárquico dos notários e funcionários do registo civil, excepto nas sedes das Relações, onde seria o presidente destes tribu-nais (art. 508.º pr. EJ1928 e arts. 505.º e 507.º EJ 1962)365.

As decisões que contemplassem penas que importassem a perda da antiguidade, deveriam ser comunicadas à Direcção-Geral da Justiça (art. 508.º/§2 EJ1928 e art. 508.º EJ 1962).

Se o arguido condenado em multa, despesas ou perdas e danos, ou na reposição de qualquer quantia, não pagasse o que fosse devido no prazo de trinta dias, a contar da notificação, ser-lhe-ia descontada a importância em causa nos vencimentos, pensões ou emolumentos, em prestações mensais não excedentes à quinta parte deles, segundo decisão do CSJ que fixaria, para o devido efeito, o valor de cada uma (art. 509.º EJ 1928 e EJ 1962).

Se a sindicância ou inquérito feitos em virtude da sua participação de particulares ou de funcionários, na sua qualidade de particulares, mostrasse que nenhum motivo atendível haveria para a queixa apresentada, seria o respectivo processo remetido ao juízo competente, a fim de que o MP reque-resse, se houvesse lugar, a aplicação das penas competentes por denúncia

364 Vd. ainda o art. 535.º EJ 1927.365 Sobre a competência dos juízes de direito em relação aos juízes de paz e oficiais

de justiça, vd. arts. 548.º-549.º EJ 1927.

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caluniosa, cumulativamente com a indemnização pelas despesas feitas pelo Estado (art. 510.º EJ1928).

As importâncias das multas aplicadas a magistrados, oficiais de justiça e demais funcionários sujeitos à jurisdição do CSJ, e bem assim as despesas e indemnizações em que eles ou os participantes fossem condenados, seriam entregues pelos respectivos devedores ou enviados pelos juízos da execução à secretaria do Conselho, a fim de darem entrada na CGD para o reforço das verbas a inspecções e sindicâncias (art.511.º EJ1928).

Ao dispor sobre o processo disciplinar, o legislador de 1977 declara a natureza confidencial do mesmo (art. 116.º/1) reiterando a autonomia do mesmo face a situações de natureza penal que possam estar implicadas ou ter sido praticadas pelo mesmo sindicado366. Em resumo, e ao cotejarmos os vários diplomas que regularam esta matéria desde o século XIX podemos, desde já, concluir que poucas são as alterações em termos procedimentais.

Tal como outrora, o sindicado é suspenso do exercício das suas funções, mas com a ressalva de não ser uma imposição, mas uma possibilidade desde que se presuma que à infracção caberá, pelo menos, a pena de suspensão e se considere que a continuação na efectividade de serviço é prejudicial à instrução do processo ou à dignidade e decoro da função, não podendo exceder noventa dias367.

Tal como frisámos, a competência para conhecer da matéria disciplinar cabe à secção disciplinar do CSM, nos termos dos arts. 154.º-155.º da Lei n.º 85/77 e, actualmente, ao Conselho Permanente do CSM368, cabendo-lhe

366 Vd. arts. 114.º-116.º. O prazo de conclusão para a instrução mantem-se (30dias), a menos que, por circunstâncias especiais possa ser alargado mediante autorização do CSM (art. 118.º). Cfr. arts. 110.º-113.º Lei n.º 21/85. Sobre o novo Regulamento das Inspecções Judiciais seria aprovado pelo CSM em sessão plenária de 13 de Novembro de 2012, vd. Deliberação n.º 1868/2012 do CSM, in DR, 2.ª S, n.º 235, de 5 de Dezembro, pp. 37774- -38779.

367 Cfr. arts. 95.º e 114.º-120.º da Lei n.º 85/77; 104.º e 113.º-116.º da Lei n.º 21/85, seguindo o trâmite enunciado nos arts. 81.º e seguintes e 110.º deste último texto legal.

368 O Conselho Permanente do CSM deliberou que os processos disciplinares que sejam apresentados com proposta, pelo inspector judicial, de pena superior “à advertência registada” deverão ser distribuídos para o Plenário e a este serem apresentados para apre-ciação (Processo n.º 215/2010, acta n.º 11/2011 Permanente), de 10 de Maio de 2011).

De acordo com a deliberação do Conselho Permanente do CSM, constante da acta n.º 08/2011, de 29 de Março de 2011, exarada no Processo n.º 09-771/D (09-205/D1), aquele órgão entendeu que a par do Conselho dos Oficiais de Justiça e do próprio Conselho Supe-rior da Magistratura [no caso de avocação de processo disciplinar], também são atribuídas competências disciplinares ao Juiz Presidente do Tribunal, devendo ser alertados os magis-

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a todo o tempo a revisão das decisões condenatórias proferidas em processo disciplinar, desde que se verifiquem circunstâncias ou meios de prova susceptíveis de demonstrar a inexistência dos factos que determinaram a punição e que não puderam ser oportunamente utilizados pelo arguido (art. 127.º EMJ369). Das deliberações do CSM caberá recurso para o STJ, nos termos do disposto no art. 168.º EMJ.

4.5.5. Recurso das decisões disciplinares

Relativamente às decisões em matéria disciplinar, dispõe o legislador de 1928 que não é possível recorrer das decisões que apliquem a pena disciplinar de mera advertência, advertência registada (art. 552.º EJ 1928), excepto quando forem aplicadas pelos contadores, escrivães ou pelos juízes de paz aos subalternos, em que caberá recurso para os juízes de direito. Da pena de censura verbal ou por escrito bem como das decisões do CSJ que apliquem as penas de multa de 50$ a 1000$, repreensão em sessão, transfe-rência, suspensão de exercício e vencimentos de 15 até 180 dias, passagem à inactividade, sem vencimento, de um até dois anos, da aposentação ou substituição disciplinar e da demissão cabe recurso para aquele conselho, o qual deverá ser interposto pelo funcionário interessado ou pelo agente do MP (art. 553.º EJ1928)370.

O diploma de 1962 só admite recurso em matéria disciplinar para o CSJ das penas de advertência registada quando aplicada pelos presidentes dos tribunais superiores; das penas de censura e multa quando aplicadas pelos presidentes das Relações aos juízes de direito, municipais e de paz. Era igualmente possível recorrer para o Supremo Conselho Disciplinar371 das penas de transferência, suspensão, passagem à inactividade, aposentação compulsiva e demissão ou rescisão imediata do contrato quando aplicadas pelo CSJ a quaisquer magistrados (arts. 515.º e 516.º EJ 1962).

trados judiciais para necessidade de, uma vez conhecida a infracção, a mesma ser comuni-cada, em tempo útil, a qualquer das entidades referenciadas no artigo 94.º do Estatuto dos Funcionários de Justiça.

369 Cfr. a este respeito os arts. 131.º e 132.º da Lei n.º 85/77.370 Cfr. arts. 444.º e segs. do EJ 1944.371 O Supremo Conselho Disciplinar é constituído por todos os membros do CSJ e

pelos quatro juízes mais antigos do STJ (art. 516.º/2 EJ 1962). A declaração de voto vencido não era admitida, nas actas ou acórdãos do Supremo Conselho Disciplinar, nos termos do art. 516.º/3 EJ 1962.

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Não são admitidos recursos dos despachos ministeriais que se limitem a dar execução às decisões do CSJ sobre matérias da sua competência ou às do Supremo Conselho Disciplinar (art. 523.º EJ 1962).

Das decisões do CSJ, em qualquer das suas secções, sobre assuntos e carácter administrativo, classificações e promoções dos magistrados e demais funcionários sob a sua jurisdição disciplinar, indicação dos primeiros para cargos judiciais, e das que apliquem ou confirmem a aplicação, a uns e outros, das penas 1.ª a 3.ª do art. 523.º, não haverá recurso algum, como o não caberá dos despachos ministeriais que lhes derem execução. Das deci-sões que apliquem ou confirmem a aplicação das penas 4.ª a 10.ª do mesmo artigo caberá recurso para o próprio Conselho, em sessão conjunta dos seus vogais efectivos e substitutos da respectiva secção, o qual poderá confirmar, anular, substituir, diminuir ou agravar as penas aplicadas.

O recurso a que se refere o artigo 533.º poderá ser interposto pelo inte-ressado ou pelo MP, no prazo de 10 dias a contar da notificação da decisão, por meio de simples petição assinada pelo recorrente ou seu procurador (art. 533.º conforme redacção dada pelo diploma de 1933)372.

Os processos disciplinares poderiam ser revistos, quando se alegassem circunstâncias manifestamente justificativas da inocência dos funcionários neles condenados ou que possam e devam modificar a gravidade da pena aplicada (art. 554.º)373. A este respeito, o legislador de 1977 remete para o Plenário do CSM a competência para conhecer dos recursos dos processos disciplinares (art. 172.º da Lei n.º 85); sendo concedido pelo legislador de 1985 o direito de recurso para o STJ.374

4.5.5.1. Prescrição

O prazo de prescrição para a apresentação de queixa contra qualquer magistrado ou funcionário é de um ano a contar da prática dos factos sujeitos a procedimento disciplinar (art. 558.º EJ1928)375. O EJ 1962 aumenta o prazo de prescrição do procedimento disciplinar para cinco anos a contar da prática

372 Cfr. neste sentido os arts. 519.º-522.º EJ 1962.373 Cfr. ainda arts. 555.º-558.º EJ 1928 art. 448.º pr., 451§§ 1 e 2 EJ1944. Sobre os

casos de admissibilidade de revisão dos processos, cfr. arts. 524.º-529.º EJ 1962, a qual caberá decidir ao CSJ ou ao Conselho Superior do Ministério Público.

374 Cfr. arts. 164.º-177.º EMJ.375 Cfr. ainda arts. 559.º-560.º EJ 1927.

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da irregularidade, salvo quando se trate de facto qualificado como infracção disciplinar que seja também infracção criminal, sendo então os prazos de prescrição superiores a cinco anos nos termos do Código Penal; quando se refira às infracções consagradas no art. 23.º do Estatuto Disciplinar dos Funcionários Civis do Estado (aprovado pelo Decreto-lei n.º 32659, de 9 de Fevereiro de 1943), sendo que neste caso são imprescritíveis; quando a infracção disciplinar for contínua ou sucessiva, contando-se então desde o último facto que a integra (art. 530.º/1 e 2 EJ 1962).Note-se que nos termos do art. 531.º do EJ 1962, as penas disciplinares são imprescritíveis.376

O art. 109.º da Lei n.º 21/85 determina que as penas disciplinares pres-crevem nos prazos de seis meses, para as penas de advertência e multa; um ano, para a pena de transferência; três anos, para as penas de suspensão de exercício e inactividade e cinco anos, para as penas de aposentação compul-siva e demissão; contados da data em que a decisão se tomou inimpugnável.

§5.º CONSIDERAÇÕES FINAIS

Raríssimos foram os momentos na história do direito judiciário portu-guês, em que a uma ruptura política se seguiram, de imediato, efectivas alte-rações jurídicas. As críticas relativamente ao quadro que se deixava foram sempre variadíssimas, mas o ensejo em destornar, modificar de modo circe o modelo anterior foi sempre um trabalho árduo e lento levado a cabo ao longo das décadas seguintes, tal como tivemos oportunidade de mencionar, e defendemos já em outros trabalhos. A esta realidade não estiveram isentos nem o século XIX nem o século XX. No âmbito do direito judiciário, propu-semo-nos analisar o estatuto novecentista da magistratura judicial. Desde cedo verificámos que para compreendermos o actual estatuto da magistra-tura, se tornava imperioso recuar aos primórdios de oitocentos, às críticas então tecidas, aos ideais construídos os quais, em vários casos, só seriam alcançados em meados do século seguinte.

O modelo ou figurino aproxima-se, sem dúvida, daquele que foi apre-sentado pela Novíssima Reforma Judiciária e pelos diplomas avulsos que o complementaram, como foi o caso das aposentações, das transferências e das sindicâncias. No entanto, não podemos deixar de frisar que o arquétipo dos estatutos vigentes ao longo do século XX é, sem dúvida, aquele que

376 A este respeito vd art. 491.º do DL n.º 33547/1944.

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Veiga Beirão apresentaria em 1888, ainda que não viesse a entrar em vigor. É certamente indiscutivel que o estatuto jurídico da magistratura judicial foi sofrendo alterações, ao longo de cerca de cem anos, até porque o número de diplomas avulsos vigentes nas vésperas de 1910 e, depois em 1926, forçava a adopção de novas medidas legislativas. Como substituição de um número elevadíssimo de diplomas avulsos que regulavam unitariamente as nomea-ções, promoções, transferências, antiguidade, remunerações, aposentação e as sindicâncias, é criado o primeiro código judiciário em 1927-1928, o qual pretende de uma forma assaz abrangente contemplar o mapa judiciário, a organização judiciária, o estatuto de magistrados judiciais e do Ministério Público, funcionários judiciais e advogados. Este modelo permanecerá até à segunda metade do século XX, para, desde 1977, se autonomizarem os vários quadros judiciários e a própria organização do mapa judiciário vigente.

Em muitos aspectos a linha de continuidade foi uma constante como o reflecte a classificação e terminologia relativa ao cursos honorum da magistratura judicial e da organização judiciária, assim como o princípio vestibular existente entre a carreira da magistratura do ministério público e da magistratura judicial; o modo de provimento e de aferição da antigui-dade; a metodologia seguida na classificação realizada aos actores judi- ciários ao longo do seu cursus honorum e as inspecções realizadas em sede disciplinar. Obviamente, alguns aspectos sofrerão alterações como é o caso da correspondência entre as carreiras da magistratura judicial e do Minis-tério Público atrás referidas, bem como entre a magistratura ultramarina e a do continente, ou ainda aspectos de natrureza remuneratória, como é o caso da supressão dos emolumentos. Mas será na apreciação dos conselhos disciplinares que podemos aferir se houve uma estagnação legitimadora de um poder judiciário em tudo dependente do poder executivo, ou se, pelo contrário, a independência da magistratura, ainda que sempre reconhecida como uma garantia constitucional foi efectivamente respeitada. Muito embora o método da cooptação não tenha vingado, optando-se antes por introduzir o critério do tirocínio na selecção de novos magistrados,não deixa de ser consagrada a criação, em 1928, de um novo órgão, o Conselho Supe-rior Judiciário, ao qual cabe zelar pela independência dos actores judiciários (desde magistrados a funcionários). Este órgão ainda que mantenha o nome do seu congénere criado em 1901, apresenta algumas características que o distinguem do seu congénere, tal como se distinguia do Conselho Disci-plinar da Magistratura Judicial. Um aspecto apresenta-se, contudo, como transversal, referimo-nos ao peso significativo do Ministério da Justiça face

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Direito Administrativo da Magistratura Judicial 263

às directrizes que norteariam o Judiciário. Não falamos mais de poderes, mas de órgãos de soberania, sendo a ingerência daquele face a este último uma realidade incontornável, como salientámos. Ter-se-ia de esperar pelo diploma de 1977 para poder assistir à criação de um órgão com poderes de autogoverno, mas mesmo neste caso não podemos deixar de concluir, que ainda que actualmente a responsabilidade da selecção dos futuros magis-trados passe a ser atribuída ao Centro de Estudos Judiciários e a sua inde-pendência pareça estar garantida pelo Conselho Superior da Magistratura, o qual é responsável pela substituição, promoção, transferência, classificação e fiscalização dos magistrados, aquela não está, em nosso entender totalmente salvaguardada enquanto se mantiver o tipo de composição existente deste último órgão. Como tivemos oportunidade de referir, se por um lado não defendemos um isolamento corporativo da magistratura, conducente, para alguns, a uma certa legitimação ou mesmo desculpabilização de qualquer infracção não podemos deixar, por outro lado de ser contrários à interfe-rência de órgãos estranhos à magistratura na composição e na selecção dos membros do Conselho Superior da Magistratura. Se assim não fosse esta- ríamos a admitir que com tal medida não se configure uma notória violação do princípio da separação e do equilíbrio de poderes. Por este motivo, ainda que a evolução face ao quadro vigente no século XIX tenha de facto ocor-rido, desde logo com a introdução do tirocínio como forma de selecção dos magistrados, a verdade é que durante quase todo o século XX, o figurino de subordinação ao poder executivo será mantido, como o espelha o texto de 1944 ao identificar os membros do corpo judiciário como “funcionários judiciais” englobando aqui não só a magistratura judicial e do Ministério Público, mas também os oficiais de justiça. As alterações terminológicas introduzidas em 1962 não consuziriam a uma mudança de metodologia, dado que continuará a ser mantida a política de supervisão definidora e limita-tiva do Ministério da Justiça que poderia sempre optar por não aceitar os simulacros de decisão do CSJ que no final apenas se apresentavam como meras propostas.

Ante a letra dos diplomas de 1977 e 1985, a situação muda, de facto, mas não deixa de não haver uma permanente interferência ou se quisermos uma independência vulnerável e mitigada provocada pela dose de politici-zação presente na composição e modo de selecção dos membros daquele órgão. Recorde-se ainda que a regulação da função judiciária por órgãos externos como sucede com os juízes de paz é, igualmente, um elemento de fragilização. É necessário, por isso, que a legislação actual faça eco das

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palavras proferidas por Pinto Osório e Manuel de Andrade, em 1926, ou mesmo de Barbosa de Magalhães que em determinados momentos souberam evidenciar estas lacunas, mas que rapidamente foram abafadas.

Em suma, Portugal vive ainda a herança estatutária judiciária oitocen-tista, reveladora de um conjunto de modelos acentuadamente governativos ainda que esbatidos nas últimas décadas, permitindo, todavia, a percepção de um sentimento de magistraturofobia que teima em permanecer.

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DIREITO ADMINISTRATIVO DAS PRIVATIZAÇÕES

Lourenço ViLhena de Freitas

1. DIREITO ADMINISTRATIVO DAS PRIVATIZAÇÕES E CON-CEITO DE PRIVATIZAÇÃO

1.1. direito administratiVo das priVatizações

o Direito Administrativo das Privatizações não é mais do que um capítulo do Direito Administrativo da Economia.

Independentemente da problemática relativa à qualificação de todo o Direito da Economia como Direito Administrativo especial como fazia Marcello Caetano1, posição para que nos inclinamos, ou do reconhecimento de autonomia dogmática ao Direito da Economia, na esteira das posições de António de Sousa Franco2, António Menezes Cordeiro3 ou J. Simões Patrício4, para dar alguns exemplos, a verdade é que a maioria dos aspectos

1 Manual de Direito Administrativo, Lisboa, 10.ª edição, p. 47.2 Noções de Direito da Economia, Lisboa, 1982, p. 38, argumentando com a existência

de áreas não recondutíveis ao Direito Administrativo como sejam as do planeamento, da concorrência ou do direito monetário e creditício. Embora, a nosso ver, apenas a área da concorrência escape ao direito público por constituir ramo de Direito e até de prática jurídica autónomo.

3 Direito da Economia, Lisboa, 1986, p. 106 e ss., invocando a transversalidade do Direito da Economia quer a nível estrutural, quer a nível científico cultural, definindo Direito da Economia como “sistema resultante de ordenação e normas e princípios jurídicos, em função da organização e direcção económica”.

4 Introdução ao Direito Económico, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, 125, 1982, p. 71.

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270 Lourenço Vilhena de Freitas

do Direito da Economia relevam em termos jusdogmáticos do Direito Administrativo e quanto a esses, inequivocamente, se pode falar de Direito Administrativo especial5. No quadro do Direito da Economia destaca-se o Direito Administrativo das Privatizações no qual se cruzam essencialmente aspectos de Direito Público, seja Constitucional, seja Administrativo.

1.2. o conceito de priVatização e de repriVatização: distinção de Figuras aFins

O conceito de privatização6 tem merecido apreciação por parte da doutrina7, debatendo-se na mesma diversos significados para essa expressão.

Desde logo pode divisar-se uma distinção entre privatização em sentido amplo e privatização em sentido restrito.

Paulo Otero8 distingue diferentes acepções de privatização: processo pelo qual o Estado reduz ou suprime a sua intervenção reguladora, proce-dendo a uma transferência para a sociedade civil desse poder; fuga para o direito privado da Administração; transformação de uma pessoa colectiva de direito público em pessoa colectiva de direito privado; confiar da gestão de

5 Nesse sentido, cf. Augusto de Ataíde, Elementos para um Curso de Direito Admi-nistrativo da Economia, Lisboa, 1970, onde define Direito Administrativo da Economia, a p. 31, como “todas aquelas normas de Direito Administrativo (quer de organização, quer de relação) que têm por objecto o estabelecimento do regime jurídico da intervenção da Administração Pública na vida económica e que constituem o Direito Administrativo Econó-mico”, sendo tal matéria, a seu ver, Direito Administrativo especial, o que não prejudica a sua integração no Direito da Economia (p. 35).

6 Para a justificação das privatizações, cf. Eduardo Paz Ferreira, A Afectação das Receitas das Privatizações, in Revista do Tribunal de Contas, n. 7/8, 1999, pp. 15 e ss., Jorge Miranda, As privatizações na revisão constitucional de 1989 e na Lei n.º 11/90, de 5 de Abril, in Direito e Justiça, vol. V, 91, pp. 49 e ss. e Maria Eduarda Azevedo, Temas de Direito Económico, Coimbra, 2013, pp. 136 e ss.. Para a história recente das privatizações, cf. António Carlos dos Santos, Maria Eduarda Gonçalves e Maria Manuel Leitão Marques, Direito Económico, 2014, Coimbra, 2014, pp. 161 e ss..

7 Sobre o enquadramento que determinou as reprivatizações, vide Eduardo Paz Ferreira, Direito da Economia, Lisboa, 2001, p. 355 e ss. e ainda sobre o tema; Nuno Cunha Rodrigues, Privatizações de Empresas Públicas, in Enquadramento das Privatizações, Luis da Silva Morais, Nuno Cunha Rodrigues, Paulo Alves Pardal, Direito da Economia, vol. I, p. 245.

8 Privatizações, Reprivatizações e Transferências de Participações Sociais no Inte-rior do Sector Público, Coimbra, 1999, p. 11 e ss.

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meios de produção de propriedade pública aos privados; abertura a entidades privadas do capital social pertencente a entidades públicas (minoritária ou maioritária), realçando que a última e últimas acepções correspondem ao sentido mais comum e mais rigoroso de acordo com a Constituição.

Nuno Sá Gomes9 também aborda o conceito de privatização nos seguintes termos: “numa primeira aproximação pode dizer-se que a priva-tização em sentido restrito é uma medida através da qual o sector público cede à iniciativa privada meios de produção para que esta os explore com acrescidas eficiência e racionalidade. No entanto, a privatização pode traduzir-se quer na transferência do próprio património público, maxime das empresas públicas, para o sector privado, quer apenas na concessão do direito de exploração dos serviços públicos que o Estado de bem-estar proporciona.”

Embora, como o autor afirma: “[m]as há quem empregue a expressão privatização em sentido amplíssimo, para abranger muitas outras medidas, directas e indirectas, tendentes a reduzir o sector público, administrativo e empresarial”10.

E continua afirmando: “[a] modalidade de privatização em sentido restrito mais em voga diz, porém, respeito, precisamente, à privatização de empresa pública, em termos de transmissão do próprio património público para o sector privado, mas, ainda aí, se a transmissão for parcial, pode não haver privatização de gestão”. Esse conceito amplo pode incluir a privati-zação de empresas e estabelecimentos públicos da privatização dos serviços do Estado assistencial.

O autor citado entende que o conceito de privatização abrange todas as modalidades de passagem de empresas, participações sociais, prédios rústicos e urbanos ou outros bens do sector público para o sector privado da economia, quer se trate de bens originariamente públicos, quer de bens que, tendo sido privados, foram entretanto adquiridos por entes públicos.”11.

Nuno Sá Gomes refere, no quadro do conceito amplo de privatização, diversas modalidades de privatização, das quais destacamos, a venda total de empresa, venda por sectores, venda de uma proporção de acções, venda à força de trabalho, doação ao público, doação aos trabalhadores, cobrança de serviços públicos, desregulação, promoção de instituições privadas alter-

9 Nacionalizações e privatizações, Lisboa, 1988, p. 342.10 Nacionalizações e privatizações, cit., p. 342.11 Nuno Sá Gomes, Nacionalizações…, cit., p. 353.

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nativas, remoção de monopólios públicos, fomento da utilização de serviços privados, distribuição de cheques para pagamento, desinvestimento, extinção de empresas públicas, direito de preferência privados12.

Também admitindo a existência de um conceito amplo de privatização incluindo privatização de normas, de tarefas e do direito utilizado (e não considerando apenas, portanto, a privatização do capital social), é de cf. Luis Cabral de Moncada13.

Igualmente para J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira14 “o termo pri- vatização é hoje um termo polissémico na literatura jurídica e económica, designando um variado conjunto de políticas públicas (transferência de propriedade de empresas ou de serviços públicos para entidades privadas ou concessão da responsabilidade da gestão em entidades privadas, aber-tura à iniciativa privada de sectores ou serviços (…) explorados pelo sector público em regime de exclusivo, contratação a entidades privadas de serviços anteriormente assegurados pelos próprios serviços públicos, “desrulamentação” do controlo da produção ou distribuição de um bem ou serviço, submissão dos serviços ou empresas públicas e regras de natu-reza privada.”

Contudo, optam também os autores pelo conceito de privatização em sentido restrito, ao dizerem: “contudo, não restam dúvidas que a Consti-tuição (neste artigo e também nos artigos 168.º, n.º 1, e 296.º) os termos “privatização” e “reprivatização” são utilizados nos primeiros dois sentidos acima referidos (que são também os mais frequentes), ou seja, como transferência total ou parcial da propriedade e/ou da gestão de empresas e/ou bens para entidades privadas.”

Adoptando também um conceito de restrito de privatização é de cf. a posição de Maria Eduarda Azevedo15 ao definir essa figura como: “[a] privatização em sentido próprio, por sua vez, corresponde à transferência para o sector privado da propriedade e/ou gestão da unidade de produção, de bens produtivos ou de recursos naturais anteriormente na titularidade e/ou gestão do sector público ou outros sectores de produção não privados”, definição que adopta na esteira de António L. de Sousa Franco16.

12 Nuno Sá Gomes, Nacionalizações…, cit., p. 348.13 Direito Económico, Coimbra, 2012, p. 210 e ss. Sobre as causas da reprivatização,

cf. p. 213 e ss.14 Constituição da República Portuguesa Anotada, edição de 1985, p. 415 e ss..15 Temas de Direito Económico, cit., p. 135.16 As Privatizações e o Sector Empresarial do Estado, Separata das Lições de Finanças

Públicas II, Lisboa, 1991, p. 6 e ss..

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Também António Carlos dos Santos, Maria Eduarda Gonçalves e Maria Manuel Leitão Marques17 distinguem um conceito amplo de privatização de um conceito restrito. No conceito restrito englobam apenas a transferência total ou parcial da propriedade da empresa e/ou bens públicos para entidades privadas. Já no conceito amplo abrangem a concessão a entidades privadas, mediante contrato, de gestão de empresas públicas ou de serviços públicos; a contratação de serviços por entidades públicas e entidades privadas (contrac-ting out, outsourcing); a abertura à iniciativa privada de sector até então explorado pelo sector público em regime de monopólio (como ocorreu na televisão, energia, telecomunicações); ou ainda mera desregulação.

De igual modo, e em linha com as posições anteriormente referidas, orientamo-nos para proceder à distinção entre conceito amplo e restrito de privatização, sendo o relevante para este estudo o conceito restrito. Ponto duvidoso é o da integração no conceito restrito da transferência da gestão ou a exclusão dessa transferência do conceito de privatização como fazem António Carlos dos Santos, Maria Eduarda Gonçalves e Maria Manuel Leitão Marques. Trata-se em regra de privatização, podendo, contudo, e como se verá infra, ocorrer casos excepcionais onde tal não ocorra, sempre que o controle efectivo da empresa ou bem de produção permaneça no ente público.

Distingue ainda a doutrina entre privatização imperfeita ou formal e verdadeira privatização.

Entende Paulo Otero que uma verdadeira privatização envolve a transferência do meio de produção em causa para o sector privado, o que significa que a mera privatização de uma parte minoritária não constitui privatização (vide nesse sentido o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 108/88, de 25 de Junho de 1988, onde se considerou ainda à luz do prin-cípio da irreversibilidade das nacionalizações que uma privatização desse teor não era incompatível com a Constituição), como também não constitui privatização a simples transferência do capital de entidades públicas para entidades privadas cuja titularidade ou maioria do capital social pertence ainda a empresas públicas18.

No caso de transferência das empresas e bens para outro ente do sector público ou em caso de abertura parcial do capital social, fala o autor em “privatização imperfeita”19.

17 Direito Económico, cit., pp. 159 e ss..18 Privatizações, Reprivatizações e Transferências de Participações Sociais no Inte-

rior do Sector Público, Coimbra, 1999, p. 15 e ss.19 Privatizações…, cit., p. 21.

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Nuno Sá Gomes refere também o conceito de privatização formal, que a seu ver surge quando o Estado se serve apenas das “formas legais ou finan-ceiras privadas para gerir um serviço público (…) assim, vg, haverá, em sentido formal, privatização quando o Estado se serve apenas das “formas legais ou financeiras privadas para gerir um serviço público, mas conserva o poder de disposição real – legal e económico – sobre a função”20.

É distinção de adoptar e que grande relevância em sede de limites constitucionais e legais às operação de privatização.

Distingue-se ainda a privatização da reprivatização dado que, segundo Paulo Otero, a reprivatização é relativa “à parte de capital que já em momento anterior pertenceu a entidades privadas e que à data se encontra na esfera jurídica pública.”21.

Pode acontecer que se verifiquem conjugadamente os dois fenómenos: privatização da parte do capital que nunca pertenceu a entidades privadas e que resultou de aumentos de capital e reprivatização da parcela de capital social que havia pertencido a entidades privadas, embora toda a operação fique nesse caso sujeita ao regime das reprivatizações22.

Note-se que integrados no conceito restrito de privatização podem estar ainda figuras de que se dará nota infra, como sejam a revogação do acto de nacionalização e, em certos casos, a extinção da empresa nacionalizada (pelo menos quando esta tenha sido nacionalizada por razões económico-finan-ceiras e seja inviável) ou a alienação de activos das empresas nacionalizadas (quando não tenham sido directamente nacionalizados e essa alienação não constitua fraude à lei). Contudo, noutros casos algumas dessas figuras cons-tituem figuras afins da privatização, por estarem sujeitas a regime diverso e não ao regime das privatizações.

Importa ainda referir que o conceito de privatização contrapõe-se ao de nacionalização23.

O conceito de nacionalização ganhou grande importância à luz do princípio que vigorou na nossa Constituição da irreversibilidade das nacio-nalizações.

20 Nuno Sá Gomes, Nacionalizações…, cit., p. 349.21 Privatizações…, cit., p. 24.22 Privatizações…, cit., p. 25.23 Sobre a história das nacionalizações, cf. Carlos Ferreira de Almeida, Direito Econó-

mico, I Parte, 1979, p. 53 e ss., mencionando a Constituição Mexicana de 1917 e a Revolução Soviética, bem como as vagas de nacionalização em França em 1936 e 1937 e na Itália fascista de 1933. Sobre o carácter coactivo da nacionalização cf. Mota Pinto, Direito Público da Economia (polic.), Coimbra, 1982, pp. 164-165.

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Nuno Sá Gomes considerava que a irreversibilidade das nacionaliza-ções dirige-se apenas às nacionalizações em sentido técnico24, sendo certo que a Lei vedava a alienação ou oneração das empresas nacionalizadas. O projecto do PPD propunha apenas a irreversibilidade das nacionalizações das instituições financeiras, das indústrias de base e dos serviços colectivos, enquanto alguns autores achavam que o princípio era antidemocrático porque tinha sido decretado por órgãos revolucionários, sem legitimidade demo-crática, enquanto outros autores consideravam tal regra mero afloramento da subordinação do poder económico ao poder político25.

Marcelo Rebelo de Sousa26 enquadra a nacionalização num conceito amplo de expropriação27 ao afirmar “[e]ntão, o que distinguirá a naciona-lização da expropriação? Resulta de quanto ficou resumido que a nacio-nalização se não distingue, em traços essenciais, da expropriação; é uma espécie de expropriação.

E o que normalmente diferencia a nacionalização é o ser praticada sob forma legislativa e não por mero acto administrativo desprovido de tal forma legislativa.(…)

Esta graduação de forma é que tem levado autores nacionais a identi-ficarem nacionalização com acto político e expropriação com acto econó-mico-social essencialmente pragmático.

Em rigor, existe uma opção política quer no acto legislativo de nacio-nalização, quer no acto legislativo que permite ou impõe mesmo a expro-priação. Foi assim que a Reforma Agrária recorrer, indiferentemente, em termos de conteúdo e de finalidades políticas, quer à nacionalização quer à expropriação. E não se diga que tal opção política existe na expropriação por utilidade social e não na expropriação por utilidade pública. Basta pensar os exemplos de expropriação por utilidade pública na história do Direito Português tendo subjacentes aquele tipo de opções (v.g. parcela-mento e emparcelamento).

Quando muito, poderá dizer-se que na nacionalização a decisão polí-tica é imediata nos seus efeitos e daí a forma legislativa escolhia, ao passo

24 Nuno Sá Gomes, Nacionalizações…, cit., p. 353.25 J. J. Gomes Canotilho, Constituição…, vol. I, p. 40826 Privatizações e Constituição, Lisboa, 1991, p. 53.27 Sobre a unidade do conceito de expropriação e da indemnização pelo sacrifício/

/responsabilidade por actos lícitos, vide, Pedro Machete, Anotação ao artigo 16.º, Indemni-zação pelo Sacrifício, in AAVV, Comentário ao Regime de Responsabilidade Civil Extra-contratual do Estado e demais Entidades Públicas, Lisboa, 2013, pp. 435 e ss.

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que ele é mediata bna sua eficácia quando a lei de expropriação carece de execução mediante actos expropriatórios (…).

Em qualquer caso, com ou sem imediatividade de opção política subja-cente, na nacionalização como expropriação “stricto sensu” deparamos com uma forma de transferência forcada – porque prescindindo da vontade do sujeito passivo sacrificado – de bens da esfera jurídica para a entidade e entidades inseridas na Administração Pública.

Esta natureza ablativa do acto de nacionalização e de expropriação não é substancialmente alterada pelo facto de revestir forma legislativa ou carecer dela.

Noutros termos, o que se pergunta então é se a nacionalização ou expropriação com forma legislativa será ou não, ela própria, um acto substancialmente administrativo como o é a expropriação desprovida de tal forma.

Que não é um acto político “stricto sensu” resulta da forma legal que, a nosso ver, destrinça as duas funções do Estado. Pode ter, e tem, subja-centes juízos políticos, que isso não basta para lhe conferir natureza de acto político “strcito sensu”

Que é acto legislativo é para nós evidente, já que a função legislativa é caracterizada no Direito Constitucional Português actual na base de contornos formais e não substanciais.”.

Posição diversa é adoptada por Nuno Sá Gomes28, quando considera que “quer a nacionalização, quer a expropriação, estão sujeitas a dois prin-cípios que lhe são comuns, ainda que com conteúdos diferentes, em cada caso: o princípio da legalidade e o princípio da indemnização.”

Mas o referido autor continua afirmando que “a nacionalização não se confunde com a expropriação, em qualquer destas modalidades, porquanto:

a) A nacionalização é um acto de soberania, é um acto político-legis-lativo, que reveste sempre a forma de lei ordinária, enquanto a expropriação é, em princípio, um acto administrativo que deve, porém, obedecer à lei que a autoriza. No entanto, nos termos do artigo 9.º do Código das Expropriações, a “declaração de utili-dade pública da expropriação pode resultar de lei, decreto-lei, decreto regulamentar ou acto administrativo;

28 Nacionalizações e Privatizações, Lisboa, 1988, p. 79.

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b) O acto de nacionalização não pode ser sindicado ou impugnado judicialmente, a não ser com fundamento em inconstitucionali-dade, enquanto o acto administrativo de expropriação pode ser anulado por ilegalidade, por decisão do tribunal competente (…);

c) a nacionalização tem fundamento político-ideológico ou, pelo menos, político-económico; enquanto a expropriação tem funda-mento pragmático, inserindo-se no exercício normal da função administrativa, ainda que revista forma legislativa;

d) A nacionalização tem por finalidade intervir nas estruturas econó-micas e alterar o sentido da gestão do bem nacionalizado, no sentido público e não já privado, enquanto a expropriação não altera o sentido da gestão do bem transmitido (…);

e) A expropriação é uma providência ordinária da Administração Pública, enquanto a nacionalização é uma providência extraor-dinária de natureza política;

f) A lei que leva a efeito a nacionalização produz efeitos jurídicos automáticos enquanto a lei que autoriza a expropriação supõe um processo de expropriação posterior.”

Também no sentido da distinção entre expropriação e estatização, socialização e nacionalização se orienta Fernando Alves Correia29, ao dizer: “[c]om a “expropriação” pretende-se que determinado bem seja afecto a um fim específico de utilidade geral ou de interesse público (…), facto que se traduz numa modificação de situações jurídicas singulares, sem que seja modificado o sistema de direito privado relativo ao domínio dos bens. Com a “socialização” pretende-se criar novas formas de propriedade (proprie-dade social, colectiva) no que respeita a determinados bens ou empresas, facto que origina uma transformação do próprio instituto da propriedade. O termo nacionalização significa algo muito próprio de “socialização, pretendendo-se que determinados bens passem a constituir propriedade de toda a nação, de todo um povo.”

29 As garantias do particular na expropriação por utilidade pública, Coimbra, 1982, p. 55. O autor dá-nos nota de que o termo socialização surgiu no artigo 156.º da Constituição de Weimar, e é acolhido em Espanha na Constituição de 9 de Dezembro de 1931, no art. 44.ç, n.º 3 e em França, na Constituição de 28 de Setembro de 1946, no preâmbulo, al. 9., bem como na actual Constituição alemã.

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Também Oliveira Ascenção sustenta a autonomia do conceito30 em face do conceito de expropriação, destacando o seu cariz legislativo e político31.

Posição intermédia é a de António Carlos dos Santos, Maria Eduarda Gonçalves e Maria Manuel Leitão Marques32 quando afirmam: “[j]uridica-mente, a nacionalização constitui uma espécie de expropriação, traduzindo--se na transferência forçada, por acto de autoridade, de uma unidade econó-mica (exploração, estabelecimento, empresa) da propriedade privada para a propriedade pública (do Estado ou de outras pessoas colectivas públicas), embora admita a distinção com base no regime e na forma33.

Oposto à expropriação, mas ainda assim diverso da privatização, é a reversão. Dá-se reversão quando, por efeito da extinção de certos orga-nismos ou pessoas colectivas, o seu património reverte para o Estado. Foi o que sucedeu após o 25 de Abril de 1974 com a extinção dos organismos corporativos. E foi, igualmente, o que sucedeu com a extinção da Mocidade Portuguesa e Mocidade Portuguesa Feminina

No que toca ao regime da expropriação, à Constituição, na versão inicial, previa no artigo 82.º que “n.º 1 [a] lei determinará os meios e as formas de intervenção e de nacionalização e socialização dos meios de produção, bem como os critérios de fixação de indemnizações.

2. A lei pode determinar que as expropriações de latifundiários e de grandes proprietários e empresários ou accionistas não dêem lugar a qual-quer indemnização.”

Eliminado o n.º 2 pela revisão constitucional de 82, a revisão constitu-cional de 1989 elimina a expressão nacionalização e socialização, passando a referir-se a “apropriação colectiva”.

A revisão constitucional de 1997 estabilizou a actual redacção do preceito, e o actual artigo 83.º dispõe que “[a] lei determina os meios e as formas de intervenção e de apropriação pública dos meios de produção, bem como os critérios de fixação da correspondente indemnização.”

30 A Nacionalização das Participações Sociais da Casa Bancária Manuel Mendes Godinho e Filhos, in Estudos sobre Expropriações e Nacionalizações, Lisboa, s.d., p. 151 e ss.

31 Ainda neste sentido Carlos Ferreira de Almeida, Direito Económico, Lições, 1979, p. 72. Oliveira Ascensão distingue também a nacionalização de sectores, de participações sociais, de coisas determinadas, de um património e com novidade a criação de uma entidade nova que sucede à entidade privada (dá como exemplo o caso da Sofamar, Transtejo e Socarmar). No caso da nacionalização de sociedades entende tratar-se de aquisição da propriedade de forma derivada e não originária.

32 Ob. cit., p. 149.33 Ob. cit., p. 150.

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A expressão nacionalização34 subsistiu, contudo, a respeito da reserva de competência legislativa da Assembleia da República. O artigo 167.º, al. q), na versão original, previa que eram da reserva de competência legis-lativa da assembleia “[m]eios e formas de intervenção e de nacionalização e socialização dos meios de produção, bem como os critérios de fixação das indemnizações.”

O artigo 165.º, n.º 1, al. f), actual, tem como redacção “meios e formas de intervenção, expropriação, nacionalização e privatização dos meios de produção e solos por motivo de interesse público, bem como critérios de fixação, naqueles casos, de indemnizações.”

O regime das nacionalizações, ou melhor o regime jurídico de apro-priação pública por via de nacionalização, veio a ser aprovado em anexo à Lei n.º 62-A/2008, de 11 de Novembro, que nacionalizou todas as acções representativas do capital social do Banco Português de Negócios, SA.

Com efeito, e como se verá ulteriormente, o BPN foi nacionalizado em 2008, por razões que se prenderam com o volume de perdas acumuladas, a ausência de liquidez e a iminência de uma situação de ruptura de paga-mentos que ameaçavam os interesses dos depositantes e a estabilidade do sistema financeiro, através da nacionalização da totalidade das respectivas participações sociais pela Lei n.º 62-A/2008, de 11 de Novembro, sendo que a mesma Lei e, como se disse, aprovou, em Anexo, o “Regime Jurídico de Apropriação Pública por Via de Nacionalização” (Regime), dando assim cumprimento ao previsto no art.º 83.º da CRP, que remetia para a lei ordi-nária a determinação dos “meios e (d)as formas de intervenção e de apro-priação pública dos meios de produção, bem como os critérios de fixação da correspondente indemnização”.

O artigo 1.º do diploma citado determinou que “é aprovado em anexo à presente lei, da qual faz parte integrante, o regime jurídico de apropriação colectiva por via de nacionalização, em execução do disposto no artigo 83.º da Constituição.”

Por seu turno, o artigo 1.º do anexo determina que “[p]odem ser objecto de apropriação pública, por via de nacionalização, no todo ou em parte, participações sociais de pessoas colectivas privadas, quando, por motivos

34 Sobre o conceito de nacionalização em perspectiva histórica e a problemática das indemnizações, e em especial a nacionalização do BPN, cf. António Menezes Cordeiro, A nacionalização do BPN, in Revista de Direito das Sociedades, ano I, 2009, 1, p. 57 e ss., em especial, p. 73 e ss.

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excepcionais e especialmente fundamentados, tal se revele necessário para salvaguardar o interesse público.”

O artigo 2.º do anexo estabelece a forma da nacionalização, dispondo que os actos de apropriação pública por via de nacionalização revestem a forma de decreto-lei, que deve evidenciar o reconhecimento do interesse público subjacente ao acto de nacionalização, com a observância dos prin-cípios da proporcionalidade, da igualdade e da concorrência.

Nos termos do artigo 3.º, n.º 1, do decreto-lei referido devem constar “todos os elementos e as condições das operações a realizar e, em caso de nacionalização parcial, a identificação das participações sociais a naciona-lizar.” Prevê-se no n.º 2 que no caso de as participações sociais pertencerem a pessoa colectiva admitida a negociação em mercados regulamentados deve a entidade gestora do respectivo mercado proceder à suspensão da nego-ciação da totalidade das acções da pessoa colectiva, a partir do momento do anúncio público da nacionalização, por forma a acautelar os interesses dos investidores e o regular funcionamento do mercado.

Para efeitos de nacionalização, o Governo promove uma avaliação por duas entidades independentes, designadas por despacho do membro responsável pela área das finanças, devendo esta estar concluída no prazo de 30 dias, prorrogável por igual período devidamente justificado pelas entidades avaliadoras.

2. ENQUADRAMENTO CONSTITUCIONAL E LIMITES ÀS PRIVA-TIZAÇÕES

2.1. Limites constitucionais – o caso do serViço púbLico de radiodiFusão

A possibilidade de privatização está sujeita quanto a certos sectores a limites constantes da Constituição e da Lei de Delimitação de Sectores. Para além desses limites expressos, não são também privatizáveis as funções de soberania, militar, penal e judicial35.

35 Sobre os limites à privatização de áreas do Estado, cf. acórdão do Tribunal Cons-titucional sobre “reserva de função pública” quanto à alteração do regime dos vínculos e carreiras na função pública, em que o Tribunal Constitucional apresentou grande flexibili-dade, considerando que a alteração não pôs em causa as funções do Estado, Ac. de 154/2010, proferido no processo 177/2009.

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Direito Administrativo das Privatizações 281

Um dos principais limites constitucionais à reprivatização reporta-se à actividade televisiva no que toca ao serviço público de televisão, actual- mente cometido à Rádio e Televisão de Portugal, S.A. (adiante “RTP”).

A RTP é responsável pela prestação dos serviços públicos de rádio e de televisão.

Até 2007 (e, aproximadamente, desde 2003) estes serviços estavam dispersos por várias empresas pertencentes ao sector público, detidas por uma holding – a Rádio e Televisão de Portugal, SGPS, S.A. – que tinha como objecto a gestão de participações sociais noutras sociedades com capital total ou parcialmente público que desenvolvessem actividade nos domínios da comunicação social, do multimédia, da comunicação online, e da produção de conteúdos, sendo as sociedades geridas a Radiotelevisão Portuguesa – Serviço Público e Televisão, S.A.; a RTP – Meios de Produção, S.A.; e a Radiodifusão Portuguesa, S.A..

Contudo, em 2007 foi aprovada a Lei 8/2007 de 14 de Fevereiro que procedeu à reestruturação da concessionária do serviço público de rádio e televisão e que alterou o objecto social da holding do grupo – Rádio e Tele-visão de Portugal SGPS, S.A. – que passou a denominar-se “Rádio e Tele-visão de Portugal S.A.”e que incorporou na RTP as sociedades até então detidas pela Rádio e Televisão de Portugal SGPS, S.A., sociedade de capi-tais exclusivamente públicos, que assumiu a titularidade das concessões dos serviços públicos de rádio e televisão e a exploração directa dos respectivos serviços de programas, embora as marcas RDP e RTP tenham sido mantidas.

Quanto à possibilidade de se confiar a gestão da RTP a entes privados, mediante uma concessão ou uma subconcessão, dado que a privatização é constitucionalmente vedada, suscitam-se diversas questões.

Com efeito, a entrega da gestão da totalidade do serviço público de televisão actualmente gerido pela RTP a privados poderia passar por um modelo, que pode ser efectivado em abstracto por diversas modalidades: por um resgate total ou parcial da concessão, com posterior concessão a outra entidade ou mediante uma subconcessão, também total ou parcial da actividade, ou ainda pelas modalidades de concessão de exploração, de contrato de gestão do serviço público ou de contrato de gestão interessada do serviço público36.

36 No modelo do contrato de gestão do serviço público, o privado exerce a sua acti-vidade por sua conta e risco, e parte substancial da remuneração provém da entidade pública. Difere da concessão de serviço público e da cessão de exploração porque no contrato de gestão a entidade gestora detém menos autonomia do que nas outras figuras.

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Se ponto de vista do Direito Administrativo todas as soluções são admissíveis, contudo, existem como se adiantou limites de Direito Consti-tucional, específicos relativamente ao serviço de televisão, que importa ter em conta para se verificar se há ou não possibilidade de entregar a gestão do serviço público de rádio e televisão a uma entidade privada.

Para tal, é necessário saber se existe ou não uma coincidência neces-sária entre o serviço público de rádio e televisão e o sector público da comu-nicação social.

Note-se que nos termos do artigo 38.º da Constituição:

● n.º 5: “ O Estado assegura a existência e o funcionamento de um serviço público de rádio e de televisão”.

● n.º 6: “A estrutura e o funcionamento dos meios de comunicação social do sector público devem salvaguardar a sua independência perante o Governo, a Administração e os demais poderes públicos,

A concessão da exploração foi tradicionalmente concebida como uma forma de repri-vatização (lato sensu) de infra-estruturas, redes de saneamento básico, caminhos-de-ferro, distribuição de água e electricidade, serviços de saúde, produção e distribuição de gás; trans-portes públicos, telecomunicações. A mesma técnica foi também usada para transferir para a exploração privada empresas tradicionalmente públicas, em sectores considerados estra-tégicos pelo poder político, a saber indústria naval, petroquímica de base, indústria petrolí-fera, tudo empresas insusceptíveis de alienação ou que exercem a actividade em regime de monopólio. Com efeito, a concessão de exploração através de Leases and Management Contract tem sido utilizada em países com diferentes graus de desenvolvimento, assim em França, Chile, Reino Unido e Sri Lanka, cf. Sérgio Gonçalves do Cabo, A Concessão de Exploração de Empresas Públicas, Lisboa, 1992, p. 124.

Na cessão de exploração o cedente transfere temporariamente o estabelecimento, tendo o direito de receber a renda, sendo que o risco é transferido, portanto, para uma entidade privada que passa a assumir a totalidade dos direitos e obrigações que integram o estabele-cimento. Desta forma, a responsabilidade última pelo funcionamento do serviço mantém-se na esfera da entidade pública contratante, que dispõe de poderes de intervenção e fiscali-zação. Quando a cessão de exploração incide sobre um serviço público é qualificada como concessão de exploração.

No que toca à subconcessão, muito embora a possibilidade de subcontratação, desde que autorizada pela contra-parte, corresponda a princípio geral de direito, o facto de a auto-rização do concedente neste caso ter de assumir a mesma forma de vinculação à concessão implica, pelo menos no caso da RTP, que um diploma legislativo (decreto-lei) a preveja ou que desde logo a caracterize.

Na subconcessão, a totalidade ou parte dos direitos e obrigações do concessionário são transferidos para o privado, que fica sujeito aos poderes de intervenção da concessionária nas suas vestes de subconcedente.

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● bem como assegurar a possibilidade de expressão e confronto das diversas correntes de opinião.”

Por seu turno, nos termos do artigo 82.ºda Constituição:

● n.º 2: “O sector público é constituído pelos meios de produção cujas propriedades e gestão pertencem ao Estado ou a outras entidades públicas”.

Da leitura do n.º 5 do artigo 38.º da Constituição retira-se a imposição constitucional de existência e funcionamento de um serviço público de rádio e televisão, a qual deverá ser assegurada pelo Estado. Já o n.º 6 da mesma disposição faz referência aos meios de comunicação social do sector público, cuja estrutura e funcionamento devem salvaguardar a sua independência. Parece, portanto, que, no referido n.º 6, o legislador tomou como certa a integração dos meios de comunicação social no sector público, determinando apenas a imposição de salvaguarda da sua independência.

Daqui poderia em abstracto retirar-se que se o serviço público de rádio e televisão é assegurado pelo Estado, e integra o sector público; e se o sector público (nos termos do artigo 82.º da Constituição) é constituído pelos meios de produção cujas propriedade e gestão pertencem ao Estado; então, o serviço público de rádio e televisão terá necessariamente de ser da propriedade e gestão do Estado (ou seja, não se admitindo privatização ou concessão da gestão da empresa pública RTP a entidades privadas).

A ser assim, e por forma a se respeitar este limite constitucional, a concessão a privados da actividade de televisão não poderia pôr em causa a existência de uma empresa pública dedicada especificamente à prossecução do serviço público de televisão. Nesse quadro, só poderia ser confiado aos privados, mediante concessão após resgate parcial da concessão da RTP ou mediante subconcessão, parte do serviço de televisão, eventualmente um ou mais canais, continuando a empresa pública RTP encarregue da gestão dos outros canais.

Contudo, doutrina relevante que considera que a entrega da gestão da RTP a uma entidade privada mediante concessão (ou naturalmente mediante subconcessão) não consubstancia uma operação de privatização, posição que é protagonizada por Paulo Otero e por Pedro Gonçalves37-38.

37 Paulo Otero afirma, in Privatizações, Reprivatizações e Transferências de Parti-cipações Sociais, oimbra, 1999, p. 14, que, “à luz do artigo 82.º, n.º 3 [da CRP], a simples

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privatização da exploração ou gestão de um meio de produção de titularidade pública, apesar de comportar a sua inclusão no sector privado, mais propriamente num sector privado sui generis ou sector privado publicizado, não traduz, por isso mesmo, o cerne de um real e verdadeiro fenómeno de privatização.”

Pedro Gonçalves, Entidades Privadas Com Poderes Públicos, Coimbra, 2008, considera que, “numa perspectiva de responsabilidades partilhadas e de desestadualização da prossecução dos interesses públicos”, o conceito de sector público deveria ser “suficiente-mente aberto para abarcar todos os meios de produção que estivessem primacialmente afectos à prossecução do interesse público”. Assim, e seguindo esta lógica, “integrar-se-iam no sector público empresas com uma gestão indirecta do serviço público através de concessão a entidades privadas”, uma vez que “a gestão indirecta não é incompatível com os fins a que deve estar afectado o sector público da propriedade dos meios de produção” (Parecer da Comissão Constitucional n.º 15/77). Nesse sentido Jorge Miranda e Rui Medeiros, A Cons-tituição Portuguesa Anotada, Tomo I. A interpretação pelos mesmos autores desse Parecer da Comissão Constitucional, in Constituição Portuguesa Anotada, é no sentido de que a gestão pública não pressuporia necessariamente a propriedade pública e poderia ser indirecta ou, inclusivamente, abarcar situações em que existisse unicamente um controlo público da gestão (o que sempre aconteceria no presente caso, dado que os gestores estariam sujeitos ao Estatuto do Gestor Público, e, consequentemente, às orientações estratégicas de gestão emanados do Conselho de Ministros, nos termos do referido estatuto e Decreto-Lei n.º 133/2013, de 3 de Outubro). Exigir-se-ia apenas que a empresa se definisse por uma espe-cífica relação com o poder público e que as decisões fundamentais seguissem o interesse público (remissão dos autores para Sousa Franco, Finanças Públicas e Direito Financeiro, Volume I.

38 Ainda segundo o mesmo Parecer, a Comissão concluiu em conformidade que as empresas nacionalizadas que viessem a ser entregues em simples gestão e exploração a enti-dades privadas não revertiam ao sector privado, antes se mantinham no sector público.

Jorge Miranda e Rui Medeiros também sustentam uma interpretação do artigo 82.º, n.º 2 da CRP, de acordo com a qual a referência constitucional aos meios de produção cujas propriedades e gestão pertencem ao Estado ou a outras entidades públicas compreendem os meios de produção cuja propriedade e gestão pertencem apenas indirectamente ao Estado ou a outras pessoas colectivas de direito público; e que, desde que o Estado ou outras enti-dades públicas estaduais exerçam sobre aquela empresa influência dominante, mesmo que a gestão da empresa pública seja feita através de empresa privada, aquela será considerada empresa pública. Nesse caso, seria admissível a criação de uma parceria institucionalizada para a gestão da RTP, com maioria, contudo, de capital público. Diga-se, no entanto, que a posição também não é consensual, e portanto, mesmo essa modalidade não elimina total-mente, embora mitigue, o risco de constitucionalidade, porque não tem sido totalmente equiparada a situação de detenção da totalidade do capital social à situação de detenção da maioria do capital social. São, aliás, os próprios Jorge Miranda e Rui Medeiros que afirmam que o confronto entre os n.os 2 e 3 do artigo 82.º não dá muito espaço para admitir a recon-dução ao sector público de meios de produção que não apresentem a propriedade e a gestão públicas (dois elementos essenciais que, por imperativo constitucional, devem estar presentes).

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Outra linha doutrinal admite a privatização da RTP, considerando que o serviço público de rádio e televisão e sector público de comunicação social não têm de coincidir. Neste sentido, João Tiago Silveira, José de Melo Alexandrino39 e Jorge Miranda e Rui Medeiros40, embora exista, contudo, doutrina divergente41. 38

38 Acresce, a este respeito, o Acórdão n.º 24/98 do Tribunal Constitucional que explica que no caso de empresas de capitais integralmente públicos, a dependência do Estado-Admi-nistração é total, ainda que, tal como sucede com a RTP, a forma jurídica seja a societária.

De salientar ainda o acórdão n.º 152/93 do Tribunal Constitucional onde se pode ler que quando o Estado é directa ou indirectamente o único titular do capital social de uma empresa pública, não se aplica o direito fundamental à iniciativa económica privada ou o direito de propriedade privada.

39 Vide José de Melo Alexandrino, Estatuto Constitucional da Actividade da Tele-visão, Coimbra, 1998, pp. 206 a 209.

Este autor recorda que existem sistemas constitucionais onde não há um sector público de televisão em sentido estrito (como é o caso da Suíça, da Suécia ou do Luxemburgo), e que, “na prática, a presença do sector público tem sido maior obstáculo à independência e ao pluralismo, do que a inversa”, i.e., do que a presença do sector privado. Por outro lado, apesar de reconhecer que o Estado está constitucionalmente vinculado a garantir a existência e o funcionamento de um serviço público, considera que a CRP não inibe o legislador de, se o entender, “concessionar o serviço público a uma ou a várias entidades do sector público, privado ou cooperativo”, não vendo razões para, pelo menos algum segmento do serviço público, não ser atribuído, “preferencialmente, ao sector cooperativo e social” José de Melo Alexandrino explica que se admite ao legislador “margem de conformação suficiente no sentido de poder optar: i) por uma estrutura policêntrica (à semelhança das soluções surgidas nos EUA ou, de formas variáveis, vigentes em alguns países europeus); ii) por uma estrutura complexa, plural ou mista (com uma ou várias entidades concessionárias e com sistemas de autorização ou associação a outras entidades, de alguma forma, federadas); iii) por um modelo mais centralizado” – cf. também o Parecer n.º 29/79 da Comissão Constitucional que, segundo o autor, consagra este amplo direito de opção. Por último, o autor sublinha que o mais impor-tante não é o sector de propriedade em que se integre o serviço público (cf. artigo 82.º da Constituição), mas sim “a qualidade no funcionamento, as garantias, as exigências e os controlos instituídos, de modo a que consiga realizar os fins e as funções que constitucio-nalmente lhe cabem”. Por isso, Melo Alexandrino admite a possibilidade de concessão do serviço público a entidades privadas, ressalvando sempre a responsabilidade do Estado pela garantia da existência e funcionamento de um serviço público.

Por último, também João Tiago Silveira, A concessão dos canais de televisão, rela-tório [inédito], FDL, Lisboa, 1995, pp. 18 defende que “a CRP não obsta a que um particular possa ser concessionário do serviço público”.

40 Com efeito, pode ler-se na anotação de Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra, 2010, ao artigo 38.º que “serviço público de rádio e de televisão (n.º 5) e sector público de comunicação social (n.º 6) não têm de coincidir a priori.” Dito de outra forma, retira-se da anotação ao artigo 38.º da CRP que o serviço público

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de rádio e televisão não terá, necessariamente, de ser da responsabilidade do sector público. Pelo contrário, os órgãos de comunicação privados poderão ficar incumbidos dessa missão, embora seja provável que necessitem de compensações do Estado para assegurar as obriga-ções do serviço público impostas pela CRP [cf. artigos 40.º; 9.º, alínea f); 73.º, n.º 3; 74.º, n.º 2, alínea i); 74.º, n.º 1 alínea h), e 78.º, n.º 2, alínea d)], e por outras leis avulsas (cf. v.g. a Lei da Televisão, e a Lei da Rádio que regulam o serviço público de televisão e rádio, respectivamente). Os autores consideram que a Constituição não estabelece qualquer relação directa entre o n.º 5 e o n.º 6 do artigo 38.º; na verdade, “a constituição apenas impõe ao Estado que vele pela existência e funcionamento de um serviço público, nada decretando quanto à propriedade ou à forma de estruturação e de gestão a encontrar”. E continuam, explicando que “o serviço público pode, é certo, integrar o sector público, mas tal, em boa medida, apenas decorre de razões históricas e culturais, não de razões estritamente jurídicas”. Contudo, aqueles autores lembram, igualmente, que seria difícil impor aos órgãos de comu-nicação privados, sem adequadas compensações, os encargos advenientes do serviço público.

41 Com efeito, Vital Moreira e Gomes Canotilho, Constituição da República Portu-guesa Anotada – Volume I, em anotação ao artigo 38.º da CRP, explicam que “a existência e o funcionamento de um serviço público de rádio e televisão (n.os 5 e 6) é uma garantia institucional da própria liberdade e pluralidade da comunicação social; isto é, do objectivo--constitucional de actividades de rádio e de televisão não submetidas a interesses económicos ou a orientações doutrinárias particulares”. Os autores são da opinião de que o serviço público de rádio e televisão constitui um exclusivo do Estado, e consideram que o regime constitu-cional do serviço público (i.e., o serviço público de rádio e televisão) é um serviço prestado por uma entidade pública (não privada ou cooperativa). Neste sentido, afirmam que é “incom-patível com a função constitucional do sector público da comunicação a figura da empresa mista com participação do capital privado, porquanto, tal participação, ainda que minoritária, não poderia deixar de ter influência, mesmo que secundária, na condução do serviço público.”

Ou seja, por um lado, ao assumir, sem mais, que a missão de serviço público de rádio e televisão é prosseguida pelo sector público da comunicação, parece que os autores fazem coincidir os dois conceitos. Isto significa que, no seu entender, os encargos advenientes do serviço público só poderão ser impostos a órgãos públicos de comunicação social. Por outro lado, invocando também a correcta e independente condução do serviço público, não consi-deram ser admissível a privatização das empresas públicas responsáveis por aquele serviço. Contudo, não rejeitam esta hipótese (ou, leia-se, outras formas da iniciativa privada neste serviço público) caso se consiga garantir que a parte privada não tem influência alguma na escolha dos responsáveis pelo serviço público. Ou seja, com o argumento de que a natureza da acção da entidade privada não é compatível com o serviço público de rádio e televisão, estes autores defendem que só uma entidade pública poderá desempenhar tal função.

No que toca à estrutura institucional das emissoras integrantes do serviço público de rádio e de televisão, e observando que a Constituição nada impõe quanto à solução a adoptar, Vital Moreira e Gomes Canotilho apontam no sentido da necessidade, como se referiu, da existência de um sector público que assegure o serviço público de radiotelevisão.

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A admitir-se a posição de Jorge Miranda e de Rui Medeiros, Melo Alexandrino e João Tiago Silveira, nenhum obstáculo existe à outorga da concessão da totalidade da actividade da RTP, após resgate à actual conces-sionária, ou mediante subconcessão a entidade privada.

A nosso ver, uma eventual privatização da RTP deverá passar por um resgate prévio parcial da concessão, seguido de posterior concessão ou por uma subconcessão apenas parcial.

2.2. Procedimento de eventual Privatização do serviço Público de radio-difusão

Como se adiantou, uma eventual privatização parcial da RTP deverá passar por uma concessão ou uma subconcessão, figuras que, em qualquer caso, consubstanciam uma parceria público-privada42.

Para que exista um verdadeira concessão ou subconcessão deve existir uma efectiva transferência de risco para o privado, caso contrário o contrato deve ser considerado contrato público de prestação de serviços, caso em que ficaria sujeito às Directivas 2004/17 e 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 31 de Março43 (e no futuro às novas Directivas que as substituíram e cujo prazo de transposição termina em 2016, e que abrangerão também as concessões44), e à realização de um procedimento concursal.

42 Constituem instrumentos de regulação jurídica das parcerias, o contrato de concessão de obras públicas, o contrato de fornecimento contínuo; o contrato de prestação de serviços; o contrato de gestão e o contrato de colaboração, entre outros.

Designam-se por parcerias público-privadas (“PPP”) as diversas modalidades de envolvimento de entidades privadas em projectos de investimento de interesse público, e em que exista uma assunção de risco por parte da entidade privada. A entrega da gestão da RTP a uma entidade privada constituirá uma PPP, desde que implique um encargo acumu-lado actualizado superior a 10 milhões de euros por parte da entidade pública contratante e um investimento global superior a 25 milhões de euros.

43 Respectivamente relativas à coordenação dos processos de adjudicação de contratos nos sectores da água, da energia, dos transportes e dos serviços postais e à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços.

44 Respectivamente directivas 2014/24/EU, 2014/25/EU e 2014/23 EU, de 2 de Feve-reiro de 2014.

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Todavia, mesmo na circunstância de não aplicação das directivas actuais por não se tratar de contrato público, e sem prejuízo da aplicação no futuro da nova Directiva, deve ter-se em consideração que o Direito da União Europeia exige desde já o respeito por certos princípios gerais e a adopção de procedimentos transparentes. Tal foi afirmado em diversos documentos da Comissão. No que toca às concessões tal consta da Comu-nicação Interpretativa da Comissão sobre as Concessões em Direito Comu-nitário (2000/C 121/02), p. 7 e ss.. na qual se refere a igualdade de trata-mento, isto é a proibição de discriminação em razão da nacionalidade, a transparência, que pode ser assegurada por qualquer meio adequado para garantir a publicidade, dando-se nota do objecto da concessão, da natureza do contrato e das prestações esperadas do concessionário; da proporcio-nalidade, evitando-se a exigência no processo de selecção de requisitos inadequados ou excessivos, e não se fixando uma duração do contrato que falseia a concorrência. Fixam-se ainda regras de reconhecimento mútuo (das especificações técnicas estrangeiras) e relativas aos direitos dos particulares interessados (direito à fundamentação dos actos e a recursos jurisdicionais). As mesmas regras foram reafirmadas no Livro Verde no ponto 30 quando afirma: “[a] Comissão considera que o regime que decorre das disposições pertinentes do Tratado pode ser resumido nas obrigações seguintes: esta-belecimento de regras aplicáveis à selecção do parceiro privado, publi-cidade adequada relativa à intenção de atribuir a concessão e às regras que presidem à selecção de molde a permitir o controlo da imparciali-dade ao longo de todo o processo, situação de concorrência efectiva dos operadores potencialmente interessados e/ou em condições de assegurar o cumprimento das tarefas em questão, respeito pelo princípio da igualdade de tratamento dos participantes ao longo de todo o processo, adjudicação com base em critérios objectivos e não discriminatórios.” Este tema é ainda desenvolvido na Comunicação Interpretativa da Comissão sobre o Direito Comunitário aplicável à adjudicação de contratos não abrangidos, ou apenas parcialmente, pelas directivas comunitárias relativas aos contratos públicos. (2006/C 179/02).

Estas e outras disposições similares vêm previstas na Directiva relativa à adjudicação de contratos de concessão, n.º 2014/23/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Fevereiro de 2014 cujo prazo de transpo-sição termina em 2016, nos termos dos artigos 30.º e ss..

No essencial, no caso de concessão da RTP, e caso seja feita por Decreto-Lei, o que tem a virtualidade de afastar as regras do CCP, ainda

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assim, ter-se-á de aferir se a adjudicação de um contrato apresenta interesse para os operadores económicos localizados noutros Estados-Membros, e se a conclusão for positiva, como parece ser o caso na situação da RTP, os princípios de Direito da União Europeia aplicam-se, exigindo-se a realização de pelo menos um concurso limitado por convite, sendo possível o ajuste directo em caso excepcionais45ou alternativamente um concurso limitado, mediante convite.

No caso da adjudicação de uma subconcessão ou na outorga de um contrato atípico de parceria público-privada por parte da RTP, coloca-se ainda o problema da eventual sujeição da RTP ao CCP e às Directivas da União, o que ocorreria caso fosse tratada como organismo de direito público. De acordo com a jurisprudência comunitária devem ser qualifi-cados organismos de direito publico, mesmo certas empresas que não se rejam por critérios de rendibilidade económico-financeira e por uma lógica de mercado. Devendo a RTP, em princípio, ser qualificada como organismo de direito publico, uma vez que é empresa reclassificada, então os referidos contratos de subconcessão ou de outra natureza a celebrar pela RTP ficam sujeitos, do ponto de vista do direito da União, aos princípios gerais plas-mados nas tais comunicações interpretativas. Nesse sentido (a qualificação como organismo de direito público), e com fundamento e em decorrência da classificação, concorreria o facto de a RTP ser cronicamente deficitária. No entanto, o facto de operar em concorrência poderia conduzir à assunção do entendimento contrário. Nesse caso, a subconcessão e/ou a eventual parceria a celebrar pela RTP ficaria isenta da aplicação dos princípios de Direito da União, podendo, portanto, recorrer ao ajuste directo nos termos a definir no decreto-lei que aprove a actividade.

Para efeitos da lei nacional é também relevante a eventual qualificação da RTP como organismo de direito publico para efeitos de adjudicação, tendo já sido qualificado como organismo de direito público os CTT. Se a RTP for qualificada como organismo de direito publico, os contratos que outorgue estariam sujeitos aos referidos procedimentos de acordo com a lei nacional para a outorga de concessões de serviço público (al. c) do n.º 1 do artigo 6.º do CCP).

45 Nos termos da Comunicação Interpretativa da Comissão sobre o Direito Comuni-tário aplicável à adjudicação de contratos não abrangidos, ou apenas parcialmente, pelas directivas comunitárias relativas aos contratos públicos. (2006/C 179/02), p. 3 e ss., admite--se o ajuste directo apenas nos casos em que as directivas o admitem, a saber: urgência imperiosa, protecção de exclusivos, ausência de outros concorrentes qualificados, etc.

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De qualquer forma, e em respeito pelos princípios de transparência e publicidade do processo de adjudicação, tal procedimento deveria ser precedido da realização de uma consulta informal ao mercado em termos a definir pelo Estado em eventual Decreto-Lei que enquadra a operação.

Para que a entrega de parte da actividade da RTP a uma entidade privada, seja mediante concessão, seja mediante subconcessão, se concretize seria necessário aprovar um diploma do qual constem os termos essenciais da operação, devendo ter-se em atenção alguns aspectos.

Por um lado, há que atender ao objecto da concessão da RTP, que tem de ser redelimitado por forma a permitir o resgate parcial da concessão (e subsequente concessão a privado) ou a subconcessão de parte da actividade da RTP.

Neste sentido, torna-se necessário alterar a Lei 8/200746. Só posterior-mente poderá ter lugar o resgate.

No caso da subconcessão, importa também ter em atenção a necessi-dade de alteração da duração do(s) contrato(s) de concessão.

Assim, a compatibilização da duração das concessões dos serviços públicos de rádio e televisão legalmente previstas (15 e 16 anos, respec-tivamente47) com o prazo de duração do(s) eventual(ais) contrato(s) de subconcessão, poderá implicar a alteração do prazo máximo previsto para

46 Aprova a lei que procede à reestruturação da concessionária do serviço público de rádio e televisão. Pode ler-se no n.º 6 do artigo 1.º que as disposições estatutárias relativas à composição, designação, inamovibilidade e competências do conselho de administração, às competências dos directores de programação e de informação, ao conselho de opinião, aos provedores do ouvinte e do telespectador e ao acompanhamento parlamentar da activi-dade da RTP apenas podem ser alteradas por lei.

47 Cf. cláusula 3.ª do Contrato de Concessão do serviço público de radiodifusão sonora, e cláusula 4.ª do Contrato de Concessão do serviço público de televisão. O contrato de concessão do serviço público de televisão foi celebrado entre o Estado Português e a RTP em 25 de Março de 2008, produzindo efeitos desde 1 de Janeiro de 2008. Sem prejuízo, refira-se que nos termos do disposto no contrato a concessão é celebrada pelo prazo de 16 anos, entendendo-se que teve início em 23 de Setembro de 2003.

Contudo, o contrato deve ser revisto em cada 4 anos, sem prejuízo das alterações que entretanto devam fazer-se, podendo, portanto, proceder-se à sua revisão, alterando-se o perí-metro dos direitos e obrigações.

Por seu turno, o contrato de concessão do serviço público de radiodifusão sonora foi celebrado entre o Estado Português e a Radiotelevisão Portuguesa S.A. (actualmente, RTP), em 30 de Junho de 1999. Nos termos do contrato de concessão, todos os direitos e obriga-ções impostos à concessionária integram a missão do serviço público de radiodifusão sonora, que é considerada indivisível.

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a concessão e a alteração dos contratos de concessão, ou a celebração de novos contratos de concessão. Saliente-se que a alteração ou celebração de novos contratos de concessão deverá ser precedida de parecer não vincu-lativo da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (“ERC”) e do Conselho de Opinião.

No caso da subconcessão, coloca-se o problema da remuneração da subconcessionária, que em princípio será feita em mercado, mas se implicar alguma parcela de prestação do serviço público que mereça compensação por parte da concessionária, poderá ter de admitir-se a redefinição do finan-ciamento da concessionária.

Para o efeito, poderá ser necessário rever as regras e critérios definidos no acordo complementar anexo ao contrato de concessão do serviço público de televisão para a fixação da indemnização compensatória, por forma a adequá-los às novas necessidades. Também neste caso, qualquer alteração deverá ser precedida de parecer não vinculativo da ERC e do Conselho de Opinião.

3. LIMITES IMPOSTOS PELA LEI DE DELIMITAÇÃO DE SECTORES

O artigo 85.º, n.º 2, da Constituição de 1976, na sua versão inicial, dispunha que “a lei definirá os sectores básicos nos quais é vedada a acti-vidade às empresas privadas e a outras entidades da mesma natureza.” Tratava-se de uma imposição constitucional relativa a vedação de sectores em coerência com a especificidade do estatuto da iniciativa privada, no prin-cípio da não expansibilidade plena da iniciativa privada (vide então artigos 85.º, n.º 1 e 3 e 89, n.º 4, da Constituição) e com o quadro mais geral de transição para o socialismo48.

Nesse quadro foi aprovada a Lei n.º 46/77, de 8 de Julho, que vedava às empresas privadas e a outras actividades da mesma natureza a actividade económica em determinados sectores, o que fazia dentro da margem de

A concessão é celebrada pelo prazo de 15 anos, considerando-se renovada por perío- dos adicionais de 15 anos, salvo quando denunciada com uma antecedência mínima de 2 anos sobre o respectivo termo. Contudo, o contrato pode ser revisto em cada 3 anos, podendo, portanto, proceder-se à sua revisão, alterando-se o perímetro dos direitos e obrigações.

48 Vide Paulo Alves Pardal in Luís Silva Morais, Nuno Cunha Rodrigues e Paulo Alves Pardal, Direito da Economia, vol. I, Lisboa, 2014, p. 204 e Pareceres da Comissão Constitu-cional n.º 8/80, de 8 de Abril de 1980, ponto 13 e 10/80, de 22 de Abril, pontos 5 e 7..

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discricionariedade conferida ao legislador ordinário, que não pode deixar de ser vista “na perspectiva global dos seus princípios preceptivos e objec-tivos programáticos.”49

Consagraram-se assim monopólios estatais de direito e que abrangiam i) sector financeiro (a banca e seguros), ii) sectores dos serviços públicos fundamentais (produção, transporte e distribuição para consumo público de energia eléctrica e produção e distribuição de gás através de redes fixas; produção, captação, tratamento e distribuição para consumo público, através de redes fixas, de água; saneamento básico; comunicações por via postal, telefónica e telegráfica; transportes regulares, aéreos e ferroviários, trans-portes públicos colectivos urbanos de passageiros nos principais centros urbanos, salvo automóveis ligeiros; e exploração de portos marítimos e aeroportos), iii) certos sectores industriais (armamento, refinação, petro-química de base, siderurgia, adubos e cimentos), iv) sectores industriais de base fiscal (tabaqueira e fosforeira).

A lei distinguia, contudo, entre vedação absoluta e vedação relativa, sendo que nestes últimos casos se admitia que o governo autorizasse a acti-vidade a empresas controladas por capitais públicos (sectores industriais), ou que confiasse a exploração ou autorizasse a actividade a privados (respec-tivamente exploração de portos marítimos e aeroportos e transportes marí-timos), ou que autorizasse o Governo a vedar ou não (sectores industriais de base fiscal).

Note-se que este regime não prejudicava, contudo, a manutenção da propriedade dos meios de produção privados já existentes nesses sectores no que toca a empresas não nacionalizadas, porque não tinha havido nacio-nalização de sectores (vide Ac. do Tribunal Constitucional n.º 25/85, de 6 de Fevereiro, processo n.º 87/8350).

Este regime legal foi sucessivamente alterado a partir de 1980. Após diversas tentativas goradas de alteração do diploma devido a pronúncias pela inconstitucionalidade do Conselho da Revolução, em certos casos mesmo divergindo da Comissão Constitucional, seguem-se alterações operadas pelo Decreto-Lei n.º 406/83, de 19 de Novembro, ao abrigo de lei de auto-rização legislativa Lei 11/83, de 16 de Agosto, através do qual se procedeu à liberalização do sector bancário, segurador, dos cimentos e dos adubos; pelo Decreto-Lei n.º449/88, de 10 de Dezembro, ao abrigo da autorização legislativa constante da Lei n.º 449/88, de 10 de Dezembro, e nos termos da

49 Parecer da Comissão Constitucional n.º 15/77, de 17 de Junho de 1977.50 Embora com voto de vencido de Vital Moreira.

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qual foram abertos à actividade de empresas privadas e a outras entidades alguns serviços públicos fundamentais (produção, transporte e distribuição de energia eléctrica para consumo público, produção e distribuição de gás para consumo público, serviços complementares de telecomunicações e serviços de telecomunicações de valor acrescentado, transportes aéreos regulares interiores, transportes ferroviários que não sejam explorados em regime de serviço público, transportes colectivos urbanos de passageiros nos principais centros populacionais, transportes marítimos) e indústrias estratégicas (petroquímica de base, siderurgia, refinação de petróleos)51.

A Lei n.º 46/77 foi alterada pela terceira vez através do Decreto-Lei n.º 339/91, de 10 de Setembro, autorizado pela Lei n.º 28/91, de 17 de Julho, que veio permitir a abertura do sector dos transportes aéreos regulares inter-nacionais, e o acesso das entidades privadas à exploração de aeroportos, e bem assim a concessão a entidades privadas do serviço público de transporte ferroviário. Por seu turno, o Decreto-Lei n.º 372/93, de 29 de Outubro, e com base na autorização legislativa n. 58/93, de 6 de Agosto, alterou pela quarta vez a Lei n.º 46/77, tendo permitido o acesso de capitais privados a empresas que explorem actividades de captação, tratamento e distribuição de água para consumo público, de recolha, tratamento e distribuição de água para consumo público, de recolha, tratamento e rejeição de efluentes e de recolha e tratamento de resíduos sólidos.

Surge entretanto a segunda Lei de Vedação de Sectores (Lei n.º 88-A/ /97, de 25 de Julho), que altera substancialmente o regime da vedação de sectores, liberalizando-os. Em resultado dessa tendência, o referido diploma veda apenas os seguintes sectores, salvo quando concessionados: captação, tratamento e distribuição de água para consumo público, recolha, tratamento e rejeição de águas residuais urbanas, em ambos os casos através de redes fixas, e recolha e tratamento de resíduos sólidos urbanos, quer de sistemas multimunicipais quer dos sistemas municipais; comunicações por via postal que constituem o serviço público de correios, transportes ferroviários explorados em regime de serviço público, exploração de portos marítimos. Previa-se ainda que o acesso à indústria de armamento e do exercício da respectiva actividade seria definido por decreto-lei, de forma a salvaguardar os interesses da defesa e da economia nacionais, a segurança e a tranqui-

51 O Tribunal Constitucional em sede de fiscalização preventiva não se pronunciou pela inconstitucionalidade do diploma em causa, no Ac. do Tribunal Constitucional n. 186, de 11 de Agosto de 1988 (Proc. n. 344/88), nem posteriormente em sede de fiscalização sucessiva, Ac. do Tribunal Constitucional. n.º 444/93, de 14 de Julho de 1993 (Proc. 403/88).

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lidade dos cidadãos e os compromissos internacionais do Estado. A Lei n. 17/2012, de 26 de Abril veio proceder, na esteira da Directiva 2008/6/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Fevereiro de 2008, à libe-ralização do sector postal.

Neste quadro procedeu-se ao lançamento de um processo para a subconcessão da parte da actividade do Metropolitano de Lisboa, EPE, nos termos do Decreto-Lei n.º 175/2015, de 5 de Dezembro e da parte da actividade da Companhia Carris de Ferro, SA, através do Decreto-Lei n.º 174/2015, de 5 de Dezembro, subconcessões que não chegaram, contudo, a obter o visto do Tribunal de Contas.

Nas águas assistiu-se também a uma liberalização, mas de teor mais limitado. Permitiu-se que as entidades concessionárias (dado que o acesso à propriedade continua vedado) possam agora ser controladas por entes privados e não, como acontecia anteriormente, apenas por entes públicos (sectores de água para consumo público, águas residuais urbanas, resíduos sólidos urbanos (incluindo sistemas multimunicipais)). Apenas no que toca aos sistemas multimunicipais em alta de água para consumo público, e quanto a águas residuais urbanas, se continua a exigir a sua outorga a empresas cujo capital social seja maioritariamente subscrito por entidades do sector público, podendo, contudo, tais concessões ser subconcessionadas a empresas privadas.

A segunda alteração à Lei de Vedação de Sectores, operada pela Lei n.º 35/2013, de 11 de Junho, elimina a vedação do sector postal e abre a porta à reprivatização dos CTT, que veio a ocorrer em termos que se darão nota infra.

No sector dos resíduos e como se dará nota, assistiu-se à reprivati-zação da EGF52, sociedade detentora do controlo de concessionárias nesse domínio, pelo que não se tornou necessário alterar o actual enquadramento da vedação de sectores.

A possibilidade de reprivatização de certas actividades da CP – Comboios de Portugal, EPE, as efectuadas em regime de serviço público, depende da alteração do artigo 4.º da Lei de Delimitação de Sectores ou depende da sua manutenção como concessionária, dado que subsiste a vedação (relativa) do sector, sem prejuízo da privatização do seu capital.

Outra hipótese é proceder-se a um resgate parcial da concessão e à outorga de nova concessão, ou ainda a subconcessão ou à separação de

52 Privatização operada pelo Decreto-Lei n.º 45/2014, de 20 de Maio.

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certos activos da CP, que seriam objecto de reprivatização autónoma, desde que estes não correspondessem ao essencial da actividade da CP em matéria de serviço público, caso em que teriam de ser objecto de nova concessão.

O Decreto-Lei n.º 69/2015, de 6 de Maio, procedeu à privatização da CP Carga, cisão da CP, mediante venda directa de referência e oferta pública a trabalhadores, tendo o caderno de encargos sido aprovado pela Redacção do Conselho de Ministros n.º 30-B/2015, de 8 de Maio, e a adjudicação constou da Redacção do Conselho de Ministros n.º 52-B/2015, de 24 de Julho.

4. PROCEDIMENTO DE REPRIVATIZAÇÃO

4.1. direito comParado

Para melhor se compreender o procedimento de privatização a nível nacional importa conhecer o regime de alguns ordenamentos jurídicos de referência a nível europeu e que tiveram larga experiência, embora por vezes do de sinal oposto à experiência nacional, em matéria de nacionalizações e de privatizações: estamos a pensar no caso da França e do Reino Unido.

O regime das privatizações em França veio previsto na lei de 6 de Agosto de 1986, adoptada em aplicação da lei de 2 de Julho de 1986, e modificada pela de 19 de Julho de 1993 e pela de 12 de Abril de 1996, rele-vando ainda os seus regulamentos de aplicação53. Estes diplomas prevêem o seu campo de aplicação, as operações preparatórias da transferência de propriedade e as modalidades jurídicas e financeiras da transferência, bem como as medidas de protecção dos interesses nacionais.

A versão de 1986 da lei relativa às privatizações aplicava-se a um conjunto específico de 65 empresas a reprivatizar antes de 1 de Março de 1991. Por seu turno, a lei de 1993 estabeleceu, de forma similar, uma lista de 21 empresas a reprivatizar, embora não tenha estabelecido nenhum limite temporal para a efectivação dessas operações.

As privatizações têm contudo de respeitar o limite constante da 9.ª alínea do preâmbulo da Constituição e que dispõe que todos os bens ou empresas cuja exploração adquiriu as características de um serviço público nacional ou de um monopólio de facto devem manter-se propriedade da colectividade.

Esta disposição foi objecto de interpretação pelas decisões do Conselho Constitucional de 25 e 26 de Junho de 1986.

53 Jean-Philippe Colson, Droit Public Économique, Paris, p. 126 e ss..

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As empresas públicas que explorem um serviço público cuja existência vem directamente prevista na Constituição não podem ser privatizadas. No que toca às restantes empresas o legislador detém uma margem de livre apre-ciação. O Conselho Constitucional afastou a qualificação de empresa que não é susceptível de ser reprivatizada nos casos de serviço público bancário, comunicações por via herteziana e Caixa Nacional de Crédito Agrícola. Já na sua decisão de 23 de Julho de 1996, o Conselho Constitucional considerou, a respeito da lei de privatização relativa à empresa France Telecom, que a Lei de 26 de Julho de 1996 manteve a existência de um serviço público nacional, o que tornava o referido parágrafo 9.º do preâmbulo aplicável, mas não referiu que essa necessidade derivava dos princípios e valores consti-tucionais, tendo mesmo indiciado o contrário.

No que toca aos monopólios de facto, o Conselho Constitucional tem desvalorizado as posições privilegiadas conjunturais de uma empresa como limites à reprivatização.

Do ponto de vista da legitimidade da privatização, tem-se igualmente entendido que quando uma empresa consta de uma lista estabelecida pelo legislador não é necessário que a privatização volte a constar de uma lei particular.

Conservando no essencial o quadro jurídico da lei de 1986, a lei de 1993 procedeu a pequenos ajustamentos no mesmo.

Uma das alterações tem que ver com o facto de o legislador ter querido confiar ao governo a escolha/decisão de privatização, por decreto (artigo 2.º II da lei de 1993), só depois competindo ao ministro da economia dar a luz verde em concreto para a privatização. No que toca às empresas de primeira ordem a lei prevê que esse decreto deve designar os membros do conselho de administração. Cabe ainda ao governo precisar, por meio de decreto, se pretende recorrer ao mecanismo, previsto no artigo 10.º da lei de 6 de Agosto de 1986, para protecção dos interesses nacionais.

Por outro lado, a lei prevê um mecanismo de transferência separada das empresas nacionalizadas por lei, que só podem ser reprivatizadas por lei, mas que, no caso de terem sido indirectamente nacionalizadas, se admite a sua alienação separada nos termos do título II da lei de 6 de Agosto de 1986, alie-nação essa por meio de decreto, após parecer da comissão de privatização.

Joga um papel importante nos processos de reprivatização em França a Comissão de Participações e de Transferências (tendo sido assim redeno-minada, pelo Decreto de 27 de Abril de 1998, a Comissão de Participações e de Transferências).

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A Comissão compõe-se de sete membros nomeados, por decreto, por cinco anos.

As funções de membros da Comissão são incompatíveis com a parti-cipação no conselho de uma empresa, bem como com funções remuneradas em qualquer empresa a privatizar em que tenham participações. Prevê-se sanção penal para o não cumprimento dessa obrigação (art. 432 do Código Penal francês). A violação dessa obrigação permite ainda a demissão, por maioria, da pessoa em causa.

A obrigatoriedade de consulta da Comissão num processo de repriva-tização estende-se aos casos de empresas de primeiro nível menos impor-tantes (com efectivos inferiores a 1000 pessoas e contas consolidadas não superiores a 1000 francos), à transferência de empresas públicas de segundo nível mais importantes (efectivos superiores a 1000 funcionários e volume de negócios superior a 1000 francos) e aos casos de alienação de participações minoritárias em empresas de primeiro nível. O preço de venda não pode ser estabelecido pelo ministro da economia em valor inferior ao da avaliação.

Existem casos em que a consulta da comissão é facultativa, desig-nadamente para os casos de transferências para empresas públicas menos importantes, para as quais não é necessário um decreto, mas, caso o Ministro decida consultar a Comissão, nesse caso o seu parecer é vinculativo.

Em 1993 o papel da Comissão foi particularmente reforçado, tendo-se previsto um mecanismo que exige prévio parecer favorável da Comissão nos seguintes casos: escolha dos adquirentes e das condições em caso de ajuste directo; quando se trata de empresa particularmente importante, com mais de 2500 trabalhadores ou volume de negócios superior a 2,5 milhões de francos, cessão de títulos no quadro de uma parceria público-privada.

Tanto o Conselho Constitucional como o Conselho de Estado têm esclarecido o papel da Comissão, tendo considerado que, em aplicação da Lei de 6 de Agosto de 1986 (art.3), a Comissão deve avaliar as empresas segundo métodos objectivos correntemente praticados em matéria de cessão total ou parcial dos activos de sociedades e tendo em conta o seu valor em bolsa, o valor dos activos, os benefícios realizados, a existência de filiais e perspectivas de futuro.

A decisão da Comissão pode, contudo, ser objecto de um recurso por excesso de poder junto do Conselho de Estado, conforme resultou do caso Joxe et Bollon, de 2 de Fevereiro de 198754.

54 AJDA, p. 350.

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Existem no direito francês duas modalidades de compra em sede de privatizações – oferta publica de venda ou ajuste directo (procédures hors marché).

Existem incentivos ao accionariato popular que surgem na Lei de 1986, e que se mantêm na Lei de 1993, dado que 10% das acções devem ser destinadas aos trabalhadores da empresa a reprivatizar e das suas filiais maioritárias, podendo ser concedidas facilidades de pagamento mediante desconto que não exceda 20% de desconto sobre o valor mais baixo dos subscritores ou mediante prazos alargados de pagamento. Prevêem-se ainda medidas em favor das pessoas físicas francesas ou residentes na União Europeia, tendo a versão inicial da Lei de 1986 admitido que até 10 títulos as suas ordens fossem integralmente satisfeitas, e na versão de 1993, que compete à autoridade administrativa fixar o limite para essas aquisições, tendo os particulares direito a prioridade até certo montante e uma parte proporcional a cada ordem em caso de rateio.

Previu-se ainda, em 1986, o poder do Ministro decidir proceder à privatização fora do mercado a fim de constituir assim núcleos accionistas estáveis, mas na versão de 1993 esse poder foi reduzido em função do poder da Comissão. O recurso a essa modalidade de venda depende de publicidade prévia a efectuar nos termos do decreto de 3 de Setembro de 1993 no que toca às empresas nele identificadas (21 empresas).

O Decreto de 3 de Setembro de 1993 distingue ainda duas modali-dades de transferência consoante são ou não acompanhadas de um acordo de cooperação industrial, comercial ou financeira. A conclusão desse acordo, a escolha dos parceiros e as modalidades de cessão têm, como se disse, de ter acordo da Comissão. A existência de um acordo de parceria permitia afastar o limite dos 20% imposto anteriormente aos investidores estrangeiros. Os objectivos do acordo e a identidade dos adquirentes são publicados no Jornal Oficial. Na falta de tal acordo, a decisão de venda deve ser publicitada no Jornal Oficial, com antecedência de pelo menos 15 dias.

No Reino Unido a privatização tem assumido a forma de “statutes”55. Contudo, as operações de privatização dependem ainda, e também habi- tualmente, de “delegated” ou “subordinate legislation”. Este último tipo de legislação não depende de um procedimento parlamentar e é potencialmente sujeita a “judicial review”.

55 Vide Graham, Tony Prosser, Privatizing Public Enterpresis, Constitutions, the State, and Regulation in Comparative Perspective, Oxónia.

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Existiu um projecto do Ministério das Finanças relativamente a priva-tizações, de Dezembro de 1984, que não foi contudo aprovado, e de acordo com o qual as indústrias nacionalizadas poderiam ser objecto de privatização pelo Secretário de Estado responsável pela tutela sectorial. O mesmo norma-tivo conferia ainda ao Secretário de Estado em causa o poder de alterar os estatutos da empresa em causa,

Não tendo sido aprovada a legislação em causa a título genérico, é, contudo, muito comum a aprovação de normativos posteriores similares, conferindo poderes amembros do Governo, mas para casos ad hoc. As leis que prevêem as privatizações podem assim expressamente delegar poderes num ministro para criar legislação suplementar para desenvolver a lei ou mesmo para regular áreas não abrangidas pela lei. Um caso conhecido é o da British Telecom onde se previu que o Secretário de Estado pudesse deter-minar um investimento mínimo a realizar na empresa a privatizar.

Requisito da emissão de legislação delegada é proceder-se a uma consulta, embora não esteja expressamente previsto o tipo de consulta. Nalguns casos tem de ser consultada a empresa a privatizar, mas tal obri-gação não se estende a outros interessados como sejam os trabalhadores (caso Royal Dockyyards) ou aos interesses dos consumidores.

Questão que se coloca no direito britânico é a dos limites ao controlo da “delegated legislation”.

Uma hipótese é a anulação da “delegated legislation” pelo Parlamento, mas a lei de anulação tem de passar em ambas as Câmaras e a disciplina partidária impede, em regra, essa anulação. O “judicial review” é possível, mas não existem exemplos de judicial review da delegated legislation no que toca às condições da privatização em si, mas apenas relativamente a aspectos da sua implementação.

Parte dos actos de implementação de uma operação de privatização são praticados pelo Governo, outra parte são praticados por outras entidades, painéis de supervisão ou mesmo privados56.

O controlo sobre os actos preparatórios é limitado como se compre-endeu no caso do Trustee Savings Bank em que os sindicatos tentaram ques-tionar, sem sucesso, diversos actos preparatórios da privatização. Admite-se, contudo, o controlo dos actos dos painéis de revisão, como resultou do caso Datafin, R. v Panel on Take-Overs and Mergers ex parte Datafin57.

56 Graham e Tony Prosser, ob. cit., p. 52.57 Caso de 1987, QB 815.

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Já o controlo no que toca à avaliação de empresas é muito limitado, tendo-se considerado integrada essa actividade por vezes nos poderes inerentes do Governo, na Royal Prerrogative ou mesmo nos poderes que qualquer ente ordinário tem para contratar com outros. Nesse quadro consi-dera-se que a avaliação e a fixação do preço não são controláveis (no sentido do não controlo de actos pré-contratuais vide R. Trent Regional Health Authority ex parte Jones; The Times 19 Junho de 1986).

Por outro lado, os contribuintes não têm, em princípio, “sufficient inte-rest” para impugnar a operação de privatização (como resulta de casos sobre diversa matéria mas cujo ratio, segundo a doutrina, é aplicável ao caso das privatizações, R. v Inland Revenue Commissioners ex parte National Fede-ration of Self-Employed and Small Businesses Ltd., 1982, AC 617; and R. HM Treasury ex parte Smedly (1985), QB 657 and R. Secretary of State for the Environment ex parte Rose Theatre Trust Co. (1990)).

Existem contudo aspectos regulatórios das operações de privatização que poderão ser judicialmente controlados, mas apenas em caso “manifest unfairness” como foi decido no caso R. v. Monopolies and Mergers Commis-sion ex parte Matthew Brown PLC (1987).

4.2. delimitação do âmbito de aPlicação da lei 11/90 e da lei de aliena-ção de ParticiPações do sector Público - diferentes enquadramentos Para a Privatização

A transferência de participações sociais detidas pelo sector público para o sector privado depende de essa possibilidade estar prevista em lei formal da Assembleia da República.

No quadro jurídico actual há duas leis da Assembleia da República que permitem a transferência de participações sociais do sector público para o sector privado: a Lei n.º 11/90, de 5 de Abril,” Lei-Quadro da Privatizações”58 e a Lei n.º 71/88, de 24 de Maio, “Regime de alienação das participações do sector público”.

A primeira refere-se às operações de reprivatização de bens naciona-lizados depois de 25 de Abril de 1974 previstas no artigo 293.º da Consti-tuição e a segunda à alienação de participações sociais por parte dos entes públicos, que, apesar de ter sido publicada antes da revisão constitucional de 1989, satisfaz a exigência da al. l), do n.º 1, do artigo 165.º da CRP.

58 Alterada pela Lei n,.º 102/03, de 15 de Novembro e pela Lei n.º 50/2011.

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Importa pois saber qual o regime legal que deve ser aplicado à repri-vatização de empresas nacionalizadas após a aprovação da Constituição de 1976, como foi o caso do BPN, já que a lei que o nacionalizou não previu nenhuma norma relativamente à sua reprivatização.

Parte da doutrina constitucional entende que aplicabilidade do artigo 293.º da Constituição e, portanto, da Lei n.º 11/90, Lei-Quadro das Priva-tizações, se circunscreve às reprivatizações de bens nacionalizados entre 25 de Abril de 1974 e 25 de Abril de 1976, data da entrada em vigor da Constituição de 1976.

No sentido da não aplicação do actual artigo 293.º da Constituição às reprivatizações posteriores a 1976, orientam-se Jorge Miranda e Rui Medeiros59, quando afirmam que: “propende-se, porém, com a doutrina maioritária, para considerar que o artigo 293.º se reporta à reprivatização das nacionalizações determinadas no âmbito do chamado «processo revo-lucionário»”.

O facto de artigo 293.º se referir apenas às nacionalizações determi-nadas por leis ordinárias publicadas entre 25 de Abril de 1974 e a data da entrada em vigor da Constituição resulta de argumentos histórico e teleo-lógico, por um lado, e de um argumento de ordem sistemática e de teoria das fontes e direito constitucional, por outro lado.

O primeiro argumento resulta do facto de o conceito de reprivatização, a que se reporta o actual artigo 293.º dever ser lido, aquando da sua apro-vação (com outra numeração), em articulação com o anterior princípio da irreversibilidade das nacionalizações, reportando-se apenas às nacionali-zações determinadas no âmbito do chamado processo revolucionário e na linha da estratégia “antimonopolista” afirmada no Programa do Movimento das Forças Armadas de 25 de Abril de 1974.

Com efeito, e tomando como ponto de partida as palavras de António Luciano de Sousa Franco e de Guilherme de Oliveira Martins60: “há que lembrar sumariamente o contexto político-ideológico no qual teve lugar a produção do artigo 83.º da Constituição relativo à chamada irreversibili-dade das nacionalizações.

Em 1974-75, no âmbito do chamado “processo revolucionário”, sobre-tudo depois dos acontecimentos de 11 de Março de 1975, tiverem lugar nacionalizações de diversas empresas na linha da “estratégia antimono-

59 Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra, Tomo III, p. 980.60 A Constituição Económica Portuguesa, Coimbra, 1993, p. 277.

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polista” já afirmada no Programa do Movimento das Forças Armadas de 25 de Abril de 1974 (…).”

Carlos Blanco de Morais também data claramente as nacionalizações que ocorreram nesse período. Com efeito, afirma que as nacionalizações ocorridas no período de Março de 1975 têm um conteúdo político e uma natureza específica, por contraposição às outras nacionalizações e afirma61: “[j]ulgamos (…) que as considerações expendidas em notas seguintes demonstraram que as nacionalizações obedecem a impulsos de ordem diversa tendo, as que se geraram no 11 de Março de 1975 obedecido a fundamentos de ordem política. O sentido político que lhes foi cometido pela própria Constituição, seja no plano da sua irreversibilidade, seja quanto à sua relevância concorrencial para uma “propriedade social” (a qual se revelaria prospectivamente como substracto patrimonial de uma sociedade socialista) constituíram factores que não deixaram de conferir aos actos de nacionalização, um sentido existencial de edificação de um modelo determinado de Sociedade de Poder Colectivo.”

Estas razões levam-nos a concluir que o elemento histórico e teleoló-gico do artigo 293.º da Constituição não o torna aplicável a nacionalizações operadas fora desse contexto político e histórico.

O segundo argumento resulta do facto de não fazer sentido que a Consti-tuição tivesse querido sancionar com força constitucional (durante a vigência do princípio da irreversibilidade das nacionalizações) nacionalizações que o legislador constituinte não legitimou e cuja ocorrência não poderia prever, e que agora estabeleça apertados requisitos constitucionais à reprivatização de bens cuja nacionalização foi operada por simples lei ordinária. Tal ocorre porque, como notam Jorge Miranda e Rui Medeiros62: “[e]nfim, as noções prévias de “irreversibilidade” e de “conquista das classes trabalhadoras” têm um fundamento histórico-político muito próprio, “soldado ao deci-sionismo rupturista do processo revolucionário, sendo as nacionalizações posteriores fundadas em razões de ordem totalmente diferentes.”

No mesmo sentido pode ler-se Carlos Blanco de Morais63 quando afirma: “[a] primeira dúvida que se coloca em relação ao n.º 1 do artigo 296.º (actual artigo 293.º) consiste em aferir se todos os actos de reprivati-zação de bens que foram nacionalizados após a revolução de 25 de Abril de

61 As Leis Reforçadas, Coimbra, 1998, a p. 733.62 Ob. cit., p. 981.63 As Leis Reforçadas, ob. cit., p. 744.

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1975, se encontram submetidos ao regime da lei-quadro com valor refor-çado, que o referido preceito acolhe.

Sem que a doutrina tenha revelado perfeita unanimidade em relação à questão, quando se pronunciou sobre o sentido emergente do artigo 85.º, acolhe-se a tese segundo a qual a imposição do pontificado da “lei-quadro” se limita a disciplinar as nacionalizações determinadas entre o dia 25 de Abril de 1974 e o dia 25 de Abril de 1976, data da entrada em vigor da Constituição da República.

Em abono desta tese pode sustentar-se, por ordem sucessiva de argu-mentos, que seria inaceitável “sancionar com força constitucional” nacio-nalizações que o legislador constituinte não legitimou e cuja ocorrência não poderia prever. Que seria pouco compreensível que a Constituição determinasse que as nacionalizações hipoteticamente deliberadas, depois da feitura do mesmo texto fundamental, por maioria simples no parlamento, só pudessem ser ultrapassadas pela aplicação directiva do acto adoptado por maioria qualificada. E que as noções prévias de “irreversibilidade” e de “conquistas das classes trabalhadoras” teriam um fundamento histórico--político muito próprio, soldado ao decisionismo ruptorista do processo revolucionário, sendo as nacionalizações ulteriores, fundadas em razões de ordem totalmente diferentes.”

Essas reprivatizações são assim qualificadas por Carlos Blanco de Morais de privatizações comuns, isto é dos “activos das empresas integradas no sector público, no período anterior a 25 de Abril de 1974 bem como no momento ulterior a 25 de Abril de 1976, e que não se insiram nos sectores básicos da economia (…).”

Este entendimento é mantido pelo autor no seu Curso de Direito Cons-titucional64.

Neste sentido, o da não aplicação do regime actualmente plasmado no artigo 293.º da Constituição às reprivatizações resultantes de empresas nacionalizadas posteriormente a 1976, já se tinha também pronunciado Jorge Miranda em artigo publicado com Vasco Pereira da Silva65, quando afirmaram que “[e]m terceiro lugar, as nacionalizações declaradas irre-versíveis são as nacionalizações efectuadas de 25 de Abril de 1974 até 25 de Abril de 1976, data da entrada em vigor da Constituição. Por uma parte seria incompreensível que a Constituição atribuísse o mesmo regime às

64 Coimbra, 2012, p. 425.65 Problemas Constitucionais da transformação de empresas públicas, in O Direito,

1988, 1-2, p. 58.

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nacionalizações efectuadas pelo regime anterior e às realizadas no segui-mento da deposição deste. Por outro lado, quanto à nacionalização, por hipótese, realizadas após a feitura da Constituição, seria chocante que, sendo elas decididas por maioria simples, por lei ordinária, a seguir não pudessem ser ultrapassadas pela maioria de revisão constitucional de 2/3 dos deputados em efectividade de funções.

Afirmar a irreversibilidade das nacionalizações anteriores à Consti-tuição equivaleria a sancionar com força constitucional nacionalizações que o legislador constituinte não efectuou e não poderia prever. Haveria uma abdicação do poder constituinte em proveito do poder legislativo ordi-nário futuro desconhecido. Nem seria razoável invocar um pretenso prin-cípio geral de não retorno às normas programáticas, porque o artigo 83.º não é uma norma programática …”.

Aliás, como nota Jorge Miranda e Rui Medeiros66 “por outro lado, seria pouco compreensível que a Constituição determinasse que as nacio-nalizações hipoteticamente deliberadas, depois da feitura do mesmo texto fundamental, por maioria simples no parlamento, só pudessem ser ultrapas-sadas pela aplicação de um acto legislativo adoptado por maioria absoluta dos deputados em efectividade de funções.”

Pelos argumentos expostos, e apesar de existir doutrina diversa que implicitamente parece aplicar o artigo 293.º a todas as modalidades de reprivatização67, deve concluir-se no sentido da não aplicação do referido artigo, e consequentemente da Lei n.º 11/90, às operações de reprivatização posteriores a 1976.

A reprivatização ao abrigo da Lei n.º 11/90 pode ser indirecta, ou seja por meio da reprivatização das acções de uma sociedade que controla a sociedade e reprivatização. Naturalmente que nova reprivatização do capital da sociedade detida e anteriormente nacionalizada (se a reprivatização não tiver sido a 100%) implica novo processo de reprivatização. No processo da TAP, reprivatização, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 181-A/2014, a repri-vatização foi indirecta (artigo 1.º, n.º 1).

66 Ob. cit., pp. 980 e 981.67 J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa

Anotada, vol. II, Coimbra, 2010, p. 1034, quando afirmam que: “[a] lei-quadro cujos prin-cípios a Constituição aqui define tem por âmbito apenas as reprivatizações das empresas e outros bens de produção resultantes das nacionalizações posteriores a 25 de Abril de 1974. Fica de fora, a privatização das empresas anteriormente pertencentes ao Estado ou constituídas posteriormente por outro meio que não a nacionalização”)

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Direito Administrativo das Privatizações 305

Aos casos de não aplicabilidade directa da Lei n.º 11/90 (como era o caso da reprivatização do BPN, e como tal admitido no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 2/2010), e no caso de se estar perante uma alienação de participações sociais por parte de ente público, será, então, de aplicar (na ausência de lei específica da Assembleia da República), a Lei n.º 71/88, por força da alínea l) do n.º 1 do art.º 165.º da Constituição.

Na operação de reprivatização do BPN chegou, portanto, a equacionar--se a aplicação da Lei n.º 71/88, precisamente por se tratar de empresa que foi nacionalizada posteriormente a 1976.

Questão que igualmente se pode colocar é a de saber se é possível adoptar-se, voluntariamente, a Lei 11/90 para uma operação de privatização, diversamente da Lei n.º 71/8868. Como bem nota Nuno Cunhas Rodrigues69: “os sucessivos governos optaram por aplicar a LQP a operações que esca-pavam, numa perspectiva formal, àquele regime pois sempre se entendeu que a sua aplicação tem requisitos mais exigentes em termos de modali-dades, formalização e controlo da legalidade do processo de alienação do que a Lei n.º 71/88.”70

Note-se que se tem considerado aplicável no processo de reprivati-zação a Lei n.º 11/90 mesmo quando a empresa e reprivatização alargou a sua actividade muito para além da inicial. Assim se optou no novo EGF; privatização opeada nos termos do Decreto-Lei n.º 45/2014, de 20 de Março, e da Resolução do Conselho de Ministros n.º 30/2014, de 8 de Abril (priva-tização até 95% do capital social, por concessão pública).

Nuno Cunha Rodrigues71 admite ainda a possibilidade de a Lei n. 84/88 continuar em vigor quanto a empresas públicas a privatizar, por não terem resultado de nacionalizações e quanto às sociedades de capitais públicos em que aquelas se transformassem, baseando-se em eventual interpretação restritiva da revogação operada pela Lei n.º 11/90, para depois admitir que aquela lei estabelece requisitos mais apertados do que os constantes da Lei n.º 11/90, pelo que “pode concluir-se que a privatização de empresas não nacionalizadas não se deve processar em termos mais apertados do que

68 Eduardo Paz Ferreira, Direito da Economia, Lisboa, 2001, p. 375.69 Ob. cit., p. 250.70 Tal aconteceu, e como dá nota o autor, no caso da Brisa, em que sendo aplicável a

Lei n.º 71/88, se optou por aplicar a Lei n.º 11/90. Vide ainda Carlos Francisco Alves, Prepa-ração e Execução dos Programas de Privatizações, 1996-1999, in AAVV, Privatizações e Regulação, Ministério das Finanças, 1999, p. 8 (n.5).

71 Ob. cit., p. 251.

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os da LQP”, para concluir que: “[c]onsequentemente, poder-se-á retomar a hipótese de aplicação analógica da LQP sendo esta a Lei aplicável às situações quer de reprivatizações – por expressa determinação legal – quer de privatizações – por aplicação analógica.”72

Não se acompanha este entendimento por se considerar que a reserva de lei impõe a aplicação da Lei n.º 71/88, quando aplicável às operações de reprivatização, exigindo-se para a opção pela Lei n.º 11/90 a adopção de lei formal da Assembleia da República.

Existem, contudo, leis especiais que permitam outras modalidades de privatização. É disso exemplo o artigo 145.º-M, n.º 2 e 145.º-R, n.º 3 do Regime Geral das Instituições de Crédito e das Sociedades Financeiras ao abrigo do qual se processou a tentativa de alienação do Novo Banco e a alie-nação dos activos do Banif ao Santander (tendo os processos respeitados os princípios da “transparência do processo e o tratamento equitativo dos inte-ressados”, “em termos adequados à celeridade imposta pelas circunstâncias” no caso da cessão de activos e “através dos meios que foram considerados mais adequados tendo em conta as condições comerciais existentes na altura, as circunstâncias do caso concreto e os princípios, regras e orientação da União Europeia em matéria de auxílios de Estado”, no caso da alienação da instituição de transição.

4.3. rePrivatização no quadro da lei 11/90

No que toca às modalidades de reprivatização, dispõe o artigo 6.º da Lei n.º 11/90, de 5 de Abril73, alterada pela Lei n.º 102/2003, de 15 de Novembro74, e pela Lei n.º 50/2011, de 15 de Setembro, que a reprivati-zação da titularidade realizar-se-á, alternativa ou cumulativamente, pelos seguintes processos: a) alienação das acções representativas do capital social; b) aumento do capital social75.

72 Ob. cit., p. 251.73 Lei que resultou da conjugação da Proposta de Lei n. 121/V e do Projecto de Lei

n. 441/V, apresentado pelo Partido Socialista, publicados no Diário da Assembleia da Repú-blica, V Legislatura, III Sessão Legislativa, II sessão A, n. 3 de 27 de Outubro de 1989 e n. 4, de 3 de Novembro de 1989..

74 Lei que revoga limites à participação de estrangeiros.75 Distinguindo como modalidades de venda, quatro tipos essênciais: venda em bolsa,

venda de acções aos trabalhadores, venda a investidores internacionais e venda a um único

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Direito Administrativo das Privatizações 307

Previamente é sempre necessária uma avaliação. Com efeito, e nos termos do artigo 293.º, n.º 1, al. e) da Constituição “proceder-se-á à avaliação prévia dos meios de produção e outros bens a nacionalizar”. A Lei n. 11/90, por seu turno, requer no artigo 5.º que as empresas a reprivatizar sejam avaliadas por entidades independentes, escolhidas após concurso público. Note-se, contudo, que a avaliação efectuada por entidades independentes vincula o Governo quanto ao preço que venha a praticar, diferentemente do que se passa em França, como se viu.

O processo de reprivatização de uma empresa, e nos termos do artigo 4.º da Lei n.º 11/90, inicia-se com a transformação (quando necessária) da natureza jurídica da empresa que deve assumir forma de sociedade econó-mica no caso de ser empresa pública (o que actualmente deve ser lido como se tratar de EPE nos termos do Decreto-Lei n.º 133/2013, de 3 de Outubro).

Cabe ao Governo, através do Conselho de Ministros, iniciar o processo legislativo tendente à (re)privatização, o que suscita problemas de constitu-cionalidade, atenta a restrição da competência concorrência entre Governo e Assembleia da República conforme bem nota Carlos Blanco de Morais76. Note-se contudo, nas operações de reprivatizações de empresas públicas regionais, a iniciativa é do Governo Regional que deve emitir parecer favo-rável77 e para quem reverte o produto para amortização da dívida pública regional78.

comprador, António Carlos dos Santos, Maria Eduarda Gonçalves e Maria Manuel Leitão Marques, cit., p. 167.

76 Curso de Direito Constitucional, cit., p. 427.77 Este ponto também suscita questões de constitucionalidade quanto à criação de um

Decreto-Lei atípico reforçado, vide Carlos Blanco de Morais, Curso…, cit., pp. 427 e 428.78 O artigo 17.º da Lei n. 11/90 prevê um procedimento especial para as empresas

públicas regionais. O n.º 1 do artigo 17.º prevê que a reprivatização de empresas públicas com sede e actividade principal nas Regiões Autónomas da Madeira e dos Açores revestir--se-á da forma estabelecida no artigo 4.º, mediante a iniciativa e com o parecer favorável do respectivo governo regional. Trata-se das empresas públicas regionais, e não necessariamente de empresas públicas que tenham a sua sede e actividade principal nas Regiões Autónomas. Compete também segundo Mário Esteves de Oliveira ao Conselho de Ministros e não ao governo regional a definição das condições finais e concretas das reprivatizações regionais, Privatizações, cit., p. 111.

No entanto, se o governo tiver considerando conveniente que a operação de repriva-tização seja acompanhada pela Comissão especial a que se refere o artigo 20.º,então esta será integrada não apenas pelos membros propostos pelo Ministro das Finanças, nos termos do n.º 6 do artigo 20.º da Lei n. 11/90, mas também por um representante da respectiva região

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308 Lourenço Vilhena de Freitas

Os processos são realizados, em regra e preferencialmente, através de concurso público (embora a sua regulamentação fique relegada para Decreto-Lei que aprove as condições da reprivatização)79 ou oferta pública nos termos do Código dos Valores Mobiliários.

Mas, quando o interesse nacional ou a estratégia definida para o sector o exijam ou quando a situação económico-financeira o recomende, poderá proceder-se a:

a) Concurso aberto a candidatos especialmente qualificados, refe-rente a lote de acções indivisível, com garantias de estabilidade dos novos accionistas e em obediência a requisitos conside-rados relevantes para a própria empresa em função das estraté-gias de desenvolvimento empresarial, de mercado, tecnológicas ou outras,

nomeado, como os seus pares, por despacho do Primeiro-Ministro (perfazendo um número impar de membros), mas sob proposta do governo regional.

De acordo com o artigo 20.º, n.º 1, em cada um dos processos de reprivatização e, sempre que o considere necessário para a prossecução dos objectivos fixados no artigo3.º da presente lei, pode ser constituída uma comissão especial para acompanhamento daqueles processos, que se extinguirá com o respectivo termo.

Essas comissões têm por incumbência apoiar tecnicamente o processo de reprivati-zação de modo a garantir a plena observância dos princípios da transparência, do rigor, da isenção, da imparcialidade e da melhor defesa do interesse público (n.º 2 do artigo 20.º).

Compete às comissões especiais acompanhar o processo de reprivatização, indepen-dentemente da forma e procedimentos que venham a ser concretamente adoptados para a sua concretização, designadamente: a) fiscalizar a estrita observância dos princípios e regras consagrados na lei, bem como a rigorosa transparência do processo; elaborar os pareceres e relatórios que o Governo entenda necessários sobre as matéria relacionadas com o processo; verificar o cumprimento dos limites e regras estabelecidos no artigo 13.º da presente lei; apreciar e submeter aos órgãos e entidades competentes quaisquer reclamações que lhes sejam submetidas; elaborar e publicar um relatório final das suas actividades (n.º 3 do artigo 20.º).

O n.º 6 do artigo 20.º prevê que os membros das comissões especiais são nomeados por despacho do Primeiro-Ministro, sob proposta do Ministro das Finanças, sendo o mesmo publicado, acompanhado da síntese curricular dos membros que as integram, no Diário da República.

Os pareceres e relatórios emitidos pelas comissões são publicitados no sítio da internet do Ministério das Finanças.

79 O Tribunal Constitucional, no acórdão n. 71/90, não se pronunciou pela inconsti-tucionalidade da Lei n. 11/90, por falta de densidade normativa, vide Ac. Doutrinário do Tribunal Constitucional, 15.º volume, 1990, p. 733.

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Direito Administrativo das Privatizações 309

b) Por venda directa, à alienação de capital ou à subscrição de acções representativas do seu aumento80.

O artigo 6.º da Lei n.º 11/90 não prevê a subscrição pública prevista no artigo 293.º, al. a), da Constituição. No entanto, tal não é mais do que uma modalidade de oferta pública de acordo com o artigo 109.º, 159.º e 170.ª a 172.ª do CVM81.

Em relação ao procedimento de concurso limitado, defende a doutrina que será possível adoptar quer o concurso limitado por pré-qualificação, quer o concurso limitado por escolha administrativa directa, aplicando-se a esse procedimento uma tramitação aproximada, mas não necessariamente o regime material desse procedimento. Isso mesmo parecer ser reforçado e não infirmado pelo artigo 22.º da Lei n. 11/90, quando menciona candi-datos pré-qualificados82.

O n.º 4 do artigo 6.º da Lei n. 11/90 refere-se a concurso público limi-tado ou a venda directa. Critica a doutrina a menção a concurso público limitado por considerar que a noção de concurso público limitado é contra-ditória e entende a mesma doutrina que tal menção, que advém da versão inicial da Lei 11/90, passando pela Lei n.º 102/2003, se explica por se tratar de mero lapso.

Deve sublinhar-se que a Lei n. 11/90, na sequência das alterações introduzidas pela Lei n.º 50/2011, de 13 de Setembro, veio ainda prever a definição pelo Governo, no prazo de 90 dias a contar da entrada em vigor das referidas alterações à Lei Quadro (ou seja, até ao dia 13 de Dezembro de 2011), de um regime extraordinário para a salvaguarda de activos estra-tégicos em sectores fundamentais para o interesse nacional. Nos termos da anterior legislação concedida pela Lei n.º 9/2014, de 24 de Fevereiro, foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 138/2014, de 15 de Junho de 2014, o regime da salvaguarda de activos estratégicos essenciais para garantir a segurança da defesa e segurança nocinta do reprovisionamento do País em serviços

80 De acordo com o regime previsto na Lei Quadro das Privatizações, a privatização por venda directa pressupõe a existência de um caderno de encargos com indicação das condições da transacção, sendo da competência do Conselho de Ministros a escolha dos adquirentes e a definição das condições específicas da aquisição.

81 Privatizações e Reprivatizações, Comentário à Lei-Quadro das Privatizações, coord. Mário esteves de oliveira, Coimbra, 2011, p. 53.

82 Privatizações e Reprivatizações, cit., p. 57.

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fundamentais para o interesse nacional nas áreas da energia, dos transportes e comunicações, do que se dará infra.

De entre as modalidades referidas, cabe ao Conselho de Ministros aprovar, por resolução, as condições finais e concretas das operações a realizar em cada processo de reprivatização.

A história dos procedimentos administrativos ilustra o uso das dife-rentes modalidades de reprivatização previstas na Lei n. 11/90, por vezes de forma conjugada.

No sector bancário, a reprivatização foi efectuada em regra por oferta pública de venda83, por vezes a trabalhadores, ou aumento do capital social (embora nalguns casos tenha ainda prevista a venda directa para posterior dispersão). Por vezes a oferta pública de venda dependia do aumento do capital social. O Decreto-Lei n.º 165/91, de 7 de Maio iniciou o processo de reprivatização do Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa, seguindo-se o Decreto-Lei n.º 450/91, de 4 de Dezembro, que previu a 2.ª fase de priva-tização Banco em causa e foi desenvolvido pela Resolução n.º 45-A/91, de 12 de Dezembro. Previu-se a venda ao público em geral, em oferta pública de venda por leilão competitivo (ponto 21 da Resolução), sem prejuízo do direito à aquisição de acções por parte dos trabalhadores.

O Banco Português do Atlântico, SA, foi objecto de reprivatização operada pelo Decreto-Lei n.º 1/92, de 14 de Janeiro, desenvolvido pela Resolução 4-A/92, de 30 de Janeiro. Este processo ocorreu por meio de aumento do capital social.

Por seu turno, o Decreto-Lei n.º 199/92, de 23 de Setembro, previu a reprivatização do Crédito Predial Português, desenvolvido pela Resolução n. 35/92, de 24 de Setembro. A operação passou também pela oferta pública de venda por leilão competitivo (ponto 14 da Resolução).

Noutro exemplo, o Decreto-Lei n.º 352/88, de 1 de Outubro, aprovou a alienação de acções representativas de 49% do capital social do Banco Totta & Açores, por oferta pública de venda e subscrição no âmbito de aumento de capital do Banco destinada a público em geral, e venda directa a um grupo de instituições financeiras, que ficam obrigadas a proceder à subsequente dispersão das acções, em parte nos mercados internacionais, remetendo para resolução do Conselho de Ministros a regulamentação do montante, modalidades e condições da alienação.

83 Salvo no que toca aos processos de privatização de bancos objecto de resolução, que não são projectos de privatização, como se referiu supra.

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Direito Administrativo das Privatizações 311

O mesmo modelo foi ainda seguido na privatização da União de Bancos Portugueses, prevista no Decreto-Lei n.º 246-A/92, de 5 de Novembro, e desenvolvida pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 40/92, de 12 de Novembro, e que abrangeu a totalidade do capital social. Seguiu-se o modelo da oferta pública de venda por leilão competitivo (ponto 22 da Resolução), sem prejuízo da existência de reserva para trabalhadores, depositantes, obri-gacionistas e detentores residentes de títulos de participação.

Também o Decreto-Lei n. 203/94, de 26 de Julho, regulamentou o processo de reprivatização do Banco Pinto e Sotto Mayor, previu que a 2.ª fase daquele processo constituiria uma oferta pública de venda do lote remanescente de acções daquela sociedade a trabalhadores, pequenos subs-critores e emigrantes.

Da mesma forma, e também no sector segurador se assistiu ao recurso a esta modalidade predominante da oferta pública de venda. O Decreto-Lei n.º 2/92, de 14 de Janeiro, previu a reprivatização da Companhia de Seguros Mundial Confiança, SA, e foi desenvolvida pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 4/92, de 23 de Janeiro. Previu-se a alienação da totalidade do capital social mediante oferta pública de venda por leilão competitivo, a realizar em duas fases (ponto 17 da Resolução), sem prejuízo das acções reservadas aos trabalhadores e pequenos subscritores.

O Decreto-Lei n. 147/92, de 21 de Julho, previu ainda a alienação das acções da sociedade Companhia de Seguros Bonança, S.A., corres-pondentes a 15% do capital social na titularidade do Estado e foi desen-volvido pela Resolução n. 32/92, de 13 de Agosto. Previa-se subscrição pública pelos trabalhadores (ponto 5 da Resolução) e pelos accionistas (ponto 14), bem como alienação por oferta pública de venda (ponto 16 da Resolução).

O Decreto-Lei n.º 173-A/92, de 12 de Agosto, previu a alienação da totalidade do capital social da Companhia de Seguros Império, SA, tendo sido desenvolvida pela Resolução n. 33/92, de 13 de Agosto. Previu-se que a oferta ao público em geral fosse feita por meio de oferta pública de venda por leilão competitivo (ponto 15 da Resolução), sem prejuízo da reserva dos trabalhadores.

O mesmo procedimento de oferta pública em bolsa foi ainda usado no sector dos transportes. Note-se que as privatizações/reprivatizações no sector rodoviário passaram em regra pela totalidade do capital social, não sendo feitas em fases, mas de uma vez. No caso da Transporta-Transportes Porta a Porta, SA, regulada pelo Decreto-Lei n.º 196/91, de 29 de Maio, e

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312 Lourenço Vilhena de Freitas

pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 44/91, de 21 de Novembro, à parte da alienação aos trabalhadores, a restante tranche passou por oferta pública de venda em bolsa (em duas fases). A privatização da Rodo Cargo--Transportes Rodoviários de Mercadorias, S.A. foi operada pelo Decreto-Lei n.º 196/91, de 29 de Maio, e pela Resolução n.º 45/91, de 21 de Novembro e nos termos previstos para a transportadora anterior (ponto 16 da Reso-lução em causa).

Ainda noutros sectores se recorreu à oferta pública em bolsa, podendo dar-se nota de que no Decreto-Lei n.º 260/92, de 24 de Novembro, desen-volvido pela Resolução n. 1793, de 3 de Dezembro, e que previu a repriva-tização da Rádio Comercial, SA. Ao público em geral foi reservado, após subscrição, um leilão competitivo (ponto 24).

O Decreto-Lei n. 140/94, de 23 de Maio, previu a alienação das acções da Rodoviária do Sul do Tejo, S.A, desenvolvida pela Resolução 11-A/94, de 3 de Novembro.

Por seu turno, o Decreto-Lei 309/94, de 21 de Dezembro, previu a alie-nação das acções da Rodoviária de Lisboa, S.A., correspondentes a 100% do capital social, na titularidade da RNIP-Rodoviária Nacional, Investimentos e Participações, SGPS, SA., desenvolvida pela Resolução 18/95, de 16 de Fevereiro. No caso previu-se a alienação mediante oferta pública de venda por leilão competitivo, a realizar em duas fases (ponto 16 da Resolução), sem prejuízo da reserva para trabalhadores, pequenos subscritores e emigrantes.

E ainda recentemente, noutro sector, se recorreu a este modelo no caso dos CTT-Correios de Portugal, SA. O Decreto-Lei n.º 129/2913, de 6 de Setembro, aprovou a alienação de acções representativas de até 100% do capital social e remeteu para o Conselho de Ministros a regulamentação das condições finais aplicáveis à referida alienação. O quadro normativo da operação foi desenvolvido pela Resolução do Conselho de Ministros n. 62-A/2013, de 11 de Outubro, que determinou a alienação de até 70% do capital social da CTT, SA, através da realização de uma oferta pública de venda no mercado nacional, na qual se insere a alienação de um lote reservado aos trabalhadores. A Resolução do Conselho de Ministros n. 72-B/2013, de 18 de Novembro, determinou os termos e condições aplicá-veis à venda das acções nas modalidades de alienação.

Noutros casos assistiu-se à combinação de procedimentos abertos com venda directa, por vezes consoante a fase da reprivatização.

No caso das várias fases de privatização da Portugal Telecom assistiu--se a uma oferta pública de venda conjugada com uma venda directa a insti-

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tuições financeiras (2.ª fase), por vezes com obrigação de dispersão (3.ª e 5.ª fase) e admitindo-se a emissão de obrigações convertíveis em acções (3.ª fase). Esta tomada firma com obrigação de dispersão foi utilizada como forma de flexibilização dos procedimentos previstos84.

Com efeito, a privatização da Portugal Telecom, SA foi realizada combinando essas diversas soluções. A primeira fase foi aprovada pelo Decreto-Lei n.º 44/95, de 22 de Fevereiro (posteriormente alterado pelo Decreto-lei n.º 90/2011, de 25 de Julho) e passou pela alienação de um lote de acções composto por acções detidas pela CN, Comunicações Nacionais, SGPS, e por acções próprias detidas pela Portugal Telecom, parte mediante oferta pública de venda em bolsa de valores nacional, sendo 75% dessa parte reservada aos trabalhadores e 15% aos obrigacionistas, sendo o remanes-cente percentual acrescido das acções não subscritas pelos destinatários das reservas referidos, destinadas ao público em geral (arts. 2.º e 8.º). Previa-se ainda a combinação desse lote com a venda directa a um conjunto de insti-tuições financeiras, com a obrigação de essas entidades procederem à subse-quente dispersão dos títulos (artigo 8.º), podendo essa reserva ser reduzida em percentagem não superior a 15% em favor da reserva para público em geral (no caso de grande procura) ou aumentada em percentagem não supe-rior a 15% na condição de tal reserva se mostrar necessária para assegurar os compromissos resultantes da dispersão de acções (artigo 9.º).

Esta operação foi desenvolvida pela Resolução do Conselho de Minis-tros n.º 43-A/95, de 4 de Maio, regulando a oferta pública nos pontos 1 a 29 e a venda directa nos pontos 30 e ss, incluindo no Caderno de Encargos. A venda directa foi efectuada através de “book building” (art. 5.º) e destinava--se à dispersão no mercado dos Estados Unidos (artigo 4.º). A primeira fase procedeu à alienação de 27,26% do capital social.

Posteriormente, teve lugar uma segunda fase relativa a 21,74% do capital. A segunda fase de privatização não se afastou substancialmente do modelo gizado na primeira fase. Implicou uma oferta pública de venda e uma venda directa. Esta fase inseriu-se no Programa de Privatizações do Governo, aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n. 21/96, de

84 Como refere Nuno Cunha Rodrigues, ob. cit., p. 257: “[o] bookbuilding tem sido utilizado em diferentes processos de reprivatização, permitindo contornar alguma rigidez da LQP no tocante às modalidades de venda. Com efeito, o recurso ao bookbuilding tem permitido ao Governo utilizar a figura da venda directa de capital a sindicatos bancários que intermedeiam a operação e assume obrigação de imediata dispersão das acções viabi-lizando a imediata dispersão do capital a reprivatizar.”

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8 de Fevereiro. A 2.ª fase consistiu na alienação de um número de acções ordinárias, detidas pelo Estado e pela Partest-Participações do Estado, SGPS, SA, em percentagem não superior a 49% do capital social. Previa-se que a alienação operaria por oferta pública de venda no mercado nacional desti-nada ao público em geral e mediante venda directa a um grupo de institui-ções financeiras (artigo 2.º, n.os 1 e 3 do Decreto-Lei n.º 34-A/96, de 24 de Abril). Previam-se correcções em função da procura, alterando-se nesse caso a percentagem das reservas em montante não superior a 15% (artigo 6.º). Esta segunda fase de privatização foi regulamentada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 67-A/1996, de 10 de Maio. No ponto 33 da mesma o Conselho de Ministros delegou no Ministro das Finanças, com faculdade de subdelegar no Secretário de Estado do Tesouro e Finanças, a competência para fixar os preços de alienar das acções da PT. No que toca ao Caderno de Encargos da venda directa, anexo à Resolução, as entidades adquirentes obrigavam-se a diligenciar a promoção, posteriormente à venda directa, das operações necessárias à dispersão de parte dos títulos no mercado dos Estados Unidos da América, através da emissão de um programa de ADR (american depositary receits), bem como à oferta das acções noutros mercados da Europa e do resto do mundo (artigo 4.º do Caderno de Encargos anexo à Resolução em causa),

O mesmo modelo foi ainda seguido na terceira fase de privatização aprovada pelo Decreto-lei n.º 90/2011, de 25 de Julho, que combinou uma oferta pública de venda no mercado nacional e uma venda directa a um conjunto de instituições financeiras, que ficaram obrigadas a proceder à subsequente dispersão das acções, parte da qual em mercados internacio-nais, com vista a consolidar o desejável grau de internacionalização da PT e a afirmar a presença no País das suas empresas nos mercados internacionais de capitais, designada venda directa internacional e uma outra venda directa a uma instituição financeira, a qual ficava obrigada a transmitir as acções a parceiros estratégicos da PT que fossem entidades operadoras de telecomu-nicações e que se encontrassem obrigados a contribuir positivamente para a modernização e o incremento da competitividade da PT, num quadro de alianças à escala global, designada venda directa estratégica (n. 4 do artigo 2.º). Previu-se ainda a eventual alteração dos objectos da oferta pública de venda e da venda directa institucional e alienação de um lote suplementar em 30% consoante a procura (artigo 6.º). A venda directa estratégica estava prevista como residual e baseava-se nas acções que não fossem destinadas à oferta pública de venda ou à venda directa. Esta operação foi ainda regu-

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lamentada pela Resolução do Conselho de Ministros n. 149-A/97, de 11 de Setembro e pela Resolução n.º 167/97, de 6 de Outubro.

O Decreto-Lei n.º 119-A/99, de 14 de Abril, aprovou a 4.ª fase de reprivatização da PT, que, seguindo o modelo anterior, passou por uma oferta púbica de venda no mercado nacional e venda directa, operações que visavam alienar acções ordinárias representativas de uma percentagem do capital de empresa não superior a 13,5%. O artigo 3.º regulou a oferta pública de venda e o artigo 5.º a venda directa. O artigo 8.º previa que com vista à obtenção de um maior grau de diversificação da estrutura accionista da PT, poderia efectuar-se a emissão de obrigações convertíveis em acções ordinárias da PT. Em anexo foi aprovado o respectivo Caderno de Encargos da emissão de obrigações convertíveis em acções da Portugal Telecom. As condições finais e concretas da privatização, no que toca a esta fase, foram desenvolvidas pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 56/99, de 17 de Junho, pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 70/99, de 12 de Julho e Resolução do Conselho de Ministros n.º 87/99, de 12 de Agosto. Na 4.ª fase foram alienadas acções correspondentes a cerca de 13,5% do capital social.

A 5.ª fase de reprivatização foi aprovada pelo Decreto-Lei n.º 227-A/ /2000, de 9 de Setembro e igualmente não se afastou do modelo precedente. A alienação fez-se nos termos do artigo 2.º, n.º 5, por oferta pública de venda no mercado internacional; venda directa a um conjunto de institui-ções financeiras, que ficam obrigadas a proceder à subsequente dispersão das acções; outra venda directa a uma instituição financeira, a qual ficava obrigada a transmitir as acções a accionistas de referência da PT, adiante designada por venda directa de referência; e uma oferta em mercado de bolsa das acções. O n.º 7 do artigo 2.º previu ainda que a 5.ª fase de priva-tização do capital social da PT poderia integrar, também, e desde que os órgãos sociais da PT o deliberassem, um aumento do capital social da PT por novas entradas em dinheiro que não excedesse 15% do capital social da PT. O artigo 6.º previu a alteração do objecto da oferta pública e de venda e da venda directa institucional consoante a procura (em % a fixar na resolução) e a possibilidade de alienação de um lote suplementar. A regulamentação dessa fase foi complementada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 148/2000, de 3 de Novembro e pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 169/2000, de 5 de Dezembro.

No caso da SECIL-Companhia Geral de Cal e Cimento, SA e da CMP – Cimentos Maceira e Patais, SA também se assistiu a uma combi-nação entre concurso público com venda em bloco e depois oferta pública.

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Estas empresas foram objecto de reprivatização por força do Decreto-Lei n. 246-B/92, de 5 de Novembro, desenvolvido no que toca à primeira fase da reprivatização pela Resolução n. 41/92, de 12 de Novembro. O Caderno de Encargos anexo à Resolução em causa previu, no artigo 1.º, a repri-vatização conjunta das participações indirectas do Estado na Secil e na CMP, por meio de concurso, que teve por objecto oferta pública de alie-nação conjunta de acções detidas pela PARTEST-Participações do Estado, SGPS e pela CIMPOR-Cimentos de Portugal, SA.. Previu-se ainda que a operação foss contratada em bloco com o conjunto das entidades que inte-gram o agrupamento vencedor, na proporção das acções que cada um haja declarado adquirir. Já no que toca à segunda fase de reprivatização da Secil e da CMP, esse processo consistiu numa oferta pública de venda dos lotes remanescentes de acções daquelas sociedades, que ficaram na titularidade da PARTEST-Participações do Estado, SGPS, SA, a trabalhadores, pequenos subscritores e emigrantes.

Modelo similar foi o da privatização da Tabaqueira.O Decreto-Lei n.º 63/96, de 16 de Agosto de 2014, previu no seu artigo

1.º a alienação, em três fases, da totalidade das acções representativas do capital social da Tabaqueira-Empresa Industrial de Tabacos, SA, consistindo a primeira fase na alienação, por concurso público, de um bloco indivisível de acções, a segunda fase na alienação, preferencialmente por oferta pública de venda destinada ao público em geral, e a terceira fase, na alienação das acções representativas de uma percentagem não superior a 20% do capital social da Tabaqueira através de oferta pública de venda reservada a trabalha-dores, pequenos subscritores e emigrantes. O artigo 13.º previa que nenhuma pessoa singular ou colectiva podia adquirir no âmbito das operações que integram a privatização mais de 65% do valor da Tabaqueira.

Noutro grupo de casos assistiu-se à alienação por transacção em bolsa.Por exemplo, o Decreto-Lei n.º 353/88, de 6 de Outubro, previu, rela-

tivamente à Unicer-União Cervejeira, S.A., que o Estado e outras entidades pertencentes ao sector público podem alienar as acções de tipo B de que fossem titulares, por transação em bolsa de valores, devendo 20% ser reser-vadas a pequenos subscritores, a trabalhadores que o tenham sido durante mais de três anos e até 10% de acções a alienar poderiam ser reservados a pequenas subscrições por emigrantes, sendo que nenhuma entidade não pública, singular ou colectiva, estrangeira ou cujo capital fosse detido maio-ritariamente por entidades estrangeiras poderia exceder 10% das acções a alienar, sob pena de nulidade.

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Por seu turno, o Decreto-Lei n.º 300/90, de 24 de Setembro, trans-formou a Centralcer-Central de Cervejas, EP, em sociedade anónima com a denominação de Centralcer-Central de Cervejas, SA, também deter-minou a aprovação da alienação da totalidade das acções representativas do capital social da sociedade, para trabalhadores, pequenos subscritores e emigrantes (até 20%) e o remanescente por oferta em bolsa de valores. Este diploma foi objecto de desenvolvimento pela Resolução n.º 39/90, de 27 de Setembro.

O mesmo ocorreu com a GALP. No que toca à GALP –Petróleo e Gás de Portugal, SGPS, SA, cuja denominação foi entretanto alterada pela GALP Energia, SGPS, SA, foi criada pelo Decreto-Lei n.º 137-A/99, de 22 de Abril, posteriormente alterado pelo Decreto-Lei n.º 277-A/99, de 23 de Julho, com o agrupamento das participações estatais directas na Petró-leos de Portugal-PETROGAL,SA, na GDP-Gás de Portugal, SGPS e na TRANSGÁS-Sociedade Portuguesa de Gás Natural, SA.

A 1.ª fase do processo de reprivatização da GALP, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 261-A/99, de 7 de Julho, e regulamentada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 140-A/99, de 20 de Novembro, consistiu num aumento do respectivo capital social, mediante a emissão de novas acções reservadas à subscrição pelos accionistas da PETROGAL e da TRANSGÁS e a realizar, em primeira linha, por conversão das suas participações nas mesmas sociedades.

Na 2.ª fase do processo de reprivatização da GALP, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 21/2000, de 1 de Março, e regulamentada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 10-A/2000, de 16 de Março, foram alienadas, por venda directa, acções representativas de 11% do capital social da GALP às sociedades comerciais de direito italiano AgipPetroli, S.p.A., SNAM, S.p.A., e Società Italiana per Gas per Azioni (Italgas), S.p.A., e alienadas acções representativas de 4% do capital social da GALP à sociedade comercial de direito espanhol Iberdrola, S.A.

A 3.ª fase voltou a consistir na alienação, por venda directa, de uma participação não superior a 18,3% do capital social da GALP a um operador do sector energético cuja actividade e activos pudessem contribuir especial-mente para a desejada reorganização do sector e foi aprovada pelo Decreto--Lei n.º 124/2003, de 20 de Junho.

O Decreto-Lei n.º 166/2006, de 14 de Agosto, aprovou a 4.ª fase do processo de reprivatização da GALP Energia. SGPS, SA. Essa alienação efectuou-se mediante uma oferta pública de venda no mercado nacional,

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em conformidade com a alínea a) do n.º 1 e com o n.º 2 do artigo 6.º da Lei n.º 11/90, de 5 de Abril, e incluiu uma venda directa a um conjunto de instituições financeiras em conformidade com a alínea b) do n.º 3 e com o n.º 4, ambos do artigo 6.º.

A 5.ª fase, operada pelo Decreto-Lei n.º 185/2008, de 19 de Setembro, incidiu sobre acções representativas do capital social até um montante que não excedesse 7% do capital. A fase foi realizada na modalidade de venda directa e concretizou-se mediante a emissão de obrigações que tinham como activo subjacente acções representativas do capital social da Galp e com estas eram susceptíveis de permuta ou reembolso. Ficou cometido ao Conselho de Ministros fixar as quantidades a alienar em cada uma das reservas e sub-reservas no âmbito da oferta pública de venda e fixar a quantidade de acções a oferecer ao público em geral e em venda directa.

Também na reprivatização da EDP se seguiu esse modelo compósito. Com efeito, foi na sequência do Decreto-Lei n.º 205 - G/75, de 16 de

Abril, que resultou na nacionalização das empresas que então operavam na produção, transporte e distribuição de energia eléctrica, que foi criada a EDP, pelo Decreto-Lei n.º 502/76, de 30 de Junho, através da absorção dos activos das referidas empresas e da atribuição da exclusividade do exercício do serviço público, no território do continente, da produção, transporte e distribuição de energia eléctrica.

A primeira fase de privatização da EDP ocorreu em Junho de 1997, com a alienação de 179.960.000 acções representativas de 29.99% do capital da EDP e foi aprovada através do Decreto-Lei n.º 78-A/97 de 7 de Abril, e a operação consistiu conjugadamente numa: (i) Oferta Pública de Venda (OPV) no mercado nacional destinada a pequenos subscritores, público em geral, obrigacionistas e trabalhadores da EDP; (ii) Venda Directa dirigida a Investidores Institucionais que ficaram obrigados a proceder à posterior dispersão das acções, nomeadamente em mercados internacionais. As condi-ções desta primeira fase de privatização foram definidas pelas Resoluções do Conselho de Ministros n.ºs 68/97, 82/97 e 95/97.

A segunda fase de privatização, aprovada através do Decreto-Lei n.º 315/97, de 19 de Novembro e regulamentada através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 69/98, correspondeu à celebração de um acordo de parceria estratégica entre a EDP e a congénere espanhola Iberdrola, pelo qual cada uma das empresas ficou com a opção de adquirir 2,25% do capital social da outra, sendo que a Iberdrola exerceu a sua opção durante a terceira fase de reprivatização.

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A terceira fase de privatização da EDP correspondeu à venda de mais 97.100.000 acções da empresa, correspondentes a 16,2% do capital social e foi prevista no Decreto-Lei n.º 94-C/98, de 17 de Abril, e nas Resoluções do Conselho de Ministros n.ºs 65/98 e 71/98.

A quarta fase de privatização da EDP ocorreu durante o mês de Outubro do ano 2000, tendo sido alienada pelo accionista Estado Português uma posição equivalente a 20,0% do capital da empresa, correspondente a 600 milhões de acções (valor pós stock-split).

A quinta fase na privatização da empresa foi prevista no Decreto-Lei n.º 218-A/2004, de 25 de Outubro e consubstanciou-se num aumento de capital, realizado com o objectivo de financiar a aquisição de uma partici-pação adicional na Hidrocantábrico, e uma venda directa de referência. Os termos definitivos da operação foram estabelecidos pelas Resoluções do Conselho de Ministros n.º 165/2004 e n.º 166/2004.

A sexta fase de reprivatização foi prevista em execução do disposto no Decreto-Lei n.º 209-A/2005, de 2 de Dezembro, e da Resolução do Conselho de Ministros 186-A, de 7 de Dezembro de 2005 e nos seus termos, a Parpú-blica - Participações Públicas (SGPS), S.A. lançou uma emissão de obriga-ções susceptíveis de permuta por acções representativas do capital social da EDP. Estas obrigações foram objecto de colocação particular junto de investidores institucionais nacionais e estrangeiros.

A sétima fase de reprivatização surgiu no quadro do disposto no Decreto-Lei n.º 382/2007, de 5 de Novembro, e da Resolução do Conselho de Ministros 176-A, de 3 de Dezembro de 2007, sendo que a Parpública - Participações Públicas (SGPS), S.A. aprovou o lançamento de uma emissão de obrigações susceptíveis de permuta por acções representativas do capital social da EDP. Estas obrigações foram objecto de colocação particular junto de investidores institucionais nacionais e estrangeiros

Em 26 de Outubro de 2011, o Governo Português aprovou, através do Decreto-Lei n.º 106-A/2011 de 26 de Outubro, a 8.ª fase do processo de privatização do capital social da EDP. Na mesma previu-se uma venda directa, pela Parpública, de acções representativas de 21,35% do capital social da EDP, revogando-se, assim, o regime estabelecido no Decreto-Lei n.º 105/2010, de 1 de Outubro.

Na 2.º fase de reprivatização da REN-Redes Energéticas Nacionais, SGPS, SA, combinaram-se operações de venda directa a um ou mais inves-tidores com vista a tornarem-se accionistas de referência da REN (venda directa de referência), com uma venda directa a conjunto de instituições

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financeiras que ficavam obrigadas a proceder à dispersão das acções, desig-nada por venda directa institucional, e ainda uma oferta pública de venda no mercado nacional (artigo 2.º). Nos termos do artigo 3.º, as acções a alienar por venda de referência seriam objecto de uma ou mais operações junto de um ou mais investidores, nacionais ou estrangeiros, incluindo entidades com perfil de investidor industrial ou entidades com perfil de investidor finan-ceiro e perspectiva de investimento estável e de longo prazo, com vista ao desenvolvimento estratégico da empresa.

O processo relativo à venda directa era organizado em diferentes fases, incluindo uma fase preliminar de recolha de intenções de aquisição junto de potenciais investidores de referência, relativamente à totalidade ou a uma parcela do lote máximo de acções a alienar, a qual não podia ser inferior a 5% do capital social da REN.

Constituíram critérios de selecção das intenções de aquisição para inte-gração dos potenciais investidores de referência em subsequentes fases do processo de alienação: o preço indicativo apresentado para aquisição das acções representativas do capital social da REN objecto da venda directa de referência, a apresentação de um projecto estratégico para a sociedade, tendo em vista o desenvolvimento das suas actividades nos mercados nacional e internacional, bem como a promoção da concorrência e compe-titividade do sector energético e o desenvolvimento da economia nacional, a ausência de condicionantes jurídicas ou económico-financeiras do interes-sado para a concretização da venda directa de referência em prazo, condi-ções de pagamento e demais termos que fossem adequados para a salva-guarda dos interesses patrimoniais do Estado ou para o funcionamento do sector energético nacional, a respectiva idoneidade, capacidade financeira e técnica e de execução, assim como as garantias eventualmente prestadas para cumprimento dos critérios constantes das alíneas anteriores (artigo 4.º). No que toca à venda directa institucional, as instituições financeiras adqui-rentes ficavam obrigadas a proceder à subsequente dispersão das acções no mercado nacional ou em mercados internacionais.

O Caderno de Encargos foi aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n. 52-B/2011, de 7 de Dezembro. Pela Resolução do Conselho de Ministros n. 13/2012, de 8 de Fevereiro, foram então seleccionados os concor-rentes State Grid International Development Limited e Oman Oil Company SAOC para efeitos de aquisição de 25 e 15% do capital social, respectivamente.

Também na tentativa de reprivatização da TAP relativa à 3.ª e 4.ª fases, o modelo previsto era similar. Com efeito, o Decreto-Lei n.º 210/2012, de

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21 de Setembro, previu que a 3.ª fase de reprivatização seria constituída por uma ou mais operações de aumento de capital da TAP-SGPS, SA, a subs-crever por um ou mais investidores, bem como pela alienação de acções representativas do capital social, sendo que a 4.ª fase de reprivatização constituída por uma oferta pública de venda de acções representativas do capital social (artigo 2.º). Nos termos do artigo 3.º, a 4.ª fase realizava-se mediante oferta pública de venda de acções reservadas para aquisição por parte dos trabalhadores da TAP, SGPS, SA, e de trabalhadores de outras empresas do Grupo TAP, nos termos que viessem a ser aprovados por reso-lução do Conselho de Ministros. Nos termos do artigo 7.º, n.º 1, o processo destinado à concretização da venda directa podia ser organizado em dife-rentes etapas, incluindo uma recolha preliminar de intenções de aquisição ou subscrição, junto de potenciais investidores, em relação à totalidade ou a parte das acções incluídas na mesma. Esta fase terminou na venda ao consórcio Gateway. Privatização essa que o Governo pretendeu “reverter” parcialmente.

Noutros casos recorreu-se apenas ao concurso público para venda directa.

Por exemplo, o Decreto-Lei n.º 148/92, de 21 de Junho, previu a priva-tização da SOCARMAR-Sociedade de Cargas e Descargas Marítimas, SA. No caso foi previsto um concurso que previa uma selecção dos concorrentes e, posteriormente, um acto de abertura das ofertas e determinação do concor-rente (ponto 4 da Resolução).

O Decreto-Lei n. 288/92, de 26 de Dezembro, previu no n. 1 do artigo 1.º, a venda, por concurso público, da participação que o IPE detinha na SOPONATA-Sociedade Portuguesa de Navios Tanques, S.A. Nos termos do artigo 3.º da Resolução n. 52-A/93, de 5 de Agosto, a operação era contra-tada em bloco com o concorrente vencedor, se fosse individual, ou com o conjunto das entidades do agrupamento vencedor, neste caso na proporção das acções que cada uma tivesse declarado pretender adquirir.

A privatização da PORTUCEL-Empresa de Celulose e Papel de Portugal, EP, foi aprovada no que toca à sua primeira fase pelo Decreto--Lei n.º 56/95, de 31 de Março, relativamente à Portucel Industrial-Empresa de Celulose e Papel de Portugal, SGPS, SA, sociedade então participada exclusivamente pela PORTUCEL- Empresa de Celulose e Papel de Portugal, SGPS, SA. A segunda fase de privatização da Portucel foi aprovada pelo Decreto-Lei n.º 166/2001, de 25 de Maio e desenvolvida pela Resolução 52-A/95, de 1 de Junho.

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A segunda fase ocorreu em dois segmentos – modalidade de aumento do capital da Portucel, a realizar por efeito da eventual fusão por incorpo-ração da Soporcel-Sociedade Portuguesa de Papel, SA, sociedade aberta, na Portucel, e na modalidade de alienação, por concurso público, de um lote indivisível de acções com o valor nominal de €1, que correspondesse a 25% do capital social da Portucel com direito de voto e, eventualmente, mediante a alienação de um lote suplementar de acções, com o valor de €1, que correspondesse a 15% do capital social da Portucel, nos termos da opção de venda regulada pelo artigo 7.º do referido diploma.

No que toca à identidade dos concorrentes, o concurso previa que podiam apresentar propostas de compra entidade nacionais e estrangeiras, admitindo-se que os concorrentes se apresentassem individualmente ou em agrupamento, devendo, no entanto, as propostas de compra ser apresentadas para a totalidade do bloco de acções em causa (artigo 4.º).

No que toca à COSEC-Companhia de Seguros de Créditos, S.A., o Decreto-Lei n.º 68/92, de 27 de Abril, previu a alienação das suas acções, correspondentes a 49% do capital social. Previu-se que a alienação operasse por venda directa nos termos do artigo 1.º do Caderno de Encargos aprovado pela Resolução n. 17-A/92, de 28 de Maio.

Tal ocorreu também no caso de reprivatização do BPN, de acordo com a alteração que o Decreto-Lei n.º 96/2010, de 19 de Agosto, operou ao Decreto-Lei n.º 2/2010, de 5 de Janeiro.

Por outro lado, e noutras situações, recorreu-se ao concurso limitado.Pode discutir-se se a primeira fase do processo de reprivatização do

BPN consubstanciou um concurso limitado e não um concurso público, como foi enunciado.

No caso do BPN, e passado um ano sobre a nacionalização, entendeu--se que haviam cessado as razões que justificavam a manutenção do BPN na esfera pública, pelo que se iniciou o respectivo processo de reprivati-zação com a publicação do Decreto-Lei n.º 2/2010, de 5 de Janeiro e das resoluções do Conselho de Ministros n.º 57-B/2010 e n.º 80/2010, de 8 de Outubro de 2010, que previam a lançamento de um concurso público e uma oferta de venda de 5% das acções representativas do capital social do BPN reservada a trabalhadores.

Nos termos desse diploma a reprivatização operaria por concurso “público” e oferta de venda a trabalhadores do BPN (artigo 2.º, n.º 2). Nos termos do artigo 3.º, n.º 3, só seriam admitidos a concurso instituições de crédito e empresas de seguros, ou sociedades gestoras de participações

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sociais que as detenham ou sejam detidas a 100% por aquelas empresas, constituindo condições exigíveis aos candidatos adquirentes ao concurso, entre outras a ser fixadas na resolução, a sua experiência de gestão na acti-vidade bancária; a sua dimensão e solidez financeira e a sua capacidade para apoiar o BPN no seu processo de reestruturação financeira. Este diploma foi desenvolvido pelas Resoluções do Conselho de Ministros n.º 57-B/2010, de 16 de Agosto, e 80/2010, de 12 de Outubro.

Contudo, o concurso “público” lançado com vista a seleccionar e encontrar-se um comprador para as acções representativas do capital social do BPN ficou deserto, não tendo sido apresentada qualquer proposta, tendo--se posteriormente recorrido a outro procedimento para a alienação do BPN, por venda directa, de que se deu nota supra.

Recentemente, o Decreto-Lei n.º 45/2014, de 20 de Março, e na esteira da alteração operada pela Lei n.º 35/2013, de 11 de Junho, à Lei n.º 88-A/97, de 25 de Julho (Lei de Delimitação de Sectores), que aprovou o processo de reprivatização da Empresa Geral de Fomento, SA (EGF), mediante a alienação das acções representativas de até 100% do capital social, também previu que a alienação das acções se efectuasse através de um concurso público e de uma oferta pública de venda dirigida a trabalhadores da EGF (artigo 2.º, n.º 2), sendo que esse concurso “público” restringe também o perfil dos candidatos.

O concurso previu as seguintes fases: apresentação de propostas não vinculativas, por investidores nacionais ou estrangeiros, que demonstrassem possuir capacidade técnica e de gestão e a dimensão e solidez financeiras indispensáveis à gestão da EGF, apresentação de propostas vinculativas pelos concorrentes seleccionados na fase anterior, escolha do concorrente vencedor, que podia ser precedida de negociações com um ou mais inte-ressados (artigo 3.º). Nos termos do artigo 6.º, os critérios de selecção dos concorrentes para a fase seguinte eram: a) preenchimento dos requisitos relativos a conhecimento e capacidade técnica e de gestão comprovados no que respeita ao sector da gestão de resíduos ou de outras infraestruturas relevantes e capacidade financeira, apresentação de um projecto estraté-gico para a EGF considerado adequado aos objectivos da privatização, em especial, o desenvolvimento da economia nacional e a garantia da prestação da actividade de acordo com os objectivos de serviço publico exigidos para o sector, e maximize o saber-fazer e a capacidade técnica da EGF; preço adequado para aquisição das acções da EGF (artigos 5.º e 6.º).

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Nos termos do artigo 7.º seriam convidados a apresentar proposta os concorrentes que tivessem sido seleccionados na fase anterior (n. 1) Nos termos do n. 2, os interessados que não se tivessem apresentado na fase anterior, ou os que tivessem sido excluídos, quando, em qualquer dos casos fossem considerados idóneos, podiam integrar um agrupamento seleccio-nado para apresentar proposta na fase de apresentação de propostas vincu-lativas, mas não podiam isoladamente apresentar proposta nessa fase.

Nos termos do artigo 8.º, as propostas vinculativas seriam analisadas com base nos seguintes critérios: a) preço vinculativo apresentado para a aquisição das acções representativas do capital da EGF, quer em valor por ponto percentual de participação no capital social daquele, quer em valor global e expresso em euros; b) qualidade do projecto estratégico apresentado para a EGF; c) preço total proposto para a aquisição das acções da EGF e para as acções que resultem do exercício da opção de venda; d) ausência ou minimização de condicionamentes jurídicas, laborais e ou económico--financeiras do concorrente.

Nos termos do artigo 9.º, n.º 2, das negociações não podiam resultar condições globalmente menos favoráveis para o vendedor do que as cons-tantes da proposta vinculativa apresentada pelo concorrente em causa, sendo que no final das negociações, os concorrentes apresentariam uma proposta final que seria considerada para efeitos de selecção do vencedor.

Este procedimento tem uma grande especificidade, o facto de nos termos do artigo 11.º ser concedido aos municípios direito de alienação das participações sociais detidas por aqueles no capital das entidades gestoras de sistemas multimunicipais nas quais a EGF é accionista. Com efeito, a alienação estava sujeita ao exercício do direito de preferência por parte de município que detivesse participações no capital da mesma entidade gestora e que tivesse decidido não alienar as respectivas acções.

Deste breve excurso podemos concluir que se pode divisar uma certa predominância de algumas modalidades em certos sectores, por vezes utili-zando-se formas combinadas e mesmo atípicas ou não claramente previstas, como ocorre com o concurso limitado.

4.4. Procedimento de rePrivatização no quadro da lei n. 11/90

O artigo 7.º dispõe que uma reprivatização através de concurso público deve ser regulada pela forma estabelecida no artigo 4.º, no qual se prevê a

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existência de um caderno de encargos, com a indicação de todas as condi-ções exigidas aos candidatos a adquirentes. Suscita-se a dúvida sobre que aspectos devem ser regulados no caderno de encargos. Ponto certo é que existem diversos aspectos que devem ser regulados em sede de decreto-lei e não no caderno de encargos, desde logo a indicação de todas as condições exigidas aos candidatos a concorrentes. Não se acompanha, por isso, Mário Esteves de Oliveira (e outros)85; quando suscita a dúvida sobre se tais condi-ções devem constar do diploma legal ou do caderno de encargos. Diferente é a solução relativamente à venda directa, ficando relegados nesse caso para o caderno de encargos todas as condições finais e concretas da privatização.

Questionam ainda o autores citados se o caderno de encargos deve constar da resolução do conselho de ministros que aprove as condições finais e concretas da privatização. A nosso ver tal dúvida não tem razão de ser e o caderno de encargos deve constar da resolução, podendo, alterna-tivamente, em excesso de forma, constar do decreto-lei. Não é, por isso, necessário recorrer ao n.º 2, do artigo 40.º do CCP para integrar uma lacuna que a nosso ver não existe86.

Entende a doutrina que é necessário também aprovar um programa de procedimento ao abrigo do poder de auto-regulação procedimental87.

Note-se que deve constar do decreto-lei de reprivatização, quanto à regulação do concurso público, a atribuição ao Conselho de Ministros da competência para decidir sobre a “apreciação e selecção dos candidatos”, “todas as condições exigidas aos candidatos a adquirentes” (7.º, n.º 1), as condições especiais de aquisição de acções de que gozem trabalhadores e pequenos subscritores, nas quais se incluem as respeitantes à percentagem a adquirir ou subscrever por trabalhadores (art.º 13.º, n.º 1), bem como a percentagem máxima de capital que qualquer pessoa singular ou colectiva pode adquirir ou subscrever (art. 13.º, n.º 2); e o período de indisponibili-dade das acções (13.º, n.º 1).

Existe liberdade de conformação a nível do decreto-lei ou da resolução do Conselho de Ministros da tramitação em termos que não têm de ser coin-cidentes com o CCP (artigo 67.º)88.

85 Coord., Privatização e Reprivatizações, Coimbra, 2011, pp. 62 e ss.86 Noutra visão, cf. coord. Mário Esteves de Oliveira, Privatizações e Reprivatiza-

ções…, cit., p. 6687 Coord. Mário Esteves de Oliveira, Privatizações e Reprivatizações…, cit.,, p. 66.88 Coord. Mário Esteves de Oliveira, Privatizações e Reprivatizações…, cit.,, p. 67.

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Devem ser, contudo, salvaguardados os princípios da concorrência, igualdade e transparência, e, como resulta implicitamente do n.º 2 do artigo 20.º, da Lei, o princípio da imparcialidade, aspectos que serão desenvol-vidos no capítulo seguinte.

Suscita-se ainda a questão de saber se a opção pelo concurso público é compatível nomeadamente com a existência de uma fase pré-adjudica-tória de negociação (sendo certo que essa compatibilidade da fase de nego-ciação se verifica com o procedimento de ajuste ou venda directa). Tal fase é, considera-se, admissível, desde que preenchidos os requisitos materiais que justificam tal opção e se estiver prevista no decreto-lei ou no caderno de encargos (artigo 7.º, n.º 1).

São elementos essenciais do concurso público89: a publicidade na 1.ª série do DR, a formulação de requisitos de acesso dos concorrentes tão abertos quanto o permitir a dimensão do capital ou bem a reprivatizar (indivisível ou loteamento), não sendo admissíveis condicionamentos que defraudem a concorrência, a indicação dos documentos e elementos indis-pensáveis das propostas; a exclusão dos candidatos ou das propostas que não correspondam aos requisitos indispensáveis, a indicação dos factores (e eventuais subfactores), objectivos e subjectivos, de avaliação dos candi-datos ou das propostas e dos coeficientes de ponderação de cada um deles; a avaliação fundamentada e pontuada dos atributos das propostas e a adjudi-cação à proposta mais valiosa nos termos dela constantes, sem ajustamentos que prejudiquem os princípios da igualdade e da concorrência (artigo 99.º do CCP).

O procedimento é conduzido pelo júri, embora seja da competência do Conselho de Ministros a apreciação e selecção dos candidatos. Ao júri compete instruir o procedimento e tomar as decisões preparatórias, admitir e excluir os candidatos ou propostas, analisar, avaliar e ordenar as admitidas, elaborar um relatório onde exprima as premissas e conclusões a que chegou, permitir aos interessados que se pronunciem sobre elas e submeter tudo, a final, como uma proposta, a decisão do Conselho de Ministros.

Crítica certeira que dirige Mário Esteves de Oliveira ao regime vigente é a menção que a Lei n.º 11/90 faz à apreciação e selecção dos candidatos, quando do que se trata é de apreciação das propostas, salvo em procedi-mentos de concurso limitado por pré-qualificação.

89 Coord. Mário Esteves de Oliveira, Privatizações e Reprivatizações…, cit.,, p. 68

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Em qualquer caso, compete ao Conselho de Ministros a apreciação e selecção dos candidatos a que se refere o número anterior.

No que toca à venda directa, o artigo 8.º da Lei n.º 11/90 prevê que esta consiste na adjudicação sem concurso a um ou mais adquirentes do capital a alienar (8.º, n.º 1).

Para efeitos desse dispositivo legal é sempre necessária a existência de um caderno de encargos, com indicação de todas as condições da tran-sacção (8.º, n.º 2).

Nesse tipo de procedimento é, também, da competência do Conselho de Ministros a escolha dos adquirentes, bem como a definição das condições específicas de aquisição do capital social (n.º 3 do artigo 8.º).

O preceito só se reporta à venda directa de capital da empresa, mas estende-se, como bem nota Mário Esteves de Oliveira, à venda ou ajuste directo da titularidade de “outros bens nacionalizados”90.

Define-se venda directa como “adjudicação sem concurso a um ou mais adquirentes do capital a alienar”, o que, como refere Mário Esteves de Oliveira, corresponde de facto ao ajuste directo91, sendo a venda o contrato a celebrar após a adjudicação e cujo conteúdo resulta da fusão do conteúdo do caderno de encargos com os termos da melhor das propostas do ou dos concorrentes convidados para o efeito e da escolha mais ou menos vincu-lada, na sequência de eventuais negociações que se estabelecem a propósito dos seus atributos.

O legislador não regulou o concurso limitado.No que toca à venda directa, Mário Esteves de Oliveira (e outros)92

admitem sempre a possibilidade de negociação, a não ser em caso de proi-bição expressa. Pelo menos, sustentam os autores, no caso de convite de apenas uma entidade93. No caso de convite de diversas entidades, o CCP só admite hoje, na concretização que fez do princípio da concorrência, a negociação da proposta ou propostas desde que isso tenha sido mencionado no convite, o que entendem Mário Esteves de Oliveira (e outros) que deve aplicar-se igualmente aos casos de privatização.

A venda deverá respeitar os princípios de concorrência, igualdade e transparência, que serão desenvolvidos, como já se referiu, infra.

90 Coord. Mário Esteves de Oliveira, Privatizações e Reprivatizações, cit.,. 71.91 Coord. Mário Esteves de Oliveira, Privatizações e Reprivatizações, cit.,., p. 71.92 Coord. Mário Esteves de Oliveira, Privatizações e Reprivatizações, cit.,.,, p. 73

e ss.93 Coord. Mário Esteves de Oliveira, Privatizações e Reprivatizações, cit.,.,, p. 72.

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Como bem nota Mário Esteves de Oliveira (e outros)94, “[q]uanto às condições postas vinculativamente no convite ou no caderno de encargos e que a Administração manifestou aí não estar disposta a negociar (alínea a) do artigo 115.º, n.º 2, do CCP), devem elas considerar-se como intangí-veis, em qualquer caso, por se entender deverem prevalecer então, sem ressalva, os princípios da legalidade e da concorrência – não podendo a Administraçao recusar-se a alienar o bem em causa, desde que o concor-rente convidado, ainda que seja um só, satisfaça as condições vinculativas da transação.”

Diversamente do concurso público, a existência de caderno de encargos no ajuste directo não constitui menção a incluir obrigatoriamente no decreto--lei de privatização, sendo suficiente o seu envio aos convidados conjunta-mente com o programa do procedimento.

Referem ainda últimos autores citados que o “caderno de encargos” da venda directa se reporta às condições da transacção, e não “às condições exigidas aos concorrentes” como ocorre no concurso público, embora nos parece mera questão de formulação verbal sem conteúdo normativo dife-renciado.

As condições específicas da aquisição são as que resultam das condi-ções vinculadas, ou não, do caderno de encargos com os atributos especí-ficos da resposta ou proposta da entidade adjudicatária, ou, havendo vários, lotes, da proposta da respectiva entidade adjudicatária.

Duvida o autor referido se a escolha dos adquirentes para a definição das condições de aquisição do capital social corresponde à designação das entidades para ajuste directo ou antes à designação dos adjudicatários95. Contudo, a nosso ver, não há razão para a distinção. Deve entender-se que ao Conselho de Ministros compete não apenas a escolha do adjudicatário, mas, e como acabam por concluir Mário Esteves de Oliveira (e outros), também das entidades convidadas para o procedimento de ajuste directo, posição que se acompanha.

No que toca ao conteúdo do decreto-lei que aprova a operação de repri-vatização (referido no n.º 1 do artigo 4.º, da Lei n.º 11/90), este, nos termos do seu artigo 13.º, o decreto-lei deve aprovar o processo, as modalidades de cada operação de reprivatização, designadamente os fundamentos da adopção das modalidades de negociação previstas nos. 3 e 4 do artigo 6.º,

94 Coord. Mário Esteves de Oliveira, Privatizações…, cit., p. 73.95 Coord. Mário Esteves de Oliveira, Privatizações…, cit., p. 74.

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as condições especiais de aquisição de acções e o período de indisponibili-dade a que se referem os artigos 11.º, n.º 1, e 12.º, n.º 2.

Apesar de aparentemente pensado apenas para a reprivatização da titularidade de sociedades anónimas, porque apenas se remete para o artigo 4.º, n.º 1, e portanto só para esse caso valeria o art. 13.º - o certo é que há aí normas que são para aplicar a outras situações de reprivatização. Nem se alegue contra esse entendimento que, por exemplo, a privatização de direito de exploração prevê diversas remissões, nas quais não se contém uma remissão para o artigo 13.º, e que, contendo esse artigo remissões para o artigo 26.º e não para o artigo 13.º isso poderia causar alguma perple-xidade. É que, como bem nota Mário Esteves de Oliveira, é necessário aprovar decreto-lei para todos os tipos de reprivatização para além do caso da reprivatização das sociedades anónimas, seja de empresas públicas, seja de bens a reprivatizar96.

O artigo 14.º prevê que compete ao Conselho de Ministros aprovar, por resolução, de acordo com a lei, as condições finais e concretas das operações a realizar em casa processo de privatização (artigo 14.º).

Duvidam Mário Esteves de Oliveira (e outros) se a competência do Conselho de Ministros prevista no artigo 14.º se reporta à aprovação do caderno de encargos (com o clausulado relativo à alienação a proceder e aos direitos e obrigações a que a entidade alienante e o ou os adquirentes ficarão vinculados por força da operação de privatização) e do programa de concurso, ou se, alternativamente, poderá admitir-se que a competência respeita antes à aprovação dos termos ou cláusulas finais e concretas em que se traduz o acto de transferência de capital ou do bem a reprivatizar para o seu adquirente e se, portanto, se aplica também às decisões que os antecedem e de onde tais condições ou atributos já devem constar. Parece-nos claro que a competência prevista no artigo em causa se reporta ao diploma comple-mentar ao decreto-lei de privatização (a(s) Resolução(ões) do Conselho de Ministros) e do qual constarão o caderno de encargos e eventualmente o programa do procedimento, embora a decisão de adjudicação e escolha do adquirente, bem como as condições a observar na alienação de acções em concurso público ou venda directa, já estivessem cometidas ao Conselho de Ministros nos artigos 7.º, n.º 2 e 8.º, n.º 3 da Lei n. 11/90.

A resolução do Conselho de Ministros, além de respeitar a Constituição e a Lei-Quadro, terá de respeitar os princípios gerais de direito administra-

96 Coord. Mário Esteves de Oliveira, Privatizações…, cit., p. 93.

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tivo, como sejam os já referidos da igualdade, da concorrência e da trans-parência, considerados essenciais nos termos do art.º 1, n. 4, do CCP, e que, como se adiantou, se desenvolverão infra.

A contradição da Resolução do Conselho de Ministros com essas regras salda-se, consoante os casos, em inconstitucionalidade ou ilegalidade refor-çada ou em ilegalidade simples, sendo tal ilegalidade cognoscível em sede do contencioso administrativo por meio de acção administrativa com pedido de impugnação de normas (artigo 37.º, n.º 1, al. d) do CPTA) ou através da apreciação incidental da validade de actos ou de contratos.

Como se dirá infra, o próprio decreto-lei que aprova a (re)privatização está também balizado pelo respeito por certos princípios constitucionais, embora goze, evidentemente, de grande margem de discricionariedade.

Encontramos no historial das operações de reprivatização diversos exemplos da forma como foi definido pelo legislador o perímetro dos candi-datos ao concurso.

No caso da Portucel, foram estipulados como critérios de selecção, designadamente (a ser concretizados na resolução), a contribuição para a manutenção da identidade empresarial da Portucel e a apresentação de um adequado projecto estratégico para a sociedade nos seus diversos domínios de actividade, tendo presente o processo de reestruturação dos sectores da pasta e do papel que tem vindo a ser conduzidos pela sociedade nos últimos anos; a capacidade financeira do concorrente, a contribuição para a manu-tenção da Portucel como sociedade com o capital aberto ao investimento público, a contribuição para o reforço da capacidade concorrencial da Portucel no plano internacional e o preço oferecido, sem prejuízo de poder ser estabelecido pelo caderno de encargos um preço mínimo.

No artigo 5.º, n.º 3, foi ainda referido que devia ser tido especialmente em conta, na avaliação das propostas de contribuição para a manutenção da identidade empresarial da Portucel, as medidas relativas à manutenção do seu centro de decisão e à manutenção dos sinais distintivos da empresa.

O artigo 3.º da Resolução do Conselho de Ministros n.º 65/2003, de 30 de Abril, desenvolveu no artigo 3.º os critérios de apreciação da proposta vencedora, a saber: apresentação de um adequado projecto estratégico para a sociedade nos seus diversos domínios de actividade, em coerência com o processo de reestruturação operativa do grupo Portucel nos sectores da pasta e do papel que tem vindo a ser desenvolvido nos últimos anos e o prosseguimento, aprofundamento e reforço da sua afirmação internacional focando nomeadamente:

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i) A contribuição desse projecto e dos activos oferecidos no âmbito do mesmo para o reforço da identidade empresarial, da capaci-dade produtiva e da competitividade da Portucel nos principais segmentos do mercado da pasta e do papel;

ii) Garantia da continuação do plano de desenvolvimento industrial, a partir do território nacional, desenvolvendo o sector da pasta e do papel, no qual Portugal tem um elevado potencial de desenvol-vimento futuro;

iii) Acréscimo da autonomia da empresa através da criação de uma escala operacional superior, pela dimensão atingida após o aumento de capital, em virtude da incorporação de activos adequados, assim garantindo o crescimento da quota de mercado;

iv) O reforço da capacidade operacional da Portucel, potencializando a criação de valor decorrente de níveis superiores de racionalidade e de eficiência.

b) Continuação da estruturação eficaz do sector florestal e garantias de manutenção de um papel relevante no plano de reflorestação nacional e na criação de um sistema eficaz de conservação da floresta;

c) Reforço da capacidade económico-financeira da Portucel.d) Reforço da estrutura e estabilidade accionista, garantindo a susten-

tabilidade de uma posição de relevo no sector da pasta e do papel a nível internacional,

e) Contribuição para a manutenção da Portucel, como sociedade aberta ao investimento público;

f) Salvaguarda dos interesses patrimoniais do Estado;g) Capacidade e idoneidade dos concorrentes.”

Existe também grande liberdade do legislador na conformação das fases procedimentais.

No caso da Portucel, as fases previstas para o concurso foram: primeira fase: entrega, abertura e admissão formal das propostas; segunda fase: selecção e exclusão dos concorrentes; terceira fase: fase de apreciação das propostas, negociação dos seus termos finais e determinação do concorrente vencedor (artigo 4.º, n.º 1). Apenas passariam à segunda fase do concurso os concorrentes admitidos na primeira fase e apenas participam na terceira e última fase os concorrentes para o efeito qualificados na segunda fase (artigo 4.º, n.º 2).

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Nos termos do artigo 5.º, n.º 1, o concurso era aberto a entidades nacionais e estrangeiras do sector da pasta do papel, que podiam concorrer individualmente ou em agrupamento, devendo, no entanto, as propostas ser apresentadas para a totalidade do bloco de acções a subscrever.

O procedimento de (re)privatização culmina com a adjudicação. Uma das situações patológicas relativas à adjudicação é a adjudicação

tardia, fora do prazo de manutenção das propostas. Se não houver um motivo justificado para a mesma deve considerar-se que o procedimento pré-contratual caducou.

Se houver um motivo justificativo tal não acontece. Consideram-se motivos justificativos, a necessidade de recomposição do júri, o impedimento temporário de um dos membros, defeito de funcionamento da plataforma electrónica imputável à rede pública (se aplicável, isto é se o procedimento porventura corresse em plataforma electrónica), necessidade de apuramento de questões complexas difíceis de resolver ou apuramento de mais propostas do que as esperadas.

Havendo motivos, a adjudicação pode ser notificada após o termo do prazo de manutenção das propostas, “sem prejuízo” do direito de recusa da adjudicação pelo concorrente cuja proposta foi escolhida, por já não estar vinculado a contratar. No caso de recusa, assistirá ao concorrente vencedor direito a uma indemnização, salvo no caso de exclusão legal do direito a indemnização nos termos do Decreto-Lei que aprova a operação de (re)privatização.

A notificação se efectuada para além do prazo de manutenção das propostas de adjudicação, e mesmo se foi decidida no prazo fixado, se for o caso, nas peças procedimentais, não pode ser aceite. Nesse sentido se orientam Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira por considerarem que a resposta diversa à questão anterior potenciaria o risco de antedatação de aceitação da proposta, mas também porque importa proteger o interesse dos proponentes, e esse é, a seu ver, a ratio da norma, pelo que estes não devem ficar vinculados para além do prazo caso não sejam noti-ficados da adjudicação.

A adjudicação notificada atempadamente ao adjudicatário, mas tardia-mente aos outros não é inválida, na posição de Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, porque não beneficia e até pode favorecer os preteridos (no caso de a adjudicação por qualquer causa neles vir a recair) e respeita-se, na mesma, o direito de recusa do adjudicatário.

Note-se, por último, que a recusa de adjudicação tardia é um acto livre.

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Adjudicação condicional ou modal é aquela cuja eficácia está depen-dente da verificação de um evento incerto e de cuja ocorrência resultará a adjudicação.

Aparentemente a adjudicação deveria ser condicionável à luz do artigo 149.º, n.º 1 do CPA97 quando afirma que actos administrativos podem ser sujeitos a condição. Mas os autores citados rejeitam a condição suspensiva porque contraditória com o facto que a adjudicação implica o cumprimento imediato da obrigação por parte do adjudicatário. Não se acompanha essa posição, uma vez que é prática corrente os contratos incluírem condições precedentes ou suspensivas, pelo que não se compreende porque não se poderia anteceder esse efeito suspensivo para a adjudicação, desde que essa possibilidade de adjudicação condicional esteja prevista nas peças concur-sais ou seja objecto de acordo da contraparte.

Sendo a adjudicação eficaz, o adjudicatário terá de cumprir todas as exigências da lei em matéria de habilitação, de prestação de caução, de confirmação de compromissos de terceiros e de negociação da minuta do contrato nos termos que estiverem previstos nas peças procedimentais. Como se disse, é a nosso ver admissível a aposição de condições suspen-sivas, não apenas relativamente à obtenção de fundos comunitários, por exemplo, mas relativamente a outros aspectos que podem mesmo ser do interesse do co-contratante. Também para Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, se a condição suspensiva se verificar após o prazo de manutenção das propostas vale como adjudicação tardia. Este raciocínio só vale, a nosso ver, quando a condição não fique na disponi-bilidade do particular co-contratante e não tenha sido estabelecida em seu benefício.

Também as condições resolutivas, não são admitidas, salvo previsão nas peças concursais, uma vez que, segundo Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, criam encargos ou contrapartidas não previstos nas peças do procedimento.

Outra situação admissível é a da adjudicação a termo. Quanto aos termos suspensivos ou resolutivos vale, para Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, o que se disse para as cláusulas condicionais. O autor tem dúvidas sobre se a aposição de termos suspensivos implicará, caso a celebração do contrato seja posterior ao prazo de validade das propostas, se a adjudicação será tardia. É que, argumenta, o caso é ligeiramente diverso

97 Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, Concursos.., cit., p. 1015.

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do caso da sujeição a condições suspensivas porque nesse caso a adjudi-cação é uma certeza. Claro que a demora, argumenta, pode implicar ajustes, mas as dificuldades podem resolver-se mediante a adaptação de preços e o pagamento de juros98. Mais uma vez se considera que não será adjudicação tardia, salvo acordo, se o termo for estabelecido em benefício do particular e ficar na sua disponibilidade.

No que se refere à adjudicação parcial, tendo sido aberto um procedi-mento e apresentadas as propostas para a adjudicação de um contrato com objecto numericamente divisível ou materialmente decomponível, pode questionar-se se o órgão adjudicante pode, a final, proceder à adjudicação de um contrato que só abranja uma parte das prestações em causa (no sentido da admissibilidade da adjudicação parcial pode conferir-se Margarida Olazábal Cabral99, Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira e Bernardo de Azevedo100).

Na adjudicação parcial importa verificar, uma vez que tal constitui limite da mesma, se existe uma situação em que a falseia a concorrência. Note-se que o aresto do STA Ac. de 9 de Abril de 2003 (proc. 48396), relati-vamente a procedimento em sede de contratação pública, mas em raciocínio transponível para uma operação de (re)privatização, admitiu num concurso para 14 helicópteros a adjudicação de menos aeronaves.

A adjudicação parcial pressupõe que se tenha apresentado uma proposta global para a realização da totalidade das prestações contratuais, decom-pondo-a nos vários atributos (termos e condições) em que o adjudicatário se dispõe a realizar cada uma das prestações parcelares, nas diversas combina-ções em que estas sejam possíveis; e de se apresentarem propostas parciais para as diversas combinações em que estas sejam possíveis.

É preciso, contudo, em qualquer caso verificar se outras empresas podiam ter concorrido se não tivessem necessidade de formar um agru-pamento para fazer face à adjudicação global, e se não foi, portanto, essa exigência de apresentação de proposta global que as afastou do concurso, caso em que o lançamento de concurso global com possibilidade de adju-dicação parcial pode falsear a concorrência.

Dentro dos limites expostos é, contudo, admissível a adjudicação parcial desde que prevista no programa do procedimento.

98 Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, Concursos.., cit., p. 1024. 99 O Concurso…, cit., p. 203.100 Adjudicação e celebração de contrato, in Estudos sobre Contratos Públicos, II,

p. 252.

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Direito Administrativo das Privatizações 335

Dúvidas surgem se o programa do procedimento for omisso. Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira admitem a adjudicação parcial mesmo nesses casos uma vez que não afecta interesses nem de terceiros, nem do adjudicatário, que teria sempre o direito de recusar a adju-dicação e de ser indemnizado; por outro lado, afirmam, não se vislumbra como tal solução possa afectar a concorrência, salvo nas situações anterior-mente referidas em que empresas não tenham concorrido por impossibilidade de constituir um agrupamento. Discorda-se, contudo, deste entendimento atento o princípio da legalidade, e a auto-vinculação da Administração às peças concursais, devendo neste caso a indicação do objecto do concurso vincular a própria administração ao mesmo na pendência do concurso (até como decorrência da estabilidade das regras concursais).

A solução mais correcta é, portanto, a nosso ver, a de admitir a adju-dicação parcial desde que prevista no programa de concurso e com as limi-tações já referidas.

São requisitos da adjudicação parcial, como se disse, a necessidade de apresentação de uma proposta global para a realização da totalidade das prestações contratuais, decompondo-as nos vários atributos (termos e condições) em que se dispõe a realizar cada uma das prestações parciais nas diversas combinações em que estas sejam possíveis; e a apresentação de propostas parciais relativas às prestações e combinações previstas no programa de procedimento.

A adjudicação por lotes é também admitida. Esta modalidade de adju-dicação distingue-se como instituto da adjudicação parcial. Na adjudicação por lotes, o objecto da adjudicação é adjudicado na totalidade mas dividido em parcelas autónomas, que podem ser atribuídas a concorrentes diversos. Na adjudicação parcial, diversamente, esta recai sobre parte do objecto do contrato. Exige-se que os lotes sejam do mesmo tipo, susceptíveis de cons-tituírem objecto de um único contrato, prestações com o mesmo objecto, não apenas funcionalmente ligadas. Dependendo do Programa do Concurso pode ser celebrado um único ou diversos contratos (nos termos do artigo 73.º, n.º 2, do CCP é celebrado um só contrato quanto aos lotes).

Existem dois modelos relativos a esta matéria, o simples e o complexo ou alternativo. No modelo simples cada concorrente apresenta uma só proposta. No modelo complexo ou alternativo, é apresentada uma proposta relativa à adjudicação global e simultaneamente propostas parcelares.

Requisito dessas propostas parcelares é que estas sejam autonomizá-veis, económica e estruturalmente, e que essa possibilidade venha prevista

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no programa de procedimento. No modelo complexo é ainda necessário que sejam previstos os critérios que presidem à apresentação das referidas propostas.

A adjudicação por lotes implica a adaptação de algumas regras. O preço base da venda directa, da negociação particular, do concurso público limi-tado ou do concurso público é função da soma do valor dos lotes, e, quando estas não ocorram simultaneamente, é a soma do valor das já conhecidas.

No caso da adjudicação por lotes, o procedimento em matéria de adju-dicação é um só, mas isso não significa que as vicissitudes que ocorram por causa de um lote se reflictam nos outros lotes, impedindo o seu desenrolar normal. A regra, na visão de Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, é a de que as adjudicações são independentes, salvo se o programa de concurso dispuser diversamente. Temos dúvidas sobre essa solução. Se se tratar de um acto plural pode sustentar-se essa visão uma vez que se está perante um feixe de actos.

Por último, releve-se que a jurisprudência europeia tem visto com benignidade a discricionariedade em sede de adjudicação. Na adjudicação, tem-se entendido que a entidade adjudicante goza de ampla discricionarie-dade. Nesse sentido vide TJCE, no caso Esedra, SPRL101, no qual se admitiu que não compete ao Tribunal de Justiça compete controlar se a entidade adju-dicante adjudicou à melhor oferta apresentada, só lhe competindo controlar que não tenha existido desvio de poder ou arbitrariedade102.

101 Caso Esedra SPRL, acórdão do TPI (Quinta Secção) de 26 de Fevereiro de 2002, processo n.º T-169/00, CJ, 2002, p. II-0060.

102 A recorrente sustentou que a Comissão cometeu um desvio de poder ao não lhe atribuir o contrato em causa em virtude de alegados actos de pedofilia terem sido cometidos nas instalações do CPE Clovis e de a associação de pais e as instâncias representativas do pessoal serem hostis em relação a ela (ponto 194).

Para além disso, a recorrente considerou que a decisão da Comissão de encerrar o primeiro concurso lançado pelo anúncio de 26 de Maio de 1999 é constitutiva de um desvio de poder, uma vez que a Comissão dispunha de um número de candidaturas útil – três candi-daturas – para desenvolver uma concorrência efectiva em matéria de contratos públicos.

A Comissão contestou essas alegações. Afirma que a única razão pela qual anulou o primeiro concurso era alargar a concorrência e clarificou que essa operação obteve êxito, uma vez que sete candidatos – e não só três – responderam ao segundo concurso (ponto 196).

A Comissão salientou igualmente que a recorrente não avança o mínimo elemento de prova de que o primeiro concurso tenha sido encerrado por outra razão que não a mencio-nada supra (ponto 197).

O TPI considerou que o conceito de desvio de poder tem um alcance preciso em Direito Comunitário (actualmente Direito da União Europeia) e visa a situação em que uma autori-

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Especificamente no que toca às reprivatizações, o aresto do STA de 09.10.2001, da 3.ª subsecção do STA, processo 043200, considerou que: “a valoração e classificação do mérito das propostas apresentadas pelo concorrente a um concurso público constitui uma faceta da chamada discri-cionariedade técnica.”

A adjudicação é obrigatória, salvo em certas circunstâncias103.

dade administrativa utiliza os seus poderes com um objectivo diverso daquele para que lhe foram conferidos. A este respeito, relembrou-se jurisprudência constante no sentido de uma decisão só estar viciada por desvio de poder quando se verifique, com base em indícios objectivos, pertinentes e concordantes, ter sido tomada para alcançar fins diversos dos invo-cados (v., por exemplo, caso Kernkraftwerke Lippe-Ems, acórdão do TPI de 25 de Fevereiro de 1997, T-149/94 e T-181/94, Colect., p. II-161, n.os 53 e 149, confirmado em recurso por acórdão do Tribunal de Justiça de 22 de Abril de 1999, C-161/97 P, Colect., p. I-2057), (ponto 198).

Ora, no caso em apreço, o TPI considerou que os elementos avançados pela recorrente não permitiam demonstrar que a Comissão tenha prosseguido outro objectivo que não o de atribuir o contrato à proposta economicamente mais vantajosa e mais baixa, tendo em conta os critérios de atribuição previstos no anúncio de concurso e no caderno de encargos, (ponto 199).

Assim, considerou o TPI que a recorrente não forneceu indícios objectivos, pertinentes e concordantes, na acepção da jurisprudência antes citada, susceptíveis de demonstrar que a Comissão usou dos seus poderes para a afastar do concurso em causa em virtude das acusa-ções segundo as quais actos de pedofilia teriam sido cometidos no CPE Clovis quando ela assegurava a sua gestão e da pretensa hostilidade da associação de pais e das instâncias representativas do pessoal em relação a ela.

103 Esta obrigatoriedade é comum a outros ordenamentos jurídicos. Assim, por exemplo, em Brasil ou Espanha a adjudicação é, em regra, obrigatória. No Brasil admite-se a revogação da adjudicação com fundamento em interesse público com certos fundamentos. A licitação é um procedimento administrativo que muitas vezes culmina com um contrato, mas que por vezes pode concluir-se com um acto unilateral, o que ocorre nas permissões de serviços públicos (artigo 175.º).

Se for celebrado contrato com concorrente diverso do vencedor, o contrato será nulo e o preterido terá direito ao contrato.

Concluído o procedimento, a administração está, em princípio, obrigada a contratar. Contudo, pode não o fazer caso todas as propostas tenham sido desconformes com o edital ou insatisfatórias, situação em que as propostas deverão ser desclassificadas. Pode, ainda, ter ocorrido alguma invalidade no seu transcurso, caso em que a licitação terá de ser anulada.

A Administração pode, ainda, mediante acto fundamentado em motivo superveniente de interesse público, revogar a licitação, assegurando o contraditório e a ampla defesa do vencedor do certame, interessados em firmar solução contrária.

Com efeito, prevê-se que “[a] autoridade competente para a aprovação do procedi-mento somente poderá revogar a licitação por razões de interesse público decorrente de facto superveniente devidamente comprovado, pertinente e suficiente para justificar tal

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Historicamente a questão foi muito controvertida104.Discute-se ainda se a adjudicação já implica a vontade de contratar

ou é apenas pressuposto do mesmo. Bernardo de Azevedo vai neste último sentido, e define adjudicação como último acto da série procedimental e que abre a série negocial, acto híbrido que não se esgota a nível procedimental,

conduta, devendo anulá-la por ilegalidade, de ofício ou por provocação de terceiros, mediante parecer escrito e fundamentado”. Por seu turno, implantou-se a exigência do inte-ressado dispor “ampla defesa.” No caso de revogação com fundamento em interesse público, considera a doutrina que o adjudicante terá direito a uma indemnização pelas despesas em que ocorreu para disputar o certame. Se a revogação for ilicitamente efectuada e, por qual-quer razão, já não existirem meios de celebrar o contrato, o adjudicante terá direito a uma indemnização pelos danos emergentes e pelos lucros cessantes.

A anulação do procedimento conduz à nulidade do contrato, que, entretanto, já tivesse sido celebrado. A lei esclarece, ainda, que a anulação não gera para a administração direito de indemnizar, salvo no que já tenha sido executado pelo contratado até à data da anulação e por outros prejuízos regularmente comprovados, contanto que o vício invalidador não lhe seja imputável, promovendo-se a responsabilidade de quem lhe deu causa. Contudo, alguma doutrina considera que o artigo 37.º, § 6.º da Constituição determinaria maior amplitude. Se a anulação ocorre antes de conhecido vencedor do certame, todos os que afluíram à disputa terão direito à indemnização. Contudo, se a invalidação ocorrer depois de identificado quem seria o vencedor, a indemnização deve tão só ser devida ao referido vencedor.

O mandado de segurança é com frequência a única via para salvaguardar os direito de um licitante. A lei 1.533, de 1951, que regula o mandado de segurança, prevê, precisa-mente no artigo 7.º, II, a possibilidade de suspensão do acto impugnado no próprio início da lide. A Administração muitas vezes logra obter ganho de causa em tal meio contencioso, com recurso a argumentos ligados à prevalência do interesse público sobre o interesse parti-cular e com a não irreparabilidade da lesão, dado que os eventuais prejuízos serão indemni-záveis. De acordo com o artigo 110, na contagem dos prazos previstos na Lei 8.666 excluir--se-á o dia de início.

No direito espanhol a adjudicação era na LCAP vinculada. Assim, existindo ofertas válidas não era possível declarar deserto o concurso, sendo, essa consequentemente, a correcta interpretação do n.º 3, do artigo 75, conjugado com o n.º 2, do artigo 89.º. O primeiro artigo dispunha que a “En el concurso la adjudicación reacaerá en el licitador que, en su conjunto, haga la proposición más ventajosa, teniendo en cuenta los criterios que se hayan estable-cido en los pliegos, sin atender exclusivamente al precio de la misma y sin perjuicio del derecho de la Administración a declararlo desierto”. A segunda norma, por seu turno, dispunha: “La Administración tendrá alternativamente la faculdad de adjudicar el contrato a la proposición más ventajosa, mediante la aplicación dse los criterios establecidos en el artículo 87, sin atender necessariamente al valor económico de la misma, o declarar desierto el concurso, motivando en todo caso su resolución con referencia a los criterios de adjudi-cación del concurso que figuren en el pliego.” Modelo similar é mantido na LCSP.

104 Bernardo de Azevedo, Adjudicação e celebração do contrato no Código dos Contratos Públicos.

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embora a celebração do contrato seja formalidade ad substanciam pelo que o vínculo contratual se filia na celebração do contrato e não é imputável apenas ao acto de adjudicação. Refere ainda o autor que a adjudicação implica um juízo sobre as propostas, o acertamento de outros pressupostos e condições para a celebração do contrato, e a determinação autoritária do desfecho do processo de selecção105. Já, por seu turno, Margarida Olazábal Cabral106, por seu turno, afirma que a adjudicação não é só acto de conclusão do procedi-mento e de selecção do contraente mas é ainda “acto jurídico com a qual a Administração formaliza a vontade de contratar com a empresa escolhida nas condições pela mesma oferecidas.”

A adjudicação é em qualquer caso um acto constitutivo de direitos, nesse sentido Bernardo Azevedo107, Margarida Olazábal Cabral108, e Mário Esteves de Oliveira 109 podendo conferir-se no direito comparado no mesmo sentido a doutrina do Consiglio di Statu110.

Questão controvertida é a relativa à possibilidade de não adjudicação.No que toca à contratação pública (fora do quadro das privatiza-

ções) a não adjudicação tem sido admitida, sendo que os arts. 56, 57 e 58 do Decreto-Lei n.º 197/99, de 8 de Junho, dispunham sobre a não adjudi-cação e anulação do procedimento, abrangendo situações em que todas as propostas fossem inaceitáveis pela entidade competente, ou quando houvesse forte presunção de concluio entre todos os concorrentes ou quando: a) por circunstância imprevisível fosse necessário alterar os elementos fundamen-tais dos documentos que serviram de base ao procedimento; b) outras razões supervenientes e de manifesto interesse público o justificassem. Nos termos do n.º 2 era obrigatória a abertura do procedimento no prazo de seis meses. Algumas dessas causas são hoje tratadas como situações de caducidade da adjudicação (artigo 86.º, n.º 1, 91, n.º 1 e 105, n.º 1, do CCP, ou como exclusão de propostas nos termos do artigo 70.º, n.º 2, do CCP.

A doutrina também tem admitido cláusulas de não adjudicação, sendo de cf. nesse sentido Sérvulo Correia111 e Mário Esteves de Oliveira112. Pelo

105 Citando Marco Lipasi, p. 252.106 O Concurso…, cit., p. 229 (n. 438).107 Ob. cit., , p. 227.108 Ob. cit., p. 200.109 Concursos…., p. 200.110 Doutrina citada por Bernardo de Azevedo, cit., p. 227.111 Legalidade e Autonomia Contratual…, cit., p. 696.112 Ob. cit., p. 573 a 574.

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contrário Margarida Olazábal Cabral113 não admitia cláusulas de anulação concurso por motivos de interesse público. Hoje trata-se de um poder cercado fora do quadro do artigo 79.º, n.º 1, do CCP, como reconhece Sérvulo Correia & Associados114 e no mesmo sentido Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos115.

Os tribunais administrativos também se pronunciaram sobre a matéria, assim o STA em aresto de 07.01.2009 (São Pedro), 912/08, conclui pela ilegalidade do despacho de anulação do procedimento “sem que as circuns-tâncias fossem imprevisíveis ou supervenientes, na data da sua abertura”, entendendo que em Portugal, antes do CCP, o Decreto-Lei n.º 197/99, nos artigos 57.º e 58.º previam um elenco taxativo de causas de não adjudicação, e que “quando já tinham sido apresentadas propostas, a entidade adjudi-cante não pode desistir de contratar, salvo nos casos previstos”.

No mesmo sentido se orienta o direito comparado.116

Também os Regulamentos CE, Euratom 1605/2002, de 25 de Junho, nos artigos 101.º e ss. e o Regulamento 2343/2002, de 23 de Dezembro, RERF, admitem a renúncia à adjudicação no artigo 149.º, n.º 1, e 149.º, n.º 3, sendo que a decisão de adjudicação não constitui um compromisso da entidade adjudicante.

Alguns autores pretenderam, contudo, como é o caso de Bernardo Azevedo, existir no CCP uma mera tipicidade delimitativa das situações de não adjudicação, sendo a função do referido artigo do CCP individualizar as hipóteses mais comuns e relevantes em que pode haver lugar para um desfecho do procedimento administrativo pré-contratual mediante uma reso-lução (necessariamente fundamentada) de não adjudicação (solução similar

113 Ob. cit., p. 208 a 212 e 231 a 23.114 Manual de Procedimentos-Contratação Pública de Bens e Serviços, p. 43 a 46.115 Direito Administrativo, Tomo III, 2008, p. 109.116 Vide o Code de Marché Public, 59, IV, 64, IV, 66, VI e 67 do Código, 81, n.º 3,

do Codice dei contratti publici, se não houver proposta conveniente ou idónea em relação ao objecto do contrato, e da LCSP, Ley n.º 30/2007, de 30 de Outubro, cujo artigo 139.º, n.º 4, admite a renúncia antes da adjudicação provisória. Neste ordenamento jurídico, a possibilidade de não adjudicação é contudo muito limitada. Assistiu-se a uma evolução desde a norma LC 165 que conferia à entidade adjudicante o poder de declarar deserto o procedi-mento mesmo que tivessem sido apresentadas propostas não excluídas, até a afirmação, por via jurisprudencial, de que a cláusula devia ser interpretada no sentido de os fundamentos da recusa serem apenas quando cessassem todas as propostas excluídas, até 135.º do LCSP 2007, que considera que a decisão é um acto vinculado não se sendo livre de não adjudicar salvo no caso de propostas irregulares.

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à defendida por Margarida Olazábal Cabral e Mário Esteves de Oliveira, à luz desse enquadramento jurídico).

Orienta-se, portanto, Bernardo Azevedo no sentido de sustentar a admissibilidade de cláusulas de não adjudicação à luz do interesse público117, que fundamenta na autonomia regulamentar da entidade adjudicante. Natu-ralmente que o interesse público invocado implica um dever agravado de fundamentação, mas recusa o carácter taxativo do elenco118.

Nos casos em que tal aconteça sustenta o autor referido o direito a indemnização - por identidade de razão – aos concorrentes cujas propostas não tenham sido excluídas pelos encargos que comprovadamente incorram. E afirma que o “encerramento da margem de autonomia decisória da Admi-nistração em limites excessivamente estreitos, o que se nos afigura a todos os títulos inaceitável, não só, nem sobretudo porque tal não corresponde a uma imposição estrita das directivas e jurisprudência comunitárias rela-tivas à matéria dos contratos públicos (…)”119.

Como bem nota o autor “[n]o fundo, e em suma, do que se trata, no art.. 76.º, n.º 1, do CCP, é não a consignação da adjudicação como acto estritamente devido, a cuja prática o órgão competente para a decisão de contratar se encontra irredutivelmente vinculado, mas antes da imposição de uma condição à entidade adjudicante tendo por finalidade beneficiar de “compromisso unilateral irrevogável do proponente particular em manter firme a sua proposta” até ao termo do prazo (artigo 65.º do CCP).

Nega, consequentemente, Bernardo Azevedo120 que possa haver conde-nação à pratica do acto devido, dado que o interesse público pode implicar a revogação do acto de adjudicação. Com efeito, tal pode resultar de circuns-tâncias posteriores à prática do acto definitivo e formal, sempre que se veri-fique uma nova ponderação desse interesse público, mesmo à luz de situações preexistentes, deve ser admissível apesar do estatuído no artigo 105.º, n.º 4, do CCP, por maioria de razão com o disposto no artigo 334.º do CCP (não retira essa possibilidade do artigo 79.º do CCP porque já houve adjudicação).

Se sustentamos que as causas de não adjudicação no CCP são taxa-tivas, já diversamente, em sede de reprivatizações e por não se aplicar o CCP, existe maior liberdade quanto à não adjudicação.

117 Vide p.243, citando Sérvulo Correia, Legalidade… cit., p. 698 a 703, fundando-as na artigo 230, n.º 1, do CC.

118 Ob. cit., p. 235.119 Vide ob. cit., p. 236.120 Ob.cit., p. 266.

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A fixação dessas cláusulas deve a nosso ver ser efectuada a nível legis-lativo e não apenas nas Resoluções do Conselho de Ministros que desen-volvem as condições finais e concretas da reprivatização. Do ponto de vista material, essa fixação deve respeitar os princípios gerais de Direito Admi-nistrativo. Certamente que poderão ser fixadas as previstas no artigo 79.º do CCP, que prevêem situações de não adjudicação e que basicamente se reconduzem a dois grupos: as que resultam da não carácter “non-responsive” das propostas, para utilizar terminologia anglo-saxónica, e as que resultam de alteração das circunstâncias que não são imputáveis aos concorrentes.

Nestes últimos casos os concorrentes têm direito, em regra, a uma indemnização pelo interesse contratual negativo e que deve abranger pelo menos no que toca aos concorrentes cujas propostas não tenham sido exclu-ídas, uma compensação pelos encargos que comprovadamente incorreram com a elaboração das novas propostas. De fora do quantum indemnizatório ficam aparentemente outros danos inerentes ao interesse contratual negativo, a saber perda de oportunidades de negócios, etc.

Existem, contudo, ordenamentos jurídicos onde, diversamente do que ocorre em Portugal, o direito à indemnização não é claro121.

121 No direito alemão procede-se à distinção entre direito subjectivo e reflexos do direito subjectivo (“Rechtsreflexe”). Para que um sujeito tenha direito de acção relativamente ao cumprimento de uma determinada norma não basta que o cumprimento de determinada norma favoreça directamente o interesse de determinado sujeito, sendo, ainda, necessário que a intenção dessa norma seja tutelar os interesses em causa Trata-se da “Schutznormthe-orie” (teoria de norma de tutela ou de protecção). Cfr. Hufen, Verwaltungsprozessrecht, München, 1998, p. 277 e ss. (§14, nums., 69 e ss.), Kopp/Schenke, VwGO , Munique, 1998, p. 359 e ss. (§42.78), Classen, Die Europäiserung der Verwaltungsgerichtbarkeit, Tubinga, 1996, p. 39 e ss..

Para reconhecer direitos subjectivos ao particular não é necessário alterar o conteúdo das normas, mas deixar expresso que foi alterada a sua finalidade. Contudo, tal discriciona-riedade legislativa é limitada pelo artigo 19.º, n.º 4, da GrundGesetz (GG), que reconhece o direito à tutela judicial em face do poder executivo, Lorenz, Der Rechtschutz des Bürgers und die Rechtsweggarantie, München, 1973; García de Entería, Sobre los derechos públicos subjectivos, REDA 6 (1975), p. 427 e ss.; Esteban Drak, El derecho público subjectivo como instrumentación técnica de las libertades públicas y el problema de la legitimación procesal, Madrid, 1981, p. 42 e ss., Montoro Chiner, La inactividade administrativa en el processo de ejecución de la Leyes, Control jurisdiccional “versus” fracasso legislativo”, RAP, 110 (1986), p. 302 e ss. No entanto, a doutrina maioritária no direito alemão é a de que do artigo 19.º, n.º 4, da GG não é possível deduzir directamente direitos subjectivos.

No caso concreto da adjudicação dos contratos públicos, dá-se a circunstância de no direito alemão se considerar que o carácter objectivo das normas que a regulam, resulta de uma opção explícita do legislador. Com efeito, a este respeito cumpre notar que tanto o

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É normal os procedimentos de (re)privatização preverem expressa-mente, por vezes com exclusão de indemnização, a não adjudicação, prática que se considera admissível, desde que habilitada pelo Decreto-Lei que aprova a operação de (re)privatização. Podem dar-se diversos exemplos dessa possibilidade de não adjudicação.

Governo Federal como os principais grupos parlamentares têm sustentado (inclusivamente no momento da transposição das directivas para o direito interno) que era conveniente excluir o controlo judicial de qualquer sector da actividade administrativa para evitar a paralização ou atraso na execução de obras públicas. A este motivo pode aditar-se o facto de a adminis-tração querer privilegiar as pequenas e médias empresas que têm dificuldade em esperar vários anos pela resolução de litígios judiciais.

Os administrados prejudicados pelo incumprimento das referidas regras podem, quando muito, recorrer a umas “Vergabenprüfstellen”, que podem suspender ou anular os actos dos órgãos de contratação sempre que tenha já ocorrido a adjudicação do contrato. As resolução emitidas por estas últimos entes só podem ser recorríveis ante as “Vergabeüberwachung-sausshüss/Be” (VÜA), que são comissões que se quis dotar de um estatuto quase judicial que permita considerá-las uma jurisdição no sentido do artigo 177.º do TCEE.

Existiam uma VÜA para a administração federal e outra em cada “Land”. A Lei federal de 1993 e o seu regulamento de execução nesta matéria (“Nachprüfungsverordnung”) só regulam os aspectos básicos da sua organização. Para tal, o seu grau efectivo de indepen-dência depende do modo concreto como o legislador competente configure a VÜA. Os resultados são variáveis. De forma similar ao que ocorre ao nível federal não era claro que os órgãos criados pelos “Länder” sejam, apesar do mandato legal, independentes. Por exemplo a VÜA da Baviera está totalmente integrada no Ministério da Economia

A Comissão dirigiu ao Governo alemão a 31 de Outubro de 1995 (ou seja, depois do aresto do TJCE sobre a primeira tentativa de transposição das Directivas) um requerimento com que se iniciava um novo procedimento do artigo 169.º TCE. Desde então têm-se mantido um debate sobre a compatibilidade desta solução “orçamental” com o Direito Comunitário. A solução do problema passa essencialmente pela qualificação das VÜA como órgãos judi-ciais nos termos e para os efeitos do artigo 177 TCE.. cf. Boesen, Die Gerichtsqualität der Vergabeüberwachungsausschüsse i. s. des Art. 177 EGV, EuZW, n.º 7, 1996, p. 583 e ss.

Partindo da jurisprudência do TJCE, têm-se formulado vários reparos às “VÜA”. Com efeito, a sua competência para rever as resoluções dos órgãos administrativos de recurso limita-se aos aspectos jurídicos (excluindo a revisão dos factos). Outro argumento tem sido a falta de independência, já que esta não está garantida aos “Länder” e, na “VÜA” federal o Presidente do Tribunal de Defesa da Competência (“Bundeskartellamt”), na qual está inte-grada a “VÜA” pode encurtar o mandato dos seus membros.

Estas VUA zelam pela aplicação das Verdingunsordnung für Lesitungen (VOL) e de Bauleistungen (VOB), que prevêm procedimentos aberto à proposta economicamente mais favorável, limitado e negociado. Por influxo das directivas comunitárias os VOL e VOB sofreram diversas alterações em matéria de procedimento pré-contratual relativo a contratos de obras, aquisição de serviços e bens, a saber por via da Gesetz gegen Wettbewerbsbes-shränkungen Auftrage (GWB) e as Vergabenverordnung (VgV) de 2001.

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O artigo 6.º do Caderno de Encargos anexo à Resolução do Conselho de Ministros n. 149-A/97, de 11 de Setembro previu que a PARTEST poderia resolver a venda directa ao momento da liquidação física da tran-sacção subsequente das acções da instituição financeira adquirente para os parceiros estratégicos quando razões de interesse público, reconhecidas por despacho do Ministro das Finanças, o aconselhassem.

Também nos termos do artigo 13.º da Resolução do Conselho de Minis-tros n.º36/2011, de 19 de Agosto, o Conselho de Ministros podia, mediante resolução, não alienar as acções objecto de reprivatização, desde que razões de interesse público ou social o impusessem.

Por seu turno, o artigo 10.º do Caderno de Encargos anexo à Reso-lução do Conselho de Ministros n.º 67-A/1996, de 10 de Maio previa que o Governo poderia impor à partes a resolução da venda, antes de consumada a efectiva colocação subsequente dos títulos nos mercados internacionais, quando razões de interesse público o aconselhassem.

Ainda nos termos da Resolução n. 41/92, de 12 de Novembro, rela-tiva à SECIL e em especial do seu Caderno de Encargos anexo, o Estado reservava-se o direito de, em qualquer momento, e até à decisão final constante da resolução, suspender ou anular o processo de alienação das acções, desde que razões de interesse público ou social o justificassem. A Resolução 42/92, de 19 de Novembro, continha disposição similar (ponto 31).

Por último, nos termos do artigo 15.º do Decreto-Lei que aprovou a reprivatização da EGF, o Governo reservou-se o direito de, em qualquer momento, e mediante resolução do Conselho de Ministros, suspender ou anular o processo de privatização, sempre que razões de interesse público o justificassem. Nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, o Conselho de Ministros reservava-se o direito de não aceitar qualquer das propostas apresentadas no âmbito do concurso, ficando, nesse caso, sem qualquer efeito, a oferta pública de venda dirigida a trabalhadores. Nos termos do n.º 3, caso viesse a ocorrer alguma das situações previstas nos números anteriores, os poten-ciais interessados e ou concorrentes não tinham direito a qualquer indem-nização ou compensação, independentemente da respectiva natureza ou fundamento.

Diverso da decisão de não adjudicar será a anulação ou a revogação anulatória com fundamento em invalidade da decisão de contratar.

Sendo com fundamento na invalidade do mesmo, nesse caso não pode aplicar-se, por analogia ou por identidade de razão, aos procedimentos de

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(re)privatização o regime previsto no artigo 105.º do CCP, isto é, o adju-dicatário não pode optar pela exigência judicial da celebração do contrato. Deverá aplicar-se então tão só o regime indemnizatório do n.º 3 do 105.º, isto é, serão indemnizáveis apenas as despesas e demais encargos em que o adjudicatário comprovadamente incorreu com a elaboração da proposta e com a prestação da caução. A solução deve ter lugar no quadro geral do princípio da boa e da responsabilidade pré-contratual (admitindo que a inva-lidade é imputável à Administração). A nosso ver deve ser indemnizado todo o interesse contratual negativo, podendo admitir-se em circunstâncias particulares a indemnização pelo interesse contratual positivo nos termos em que os tribunais têm vindo a admitir esse ressarcimento, designadamente, no caso dos contratos nulos em que tenha ocorrido uma especial sedimen-tação do investimento de confiança.

No caso do acto de adjudicação ser válido, não será revogável por ser constitutivo de direitos? A resposta só pode ser negativa. Se é possível a não adjudicação em fase anterior com fundamento no interesse público e a rescisão unilateral com fundamento no mesmo interesse (ou resgate no caso das concessões), então também tem de ser admissível a não adjudicação com esse mesmo fundamento – interesse público.

E nesse caso qual será o critério indemnizatório? Só poderá ser o da indemnização pelo interesse contratual positivo atento o grau de estabilidade do acto em causa e a consolidação já outorgada ao acto.

Contudo, em diversas operações de reprivatização exclui-se o direito a indemnização. A nosso ver tal exclusão, sendo admissível quer nos casos de não adjudicação, quer os casos de revogação do acto de adjudicação, por implicar forte derrogação da princípios de direito, deve constar do decreto--lei e não apenas da(s) resolução(ões) do Conselho de Ministros.

No sentido de ser admissível um ressarcimento de danos sofridos pelo co-contratante a título de responsabilidade pré-contratual é de cf. aliás o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, processo n.º 0322/11, de 10.18.2011, que determinou que “[n]esse caso, o adjudicatário tem direito a ser indemnizado apenas pelo danos negativos (dano da confiança), isto é, pelo danos que não teria sofrido se não tivesse celebrado o contrato (ineficaz), não se incluindo na medida do dano ressarcível o lucro esperado com o cumprimento do mesmo.”

A p. 20 diz-se mesmo aresto que “[c]om efeito, conforme pacífica jurisprudência deste Supremo Tribunal, os empreiteiros têm, nestas situa- ções, direito a serem indemnizados pelo danos efectivamente sofridos,

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danos esses decorrentes não do incumprimento do contrato que, in casu, não houve na realidade, mas sim da ineficácia deste, incorrendo os adju-dicantes em responsabilidade civil decorrente da acção ou omissão deter-minante dessa ineficácia.

Esta responsabilidade tem, conforme se escreveu no acórdão do STA de 31/10/2006, recurso n.º 875/05, uma configuração mista de responsabi-lidade extracontratual por facto ilícito e responsabilidade pré-contratual derivada da violação da confiança e dos deveres de correcção e colabo-ração, nos termos do artigo 227.º, n.º 1, do C. Civil, sendo de todo irrele-vante, para os efeitos que estamos a tratar, o facto de a fase procedimental do concurso já se encontrar extinta com a adjudicação e subsequente cele-bração do contrato, pois que, do ponto de vista jurídico o mesmo nunca adquiriu eficácia.”

Conclui assim o STA, recorrendo ao artigo 227.º, n.º 1, do Código Civil, que “na responsabilidade pré-contratual, o lesado tem direito a ser indemnizado apenas pelo danos negativos (dano da confiança), isto é, pelos danos que não teria se não tivesse celebrado o contrato, não se incluindo na medida do dano ressarcível o lucro esperado com o cumprimento do contrato.”

No que toca à medida do dano indemnizável, o aresto em causa, seguindo de perto o acórdão de 23.09.2003, proc. n.º 1527/02, dispôs que “o dano indemnizável deve ter a medida da lesão sofrida com o acto ilícito e com a expectativa ou confiança que foi violada (…) Os prejuízos que podem ter sofrido, por força desse acto, e pelos quais podem ser ressar-cidas, são apenas os decorrentes do não cumprimento do contrato, cuja ineficácia aquele acto originou. Podem, assim e como resulta do expendido, abranger gastos tidos com vista à celebração do contrato ou à sua execução integral (danos emergentes) ou vantagens perdidas com essa não execução (lucros cessantes, com exclusão, porém, dos ganhos que podiam resultar do cumprimento do próprio contrato).”

Fica, assim, aparentemente afastada pela jurisprudência do STA a possibilidade de serem indemnizados outros danos relativos ao interesse contratual positivo, o que tem sido admitido pela doutrina sempre que exista por parte da Administração violação de regras do concurso122.

122 Cf. Paulo Mota Pinto, Responsabilidade por violação de regras de concurso para celebração de um contrato, em especial o cálculo da indemnização, in Estudos de Contra-tação Pública, II, Coimbra, 2010, p. 281 sustentando que “o desenvolvimento de um subgrupo de casos de culpa in contrahendo levou, porém, a jurisprudência a orientar-se no sentido

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O termo do procedimento de (re)privatização salda-se na celebração do contrato. Pode discutir-se a natureza cível ou administrativa do contrato, sendo que sempre se tratará de um contrato público. A nosso ver o contrato é administrativo desde que estabeleça obrigações pós-privatização para salvaguarda do interesse público, nos outros casos será privado. O Supremo Tribunal de Justiça no acórdão 08A2605, 12.02.2009, já considerou um contrato como cível ao admitir a sua competência (estava em causa a apli-cação do regime do art. 905.º do CC). A qualificação do contrato como cível será reforçada no caso de o procedimento se reger pelo direito privado.

O contrato por vezes integra a proposta. Por exemplo, nos termos do artigo 26.º da Resolução 52-A/93, de 5 de Agosto (SOPONATA), a apre-sentação da proposta e a homologação do resultado, mediante resolução do Conselho de Ministros fazem parte integrante do contrato a celebrar com o adquirente, o qual se regula pelas disposições legais aplicáveis ao processo de reprivatização e pelo caderno de encargos. No caso de se conjugarem diversas modalidades de reprivatização, poderão ser celebrados diversos contratos, o que pode suscitar a questão da sua qualificação como união de contratos e a comunicação da invalidade de uns aos restantes. O regime decorrente de eventual união de contratos é, contudo, dispositivo e pode ser afastado pelas peças concursais ou pelo teor contratual, desde que habi-litado pelas mesmas peças.

Por exemplo, relativamente à Portucel, o artigo 5.º do Caderno de Encargos da venda directa estratégica prevê, sob a epígrafe, relação entre o contrato de venda directa e os contratos de compra e venda com os parceiros estratégicos e autonomia destas, que o contrato de compra e venda entre a Partest e a instituição financeira adquirente realiza-se em simultâneo com os contratos de compra e venda entre esta última e os parceiros estratégicos. O n.º 2 do mesmo artigo prevê, contudo, que a eventual não concretização, por qualquer motivo, de algum dos contratos de compra e venda entre a instituição financeira adquirente e um dos parceiros estratégicos a identificar pelo Conselho de Ministros, mediante resolução, não afecta a eficácia dos

de conceder ao lesado que provasse que, sem a violação de deveres em causa, teria vencido o concurso, uma indemnização correspondente ao interesse contratual positivo”, para concluir pela sua aplicação aos casos em que existisse um dever de conclusão do concurso e se demonstre que aquele lesado teria vencido o concurso e celebrado o contrato, p. 289. Cf. neste sentido Rui Medeiros, A protecção processual do adjudicatário em face de um recusa de visto no âmbito da fiscalização prévia de contratos pelo Tribunal de Contas, Revista de Contratos Públicos, 1, p. 67, nota 96) a jurisprudência do STA não a tem admitido.

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restantes contratos, de compra e venda entre a instituição financeira adqui-rente e os demais parceiros estratégicos, mas implica a respectiva redução da quantidade das acções objecto do contrato de compra e venda directa estratégica entre a Partest e a instituição financeira adquirente.

4.5. Privatização no quadro da lei n.º 71/88 e no quadro rgicsf

A Lei n.º 71/88, de 24 de Maio, continua a ser aplicável aos processos de privatização stricto sensu e eventualmente aos processos de reprivatização de empresas nacionalizadas antes ou depois do período que mediou entre o 25 de Abril de 1974 e a entrada em vigor da Constituição de 1976. Este diploma é mais flexível em certos aspectos que a Lei n.º 11/90 e permite a negociação particular123.

Nos termos do referido diploma, é permitida a venda de participa-ções sociais por parte de entes públicos por negociação particular quando a situação líquida da sociedade a reprivatizar, dada pelo último balanço aprovado, não exceda o montante previstos no artigo 4.º da Lei n.º 71/88 (quantia em Euros actualmente equivalente a PTE 500.000. 000,00), sendo obrigatório o concurso público sempre que a alienação implique a perda de uma posição maioritária e aquele limite de valor da situação líquida seja ultrapassado.

Nos termos do n.º 1 do artigo 5.º da Lei n.º 71/88: “a decisão sobre alienação de acções ou quotas sociais que implique a perda de uma posição maioritária do ente alienante deve ser devidamente fundamentada pelo respectivo órgão de gestão, o qual deve especificar também o processo e as condições a observar na transacção.”.

Nos termos do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 328/88, de 27 de Setem- bro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 290/89, de 2 de Setembro, que regulamenta a alienação das participações do Estado, a entidade pública alienante, pode proceder à negociação “nos termos que

123 No sentido da bondade da existência da dualidade de regimes Luis Morais, Priva-tizações de Empresas Públicas, As Opções de Venda, Lisboa, 1990, p. 100 e Nuno Cunha Rodrigues, ob. cit., p. 249, quando afirma: “[d[esde logo porque nada justifica que todas as alienações de meras participações sociais estejam sujeitas à reserva de capital social a favor dos trabalhadores, como resulta da LQP. Por outro lado, o regime previsto na Lei n.º 71/88, de 24 de Maio, garante alguma flexibilidade traduzida, nomeadamente , na possi-bilidade de ajuste directo ou à negociação particular que se encontram vedados na LQP”.

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entender”, não estando, portanto, previsto um procedimento específico para o efeito.

Para além do já referido caso do BPN em que, como se disse, se ponderou aplicar a Lei n.º 71/88, hipótese pela qual, contudo, não se optou, a lei em causa foi recentemente aplicada no caso de privatização da ANA--Aeroportos de Portugal, SA (ANA, SA), que previu a a alienação das acções representativas de até 100% do capital social através de uma operação de venda através de negociação particular a um ou mais investidores, nacionais ou estrangeiros, individualmente ou em agrupamento, que formulassem a intenção de aquisição de acções com perspectiva de investimento estável e de longo prazo, a qual poderia incluir a negociação dos termos e condi-ções do contrato de concessão do serviço público aeroportuário e uma operação de venda dirigida exclusivamente a trabalhadores da ANA, SA e de sociedades directa ou indirectamente detidas pela ANA, SA. (artigo 2.º e 3.º).

O artigo 4.º, n.º 1, admitiu que o processo de venda por negociação particular podia ser organizado em diferentes fases, incluindo uma fase preliminar de recolha de intenções de aquisição junto de potenciais inves-tidores de referência, sem prejuízo da possibilidade de outros investidores poderem manifestar interesse em participar na privatização. O procedimento foi desenvolvido pela Resolução do Conselho de Ministros n. 94-A/2012.

Também o EID, detida pelo Empordef, foi objecto de um processo de privatização por negociação particular.

Os procedimentos de privatização adoptados neste quadro, no caso de se regerem por negociação particular e no quadro do RGICSI, gozam de maior liberdade, sendo em regra aprovada uma “process letter” que prevê uma fase de recolha preliminar de intenções (assim ocorreu na ANA e no EID e depois uma fase de ofertas vinculativas) ou apenas uma fase de ofertas vinculativas como no Banif, podendo existir outras fases para melhorar das partes vinculativas (assim ocorreu no processo relativo ao Novo Banco, por exemplo).

4.6. cessão de exPloração e subconcessão

A cessão (concessão) de exploração vem actualmente prevista no artigo 26.º da Lei 11/90.

Assume-se, portanto, que se trata de verdadeira privatização.

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Anteriormente, a cessão de exploração vinha prevista no artigo 9.º da Lei n.º 46/77, de 8 de Julho, e que dispunha que: “1. A exploração e gestão das empresas referidas no artigo 2.º poderá, ouvidos os trabalhadores, ser confiada pelo Governo, em termos a definir por decreto-lei a entidades privadas em casos excepcionais e nunca com carácter definitivo, desde que tal se mostre necessário para uma melhor realização do interesse público e dos objectivos do Plano. 2 – O regime excepcional previsto no número anterior não é aplicável às empresas que desenvolvam a sua actividade nos sectores fundamentais a que se referem os artigos 3.º, 4.º e 5.º, com excepção das als. g) e h) do artigo 4.º”

A cessão de exploração realizar-se-á, em regra e preferencialmente, através de concurso público, embora a título excepcional, quando o interesse nacional ou a estratégia definida para o sector o exijam ou quando a situação económico-financeira da empresa o recomende, o processo de reprivatização referido pode revestir a forma de concurso aberto a candidatos especialmente qualificados ou de ajuste directo (ns. 1 e 2 do artigo 26.º da Lei n.º 11/90).

A cessão de exploração, quando incida sobre empresas concessioná-rias, traduz-se numa verdadeira concessão de exploração e constitui por isso, em nosso entender, uma concessão para efeitos do referido artigo 4.º124 da Lei de Delimitação de Sectores. Com efeito, refere a este respeito Sérgio Gonçalves do Cabo125: “formalmente, a concessão de uma empresa pública que explora um serviço público não deixa, por isso, de ser uma verdadeira concessão de empresa pública, com a autonomia jurídica e dogmática que lhe reconhecemos. Porém, materialmente, trata-se de uma verdadeira concessão de serviços públicos, embora mediada pela forma jurídica da concessão de empresa pública encarregada da exploração desse serviço”.

Nos termos do n.º 3 do artigo 26.º da Lei n.11/90, à cessão de explo-ração aplica-se o disposto nos artigos 4.º, 6.º, 16.º, 19.º e 25.º da mesma Lei.

Entende, porém, Luis Cabral de Moncada que a cessão de exploração pode não constituir uma verdadeira privatização em caso de manutenção de efectivo controle público.126 Note-se que a doutrina, e no quadro do prin-cípio da irreversibilidade das nacionalizações, divergia entre aqueles que

124 Sobre as alterações legislativas da Lei de Delimitação de Sectores em consonância com as revisões constitucionais, cf. Eduardo Paz Ferreira, Direito da Economia, Lisboa, 2001, pp. 194 e ss., em especial, pp. 205 e ss.. e ainda Luis Cabral de Moncada, Direito Económico, cit.., p. 214 e ss.

125 A Concessão de Exploração de Empresas Públicas, Lisboa, 1992, a p. 159.126 Direito Económico, cit., p. 224.

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entendiam que a cessão de exploração não violava esse princípio, por não se tratar de reprivatização, e aqueles que entendiam que a cessão de exploração violava esse princípio, por se traduzir numa reprivatizaçao. No primeiro grupo encontrava-se Jorge Miranda127, Guilherme Oliveira Martins128 e Simões Patrício129. No segundo grupo encontra-se J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira130 e Carlos Ferreira de Almeida131.

Pela nossa parte, concorda-se com Luis Cabral de Moncada quando afirma que a cessão de exploração pode consubstanciar ou não uma repri-vatização. Em regra, a nosso ver, representa verdadeira reprivatização caso implique transferência efectiva do controlo, o que resulta da Lei 11/90, quando o n.º 1 do artigo 1, se refere à reprivatização do direito de explo-ração dos meios de produção e outros bens nacionalizados e da Constituição, quando afirma no artigo 82.º, n.º 2, que o “sector público é constituído pelos meios de produção cuja propriedade e gestão pertencem ao Estado ou a outras entidades públicas.”. Diversa é a questão já tratada de possibilidade de cessão de exploração no sector audivisual, o que nos parece, como se adiantou, constitucionalmente possível mesmo não aderindo à tese de que não existe reprivatização no caso de cessão de exploração. Isto é, não existe uma proibição constitucional de cessão de exploração, embora legislativa-mente a cessão de exploração seja tratada como reprivatização.

Nos já referidos processos de reprivatização do Metropolitano de Lisboa, EPE e da Companhia Carris de Ferro, SA, respectivamente apro-vada pelo Decreto-Lei n.º 175/2015, de 5 de Dezembro e pelo Decreto-Lei n.º 174/2015, também de 5 de Dezembro (que não se concluiram) estava em causa uma privatização por concessão da exploração.

4.7. seParação de activos

A separação dos referidos activos de empresa nacionalizada, seja por cisão, seja por mera transmissão em favor de outra sociedade de capitais públicos a constituir, constitui mera circulação de activos no seio do sector público, o que não constitui uma operação de reprivatização, cf. Paulo

127 Direito da Economia, Lisboa, 1982, p. 325.128 Lições sobre a Constituição Económica Portuguesa, Lisboa, s.d., p. 77.129 Curso de Direito da Economia, 1982, p. 305.130 Constituição anotada, 2.ª ed., p. 411.131 Direito da Economia, Lisboa, 1982, p. 319.

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Otero132: “as privatizações e as reprivatizações imperfeitas compreendem três distintas situações: (iii) A simples circulação de capitais entre entidades integrantes do sector público empresarial, devendo aqui falar-se em falsa reprivatização ou reprivatização ou, segundo outra óptica, em privatização ou reprivatização enganosa.”).

Claro está que após separação de activos para empresa pública, e sua posterior alienação a privados implica reprivatização, como ocorreu com a CP Carga (operada pelo Decreto-Lei n.º 69/2015, de 6 de Maio).

Já, diversamente, a alienação directa ou cessão de exploração de certos activos para o sector privado poderá, se tais activos forem “core à actividade da empresa”, constituir verdadeira reprivatização.

Diz a este respeito Nuno Sá Gomes133: “[D]izendo o n.º 1 do artigo 83.º da Constituição: “todas as nacionalizações são conquistas irreversíveis das classes trabalhadoras, poder-se-á levantar a dúvida sobre se a alienação de bens que integram o património das empresas directamente nacionali-zadas é inconstitucional, ou se os estabelecimentos ou as universalidades de bens, incluindo os que foram anteriormente objecto de nacionalização, são susceptíveis de exploração autónoma, podem ser alienados, com ofensa do referido 1 do artigo 83.º, em análise. A resposta será afirmativa se se entender que este património foi indirectamente nacionalizado.”, funda-mentando no facto de as empresas públicas poderem administrar e dispor livremente os seus bens134.

O regime de reprivatização de activos dependerá de se saber se a maioria dos activos da empresa a reprivatizar são activos provenientes da empresa anteriormente nacionalizada e se a empresa para onde foram trans-mitidos pode ou não ser qualificada como PME fora dos sectores básicos da economia.

Se a maioria dos activos da empresa a reprivatizar forem activos prove-nientes da empresa anteriormente nacionalizada e se a empresa para onde foram transmitidos não poder ser qualificada como PME fora dos sectores básicos da economia, o processo a seguir será o da Lei n.º 11/90.

Se a maioria dos activos da empresa a reprivatizar não são prove-nientes de empresa anteriormente nacionalizada, a alienação das suas parti-

132 Privatizações, Reprivatizações e Transferências de Participações Sociais no Inte-rior do Sector Público, Coimbra, 1999, p. 48.

133 Nacionalizações e Privatizações, Lisboa, 1988, p. 357.134 O autor questiona a essa luz a validade do Decreto-Lei n.º 358/86, de 27 de Outubro,

com a redacção da Lei n.º 24/87, de 24 de Junho.

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cipações sociais pode seguir apenas o já referido regime da alienação das participações do sector público constante de Lei especial da Assembleia da República a aprovar expressamente para o efeito, ou, na sua falta, o da Lei n.º 71/88, de 24 de Maio, Lei da Alienação das Participações do Estado (e do Decreto-Lei n.º 328/88, de 27 de Setembro, com as suas sucessivas alterações).

Se a maioria dos activos da empresa a reprivatizar forem provenientes da empresa anteriormente nacionalizada e se a empresa para onde foram transmitidos puder ser qualificada como PME fora dos sectores básicos da economia, o processo a seguir será o constante de Lei da Assembleia da República, a aprovar expressamente para o efeito, ou, na sua falta, o da Lei n.º 71/88, de 24 de Maio, Lei da Alienação das Participações do Estado (e do Decreto-Lei n.º 328/88, de 27 de Setembro, com as suas sucessivas alterações).

Note-se que termos do artigo 4.º da Lei n.º 71/88, e como se adiantou, a alienação de acções ou quotas sociais que implique a perda de uma posição maioritária do ente alienante deve fazer-se por concurso público ou por tran-sacção em bolsa de valores, designadamente por oferta pública de venda, sempre que o valor da sociedade participada seja superior a valor equiva-lente em Euros a 500.000 contos (com base na situação líquida dada pelo último balanço aprovado).

4.8. Privatização de emPresas indirectamente nacionalizadas

Considera a doutrina que seriam inconstitucionais, enquanto vigorou a irreversibilidade das nacionalizações, a alienação de participações sociais maioritárias ou minoritárias em grande, médias ou pequenas empresas, nos sectores básicos da economia ou fora deles quando se trate de empresas directamente nacionalizadas; a alienação das participações maioritárias em grandes empresas, mesmo fora dos sectores básicos da economia, ainda que indirectamente nacionalizadas (como resultado da interpretação a contrario sensu), e a alienação das participações maioritárias em pequenas e médias empresas, indirectamente nacionalizadas, mas pertencentes aos sectores básicos da economia135.

135 Nuno Sá Gomes, Nacionalizações…, cit., p. 374, Paulo Otero, Privatizações…, p. 110 e Nuno Cunha Rodrigues, cit.,p. 247..

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O antigo artigo 85.º, n.º 2, da Constituição dispunha que “as pequenas e médias empresas indirectamente nacionalizadas situadas fora dos sectores básicos da economia poderão ser reprivatizadas nos termos da lei.” Ante-riormente, a relevância desta disposição era permitir a privatização.

Tal dispositivo constitucional actualmente consta do o n.º 2, do artigo 293.º, da Constituição, quando dispõe que: “[a]s pequenas e médias empresas indirectamente nacionalizadas situadas fora dos sectores básicos da economia poderão ser reprivatizadas nos termos da lei”, sendo que actualmente e como se disse, não vigorando o princípio da irreversibili-dade das nacionalizações, a utilidade e a relevância do princípio é apenas a de permitir a reprivatização com recurso a norma diversa e , eventual-mente, com recurso a regime mais aligeirado do que regime diverso da Lei n.º 11/90136.

Questão complexa é a de saber qual o regime aplicável às empresas que sendo pequenas e médias e actuando fora dos sectores básicos da economia evoluíram em sentido diverso como se passou no caso da EGF, casos em que, por cautela, se tem admitido sujeitá-las à lei quadro das reprivatiza-ções, como já se adiantou.

4.9. extinção de emPresas nacionalizadas e revogação do acto de nacionalização

J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira consideram inconstitucional a extinção de empresas nacionalizadas quando tenham a propósito de desna-cionalizar.

Nuno Sá Gomes137 entende, contudo, que a extinção de empresas públicas, impedindo a dissolução e liquidação respectivas e consequente venda de bens que integrem o seu património, não é, em si mesma, incons-titucional.

A jurisprudência constitucional (vide Ac. do Tribunal Constitucional n.º 106, de 8 de Abril de 1984, no caso da extinção da SNAPA pelo Decreto--Lei n.º 161/82, de 7 de Maio) tem admitido, embora com pressupostos apertados, a validade da extinção de empresas nacionalizadas, quando se

136 J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., p. 416, nota 85.137 Nuno Sá Gomes, Nacionalizações…, cit., p. 379.

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trate de empresa tecnicamente falida (por vezes as referidas empresas foram nacionalizadas por estarem tecnicamente falidas)138.

A nosso ver tal extinção não constitui uma privatização a menos que constitua uma fraude à Constituição e à lei e seja precedida de alienação significativa de activos para privados ou vise abrir espaço para a actuação de privados, sem que exista razão de racionalidade económica que presida à extinção. Já a racionalização e alienação parcial de activos deve sempre ser tida como privatização, quando seguida de extinção.

A doutrina considerava ainda inconstitucional, à luz do princípio da irreversibilidade das nacionalizações então vigente, e “face ao disposto no n.º 1 do artigo 83.º da Constituição, a revogação, por novo e poste-rior diploma legislativo, de anterior diploma de nacionalização publicado entre 25 de Abril de 1974 e 25 de Abril de 1976.”, admitindo, contudo, a revogação da nacionalização da DIAGAL, por não se tratar de empresa nacionalizada nesse período139.

Neste ponto parece claro que qualquer revogação do acto de naciona-lização deve ser tratada como privatização, salvo verificação de inconstitu-cionalidade ou de ilegalidade sui generis da mesma privatização, o que pode permitir a declaração de nulidade do acto legislativo de reprivatização ou a revogação retroactiva com esse fundamento, sem que tal se considere uma reprivatização. No entanto, o acto legislativo em causa pode ser questio-nado judicialmente e, caso o fundamento não se verifique, deve ser tratado como reprivatização.

4.10. diversas outras limitações à rePrivatização

Diversa legislação em sede de reprivatizações ou de privatizações prevê limitações à aquisição de percentagem em empresas ou prevê golden shares.

Por exemplo, no artigo 9.º Decreto-Lei n.º 34-A/96, de 24 de Abril, prevê-se uma limitação até 10% para a aquisição de capital social por qual-

138 Esta posição seguiu a posição constante da Informação n. 118/78, do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República. Ainda no mesmo sentido pode conferir-se a posição do Conselho Constitucional relativamente à CERGAL, onde a Comissão Consti-tucional considerou que o Governo não tinha competência para extinguir empresas públicas, mas no caso a desnacionalização não estava vedada porque a empresa já estava morta, vide Nuno Sá Gomes, Nacionalizações…, cit., p. 381.

139 Nuno Sá Gomes, cit., p. 370.

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quer entidade singular ou colectiva. O artigo 10.º do Decreto-Lei de repri-vatização previu que na operação em causa ninguém pode adquirir mais de 5%. Esta matéria foi desenvolvida pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 149-A/97, de 11 de Setembro.

A limitação de aquisição de participações por estrangeiro tem sido questionada pela União Europeia.

O Direito da União Europeia pode restringir as limitações deste tipo em função da liberdade de estabelecimento (art. 49.º) e da liberdade de circulação de capitais (art. 63.º).

Contudo, a limitação não é absoluta. O TFUE, no artigo 65.º n. 1, al. b), prevê a possibilidade de os Estados-Membros considerem medidas rela-tivas à limitação do capital justificadas por razões de ordem ou de segu-rança públicas que podem validamente condicionar a livre circulação de capitais.

E, nesse quadro, algumas directivas e dispositivos legais, previram essa limitação. Assim a Directiva n. 89/646, de 15 de Dezembro de 1989, dispõe que qualquer aquisição ou reforço que represente mais de 10% do capital social deve ser obrigatoriamente notificada à entidade competente que se poderá opor a essa aquisição, caso se verifique a idoneidade do adquirente.

Outro aspecto que pode suscitar problemas de conformidade com o Direito da União Europeia é a previsão de Golden Share. O seu uso pode restringir a concorrência e tem tido lugar em certas situações como ocorreu no caso Elf Aquitaine, para evitar uma aquisição, ou para evitar a aquisição da Renault pela Volvo, ou no caso da Espanha para evitar a aquisição da Telefónica pela KPN.

Pode distinguir-se uma noção ampla de Golden Share e que pode abranger, limites à participação no capital social, autorização prévia para exercício de certos direitos e direito de veto, veto relativo à aquisição de bens, veto relativo à decisão estratégica, veto quanto a decisões relativas a transferência de instalações técnicas, poder de nomear administradores, veto quanto a alteração de direitos especiais, suspensão de direitos de voto140.

As restrições devem ser não discriminatórias, por razão de interesse geral, aptas a prosseguir o fim e que não ultrapassem o fim legal, sendo que não devem visar matéria económica e que se considera que correspondem a fim de interesse geral se visarem segurança interna e externa, ou segu-rança de aprovisionamento (caso Comissão c. Bélgica, 4 de Junho de 2002).

140 Nuno Cunha Rodrigues, ob.cit., p. 275.

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Os limites à fixação de Golden Share foram analisados no aresto Comissão c. Portugal, 4 de Junho de 2002, Ac. de 4.6.2002, proc. C-367/98141.

Outro dos limites de Direito da União Europeia às operações de repri-vatização resulta do regime dos auxílios de Estado.

O regime dos auxílios de Estado estabelece fronteiras aos tipos de procedimentos a utilizar e às operações de reestruturação. Com efeito, na privatização por concurso limitado ou venda directa deve observar-se o regime dos arts. 107.º e ss. do TFUE para despistagem de auxílios de Estado, regime aplicável também, aos casos de exclusão liminar dos actuais accio-nistas das empresas a privatizar ou a reprivatizar.

A não realização da privatizações em condições de mercado implica um auxílio da estado. Como afirmam Ruben Maximiliano e Alexandre Amaro “subjacente a esta avaliação está o princípio de que, ao não receber os montantes que deveria receber, o Estado está a deixar de receber rendas, pelo que está a afectar recursos estatais e a oferecer uma vantagem econó-mica ao comprador ou à empresa a ser reprivatizada”142.

Os princípios gerais de aplicação dos auxílios de Estado foram enume-rados pela Comissão em 1993 no XXIII do Relatório sobre Política da Concorrência. Esse relatório considerava que, caso a privatização seja efec-tuada através da venda de acções em bolsa, presume-se que a privatização não constituium auxílio de Estado por constituir o preço de mercado. Exige assim a União Europeia um concurso aberto, transparente e incondicional143.

141 Col. I – 473.142 Contratação Pública e Concorrência nas Privatizações: A perspectiva da Comissão

Europeia, p. 235 e ss., in Contratação Pública e Concorrência, org. Cláudia Trabuco e Vera Eiró, Coimbra, 2013.

143 Esta matéria foi apreciada no caso London Underground Public Private Partner-ship, no caso BPN, Comissão 27.03.2013, Proc. SA 269096 (2011/1) relativo às medidas executadas por Portugalno contexto da reestruturação do Banco Português de Negócios, caso Stardust Maritime, Documento da Comissão08.09.1999, proc. n.º 6 (1999), 3148, relativo aos auxílios estatais concedidos pela França à empresa Stardust Maritime.

A jurisprudência tem exigido que se trate de concurso transparente (Caso Societé de Banque Ocidentale, Documento da Comissão de 22 de Julho de 1998, Proc. C (1998) 2406, que não se alterem as regras do concurso, que essas regras não resultem de reuniões preli-minares com os concorrentes (Decisão Automobile Craiova, Comissão de 27 de Fevereiro de 2998 relativa ao auxílio estatal C46/07 (Caso NN 59/07), considerando-se ainda violar da concorrência uma grelha em que a maioria da pontuação era outorgada a investimentos futuros a realizar, devendo vender-se à melhor oferta (Bank Burgenland 30.04.2008, C 56/06).

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Existem ainda outras comunicações da Comissão a este respeito, aplicáveis a áreas sectoriais (como ocorreu na área do Banco).

Nem sempre o Estado tem optado por notificar à Comissão Europeia o eventual auxílio. Fê-lo, contudo, no caso da ANA e do BANIF, por exemplo, e foram consideradas situações susceptíveis com o Direito da União.

Por outro lado, por vezes as operações de reprivatização implicam uma reestruturação prévia, o que deve também ser aferido em face dos limites relativos aos auxílios de Estado.

Por norma, as empresas públicas a privatizar ou apresentam um enqua-dramento jurídico e orgânico incompatível com a sua transferência para a propriedade privada (e.g. as entidades públicas empresariais; empresas como a Portugal Telecom e Brisa, cujos estatutos se revelavam desadequados à sua integração no sector privado), ou necessitam de uma reestruturação financeira prévia, por apresentarem estruturas de capitais desajustadas, seja por endividamento (e.g. EPAC, Silopor e Dragopor), seja por outras razões (e.g. EDP). Noutros casos, exigem uma reorganização prévia à privatização através do “spin-off de activos sociais ou relacionados com actividades não essenciais à prossecução do negócio principal”, com vista à criação de “unidades de negócio viáveis e atractivas”144.

Em geral, “os investidores institucionais penalizam a venda de largos blocos de activos e negócios não relacionados entre si, com reduzidas siner-gias face à actividade principal”, sendo preferível que “as empresas sejam reestruturadas e reorganizadas antes da privatização, do que deixar essa tarefa para os accionistas e gestores privados”145.

Com efeito, por vezes a operação de reprivatização implica a adopção, previamente ao processo de privatização ou de reprivatização de actos de reestruturação da empresa. Tal ocorreu no caso do Banco Português de Negócios, S.A. (“BPN”), que implicou a realização de determinados actos pela administração do BPN tendentes à prévia transmissão para uma ou mais entidades de um conjunto de activos do BPN que o Estado pretende excluir do perímetro da reprivatização.

Como já se referiu, o Estado nacionalizou o BPN através da Lei n.º 62-A/2008, de 11 de Novembro, mediante a aquisição de todas as acções representativas do seu capital social, passando, assim, o BPN a ter a natu-

144 Neste sentido, Carlos Francisco Alves, Preparação e execução dos programas de privatizações 1996-1999, in AAVV, Privatizações e Regulação. A experiência Portuguesa, Ministério das Finanças, 1999, pp. 32-35.

145 Neste sentido, Carlos Francisco Alves, Preparação e execução cit., p. 35.

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reza de sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos (artigo 2.º, n.º 5 da Lei 62-A/2008).

A gestão do BPN foi atribuída à Caixa Geral de Depósitos, S.A. (“CGD”), a quem competiu a designação dos membros dos órgãos sociais do BPN e a definição, no prazo de 60 dias, dos objectivos de gestão do BPN, acautelando, designadamente, (i) os interesses dos depositantes, (ii) os interesses patrimoniais do Estados e dos contribuintes e (iii) a defesa dos direitos dos trabalhadores (artigo 2.º, n.ºs 5 e 6 da Lei 62-A/2008).

Entretanto, de acordo com o artigo 2.º, n.º 9 da Lei 62-A/2008, as operações de crédito ou de assistência de liquidez realizadas pela CGD, a favor do BPN no contexto da nacionalização e em substituição do Estado, beneficiaram de garantia pessoal do Estado.

O Estado aprovou então, e como se referiu, através do Decreto-Lei n.º 2/2010, de 5 de Janeiro, a operação e modelo de reprivatização do BPN, que previa a alienação de 95% das acções representativas do seu capital social na modalidade de concurso público.

O modelo de reprivatização foi gizado de acordo com as seguintes directrizes:

a) Aumentar a probabilidade de aparecerem concorrentes ao processo de reprivatização, retirando os Activos Autónomos do balanço consolidado do BPN , de modo a torná-lo mais “atractivo” para potenciais interessados;

b) Retirar o impacto nos Fundos Próprios necessários por efeito dos Grandes Riscos, nomeadamente no que se refere aos Fundos Imobi-liários e à exposição de crédito ao Grupo SLN;

c) Reduzir o rácio de transformação para valores aceitáveis e de mercado;

d) Procurar que o Modelo de reprivatização a implementar fosse satis-fatório, para efeitos de reembolso à CGD do funding concedido ao BPN.

Neste sentido, no caso do BPN, o Governo e a administração do BPN procuraram definir as bases de reestruturação financeira e reorganização do BPN com o objectivo de tornar o banco um activo atractivo para os privados e, desse modo, maximizar o retorno para o erário público (cf. artigo 3.º, alíneas a) e f) da Lei Quadro das Privatizações; artigo 2.º, n.º 3 do Decreto--Lei n. 2/2010; directrizes que presidiram à elaboração do modelo de repri-

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vatização. À semelhança do que fizeram diversos países da União Euro-peia no auge da crise financeira (e.g. no Reino Unido, o Northern Rock), o Governo e a administração do BPN procuraram então determinar quais os activos do BPN que potencialmente o tornariam mais atractivo para os diversos players do sector financeiro, procedendo à alienação dos restantes previamente à reprivatização.

Nos termos do n.º 2.10 a 2.12 do “Memorandum of Understanding on Specific Economic Policy Conditionality” datado de 3 de Maio de 2011 pretendeu-se que o Governo Português concluísse com celeridade o processo de reprivatização do BPN, isto é, que encontrasse um comprador, firme, até ao fim de Julho do ano em causa.

O modelo passou então pela constituição, pelo BPN, de três socie-dades não reguladas, com domínio total inicial deste, as quais adquirirão ao BPN os Activos Autónomos, ao valor nominal/custo de aquisição. Mais concretamente:

a) PARVALOREM – sociedade à qual foram cedidos os créditos do BPN sobre certos clientes;

b) PARUPS – sociedade à qual foram cedidas as unidades de parti-cipação em fundos de investimento e outros títulos, e ainda outros bens recebidos pelo BPN em dação ou adquiridos por via judi-cial e imóveis do Banco Efisa e do BPN IFIC, cujos contratos de “leasing” tenham sido resolvidos ou em relação aos quais não tenham sido exercidos direitos de opção;

c) PARPARTICIPADAS – sociedade à qual foram cedidas participa-ções sociais do BPN em sociedades, quer de direito nacional quer de direito estrangeiro.

As acções representativas do capital social das sociedades PARVA-LOREM, PARUPS e PARPARPARTICIPADAS foram alienadas ao Estado ou a uma entidade por este designada previamente à alienação das acções representativas do capital do BPN no âmbito do processo de reprivatização.

A PARVALOREM adquiriu os activos do BPN ao valor nominal/custo de aquisição e assumiu, na medida correspondente, a dívida do BPN face à CGD, com o acordo desta última.

Por outro lado, por vezes existem ainda limites regulatórios quer de origem legal quer por vezes a nível do Direito da União Europeia que não têm que ver com regras relativas à concorrência ou aos auxílios de Estado.

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Por exemplo, no caso concreto da reprivatização da REN esta teve de ter em consideração o disposto no Decreto-Lei n.º 29/2006, de 15 de Fevereiro (que estabeleceu as bases gerais da organização do Sistema Eléctrico Nacional “SEN”) e no Decreto-Lei n.º30/2006, de 15 de Feve-reiro (que estabeleceu as bases gerais da organização do Sistema Nacional de Gás Natural “SNGN”), nos termos das quais, para salvaguardar a inde-pendência dos operadores da Rede Nacional de Transporte “RNT”, da Rede Nacional de Transporte de Gás Natural “RNTGN”, do armazena-mento subterrâneo de gás natural, e do terminal de Gás Natural Liquefeito “GNL”, se previa que nenhuma pessoa singular ou colectiva pudia deter, directamente, ou sob qualquer forma indirecta, mais de 10% do capital social do operador em questão ou de empresa que o controle. Esta limi-tação era agravada para 5%, para as entidades que exerçam actividades no sector eléctrico ou do gás natural, consoante o aplicável, nacional ou estrangeiro.

A limitação referida no ponto anterior não se aplicava, contudo, ao Estado, nem a empresa por ele controlada, ou à empresa operadora em causa ou à empresa que a controle.

Essa restrição a partida condicionava o processo de privatização da REN, quanto ao número de acções a adquirir por cada entidade (directa ou indirectamente).

Ora, e em consequência, os Estatutos da REN prevêem uma limi-tação de voto relativamente às acções de categoria A, ao abrigo da qual não serão contados os votos inerentes às acções da categoria A, emitidos por qualquer accionista, em nome próprio ou como representante de outrem, que excedessem 10% ou, no caso de se tratar de entidades com actividades ou interesses no sector energético, 5% da totalidade dos votos correspondentes ao capital social.

Esta regra reflectia as limitações consagradas nos já referidos Decreto-Lei n.º 29/2006 e Decreto-Lei n.º 30/2006.

Deve sublinhar-se que, nos termos dos Estatutos, a transmissão para entes não públicos de acções da categoria B, como consequência da conclusão de uma fase do processo de reprivatização, determinava a conversão automática das acções reprivatizadas em acções da categoria A, sem que essa conversão necessite da aprovação dos respectivos titu-lares ou de deliberação de qualquer órgão da sociedade.

Essa limitação foi entretanto alterada, mas corresponde a um tipo de limitações a ter em conta nos processos de reprivatização.

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Como se disse anteriormente, uma das limitações em sede de privatização ou de reprivatização pode advir do regime de salvaguarda de activos estraté-gicos essenciais para garantir a defesa e segurança nacional e a segurança do aprovisionamento do País em serviços fundamentais para o interesse nacional, nas áreas da energia, dos transportes e comunicações, enquanto interesses fundamentais da segurança pública, regime esse aprovado pelo Decreto-Lei n.º 138/2014, de 5 de Setembro de 2014, com base na autorização legislativa aprovada pela Lei n.º 9/2014, de 14 de Fevereiro. Nos termos do artigo 2.º, al. a), “activos estratégicos são definidos como infraestruturas e activos” sujeitos à defesa e segurança nacional ou à pretação de serviços essenciais nas áreas da energia, transporte e comunicação. Nos termos do artigo 3.º, n.º 1, o Conselho de Ministros, sob proposta do Ministro da tutela sectorial, pode opor-se à realização de operações das quais resulta, directa ou indirecta, a aquisição do controlo, directo ou indirecto, por uma pessoa ou pessoas de país terceiro à União Europeia e ao Espaço Económico Europeu, sobre activos estratégicos, independentemente da respectiva forma jurídica, nos casos em que se determina que estas possam pôr em causa, de forma real e suficiente grave, a defesa e segurança nacional ou a segurança do apro-visionamento do País em serviços fundamentais para o interesse nacional. Essa ameaça tem critério posteriormente definidos nos n.ºs 2 e 3. Este poder pode limitar as privatizações que não sejam decididas pelo Conselho de Ministros, já que as reprivatizações sempre serão definidas pelo Conselho em causa.

5. PRINCÍPIOS GERAIS DO PROCEDIMENTO DE (RE)PRIVATI- ZAÇÃO

A Lei-Quadro das Reprivatizações e a Lei de Alienação das Partici-pações do Sector Público deixam alguma margem de discricionariedade ao legislador, através da lei que aprova a (re)privatização e ao Conselho de Ministros, através da resoluções que aprovam as condições finais e concretas das (re)privatizações, para fixarem os termos do procedimento adminis-trativo relativo às (re)privatizações, embora essa discricionariedade esteja limitada pelos princípios gerais de Direito.

O CCP não é aplicável à Lei n.º 11/90 nem à Lei de Alienação das Participações do Sector Público, embora, contudo, como se disse, alguns dos seus princípios sejam aplicáveis.

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Direito Administrativo das Privatizações 363

Certo é que o decreto-lei que aprova o regime de privatização ou de reprivatização está sujeitos aos princípios de fonte constitucional ou base-ados no Direito da União Europeia.

Como referem Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira146, existem princípios com base constitucional, ou expressa (vide artigo 266.º da Constituição), ou como corolário de outros princípios (vg. o princípio da segurança jurídica, corolário do Estado de Direito Demo-crático), que prevalecem, portanto sobre a lei, e que, por isso, merecem particular atenção em sede de privatizações e de reprivatizações, porque têm de ser respeitados nos procedimentos lançados nesse quadro e não podem, pois, salvo na medida de derrogação constitucional expressa ou, para atender a outros valores constitucionais, ser derrogados mesmo em sede de privatizações.

O mesmo se dirá quanto a princípios derivados do Direito da União Europeia, como seja o da não discriminação em razão da nacionalidade, da não distorção da concorrência, da proibição em regra de Auxílios de Estado, da equivalência, etc.

Já quanto aos restantes princípios de fonte legal ou enquanto fonte autó-noma, prevalecem sobre os regulamentos administrativos e, logo, sobre as peças concursais, salvo se a isso se opuser o regime global das reprivatiza-ções ou das privatizações, porque estes últimos normativos, tratando-se de normativos de valor reforçado, afastam em caso de contradição expressa, tácita ou global ou de sistema, os princípios que lhe sejam contrários e que apenas disponham de valor legal ou equivalente.

Para além dos princípios com assento constitucional existem princí-pios gerais de Direito Administrativo e de Direito da Contratação Pública que devem prevalecer sobre a resolução que aprova as condições finais e concretas das privatizações, salvo na medida em que sejam derrogados expressa e validamente pelo decreto-lei que aprova a reprivatização.

O artigo 1.º, n.º 4, do CCP, refere especialmente como aplicáveis aos procedimentos pré-contratuais (para além do princípio da igualdade que tem assento constitucional) os princípios de transparência e da concorrência, que constituem afloramentos de princípios gerais e como tal devem ser atendidos também em sede de (re)privatizações, a que não se aplica o CCP. Mas, como refere Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos147,

146 Concursos e outros procedimentos,Coimbra, 2012, pp. 176 e ss..147 Concursos..,. cit., p. 73.

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existem outros princípios aplicáveis “sejam eles explicitados dos princípios fundamentais da actividade administrativa ou específicos do direito dos contratos administrativos.”

Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos apontam ainda, para além dos princípios constitucionais, como princípios relacionados com os contratos com prestações submetidas à concorrência, e para além dos referidos no CCP, a publicidade, e a estabilidade.

Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira148 destacam para além dos princípios constitucionais, e como princípios comuns à contratação pública, e para além dos referidos, os princípios da eficiência, do inquisitório e da informação, como princípios gerais resultantes do CPA sem base constitucional, e indica como princípios da contratação pública electrónica os princípios da disponibilidade, do livre acesso, da interopera-cionalidade e da intangibilidade.

Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira referem como corolários do princípio da transparência, no que acompanhamos, publicidade dos contratos, publicidade das comunicações aos candidatos, exigência de notificação dos restantes convidados dos ajustamentos à proposta de adju-dicação ou peças do procedimento, proibição de convite para ajuste directo. Já não nos parece de incluir neste princípio os outros casos referidos pelos autores, designadamente a proibição de dupla participação, por se integrarem noutro princípio – o da concorrência. Do ponto de vista do Direito da União Europeia relevam neste domínio os arestos TJUE de 24 de Novembro de 2005, proc. 331/04, AIT EAC.

Com efeito, em sede de procedimento de privatização este princípio é também aplicável e dele resulta a necessidade de publicidade das comu-nicações aos candidatos, do convite para ajuste directo, e a publicidade do contrato, embora já a publicidade dos elementos constantes do processo legislativo possa ser questionável por não se tratar de procedimento admi-nistrativo.

O princípio da igualdade, designadamente quanto ao acesso a contratar, pode suscitar algumas questões. Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira negam a igualdade na ilegalidade149, porém admitem-na em casos muitos contados, ao afirmar: “se houver porém circunstâncias do caso concreto que peçam por razões de necessidade ou utilidade pública, uma

148 Concursos…,. cit., pp. 176 e ss..149 Ob. cit., p. 216.

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Direito Administrativo das Privatizações 365

aplicação mais ponderada dessa recusa geral, poderá admitir-se avaliar a situação em função de estarem ou não envolvidos na ilegalidade detectada nas candidaturas ou propostas de todos os concorrentes: na primeira hipó-tese, o princípio da igualdade poderia prevalecer sobre o da legalidade se a ilegalidade cometida não se revestir de carácter essencial ou material, não prejudicar a comparabilidade das propostas nos termos patenteados e se não houvesse lesão relevante, ainda que potencial, de interesses de terceiros.”

São manifestações da igualdade, segundo os mesmos autores, não se poderem convidar os concorrentes a esclarecer as suas propostas, sem prejuízo de tal pode implicar também violação da intangibilidade das propostas. Relevam nesta matéria os arestos do TJUE Beentjes, de 20 de Setembro de 1988 e o aresto Contse, de 27 de Outubro de 2005 relativo a discriminação em razão da nacionalidade e preferência local.

Problemática conexa com a igualdade é a da violação ou não desse princípio pela existência de indemnizações compensatórias ou de subvenções públicas, o que foi admitido pelo Conselho Consultivo da PGR em 2002 e pela jurisprudência do TJ Arge de 7 de Dezembro de 2000 e Almark de 24 de Julho de 2003, relevando quanto aos auxílios de Estado o aresto do TJUE de 26 de Junho de 2006, T-442/03.

O princípio da não discriminação é refracção do princípio da igualdade e implica a proibição da violação da obrigação de não discriminação, a proi-bição de actos discriminatórios na divulgação da informação, não discrimi-nação na fixação das exigências relativas a capacidade técnica, na qualifi-cação ou selecção nos concursos de concepção e sistemas de qualificação.

O princípio da imparcialidade, previsto nos artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 6.º do CPA, tem valor reforçado e é violado, segundo Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, em quatro tipo de situações: défice de ausência de ponderação, défice material de ponderação, desvio nega-tivo de ponderação e desvio positivo de ponderação. É violado pelo mero perigo da violação, como decorre do aresto do STA de 10 de Outubro de 2003, processo n.º 48035, TCA Norte 16 de Novembro de 2006, e STA 25 de Março de 2009, processo 55/09 (a respeito da contratação pública, mas com ratio aplicável em sede de procedimentos relativos a privatizações).

Relativamente ao princípio da concorrência esta determina, de acordo com os referidos autores150 “que seja garantido o mais amplo acesso aos

150 Ob. cit., p. 75.

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procedimentos por parte dos interessados em contratar, e que, em casa procedimento, seja consultado o maior número possível de interessados, no respeito pelo número mínimo que a lei imponha. Este princípio visa, quer a salvaguarda do normal funcionamento do mercado e a protecção subjectiva dos concorrentes (artigo 81.º, al. f), 88.º, als. a) e c) da CRP), quer a melhor prossecução do interesse público que preside à celebração do contrato.” Também corolário do princípio da concorrência é o da compa-rabilidade das propostas.

Relativamente a este princípio, que Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira consideram “trave mestra da contratação pública”, ganha maior incidência nas situações de concurso público e decresce em importância nos casos de concurso limitado por pré-qualifi-cação, por negociação ou no diálogo concorrencial (ou no caso dos proce-dimentos de (re)privatização na venda directa ou na negociação particular). Na visão de Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira este princípio, fora dos casos de vinculação legal, não impõe, apenas permite, que se adoptem procedimentos mais amplos em termos de abertura à concor-rência. No entanto, em termos de especificação a nível das peças concursais, o princípio em causa impede que se adoptem critérios que restrinjam subs-tancialmente a concorrência. Foi considerada violação dessa obrigação a abertura de concurso para aquisição de produtos por estabelecimento hospi-talar que exigiu a apresentação de proposta para todos os produtos, o que condiciona, considerou-se, a concorrência (vide TCA Norte, proc. 1257/09, 25 de Março de 2010).

Os autores em causa consideram como corolários do princípio da concorrência, e dos quais merecem destaque por poderem relevar em sede de privatizações, a prévia enunciação dos critérios de qualificação e adju-dicação, a exigência de se respeitar a ponderação atribuída aos factores de adjudicação, a definição das especificações de forma a potenciar a concor-rência, a admissibilidade de agrupamentos mistos, a proibição de dupla participação, a proibição de prestação de assessoria prévia por parte dos concorrentes, notificação simultânea das decisões, comunicação dos ajus-tamentos aos concorrentes preteridos, informação de todos os concorrentes no leilão electrónico. Dos corolários enunciados apenas não se integram, a nosso ver, neste princípio, a proibição de participação de quem tenha prestado assessoria por se integrar mais no princípio da imparcialidade e a exigência de respeito pela ponderação dos factores de adjudicação por se integrar no princípio da legalidade.

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Direito Administrativo das Privatizações 367

O princípio da imparcialidade implica que as peças do procedimento pré-contratuais não podem conter cláusulas que visem favorecer ou preju-dicar os interessados.

O princípio da imparcialidade tem três dimensões: adequação, necessi-dade e razoabilidade ou equilíbrio. Destacam os referidos autores, a vertente da adequação na escolha do procedimento, a da necessidade na realização tão só das diligências indispensáveis e a da razoabilidade na ponderação de custo e benefício de cada um dos procedimentos151.

Este princípio tem ainda, para além do referido pelos autores, um papel no relacionamento com os particulares, designadamente na exclusão dos mesmos e na decisão de adjudicação.

O princípio da proporcionalidade implica segundo Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira a rejeição de requisitos de acesso relativos ao número e valores da actividade ou serviços já realizados e com relevância para a actividade a gerir, quanto tais requisitos sejam exigidos em excesso, e tem também uma projecção procedimental, ao nível da ponde-ração de meios e no domínio da avaliação das propostas.

O princípio da boa fé implica, para Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, identidade, autenticidade e veracidade na comunicação, e, a nosso ver, conhece ainda afloramentos enquanto boa fé objectiva nas limitações à revogação do acto de adjudicação e na alteração de circuns-tâncias na fase pré-contratual.

O princípio da estabilidade projecta-se, de acordo com Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, em quatro corolários: i) na manu-tenção inalterada das peças concursais, ii) na inalterabilidade em concurso público das propostas concorrentes (salvo quando prevista a negociação) até à adjudicação, sendo nos restantes procedimentos admitida a modificação apenas quando prevista, iii) na limitação, após a adjudicação, de meros ajustamentos por acordo das partes, desde que digam respeito a condições acessórias e inequivocamente em benefício do interesse público; iv) na vinculação a contratar, salvo causas legais que dispensem essa contratação. Acompanham-se os três primeiros aspectos, integrando-se o ponto iv), como se disse, no princípio da boa-fé e não no da estabilidade.

O princípio da estabilidade abrange a estabilidade das regras do proce-dimento e a estabilidade dos concorrentes e candidatos.

151 Ob. cit., p. 76.

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Quanto à estabilidade das regras do procedimento, relevam os arestos do STA de 29 de Março de 2007, processo 681/06 e de 3 de Julho de 2004, processo n.º 381/04. Se ainda não foi apresentada proposta, pode admitir-se a alteração das regras nos casos de erros e omissões e de erros manifestos. Impõe-se a publicidade dos desvios ao princípio da estabilidade objectiva relativamente aos interessados que adquiriram as peças do procedimento.

O princípio da estabilidade dos concorrentes e candidatos releva do direito de cada membro (TJUE, acórdão de 2003, caso Michaniki, processo n.º C-57/01, de 23 de Janeiro). Este princípio impede a cessão da posição contratual e a alteração da posição contratual se um dos factores de avaliação das propostas quanto à estrutura da empresa ou os meios utilizados implicar o aproveitamento da experiência da empresa-mãe, implicar alteração quanto à idoneidade ou às regras de dupla participação ou violar a imparcialidade). Exige ainda a estabilidade da convenção quanto ao agrupamento, questio-nando-se, contudo, a possibilidade de cisão ou fusão do adjudicatário em certos casos. Este princípio terá em princípio aplicação limitada em caso da reprivatização ou privatização, considerado que se trata de mera venda de acções ou de activos. No entanto, no caso de o procedente ser com pré--qualificação ou se o contrato previr obrigações pós-reprivatização, desig-nadamente da recapitalização, poderá ter relevância, limitando as alterações possíveis.

Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira152 autono-mizam o princípio da intangibilidade da proposta do princípio da estabili-dade. O princípio da intangibilidade da proposta significa, a seu ver, a petri-ficação das propostas e a indisponibilidade das propostas (vide aresto do STA de 8 de Setembro de 2004, proc. 890/04 e de 23 de Setembro de 1993, AD, 389). A intangibilidade abrange um vertente documental e outra mate-rial. A indisponibilidade significa que as propostas não podem ser retiradas enquanto não tiver lugar a adjudicação ou decorrer o prazo da obrigação de manutenção das propostas.

A indisponibilidade não prejudica a sanação de lapsos evidentes e a rectificação de erros manifestos revelados no contexto da declaração ou circunstâncias em que foi feita, nos termos do artigo 249.º do CC, o que pode ser feito oficiosamente pelo júri (vide acordão de 19 de Maio de 2004, proc. 416/04, a respeito da contratação pública mas aplicável em sede de (re)privatizações).

152 Ob. cit., p. 516.

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Por outro lado, os esclarecimentos do júri não podem contrariar os elementos constantes dos documentos que as constituem, nem alterar ou complementar atributos, nem visar suprir a omissão deles (vide relativa-mente a este aspecto arestos do TCA Norte de 14 de Junho de 2007, proc. n.º 1657/05.1 e o STA de 9 de Abril de 2003, processo n.º 48396).

Atenuação da intangibilidade surge em certos procedimentos como seja o ajuste directo com um só convidado, ou no caso do concurso com fase de negociação. Como afirmam Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira está-se nesses casos perante uma intangibilidade rela-tiva, porque se admite alteração no sentido de melhoramento da proposta, mas não no sentido inverso.

A lei prevê ainda outros desvios ao princípio da intangibilidade, desig-nadamente os ajustamentos ou modificações após a adjudicação.

Admitem-se ainda desvios materiais em função de operações de mera concludência, cálculos puramente matemáticos se resultantes de uma norma preceptiva (STA (Pleno) de 16 de Junho de 2005, secção de 17 de Feve-reiro de 2004 – processo n.º 1204/03, a respeito da contratação pública mas relativo a solução aplicável em sede de procedimentos de (re)privatização).

Admitem-se desvios à intagibilidade documental, fora dos casos de exclusão, em função da admissibilidade de junção de documentos super-venientes para mera actualização de informação (STA de 17 de Outubro de 2003, 15/03, Conselho Consultivo da PGR, que admitiu a entrega de página em falta), admitindo-se nalguns casos correcções oficiosas (STA de 16 de Junho de 2005, processo n.º 1204/03 e TCA Norte de 14 de Junho de 2007, processo n.º 1657/05, a respeito da contratação pública mas relativo a solução aplicável em sede de procedimentos de (re)privatização). Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira admitem, contudo, o poder do concorrente recusar as alterações oficiosas se aumentarem os encargos. Discorda-se deste entendimento se a alteração se basear em erro material ou de escrita, a menos que se admita que tal alteração também não é admissível no caso de aumento de encargos ou diminuição de utilidades para a Administração, o que também não se sufraga. Admite-se, portanto, alteração com aumento de encargos, posto é que a alteração seja legítima por corresponder a mero erro de escrita e não e erro-obstáculo.

As eventuais alterações são, contudo, objecto de uma obrigação de transparência.

A comparabilidade das propostas ou candidaturas (no caso de modelo complexo de qualificação) corresponde a outro princípio procedimental

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(Mário Eesteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira). Comparabili-dade de preço e prazo, mas ainda dos factores definidos como padrão pela entidade adjudicante.

A padronização administrativa de propostas incomparáveis é por vezes admitida e foi aceite no acórdão de 16.06.2005 (processo n.º 1204/03) relativo a mapas e encargos com pessoal (embora em sede da contratação pública), onde se procedeu a correcção de acordo com o previsto em acordo colectivo de trabalho. Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira rejeitam parcialmente esta padronização no caso de implicar juízos de valor, embora considerem que o Conselho Consultivo da PGR nos Pare-ceres n. 1 e 4 (de 24 de Agosto) deu acolhimento a essa tese. A nosso ver é uma consequência do favor do procedimento, e nem rejeitamos a exis-tência de margens de valoração próprias da função administrativa, desde que não se afecte a intangibilidade das propostas e não se aditem elementos de facto, mas apenas se recorra a elementos de direito ou a juízos de expe-riência comum.

Existe uma atenuação da comparabilidade no caso de negociação e no concurso público com fase de negociação.

Uma das situações que pode por em causa a comparabilidade das propostas é a possibilidade de apresentação de propostas condicionadas com exclusão de certos activos da aquisição por decisão dos concorrentes, como foi previsto, em solução de duvidosa legalidade, no caso da ANA.

6. DIREITOS DOS TRABALHADORES

6.1. reservas

A Lei n.º 84/88, revogada pela Lei n.º 11/90, impunha uma percen-tagem mínima de 20% a atribuir aos trabalhadores em caso de reprivati-zação, o que não foi mantido pela Lei n.º 11/90. O Tribunal Constitucional entendeu que tal supressão não era desconforme com a Constituição, dado que a fixação da percentagem a outorgar aos trabalhadores apenas pode ser efectuada caso a caso, devendo atender-se ao número de trabalhadores, bem como ao capital social a reprivatizar, tendo em vista as exigências de participação de trabalhadores.

Na alteração operada pela Lei n.º 50/2011 à Lei n.º 11/90 foi entre-tanto revogado o artigo 10.º relativo ao capital reservado a trabalhadores e

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pequenos subscritores. Dispunha o n.º 1 desse dispositivo legal que “uma percentagem do capital a reprivatizar seria reservada à aquisição ou subs-crição por pequenos subscritores e por trabalhadores da empresa objecto de reprivatização.”. O n.º 2, por seu turno, dispunha que: “Os emigrantes poderão também ser abrangidos pelo disposto no número anterior.”. Na verdade, todas estas matérias foram redesenhadas e passaram a constar de outros artigos que já as regulavam, salvo a matéria relativa aos emigrantes, o que Esteves de Oliveira explica pelo facto de poder ser vista como uma discriminação em função da nacionalidade.

O artigo 11.º prevê que a aquisição ou subscrição de acções por pequenos subscritores pode beneficiar de condições especiais, desde que essas acções não sejam oneradas ou objecto de negócio jurídico que trans-mita a titularidade das acções ou direitos que lhes são inerentes, ainda que com eficácia futura, durante um determinado período a contar da data da aquisição ou subscrição, sob pena de nulidade do referido negócio. Foi revo-gado o n. 2 que previa impedimento ao direito de voto durante o período de indisponibilidade. Esteves de Oliveira entende que a razão se deve à even-tual inconstitucionalidade do preceito.

O artigo 12.º, sob a epígrafe, regime de aquisição ou subscrição das acções por trabalhadores, prevê no n. 1, que os trabalhadores ao serviço da empresa a reprivatizar têm direitos, independentemente da forma escolhida para a reprivatização, à aquisição e subscrição preferencial das acções, podendo, para o efeito, atender-se, designadamente, ao tempo de serviço efectivo por elas previsto.

Nos termos do artigo 12.º, n.º 2, a aquisição ou subscrição das acções pelos trabalhadores da empresa a reprivatizar pode beneficiar de condições especiais, desde que essas acções não sejam oneradas ou objecto de negócio jurídico que transmita a titularidade das acções ou dos direito que lhes são inerentes, ainda que com eficácia futura, durante um período a contar da data da sua aquisição ou subscrição, sob pena de nulidade do referido negócio.”

Atento este quadro legal, Mário Esteves de Oliveira (e outros)153 consi-dera que a administração tem discricionariedade quanto à percentagem do capital que pode ser vendida em condições especiais, à determinação do que é considerado pequeno subscritor, fixando o número máximo de acções a cujas aquisição ou subscrição eles podem candidatar-se, sem direito de acrescer em acções “especiais sobrantes”, à determinação do período de

153 Privatizações…, cit., p. 81.

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intangibilidade dessas acções e da sua imobilização na titularidade dos respectivos subscritores, para efeitos de aplicação da proibição e aplicação da respectiva sanção da nulidade.

Na determinação do perímetro dos trabalhadores abrangidos deve considerar-se não apenas os trabalhadores da empresa a reprivatizar mas também os das empresas detidas e controladas pela empresa em causa, bem como os das empresas não controladas mas participadas pela empresa-mãe quando resultem de bens de produção essenciais à prossecução da actividade da empresa-mãe e ainda de SGPS detentoras da empresa em causa quando tenham sido transferidos da empresa a reprivatizar. Ainda incluídos os traba-lhadores de empresas resultantes de cisão ou reorganização societária prévia à operação de reprivatização (por exemplo de sociedades veículo como no caso do BPN com a criação do Bad Bank).

Já não parecem estar abrangidos os trabalhadores de outras participadas nem os administradores. A serem contemplados com as condições especiais estas terão de respeitar as regras relativas aos pequenos subscritores.

6.2. garantia dos direitos dos trabalhadores e transmissão de Pessoal

O artigo 19.º da Lei n.º 11/90 prevê que: “os trabalhadores das empresas objecto de reprivatização manterão no processo de reprivati-zação da respectiva empresa todos os direitos e obrigações de que sejam titulares.” Trata-se de consagrar em termos literalmente idênticos o dispo-sitivo ínsito na al. c) do n.º 1 do artigo 293.º da Constituição.

Alguns autores questionam a aplicabilidade desta regra aos casos de trabalhadores afectos à administração e exploração de determinado bem, embora a apliquem não apenas aos casos de reprivatização da titularidade, mas também de reprivatização do direito de exploração154. Concorda-se com esta posição de não aplicar a regra à transmissão de bens, salvo nos casos em que seja aplicável o regime europeu da transferência de estabelecimento de que se dará nota infra.

Quanto ao alcance desta norma é importante notar que a jurisprudência tem rejeitado a diminuição de direitos no quadro da reprivatização.

No acórdão n. 1/2000, de 2 de Fevereiro de 2000, do STJ foi dito que as sociedades constituídas a partir do desmembramento da QUIMIGAL,

154 Mário Esteves de Oliveira, Privatizações…, cit., p. 115.

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Direito Administrativo das Privatizações 373

S. A., estão obrigadas a observar o acordo de empresa celebrado entre a QUIMIGAL, E. P., e os respectivos sindicatos outorgantes, relativamente aos trabalhadores nestes filiados e transferidos da QUIMIGAL, S. A., para aquelas sociedades até que aquele acordo de empresa seja substituído por outro instrumento de regulamentação colectiva (o que não resultaria do regime geral do Direito Laboral).

O referido aresto notou que a Lei Constitucional n.º 1/89, de 8 de Julho, introduziu ao artigo 296.º da Constituição da República a sua alí- nea c), que dispõe:

«Os trabalhadores das empresas objecto de reprivatização manterão no processo de reprivatização da respectiva empresa todos os direitos e obrigações de que forem titulares.»

E que, na decorrência desta alteração, a Lei n.º 11/90, de 5 de Abril - lei quadro das privatizações -, repetiu no seu artigo 19.º a norma daquela alínea c) (ipsis verbis).

O acórdão notou que a relação laboral entre a QUIMIGAL, S. A., e os seus trabalhadores, associados do autor, regia-se pelo AE/QUIMIGAL, publicado no Boletim do Trabalho e Emprego, 1.ª série, n.º 7, de 22 de Fevereiro de 1986, recusando-se a ré QUIMITÉCNICA, S. A., a aplicar este acordo de empresa aos trabalhadores provenientes da QUIMIGAL, S. A. E concluiu que, em face do quadro legal traçado, parece inquestionável que o processo de reprivatização não suprime quaisquer posições laborais e que essas mesmas posições se transmitem para as empresas originadas por cisões dentro da antiga QUIMIGAL, S. A., não ficando prejudicados os direitos e regalias já consolidados na esfera jurídica dos trabalhadores e que foram adquiridos ao abrigo do AE/QUIMIGAL, mesmo relativamente à aplicação do próprio acordo de empresa aos trabalhadores referidos para além do seu prazo de vigência e até ser substituído.

Do ponto de vista constitucional, e como se disse, no que toca à garantia dos direitos dos trabalhadores em processos de reprivatização importa atentar na al. c) do artigo 293.º da Constituição.

Relembre-se que a referida alínea al. c) do artigo 293.º (antigo artigo 296.º) da Constituição dispõe que “os trabalhadores das empresas objecto de reprivatização manterão no processo de reprivatização todos os direitos e obrigações de que forem titulares.”

O alcance desta disposição foi objecto de desenvolvimento pela juris-prudência do Tribunal Constitucional e pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, bem como da reflexão da doutrina.

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No que toca à doutrina Gomes Canotilho e Vital Moreira155 referem: “a garantia dos direitos e obrigações dos trabalhadores (al. c) implica que a reprivatização não afecta a sua situação jurídica na empresa, nem quanto à subsistência do vínculo laboral nem quanto a outros aspectos (carreira profissional, posto de trabalho, etc.)” (cfr. Ac TC n.º 71/90). Jorge Miranda e Rui Medeiros156 limitam-se a remeter para o mesmo aresto 71/90 do TC.

Vejamos então o teor deste aresto, proferido no Processo n.º 68/90, em que foi relator o Conselheiro António Vitorino.

No caso o Presidente da República suscitou a fiscalização preventiva da Constitucionalidade do Decreto 239/V da Assembleia da República, respeitante à futura Lei-Quadro das Reprivatizações. Uma das normas em relação à qual se suscitava a questão da constitucionalidade era o artigo 19.º do decreto em causa, que reproduzia ipsis verbis a disposição constitucional relativa aos direitos dos trabalhadores que citamos supra.

A pergunta concreta do Presidente da República passou por suscitar a fiscalização preventiva da constitucionalidade do decreto em causa: “quanto ao artigo 19.º que remete para o Governo a definição do modo como os trabalhadores das empresas objecto de reprivatização irão manter, no processo de reprivatização, todos os direitos e obrigações de que sejam titulares, por poder tal remissão contender com o disposto nos artigos 85.º, n.º 1, e 296.º, al. c), da Lei Fundamental, já que assim se estaria a delegar no Governo competências indelegáveis da Assembleia da República.”

O acórdão aborda a questão a p. 6 e 7.A p. 6 é dito: “No caso vertente, o artigo 19.º do Decreto limita-se

a reproduzir ipsis verbis o normativo constitucional, sem nada lhe acres-centar.

Em tese geral, e tratando-se, como atrás se viu, de uma lei-quadro com uma vocação enquadradora e ordenadora do processo de reprivati-zações, a mera reprodução do preceito constitucional, se não se pode ter por violadora da Lei Fundamental, sempre se poderia considerar como insuficiente no plano da densificação normativa, e consequentemente, por essa via, defraudaria a reserva legislativa parlamentar.

Por absurdo, se a lei-quadro em todo o seu articulado se limitasse a reproduzir o artigo 296.º da Constituição, não consagraria preceitos

155 CRP Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra, 2010, p. 1033156 Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, Coimbra, 2007, p. 989.

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em si mesmos contrários à Lei Fundamental, mas mesmo assim violaria a Constituição, porque esvaziava de conteúdo útil a competência legislativa parlamentar decorrente do disposto no n.º 1 do artigo 85.º da CRP, por insuficiente densificação normativa.

Mas se esta conclusão parece legítima em tese geral, vejamos se será igualmente no caso do artigo 19.º

Sobre este preceito, o Deputado João Proença no debate parlamentar (Diário da Assembleia da República, I Série, n.º 15, p. 482) afirmou que «(...) quando refere os direitos e obrigações fixados na proposta de lei do Governo, eu diria que o que lá está é o mesmo que nada. Isto porque o Governo se limita a repetir o que está na alínea c) do artigo 296.º da Constituição. Assim, estar ou não estar seria exactamente a mesma coisa, pois a Constituição tem sempre de ser aplicada. Efectivamente, o que tem de figurar numa lei-quadro é a forma como este princípio irá ser aplicado».

Abordando a mesma temática, no mesmo debate, o Secretário de Estado Adjunto e das Finanças (loc. cit., p. 481) afirmou: «Sr. Deputado, não considera que o artigo 13.º da proposta de lei do Governo [corres-pondente ao artigo 19.º do Decreto], que estipula que os trabalhadores das empresas objecto de reprivatização manterão no processo de repriva-tização da respectiva empresa todos os direitos de que sejam titulares, diz tudo- Mais: não considera que, na prática até agora adoptada em todos os processos de reprivatização — onde os trabalhadores têm sido ouvidos no acto de transformação do estatuto da empresa pública em sociedade anónima de capitais públicos, e expressamente se referem ao processo de privatização, dando ou não o seu acordo a esse processo —, isso tem sido rigorosamente cumprido em todos os actos e assim continuará a ser enquanto a legislação assim consagrar-»

Desta passagem do debate parlamentar resulta que segundo um enten-dimento a mera reprodução do texto constitucional nada diz, segundo outro entendimento diz tudo, relevando agora apurar se, no caso, o Decreto diz tudo o que a tal propósito a Constituição exige que seja dito.”

A p. 7 é dada a resposta a esta questão e é dito que o principio constante da referida alínea c) “constitui simultaneamente uma garantia dos direitos dos trabalhadores no processo de reprivatização e uma proibição de, no mesmo processo, poderem ser adoptados regimes excepcionais derrogató-rios dos direitos dos trabalhadores legal ou contratualmente assegurados aos mesmos no momento do início desse referido processo.

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Enquanto princípio ou norma de garantia, o preceito constitucional invocado constitui uma regra de aplicação directa, uma vez que em face do seu teor a protecção dispensada aos direitos dos trabalhadores no processo de reprivatização abrange, de facto, todos os direitos e obrigações de que estes forem titulares, não distinguindo a Lei Fundamental entre os que têm origem legal e os que têm origem contratual, não cabendo, por isso, invocar a incompletude do Decreto por este se limitar – neste ponto – a reproduzir o que a Constituição estipula e que, como já referimos, vigora plena e directamente no ordenamento jurídico.”

Contudo, o aresto continua no ponto 8, pag. 7, afirmando que:“Enquanto princípio ou regra que coenvolve uma obrigação que

impende sobre o Governo de não introduzir em qualquer processo de repri-vatização disposições cerceadoras dos direitos dos trabalhadores ou limita-doras das obrigações a que os mesmos estão vinculados perante a empresa a reprivatizar, esta obrigação de non facere legislativo, este comando de abstenção dirigido ao Governo, não carece também de qualquer densifi-cação legislativa específica no âmbito da lei-quadro para produzir os efeitos pretendidos pela Constituição.

Sublinhe-se ainda que, sobre esta matéria, o Decreto verdadeiramente não se limita a reproduzir a Constituição, uma vez que, para além do que é expressamente exigido pela Lei Fundamental, do n.º 3 do seu artigo 4.º resulta também concretizado o princípio constitucional em causa, ao dispor que «a sociedade anónima que vier a resultar da transformação continua a personalidade jurídica da empresa transformada, mantendo todos os direitos e obrigações legais ou contratuais desta». Ora, deste dispositivo, por si só, decorre já que os direitos e obrigações dos trabalhadores perante a empresa pública ou nacionalizada onde trabalham como que se transferem para a sociedade anónima criada no quadro do processo de reprivatização, resultando assim também deste princípio da continuidade da personalidade jurídica da empresa a reprivatizar a garantia da subsistência de todos os direitos e obrigações dos seus trabalhadores, como pretende o preceito da alínea c) do artigo 296.º da Constituição.

Face ao exposto, conclui-se que o princípio desta mesma alínea c) do artigo 296.º da Constituição não carece, nem quanto ao seu âmbito de apli-cação, nem quanto à sua concreta operatividade jurídica, de densificação legislativa específica no plano da lei-quadro, pelo que desta não decorre assim nenhum acréscimo de competência legislativa do Governo, nem qual-quer norma de reenvio legislativo em seu benefício com prejuízo da esfera

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de intervenção constitucionalmente reservada ao Parlamento. Pelo que em nada contende com o normativo constitucional em causa.”

Daqui pode retirar-se a ideia de que a garantia dos direitos dos traba-lhadores no quadro de uma reprivatização está cumprida com a mera não alteração legal ou contratual do direito dos trabalhadores, mas que even- tualmente isso não implica que os direitos dos empregadores não possam ser exercidos no quadro de um processo de reprizatização.

Questão diversa, que não parece respondida pelo referido acórdão 71/90, é a de saber se esses direitos podem ser exercidos apenas devido a esse processo e com fundamento em factos que decorram apenas desse processo.

A este respeito, é relevante e no que toca à proibição de cerceamento legislativo de direitos – o caso 867/96, proferido no processo n.º 303/91, Plenário.

Um dos casos em que se considerou que existia violação dos direitos dos trabalhadores para efeitos da al. c) do então artigo 296.º da Constituição foi a respeito das indemnizações compensatórias aos reformados do Jornal Diário Popular que, à data da extinção daquela empresa pública, estavam a receber complementos de reforma.

A fiscalização da constitucionalidade foi requerida pelo Provedor de Justiça relativamente ao artigo 6.º do decreto-lei de extinção da referida empresa.

O artigo em causa dispunha o seguinte: «Art. 6.º – 1 – Aos reformados da EPDP que à data da extinção desta empresa pública estejam a receber complementos de reforma serão atribuídas indemnizações compensatórias.

2 - O critério base para cálculo das indemnizações corresponderá a um mês de complemento de reforma por cada ano de antiguidade na empresa, num mínimo de três anos.»

Alegou o requerente que: “2 – (…) os «complementos de reforma, atribuídos em resultado de acordos individuais efectuados entre a empresa e os seus trabalhadores, com base nos quais estes se reformaram antecipa-damente, haviam revestido o carácter de prestação que se mantinham para sempre». Daí que a mera atribuição de indemnizações compensatórias, calculadas em função de um mês de complemento de reforma por cada ano de antiguidade, num mínimo de três anos, quando os trabalhadores «tinham aceitado passar antecipadamente à situação de reforma no pressuposto de que aqueles complementos lhes seriam concedidos vitaliciamente, seja patentemente injusta e inconstitucional».

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378 Lourenço Vilhena de Freitas

Depois de sublinhar que a solução legislativamente adoptada é injusta «porque o Estado, que decidiu privatizar» a empresa pública em causa, ao fazê-lo, «expropriou» um «direito que fora concedido a reformados da empresa e em atenção ao qual eles aceitaram a reforma antecipada», o Provedor de Justiça assinala:

«Por outro lado, e ainda que se reconheça que o encargo com obri-gações deste tipo não possa passar para as empresas privadas sucessoras das empresas públicas desnacionalizadas, não parece justo concluir pela mera impossibilidade absoluta de cumprimento daquelas.

Essa impossibilidade decorre de uma decisão estatal.Logo, é ao Estado que deve incumbir encontrar solução para garantir

a manutenção desses benefícios de segurança social.» O TC concluiu que no caso, ao se admitir por força do decreto-lei que

determinava a privatização uma indemnização menor para os pré-reformados do que aquele a que teriam direito, havia violação da obrigação constitu-cional ínsita na al. c) relativa à garantia dos direitos dos trabalhadores.

E, em consequência, afirmou: “Não restam, pois, dúvidas de que foi por decisão do Estado, como expressamente dá conta o já transcrito preâm-bulo do ora em apreço Decreto-Lei n.º 1/90, que determinou a extinção da EPDP, que foram alienados os bens de maior valor que constituíam o património activo da empresa («parque gráfico e edifícios», participações sociais noutras empresas, o título do jornal e os bens móveis que lhe estavam afectos). Ficaram, pois, por liquidar apenas «alguns bens residuais» desse património activo, bem como «os créditos e débitos resultantes da actividade que exercia e das próprias alienações», tornando-se inelutável a extinção da empresa, «no âmbito da política de privatização dos meios de comuni-cação social do Estado» (cf. o citado preâmbulo). (…)

“11 – Assim, suscita-se, desde logo, a questão de saber se, ao substi-tuir o crédito que resultava do negócio jurídico celebrado entre a empresa e os seus ex-trabalhadores – negócio jurídico que havia sido o próprio Governo a impulsionar – por uma indemnização compensatória, em regra sensivelmente inferior e muitas vezes irrisória, o Estado-legislador não está a frustrar a confiança que os cidadãos devem ter na tutela jurídica dos seus direitos, tendo em conta, desde logo, que, in casu, esses direitos decorrem de situações criadas também pelo Estado, na veste de Estado-Adminis- tração.

Com efeito, é evidente que a convicção de que viriam a beneficiar de um complemento vitalício à pensão de reforma da segurança social terá

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Direito Administrativo das Privatizações 379

sido determinante para que certos trabalhadores hajam optado pela reforma antecipada, em vez de manterem vigente o respectivo contrato de trabalho. E que, depois de captada a sua anuência a essa solução – como vimos, sugerida pelo Estado-Administração –, veio o Estado-legislador retirar--lhes o benefício concedido, sem compensação justa e adequada, porque a empresa - mais uma vez por incumbência do Estado-Administração – foi colocada em situação de não poder já solver o compromisso.

Não se pode, portanto, deixar de considerar que uma tal situação afronta, de forma intolerável e inadmissível, a segurança jurídica dos cida-dãos e a confiança que hão-de depositar no Estado. É que, como resulta do Acórdão n.º 93/84 (publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 266, de 16 de Novembro de 1984), a Administração «não pode furtar-se, num Estado de direito democrático, e salvo circunstâncias excepcionais, a honrar compromissos que expressa e livremente assumiu e cujo reconhe-cimento e respeito foi com certeza determinante» na formação da vontade do cidadão. Isto porque, na afirmação lapidar do Acórdão n.º 666/94, «num Estado de direito, nunca os cidadãos [...] podem ficar à mercê de puros actos de poder».

A norma do artigo 6.º, n.º 2, viola, pois, nesta perspectiva, os princípios da confiança e da segurança jurídica ínsitos na ideia de Estado de direito democrático consagrada no artigo 2.º da Constituição.

Nem se contradiga que os titulares do direito ao complemento de reforma não beneficiam da garantia concedida pelo artigo 296.º, alínea c), por já não serem trabalhadores da empresa, mas antes reformados. É que o objectivo da referida norma constitucional foi, seguramente, o de assegurar a protecção, face à empresa, dos direitos de todos aqueles que, em virtude de um contrato de trabalho, se acharam a ela vinculados – obviamente, desde que tais direitos radiquem nesse mesmo contrato de trabalho. Ora, encontrando-se o direito ao complemento de reforma indissoluvelmente ligado à extinção do contrato de trabalho, parece líquido que tal direito necessariamente nele radica, pelo que os reformados titulares desse mesmo direito sobre a empresa – e que, portanto, com ela continuam a manter um vínculo contratual – devem ser tidos como seus «trabalhadores», para efeitos do disposto no artigo 296.º, alínea c), da lei fundamental.”

Da jurisprudência resulta ainda a necessidade de salvaguarda legisla-tiva de todos os direitos dos trabalhadores ao longo do processo, mesmo que pudessem cessar nos termos gerais; o não congelamento dos mesmos após o processo.

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380 Lourenço Vilhena de Freitas

Por seu turno, no caso 639/2005, processo n.º 189/2005, 3.ª secção, em que foi Relator o Conselheiro Bravo Serra, foi confirmado o entendimento do STJ de aplicação aos antigos trabalhadores da QUIMIGAL, entretanto transferidos para outras empresas, um Acordo de Empresa, que não se trans-feriria nos termos da lei geral (LCT), mas que o diploma de reprivatização determinou que se transmitisse em homenagem à regra constitucional de manutenção da totalidade dos direitos dos trabalhadores.

Neste caso admitiu-se, portanto, a correcção de um decreto-lei de reprivatização que determinou uma protecção superior à que resultava do direito geral aplicável.

Vejamos a factualidade do referido aresto tal como explanada no Acórdão do TC:

“1. Pelo Tribunal do Trabalho do Barreiro intentaram A., B., C., D., E., F., G., H., I., J., K., L., M., N., O., P., Q., R., S., T., U., W., X., W. (posteriormente falecido, intervindo nos autos, como habilitados, Y. e Z.), AA., BA., CA., DA., EA., FA., GA., HA., IA., JA., KA., LA., MA., NA., AO., PA., QA., RA., SA., TA., UA. e WA., contra XA., S.A., acção, seguindo a forma de processo comum, solicitando a condenação da ré a pagar-lhes determinadas importâncias, que discriminaram, que lhes seriam devidas a título de diuturnidades de antiguidade e de diferença de subsídio de alimentação e, bem assim, de montantes, cujo quantitativo se apuraria em execução de sentença, que igualmente lhes seriam devidos a título de remu-neração de trabalho em dias de descanso semanal, obrigatório e comple-mentar, de trabalho suplementar, de descanso compensatório por trabalho suplementar efectuado em dias de descanso e de trabalho nocturno, de complemento de subsídio de doença profissional ou acidente de trabalho, de subsídio de antecipação e prolongamento, de subsídio de medica-mentos, de subsídio de livros escolares e de compensação por mudança de turno.

Invocaram, para tanto, em síntese, que, tendo a ré tido a sua génese na QUIMIGAL, E.P., que, por via do Decreto-Lei n.º 25/89, de 20 de Janeiro, foi transformada na QUIMIGAL, S.A., a qual, por sua vez, foi «desmem-brada», dando origem a várias empresas, entre as quais a aludida ré, aos trabalhadores desta eram de aplicar as regras do Acordo de Empresa QUIMIGAL, E.P., publicado no n.º 7 do Boletim do Trabalho e Emprego, de 22 de Fevereiro de 1986, Acordo esse que, por via de certas cláusulas, lhes conferiria o direito às importâncias reclamadas e que a ré se recusava a pagar, pretextando que tal Acordo não era aplicável.

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Direito Administrativo das Privatizações 381

Tendo, por sentença proferida em 23 de Agosto de 2002, sido entendido ser aplicável à relação laboral entre as partes o Acordo de Empresa QUIMIGAL, E.P., e, em consequência, julgada procedente a acção e o pedido reconvencional nela formulado pela ré, sendo rele-gado para execução de sentença o apuramento dos quantitativos devidos aos autores, apelaram autores e a ré para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 15 de Outubro de 2003, negou ambos os recursos.

De novo inconformada pediu a ré revista para o Supremo Tribunal de Justiça.

O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 15 de Fevereiro de 2005, negou a revista.

Nesse aresto, e quanto à questão de saber se à relação entre as «partes» era aplicável o Acordo de Empresa da Quimigal, foi retomado o entendimento perfilhado pelo acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 1/2000, de 16 de Dezembro de 1999, publicado na I Série-A do Diário da República de 2 de Fevereiro de 2000, entendimento esse segundo o qual o art. 6.º do Decreto-Lei n.º 25/89 veio estabelecer um regime espe-cial para salvaguarda de todos os trabalhadores envolvidos no processo de privatização da QUIMIGAL, E.P., que se sobrepõe ao regime geral constante do art. 9.º da LRCT aprovada pelo Decreto-Lei n.º 519-C-1/79, de 29 de Dezembro, regime esse que não era aplicável aos casos de reprivatização de empresas públicas e por via do qual se visou assegurar aos trabalhadores transferidos para as empresas a criar pela cisão da QUIMIGAL, S.A., a manutenção de todos os direitos e regalias de que eram titulares na QUIMIGAL, E.P., independentemente de terem como fonte a lei, o contrato individual de trabalho ou a convenção colectiva, sendo que a introdução da alínea c) do n.º 1 do artigo 296.º da Constituição, ao prescrever que os trabalhadores das empresas objecto de reprivatização manterão no processo de reprivatização da respectiva empresa todos os direitos e obrigações de que forem titulares, visou afirmar a peculiaridade do processo de reprivatização, com o fim de impedir o retrocesso social desses trabalhadores, resultado que só seria conseguido se se entendesse que no bloco de direitos e obrigações da titularidade dos trabalhadores transferidos para as empresas criadas a partir da QUIMIGAL, S.A., estava integrado o acordo de empresa que vinculava a QUIMIGAL, E.P., sob pena de ficar defraudado o objectivo daqueles art. 6.º e alínea b) do n.º 1 do artigo 289.º.”

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Questionado que foi a violação do princípio da igualdade entre os trabalhadores da empresa nova que não transitaram das empresas repriva-tizadas e os trabalhadores da empresa que transitaram de empresas repriva-tizadas, e à luz da ideia de que os trabalhadores oriundos das reprivatizadas merecem protecção adicional, a resposta foi no sentido negativo com os seguintes argumentos:

“No contexto da postura que se colhe do que se veio de extractar, porque se não postam – do modo que, aliás, já acima se deixou focado – como situações exactamente iguais as dos trabalhadores de uma empresa pública «criada» a partir de outras empresas privadas que, por intermédio de um condicionalismo económico, financeiro, político e social muito pecu-liar, foram objecto de uma nacionalização – nacionalização essa que, clara-mente, se foi projectar no modo de actividade, gestão, administração e, até no domínio de relações entre os trabalhadores dessas empresas e quem então figurava como entidade patronal –, e aqueloutra de trabalhadores das empresas cujas entidades empregadoras não sofreram tais vicissitudes, não pode deixar de considerar-se que existe uma razão suficientemente idónea (o que o mesmo é dizer, com fundamento atendível) ou racional para, rela-tivamente aos primeiros, se salvaguardar a corte de direitos e obrigações que, por instrumento de regulação colectiva de trabalho, lhes vieram a ser conferidos já no domínio da nacionalização, mesmo que uma tal salva-guarda se possa visualizar globalmente como conferente de uma posição jurídica mais favorável relativamente aos segundos, caracterizando-se, assim, essa salvaguarda como algo representativo de uma «discriminação positiva».

Poder-se-ia, inclusivamente, sustentar que foi o reconhecimento da própria não identidade de situações entre os trabalhadores das empresas resultantes da nacionalização e dos das demais que levou o legislador constituinte a gizar norma tal como a que se surpreende na alínea c) do artigo 296.º da versão da Lei Fundamental advinda da Lei Constitucional n.º 1/89 e que ainda hoje se mantém [cfr. alínea c) do n.º 1 do artigo 293.º].

4. Pelo que se deixa dito, nega-se provimento ao recurso, condenando--se a impugnante nas custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em vinte unidades de conta.”

Aspecto que fica claro é que a garantia dos direitos dos trabalhadores não é para o futuro, não existindo uma cristalização de direitos, o que ficou fixado nesse acórdão 639/2005, do TC, quando se afirma: “[n]ão se

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vislumbra, assim, que o intuito daqueles normativos fosse o de impor, nas empresas a “criar” ou a “constituir” nas áreas de actividade económica da QUIMIGAL-Química de Portugal, S.A., a manutenção imutável do ou dos instrumentos de regulação colectiva que regiam as relações laborais entre essa ou essas empresas e os seus trabalhadores que “transitaram” para os estabelecimentos dessa ou dessas empresas.”

No caso de privatização de empresa pública pode ser aplicável o regime comunitário da transferência de estabelecimento, que salvaguarda a transição de todo o pessoal. Com efeito, a Directiva 2001/23/CE do Conselho, de 12 de Março de 2001, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes à manutenção dos direitos dos traba-lhadores em caso de transferência de empresas ou de estabelecimentos ou de partes de empresas ou de estabelecimentos é, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 1.º, aplicável a todas as empresas públicas e privadas que exercem uma actividade económica com ou sem fins lucrativos157, estando apenas excluída “a reorganização administrativa de instituições oficiais ou a transferência de funções administrativas entre instituições oficiais não constituem uma transferência na acepção da presente directiva.” Ou seja, em caso de privatização a directiva é aplicável, embora já não o seja em caso de privatização imperfeita ou mera circulação de participações no seio do sector público, sendo nesse caso a posição dos trabalhadores salvaguardada apenas pelas regras gerais do direito laboral.

Questão que se pode colocar é a de, no cenário pós-reprivatização, se proceder a uma racionalização à luz da legislação laboral. Como referem Mário Esteves de Oliveira (e outros)158: “a cessão ope legis da posição contratual dos trabalhadores da empresa a reprivatizar para a sociedade reprivatizada não preclude a possibilidade de, após a reprivatização, a nova administração desta encetar um processo de despedimento colectivo – salvo no caso de isso ir contra as disposições legais ou regulamentares da operação ou os compromissos nela assumidos pelos adquirentes.”

A nosso ver é vedada constitucional e legalmente a redução de direitos dos trabalhadores desde que iniciado o procedimento de reprivatização até ao termo do mesmo e ainda a redução anterior ao processo formal de

157 A directiva tutela a posição dos trabalhadores em caso de transferência de estabe-lecimento, definida, na alínea b) do artigo 1.º, como “transferência de uma entidade econó-mica que mantém a sua identidade, entendida como um conjunto de meios organizados, com o objectivo de prosseguir uma actividade económica, seja ela essencial ou acessória.”

158 Privatizações…, .cit., p. 116.

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reprivatização tendo em vista a reprivatização, ou posterior a este desde que determinada ou como consequência directa do processo de repriva- tização.

Tal não obsta, contudo, à separação de activos em veiculos e à possi-bilidade de os trabalhadores seguirem as unidades de negócio destacadas.

7. POSSIBILIDADE DE REACÇÃO JURISDICIONAL AOS PROCES-SOS DE PRIVATIZAÇÃO E DE REPRIVATIZAÇÃO

A(s) resolução(ões) que aprova(em) as condições finais e concretas da reprivatização pode(m) ser judicialmente impugnada por eventual violação do decreto-lei que aprova a operação de reprivatização ou de privatização, de princípios gerais de Direito Administrativo ou de Direito da Contratação Pública, da Lei-Quadro das Privatizações, da Lei de Alienação de Participa-ções do Sector Público (no caso de privatização), da Lei de Delimitação de Sectores, de leis especiais ou mesmo da Constituição. O mesmo acontece com as deliberações da privatização ao abrigo da Lei n.º 71/88 ou as deli-berações do Banco de Portugal relativas a um processo da venda de activos que deva respeitar o RGICSF e princípios gerais do Direito Público e do Direito da Contratação Pública.

Pode discutir-se se a Resolução deve ser qualificada como regulamento ou como acto administrativo, o que releva para efeitos do pedido a formular e dos pressupostos processuais aplicáveis ao mesmo.

Em princípio o Supremo Tribunal Administrativo já qualificou uma resolução similar no quadro de um processo de privatização como acto. Assim foi decidido no processo n.º 042306, de 10.10.2002, relativamente à 1.ª e 2.ª fase de reprivatização da Quimigal, quando decidiu que “tem a natureza de acto administrativo contenciosamente recorrível (…) a reso-lução do Conselho de Ministros que, no final do concurso, eventualmente determine a alienação correspondente à 1.ª fase da reprivatização bem como a resolução que defina as condições de realização da indicada oferta pública de venda.”

Se tal resolução for qualificada como acto, aplica-se o artigo 55.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) e só tem legiti-midade para a impugnar: i) quem alegue ser titular de um interesse directo e pessoal, designadamente por ter sido lesado pelo acto nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos; ii) o Ministério Público; iii) prevendo-se

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ainda outras situações que nesta sede não relevam (salvo eventualmente o caso da acção popular para defesa de bens do Estado prevista no artigo 9, n.º 2, do CPTA).

Já quanto ao decreto-lei que aprova a operação de reprivatização ou de privatização, se este for considerado acto administrativo sob a forma de lei pode ser apreciado ex professo nos Tribunais Administrativos e, em qualquer caso, junto do Tribunal Constitucional, independentemente dessa qualificação, mas sempre e apenas com base em vícios relativos à violação da Constituição ou de leis de valor reforçado, como seja a Lei Quadro das Privatizações, a Lei de Delimitação de Sectores ou a Lei de Alienação das Participações do Estado.

A proceder o argumento de violação do quadro constitucional e legal, o acto será em princípio nulo por violação do conteúdo essencial de direito fundamental, nos termos do artigo 161.º, al. d), n.º 2, do Código do Proce-dimento Administrativo e, por isso, não se aplicarão os prazos de 3 meses ou 1 ano previstos para a sua impugnação, respectivamente aplicáveis aos particulares e ao Ministério Público.

Relembre-se que o Ministério Público pode sempre impugnar qualquer acto administrativo com fundamento na sua ilegalidade, pelo que teorica-mente pode impugnar qualquer processo de reprivatização.

Note-se que já diversamente a impugnação pelos particulares, traba-lhadores ou outros concorrentes depende da demonstração de interesse directo e pessoal.

É directo o interesse quando vem a traduzir-se na utilidade, benefício ou vantagem de natureza patrimonial ou meramente moral, que poderá não corresponder à titularidade de um direito subjectivo, mas à simples detenção de um interesse meramente formal159.

Como se viu no Reino Unido tem-se negado aos contribuintes legiti-midade para impugnar processos de reprivatização, e em Portugal parece também a essa luz difícil de demonstrar essa legitimidade.

No caso de eventuais impugnações por parte de outros concorrentes ou interessados no concurso, é manifesto que têm esse interesse160.

159 Cf. Mário Aroso de Almeida e Carlos Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Coimbra, 2005, p. 280.

160 Pode haver contudo dificuldade de acesso à informação administrativa no que toca ao processo legislativo. No acórdão do TCA Sul relativo ao processo 10919/14, do Conten-cioso Administrativo, 2.º juízo, de 20.03.2014 foi rejeitado esse acesso.

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Relativamente aos trabalhadores da empresa, e salvo no que toca à violação da reserva de acções que lhes está destinada, o que se pode colocar é o facto de o referido interesse não ser directo, uma vez que se poderá argu-mentar que o meio próprio para obstar a eventual despedimento ou perda de direitos em caso de reprivatização será efectivável no quadro do conten-cioso laboral e que poderá alegar-se que, se reintegrados os trabalhadores ou repostos os seus direitos, aqueles não retiram qualquer benefício da não transmissão dos seus contratos de trabalho para o novo adquirente. Contudo, poderão os referidos trabalhadores sempre alegar que tal raciocínio só vale para os casos em que fundamento é juslaboral ou relacionado com garantia dos direitos laborais, e que, mesmo no caso de a impugnação improceder por faltar fundamento juslaboral, devem ter legitimidade para impugnar a (re)privatização com esses e outros fundamentos, tendo legitimidade se lograrem demonstrar que a redução lícita ou ilítica dos seus direitos laborais se fará em função do plano de negócios do adquirente (já se tal resultar da proposta e do acordo/contrato de venda será tal redução em princípio ilícita, como se adiantou), sendo que o plano de negócio de outras entidades concor-rentes à mesma operação poderia ter contemplado a manutenção do seu posto de trabalho, caso não tivesse sido aceite esta proposta. Nesse caso devem ter legitimidade para impugnar a totalidade da operação de (re)privatização.

A ilegalidade de Decreto-Lei ou de Resolução do Conselho de Minis-tros relativa a (re)privatização, se declarada, põe em causa (em regra) todos os actos consequentes da reprivatização que serão nulos ex vi do artigo 172.º, n.º 2 do Código do Procedimento Administrativo e o contrato será nulo por invalidade derivada por identidade de razão com o regime previsto no CPA e no Código dos Contratos Públicos. Poderão certos actos consequentes ser respeitado nos termos do artigo 172.º, n.º 3, do CPA.

Podem ainda os interessados requerer, como elemento acessório ao processo principal, uma providência cautelar de suspensão da eficácia.

No que toca a eventual impugnação de acordo-quadro ou do contrato de compra e venda das acções ou do bem a reprivatizar, esta pode ocorrer autonomamente, no seio dos meios administrativos ou cíveis (consoante se qualifique o contrato como administrativo ou não) ou no seio da acção de impugnação anteriormente referida.

No caso de se considerar o contrato como administrativo existe legiti-midade para quer os outros concorrentes, quer os trabalhadores, impugnarem os acordos em causa; no caso dos trabalhadores nos termos da al. d) do n. 1 do artigo 40.º do CPTA (caso tenha ocorrido impugnação de Decreto-Lei

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ou de Resolução relativa à privatização e que seja antecedente do contrato) e nos termos da al. g), no caso de não ter havido impugnação desses actos (por parte das pessoas singulares ou colectivas titulares ou defensores de direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos aos quais a execução do contrato cause ou possa previsivelmente causar prejuízos). Ainda poderá ter aplicação o n.º 2, al. b), do mesmo artigo 40.º para justificar a legitimi-dade dos trabalhadores, uma vez que se prevê que, relativamente aos pedidos sobre execução de contratos, estes podem ser deduzidos pelas pessoas singu-lares e colectivas portadoras ou defensoras de direitos subjectivos ou inte-resses legalmente protegidos em função dos quais as cláusulas contratuais tenham sido estabelecidas.

A ilegalidade relativa a aspectos relacionados com o conteúdo dos contratos em causa será apenas das cláusulas dos contratos em causa, por exemplo no caso de cláusulas relativas a trabalhadores, relativamente a esses cláusulas que versem os trabalhadores, mas pode não ser admissível a redução do contrato, caso as cláusulas em causa (vg. as relativas a traba-lhadores) se revelem condição do negócio, situação esse em que toda a reprivatização fica comprometida.

Pode, em caso de impugnação de um procedimento de reprivatização requerer-se, antes do Contrato de Compra e Venda, uma providência cautelar de suspensão da eficácia, ou noutros casos, uma providência inominada conservatória para Suspensão do Procedimento de Contratação.

No caso de o contrato de compra e venda ser qualificável como cível, serão então os meios contenciosos cíveis os meios aplicáveis, colocando-se a questão do interesse em agir, em similares aos expostos supra.

Pode por último ocorrer, no quadro do processo de apreciação da vali-dade da lei de privatização ou da resolução, um julgamento de inconstitu-cionalidade, e que, caso tenha lugar em três casos, pode desencadear um processo de fiscalização sucessiva abstracta (281.º, n.º 3 da Constituição), no seio do qual a ser declarada a inconstitucionalidade parcial vertical de qualquer um dos diplomas, o que terá como efeito a invalidade automática da reprivatização, sem prejuízo da possibilidade de o Tribunal Constitu-cional vir a restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade para o futuro, por razões de equidade, segurança jurídica e interesse público (282.º, n.º 4 da Constituição), o que também pode ocorrer em sede de invalidade de regulamentos no seio dos Tribunais Administrativos (está-se a pensar no caso de invalidade do Programa do Procedimento, caso seja qualificável como regulamento).

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Mesmo os processos de reprivatização que determinam a sua sujeição no direito privado (como ocorreu nos casos da TAP161 e da ANA162) não podem prescindir de qualificação como acto administrativo dos actos de lançamento do procedimento e da aprovação do Caderno de Encargos, “process letter”, ou dos “termos de referência”, que estão sujeitos à juris-dição administrativa.

8. RESPONSABILIDADE DO ESTADO E DOS ADMINISTRADORES DA EMPRESA A (RE)PRIVATIZAR

8.1. resPonsabilidade do estado

A concretização de uma operação de reprivatização pode gerar respon-sabilidade civil por factos ilícitos e, excepcionalmente por factos líticos/a título de indemnização pelo sacrifício.

A responsabilidade civil por actos ilícitos pode resultar do Decreto--Lei que aprove a operação de reprivatização, casos em que se trata de responsabilidade por actos legislativos (artigo 15.º) ou da Administração por força da invalidade da(s) resolução(ões) que aprova(m) as condições finais e concretas da operação de reprivatização.

O artigo 15.º, n.º 1, da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro, dispõe que o Estado e as regiões autónomas são civilmente responsáveis pelos danos anormais causados aos direitos ou interesses legalmente protegidos dos cida-dãos por actos que, no exercício da função político-legislativa, pratiquem em desconformidade com a Constituição, o direito internacional, o direito comunitário ou acto legislativo de valor reforçado.

Existem situações em que, efectivamente, pode a própria operação de reprivatização consubstanciar de per si violação da Constituição, de norma de valor reforçado ou de Direito da União Europeia ou de Direito Interna-cional. Um dos casos em que tal foi invocado, recentemente, foi, aquando da

161 O artigo 2.º, n.º 3, do Caderno de Encargos aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 4-A/2015, de 20 de Janeiro, que aprovou o Caderno de Encargos, determinou que o processo de venda directa de relevância bem como os instrumentos jurídicos para a concretização da mesma, regem-se pelo Direito Privado.

162 O artigo 2.º, n.º 4, do Caderno de Encargos aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 94-A/2012, de 14 de Novembro de 2012, determinou que “o processo de alienação a que se fere o presente caderno de encargos bem como os instrumentos jurídicos para a concretização da venda por negociação particular regem-se pelo Direito Privado”.

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privatização da EGF, em que diversos municípios questionaram a violação das obrigação do Estado de não alienar acções de classe A que detinham nas concessões detidas pela EGF, por tal pressupor uma alteração estatutária efectuada por Decreto-Lei em eventual violação da regra ínsita no artigo 36.ºdo Decreto-Lei n.º 133/2013, de 3 de Outubro, quando dispõe: “a alte-ração dos estatutos das empresas públicas é realizada através de decreto-lei ou nos termos do Código das Sociedades Comerciais, consoante se trate de entidades públicas empresariais ou de sociedades comerciais, devendo os projectos de alteração ser devidamente fundamentados e aprovados pela tutela”.

Existem outras situações em que pode existir violação do Direito da União Europeia. Tal foi igualmente questionado no caso da privatização da EGF em que a prorrogação das concessões, que foi prévia à operação de reprivatização poderia ser considerada violadora das exigências decorrentes do Direito da União Europeia, que limita certas prorrogações, considerando--as novas adjudicações.

Nesse caso concreto, a prorrogação das concessões opera numa primeira fase no quadro do sector público, dado que as concessões eram detidas pelo Estado e pelo Municípios, o que seria eventualmente admitido pelo Direito da União Europeia, por se tratar de uma situação próxima do “in house”, mas, numa segunda fase, surge a privatização, o que permite considerar, embora a posteriori, que tais prorrogações já tendiam a permitir o acesso de entes privados e seriam assim violadoras do Direito da União. Entende-se, contudo, que o carácter público do processo salvaguardaria a sua conformidade com o Direito da União Europeia, ao que se pode eventual- mente contrapor que o processo adjudicatório público se dirige à totalidade das concessões quando deveria dirigir-se individualmente a cada uma delas.

Uma eventual ilegalidade por violação de lei de valor reforçado ou de Direito da União Europeia pode ser geradora de responsabilidade, sendo que no caso de violação do Direito da União Europeia existe a necessidade de respeito pelas exigências do Direito da União em sede de responsa- bilidade.

Não sendo ilegal uma operação de reprivatização, não é, contudo, de excluir que a operação possa causar um prejuízo especial e anormal, gerador de responsabilidade por factos lícitos ou de indemnização pelo sacrifício. Retomando o caso da EGF, seria configurável que os Municípios, não logrando demonstrar a ilegalidade do procedimento do Estado, pudessem demonstrar que a entrada do sector privado na gestão das concessões e mais

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ainda a sua prorrogação unilateral, na medida em que reduz receitas poten-ciais dos Municípios, lhes gerou um prejuízo especial e anormal.

São ainda configuráveis outras situações em que o acto legislativo não viola a Constituição, o Direito Internacional Público ou o Direito da União Europeia, ou lei de valor reforçado, mas ainda assim possa, poten-cialmente, gerar responsabilidade, por violação do princípio da confiança e da boa-fé. O caso foi equacionado no caso Grupo Português163, embora in casu tenha sido rejeitada a existência de responsabilidade por se consi-derar que não poderia existir investimento razoável da confiança, dado que o acto de promessa de privatização tinha sido praticado por um Secretário de Estado, logo sem a forma necessária e organicamente incompetente, e que, por outro lado, este não estaria na posse dos elementos de facto e de direito necessários para se poder comprometer com a realização naqueles termos da operação de reprivatização.

Pode ainda surgir responsabilidade civil da administração por factos ilícitos no caso de violação do Decreto-Lei que aprova a (re)privati-zação ou de princípios gerais de Direito Administrativo, por parte da(s) Resolução(ões) que aprovam as condições finais e concretas da operação de reprivatização ou dos actos nos quais aquelas se concretizam, por exemplo, no caso de previsão de tramitações concursais desconformes com o princípio da estabilidade das propostas (como se analisou em capítulo próprio supra) ou regulando aspectos que deveriam estar sujeitos à reserva de lei, como seja a percentagem relativa aos trabalhadores ou a modalidade de repriva- tização.

8.2. resPonsabilidade dos administradores

A actuação dos administradores das sociedades a reprivatizar rege-se por um conjunto de normas de direito público (e.g. regime do sector empre-sarial do Estado e estatuto do gestor público) e de direito privado (e.g. Código das Sociedades Comerciais (“CSC”) e, potencialmente, dependendo da natureza da sociedade a (re)privatizar, do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (“RGICSF”)).

Com efeito, as sociedades a (re)privatizar são, em regra, no início do processo de (re)privatização, sociedades anónima de capitais exclusiva ou

163 Proc. 01188/02, de 18.06.2003, da 1.ª subsecção do CA do STA.

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maoritariamente públicos, e como tal, sujeitas ao regime do sector empre-sarial do Estado. Os membros dos órgãos de administração das empresas públicas, independentemente da respectiva forma jurídica, estão, por sua vez, sujeitos ao estatuto do gestor público actualmente vertido no Decreto--Lei n.º 71/2007, de 27 de Março, alterado pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro e pelo Decreto-Lei n.º 8/2012, 18 de Janeiro.

No caso de o ente a reprivatizar ser uma instituição de crédito, estando a sua actividade e, em particular, a actuação dos seus administradores sujeita ao RGICSF.

Finalmente, tratando-se em regra a empresa a reprivatizar de uma socie-dade anónima, são lhe igualmente aplicáveis as normas do CSC, inclusive em relação à actuação dos seus administradores (artigo 40.º do EGP; artigo 7.º, n.º 1 do RSEE), ainda que estas devam ser interpretadas em conformi-dade com as normas especiais previstas no RSEE, EGP e RGICSF.

Nos termos do artigo 24.º, n.ºs 1 do RSEE, o Governo pode emitir orientações estratégicas para as empresas públicas e que correspondem ao exercício da função política para o Governo que, por resolução do Conselho de Ministros, define a aprova o conjunto de medidas e directrizes rele-vantes para o equilíbrio económico-financeiro do sector empresarial do Estado.

Certa doutrina (Eduardo Paz Ferreira) tem entendido que “estando em causa sociedades anónimas em que o Estado ab initio ou supervenientemente venha a ser o único detentor do capital social, a função accionista assemelha--se à tutela” prevista para as entidades públicas empresariais, pelo que “as decisões tomadas em assembleia geral correspondem, apenas, às orientações dadas pelos Ministros responsáveis aos representantes do Estado e não já o resultado de uma vontade formada internamente”. Este poder de controlo do Estado é reforçado, conforme se constatará infra, pelas normas do EGP, que acabam por limitar a autonomia de gestão ao modo de execução das orientações estratégicas previstas no artigo 24.º do RSEE e no contrato de gestão, quando exista.

Como sintetiza Paz Ferreira: as orientações estratégicas, sem corres-ponder à tutela das entidades públicas empresariais, são as “bases do controlo sólido do Estado sobre o sector público empresarial”164. Este

164 Neste sentido, Eduardo Paz Ferreira, Aspectos gerais do novo regime do sector empresarial do Estado, in Eduardo Paz Ferreira (org.), Estudos sobre o novo regime do sector empresarial do Estado, Almedina, 2000, p. 22.

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controlo reflecte-se, aliás, na forma de acompanhamento da gestão, em que o RSEE, por um lado, sujeita as empresas públicas, para além do controlo interno do seu órgão de fiscalização, a um controlo financeiro externo da Inspecção Geral de Finanças e do Tribunal de Contas, com vista a analisar a sustentabilidade e aferir da legalidade, economia, eficiência e eficácia da sua gestão (artigo 12.º do RSEE), e, por outro lado, estabelece, no seu artigo 13.º, sob a epígrafe “deveres especiais de informação”, um conjunto de deveres e obrigações que ultrapassa o quadro normal de deveres e obrigações do CSC.

Em linha com este poder de emitir orientações estratégicas e controlar a respectiva execução, o EGP, ao qual estão sujeitos os membros dos órgãos de administração das empresas públicas, independentemente da respectiva forma jurídica, determina que, na gestão das empresas públicas, são obser-vadas as orientações fixadas nos termos do RSEE.

A liberdade de actuação dos gestores públicos está, portanto, limitada pelas orientações fixadas pelo Governo, que se impõem a qualquer conside-ração dos gestores sobre o que seja o melhor rumo de gestão para a empresa pública que administram. Estas orientações permitem ao Estado, enquanto sócio principal ou único, prosseguir o interesse público, sobrepondo-o ao interesse privado quando este seja conflituante165.

Esta limitação apenas tem um paralelo, ainda que com um grau de controlo não tão intenso, nas situações de domínio total previstas no CSC, em que a sociedade dominante tem o direito de dar instruções à sociedade dominada, mesmo que desvantajosas para esta (artigo 503.º do CSC ex vi artigo 491.º do CSC), o que se reflecte na responsabilidade da sociedade dominante pelas obrigações da sociedade dominada (artigo 501.º do CSC ex vi artigo 491.º do CSC). Segundo alguns autores, no caso dos gestores públicos, existiria também uma responsabilidade similar como contrapólo daquele poder de dar instruções. Assim, defende alguma doutrina que sempre que o gestor público pratique um acto de gestão público, entendido como o “acto em que o interesse público se sobrepõe ao interesse da socie-dade” (estribando-se o gestor no privilégio de defender o interesse público), fica “prejudicada a aplicação do CSC, abrindo-se assim a possibilidade de

165 Neste sentido, Sofia Tomé D’Alte, A nova configuração do sector empresarial do Estado e a empresarialização dos serviços públicos, Almedina, 2007, pp. 318 e ss.; nuno cunha rodrigues, “Golden-shares” – As empresas participadas e os privilégios do Estado enquanto accionista minoritário, Coimbra Editora, 2004, p. 75.

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responsabilizar o Estado ex vi o regime da responsabilidade civil extracon-tratual do Estado aplicável aos actos de gestão pública”166.

O EGP consagrou um conjunto de deveres específicos dos gestores públicos que, apesar de não excluírem absolutamente os deveres funda-mentais dos administradores previstos noutra legislação geral (e.g. CSC) ou sectorial (e.g. RGICSF), estabelecem um quadro de actuação diferente. Assim, o EGP, tendo como pano de fundo o poder do Governo emitir orien-tações estratégias, teve de incluir, entre os deveres dos gestores públicos, (i) o de “cumprir os objectivos da empresa definidos em assembleia geral ou, quando existam, em contratos de gestão” e (ii) o de “assegurar as orienta-ções definidas nos termos da lei, designadamente as previstas no (…) RSEE e no contrato de gestão, e a realização da estratégia da empresa” (artigo 5.º alíneas a) e b) do EGP). Os gestores públicos estão, portanto, sujeitos, na sua actuação concreta, ao dever de obediência e de prossecução das orien-tações definidas pelo Governo para a empresa pública que administram ou para o sector ou conjunto de empresas em que a mesma se insere.

Para encerrar o círculo de vinculação da gestão, o EGP exige que a avaliação do desempenho das funções de gestão atenda ao cumprimento daqueles deveres, sendo os parâmetros dessa avaliação os objectivos fixados nas orientações estratégicas previstas no artigo RSEE ou os decorrentes do contrato de gestão, bem como outros critérios definidos em assembleia geral (artigo 6.º do EGP).

A não prossecução das orientações estratégicas estabelecidas para a empresa pública que administram tem consequências ao nível da responsa-bilidade dos gestores públicos. Com efeito, o artigo 23.º do EGP estabelece, expressamente, que os mesmos são penal, civil e financeiramente responsá-veis pelos actos e omissões praticados durante a sua gestão.

Em conclusão, a autonomia dos gestores públicos está limitada pela execução das orientações estratégicas previstas no RSEE e pelo contrato de gestão.

No caso de a empresa a reprivatizar constituir uma instituição de crédito ou sociedade financeira, o RGICSF estabelece regras específicas de conduta para os administradores de instituições de crédito, bem como critérios de aferição da diligência empregue nessa conduta.

166 Neste sentido, Nuno Cunha Rodrigues, Breves notas em torno do estatuto do gestor público: a caminho do new public management, in AAVV, Estudos jurídicos e económicos em homenagem ao Professor Doutor Sousa Franco, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2006, p. 410.

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Assim, o artigo 74.º do RGICSF estabelece que “os administradores e os empregados das instituições de crédito devem proceder, tanto nas relações com os clientes como nas relações com outras instituições, com diligência, neutralidade, lealdade e discrição e respeito consciencioso dos interesses que lhe estão confiados”. Acresce que, na sua conduta, os membros dos órgãos de administração das instituições de crédito, bem como as pessoas que nelas exerçam cargos de direcção, gerência, chefia ou similares, devem proceder “com a diligência de um gestor criterioso e ordenado, de acordo com o princípio da repartição de risco e da segurança das aplicações e ter em conta o interesse dos depositantes, dos investidores, dos demais credores e de todos os clientes em geral” (artigo 75.º do RGICSF).

Nos termos do artigo 78.º do RGICSF, os administradores estão também sujeitos ao dever de segredo bancário, não podendo revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da insti-tuição ou às relações desta com os seus clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos ou outras operações bancárias. Os factos ou elementos das relações do cliente com a instituição podem ser revelados mediante autorização do cliente, transmitida à instituição de crédito, ou nos casos expressamente previstos na lei (e.g. comunicações ao Banco de Portugal, Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, Fundo de Garantia de Depó-sitos e Sistema de Indemnização aos Investidores, disposições da lei penal e da lei processual penal) (artigo 79.º do RGICSF). A violação do dever de segredo é punível, sem prejuízo de outras sanções aplicáveis, nos termos do Código Penal (artigo 84.º do RGICSF).

Para além das disposições específicas do RGICSF, no âmbito do direito privado, a actuação dos administradores das sociedades a reprivatizar está ainda sujeita aos deveres gerais dos administradores das sociedades consa-grados no artigo 64.º, n.º 1 do CSC e que se reconduzem, fundamental-mente, aos deveres de cuidado e de lealdade. Com efeito, os administradores devem observar, por um lado, “deveres de cuidado, revelando a disponi-bilidade, a competência técnica e o conhecimento da actividade da socie-dade adequados às suas funções e empregando nesse âmbito a diligência de um gestor criterioso e ordenado” (artigo 64.º, n.º 1 alínea a) do CSC), e, por outro lado, “deveres de lealdade, no interesse da sociedade, aten-dendo aos interesses de longo prazo dos sócios e ponderando os interesses dos outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade, tais

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Direito Administrativo das Privatizações 395

como os seus trabalhadores, clientes e credores” (artigo 64.º, n.º 1 alínea b) do CSC).

Os primeiros deveres de cuidado exigem, por norma, uma actuação do administrador e concretizam-se na demonstração de disponibilidade, de competência, de conhecimento da actividade da sociedade (elencados pelo próprio preceito) e noutros não referidos expressamente na norma167. No caso dos administradores de instituições de crédito os deveres de cuidado têm subjacente critério de diligência mais exigente, atento o disposto no já referido artigo 75.º do RGICSF.

Os segundos deveres de lealdade concretizam-se, essencialmente, em deveres de non facere, nomeadamente deveres de abstenção de condutas que prossigam interesses pessoais ou de terceiros em detrimento do inte-resse social, mas também nalguns deveres positivos. Em termos gerais, os deveres de lealdade exigem, em primeira linha, que o administrador se abstenha de condutas que procurem satisfazer interesses próprios ou de terceiro (isto é, alheios ao interesse da sociedade) e, em segunda linha (e de forma menos intensa), que o administrador adopte as condutas necessárias à prossecução desse interesse social. O legislador densificou o conceito de interesse social, identificando-o, primariamente, com o interesse, de longo prazo, dos accionistas e, secundariamente, com o dos demais stakeholders (e.g. trabalhadores, clientes e credores), devendo, portanto, o interesse dos sócios ter primazia se for inconciliável com o dos demais stakeholders.

No caso das empresas públicas, há porém que atender igualmente ao interesse público que, aliás, prevalece sobre o interesse social. O interesse público expressa-se através das orientações estratégicas emitidas pelo Governo para a empresa pública e às quais os gestores públicos devem obediência, não se podendo escudar no interesse social para justificar uma conduta desconforme com as orientações emitidas.

No caso de criação de sociedade veículo, como aconteceu no caso do BPN, e no caso de estes praticarem actos relativos à reprivatização também podem ser objecto de responsabilidade, salvo, mais uma vez, e na medida em que tais actos estejam totalmente pré-determinados pelo ente público ao abrigo dos poderes decorrentes do EGP e do RSEE.

167 A concretização do âmbito do dever de cuidado na alínea a) do n.º 1 do artigo 64.º do CSC não constitui uma enumeração taxativa dos deveres de cuidado dos administradores, que poderão abranger outros deveres como o dever de controlo, de investigação, de adoptar um processo de decisão razoável.

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ÍNDICE GERAL

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DIREITO DE ASILOA. SofiA Pinto oliveirA

1. Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5 1.1. As principais fontes do direito de asilo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7 1.2. Os desenvolvimentos europeus em matéria de asilo . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 1.1.1. O papel do Conselho da Europa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12 1.1.2. O papel da União Europeia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13 1.3. Figuras afins . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20 1.3.1. A proteção temporária . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22 1.3.2. A proteção face à expulsão e à extradição. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25 1.3.2.1. Asilo e expulsão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26 1.3.2.2. Asilo e devolução para o país de origem (refoulement) . . 29 1.3.2.3. Asilo e extradição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 342. Condições para o reconhecimento de proteção . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 36 2.1. Condições para o reconhecimento do direito de asilo stricto sensu. . . . . . . 38 2.1.1. Perseguição. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41 2.1.2. Motivos de perseguição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49 2.1.2.1. Opiniões políticas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 52 2.1.2.2. Raça e nacionalidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 54 2.1.2.3. Religião . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 56 2.1.2.4. Filiação em certo grupo social. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 58 2.1.3. Atualidade da perseguição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61 2.1.4. Receio de perseguição superveniente à saída do país de origem (proteção sur place) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 64 2.1.5. Agentes de perseguição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66 2.2. Condições para a concessão de proteção subsidiária . . . . . . . . . . . . . . . . . . 68 2.2.1. Atualidade da ameaça de “ofensa grave” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 74 2.2.2. Proteção subsidiária sur place . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75 2.2.3. Autores da ameaça de “ofensa grave” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75 2.3. Cláusulas de exclusão. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75 2.3.1. Atos contrários aos fins e aos princípios das Nações Unidas . . . . . 78 2.3.2. Prática de crimes graves de direito comum. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 78 2.3.3. Crimes contra a paz, crimes de guerra, crimes contra a humanidade 83 2.3.4. Nota final sobre as cláusulas de exclusão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 843. Procedimento de asilo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 84 3.1. O procedimento de asilo na lei atual em Portugal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 88

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404 Tratado de Direito Administrativo Especial

3.1.1. A apresentação do pedido . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 90 3.1.2. Fase de admissibilidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 92 3.1.2.1. Procedimento especial para os pedidos apresentados nos postos de fronteira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 98 3.1.3. O procedimento Dublin . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101 3.1.4. A fase de apreciação do mérito dos pedidos (fase de instrução). . . 110 3.2. Regras sobre prova . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1134. A impugnação judicial das decisões administrativas em matéria de asilo . . . . . . 1195. Notas finais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127Alguma bibliografia recomendada sobre o tema. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 129

DIREITO ADMINISTRATIVO DA MAGISTRATURA JUDICIALiSAbel GrAeS

Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 133§1.º Breve exposição introdutória . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 134§2.º Os quadros judiciais da República . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 138 2.1. O poder judicial nos textos constitucionais e na legislação ordinária . . . . . . 138 2.1.1 Os estatutos judiciários . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 141 2.2 O novo magistrado e as exigências da República. Vicissitudes de um novo regime . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 146§3.º A carreira judiciária . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 148 3.1 O candidato à magistratura: requisitos de ingresso. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 148 3.2. Inelegibilidades e incompatibilidades . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 159 3.2.1. Regime jurídico aplicável . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 159 3.3. Formas de selecção . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 165 3.4. O início de funções. A posse . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169 3.5. Promoção e antiguidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 173 3.5.1. Critérios utilizados na classificação dos magistrados judiciais . . . . 181 3.5.2. Reclamações contra as listas de antiguidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . 188§4.º O exercício da função judicial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 189 4.1. Competência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 189 4.1.1. Os juízes de paz . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 191 4.1.2. Juízes de direito de primeira instância. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 192 4.1.3. Juízes dos tribunais de 2.ª instância. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 195 4.1.3.1. Presidente e o Vice-Presidente da Relação . . . . . . . . . . . . 196 4.1.4. Os juízes conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça . . . . . . . . . 197 4.2. A inamovibilidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 199 4.2.1. Aspectos gerais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 199 4.2.2. Substituição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 200 4.2.3. Transferência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 206 4.2.4. Licenças . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 210 4.2.5. Abandono do lugar e demissão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 215

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Índice Geral 405

4.3. Aposentação. Procedimento adoptado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 216 4.3.1. Efeitos da aposentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 224 4.4. Vencimentos e outras remunerações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 225 4.5. Responsabilidade disciplinar. As sindicâncias e os Conselhos Disciplinares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 233 4.5.1. Realização das sindicâncias e entidade competente . . . . . . . . . . . . 240 4.5.2. As infracções disciplinares. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 242 4.5.3. As penas e seu efeito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 243 4.5.3.1. Os Estatutos Judiciários de 1928, 1944 e 1962. . . . . . . . . 243 4.5.3.2. Estatutos de 1977 e 1985. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 248 4.5.3.3. Entidade competente para a aplicação das penas . . . . . . . 251 4.5.4. O procedimento disciplinar. Trâmite aplicado. . . . . . . . . . . . . . . . . 252 4.5.5. Recurso das decisões disciplinares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 259 4.5.5.1. Prescrição. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 260§5.º Considerações finais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 261Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 265

DIREITO ADMINISTRATIVO DAS PRIVATIZAÇÕESlourenço vilhenA de freitAS

1. Direito administrativo das privatizações e conceito de privatização . . . . . . . . . . 269 1.1. Direito administrativo das privatizações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 269 1.2. O conceito de privatização e de reprivatização: distinção de figuras afins . 2702. Enquadramento constitucional e limites às privatizações. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 280 2.1. Limites constitucionais – o caso do serviço público de radiodifusão . . . . . 280 2.2. Procedimento de eventual privatização do serviço público de radiodifusão 2873. Limites impostos pela lei de delimitação de sectores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2914. Procedimento de reprivatização . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 295 4.1. Direito comparado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 295 4.2. Delimitação do âmbito de aplicação da lei 11/90 e da lei de alienação de participações do sector público – diferentes enquadramentos para a privatização. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 300 4.3. Reprivatização no quadro da lei 11/90 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 306 4.4. Procedimento de reprivatização no quadro da lei n. 11/90 . . . . . . . . . . . . . 324 4.5. Privatização no quadro da lei n.º 71/88 e no quadro RGICSF. . . . . . . . . . . 348 4.6. Cessão de exploração e subconcessão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 349 4.7. Separação de activos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 351 4.8. Privatização de empresas indirectamente nacionalizadas . . . . . . . . . . . . . . 353 4.9. Extinção de empresas nacionalizadas e revogação do acto de nacionalização. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 354 4.10. Diversas outras limitações à reprivatização . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3555. Princípios gerais do procedimento de (re)privatização. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3626. Direitos dos trabalhadores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 370

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406 Tratado de Direito Administrativo Especial

6.1. Reservas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 370 6.2. Garantia dos direitos dos trabalhadores e transmissão de pessoal . . . . . . . . 3727. Possibilidade de reacção jurisdicional aos processos de privatização e de reprivatização. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3848. Responsabilidade do estado e dos administradores da empresa a (re)privatizar . 388 8.1. Responsabilidade do estado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 388 8.2. Responsabilidade dos administradores. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 390Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 397