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IX ENCONTRO DA ABCP Pensamento Político Brasileiro UNIDADE, PLURALIDADE E OS PROCESSOS CONSTITUINTES NO BRASIL DE 1937 E 1988 Mariah Casséte, UFMG Brasília, DF 04 a 07 de agosto de 2014

UNIDADE, PLURALIDADE E OS PROCESSOS … · ato fundamental de fundação da cidadania ... e unitária. A teoria política de Hobbes, ... delimitação da política democrática moderna

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IX ENCONTRO DA ABCP

Pensamento Político Brasileiro

UNIDADE, PLURALIDADE E OS PROCESSOS CONSTITUINTES NO

BRASIL DE 1937 E 1988

Mariah Casséte, UFMG

Brasília, DF 04 a 07 de agosto de 2014

UNIDADE, PLURALIDADE E OS PROCESSOS CONSTITUINTES NO

BRASIL DE 1937 E 1988

Mariah Casséte, UFMG Resumo do trabalho: O objetivo desse trabalho é analisar de maneira ainda introdutória as possibilidades de constituição da soberania política a partir de duas categorias distintas: a unidade e a pluralidade. Pretendemos desenvolver a ideia de que a construção de uma comunidade efetivamente democrática passa invariavelmente pela compreensão dos sentidos possíveis da soberania e das configurações que delimitam e conformam o demos. Para realizar tal análise conceitual partiremos dos contextos e processos constituintes do Brasil em 1937 e 1988. A análise do pensamento político autoritário da década de 30 em conjunto com o contexto histórico do governo Vargas permite a compreensão de que o processo de fundação política em 1937 pautava-se na busca por uma “unidade fabricada”. Já em 1988 o processo constituinte é desenvolvido a partir de parâmetros pautados na categoria de pluralidade. A constituição de 88, dessa forma, adquire um caráter de indeterminação, permanentemente aberta e em construção, tornando a política brasileira um espaço contínuo de “agenda constituinte”. Palavras-chave: Soberania, Unidade, Pluralidade, Brasil, Processos Constituintes Introdução

O objetivo desse trabalho é analisar de maneira ainda introdutória as

possibilidades de constituição da soberania política a partir de duas categorias

distintas: a unidade e a pluralidade. Pretendemos desenvolver a ideia de que a

construção de uma comunidade efetivamente democrática passa

invariavelmente pela compreensão dos sentidos possíveis da soberania e das

configurações que delimitam e conformam o demos. Para realizar tal análise

conceitual partiremos dos contextos e processos constituintes do Brasil em

1937 e 1988. A escolha do momento constituinte como objeto dessa análise

teórica deve-se ao fato de que tais contextos explicitam de forma contundente

a tensão entre unidade e pluralidade no momento da própria delimitação da

comunidade política. Os processos constituintes dizem respeito ao exercício de

delimitação das concepções políticas fundamentais e dos limites da própria

coletividade. Momentos constitucionais não podem ser pensados nos mesmos

termos da atividade política corriqueira que é realizada pelos governos e

instituições (Kalyvas, 2008). Para além dos princípios capazes de conferir

unidade e sentido para a vida coletiva, os momentos constitucionais também

abarcam a própria possibilidade de estabelecimento do democrático. Isso

significa que aspectos como a igualdade e a inclusão podem ou não fazer parte

desse exercício de constituição dos fundamentos políticos da vida coletiva

(Tully, 1995).

Os contextos constituintes brasileiros nos dois momentos indicados são,

portanto, significativos para compreendermos os sentidos possíveis de

construção da soberania. A análise do pensamento político autoritário da

década de 30 em conjunto com o contexto histórico do governo Vargas permite

a compreensão de que o processo de fundação política em 1937 pautava-se na

busca por uma “unidade fabricada”, desenvolvida verticalmente a partir de

concepções específicas e excludentes a respeito do sentido da nação e

nacionalidade. Nesse momento, a invenção do político não trouxe para seu

centro a diversidade, ao contrário, considerou-a perigosa, ameaçadora aos

limites restritos de identidade nacional configurados naquele momento. A

soberania resultante do processo constituinte de 37 baseia-se assim, em uma

concepção restrita de unidade, estrutura essa que consolida um espaço público

marcado pela reprodução das desigualdades e exclusão nos próprios

fundamentos da experiência conjunta.

Por outro lado, o contexto constituinte de 1988 revela possibilidades

distintas ao sentido da soberania política. Enquanto é possível indicar no

processo constituinte da década de 30 uma busca pela unidade, pela

construção da ideia de nação via Constituição, em 1988 o processo constituinte

é desenvolvido a partir de parâmetros pautados na categoria de pluralidade.

Nesse sentido, seria possível analisarmos a referida constituinte como

processo descentralizado, disputado por uma diversidade de grupos e atores

sociais. Nota-se, assim, preocupação evidente com aspectos de Policy

(políticas públicas, direitos de cidadania “positiva”) em detrimento de princípios

de Polity (parâmetros fundamentais do político, consenso mínimo, direitos

fundamentais, generalidade). A constituição de 88, dessa forma, adquire um

caráter de indeterminação, permanentemente aberta e em construção,

tornando a política brasileira um espaço contínuo de “agenda constituinte”

(Couto & Arantes, 2006).

A grande questão a ser debatida nesse contexto é a de que embora o

processo constituinte de 88 apresente esse caráter peculiar de indefinição,

abertura e constante revisão, o que gostaríamos de defender é a ideia de que

talvez seja exatamente tal peculiaridade que coloque tal contexto constituinte

brasileiro como representação mais coerente a uma noção de soberania

democrática na contemporaneidade. Isso significa dizer que tal dinâmica

constituinte permanente, pode representar justamente um processo mais

adequado para pensarmos a relação entre o político e o democrático nas

fragmentadas e conflitivas sociedades do mundo atual. Desse modo, cria-se a

possibilidade de concebermos os fundamentos do político e da soberania em

um contexto de aprofundamento democrático, que distancia-se da ideia de

unidade em detrimento da concepção de cidadania. Cidadania essa que assim

como a própria democracia é sempre inacabada.

É importante ressaltar o caráter introdutório do debate, visto que o

trabalho insere-se em um projeto de pesquisa ainda em andamento. Porém,

procuramos desde já delimitar algumas características básicas verificadas

nesses dois momentos constituintes distintos da história brasileira que nos

ajudam a compreender a possibilidade de pensar a soberania democrática

como conceito e prática pautada na categoria da pluralidade humana.

A soberania como unidade A delimitação da soberania política é aspecto essencial para se pensar a

comunidade democrática. De fato, as possibilidades mais fundamentais de

inclusão e aprofundamento democrático passam primeiramente pela forma

como os parâmetros do político são configurados. Pensar o demos é, portanto,

o objetivo desse primeiro capítulo. Tal delimitação precisa estar no centro do

debate contemporâneo a respeito dos sentidos do democrático, já que é esse

ato fundamental de fundação da cidadania que permite uma concepção de

comunidade pautada na pluralidade ou a delimitação de uma comunidade

excludente.

O que gostaríamos de apontar é que um dos aspectos pouco

debatidos da chamada “crise da representação” atual passa pela dificuldade

em resignificarmos o sentido da soberania popular e as consequências dessa

categoria na própria possibilidade de participação e inclusão democráticas.

Graham Smith (2010) refere-se a esse problema como a necessidade de

reflexão sobre ‘quem possui o direito de participar’, isto é, quem pode ser

contado como cidadão, como parte integrante do demos. O autor argumenta

que é impossível pensarmos o tema das inovações institucionais na teoria

democrática contemporânea sem antes desenvolvermos uma discussão sobre

a questão fundamental dos limites da comunidade política. Compreender a

definição da soberania em sociedades democráticas é, por um lado, considerar

a natureza e a legitimidade da própria participação, mas principalmente

reconhecer que nos limites dessa soberania se institui e reproduzem-se

contextos de exclusão e opressão.

É necessário considerar que sociedades democráticas não estão isentas

de produzir e disseminar a desigualdade. De fato, o recorte político mais

fundamental, ou seja, a delimitação da própria ideia de associação e

comunidade dá origem a situações múltiplas e concretas de exclusão, nas

quais grupos, indivíduos e minorias não são nem mesmo reconhecidos como

sujeitos políticos, pessoas que não apenas “perderam disputas no interior do

sistema, mas que nem, ao menos, podem fazer parte do mesmo” (Norval,

2009, p.298). O desafio da teoria democrática atual configura-se, portanto, não

apenas em pensar maneiras efetivas de aprimorar a qualidade da democracia,

nem somente em analisar processos de participação de certos grupos e

perspectivas, mas é também promover a problematização da ideia de

soberania, ou seja, colocar em debate uma concepção possível de povo e de

unidade política em contextos de pluralização intensa da vida social.

Cabe, assim, nos remetermos a essa problemática com maior atenção,

já que analisar o tema da soberania no pensamento democrático evoca o

princípio da liberdade como autonomia política, por meio da qual os membros

da coletividade constituem deliberadamente as formas políticas da autoridade

de maneira a organizar e institucionalizar suas vidas comuns. Os destinatários

da lei tornam-se seus autores. Por isso, formular a soberania popular como

poder constituinte é afirmar o valor democrático básico de autogoverno

(Kalyvas, 2013).

No entanto, tal ideia de autogoverno não tem sido o foco para a

compreensão da soberania no desenvolvimento da teoria política moderna. É

importante ressaltar que a concepção de soberania construída no imaginário

ocidental é pautada na ideia de controle e poder unitário do Estado – legado da

conhecida definição desse conceito nos escritos de Jean Bodin ou mesmo em

Thomas Hobbes. Na perspectiva do primeiro, o soberano é um “comandante

não comandado”. A relação política essencial é vertical entre “ele que

comanda” e “ele que deve obediência”, ou seja, entre monarcas e súditos,

governantes e governados (Bodin, 1992, p. 49). A soberania concebida nos

termos de Bodin é indivisível e não pode ser rebaixada ou sobrepujada. Seu

compromisso com a primazia do comando coercitivo sugere uma concepção

estadista e estática de soberania, a qual consiste em uma força repressiva,

emanada de cima, hierárquica e unitária. A teoria política de Hobbes, embora

apresente uma complexidade conceitual mais profunda que a de Jean Bodin,

reforça uma concepção de soberania absoluta e indivisível. O pacto social que

dá origem à política, ao Estado e à soberania consiste exatamente no ato de

concessão total da liberdade e vontade individual em favor da autonomia do

soberano, que passa a agir a partir de uma autoridade sem limites. De acordo

com Hobbes sem a alienação total dos indivíduos ao soberano, o pacto social

perde seu sentido inicial, isso é, a garantia de segurança e conservação dos

homens:

Se não for instituído um poder suficientemente grande para nossa segurança, cada um confiará, e poderá legitimamente confiar, apenas em sua própria força e capacidade como proteção contra todos os outros [...] A única maneira de instituir um poder comum é conferir todo o poder dos homens a um homem, ou a uma assembleia de homens, que possa reduzir suas diversas vontades a uma só vontade. (Hobbes, 1999, p.141 e 144).

O fato dessa perspectiva unitária e absoluta de soberania ter se tornado

aquela mais difundida no pensamento político moderno fez com que as

discussões sobre soberania se tornassem extremamente raras no campo da

teoria democrática contemporânea. Autores como Judith Sklar (1969) ou Michel

Foucault (2007) apontam que o termo ‘soberania’ no pensamento político

moderno, mal parece ter qualquer outro significado além do de monarquia

absoluta1. Nesse sentido, não é de se estranhar que na configuração do

pensamento democrático moderno a lógica da soberania indivisível se cristaliza

no lugar simbólico da própria ideia de povo. Poderia se apontar uma

substituição da dominação do Um para a dominação dos Muitos, o que

representa uma soberania que, embora popular, ainda carrega características

em comum com a concepção absoluta e unitária.

Para Rousseau, por exemplo, a soberania popular é em sua essência o

que deve ser. Para Rousseau não pode existir mediação entre a vontade da

soberania e as decisões políticas. No Contrato Social o autor aponta que o ato

de associação produz imediatamente o corpo político, instituindo assim, uma

vontade geral que sempre expressa o interesse público e os caminhos mais

adequados para a vida social, já que emana da vontade de todos. A vontade

geral, nesse sentido, é tão importante para Rousseau que as opiniões e ideias

dissonantes chegam a ser vistas como erros, como desvios do interesse

público soberano: “a vontade geral é sempre certa e tende sempre à utilidade

pública [...] importa, pois, para alcançar o verdadeiro enunciado da vontade

geral, que não haja no Estado sociedade parcial” (Rousseau, 1999, p.92).

A dominação de “muitos”, nesse sentido, parece constituir um dos

marcos normativos do sentido democrático na modernidade. Se tomarmos a

revolução francesa como um desses momentos de delimitação da política

democrática moderna é possível analisarmos esse fato de forma clara2.

Baseada na gramática republicana de Rousseau, os franceses repudiam a

concepção de soberania do rei e colocam em seu lugar a chamada soberania

do povo. O corpo político deixa de ser unido por uma força transcendente e

externa e passa a fundar sua unidade em sua própria existência enquanto

povo. A premissa é a de que um pacto de submissão não funda um governo

legítimo, só é legítimo o corpo político que institui a si próprio. Se na monarquia

1 Michel Foucault analisa esse fato ao afirmar que na teoria política “ainda não foi cortada a cabeça do

rei”. Para ele, o pensamento político moderno não teria conseguido se desvencilhar da ideia de soberania e poder apenas como repressão e exclusão, e presente somente no lugar do Estado, do governo e do governante. É o que ele chama de ideia “jurídico-discursiva” de poder e da soberania. 2 De acordo com Bignotto (2010) nossa ideia de corpo político democrático e de identidade nacional

deve muito a esse marco da história ocidental, que institui princípios de interpretação e estruturação da vida coletiva capazes de ressoarem por diversos processos de organização política nacional na modernidade.

o rei era capaz de encarnar a identidade da coletividade, no moderno modelo

republicano tal identidade torna-se “desencarnada”, ou seja, não há figura

transcendente alguma capaz de constituir a unidade coletiva. Desse modo, se

consolida um novo paradigma de compreensão da política, extinguindo de seu

interior a possibilidade de fundar a unidade coletiva por qualquer instância que

se encontre fora da própria comunidade. A partir dessa concepção republicana

da democracia, o grande marco simbólico é o de que a fonte de autoridade e

de ordenamento da esfera coletiva passa a repousar-se no próprio povo, no

fato da totalidade e na unidade da soberania de todos (Lefort, 1991).

A grande questão a ser enfatizada é a de que o ideal da soberania

popular estabelece um fundamento normativo do democrático que se pauta na

ideia de maioria como fonte primeira da legitimidade política. Aspectos como a

preocupação com os limites da comunidade, a valorização de uma identidade

coletiva e a própria construção do Estado Nacional apontam no sentido de que

no contexto moderno a soberania democrática incorpora um sentido conceitual,

jurídico e institucional de formação de unidade, ou do reconhecimento e

consolidação da generalidade. A busca pelo ‘Um’ constituído na ideia de nação

repousa sobre um princípio de busca por uma unidade restrita e homogênea no

plano político e social, capaz de propiciar um contexto violento de perseguição

à diversidade (Arendt, 2006).

Ao nos voltarmos à realidade brasileira, muito se foi dito e pensado a

respeito da construção da ideia de nação e da própria soberania política. A

questão que se coloca e que precisa ser referida nesse trabalho é se tal

soberania se configura a partir da perspectiva unitária e homogeneizante, tal

como apontamos na tradição hobbesiana do pensamento político moderno, ou

se há peculiaridades a serem referidas nesse processo de conformação e

construção do demos. É interessante notar em um primeiro momento, que

muitos dos autores importantes do pensamento político brasileiro empenharam-

se em estabelecer um suposto “caráter nacional”, uma identidade societária e

política brasileira, que se constituiria como fundamento da psicologia social e

explicaria as características e configurações verificadas nas instituições e

relações políticas, econômicas e sociais no país. Teses clássicas como a da

“mestiçagem” em Gilberto Freire, a do “homem cordial” de Sérgio Buarque de

Holanda, e mesmo a do “malandro” na obra de Roberto da Matta, seriam

exemplos dessa uma linha interpretativa.

Uma postura crítica quanto a essas interpretações pauta-se,

principalmente, a partir da noção de que tais visões seriam empobrecedoras da

realidade complexa das diversas dimensões que constituem a vida nacional, já

que carregariam valores subjetivos e culturais, ignorando panoramas

sociológicos e históricos mais estruturais. Dante Moreira Leite (2003), por

exemplo, aponta que as teorias que defendem a existência de “categorias

psicológicas típicas” de um povo ou raça são explicáveis pelo contexto político,

social e econômico em que se desenvolvem na medida em que - sob forma

aparente de uma descrição objetiva - refletem valores, interesses e motivações

pessoais dos autores e do grupo a que pertencem. Da mesma forma, o autor

observa que essas visões ‘estrábicas’ da realidade subsistem com ampla

aceitação social, pois servem em alguma medida para justificar em um nível

grupal situações de desigualdade e opressão e no nível individual, explica o

comportamento das pessoas as quais se referem. Nesse sentido, mais

interessante que nos apegarmos a explicações definitivas sobre uma possível

identidade nacional seria buscarmos análises políticas sobre as condições que

contribuem e impactam o cenário da vida pública brasileira, bem como a

conformação das possibilidades que se apresentam à construção da soberania

política e do próprio demos.

Nessa perspectiva, é Raymundo Faoro quem apresenta uma reflexão

muito interessante no conhecido artigo “Existe um pensamento político e social

brasileiro?” (1987) a respeito dos princípios políticos que se atualizam no

imaginário e na prática popular quanto à atuação e relação da sociedade com a

vida pública. De acordo com o autor, vivemos no Brasil uma experiência

peculiar. O liberalismo que se instalou no Brasil, desde a constituição de 1834,

possui uma especificidade própria: é um “liberalismo de Estado”, que implica na

preeminência desse último em relação ao conjunto da sociedade. Isolado e

imune às nascentes teorias da soberania popular, Portugal passa ao largo,

segundo Faoro, da secularização própria ao Estado moderno. A história dera a

oportunidade ao pensamento político português de optar entre duas escolhas:

caminharia rumo ao pensamento moderno europeu, consentindo à abertura da

mediação da soberania pelo povo, ou preferiria o caminho em direção ao futuro

reino cadaveroso. Optou por ser um reino morto, sugere Faoro.

O resultado dessa opção portuguesa e os impactos dela sobre a

construção da soberania política brasileira seria a chamada revolução

“irrealizada”, princípio herdado da própria história política da metrópole

portuguesa, que se atualizaria no desenvolvimento do pensamento político

brasileiro e nas práticas empreendidas no espaço público: “o mundo colonial

deveria ser, pelas normas absolutistas vigentes, uma cópia do mundo

português” (Faoro, 1994, p.31). O que isso significou para a formação da

tradição política no Brasil foi uma incapacidade da configuração de uma

comunidade política popular, de uma soberania democrática. Ao contrário, a

unidade política da nação se dá de maneira vertical, sempre através da ação

das elites econômicas e sociais, sem inovações significativas. Luis Werneck

Vianna em uma leitura próxima a de Faoro, denomina esse predomínio das

elites na condução da vida pública brasileira de “revolução passiva”. Esse

termo denominaria processos de revolução sem de fato haver revolução, em

que as elites políticas das classes dominantes se apropriam total ou

parcialmente da agenda dos setores subalternos, cooptando suas lideranças,

afastando outras, em uma estratégia de “conservar mudando”, tal como nas

palavras de um personagem do romance O Leopardo, obra do italiano

Giuseppe Lampedusa, que sentenciava ser necessário mudar para que as

coisas permanecessem como estavam.

Nesse sentido, uma conclusão possível a esse movimento de

construção da unidade política brasileira é o de que a soberania, os parâmetros

que delimitam os próprios sentidos do político e da comunidade, nunca foram

efetivamente populares. A conformação elitista sobre os limites que definem os

sujeitos e atores da vida pública, por muito tempo acabam impedindo a

realização do princípio democrático de pluralidade como fundamento para a

experiência política nacional. O que impera na dinâmica de fundação e

atualização da política brasileira é a categoria de unidade, porém, é importante

compreender essa unidade nunca como expressão substantiva de uma

imagem ou identidade comunitária, tal como defenderia Carl Schmitt3, mas

3 Schmitt defende um conceito de igualdade substantiva como base para a ideia de comunidade política.

No livro O conceito do político, o autor realiza a conhecida distinção amigo-inimigo como base para a

como uma unidade fabricada verticalmente por grupos e atores que efetivavam

seu domínio privatizante sobre as instituições e constituição brasileira. De fato,

o processo constituinte de 1937 pode ser apontado como exemplo clássico

dessa prática e por isso deve ser analisado com mais atenção.

A unidade e o processo constituinte de 1937

A constituição é resultado de um conjunto de ideias e conceitos que

conformam as expectativas, as preferências e as possibilidades da escrita

constitucional. Não há espaço ou momento histórico que não esteja

conformado, de alguma forma, ao espaço da experiência e ao horizonte de

expectativas que estabelecem um contexto para a própria ação se desenvolver

(Koselleck, 2002). Assim, necessário um esforço de compreensão do

pensamento teórico e conceitual que permeia a vida política concreta de cada

momento constitucional a ser analisado. O conhecimento do contexto é sempre

essencial para a compreensão dos atos e decisões que trazem transformações

sobre a realidade. A linguagem política deve necessariamente apresentar uma

dimensão histórica que inclua as configurações e acontecimentos sociais,

valores e modos de pensar reconhecidos e difundidos socialmente.

Assim, se o problema contemporâneo de diversas democracias

ocidentais tem sido a dificuldade em repensar a unidade política tradicional

através dos temas da inclusão e da diversidade, no Brasil a questão não pode

ser considerada de forma semelhante, visto que o estabelecimento da unidade

no país sempre ignorou a própria ideia de povo. Desse modo, não é possível

visualizarmos uma concepção homogênea nem do povo e nem da cidadania no

Brasil (Carvalho, 2008). Luiz Werneck Vianna (2008) explica que, ao contrário

de uma unidade baseada na matriz republicana, a construção da nação

brasileira se deu através de um “liberalismo elitista”, no qual há o esforço das

elites econômicas em manterem cenários políticos e sociais em conformidade

com seus próprios interesses. Nesse contexto, a ideia de povo e de soberania

compreensão do político. Os amigos, nesse caso, seriam exatamente aqueles capazes de compartilhar substantivamente aspectos identitários claros que os uniriam em comunidade. Isso ocorre porque a noção do político, tal como delineada por Schmitt, remete a ideia de ordenação da comunidade, isso significa que a estruturação de uma ordem legítima e concreta de uma coletividade é o que compõe a razão de ser da política, de acordo com o autor.

popular no país não teve papel relevante nem na constituição do imaginário

nacional nem, tampouco, no conjunto de práticas e das instituições políticas e

econômicas do país. O próprio ato que dá origem à nação brasileira – a

independência em relação à metrópole portuguesa - demonstra tal

singularidade, já que desde esse momento não há um ato de rompimento

radical: atenua-se o sentido revolucionário do processo à medida que o

primeiro governante é o próprio herdeiro da casa dinástica portuguesa. Nesse

sentido, é possível visualizarmos a constituição da unidade nacional como

processo frágil e verticalizado, concentrado nas mãos daqueles que Raymundo

Faoro chama de “donos do poder”.

Com o passar do tempo esse princípio de “revolução passiva” se

atualiza e se intensifica nos momentos de refundação constitucional, expressas

claramente em processos constituintes que prezam pela manutenção do

predomínio das elites, garantindo uma soberania nacional construída de cima

para baixo, de natureza excludente e limitadora. A realidade da década de 30

no Brasil, especialmente a partir do governo autoritário de Getúlio Vargas,

comprova e exemplifica essa busca pela consolidação centralizadora, que se

expressa na construção idealizada das instituições, das leis e, por conseguinte,

da própria nação. A formação de uma vertente autoritária do pensamento

político brasileiro revela-nos alguns princípios fundamentais que se consolidam

como nortes importantes na elaboração da própria constituição. Nos

atentarmos ao pensamento político do período é, assim, postura essencial,

uma vez que argumentos e teses de intelectuais como Azevedo Amaral,

Alberto Torres, Francisco Campos e Oliveira Vianna nos indicam de forma

evidente a necessidade de atualização da ideia de uma unidade fabricada da

política e sociedade brasileira naquele período.

Um aspecto fundamental elaborado e defendido no momento é

efetivamente a centralização, marca mais forte da presença do Estado na

constituição da sociedade brasileira. O que se argumenta vigorosamente é o

princípio de que a boa lei produziria a boa sociedade (Brandão, 2005). Isso

significa que uma noção básica de ordenação política no período seria aquela

de “fabricação” da nação e de todos aqueles elementos que compõem a vida

política e governamental brasileira. A ideia defendida era simples: a importação

de instituições e leis estrangeiras seriam incapazes de produzir estabilidade e

ordem, tornando-se imprescindível o desenvolvimento nativo das noções e

categorias do governo e do próprio Estado brasileiro.

A primeira e mais importante necessidade é estabelecer a maior harmonia possível entre a forma de organização que se elabora e as configurações da realidade ambiente. Estruturas exóticas e estilos de arquitetura sociológica e política importados de outros meios dificilmente se ajustam aos alicerces em que têm de se apoiar, sob pena de darem à sociedade e às suas instituições uma instabilidade, que torna precária toda a obra realizada. (Amaral, 2002, p.7)

Esse trecho retirado da obra O Estado autoritário e a realidade Nacional

é um exemplo claro daquilo que Azevedo Amaral denomina como “realismo

político”. Para ele, as elites intelectualmente privilegiadas teriam a prerrogativa

de pensar e construir propostas de instituições capazes de se adequar à

realidade social, econômica e mesmo geográfica da nação. O Estado, portanto,

deveria ser forte e centralizador para que tais instituições possam ser

devidamente organizadas. Alberto Torres reforça essa ideia ao dizer que as

condições reais da vida política brasileira são incompatíveis com o modelo

europeu ou norte-americano de organização democrática legal. O autor reforça

a tese da unidade fabricada ao afirmar a preponderância do Estado como fonte

criadora da nação. Para ele, a nação brasileira ainda estaria em formação e

essa responsabilidade de criação nacional deveria recair-se sobre o Estado.

Não caberia a este atuar apenas de forma reguladora, já que o Brasil não havia

criado ainda os vínculos orgânicos capazes de consolidarem-no como nação.

O Estado assim surge como solução e caminho para um futuro nacional

definido pela racionalidade:

A autoridade política é, portanto, um poder que se cria a si mesmo, que se impõe e se mantém por sua própria força de móveis opostos às tendências e aos interesses sociais; é o que dita as noramas. E comenda os destinos do povo, obedecendo aos instintos de sua origem, ou a ideias arbitrariamente adotadas. Sua ação é predominante e decisiva - soberana em todo o rigor da palavra (Torres, 1941, p.243-245).

A unidade, portanto, é constituída através da potência criadora do

Estado que garantiria o desenho constitucional e institucional propício para o

desenvolvimento do país como nação efetiva. A vontade decisória do Estado é

apontada também por Francisco Campos como legitimadora da fabricação da

unidade política e social. Para esse autor - em concordância com as teses dos

outros autores mencionados acima - a unidade nacional garantiria uma

democracia substancial, que significava a correspondência dos aparatos

governamentais e das instituições políticas e sociais com a identidade do povo

brasileiro. Para Campos (2001), o “Estado Novo” não seria um modelo

transplantado, mas nascido a partir das idiossincrasias do país; um modelo

institucional que substituía a política dos governos pela política da Nação.

Assim, a análise do pensamento político autoritário da década de 30 em

conjunto com o contexto histórico do governo Vargas permite a compreensão

de que o processo de fundação política em 1937 pautava-se na busca por uma

“unidade fabricada”, desenvolvida verticalmente a partir de concepções

específicas e excludentes a respeito do sentido da nação e nacionalidade.

Nesse momento, a invenção do político não trouxe para seu centro a

diversidade, ao contrário, considerou-a perigosa, ameaçadora aos limites

restritos de identidade nacional configurados naquele momento. A soberania

resultante do processo constituinte de 37 baseia-se assim, em uma concepção

restrita de unidade, estrutura essa que consolida um espaço público marcado

pela reprodução das desigualdades e exclusão nos próprios fundamentos da

experiência conjunta.

Soberania como pluralidade

A crítica aos ‘riscos’ da soberania unitária republicana representa um

dos principais aspectos a partir do qual o liberalismo moderno pôde se

desenvolver. A construção da generalidade liberal desloca o foco da busca pela

instituição de um poder unívoco e indivisível do povo, para pensar as

possibilidades de uma soberania constituída pela garantia de direitos e

liberdade dos indivíduos. Nesse sentido, os indivíduos são concebidos

politicamente como “unidades contábeis” e a lógica agregativa de formação da

vontade, passa a substituir a ideia da soberania popular uniforme e

homogênea, pela soberania traduzida no mecanismo de representação política.

O “lugar do poder” estaria, pois, desvinculado de um corpo, de materialidade.

Esse seria o lugar da soberania popular e sua ocupação só poderia ser

provisória e instável.

A legitimidade democrática, portanto, deixa de estar depositada na

consolidação de uma identidade coletiva e é pensada a partir da ideia do

procedimento burocrático estatal, bem como na instituição do sufrágio

universal. É importante ressaltar que a ideia de laço social não deixa de estar

presente no paradigma liberal, mas ao invés de ser concebido como um

contrato político entre indivíduos capazes de ativamente fundar o corpo

coletivo, é interpretado como um processo neutro e ordenado de competição

social. As garantias formais das liberdades de crença, expressão e associação

exercidas em uma esfera pública autônoma, juntamente com um corpo

burocrático estatal eficiente permitiriam, pelo menos em princípio, que os

resultados eleitorais pudessem refletir a ‘vontade popular’ e que a opinião

pública fosse constantemente levada em consideração pelo próprio governo

(Beetham, 1991). O liberalismo, portanto, marca uma virada paradigmática na

relação entre soberania e democracia, contrapondo-se à perspectiva

republicana moderna, porém, traz consigo alguns problemas fundamentais.

A expansão de um status universal de pertença a uma comunidade

política forneceu os expedientes predominantes para equacionar, no plano

simbólico e político, as problemáticas da subordinação política e da integração

social ao longo dos processos de alastramento da economia de mercado e de

consolidação do Estado nacional. Mesmo em sociedades marcadas por

diferenças socioeconômicas abissais, pela desigual efetivação do direito, pela

vulnerabilidade dos direitos civis e por outras injustiças simbólicas, as tarefas

da ordenação política e da incorporação social passaram pela edificação de tal

cidadania homogênea e privatizante (Lavalle, 2003). É nesse sentido que se

pode perceber um grave problema da perspectiva liberal. A tentativa de se

evitar o conflito através da exclusão das diferenças como constitutivas da

esfera política perpassa os esforços de organização em todas as esferas da

vida social. A presunção de um espaço público equitativo através das leis, do

direito e das normas desconhece o fato de que ainda que ignoradas, as

diferenças não desaparecem das relações e práticas empreendidas no âmbito

político. A insistência na neutralidade mascara as hierarquias, desigualdades e

opressões que se reproduzem no espaço público4.

A soberania democrática só pode ser uma soberania inacabada.

Qualquer tentativa de estabiliza-la já traz em si o potencial concreto de

produção da exclusão e invisibilidade, tal como nos revela à perspectiva liberal

hegemonicamente experimentada em nossas sociedades. No entanto, isso não

quer dizer que o paradigma democrático na contemporaneidade se esvazia de

objetivo. De fato, o exercício de construção e reconstrução da soberania pode

ser rica fonte de inovações e aprofundamento democrático. Isso porque a

multiplicação de sujeitos como parte ativa dos conflitos constitutivos do demos

dão à experiência democrática uma amplitude abrangente, capaz de atualizar

os princípios de igualdade e autonomia.

Isso não significa que a soberania seja incapaz de errar (para nos

referirmos a Rousseau), nem que o processo sempre inacabado de

constituição do demos é imune à reprodução de exclusão e desigualdades: é

certo que nada garante tais resultados que estarão sempre submetidos ao fato

da imprevisibilidade da política. O importante nesse contexto é entender o

‘povo’ como capaz de reconhecer suas opressões e, dessa forma, se esforçar

continuamente para superá-las. A soberania vista como processo busca

incorporar à teoria política contemporânea o princípio de que a comunidade em

qualquer democracia sempre estará pautada em um fundamento de

legitimidade que não é e nem pode ser absoluto. Alcança-se, assim, uma

compreensão de autodeterminação popular que não se estabelece a priori e

nem unilateralmente, ao contrário, é disputada, tensa e muitas vezes

contraditória, mas reconhece a diversidade, dá voz às minorias e não cala os

conflitos.

Nessa perspectiva da soberania inacabada, mais importante do que

qualquer tipo de afirmação identitária e mais importante do que a própria

4 A teoria feminista ao longo do século XX apresenta uma crítica contundente ao paradigma liberal. Diversas autoras apontam para o fato de que a naturalização das práticas de opressão privada de homens sobre mulheres foram constantemente reproduzidas nas relações políticas e de poder, o que durante muito tempo excluiu completamente a própria consideração da mulher como digna do status de efetiva igualdade e cidadania, além de impossibilitar a própria contestação e condenação dessas práticas de violência e dominação na esfera privada (Pateman, 1989).

mobilização dos movimentos e lutas é a maneira como o confronto entre as

diferenças e a multiplicidade social é configurado. A afirmação de indivíduos

sobre outros indivíduos e de grupos sobre outros grupos inevitavelmente

acarreta condições propícias para a disseminação de novos padrões sociais de

injustiça e dominação. De acordo com James Tully (2004), é necessário que

haja uma mudança de perspectiva ao pensarmos na construção da

comunidade democrática: sua finalidade é a de propiciar um contexto no qual

seja continuamente possível rearranjar as estruturas da gramática coletiva.

Esse rearranjo, no entanto, deve sempre estar pautado na troca multifacetada

de ideias e perspectivas e deve sempre evitar conclusões definitivas a respeito

dos parâmetros que regem a experiência conjunta. Assim, os limites do próprio

demos precisam estar abertos e disponíveis para o questionamento público,

para que sempre as razões, argumentos, demandas e reivindicações possam

ser escutadas e consideradas por todos e, eventualmente, questionadas e

novamente transformadas.

Mais do que buscar princípios de delimitação do político, busca-se um

alargamento constante de seus limites, de modo a propiciar um espaço público

inclusivo, porém provisório e inacabado, no qual as características e

fundamentos da convivência coletiva estejam sempre em aberto. A própria

noção de representação pode ser encarada a partir dessa perspectiva. Nadia

Urbinati (2006) nos últimos anos vem apontando para o fato de que o

fundamento majoritário de soberania popular precisa também ser superado na

compreensão do exercício da representação democrática. Para a autora é

impossível pensarmos em termos de consenso geral ao nos referirmos à

categoria de representação. As clivagens, desigualdades e hierarquias que se

reproduzem na esfera das relações humanas impedem a existência de uma

representação harmônica e unívoca do ‘povo’ no espaço político. Só é possível

pensar em representação quando essa é concebida como categoria de

expressão e promoção de um contexto constante de disputas e confrontos

públicos. A relação entre Estado e Sociedade é concebida por Urbinati como

um processo circular que é continuamente atualizado via representação

permanente e criativa de ideias, perspectivas e opiniões de uma soberania em

disputa. A legitimidade democrática é, portanto, inacabada, está em construção

e integra um processo ininterrupto de autorização política, resgatando a

centralidade da cidadania e suas múltiplas vozes:

I call it a “revision” of popular sovereignty rather than a demolition […] it amplifies the meaning of presence itself because it makes voice its most active and consonant manifestation and judgment about just and unjust. One might say that political representation provokes the dissemination of the sovereign’s presence by making it an ongoing and regulated job of reconstructing legitimacy. (Urbinati, 2006, p.25)

A questão que precisa ser respondida é a de se a vida pública brasileira

seria capaz de superar a categoria de unidade fabricada – que durante tanto

tempo se revelou como fonte de exclusões e opressões que se naturalizaram

na sociedade. O que pretendemos apontar é que o processo constituinte e a

própria constituição brasileira de 1988 representariam ações políticas

compatíveis com a categoria de pluralidade.

A pluralidade e o processo constituinte de 1988: a Constituição inacabada

Bruce Ackerman (1991), em seu clássico estudo constitucional nos

Estados Unidos, sustenta essa perspectiva. O autor defende como premissa

básica o fato de que os momentos constitucionais não podem ser pensados

nos mesmos termos da atividade política corriqueira que é realizada pelos

governos e instituições. Para ele, tais atividades não se assemelham ao

sentido fundamental do momento constitucional que nada mais é do que

aquelas raras situações nas quais o povo define os fundamentos de sua

própria unidade, a natureza da associação e a legitimidade da experiência

conjunta. O momento constitucional tem natureza estruturante para a

convivência coletiva e, exatamente por essa razão, é precedido por um

movimento e por um desejo do povo em redefinir ou repensar os vínculos que

os unem como uma comunidade e que conformam a própria vida pública. As

palavras escritas constitucionalmente não expressam um simples contrato, não

se configuram apenas como um documento, mas principalmente são capazes

de gerar um espaço efetivo no qual a ação coletiva pode desenvolver-se. O

filósofo francês Jacques Ranciére (2007) aponta que a existência da norma

escrita implica o fato de que tais palavras podem ser verificadas em uma esfera

concreta vivenciada por todos. Assim, o momento constitucional possui a

efetividade de criar um espaço cujo sentido é compartilhado e, por essa razão,

propicia os fundamentos para uma realidade política também compartilhada.

Nesse sentido, os momentos constitucionais têm muito a dizer sobre a questão

do político. No entanto, não é apenas a unidade política a dimensão

apreendida na experiência constitucional. De fato, pode-se dizer que para além

dos princípios capazes de conferir unidade e sentido para a vida coletiva, os

momentos constitucionais também abarcam a própria possibilidade de

estabelecimento do democrático. Isso significa que aspectos como a igualdade

e a inclusão podem ou não fazer parte desse exercício de constituição dos

fundamentos políticos da vida coletiva. Assim, ao nos voltarmos para a

experiência constitucional é possível analisarmos de que maneira a fundação

política concebe ou não a própria possibilidade da pluralidade. Pensar os

momentos constitucionais sob a ótica da pluralidade é analisar em que medida

a unidade política pode acomodar a diversidade (Tully, 1995). Mas, a questão

pode ir além: é possível refletirmos se esse próprio vínculo político inicial é

capaz de ser concebido a partir e através da diversidade. Nesse sentido,

investigar os momentos de constituição do político é buscar a compreensão

sobre de que maneira há ou não o esforço de uma fundação plural, que não

apenas aceite ou tolere as diferenças, mas que possa compreendê-las como

elementos constitutivos e fundantes da própria comunidade política. Analisar se

o momento constitucional traz ou não o elemento do democrático significa,

portanto, compreender se há o esforço do político em repensar a própria

natureza da comunidade a partir da ideia de uma igualdade que se pauta na

mutualidade, na dialogicidade e na inclusão, transformando os limites do

político em instâncias absolutamente dinâmicas e provisórias.

O processo constituinte de 1988 no Brasil ainda carece de análises mais

aprofundadas no campo da ciência política. O andamento da presente

pesquisa terá como objetivo a sistematização de uma narrativa e interpretação

mais atenciosa desse momento crucial da história política nacional. Nesse

momento, entretanto, o que é importante fazer é apontar a peculiaridade da

atual constituição nacional no que diz respeito à sua expressão da categoria de

pluralidade democrática. Para isso, é importante partirmos do argumento de

partida de Elkins, Ginsburg e Melton (2009) no estudo sobre a duração das

constituições ao redor do mundo. Para esses pesquisadores é essencial, ao

nos voltarmos à análise do texto constitucional, levarmos em consideração três

princípios presentes no texto constitucional: a flexibilidade, a inclusividade e a

especificidade. Cada uma dessas dimensões revelaria o nível de dinamismo e

abertura de uma constituição frente às mudanças, demandas e desafios que se

colocam à configuração da vida política nacional.

O primeiro fator representa a habilidade constitucional em se ajustar às

circunstâncias imponderáveis na vida política e social de um país. A

flexibilidade, assim, pode ser capturada na análise formal e informal das

emendas constitucionais, a lógica aqui é a de que quanto mais flexível, maior

será a possibilidade de produção de emendas ao texto constitucional e é

justamente tal flexibilidade que pode contribuir para a permanência da

constituição à longo prazo e também em captar as novas demandas e desafios

que se reproduzem na esfera societária. Já a inclusão captura o grau a partir

do qual a constituição é capaz de incluir atores sociais e políticos relevantes no

presente e no futuro, a inclusividade reflete a abertura ao dinamismo e

confronto da pluralidade democrática, que não pode ser ignorado pelos

fundamentos constitutivos da nação. Por fim, a especificidade refere-se ao grau

de abrangência e detalhamento nos artigos. De acordo com os autores

documentos detalhados podem ser mais duradouras do que constituições mais

amplas e gerais, como é o caso da celebrada constituição americana.

É interessante notar que a constituição brasileira apresentaria elementos

coerentes a essas três dimensões, caracterizando a mesma como uma

constituição potencialmente mais aberta e adaptável, e consequentemente,

mais compatível com o princípio de pluralidade democrática. Enquanto é

possível indicar nos momentos políticos anteriores à redemocratização uma

busca constante pela afirmação da unidade, isto é, pela construção da ideia de

nação via constituição, em 1988 o processo constituinte é desenvolvido a partir

de parâmetros completamente distintos. Coelho & Oliveira (1989) apontam que

tal processo foi marcado por uma intensa descentralização de atores e

participantes: “[...] a construção do futuro Projeto deu-se de fora para dentro, de

partes para o todo [...] ao todo foram apresentadas, durante as várias fases de

comissões, um total de 65.809 emendas” (p.20). Esse aspecto inédito na

história constituinte nacional fez com que o projeto constitucional fosse

disputado por uma diversidade sem precedentes de grupos e atores sociais,

revelando de forma contundente o aspecto da inclusão.

Além disso, há outra dimensão central analisada por Couto & Arantes

(2006). A leitura minuciosa que esses autores realizam quanto aos artigos da

atual constituição revela que no texto constitucional há uma preocupação

evidente com aspectos de Policy (políticas públicas, direitos de cidadania

“positiva”) em detrimento de princípios de Polity (parâmetros fundamentais do

político, consenso mínimo, direitos fundamentais, generalidade). A constituição

de 88, nesse sentido, adquire um caráter de indeterminação, permanentemente

aberta e em construção o que tornou inclusive a política brasileira um espaço

contínuo de “agenda constituinte”:

Observando-se a dinâmica política e a produção legislativa pós-1988, é possível afirmar, sem exagero, que o país permaneceu numa espécie de agenda constituinte, como se, paradoxalmente, o processo de reconstitucionalização não houvesse se encerrado. (Couto & Arantes, 2006)

O que precisamos ressaltar é que embora o processo constituinte de 88

apresente esse caráter peculiar de indefinição, abertura e constante revisão, é

possível compreendermos que talvez seja exatamente tal peculiaridade que

coloque o contexto constituinte brasileiro como mais coerente a uma noção do

democrático na contemporaneidade. Isso significa que essa “dinâmica

constituinte permanente”, apesar de ser alvo de críticas – especialmente no

sentido das dificuldades que a Carta impõe à estabilidade constitucional - pode

representar justamente um processo mais adequado para pensarmos a relação

entre o político e o democrático nas fragmentadas e conflitivas sociedades do

mundo atual. Possibilidade de pensarmos os fundamentos do político em um

contexto de aprofundamento democrático, não mais a partir da ideia de

unidade nacional, mas pela via da cidadania. Cabe nos aprofundarmos

posteriormente na questão de se a legitimidade política possa, enfim, ser

transferida da ideia de ‘soberania’ para a concepção de ‘cidadania’. O processo

constituinte de 1988 pode ser um objeto de análise rico ainda a ser mais

sistematicamente explorado.

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