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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS FACULDADE DE DIREITO DO RECIFE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO TAMYRES TAVARES DE LUCENA AÇÃO POPULAR: UMA ANÁLISE SOB OS NOVOS PRISMAS DO DIREITO PÚBLICO E DO PROCESSO COLETIVO. Dissertação de Mestrado Recife 2015

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE … · Valéria Patriota, Maíra Carvalho Mesquita, Mateus Costa Pereira, Roberto Campos Gouvêia, Hermes ... paradigmas tradicionais

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS

FACULDADE DE DIREITO DO RECIFE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

TAMYRES TAVARES DE LUCENA

AÇÃO POPULAR: UMA ANÁLISE SOB OS NOVOS PRISMAS DO DIREITO

PÚBLICO E DO PROCESSO COLETIVO.

Dissertação de Mestrado

Recife

2015

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS

FACULDADE DE DIREITO DO RECIFE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

TAMYRES TAVARES DE LUCENA

AÇÃO POPULAR: UMA ANÁLISE SOB OS NOVOS PRISMAS DO DIREITO

PÚBLICO E DO PROCESSO COLETIVO.

Dissertação de Mestrado

Recife

2015

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TAMYRES TAVARES DE LUCENA

AÇÃO POPULAR: UMA ANÁLISE SOB OS NOVOS PRISMAS DO DIREITO

PÚBLICO E DO PROCESSO COLETIVO.

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Direito do Centro de Ciências

Jurídicas/Faculdade de Direito do Recife da

Universidade Federal de Pernambuco como

requisito parcial para obtenção dotítulo de

Mestre em Direito.

Área de concentração: Jurisdição e processos

constitucionais

Linha de pesquisa: Estado,

Constitucionalização e Direitos Humanos.

Orientador: Dr. Francisco Antônio de Barros e

Silva Neto

Co-orientador: Dr. Leonardo José Ribeiro

Coutinho Berardo Carneiro da Cunha

Recife

2015

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L935a Lucena, Tamyres Tavares de

Ação popular: uma análise sob os novos prismas do direito público e do processo coletivo. – Recife: O Autor, 2014.

155 f.

Orientador: Francisco Antônio de Barros e Silva Neto.

Co-orientador: Leonardo José Ribeiro Coutinho Berardo Carneiro da Cunha

Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco. CCJ. Programa de Pós-Graduação em Direito, 2015.

Inclui bibliografia.

1. Ação popular - Brasil. 2. Processo civil - Brasil. 3. Direitos fundamentais - Brasil. 4. Direito romano - Direito moderno. 5.

Brasil. [Constituição (1988) - art. 5º, LXXIII]. 6. Controle jurisdicional de atos administrativos - Brasil. 7. Administração Pública -

Brasil - Participação do cidadão. 8. Tutela jurisdicional - Brasil. 9. Brasil. Lei nº 4.717/65. 10. Função judicial. 11. Juízes - Decisões.

12. Processo administrativo - Brasil. 13. Ação coletiva - Brasil. 14. Direito público - Direito privado. 15. Direito processual coletivo.

I. Silva Neto, Francisco Antônio de Barros e (Orientador). II. Título.

347.05CDD (22. ed.) UFPE (BSCCJ2015-015)

1. Ação popular - Brasil. 2. Processo civil - Brasil. 3. Direitos fundamentais - Brasil. 4. Direito romano - Direito moderno. 5.

Brasil. [Constituição (1988) - art. 5º, LXXIII]. 6. Controle jurisdicional de atos administrativos - Brasil. 7. Administração Pública -

Brasil - Participação do cidadão. 8. Tutela jurisdicional - Brasil. 9. Brasil. Lei nº 4.717/65. 10. Função judicial. 11. Juízes - Decisões.

12. Processo administrativo - Brasil. 13. Ação coletiva - Brasil. 14. Direito público - Direito privado. 15. Direito processual coletivo.

I. Silva Neto, Francisco Antônio de Barros e (Orientador). II. Título.

347.05CDD (22. ed.) UFPE (BSCCJ2015-015)

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TERMO DE APROVAÇÃO

Tamyres Tavares de Lucena

AÇÃO POPULAR: UMA ANÁLISE SOB OS NOVOS PRISMAS DO DIREITO

PÚBLICO E DO PROCESSO COLETIVO.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação

em Direito do Centro de Ciências Jurídicas da

Universidade Federal de Pernambuco como requisito

parcial para obtenção do grau de Mestre.

Área de concentração: Jurisdição e processos

constitucionais.

Orientador: Dr. Francisco Antônio de Barros e Silva

Neto

Co-orientador: Dr. Leonardo José Ribeiro Coutinho

Berardo Carneiro da Cunha

A Banca Examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do

primeiro, submeteu o candidato à defesa em nível de Mestrado e a julgou nos seguintes

termos:

Professor Adjunto Dr. Lúcio Grassi de Gouveia, Dr. UNICAP

Julgamento: _________________________ Assinatura: _________________________

Professor Adjunto Dr. Leonardo José Ribeiro Coutinho Berardo Carneiro da Cunha, Dr.

UFPE

Julgamento: _______________________ Assinatura:___________________________

Professor Adjunto Dr. Hermes Zaneti Júnior, Dr. UFES

Julgamento: __________________________ Assinatura: ________________________

MENÇÃO GERAL:

______________________________APROVADA____________________________

Coordenador do Curso: Prof. Dr. Cláudio Roberto Cintra Bezerra Brandão

Recife, 27 de fevereiro de 2015.

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AGRADECIMENTOS

Primeiramente, gostaria de agradecer aos meus pais, José Tavares de Farias e

Isabel Cristina de Lucena Farias, os quais sempre incentivaram minhas atividades

acadêmicas, assim como minhas queridas irmãs, Renata eAline, que sempre se

mostraram companheiras, desde meus primeiros anos de vida. Cada qual, à sua maneira,

pelo exemplo próximo, souberam despertar em mim o gosto pelo estudo, pela leitura e

pela busca do conhecimento, ao sempre estimularem meu espírito inquisidor.

À Ravi Peixoto, meu companheiro não apenas de estudo e pesquisa, mas

também de vida, que sempre me deu muita força e, com muito afeto e paciência,me

ajudou no decorrer de toda a produção desse trabalho.

Ao meu queridíssimo orientador Francisco Antônio de Barros e Silva Neto, a

quem admiro imensamente, cujos questionamentos sempre contundentes e originais

contribuíram para dar melhor consistência às minhas ideias. Agradeço também ao meu

co-orientador Leonardo José Carneiro da Cunha responsável por despertar meu interesse

pelo estudo do direito processual, ainda na graduação, nas reuniões de seu grupo de

estudo.

Todo esse trabalho também não teria sido possível sem a ajuda dos amigos

processualistas que, desde a fase do projeto até os momentos finais, contribuíram

ouvindo minhas ideias, indicando e emprestando material e, especialmente, oferecendo

críticas. Meu especial agradecimento aIvo Dantas,Lucas Buril, Diego Oliveira, Marta

Valéria Patriota, Maíra Carvalho Mesquita, Mateus Costa Pereira, Roberto Campos

Gouvêia, Hermes Zaneti Jr., Rodrigo Reis Mazzei.

Por fim, não poderia deixar de prestar homenagem aos colegas e funcionários

da PPGD-UFPE, ambiente repleto de figuras humanas incríveis, com os quais

compartilhei uma das minhas experiências mais edificantes.

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RESUMO

LUCENA, Tamyres Tavares de. Ação popular: uma análise sob os novos

prismas do direito público e do processo coletivo.2015. Dissertação (Mestrado

em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Centro de Ciências

Jurídicas / FDR, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2015.

A ação popular, como categoria jurídica, começou a ser desenvolvida no período

do direito romano, do qual a tradição jurídica ocidental é herdeira, resultado do

longo processo de recepção dos textos jurídicos antigos, iniciado na baixa Idade

Média e concluído com a cristalização de vários institutos de raiz romana nos

códigos e textos normativos da grande família jurídica romano-germânica. O

direito brasileiro não escapou a esse fenômeno, tendo as ações populares

ingressado em nosso ordenamento a partir das Ordenações portuguesas e, após

episódicas tentativas de proscrevê-las do sistema, encontra-se tal instituto

expressamente consagrado em nossa ordem constitucional, como garantia

fundamental dos cidadãos. Decerto, a ação popular que hoje figura em nosso

ordenamento não é a mesma dos tempos romanos, uma vez que a própria ideia

de ação desenvolveu-se de forma bastante singular desde o direito antigo, sendo

hoje ponto de encontro entre o direito substancial e o processo. Igualmente, a

relação entre Estado e cidadão passou por transformações que tornaram a feição

tradicional da ação popular ineficiente, exigindo a busca por possibilidades

legais de tutelas mais consentâneas com um controle mais abrangente da

Administração Pública. Enfim, as amplas construções legais e doutrinárias que

permitiram, nos últimos anos, o surgimento de um verdadeiro sistema de direito

coletivo, com regras e princípios próprios, consistiu em fenômeno que também

demandou uma revisitação da ação popular, em razão de seu amplo potencial

para tutela coletiva. O presente estudo busca, justamente, analisar a ação popular

a partir das influências que essas três grandes transformações provocaram no

estudo desse instituto legal tão antigo, quais sejam: (i) o desenvolvimento de

uma teoria da ação e a relação entre o direito material e o processo; (ii) o

controle da Administração Pública em face do renovado papel do Estado; (iii) o

surgimento de um sistema diferenciado de tutela para os direito coletivos, no

qual se encontra inserida a ação popular. Toda a análise tem por objetivo

identificar, primeiramente, como esses novos aportes teóricos e legais permitem

um exercício da ação popular mais eficiente, mas também se preocupa em

identificar os atuais limites dessa ação.

Palavras-chave: Ação Popular;Controle Judicial da Administração Pública;

Microssistema da tutela coletiva; Ação Material.

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ABSTRACT

LUCENA, Tamyres Tavares de. “Popular action”: a study under new

standards of public law and class action procedure. 2015. ou Dissertation

(Master's Degree of Law) - Programa de Pós-Graduação em Direito, Centro de

Ciências Jurídicas / FDR, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2015.

“Popular action” is a juridical category that started to be developed in the age of

RomanLaw, a juridical tradition that strongly inspired the civil law system,

specially due to the reception of several ancient texts that formed the Corpus

Iuris Civiles. The brazilian legal system is an heir of the Roman Law tradition,

having incorporated the popular action from the portuguese law. Nowadays the

popular action can be found in the Constitution after some attempts to withdraw

it from the legal system. In fact, roman popular action and the current popular

action are not the same, since the “action” as a legal category has passed through

changes over the time. The legal relationship between citizen and State and the

public law in general also suffered transformations in their theoretical basis. At

last, the Brazilian law has developed a proper class action system. All of these

novelties influenced the study of the popular action, having set new standards for

the matter. This paper intends to analyze how these new standards can improve

the popular action and also which are the new limits for its use in courts.

Keywords: popular action, class action, public law, due process.

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LISTA DE ABREVIATURAS

ADIN – Ação Direta de Inconstitucionalidade

AgRg – Agravo Regimental

CC – Código Civil

CDC – Código de Defesa do Consumidor

cf. – Confira

CR/88 – Constituição da República de 1988

CPC/1973 – Código de Processo Civil de 1973

DJ – Diário de Justiça

DJe – Diário de Justiça Eletrônico

Novo CPC – Novo Código de Processo Civil

DJ – Diário de Justiça da União

EC – Emenda à Constituição

EDcl – Embargos de Declaração

FPPC – Fórum Permanente de Processualistas Civis

j. – Julgado em

LACP – Lei da ação civil pública

LAP – Lei da ação popular

Min. – Ministro

RE – Recurso Extraordinário

Rel. – Relator

REsp – Recurso Especial

RT – Revista dos Tribunais

SAFE – Sergio Antonio Fabris Editor

STF – Supremo Tribunal Federal

STM – Superior Tribunal Militar

STJ – Superior Tribunal de Justiça

t. – Tomo

TSE – Tribunal Superior Eleitoral

TST – Tribunal Superior do Trabalho

TJ – Tribunal de Justiça

TJRS - Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

TJSP – Tribunal de Justiça de São Paulo

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 13

1. CAPÍTULO 1. ORIGENS HISTÓRICAS E EVOLUÇÃO CONCEITUAL DA AÇÃO

POPULAR ................................................................................................................................ 17

1.1 Apontamentos iniciais .................................................................................................. 17

1.2 As actiones populares no direito romano..................................................................... 17

1.3 Ação popular: transição do direito romano para o direito moderno........................ 26

1.4 Ação popular no Brasil: escorço histórico. ................................................................. 33

1.5 Conceito atual de ação popular. .................................................................................. 45

2. CAPÍTULO 2. A AÇÃO POPULAR E OS PODERES DO ESTADO:

POSSIBILIDADES DE TUTELA E FORMAS DE EXERCÍCIO. ...................................... 53

2.1 Introdução ..................................................................................................................... 53

2.2 Ação Popular e controle dos atos estatais: um novo entendimento acerca dos

paradigmas tradicionais do Direito Administrativo. ............................................................. 53

2.3 Processo judicial e processo administrativo: possíveis vias de exercício da

açãopopular. ............................................................................................................................. 63

2.4 Ação de direito material e exercício da ação popular na via administrativa. .......... 77

2.5 Ação popular material no processo judicial e no processo administrativo. ............. 90

3 CAPÍTULO 3. A AÇÃO POPULAR E O SISTEMA DE TUTELA DOS DIREITOS

COLETIVOS ............................................................................................................................ 93

3.1 Tutela dos direitos coletivos: primeiras linhas. .......................................................... 93

3.2 Class action norte-americana como marco na tutela coletiva. ................................... 95

3.3 O desenvolvimento do processo coletivo no Brasil ................................................... 110

3.4 O microssistema da tutela coletiva e a ação popular. .............................................. 119

3.5 Condicionantes no processo coletivo: peculiaridades da ação popular. ................. 129

3.6 O controle da representação adequada na ação popular ........................................ 132

CONCLUSÃO ................................................................................................................. 141

REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 144

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INTRODUÇÃO

A ação popular é apenas uma das inúmeras construções teóricas que o apurado

estilo do Direito Romano deixou de legado à tradição jurídica ocidental, em especial à

chamada família de direito romano-germânica, cujo desenvolvimento foi marcado, entre

outras circunstâncias, pelo meticuloso trabalho de recepção dos antigos textos legais que

formaram o chamado Corpus Iuris Civilis. Seja em caráter de reverência, por

motivações pragmáticas, ou ainda como base de um primoroso cientificismo, o estudo

do direito romano foi determinante para forma como a razão jurídica desenvolveu-se no

civil law, em especial no âmbito do processo civil. A porta de entrada de todo esse

contributo para a ordem legal brasileiraforam as Ordenações portuguesas, sede de onde

se extraíram as primeiras previsões de ação popular.

Ou seja, mesmo antes de se erigir um direito nacional autônomo, com fontes

jurídicas próprias, a ação popular, em tese, já se mostrava passível de ser exercida no

Brasil e, conquanto tenha sofrido algumas tentativas de proscrição do sistema, resta hoje

consagrada na Constituição de 1988, entre os direitos e garantias fundamentais (art. 5º,

LXXIII).

Em razão de sua vetusta origem, muito já se escreveu sobre a ação popular, não

sendo intenção do presente trabalho esgotar todos os pormenores envolvendo o

exercício dessa demanda. O objetivo da pesquisa empreendida consistiu em demonstrar

como oque se entende por ação popular modificou-se com o tempo, desde o início do

seu desenvolvimento no direito romano, analisando-se também como as principais

transformações no âmbito no direito público e no processo coletivo incidiram sobre a

ação popular atual, com foco na busca de uma prestação de tutela de direitos mais

efetiva.

Para tanto, divide-se o presente trabalho em três partes. Inicialmente, no

primeiro capítulo, busca-se explorar o percurso histórico traçado pela ação popular

desde o direito romano, até sua inserção no direito nacional, com o fito de demonstrar

que a evolução no conceito de ação foi determinante para definir a atual feição da ação

popular, que muito diverge da sua versão original romana. Com isso, evita-se a simples

menção ao surgimento dessa ação no direito romano, sem considerar a própria evolução

metodológica do processo civil que, seguramente, contribuiu para modificar o que antes

se entendia por ação popular e suas possibilidades de uso. Expõe-se o decurso da ação

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popular no tempo, até sua fase culminante, no Brasil, para que a partir daí se possa

estabelecer o que agora define essa espécie de demanda, pois será a respeito desta –

ação popular atual – que irá discorrer o presente trabalho nos capítulos seguintes.

No segundo capítulo, destaca-se a importante função da ação popular no

controle legal da Administração Pública, contextualizando seu estudo com as recentes

transformações no direito público, que restaram por intensificar as expectativas quanto à

atuação do Estado. A partir de uma visão renovada sobre a participação popular na

atuação da Administração Pública, vislumbram-se possibilidades de tutela mais amplas

por meio da ação popular, mesmo sem modificações no quadro legal da matéria.

A moderna noção de cidadania – posição jurídica ativa que legitima o uso da

ação popular – leva em conta que a relação Estado-indivíduo encontra-se submetida a

rígidos parâmetros legais, com o reconhecimento de liberdades individuais fora do

âmbito de interferência estatal.O controle jurídico da Administração Pública, um dos

pontos fulcrais do direito administrativo, é tradicionalmente voltado para coibir ou

combater condutas abusivas dos entes públicos, que firam indevidamente a esfera

individual de direitos dos particulares.

O agigantamento das funções do Estado, com a consagração de um rol cada

vez maior de direitos e garantias individuais e coletivas, bem como o reconhecimento da

força normativa e efetiva cogência dos direitos fundamentais, trouxeram maiores

exigências para a atuação estatal. Atualmente,permeia o direito público o ideal de que

ao Estado caberia,igualmente,o cumprimento de deveres positivos, com a concretização

de necessidades materiais dos cidadãos, de forma que a submissão do Estado ao direito

não abrangeriasomente a desconstituição de atos danosos, mas também a possibilidade

de responsabilizar juridicamente o Estado para forçar a prática de condutas em favor

dos indivíduos e da coletividade.

Essa nova perspectiva não deve ser desconsiderada no estudo da ação popular,

por ser, justamente, um dos principais meios de controle da Administração Pública.

Ocorre que o procedimento específico da ação popular (Lei nº 4.717/65)

encontra-se previsto ainda de forma muito arraigada à conformação tradicional,

porquanto apenas se dispõe expressamente acerca da possibilidade de anulação de ato,

em razão de lesividade e ilegalidade, sem tratar da hipótese de se cominar a prática de

atos, ou mesmo de prevenir condutas danosas, quando para tanto houver permissivo

legal ou constitucional. A forma como previsto pela legislação infraconstitucional o

exercício jurisdicional da ação popular acabou por influenciar o entendimento

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tradicional da matéria, bastante restritivo quanto às medidas que poderiam ser impostas

ao Poder Público por essa via.

Outrossim, o reconhecimento da processualidade administrativa abriu novas

vias para o controle do patrimônio público, sem a necessidade de sempre se provocar o

Judiciário para interferir nas escolhas administrativas.

Entende-se ser possível introduzir o exercício da ação popular sob essas novas

perspectivas do direito público. Para tanto, toma-se a ação em seu sentido material, de

forma que os provimentos consistentes em declarar, constituir, condenar, mandar e

executarpossam ser obtidos tanto na via jurisdicional, como no processo administrativo.

Apartando-se a ação popular em sua acepção substancial, do seu procedimento

específico, lançam-se novas luzes sobre os requisitos de forma que poderiam ser

exigidos para o exercício dessa demanda.

No terceiro capítulo,trata-se de contextualizar o estudo da ação popular em face

do desenvolvimento de um sistema de tutela coletiva no Brasil, com regras e princípios

próprios, fundados em lógica diversa daquela que orienta o processo tradicional, voltado

para a solução de litígios individuais.

A ação popular sempre ocupou posição singular em nosso ordenamento, por

permitir a defesa de bens de titularidade difusa. Nas últimas décadas, contudo, formou-

se um amplo quadro legal de medidas que propiciaram formas diversas de tutela

coletiva, debruçando-se a doutrina sobre as especificidades desse novo ramo do direito

processual.

O incremento e a valorização do processo coletivo no Brasil acompanharam o

desenvolvimento de uma sociedade cujas relações passaram a ser marcadas pela

massificação, em que de um mesmo evento ou conduta poderiam partir efeitos danosos

para toda a coletividade. Os limites entre o que seria direito público e direito privado

também se tornaram menos nítidos, notadamente em virtude da consagração de direitos

sociais, circunstância que também influenciou no desenvolvimento do processo

coletivo, ao tornar questionáveis os cânones do processo individual, os quais se

baseavam em tal distinção rígida, além de problematizar a própria aptidão do processo

civil clássico para resolução das recentes formas de litígio, de caráter coletivizado.

Para lidar com essas novas situações jurídicas, muito se buscou no quanto

desenvolvido pelo direito norte-americano em relação à class action, a qual permite o

julgamento de causas com repercussão coletiva, de diferentes espécies. O direito

brasileiro não fugiu dessa tendência de exame e busca de inspiração no processo

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coletivo estadunidense – vertente de estudo com grandes expoentes no direito italiano –

razão pela qual se tratou de apresentar o regime básico das ações de classe, como

parâmetro de comparação com o sistema brasileiro de tutela coletiva, a fim de se

verificar possíveis interações e contribuições entre os dois sistemas, no que concerne

especialmente ao exercício da ação popular.

Outro ponto de análise é a chamada teoria do microssistema da tutela coletiva,

em face da qual os aspectos peculiares do processo coletivo ganham relevância, em

especial o caráter intercambiante das normas contidas nos diversos diplomas legais

voltados à regular a defesa em juízo dos direitos e interesses metaindividuais. Muito

embora, atualmente, já conste em nosso ordenamento diversos diplomas legais

relacionados à tutela coletiva, a ação popular, certamente, consubstancia-se como uma

das principais ações que compõem esse microssistema, sendo o seu regramento

específico (Lei nº 4.717/65) ponto de referência para as demais leis que tratam do

direito coletivo.

Conquanto se possa encontrar na jurisprudência do Superior Tribunal de

Justiça, assim como na própria doutrina especializada, juízos favoráveis à adoção dessa

teoria, ainda se mostra pendente de maior amadurecimento a posição quanto aos limites

ao intercâmbio de normas dentro do microssistema, problemática objeto de análise, em

razão de repercutirdiretamente no estudo das balizas ao exercício da ação popular.

O juízo quanto aos requisitos de admissibilidade e exercício regular da ação na

tutela coletiva também se mostra dotado de especificidades, merecendo destaque o

chamado controle da representatividade adequada, uma das principais contribuições do

regime de class action ao estudo da tutela coletiva. A possível recepção desse instituto é

objeto de análise, em especial o quanto o exame judicial da representatividade poderia

auxiliar no controle de um potencial mau uso da ação popular, ou ainda na superação de

exigências formais inadequadas em face da defesa de bens difusos de maior relevância,

como o meio ambiente.

Enfim, ao se analisar a ação popular perante o contexto do processo coletivo,

procura-se destrinchar não apenas as vias para um maior alcance dos seus provimentos,

mas também os limites que os fundamentos da tutela coletiva impõem ao exercício

dessa ação.

Em vista de tudo quanto já se escreveu a respeito da ação popular, o presente

trabalho objetiva explorar questões não tão óbvias no trato da matéria, tentando conferir

mais vigor ao estudo dessa demanda e do seu procedimento específico.

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1. CAPÍTULO I.ORIGENS HISTÓRICAS E EVOLUÇÃO CONCEITUAL DA

AÇÃO POPULAR

1.1 Apontamentos iniciais

Ao se tratar da ação popular, comumente se aponta para as suas origens

históricas no direito romano, não obstante as relevantes particularidades de seu sistema

de ações. É importante fazer menção não apenas a esse período civilizatório, mas

também às fases históricas subsequentes no estudo da ação popular, visto que, desse

modo, se torna possível destacar as características que definem e singularizam esse

instrumento, assim como a relação entre sua previsão e efetividade no sistema jurídico e

a forma como se organiza o Estado.

Como se tentará demonstrar, a ação popular é um gênero, sendo necessário ter-

se em conta suas características básicas, para que assim seja possível identificar suas

diferentes espécies, presentes no ordenamento.

A evolução histórica da ação popular no Brasil, em particular, resultou em uma

maior aceitação desse instrumento, pelo menos no plano teórico, circunstância

demonstrada pela ampla consagração de hipóteses legais de ação popular atualmente em

nosso ordenamento.

1.2 As actiones populares no direito romano.

O estudo do direito romano debruça-se sobre a análise do conjunto de normas

ou textos jurídicos que vigoraram no mundo romano desde a fundação de Roma (735

a.C., segundo a tradição) até 565 (ano da morte do imperador do Oriente, Justiniano), 1

período de catorze séculos, marcado por sucessivas fases (arcaica, clássica, pós-clássica,

justinianeia), com profundas e inevitáveis alterações cada qual, para corresponder às

contínuas transformações sociais dessa época histórica. 2

1 Faz-se necessária essa delimitação conceitual, eis que a expressão “direito romano” pode também

denotar várias noções diferentes, como a tradição romanista ou o direito da civilização ocidental, ou

ainda o direito romano organizado como direito em vigor pelos juristas alemães do século XX

(pandectistas). CORREIA, Alexandre; SCIASCIA, Gaetano. Manual de direito romano. 6ª Ed. São

Paulo: RT, 1988. p. 15. 2 JUSTO, Santos A. Direito Privado Romano – I: parte geral. 4ª Ed. Coimbra: Ed. Coimbra, 2008. p.

17-18.

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18

Não obstante tais marcos evolutivos, a força datradição era uma das

características distintivas do direito romano e do seu povo. O desenvolvimento das

instituições jurídicas era lento, prudente e conservador. Ao lado de regras jurídicas

novas e adaptadas às exigências do momento, permaneciam as normas antigas e

raramente o direito anterior era derrogado. Dessa tendência de continuidade e devoção

ao passado não escapou o processo civil, a sucessão de um sistema para o outro (legis

actiones, agere per formulas, cognitio extra ordinem) deu-se de modo lento e gradual,

chegando alguns desses a coexistirem. 3

Ensina o romanista português Santos Justo que “a história do processo civil

romano é marcada pela progressiva penetração do elemento publicístico na esfera dos

interesses privados”, dividindo-se em dois períodos: (i) o sistema do ordo iudiciorum

privatorum (iudicia privata), em que a Administração da Justiça ainda não é totalmente

assumida pelo Estado e se limita a excluir a arcaica justiça privada, apenas

disciplinando a defesa do direito substancialmente privado; (ii) e o sistema da cognitio

extra ordinem, o qual gradualmente acabou por suplantar o ordo iudiciorum privatorum,

tornando-se, da época pós-clássica em diante, o único sistema processual. 4

O ordo iudiciorum privatorum se manifestou nas duas fases iniciais do

processo romano: legis actiones e per formulas, com maior vigor ao tempo do direito

clássico. A instância se dividia em duas etapas sucessivas, uma chamada in iure

(desenvolvia-se perante o magistrado, o qual organizava e fixava os termos da

controvérsia) e a outra denominava-se apud iudicem (comandada pelo iudex, que era um

particular, ou um colegiado de particulares, e não um funcionário do Estado). 5

No sistema da cognitio extra ordinem a instância não mais se dividia em dois

momentos, desenrolando-se inteiramente diante de um juiz vinculado à organização

política romana. O processo tornou-se todo “estatal”, desenvolvendo-se completamente

perante o magistrado, cuja decisão não mais correspondia a um parecer jurídico

(sententia) de um iudex, simples cidadão autorizado pelo poder romano, mas sim a “um

comando vinculante próprio de um órgão estatal”. Nesse regime, a sentença deixa de ser

um ato exclusivo do cidadão, perdendo seu caráter arbitral, para exprimir a autoridade

da força soberana de Roma. 6

3 JUSTO, Santos A. Op. Cit. p. 22-23.

4 JUSTO, Santos A. Op. Cit. p. 265-266.

5 ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. Vol. I. 13ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 184. 6 TUCCI, José Rogério Cruz e. Jurisdição e poder. São Paulo: Saraiva, 1987. p. 28-29.

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19

Comparando a iurisdictio do período clássico com a desenvolvida ao tempo da

cognitio extra ordinem, Ovídio Baptista da Silva afirma que naquela “a ciência jurídica

romana é criada pelos juristas, não pelos magistrados, naturalmente sem qualquer

caráter coercitivo”. O caráter privado também a distinguiria da jurisdição do período em

que predominava a cognitia extra ordinem, mas alerta o processualista que o qualitativo

“privado” aí não se opõe a público, mas sim a “estatal”. 7 Em suas palavras:

A iusdictio do direito clássico era tão pública, como autêntica expressão do

imperium, quanto poderá sê-lo a jurisdição moderna. Ela não era estatal,

como hoje, como uma expressão da soberania do Estado romano, mas era

pública tanto quanto a nossa. 8

De fato, em que pese conter parcela de arbitramento privado, a justiça ofertada

nas primeiras fases do processo romano (legis actiones, agere per formulas) já

ostentava uma vertente publicística. Aponta Othon Sidou, como elementos que denotam

desde o início a vocação publicística do procedimento romano, o respeito à autoridade

da coisa julgada, a fiscalização dos aspectos formalísticos e o impedimento da

autodefesa no sistema das legis actiones; bem como, posteriormente, o

desenvolvimento do Direito honorário, com o uso dos interditos, que permitiam maior

grau de interferência “estatal” nas relações privadas. 9

A jurisdição do período clássico e aquela praticada nos estágios finais do

direito romano ainda se distinguem pela pluralidade de fontes na primeira (lei,

senatusconsulto, constituições imperiais, respostas dos prudentes, de acordo com Gaio),

ao passo que, no período justinianeu, a lei tornou-se fonte exclusiva e o Imperador, seu

único intérprete. Explica Ovídio Baptista que essa multiplicidade de fontes determinava

o caráter criativo da jurisprudência no direito clássico, com uma discricionariedade

inerente. 10

No último grande período de transformações romanas, com o advento do poder

imperial, bastante sufocada restou a vontade popular na feitura das leis, que agora não

seriam mais que o reflexo da vontade dos imperadores. O avançado estágio da tradição

cultural romana deu ensejo a um processo de compilação dessas leis, inicialmente

elaborada em caráter privado por jurisconsultos do Oriente (Codex Theodosiano),

culminando com a codificação do direito romano em sua totalidade, na terceira década

7 SILVA, Ovídio Baptista da.Jurisdição, direito material e processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008.

264-265. 8 SILVA, Ovídio Baptista. Op. Cit. p. 286.

9 SIDOU, J. M. Othon.A vocação publicística do direito romano. Recife: Ed. Câmbio, 1955. p. 136-

137. 10

SILVA, Ovídio Baptista. Op. Cit. p. 285.

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20

do século VI, pelo imperador Justiniano. O conjunto de todo esse trabalho (Digesto,

Código, Institutas, Novellae Legis) consubstancia o que, na Idade Média, os glosadores

denominaram Corpus Juris Civilis. 11

Essa extensa construção jurídica, que culminou em um verdadeiro monumento

legal deixado de herança pela cultura romana, se singulariza, notadamente, pela forma

de exercício e proteção de direitos por força das ações.

É bem conhecida a definição de actio atribuída a Celso: Nihil aliud est actio

quam ius quob sibi debeatur, iudicio persequendi (“ação nada mais é do que perseguir

em juízo aquilo que lhe é devido”, D. 44.7.51), havendo autores como Giuseppe

Provera, que extrai dessa máxima uma relação de identidade entre a actio e o ius no

direito romano, como duas faces de uma mesma moeda. Essa definição de Celso, que

remete aos primórdios da experiência jurídica romana, teria mantido sua força mesmo

no período justinianeu, sendo “o centro de um sistema no qual o direito subjetivo

identifica-se com o poder próprio de quem é dele titular para agir em juízo”. 12

Esse sistema de exercício e proteção de direitos em razão da actio decorreu de

um gradual processo de limitação da justiça de mão própria. A ampla defesa privada dos

direitos subjetivos (autotutela), primitivamente admitida, vai aos poucos sofrendo

restrições. Conquanto não seja possível determinar o tempo e nem precisar a forma

exata pela qual essa punição particular foi sendo substituída pela justiça pública, já na

Lei das XII Tábuas encontravam-se ordenações processuais, para que a atuação de um

magistrado atenuasse a vingança privada, impondo a celebração de pactos e aplicando

multas, entre outras medidas. Com as progressivas limitações ao uso da força privada no

decorrer dos anos, a justiça administrada pela autoridade pública restou triunfante,

ficando a justiça exclusivamente particular restrita a casos excepcionais. 13

Nesse contexto de administração pública da justiça é que se pode falar da actio

como principal meio de defesa de direitos no sistema romano privado. A realização dos

poderes e faculdades decorrentes de um direito subjetivo não ficava mais

exclusivamente dependente da colaboração da outra parte da relação, nem totalmente

sujeita ao precário recurso da força dos próprios interessados.

11

SIDOU, Othon J. M.. Op. Cit. p. 143-144. 12

PROVERA, Giuseppe. A noção romana de actio. Seminários de direito romano na Universidade

de Brasília: realizados em 1981 e 1982. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1984. p. 55-58. 13

Exemplificam essa tendência a lex Iulia de vi publica et privada, no Principado, que punia o credor

que usasse a violência para obter o pagamento do devedor, com sanções que incluíam até a perda do

direito de crédito; o Decretum, de Marco Aurélio, em que se ampliou o conceito de violência não

apenas para abranger o ato de ferir pessoa, mas também a obtenção de um res devida, sem se socorrer

da actio, entre outros exemplos (JUSTO, Santos A. Op. Cit. p. 234-236).

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21

É comum entre os estudiosos da matéria se dizer que o direito romano era antes

um sistema de ações do que um sistema de direitos subjetivos. Essa inferência decorre

da circunstância de que, notadamente na fase do direito clássico, a evolução dos

institutos do direito romano se fez principalmente pela atuação do pretor no processo. 14

A estreita ligação entre o ius (direito subjetivo) e a actio era evidente, eis que os juristas

e os pretores não determinavam as hipóteses em que um direito existia, mas os casos em

que havia actiones. Com a criação e incremento dos meios processuais surgiam novos

institutos jurídicos, de forma que não se mostra possível o conhecimento do direito

privado romano, sem o estudo do processo civil romano. 15

A actio romana seria, afinal, “um meio que protege um direito subjectivo pré-

existente reconhecido pelo ordenamento jurídico (normalmente o ius civile) ou uma

situação de facto que o magistrado considerou merecedora de protecção jurídica” 16

(actio praetoria). 17

Na maioria dos casos, os direitos (iura) derivam de actiones,

consideradas típicas, pois para cada direito corresponderia uma ação própria, razão pela

qual o número dessas ações cresceu com o gradual reconhecimento de novas relações

jurídicas. 18

Ao lado das ações, dá-nos notícia Gaio também acerca dos interditos

(Instituições, IV, 138 ss.) meio pelo qual, em certas situações, o Pretor poderia desde já

impor sua autoridade, para por fim a determinadas contendas, em especial referentes à

posse e quase-posse. Consistia em uma ordem emitida pelo magistrado, baseada em

cognição sumária dos fatos, de um fazer ou não fazer, cujas fórmulas eram reunidas no

Edito, periodicamente publicado.

14

ALVES, José Carlos Moreira. Op. Cit. p. 182. 15

CHAMOUN, Ebert. Instituições de Direito Romano. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1977. p. 111-

112. 16

JUSTO, Santos A. Op. Cit. p. 237. 17

Ao lado do ius civile e suas respectivas ações (sistema de caráter rígido e formal, cujas fontes são as

leis, os plebiscitos, os senatusconsultos, as constituições imperiais e os costumes), também havia o

sistema formado pelo direito pretoriano (ius praetorium), de suma importância no período clássico, o

qual teria decorrido da necessidade, com o passar dos anos, da criação de instrumentos processuais

capazes de reparar eventuais iniquidades, provenientes da estrita observância das normas do ius civile,

ou até mesmo para preencher as lacunas deste. Em razão da demora dos resultados práticos no ordo

iudiciorum privatorum, dividido em duas instâncias, os magistrados (pretores investidos de

jurisdição), buscando equidade, foram criando diversos institutos processuais para agilizar a tutela de

direitos, fundados em seu poder de império. Esse poder discricionário dos magistrados era balizado

pelos editos (programa publicado pelo magistrado antes de iniciar seu ofício, e que continha as

circunstâncias em que outorgaria ou denegaria o iudicium) os quais deram ensejo a um complexo de

normas (ius honorarium) posteriormente codificado sob o reinado do imperador Adriano (Edictum

Perpetuum) (PAIM, Gustavo Bohrer. Breves Notas sobre o Processo Civil Romano. Revista jurídica

(Porto Alegre. 1953), v. 405, 2011, p. 25-28).

18 JUSTO, Santos A. Op. Cit. p. 237.

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22

Com o advento do Código justinianeu, contudo, os interditos foram

equiparados às ações e adaptados ao procedimento da cognitio extra ordinem. 19

A circunstância de as ações nesse período serem particularizadas, plúrimas e,

em grande medida, a principal forma de revelação do direito subjetivo, já demonstra o

quanto a actio romana se distingue do moderno conceito genérico de ação, apropriado

pelo direito processual. 20

À evidência, as actiones populares não escapam a esse

panorama geral do direito romano, sendo também típicas e de progressivo aumento

numérico, com o decorrer das fases históricas.

A actio popular, como especial categoria de ação no direito romano, se

contrapõe à actio privada, classe de ação outorgada a particulares para defesa de direitos

subjetivos ou situações de fato, só podendo ser instaurada pela pessoa lesada. A actio

popular, por outro lado, poderia ser atribuída a qualquer cidadão, para proteção de

interesses não meramente particulares, mas públicos. 21

Essa legitimação ativa conferida a qualquer cidadão não diferenciava classes,

variando, contudo, a terminologia utilizada nas diferentes fontes, fazendo-se referência

ora a cada indivíduo do povo (cuivis e populo/ cuilibet ex populo), ora aos cidadãos em

geral (mones cives), ou ainda àquele de uma determinada colônia ou município

(colonorum eius coloniaecui volet/ municipum eius municipii cui volet, cuique per hanc

legem licebit). A actio popularis seria, afinal, aquela ação conferida a qualquer cidadão

como um do populus (base política romana). 22

O Digesto, repositório de pareceres dos jurisconsultos, contém um título todo

dedicado às chamadas popularibus actionibus (título XXIII, Livro 47), a partir dos

ensinamentos de Paulo e Ulpiano, no qual as ações populares são definidas como

aquelas que amparam direito próprio do povo (Eam popularem actionem dicimus, quae

suum ius populi tuetur). Peculiaridades do procedimento da ação popular ainda são

objeto de comentários nesse título, como a possibilidade de se opor exceção de coisa

19 PAIM, Gustavo Bohrer. Op. Cit. p. 28-31. 20

Cintra, Dinamarco e Grinover atestam ser a conquista definitiva da ciência processual o

reconhecimento da autonomia do direito de ação, a qual teria se desprendido por completo do direito

subjetivo material. Dizem ainda que, para a doutrina dominante no Brasil, a ação seria um direito

subjetivo público, dirigido contra o Estado, de natureza abstrata, mas conexo a uma situação jurídica

concreta (CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO,

Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 24ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 273-274). O

termo “ação”, no entanto, é rico em significados, sendo esta definição da ação como um direito

abstrato e desgarrado do direito material apenas uma das diversas concepções de ação. É certo,

contudo, que essa noção foi cunhada pelo direito moderno, sendo desconhecida no período romano. 21

JUSTO, Santos A. Op. Cit. p. 258. 22

FADDA, Carlo. L’azione popolari: studio di diritto romano ed attuale.Torino: Unione

Tipografico-Editrice, 1894.p. 56-58.

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23

julgada; a impossibilidade de o demandante nomear procurador, critérios para quando

tal espécie de ação fosse exercida por muitos ao mesmo tempo (o Pretor escolheria o

mais idôneo, ou aquele que tivesse interesse na causa), entre outras medidas.

Além de tais disposições procedimentais genéricas, ainda é possível se

identificar no Digesto descrições diversas de ações e interditos de caráter popular, entre

os quais se destacam: (a) actio sepulchri violati (D. 47.12), ação concedida contra quem

dolosamente violasse sepulcro, a qual poderia ser exercitada por quem pertencesse a

coisa ou por qualquer um que quisesse exercê-la; (b) determino moto (D. 47.21.3),

contra os que removessem dolosamente marcos colocados para assinalar limites

agrários, punindo com multa em favor do erário por cada pedra removida; (c) actio de

effusis et deiectis (D. 9.3) contra aqueles que lançassem ou derramassem coisas sobre

transeuntes, seja em lugares públicos ou privados, por ser de utilidade pública que se

ande pelos caminhos sem medo e sem perigo; (d) actio de albo corrupto (D. 2.1.7)

impunha-se multa a quem dolosamente alterasse o edito do pretor (e) de locis et

itineribus publicis (D. 43.7), permite-se a qualquer um exigir respeito pelas coisas

públicas, de uso de todos, como caminhos e vias públicas, concedendo-se o respectivo

interdito; (f) ne quid in loco publico vel itinere fiat (D. 43.8), interdito proibitório para

que não se edifique em lugar público, além de vários outros casos. 23

Conquanto cada um dos exemplos citados regulasse situações bem específicas,

é notório que tais ações populares acobertavam interesses que transcendiam a esfera de

individualidade dos cidadãos, envolvendo questões referentes ao patrimônio comum, à

fé e à ordem públicas, como bem explica Othon Sidou:

É que em Roma, emparelhando os crimes e os delitos, havia ilícitos que, sem

constituírem ofensa enorme à sociedade ou ao indivíduo, isto é, nem tão

amplos que vulnerassem o Estado lato sensu nem tão restritos que se

circunscrevessem ao indivíduo, eram entretanto ofensivos à sociedade inteira

ou a uma coletividade determinada e contra os quais se concediam ações a

quem as quisesse intentar. 24

Ainda assim, esclarece o jurista que tais ações populares, apesar de serem

também chamadas de públicas, seriam na verdade privadas em sentido hodierno. O

23 Além dos citados exemplos extraídos do Digesto, Othon Sidou ainda identifica diversos outros casos

de ações populares romanas fundadas na lei, no edito do Pretor e ainda certos casos não identificados

em lei ou edito, como as ações contra os que depositassem imundícies, depusessem cadáveres ou

realizassem sacrifício funerário no bosque sagrado de Lucéria (Inscrição de Lucéria, do ano 254 ou

240 a.C.), ou contra aqueles que mantivessem animais nocivos nos caminhos públicos (D. 21.1.42,1).

SIDOU, J. M. Othon. “Habeas corpus”, mandado de segurança, ação popular: as garantias ativas

dos direitos coletivos. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983.. p. 392-393. 24

SIDOU, J. M. Othon. “Habeas corpus”, mandado de segurança, ação popular... p. 386.

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24

qualificativo “público” atribuído denotaria, justamente, a ideia de “pertencimento a

todos, de uso geral, comum a todos”, e não como ação de incumbência do Estado. 25

Ademais, a actio era um instituto próprio do ordo iudiciorum privatorum, juízo voltado

ao arbitramento de questões de direito privado.

Esclarece Othon Sidou que “o conjunto de normas estabelecidas para

regularizar a atuação dos princípios jurídicos reservados ao Estado, ou a ordo

iudiciorum publicorum, não se exercitava mediante actiones sim de questiones”, sendo

objeto dos iudicia publica os delitos considerados crimen, como homicídio, falsificação,

peculato, rapto etc. Os delitos e ofensas em geral que não se consideravam crimen,

cabiam ao iudicia privada, situação em que se enquadravam os casos de actio popular.

26

Essa distinção é importante, visto que os romanistas classificam a maior parte

das actiones populares como ações do tipo penal, mas que nada tem a ver com o

procedimento criminal. 27

As chamadas ações penais, no direito romano, eram aquelas

que se contrapunham às do tipo reipersecutórias. As ações penais seriam as que

decorrem de um delito, visando à condenação do réu a uma quantia, a título de pena

privada; já as reipersecutórias seriam as que possibilitam ao autor o ressarcimento de

um dano, ou a restituição daquilo com que o réu indevidamente se enriqueceu. 28

As

ações reipersecutórias reivindicariam uma res, ao passo que as penais, reclamariam uma

poena, sendo esta “pena” a quantia em dinheiro que se exige ao autor de um delito, ou

quase delito, independentemente de um possível dano patrimonial causado. 29

A actio popular romana era, enfim, uma categoria do direito privado, em que

pese configurar forma de o cidadão interferir em questões que vão além da sua esfera de

interesses meramente individuais. Demonstra o vínculo do cidadão romano com as

coisas públicas, que permaneceu mesmo com a superação da organização gentílica.

Rodolfo de Camargo Mancuso comenta que o fato de a noção de “Estado”

ainda não se encontrar bem definida em tal período histórico explicaria essa forte

ligação entre o cidadão e a gens, permitindo ao indivíduobuscar a tutela dos bens

coletivos. Defende que a atávica noção de “povo” e “nação” compensaria a falta de um

“Estado” bem definido e estruturado; a res publica pertenceria a cada um dos cidadãos

25

SIDOU, J. M. Othon. “Habeas corpus”, mandado de segurança, ação popular...p. 389. 26

SIDOU, J. M. Othon. “Habeas corpus”, mandado de segurança, ação popular...p. 387-388. 27

SIDOU, J. M. Othon. “Habeas corpus”, mandado de segurança, ação popular...p. 387. 28

ALVES, José Carlos Moreira. Op. Cit. p. 233. 29

JUSTO, A. Santos. Op. Cit. p. 244-245.

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25

romanos, sentimento que permitiria compreender a legitimidade do cives a pleitear em

juízo, em nome dessa universitas pro indiviso. 30

De fato, o Estado é espécie de organização política, elemento histórico e

cultural que apenas se pode identificar a partir da Idade Moderna. Até esse momento as

estruturas de governo assumiram outras modalidades, sendo imprecisa a expressão

Estado romano, bastanteutilizada por romanistas e ensaístas do século XIX (e ainda

hoje encontrada), por tentar transpor indevidamente para o mundo romano conceitos

como divisão de poderes, sociedade e Estado que não existiam em tal período histórico.

31 Quando se fala em “Estado” romano, na verdade, faz-se referência ao poder político

desse período, organizado de forma bastante peculiar.

Analisando essas particularidades do poder público em Roma, Georg Jellinek

destaca a noção de civitas, ou “comunidade de cidadãos”, ou ainda de res publica,

“comunidade do povo”, como concepções que definem a organização política romana, a

partir da compreensão de seus próprios membros. 32

A natureza jurídica da cidadania encontrou em Roma amplo desenvolvimento,

até mesmo porque a personalidade jurídica individual, independente de um poder

político, somente se reconhecia em plenitude quando se tratava de um cidadão. Não se

reconhecia a personalidade ao homem como tal, nem mesmo com o advento do

cristianismo. 33

As ações populares desenvolvidas nesse período reafirmam, portanto,

essa grande significância do cidadão na organização social romana, bem como o estreito

vínculo desse sujeito com as coisas públicas.

Essa ausência de uma noção de Estado como ente personalizado e dotado de

responsabilidades legais, típica do Estado de Direito moderno, é um dado relevante

também para se compreender o alcance das ações populares romanas, no que concerne

ao sujeito em face do qual tais medidas se destinam.

Compulsando fontes dessa época histórica, Rui Barbosa conclui que não havia

no direito processual de Roma, ação contra o “Estado”, fosse por dano dele oriundo aos

particulares, fosse por débito de qualquer outra natureza. Isso porque a soberania da

força política romana não tolerava limites, aos atos abusivos cometidos pelos órgãos do

soberano falecia o caráter essencial ao dano jurídico: a injúria (lesão do direito), já que

30

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação Popular. 7ª Ed. São Paulo: RT, 2011. p. 47. 31

DANTAS, Ivo. Teoria do Estado Contemporâneo. 2ª Ed. São Paulo: RT, 2013. p. 58-59. 32

JELLINEK, Georg. Teoría General del Estado. México: FCE, 2000. p. 303. 33

Ressalta Jellinek, no entanto, que no Principado e no Império houve uma redução dos direitos

públicos, a tal ponto que o caráter de cidadão limitou-se quase que exclusivamente a sua capacidade

de direito privado(JELLINEK, Georg. Op. Cit. p. 305-306).

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o direito não poderia ser ferido por quem, como lei viva, o criava. A ausência de divisão

do poder político em poderes distintos e independentes seria outra razão para essa

irresponsabilidade “estatal”; o poder judiciário, executivo e legislativo fundiam-se

todos nas mãos do soberano, superior a toda lei, no estágio culminante da experiência

política romana. Logo, não poderia haver ação contra o “Estado”, ou seja, contra o

príncipe, encarnação viva e absoluta da soberania. 34

As ações populares romanas, certamente, não escapavam a essa conjuntura. Os

exemplos citados já demonstram que, se por um lado o exercício da ação era conferido a

qualquer cidadão, por outro, o demandado também seria um indivíduo, eventual

violador do interesse comum protegido, e não uma entidade coletiva de caráter público.

Não há qualquer menção à possibilidade de se intentar ação popular contra a própria

Roma nas disposições gerais contidas no Digesto (47.23), pelo contrário, pois as ordens

ali referentes aos demandados tratam sobre questões como a autorização para nomear

procurador (47.23.5), bem como acerca da intransmissibilidade aos herdeiros em caso

de morte do réu (47.23.8), situações próprias de um sujeito passivo particular.

Em vista de todas as características expostas, pode-se entender que a actio

popular se distinguia por (i) resguardar interesses comuns, de natureza transindividual,

mas cuja violação não configurava crime; (ii) ser conferida a qualquer cidadão, membro

constitutivo da organização política romana, estreitamente vinculado às coisas públicas;

(iii) não possibilitar, no entanto, a sujeição do poder soberano de Roma a medidas

legais, sendo exercida em face de outro sujeito particular.

1.3 Ação popular: transição do direito romano para o direito moderno.

Toda construção jurídica que respaldava a aplicação das ações populares

perdeu força com a fratura do império de Roma e a respectiva quebra do vínculo entre

cidadão e bens públicos, que justificava a tutela diferenciada da actio popular romana.

Até mesmo porque as relações de poder e as forças políticas no período medieval

modificaram-se drasticamente, tornando-se mais difusas, desestimulando o exercício de

direitos e interesses públicos.

34 Rui Barbosa ainda expõe que a tal ponto chegava entre os romanos a irresponsabilidade do “Estado”,

que até em matéria de desapropriação por utilidade pública, não havia princípio legal que refreasse o

arbítrio do soberano (BARBOSA, Rui. Responsabilidade civil do Estado por ato dos seus

representantes – razões pelas quais o Direito Romano não a consagra. Revista dos Tribunais, ano

101, vol. 916, fevereiro/2012, p. 65-66).

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Não obstante a conjuntura do período medievo ter levado a esse

enfraquecimento, as ações populares não desapareceram de todo. Nesse ponto defende

Othon Sidou que “do mesmo modo como a moeda escasseou no longo transcurso da

Idade Média sem contudo ter deixado de circular, assim também as ações populares, de

bem reduzida força operativa embora, permaneceram a ter existência e aplicação.”

Exemplos desse exercício pontual da ação popular no direito intermédio encontram-se

no regime estatutário de repúblicas ou reinos mediterrâneos, ainda que de forma bem

simplificada. 35

Estatutos de Milão, Lodi, Brescia, Bérgamo, Navarro continham fórmulas

nesse sentido, cada qual impondo suas exigências ao autor popular (fiança, juramento,

prova testemunhal, ou nada se autor fosse digno de fé), havendo ainda acréscimos de

novas figuras que autorizavam o exercício dessa ação, como as práticas ou atos

atentatórios à segurança, à saúde, ao trânsito público, as fraudes no comércio e as

defraudações nos sistemas de pesos e medidas. 36

A demanda popular na Idade Média foi ainda objeto de estudo do

enciclopedista Tomaso Bruno, o qual deduziu que “onde o regime político assume

caráter de absolutismo e de despotismo, a ação popular primitiva, aquela que convoca

qualquer um a participar na tutela da coisa pública, não podia surgir”, sendo encontrada

nos regimes comunais. Afirma ainda que “até quando e até onde o direito romano

manteve sua poderosa influência e foi aplicado como direito comum, essa ação foi

observada e adotada compativelmente com os regulamentos políticos dos Estados e das

cidades, em que o direito mesmo se impôs”. 37

A tímida presença da ação popular no direito medieval, portanto, esteve ligada

não apenas a uma organização política que permitisse ao cidadão participar no cuidado

com a coisa pública, mas também se mostrou resistente onde o direito romano manteve

sua influência.

Ainda que o interesse teórico e prático pelas coletâneas do Corpus Iuris Civilis

tenha sido retomado com maior vigor a partir do século XI, na Itália, o direito romano

justinianeu nunca deixou em absoluto de ser estudado e aplicado. Nos primeiros séculos

medievais essas fontes não alcançaram divulgação notória ou alcance efetivo, mas já

eram conhecidas, sendo conservadas e até analisadas nos centros de cultura eclesiástica.

35

SIDOU, J. M. Othon. “Habeas corpus”, mandado de segurança, ação popular...p. 405. 36

SIDOU, J. M. Othon. “Habeas corpus”, mandado de segurança, ação popular...p. 405. 37

BRUNO, Tomaso apud SILVA, José Afonso da. Ação popular constitucional. 2ª Ed. São Paulo:

Malheiros, 2007. p. 29.

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28

O fenômeno que ficou conhecido como renascimento do direito romano designa,

justamente, um decisivo interesse no estudo das fontes justinianéias, em contraste com a

difusão modesta ou indiferente do direito romano até o século XI, movimento que nos

dizeres de Almeida Costa representa o “ponto de partida de uma evolução longa e

diversificada que conduziria à ciência jurídica moderna”. 38

Esse longo processo de redescobrimentoe recepção do direito romano

justinianeu, que moldou o direito privado de vários países do ocidente, entre outros

fatores, possibilitou de forma determinante a consagração da ação popular nos

ordenamentos modernos, em especial o brasileiro.

O chamado renascimento do direito romano representou, essencialmente, uma

revalorização científica desse direito, não apenas uma mera retomada prática, ou

tampouco simples recuperação dos textos perdidos, 39

dando azo ao sucessivo processo

de recepção, composto por diferentes etapas. Marcam esse longo desenvolvimento

histórico (i) a fase de recepção realizada pelas universidades medievais, a partir de

Bolonha; (ii) a fase da recepção humanista, notadamente na França e, enfim, (iii) a

recepção pandectística, na Alemanha do século XIX. 40

Cada qual dessas etapas de recepção representa uma nova forma de

comunicação e aprendizagem do direito romano, não obstante as fontes jurídicas

romanas permanecessem as mesmas. 41

A escola dos glosadores, a partir da universidade de Bolonha, em meados do

século XII, inaugurou o trabalho de revalorização do direito romano, ao tomar textos do

Corpus Iuris Civilis como objeto de estudo.

O método de análise consistia, fundamentalmente, na inserção de glosas ao

lado ou entre as linhas do texto original, além da elaboração de summae, que se

38

COSTA, Mário Júlio de Almeida. História do direito português. 4ª Ed. Coimbra: Almedina, 2009. p.

230-231. 39

KEMMERICH, Clóvis Juarez. O direito processual na idade média. Porto Alegre: SAFE, 2006. p.

88. 40 Explica Menezes Cordeiro que, na recepção, verifica-se que uma comunidade, independente de

qualquer dominação política, econômica ou social, adota elementos jurídicos significativos de outra,

presente ou passada. (CORDEIRO, Menezes A. Prefácio. In: CANARIS, Claus-Wilhelm.

Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 4ª Ed.Lisboa: Calouste

Gulbenkian, 2008. p. LXXI). 41

Essa particular sistematização na aprendizagem e comunicação do direito é aquilo que Menezes

Cordeiro chama de sistema externo, que se contrapõe ao sistema interno, equivalente à lógica mínima

das relações estáveis que permite diferenciar o direito do puro arbítrio. Para este autor, o progresso do

direito civil continental pode ser explicado com base na sucessão de modelos sistemáticos externos

(CORDEIRO, A. Menezes. Op. Cit. p. LXXIII).

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29

tratavam de exposições sintéticas de matérias ou partes dos livros jurídicos.42

A técnica

aplicada remetia às artes do trivium (gramática, dialética e retórica), pertencentes ao

conjunto das artes liberales, já conhecidas e ensinadas anteriormente. O caráter

inovador da escola de Bolonha, no entanto, consistiu em aplicar a técnica das glosas,

usada até então para fins gramaticais ou semânticos, com intenção dogmática, no

esclarecimento e compilação dos textos romanos. 43

A aplicação prática, interpretação e organização lógica das fontes antigas na

vida medieval exigiam enorme esforço dos seus cultores, porquanto os textos

compilados provinham de épocas diversas, haviam sido retirados de seu contexto e não

estavam a salvo de interpolações. 44

O empenho no estudo dos textos romanos, todavia,

justificava-se em razão da autoridade que a cultura antiga desfrutava no espírito

medieval.

Assim como o domínio imponente da Sagrada Escritura, dos textos dos

concílios e dos padres da igreja sobre a teologia, o Corpus Iuris gozava da mesma

autoridade no pensamento jurídico, afirmando Franz Wieacker que “ele teve sobre o

sentimento jurídico medieval a força de uma revelação no plano do direito”. 45

Por essa

razão, quando os glosadores interpretavam os textos e tentavam ordená-los, não

buscavam provar a justeza das afirmações, fundamentá-lo ou compreendê-lo do ponto

de vista histórico, tampouco torná-los úteis para a vida prática. Intentavam, antes de

tudo, comprovar com o instrumento da razão (lógica escolástica) a verdade irrefutável

da autoridade. Para os juristas medievais, no Corpus Iuris, a própria razão se convertera

em palavra – ratio scripta. 46

Os chamados comentadores, práticos ou conciliadores, já em momento

posterior (século XIV),ajudaram a sedimentar o trabalho iniciado pelos glosadores,

dando continuidade ao estudo e ensino do Corpus Iuris. Esses juristas, no entanto,

42

Ainda foram usados outros meios técnicos como as regulae iuris (definições que enunciavam de

forma sintética princípios ou dogmas jurídicos fundamentais), os casus (de início, meras

exemplificações de hipóteses concretas a que as normas se aplicavam e, mais tarde, exposições

interpretativas), as distinctiones (análise dos vários aspectos em que o tema jurídico considerado podia

ser decomposto), entre vários outros. As glosas, portanto, constituíram apenas um ponto de partida e

os glosadores, consoante com sua preferência e o seu fôlego, dedicaram-se aos diferentes tipos de

obras (COSTA, Mário Júlio de Almeida. Op., Cit. p. 238-239). 43

KEMERICH, Clóvis Juarez. Op. Cit. p. 92. 44

KEMERICH, Clóvis Juarez. Op. Cit. p. 92-93. 45

Essa autoridade de que gozavam os textos de Justiniano na Idade Média é atribuída à “ideia de

Roma”, ou seja, a convicção geral de que o império romano, continuado até a atualidade através da

translatio imperii, constituía a única forma pensável do corpo de Cristo no ocidente, a noção de que o

império de Constantino permaneceria constituindo a própria comunidade cristã (WIEACKER, Franz.

História do direito privado moderno. 4ª Ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2010. p. 43-44). 46

WIEACKER, Franz. Op. Cit. p. 47-49.

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30

relacionavam o direito romano com os direitos estatutários locais, com um

compromisso prático, tornando as fontes romanas diretamente úteis para a satisfação das

necessidades da vida. Contribuíram, assim, para a formação do direito comum na

Europa, 47

assim como para a aproximação entre o direito civil clássico e a realidade

jurídica de seu tempo. 48

Ao contrário dos glosadores, os comentadores não se prenderam muito à

coletânea justinianeia, dando preferência à aplicação das glosas e aos comentários

sucessivos que sobre elas iam sendo elaborados, em vez de estudarem os próprios textos

romanos. Socorreram-se ainda de outras fontes, como costumes locais, direitos

estatutários e do direito canônico, iniciativa que permitiu a criação de novos institutos e

novos ramos do direito. Entre os estudiosos dessa corrente, destacou-se Bártolo, cujos

comentários adquiriram prestígio generalizado, tornando-se até mesmo fonte subsidiária

no ordenamento jurídico de vários países. Em Portugal, as Ordenações determinaram a

aplicação supletiva dos comentários de Bártolo, ao lado da Glosa de Arcúsio. 49

Glosadores e comentadores, ao lado dos canonistas, constituíram durante longo

período a camada culta da Idade Média, mas o empenho em compreender e dar sentido

lógico às fontes romanas esbarrava nas limitações do estilo escolástico. O método de

interpretação jurídica desses cultores, baseado na noção de autoridade do direito romano

e na sua disposição prática, dava já sinais de esgotamento quando ganhou força o

movimento humanista, responsável pelo segundo ciclo de recepção, a partir do século

XV.

Havia ainda na corrente humanista um forte senso de reverência à cultura

antiga e aos textos de origem romana, mas sob outra vertente filosófica. Ante o

nominalismo aristotélico dos escolásticos, opunha-se o idealismo platônico do

humanismo. Propunha-se uma nova relação da cultura europeia com o direito romano,

dessa vez a partir de uma experiência direta da antiguidade. Esclarece Wieacker que

“assim como o humanismo provocou a Reforma, através da busca do sentido literal,

47

WIEACKER, Franz. Op. Cit. p. 80-86. 48

MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira. O direito romano e seu ressurgimento no final da idade

média. Fundamentos da história do direito.4ª Ed. Antônio Carlos Wolkmer (Org.). Belo Horizonte:

Del Rey, 2008. p. 205. 49

Essa previsão de aplicação supletiva dos comentários de Bártolo e da Glosa de Arcúsio vigorou por

certo período, até o advento da chamada Lei da Boa Razão (18 de agosto de 1769), que modificou a

teoria das fontes. Essa lei proibiu que as glosas de Arcúsio e as opiniões de Bártolo fossem alegadas e

aplicadas em juízo, em razão de imperfeições jurídicas atribuídas tanto à falta de conhecimentos

históricos e linguísticos dos referidos autores, como à sua ignorância das normas do direito

fundamental e divino. (COSTA, Mário Júlio Almeida. Op. Cit. p. 267, 406-407).

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31

puro e original, das fontes hebraicas e gregas sem a mediação da vulgata e do ensino da

Igreja, assim ele provocou também o regresso da jurisprudência às fontes autênticas”. 50

A recusa da mediação do direito romano pelas autoridades medievais e o lastro

das ideias no idealismo de Platão distinguiam o pensamento humanista e

impulsionavam suas posturas críticas.

Em razão disso, esses teóricos rechaçavam as obras de referência medievais

(Glosa de Arcúsio) e o culto às autoridades de Bártolo e Baldo, assim como criticavam

fortemente a forma como os glosadores e comentadores compreendiam e lecionavam o

direito, com o aglutinamento de figuras lógicas e questões controversas que tornavam o

ensino jurídico moroso e embotado. Em síntese, propunham no lugar da tradição, o

estudo das fontes puras; em vez de comprovação da autoridade por artifícios lógicos, a

compreensão do ideal de direito e uma organização sistemática de seus princípios

jurídicos. 51

Nessa etapa de recepção o aspecto histórico-cultural do direito romano ganha

destaque, junto com uma nova forma de ordenar e expor a matéria jurídica, com maior

atenção ao aspecto sistemático. 52

Mesmo representando uma etapa posterior no pensamento jurídico, o

humanismo não conseguiu um triunfo absoluto sobre o antigo método bartolista (mos

italicus), especialmente em países como Itália e Alemanha, em que essa última

orientação continuou a predominar. O método humanista (mos gallicus) era mais

voltado à especulação pura, tendo construído um direito teórico, de tendência erudita, ao

passo que os comentadores levaram a um “direito prático”, com a utilização do direito

romano para encontrar soluções para casos concretos. Do século XVI ao século XVIII,

confrontaram-se os dois métodos. 53

Contudo, o potencial inspirador do direito romano ainda não havia se esgotado,

uma vez que, a partir do chamado usus modernus, dá-se uma nova virada metodológica

e interpretativa, que alcança seu apogeu no século XIX, notadamente na Alemanha,

dando ensejo à recepção pandectística.

50

WIEACKER, Franz. Op. Cit. p. 89-90. 51

WIEACKER, Franz. Op. Cit. p. 91-92. 52

Menezes Cordeiro afirma que essa tentativa humanista, empírica e periférica, de tentar ordenar os

fragmentos do Digesto em razão de diversos fatores externos (equivalência linguística, proximidades

do objeto etc), permitiu que o Direito assumisse pela primeira vez uma ordenação, ou seja, um efetivo

sistema externo (CORDEIRO, A. Menezes. Op. Cit. p. LXXVII). 53

COSTA, Mário Júlio de Almeida. Op. Cit. p. 356.

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32

O título usus modernus pandectarum, que dá nome a essa fase da ciência do

direito, designa uma prática atualizada do direito romano, marcada por uma nova

relação com a tradição romanística, com a superação da “recepção teórica” e uma maior

liberdade na aplicação das fontes romanas. 54

No ensino, afasta-se progressivamente da

exegese de textos isolados, em favor de uma exposição prático-pedagógica, muitas

vezes compendiária, das próprias instituições. Na literatura jurídica, as obras orientam-

se por uma intenção prática, com exposições coerentes e compiladas das matérias, mas

essencialmente casuísticas. 55

Esse intento prático do usus modernus, aliado às modificações no sistema de

ensino, orientou a inclusão e o tratamento de novas matérias jurídicas, muito além do

âmbito das disciplinas recebidas do direito romano. 56

O sistema oriundo do pandectismo traduziu a conquista acabada de um esforço

secular de aperfeiçoamento juscientífico e, por seu intermédio, ocorreu uma última e

decisiva recepção do direito romano, até sua cristalização no Código Civil alemão de

1896. Segundo Menezes Cordeiro, “a difusão desse Código asseguraria, ao longo do

século XIX, um retorno a muitas soluções românicas”. 57

Com a pandectística consolidou-se a apropriação do direito romano, um dos

elementos que singulariza a tradição jurídica ocidental designada romano-germânica.

Fazendo o balanço desse longo processo, Wieacker diz que “o resultado da recepção

consistiu numa ordem jurídica unificada e cientificamente fundada, na qual as normas e

instituições de origem românica, germânica e canônica constituíram uma doutrina

concatenada, doutrina que nunca mais pode ser desfeita”. 58

O ordenamento jurídico brasileiro, como um dos braços dessa tradição,

também acompanhou o contínuo processo de inserção de elementos romanísticos na

ordem legal e no pensamento jurídico moderno, sendo esta circunstância a porta de

entrada das ações populares em nossa prática judiciária.

54 Essa chamada “recepção teórica” seria a convicção de que o direito romano teria uma vigência geral

em virtude da translatio imperii para o império germânico medieval. A completa superação dessa

ideia liga-se a Hermann Conring, jurista pragmático alemão, cuja visão crítica fez com que a recepção

passasse a ser vista como um acontecimento histórico, devido à vontade dos próprios alemães,

podendo ser até mesmo reversível. Em razão dessa postura, tornou-se possível uma relação mais livre

com as fontes romanas, podendo-se refutar sua aplicação em certos casos e criar novas instituições

jurídicas sem recurso aos textos romanos (WIEACKER, Franz. Op. Cit. p. 227-229). 55

WIEACKER, Franz. Op. Cit. p. 230-233. 56

WIEACKER, Franz. Op. Cit. p. 234. 57

CORDEIRO, A. Menezes. Op. Cit. p. LXXXIV. 58

WIEACKER, Franz. Op. Cit. p. 253.

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33

1.4 Ação popular no Brasil: escorço histórico.

Logo após ter se consagrado como um Estado independente, o Brasil não se viu

de todo desgarrado da influência portuguesa, pelo menos no âmbito jurídico, sendo

paulatina a construção de um direito nacional propriamente autônomo.

O Decreto de 20 de outubro de 1823 determinou que as leis vigentes em

Portugal teriam eficácia no Brasil naquilo que não contrariassem a soberania nacional, o

regime instaurado e enquanto não fossem editadas novas leis, razão pela qual as

Ordenações Filipinas foram nosso primeiro diploma legislativo processual.59

É a partir

desse aparato legal que fragmentos de ações populares romanas ingressaram em nosso

ordenamento.

Desde as Ordenações Afonsinas – a primeira de todas – já se admitia a

incompletude dessa espécie de compilação, silente a respeito de várias matérias como o

direito obrigacional e os direitos de crédito. As subsequentes ordenações Manuelinas e

Filipinas não escaparam a esse quadro de ausências, sendo a integração das lacunas por

meio do direito subsidiário tema de grande relevância. 60

Assim como as ordenações anteriores, as Filipinas elencavam as diversas

fontes de direito subsidiário (livro III, tít. 64), que deveriam ser utilizadas quando

inexistentes fontes de direito nacional (leis do Reino, estilos da Corte, costumes), vindo

em primeiro lugar nessa ordem o direito romano, ao lado do direito canônico. 61

É em razão dessa organização legal que, enquanto vigente as ordenações no

direito brasileiro, os praxistas do período 62

entendiam serem aplicáveis ações populares

59

PAULA, Jônatas Luiz Moreira de. História do Direito Processual Brasileiro. São Paulo: Manole,

2002. p. 219-220. 60

Expõe Almeida Costa que o problema do direito subsidiário cresce de interesse à medida que se recua

no tempo, para épocas em que a escassez e a imperfeição das fontes nacionais impunham um amplo

recurso a ordenamentos jurídicos estrangeiros. Isso porque os postulados político-jurídicos e

científico-matemáticos do pensamento do século XIX trouxeram um movimento de legislação

nacional, autônoma e unitária, com intenção de plenitude normativa. A partir daí a dogmática jurídica

passou a enfrentar o problema das lacunas, sendo resolvido nos limites do direito constituído, ou seja,

em função dos limites e da autonomia completa dos ordenamentos jurídicos (COSTA, Mário Júlio de

Almeida. Op. Cit. p. 342-343). 61

O texto designava direito romano e o direito canônico, respectivamente, como “leis imperiais” e

“santos cânones”, devendo-se deixar de aplicar o direito romano em favor do direito canônico quando

da sua aplicação resultasse pecado. Em que pese ser apenas fonte subsidiária, afirma Almeida Costa

que não raro o direito pátrio português era preterido pelo direito romano, considerando a “ratio

scripta”, ou, quando menos, prevalecia a regra hermenêutica de que as normas jurídicas do país

deveriam receber interpretação extensiva ou restritiva, consoante se apresentassem conformes ou

opostas a esse direito. Esse cenário, contudo, modificou-se com o advento da Lei da Boa Razão, vide

nota48 (COSTA, Mário Júlio de Almeida. Op. Cit. p. 348). 62

O período do praxismo, também chamado sincrético, nos dizeres de Daniel Mitidiero, corresponde à

“pré-história” do direito processual, época em que não se vislumbrava o processo como um ramo

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34

do direito romano, mesmo sem lei expressa que as consagrasse em nosso ordenamento.

Uma vez que não havia nas Ordenações Filipinas qualquer previsão a respeito, seriam

cabíveis algumas dessas ações populares, já que não se revogaram as disposições

romanas em que estas se fundavam.

Nesse sentido pode-se apontar lição de Corrêa Telles, em sua obra Doutrina

das Acções, ao tratar das diversas espécies de ações possíveis na prática judiciária,

destaca as ações populares como aquelas que podem ser intentadas por qualquer pessoa

do povo, para conservação ou defesa das coisas públicas (§14). Defende a permanência

de ações populares no sistema com fulcro no Digesto (L.2, §34 - contra quem usurpou

lugar público, para que qualquer do povo possa embargar-lhe a obra prejudicial ao lugar

público, como a rua, rio, etc; Nequit in loc. publ., L.1, §9; Nequid in flum. publ., L.1, §§

16 e 17, etc), entre outras hipóteses. 63

Ao tratar da ação de embargo de obra nova, reforça esse ensinamento ao

deduzir que quando a obra for prejudicial a algum lugar público, qualquer pessoa pode

embargá-la, especialmente se tiver nela algum interesse particular. 64

De forma mais precisa, Othon Sidou aponta que, em face da inexistência de lei

revocatória, persistiam em pleno vigor no Brasil, após a independência, a lei 1, §3, título

I, do livro 39 e as leis 2, §34, título 8 e 1, §9, título 13, do livro 43, todas do Digesto,

prevendo diferentes casos de ação popular. O primeiro fragmento (D. 39.1.3) seria

referente à nunciação de obra nova em lugar público; o segundo (D. 43.8.2,34) tratava

da proibição de obras efetuadas em locais e caminhos com detrimento da utilidade

pública e, enfim, o terceiro (D. 43.13.1.9) visava a impedir o desviamento de rio

autônomo do direito, mas como mero apêndice do direito material (MITIDIERO, Daniel.

Colaboração do processo civil. São Paulo: RT, 2009. p. 30). Cândido Rangel Dinamarco explica

ainda que não existia ao tempo dos praxistas uma verdadeira ciência do processo civil, pois os

conhecimentos eram puramente empíricos, sem qualquer consciência de princípios, sem conceitos

próprios e sem a definição de um método. O processo era apenas uma realidade exterior, mero

procedimento, sem se cogitar da formação de uma relação jurídica entre as partes (DINAMARCO,

Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. Vol. I.6ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2006.

p. 260). As ações populares que os praxistas identificaram nesse período, decerto, enquadravam-se

nessa metodologia sincretista, não havendo ainda maiores preocupações em desvencilhar o direito em

si da sua forma de exercício em juízo.Pertinente, contudo, fazer-se concessão ao trabalho de Francisco

de Paula Batista, tido como precursor da ciência processual no Brasil. Em sua obra “Compêndio de

teoria e prática do processo civil”, elaborada ainda no período imperial (1857), já é possível

identificar-se ideias precursoras, como ao definir que ação seria “direito, ou faculdade de invocar a

autoridade pública (juiz) e de agir (agendi) regularmente perante ela para obter justiça”, bem como ao

diferenciar “ação” e “exercício da ação” (BATISTA, Francisco de Paula. Compêndio e prática do

processo civil. Atualização de Ricardo Rodrigues Gama. São Paulo: Russel, 2002. p. 22). 63

TELLES, José Homem Corrêa. Doutrina das acções. 5ª Ed. Coimbra: Casa de J. Augusto Corcel,

1869. p. 8. 64

TELLES, Corrêa. Op. Cit. p. 214.

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35

público. 65

Em todos esses casos, a possibilidade de defesa do interesse público

protegido conferia-se a qualquer do povo.

Além dessa construção doutrinária, com a Constituição Imperial de 1824, a

ação popular ganhou um reforço, ao ser prevista no artigo 157 a possibilidade de

propositura de ação popular, contra juízes de direito e oficiais de justiça, nas hipóteses

de suborno, peita, peculato ou concussão, podendo ser intentada dentro de ano e dia,

pelo próprio queixoso ou por qualquer do povo. 66

A respeito de tal dispositivo, José Afonso da Silva observa ser esse, talvez, o

único texto legislativo que nomeia dita ação como “popular” antes da Lei nº 4.717/65.

Demais disso, entende ser esta uma versão moderna da actio de corrupto albo (D.

2.1.7), por tratar de defender a pureza da jurisdição. 67

Esse autor identifica ainda um pontual exemplo de ação popular no art. 2º, §2º,

e arts. 3º e 4º do Decreto nº 2.691/1860, que disciplinava casos de falência dos bancos e

outras companhias e sociedades anônimas, permitindo a qualquer pessoa do povo

denunciar ou requerer apreensão judicial de títulos ilegais. 68

Em comentários à obra de Corrêa Telles, Teixeira de Freitas defende que nada

obsta a qualquer pessoa do povo demandar contra a usurpação de coisas de uso público,

ou embargar obra nociva ao lugar público. Porém, observa que qualificar as ações

populares apenas como aquelas de juízo cível seria restringir sem exatidão a ideia, pois

haveria ainda ações populares ou públicas do juízo criminal (tratadas no art. 157 da

Constituição e no Código de Processo Criminal). 6970

O percurso traçado pela ação popular em nosso ordenamento, contudo, sofreu

significativo revés com a Constituição republicana de 1891, que não mais previa

qualquer espécie dessa ação no plano constitucional e, logo após, com o advento do

65

SIDOU, J. M. Othon. “Habeas corpus”, mandado de segurança, ação popular... p. 415-416. 66

PAULA, Jônatas Luiz Moreira de. Op. Cit. p. 223. 67

SILVA, José Afonso. Op. Cit. p. 33. 68

SILVA, José Afonso. Op. Cit. p. 33. 69

FREITAS, Augusto Teixeira de. Comentários ao §11, in: TELLES, José Homem Corrêa. Op. Cit. p.

13 70

Gregório Assagra de Almeida esclarece que as ações populares podem ser dividas, grosso modo,

como penais e não penais, sendo que naquelas a finalidade seria a aplicação de uma pena em

decorrência da prática de um crime, ao passo que estas seriam concebidas como direitos políticos de

participação. Contudo, adverte que atualmente no Brasil a chamadaação popular penal não mais

subsiste, em razão de a Constituição de 1988 ter sido categórica ao conferir legitimidade privativa ao

Ministério Público para ajuizamento da ação penal pública (art. 129, I), só permitindo a iniciativa

privada em ação de iniciativa pública na forma de legitimidade extraordinária subsidiária (art. 5º, LIX,

da CR/88)

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36

Código Civil de 1916, que tentou proscrever os demais casos de ação popular em nosso

sistema.

O artigo 76 desse código é tido como o responsável por essa tentativa de

exclusão das ações populares, uma vez que determinava que “para propor, ou contestar

uma ação, é necessário ter legitimo interesse econômico, ou moral”. O parágrafo único

desse dispositivo, por sua vez, complementava que “o interesse moral só autoriza a ação

quando toque diretamente ao autor, ou a sua família”.

Essa conclusão é confirmada pelo próprio condutor do projeto do Código de

1916, Clóvis Beviláqua, ao comentar tal conjunto de dispositivos:

Outra controvérsia a que pôs termo, foi a referente à persistência das ações

populares, que, no direito romano, tinham por objeto a defesa dos bens

públicos. Na organização jurídica moderna, os atos, que davam causa às

ações populares, passaram a constituir crimes reprimidos pelo Código Penal,

sendo a matéria, ora de leis de polícia, ora de posturas municipais, e, algumas

vezes, ofensas a direitos individuais.71

O desestímulo às ações populares, franco posicionamento da codificação civil

de 1916, encontrou apoio também perante as cortes julgadoras, pois, conforme Paulo

Barbosa de Campos Filho, “também no sentido de que o artigo 76 e seu parágrafo único

do Código Civil afastara as ações populares, mesmo se intentadas em defesa do uso das

coisas públicas, era a jurisprudência dos nossos tribunais, nos raros casos em que lhe

fora dado manifestar-se sobre a questão”. 72

Ainda assim, havia quem defendesse a permanência de ações populares no

sistema brasileiro, nesse período. Paulo Barbosa de Campos Filho se opunha a essa

postura contrária às ações populares, deduzindo que o Código Civil só regulava os

direitos e obrigações de ordem privada, concernentes às pessoas, aos bens e às suas

relações, de forma que esse intento do Código Civil de excluir as ações populares só

teria atingido as populares civis. Não teria abrangido as de cunho político, as de índole

criminal e as estritamente administrativas. 73

Nesse período, a ação popular enfraqueceu, mas não desapareceu de todo.

Além de construções doutrinárias em seu favor, pode-se citar também, na legislação,

singular exemplo que prestigiava a ação popular. Trata-se da lei baiana nº 1.384, de

71

BEVILAQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado. 12ª Ed. Rio de

Janeiro: Paulo de Azevedo Ltda., 1959. p. 257. 72

Sustentando esse argumento, o autor traz como referência diversas decisões que concluem pela

inadmissibilidade da ação popular por força do art. 76 do Código Civil, bem como pela

impossibilidade de defesa de um interesse público pelo particular, sem que este tenha sofrido dano

direto - Revista dos Tribunais 87/105; Revista dos Tribunais 106/694, Arquivo Judiciário vol. 30/11

(CAMPOS FILHO, Paulo Barbosa. Op. Cit. p. 22). 73

CAMPOS FILHO, Paulo Barbosa de. Op. Cit. p. 21.

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37

1920 – Lei de Organização dos Municípios da Bahia – que, em seu artigo 31,

possibilitava a qualquer habitante do município, em nome e em interesse deste, intentar

ações judiciais competentes, referentes à defesa do patrimônio público municipal. 74

Em que pese o quadro legal e jurisprudencial amplamente desfavorável, a ação

popular voltou a ser prevista na Constituição de 1934, em seu art. 113, inc. 38, nos

seguintes termos: “qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a declaração de

nulidade ou anulação dos atos lesivos do patrimônio da União, dos Estados ou dos

Municípios”.

Esse expresso retorno da ação popular à ordem constitucional, todavia, não se

deu sem, a princípio, alguma oposição.

José Afonso da Silva noticia que a previsão de uma ação popular não foi

considerada no texto inicial (Projeto do Itamaraty), surgindo na forma de emenda, já no

momento da discussão plenária. Mesmo com divergências, os constituintes aprovaram a

ação popular na última fase de elaboração constitucional, no que viria a ser o art. 113.

Inc. 38, da Constituição de 1934. 75

74

De forma mais exata, dispunha a antiga lei baiana em seu artigo 31: “É permitido a qualquer habitante

do município, em nome e no interesse deste, intentar as ações judicias competentes, para reivindicar

ou reaver quaisquer bens ou direitos que ao Município tenham sido usurpados ou estejam

indevidamente possuídos por terceiros, contanto que tais ações sejam propostas, se o Intendente se

recusar a intentá-las e se nada providenciar o Conselho, depois de lhes haver sido apresentada uma

exposição circunstanciada do direito que se pretende valer, a qual pode ser pelo expositor publicada

pela imprensa, quando nem o Conselho nem o Intendente o tenham feito no prazo de dez dias.

Parágrafo único: Quem tiver intentado a ação e obtido sentença final favorável terá direito a ser

indenizado pelo cofre municipal das despesas feitas com o pleito e que não forem pagas pela parte

vencida, salvo o direito regressivo do Município”. Essa ação popular, segundo observações de Othon

Sidou, preenche processualmente todos os requisitos da moderna ação popular, sendo nitidamente

inspirada no modelo italiano, mas de índole reipersecutória (SIDOU, Othon J. M. Op. Cit. p. 422-

423). Já José Afonso da Silva destaca nessa ação seu caráter supletivo, também notando a inspiração

nas ações populares do direito italiano do século XIX (SILVA, José Afonso da. Op. Cit. p. 35). 75

José Afonso da Silva traz à colação diversas opiniões contrárias à consagração de uma ação popular

no plano constitucional, como a de Raul Fernandes, que julgava perigosa a medida, por achar que

“todos os atos da administração poderiam ser continuamente postos em xeque e, por vezes,

maliciosamente, desde que, em nossos próprios anais judiciários, temos precedentes de questões

intentadas em juízo, tendenciosamente, por homens de palha, visando a uma decisão judiciária que

favoreça a situação aparentemente atacada”. Ainda na constituinte, Levi Carneiro manifestou

preocupação com a amplitude com que se consagrara a ação popular no texto, “sem freios, restrições

ou ressalvas”, sendo favorável à adoção desse instrumento, mas desde que condicionada a iniciativa

judiciária dos cidadãos à prévia autorização do Conselho Nacional, depois de reconhecida por esse

conselho a relevância dos fundamentos legais da reclamação. Tais objeções, contudo, não

prevaleceram, eis que a Constituição de 1934 previa a ação popular, sem maiores restrições. Mesmo

com essa sua consagração constitucional, ainda havia quem nesse período levantasse objeções ao uso

da ação popular, como Clóvis Beviláqua, o qual defendia que: “sem negar o caráter democrático dessa

ressureição, receio que nos venha daí inconvenientes, que a boa organização do Ministério Público

evita. [...] Para funções dessa classe, a sociedade possui órgãos adequados, que melhor as

desempenham do que qualquer do povo.” (SILVA, José Afonso da. Op. Cit. p. 36-37).

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38

A respeito da ação popular na Constituição de 1934, esse autor ainda pondera

que não se tratou de uma simples ressurreição das velhas ações populares romanas,

havendo diferenças fundamentais entre tais modelos de ação popular. Tratava-se de

manifestações diversas, de natureza e finalidade distintas, de um instituto

conceitualmente único, 76

distinção que se tornará mais clara com o advento do Código

de Processo Civil de 1939 e sua intenção de conferir maior cientificidade e autonomia

ao direito processual, afastando-o de empirismos e da necessidade de se socorrer de

fontes antigas para complementação do sistema de tutela.

Como se sabe, a Constituição de 1934 teve duração efêmera, não sendo a ação

popular ali prevista objeto de ampla utilização e estudo, eis que já em 1937 a nova

ordem constitucional imposta não mais a consagrava. Rodolfo de Camargo Mancuso

observa que essa supressão da ação popular no Estado Novo não é de causar espécie, já

que a ação popular italiana também não houvera resistido ao período fascista, nem a

espanhola ao período franquista. 77

A ação popular, ainda em situação incipiente em

nossa tradição jurídica independente, não pôde subsistir a esse período de exceção.

Esse mesmo jurista ressalta que, no intervalo entre a Constituição de 1937 e a

de 1946, sobreveio o Código de Processo Civil de 1939, que teria repristinado espécie

de ação popular, prevista no art. 13 do Dec. 173/1893, pois dispunha em seu artigo 670

que: “A sociedade civil com personalidade jurídica, que promover atividade ilícita ou

imoral, será dissolvida por ação direta, mediante denúncia de qualquer do povo, ou do

órgão do Ministério Público”. 78

O Código de Processo Civil de 1939, na esteira do Código Civil de 1916

(art.76), ainda dispunha em seu artigo 2º que “para propor ou contestar ação é

necessário legítimo interesse, econômico ou moral”. Não reproduzia, contudo, o

comando da codificação civilista que restringia o interesse moral apenas àquele que

“toque diretamente ao autor, ou a sua família” (art. 76, § único). Por isso, opinava

Pontes de Miranda que esse código de processo teria derrogado a regra do parágrafo

único, art. 76, do Código Civil/1916, de forma que não mais caberia se invocar a

restrição ali disposta. Nesse sentido, conclui o jurista que:

Uma das consequências da eliminação está em que se pode propor ou

contestar “ação” que se funde, por exemplo, em insulto ou difamação de

classe (médicos, advogados, fundidores, sapateiros, etc), ou regiões

(Paulistas, Gaúchos, Pernambucanos, Mineiros, etc., habitantes do Município

76

SILVA, José Afonso da. Op. Cit. p. 38. 77

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Op. Cit. p. 67. 78

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Op. Cit. p. 67.

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39

A). As ações populares são de direito público e, desde que o direito material

as tenha, não se lhes poderia negar o ingresso em juízo, através dos remédios

jurídicos processuais, próprios ou gerais. 79

Não obstante o caráter autoritário da ordem constitucional de 1937, a

codificação de processo civil amenizou as restrições, no âmbito das relações privadas,

quanto a um possível uso da ação popular, pois, como visto, evitou reduzir a

legitimidade para ingresso em juízo a circunstâncias particularmente pessoais do

litigante.

Impende ressaltar que essa codificação foi uma tentativa de trazer maior

sistematicidade e apuro técnico ao processo civil, distanciando-o da cultura de

praxismos e fórmulas, reputada como formalista, bizantina e sem preocupação com a

efetividade. Isso fica claro ao se ler, na sua Exposição de Motivos, que “o projeto

reduziu todas as ações a uma forma única”, consolidando a “ação”, no sentido de

remédio jurídico processual, como categoria jurídica autônoma, desvinculada do direito

material. 80

Não se pode negar que essa nova conformação do processo civil veio a

influenciar a ação popular, que em razão disso se distanciava mais ainda de sua antiga

concepção romana (sem distinção precisa entre as esferas material e processual), assim

como dos arranjos que os praxistas extraíam de normas esparsas, sem maior

preocupação com a unidade do sistema.

A Constituição de 1946, por seu turno, não apenas restaurou a ação popular

constitucional, como ainda ampliou sua abrangência, nos termos do art. 141, §38. Veja-

se: “Qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a anulação ou a declaração de

nulidade de atos lesivos do patrimônio da União, dos Estados, dos Municípios, das

entidades autárquicas e das sociedades de economia mista”. Nota-se que a referida

ampliação deu-se na gama de entidades submetidas a controle pela ação popular, ao se

79

MIRANDA, Pontes de. Tratado das ações: tomo I. São Paulo: RT, 1970. p. 263-264. 80

O Código de Processo Civil de 1939, fruto da fase autonomista ou conceitual da ciência processual no

Brasil, é distinto por tentar introduzir conquistas da então processualística moderna. É destaque nessa

codificação o maior relevo dado à função diretiva do juiz no processo, sobrelevando-se seus poderes e

autoridade. Com isso, quis se fazer prevalecer a concepção publicística do processo (com inspiração

em Chiovenda) e a figura do Estado como administrador da justiça, propondo-se na Exposição de

Motivos que:“à concepção duelística do processo haveria de substituir-se a concepção autoritária do

processo. À concepção do processo como instrumento de luta entre particulares, haveria de substituir-

se a concepção do processo como instrumento de investigação da verdade e de distribuição da

justiça”. Cândido Rangel Dinamarco afirma que, apesar de marcar significativo progresso, o CPC de

1939, na prática, mostrou-se deficiente e muito rígido, sendo substituído pelo CPC de 1973, de maior

apuro técnico. No entanto, sustenta o processualista que a superioridade técnica desse código não

correspondeu a uma evolução ideológica, ou implantação de um novo modelo processual, por ostentar

também o CPC de 1973, em sua feição originária, o desenho de um sistema individualista da tutela

jurisdicional (DINAMARCO, Cândido Rangel. Op. Cit.p. 286-287).

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incluir também entes da Administração Indireta, ao lado dos entes públicos integrantes

da federação. 81

Sob essa ordem constitucional, a ação popular ganhou expressivo apoio da

jurisprudência, a partir da paradigmática sentença proferida por Frederico Marques (RT

181/826), na qual se afirma que “o direito de propor ação popular, nos termos em que o

consagrara a letra da Constituição Federal, independe de regulamentação ulterior, para

ser usado e exercido”. Firmou-se, assim, o entendimento de que o dispositivo que previa

a ação popular constitucional era autoaplicável, posição que fortaleceu o papel de

controle dessa ação, vez que a lei que a regulamentaria só seria editada em 1965 (Lei nº

4.717).

A Constituição de 1967 também trouxe em seu bojo previsão de uma ação

popular (§31, art. 150), porém, com um texto bem mais enxuto, dispondo que “qualquer

cidadão será parte legítima para propor ação popular que vise a anular atos lesivos ao

patrimônio de entidades públicas”.82

Esse dispositivo denota, por um lado, a

consagração da ação popular na tradição constitucional brasileira, mas também um

retrocesso no rol de entidades protegidas e controladas, nitidamente reduzido.

Esse último aspecto, contudo, poderia ser contornado com a leitura conjunta da

Lei nº 4.717/65, que regulamentou a ação popular constitucional, pois já em seu artigo

1º traz minucioso rol de entidades, de natureza pública e privada, cujos atos lesivos ao

patrimônio podem ser objeto dessa ação, incrementando nesses termos o lacunoso

dispositivo constitucional. 83

José Carlos Barbosa Moreira, a propósito, observa que

essa lei, editada ainda sob o regime da Constituição de 1946, já havia ampliado

notavelmente o que dispunha esse texto constitucional quanto ao rol de entidades

81

Ainda houve ressalvas quanto à inclusão de uma ação popular no texto da Constituição de 1946. Na

Constituinte, Ivo de Aquino apresentou emenda supressiva do texto que tratava dessa ação,

sustentando que não haveria vantagens na sua adoção. Como visto, contudo, não apenas se consagrou

ação popular nesse texto constitucional, como se ampliou tal instituto, para abranger entidades

autárquicas e sociedades de economia mista, segundo emenda ampliativa apresentada por Ferreira de

Souza, para quem a disposição de uma ação popular era de fundo essencialmente democrático,

grandemente moralizador de uma justiça perfeita, posição que angariou mais adeptos (SILVA, José

Afonso. Op. Cit. p. 38). 82

A Emenda Constitucional nº 1, de 1969, manteve a ação popular nesses mesmos termos, agora no §31,

do art. 153, não merecendo por isso maiores considerações a respeito. 83

Art. 1º, Lei 4.717/65: Qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a anulação ou a declaração de

nulidade de atos lesivos ao patrimônio da União, do Distrito Federal, dos Estados, dos Municípios, de

entidades autárquicas, de sociedades de economia mista (Constituição, art. 141, § 38), de sociedades

mútuas de seguro nas quais a União represente os segurados ausentes, de empresas públicas, de

serviços sociais autônomos, de instituições ou fundações para cuja criação ou custeio o tesouro

público haja concorrido ou concorra com mais de cinqüenta por cento do patrimônio ou da receita

ânua, de empresas incorporadas ao patrimônio da União, do Distrito Federal, dos Estados e dos

Municípios, e de quaisquer pessoas jurídicas ou entidades subvencionadas pelos cofres públicos.

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sujeitas à ação popular, extensão legal que também se aplicaria à ação popular da

Constituição de 1967 (mesmo após a EC nº1/69). Por isso defende que “conquanto fale

o texto constitucional em ‘atos lesivos ao patrimônio de entidades públicas’, o âmbito

de cabimento da ação popular seria bem mais vasto do que à primeira vista se poderia

supor”. 84

Dando seguimento a esse processo de ampliação do alcance da ação popular

constitucional, a Constituição de 1988 trouxe grande contribuição. Dispõe o inc.

LXXIII, art. 5º, que: “qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que

vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe,

à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural,

ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da

sucumbência”.

A Constituição de 1988, distinta pela feição analítica e ampla consagração de

direitos e garantias, dispôs sobre a ação popular de forma minuciosa, trazendo para o

plano constitucional diversos novos elementos, que denotam um maior amadurecimento

do controle da coisa pública no direito brasileiro. De acordo com o art. 5º, LXXIII, os

entes sujeitos ao controle por essa ação seriam não apenas os que ostentam natureza

pública, mas qualquer entidade de que o Estado participe. Demais disso, os interesses

públicos protegidos vão além da defesa do erário, abarcando a moralidade

administrativa, o meio ambiente e o patrimônio histórico e cultural.

Essa ampliação do objeto da ação popular, em especial, aproxima mais o

parâmetro constitucional da lei que visa a regulamentá-lo, qual seja, a Lei nº 4.717/65,

bem como o atualiza de acordo com as inovações trazidas à tutela do direito coletivo,

notadamente pela Lei da Ação Civil Pública (nº 7.347/85), entre outras. A começar pela

previsão da moralidade administrativa como passível de proteção pela ação popular.

A moralidade administrativa é mencionada na Constituição de 1988 no

dispositivo que trata da ação popular (art. 5º, LXXIII) e como um dos princípios

norteadores da Administração Pública, no caput do art. 37. José Guilherme Giacomuzzi

defende, no entanto, que mesmo antes de essa Constituição expressamente erigir a

moralidade administrativa como princípio e bem passível de proteção, a Lei da Ação

84

MOREIRA, José Carlos Barbosa. A ação popular do direito brasileiro como instrumento de tutela

jurisdicional dos chamados interesses difusos. Temas de direito processual (primeira série). 2ª Ed.

São Paulo: Saraiva, 1988. p. 114.

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Popular (4.717/65) já incluía tacitamente o controle da moralidade administrativa, em

que pese não ter usado este termo no texto legal.

Com base nos estudos de Hauriou e Welter, desenvolveu-se a ideia de

moralidade administrativa, elaborada fundamentalmente a partir do instituto do desvio

de poder, na tentativa de evitar os abusos cometidos pelos administradores públicos e

ampliar a abrangência do controle da legalidade administrativa, aperfeiçoando-se no

direito francês, sobretudo, no início do século XX. 85

O que a doutrina identificava

como “moralidade administrativa” consolidou-se na jurisprudência francesa como um

controle ampliado da legalidade (legalidade interna ou substancial), a fim de

compreender também o controle da finalidade e dos motivos do ato (aspectos fáticos e

intenção do agente), indo além do simples exame dos aspectos externos e formais da

ilegalidade, como incompetência e vícios de forma. 86

Essa é a conformação tradicional da moralidade administrativa, iniciada no

direito francês, qual seja, a moralidade como uma versão ampliada da legalidade,

introduzindo no controle do ato administrativo a análise de aspectos fáticos e subjetivos

(móveis do agir administrativo). 87

O artigo 2º, alíneas “d” e “e”, da Lei 4.717/65 já

previam, respectivamente, a inexistência de motivos e o desvio de finalidade como

máculas do ato administrativo, que permitiriam sua anulação por meio da ação popular,

sendo o controle de tais vícios, justamente, a expressão clássica da moralidade

administrativa. Ainda que não conste expressamente no texto dessa lei, a moralidade

administrativa foi mencionada várias vezes no parecer do relator Djalma Marinho ao

então projeto de lei, tomando por base os estudos doutrinários da época. 88

A Constituição de 1988, ao trazer para o dispositivo regulador da ação popular

a tutela da moralidade administrativa (art. 5º, LXXIII), entre outros interesses, reforçou

a tendência de se ampliar cada vez mais os âmbitos de controle da Administração

Pública, combatendo abusos de direito e poder, além do mero controle formal de seus

85

GIACOMUZZI, José Guilherme. A moralidade administrativa e a boa-fé da Administração

Pública. 2ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2013. p. 43-44. 86

GIACOMUZZI, José Guilherme. Op. Cit. p. 119-123. 87

A respeito da moralidade administrativa, a doutrina brasileira desenvolveu diversos enfoques, partindo

da concepção tradicional ou tentando ir além desta. Como destaca José Guilherme Giacomuzzi, há

aqueles que a vinculam ao desvio de finalidade, como Almiro do Couto e Silva, ou terminam por

estender a moralidade a zonas já abarcadas pela legalidade (controle dos motivos e objeto do ato),

como Caio Tácito, havendo ainda corrente que finda por preencher a moralidade com outros

princípios jurídicos ou conceitos imprecisos, como razoabilidade, interesse público e

proporcionalidade, caso de Medina Osório e Maria Sylvia Di Pietro (GIACOMUZZI, José Guilherme.

A moralidade administrativa e a boa-fé da Administração Pública. 2ª Ed. São Paulo: Malheiros,

2013. p 148). 88

GIACOMUZZI, José Guilherme. Op. Cit. p. 132.

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atos. Tal postura constitucional reflete maior preocupação com a sujeição do Poder

Público à lei e ao direito, situando a ação popular como um dos principais instrumentos

na tentativa de minimizar possíveis “esferas de imunidade” do poder público. 89

A abrangência da tutela pela ação popular foi incrementada na Constituição de

1988 também ao se incluir expressamente o meio ambiente e o patrimônio histórico e

cultural como passíveis de proteção, não obstante os “bens e direitos de valor

econômico, artístico, estético, histórico ou turístico” já constassem da legislação

específica como integrantes do patrimônio público protegido pela ação popular

constitucional (art. 1º, §1º).

Mais uma vez, tem-se exemplo de como o texto de 1988 atualizou a ação

popular, no plano constitucional, quanto aos entendimentos já desenvolvidos pela

legislação ordinária, doutrina e tribunais. Mesmo antes do advento da Constituição de

1988, Barbosa Moreira sustentava o uso da ação popular para além do restrito círculo

das lesões meramente pecuniárias, em razão do ampliado conceito de patrimônio

público da Lei 4.717/65, que permitia a tutela de “interesses difusos”, que no seu

entender seriam “bens imateriais ou refratários a uma avaliação em termos de moeda”.

90

O jurista traz à colação diversos exemplos concretos que demonstrariam a

aptidão da ação popular para proteção de direitos difusos, como: (i) episódio em que se

pleiteou anulação do ato que aprovara projeto de construção do aeroporto de Brasília,

por não se harmonizar com a concepção estética da edificação da capital do país; (ii)

caso em que se impugnou a legitimidade de atos administrativos relacionados com o

aterro parcial da Lagoa Rodrigo de Freitas, para construção de prédio comercial,

alegando-se possível desfiguração da beleza paisagística; (iii) demanda pela anulação de

resolução de certa Câmara Municipal que autorizara, sem limites, a extração de madeira

em floresta protetora de nascentes d’água, indispensáveis ao abastecimento da

população da cidade, entre outros exemplos. 91

Todos esses pleitos, veiculados por meio

de ações populares, tratavam da defesa do patrimônio público em uma perspectiva

89 O combate às chamadas esferas de imunidade do poder, termo cunhado por García de Enterría, faz

parte do próprio desenvolvimento do controle judicial da Administração Pública, especialmente de seu

poder discricionário, tema que será melhor analisado no capítulo 2 deste trabalho. 90

MOREIRA, José Carlos Barbosa. Op. Cit. p. 115. 91

Além dos exemplos trazidos pelos casos práticos, o autor ainda defende a serventia da ação popular

em matéria edilícia, como instrumento de proteção do “interesse difuso” na preservação da

racionalidade do desenvolvimento urbano (MOREIRA, José Carlos Barbosa. Op. Cit. p. 116-117).

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ampliada, considerando seus valores histórico, estético, cultural e ecológico, além do

simplesmente pecuniário.

Indo um pouco além do que já dizia a Lei 4.717/65 acerca do patrimônio

público resguardado, o texto constitucional de 1988 ainda incluiu o meio ambiente nesse

âmbito de proteção. Nesse sentido, aproxima a ação popular da Ação Civil Pública

(regulada pela Lei nº 7.347/85, que em seu artigo 1º faz referência expressa à ação

popular), em razão de ambos os procedimentos passarem a ter o meio ambiente, de

natureza difusa, como objeto de tutela. 92

Consolidou-se, assim, a ação popular como

mais um dos meios processuais que compõem o sistema da tutela coletiva, eis que, uma

vez preenchidos os pressupostos dessa ação, poderia ser então utilizada para defesa do

meio ambiente, do patrimônio histórico e cultural, entre outros direitos difusos e

coletivos que o ordenamento possibilitasse ao cidadão defender em juízo. 93

Sob a égide do atual regime constitucional, podem ainda ser encontradas

diversas espécies de ação popular definidas na legislação, para a defesa dos mais

variados interesses públicos e coletivos. Sem pretender exaurir todos os casos, cite-se

como exemplo a Lei de Diretrizes e Bases para a Educação (Lei nº 9.394/96), que, em

seu artigo 5º, determina que “o acesso à educação básica obrigatória é direito público

subjetivo, podendo qualquer cidadão, grupo de cidadãos, associação comunitária,

organização sindical, entidade de classe ou outra legalmente constituída e, ainda, o

Ministério Público, acionar o poder público para exigi-lo”.

Essa mesma lei ainda determina, em seu artigo 85, que:

Art. 85. Qualquer cidadão habilitado com a titulação própria poderá exigir a

abertura de concurso público de provas e títulos para cargo de docente de

92

A Lei nº 6.938, de 1981, já previa a tutela do meio ambiente, inclusive legitimando o Ministério

Público para sua defesa (art. 14, §1º). Com a lei da Ação Civil Pública e, posteriormente, a ação

popular da Constituição de 1988, ampliou-se o resguardo desse bem público, eis que também o

cidadão e as associações civis, entre outros, passaram a ostentar a legitimidade necessária (a lei nº

11.448/2007 incluiu a Defensoria Pública no rol de legitimados, mas essa inovação legal encontra-se

sendo discutida na ADI nº 3943, ainda em trâmite no STF). Ademais, outras formas de tutela além da

ressarcitória, previstas nestes dois diplomas legais, poderiam agora ser aplicadas para a defesa coletiva

do meio ambiente. 93

O Código de Defesa do Consumidor admite todas as espécies de ações para a efetiva e adequada

defesa dos direitos coletivos ali definidos (art. 83), determinando também a aplicação de seu conjunto

de dispositivos sobre tutela coletiva (título III), no que for cabível, na defesa dos direitos e interesses

difusos, coletivos e individuais, na Ação Civil Pública (art. 117, Lei 8.078/90 e art. 21 da Lei

7.347/85). O CDC, ao lado da lei da Ação Civil Pública, encabeçam, portanto, o microssistema da

tutela coletiva, intercambiando normas, de forma que Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr. defendem

que há um procedimento padrão para as causas coletivas, qual seja, aquele previsto de forma

integrada entre esses dois diplomas legais. Esse procedimento funcionaria como procedimento comum

ou ordinário da tutela coletiva, sendo o procedimento da ação popular, entre outros, modalidade de

procedimento especial da tutela coletiva (DIDIER JR. Fredie, ZANETI JR., Hermes. Curso de

direito processual civil.Vol 4. 8ª Ed. Salvador: Juspodivm, 2013. p. 62.).

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instituição pública de ensino que estiver sendo ocupado por professor não

concursado, por mais de seis anos, ressalvados os direitos assegurados

pelos arts. 41 da Constituição Federal e 19 do Ato das Disposições

Constitucionais Transitórias (grifos nossos).

Por sua vez, a Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/2011), em seu artigo

10, dispõe que:

Art. 10. Qualquer interessado poderá apresentar pedido de acesso a

informações aos órgãos e entidades referidos no art. 1o desta Lei, por

qualquer meio legítimo, devendo o pedido conter a identificação do

requerente e a especificação da informação requerida (grifos nossos).

Cada um dos excertos legais em destaque confere legitimidade a um singular

sujeito (cidadão, interessado), para que possa vindicar a concretização de direitos como

educação e informação, os quais transcendem a esfera de interesses privados,

alcançando direitos de projeção transindividual, mesmo que eventual provimento do

pedido favoreça diretamente esse pleiteante singular. Em suma, configuram espécies de

ação popular, mesmo que os dispositivos legais em questão não utilizem tal

nomenclatura.

O percurso histórico da ação popular em nosso ordenamento, composto de

marchas e contramarchas, seguiu o processo de formação de um ordenamento jurídico

autônomo no Brasil, diferentes regimes constitucionais e, principalmente, acompanhou

a evolução metodológica do processo civil e o moderno conceito de ação. Pode-se dizer

que, pelo menos no plano teórico, a ação popular alcançou efetiva consagração, após

sucessivas tentativas de extirpá-la da ordem jurídica nacional, visto que se encontra

minuciosamente prevista na Constituição em vigor (art. 5º, LXXIII, entre os direitos e

garantias fundamentais), bem como em leis infraconstitucionais, tutelando direitos de

natureza transindividual.

1.5 Conceito atual de ação popular.

Uma vez assentado que a ação popular é um gênero, do qual decorrem

diferentes espécies, cabe então esclarecer, enfim, o que define uma ação popular como

tal.

Como já explicado, a Lei nº 4.717/65 regulamenta a ação popular

constitucional (art. 5º, LXXIII, CR/88), estabelecendo, notadamente, regras para esse

rito específico (regulando também situações materiais), havendo ainda outras hipóteses

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no ordenamento, que podem se submeter ao procedimento descrito nessa lei ou não.

Quando ora se intenta deduzir o que definiria uma hipótese de ação popular no

ordenamento jurídico, trata-se de identificar situações de direito material, com objeto e

titularidade característicos. 94

Identifica-se uma espécie de ação popular quando a lei confere a um sujeito

singular (cidadão, interessado, “qualquer do povo” etc.) o poder de vindicar a

concretização de um direito transindividual, ou seja, um direito que não pertença

exclusivamente àquele que postula, mas a toda uma coletividade.

Não configura espécie de ação popular a faculdade conferida ao indivíduo de

comunicar ilicitudes às autoridades ou, meramente, tentar que se dê início a

procedimento investigatório, como nos casos previstos no art. 14, da Lei de

Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/92), 95

ou ainda no art. 356 do Código

Eleitoral (Lei nº 4.737/65) 96

. Em tais situações não se confere propriamente ao sujeito o

poder de exigir ou impor a satisfação de uma situação material, que transcenda sua

esfera de interesses, mas apenas de informar um fato aos órgãos competentes

(autoridade administrativa, Ministério Público, juiz), esses sim com capacidade para, a

seu critério, invocar a tutela jurídica. Em outras palavras, o indivíduo não ostenta poder

legal para diretamente iniciar uma demanda de improbidade, ou contra infrações penais

do Código Eleitoral, eis que essa situação ativa não lhe é conferida (cabendo ao

Ministério Público, ou ainda à pessoa jurídica interessada, no caso da improbidade

administrativa).

Essa titularidade dada ao indivíduo pela lei, para diretamente pleitear a

concretização de direitos difusos e coletivos, é um elemento essencial da categoria ação

popular, razão pela qual se discorda do entendimento de Ada Pellegrini Grinover, que

vislumbra no artigo 25, IV, “b”, da Lei Orgânica do Ministério Público (lei nº

8.625/93), espécie de ação popular, de legitimidade do Parquet. Isso porque esse

dispositivo legal determina incumbir ao Ministério Público promover inquérito ou ação

94

Considerar a ação popular em sentido material é admitir a ação material como categoria autônoma,

em relação à pretensão à tutela jurídica (o chamado “direito de ação”, de natureza universal e

abstrata) e ao remédio jurídico processual (via/meio para firmação de uma situação material), cada

qual representando uma das várias acepções do termo “ação”, de caráter plurívoco. Tratar-se-á dessa

questão, de forma mais pormenorizada, no capítulo 2, mas desde já se adianta ser esta a posição do

presente estudo quanto ao tratamento da ação, baseando-se, especialmente, na teoria de Pontes de

Miranda. 95

Art. 14. Qualquer pessoa poderá representar à autoridade administrativa competente para que seja

instaurada investigação destinada a apurar a prática de ato de improbidade. 96

Art. 356. Todo cidadão que tiver conhecimento de infração penal dêste Código deverá comunicá-la ao

juiz eleitoral da zona onde a mesma se verificou.

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civil pública para “a anulação ou declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio

público ou à moralidade administrativa do Estado ou de Município, de suas

administrações indiretas ou fundacionais ou de entidades privadas de que participem”,

objeto que, para a processualista, seria o mesmo da ação popular constitucional, só

diferindo a legitimidade dada ao Ministério Público. 97

Tal hipótese legal não ostenta

natureza de ação popular, não apenas em virtude de não prestigiar o indivíduo, mas

também porque o objeto protegido (patrimônio público e moralidade administrativa)

não é exclusivo da ação popular e nem esgota suas possibilidades de demanda. A regra

em questão disciplina, na verdade, hipótese de ação civil pública, que bastante se

aproxima da ação popular, mas com esta não se confunde. 98

Por essa mesma razão, ausência de menção expressa ao indivíduo/cidadão

como titular da ação, é que também não se vislumbra hipótese de ação popular no

quanto dispõe atualmente o Código de Processo Civil, a respeito da ação de nunciação

de obra nova (art. 934 e ss.).

Considere-se a situação hipotética em que obra (construção, demolição,

reforma etc.) prejudique efetivamente patrimônio histórico e cultural tombado,

demolindo-o, alterando-o substancialmente, ou prejudicando sua visão; ou então afete o

meio ambiente, em desrespeito às regras de direito urbanístico e ambiental que proíbem

tais condutas (Decreto-lei nº 25/1937, Lei nº 6938/81, Lei nº 12651/2012, entre outras).

Sabe-se que a ação de nunciação de obra nova não apenas resguarda o direito de

vizinhança, pois se confere esta ação também ao Município, “a fim de impedir que o

particular construa em contravenção da lei, do regulamento ou de postura” (art. 934,

III), independente de haver prejuízo (presumido pela lei), ou relação de vizinhança entre

prédios. 99

97

GRINOVER, Ada Pellegrini. Uma nova modalidade de legitimação à ação popular. Possibilidade de

conexão, continência e litispendência. Ação Civil Pública: lei 7.347/85 – reminiscências e reflexões

após dez anos de aplicação. Coord.: Édis Milaré. São Paulo: RT, 1995. p. 23-24. 98

A própria Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/85), em seu artigo 1º, determina que as ações de

responsabilidade por danos morais e patrimoniais contra os bens públicos ali listados regem-se pelas

disposições dessa lei, sem prejuízo da ação popular. Essa ressalva à ação popular bem demonstra o

caráter distinto dessa ação em relação à ação civil pública. 99

Ovídio Batista da Silva defende que a disposição do art. 934, como as demais existentes no Livro IV

do Código de Processo Civil, quando declara competir a ação de nunciação de obra nova às pessoas

que enumera, faz alusão à ação de direito material.A legitimação das partes seria questão que diz

respeito à lide e não ao processo, sendo questão de mérito. Explica ainda esse autor que a nunciação

do artigo 934, III, de titularidade do Município, prescinde da prova do prejuízo (presumido pela lei,

em virtude da conduta do particular ao construir em infringência aos regulamentos edilícios), como

também prescinde do pressuposto de vizinhança entre os prédios. A ação outorgada pelo art. 934, III,

ao município, não tutelaria a vizinhança, como o faz a nunciação de obra nova nociva, em sua feição

clássica e tradicional. Pondera este autor que poderia, certamente, ocorrer que obra nova nociva ao

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48

Esse procedimento especial também contém a figura do embargo extrajudicial

(art. 935), previsto nos seguintes termos: “ao prejudicado também é lícito, se o caso for

urgente, fazer o embargo extrajudicial, notificando verbalmente, perante duas

testemunhas, o proprietário ou, em sua falta, o construtor, para não continuar a obra”.

Poderia então o cidadão, ao vislumbrar obra iniciada em arrepio às

determinações legais, utilizar-se do embargo extrajudicial, na condição de prejudicado,

mesmo sem ter o seu direito de vizinhança ou propriedade afetado, caso o município

não se utilize da sua competência prevista no inciso III, do artigo 934, do CPC?

Entende-se que não, já que a regra específica legitima para esta ação o proprietário,

possuidor, ou o condômino (incisos I e II do art. 934, para defesa de direitos próprios de

propriedade e vizinhança), ou apenas o município, quando se trata de defender o

cumprimento da ordem legal (art. 934, III), não havendo na lei autorização expressa

para o indivíduo agir em substituição dessa entidade, quando a obra iniciada não o afete

diretamente, mesmo que se opere de forma ilegal.

No exemplo dado, caso a obra iniciada em afronta à lei ou regulamentos de

ordem geral provoque uma situação de urgência, afetando bens de natureza coletiva

(patrimônio público e meio ambiente, p. ex.), o particular não poderia se valer do

embargo extrajudicial para acautelar a situação, mas poderia utilizar-se da ação popular

constitucional e, nesse procedimento específico, requerer a tutela liminar do direito (art.

5º, §4º, da Lei nº 4.717/65), para proteção de valores de ordem urbanística e ambiental,

protegidos por essa ação.

Até mesmo porque, como esclarecem Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz

Arenhart, o embargo extrajudicial, da ação de nunciação de obra nova, é medida que

não se confunde com a atividade de poder de polícia, realizada pela Administração

Pública, que pode ser efetivada a qualquer momento, se verificada a infração da regra

jurídica, de ofício ou a requerimento do interessado. 100

A ação popular constitucional,

ao proteger o patrimônio público, de valor histórico e cultural, o meio ambiente, além

de outros interesses, permite que o cidadão diretamente provoque esse dever de

autotutela da Administração, o que não ocorre na nunciação de obra nova.

direito de vizinhança esteja sendo construída com infração à lei ou a qualquer regulamento edilício,

caso em que o particular estaria legitimado para promover a nunciatória, mas nesse caso a ação lhe

seria atribuída não com fundamento no art. 934, III, e sim porque os pressupostos da ação dos incisos

I e II deste artigo ter-se-iam verificado (SILVA, Ovídio Baptista da. Procedimentos especiais. Rio de

Janeiro: Aide, 1989. p. 295-299). 100

MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Procedimentos especiais. São Paulo: RT,

2009. p. 214.

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49

A forma como a nunciação de obra nova ora se encontra prevista em nosso

ordenamento difere, portanto, daquilo que os praxistas traziam do Digesto (D. 39.1.3;

D. 43.8.2,34), no período das Ordenações Filipinas (vide item 4), em que havia

autorização para qualquer pessoa embargar obras nocivas que prejudicassem lugares

públicos, verdadeiras ações populares.

Da mesma forma que, como visto, a ação popular não se confunde com a ação

civil pública, mesmo que tenham objetos semelhantes (em razão de sua legitimidade

específica), as demais ações de direito coletivo também ostentam importantes distinções

em relação à ação popular.

As normas que regulam a ação civil pública, a ação popular, a ação de

improbidade, o mandado de segurança coletivo, entre outros, 101

formam no direito

brasileiro um conjunto de regras específicas que entre si dialogam e se intercomunicam,

no que Rodrigo Mazzei chama de microssistema da tutela coletiva. Esclarece esse autor

que, à míngua de uma regulação codificada, a tutela de massa é regulada por uma gama

de diplomas interligados, com princípios comuns, formando um microssistema que

permitiria a comunicação constante da legislação atrelada ao direito coletivo. Defende,

por isso, que as omissões internas das leis que compõem o sistema de massa serão

supridas por normas dos outros diplomas que fazem parte do microssistema para,

somente após, em postura residual, se cogitar da aplicação do Código de Processo Civil.

102

Não obstante o caráter intercambiante de suas normas, as ações que compõem

o microssistema da tutela coletiva não necessariamente se equivalem, sendo importante

destacar como a ação popular se distingue nesse sistema.

101

Sérgio Cruz Arenhart observa que a Lei da Ação Civil Pública (lei nº 7.347/85) e o Código de Defesa

do Consumidor (Lei nº 8.078/90) formam um sistema integrado de regras (vide art. 90 do CDC cc/ art.

21 LACP) estando, portanto, interligados, existindo perfeita interação entre os dois estatutos legais.

Acrescenta, contudo, que esse sistema de proteção dos interesses coletivos no direito brasileiro

também é composto por leis esparsas, relativas a situações específicas, como a Lei nº 7.913/89 (que

trata da ação civil pública de responsabilidade por danos causados aos investidores do mercado de

valores mobiliários), a Lei do Abuso do Poder Econômico (Lei nº 8.884/94) e o Estatuto da Criança e

do Adolescente (Lei 8.069/90) (ARENHART, Sérgio Cruz. Perfis da tutela inibitória coletiva. São

Paulo: RT, 2003. p. 153). Além de tais leis esparsas apontadas por Arenhart, também se identifica no

Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/2003), todo um capítulo (III) dedicado à proteção judicial dos

direitos difusos, coletivos e individuais indisponíveis ou homogêneos. 102

MAZZEI, Rodrigo. Ação popular e o microssistema da tutela coletiva. Tutela jurisdicional coletiva.

Coord.: Fredie Didier Jr., José Henrique Mouta Araújo. Salvador: Juspodivm, 2009. p. 380-384.

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50

A Lei nº 8.429/92 dispõe sobre a denominada improbidade administrativa (art.

37, §4º, CR/88), que configura forma qualificada de imoralidade administrativa, 103

ponto que aproxima a ação de improbidade da ação popular, ambas voltadas ao controle

da higidez da Administração Pública.

Analisando a estrutura dessa lei, Fábio Medina Osório a considera um “Código

Geral de Conduta dos agentes públicos brasileiros”, balizador de todo o setor público,

cominando sanções jurídicas às posturas transgressoras. 104

A improbidade

administrativa tratada na lei é configurada a partir de delitos institucionais contra a

Administração Pública, ou seja, transgressões disciplinares. 105

Por isso encontra-se

descrito na Lei 8.429/92 condutas (dolosas e culposas) que consubstanciam atos de

improbidade, suas respectivas sanções, bem como seu rito específico, no intento de

responsabilizar agentes públicos e demais beneficiados por seus delitos.

Já a Lei da Ação Popular preocupa-se em definir máculas do ato

administrativo, porquanto visa a controlar a atuação da própria da Administração

Pública, razão pela qual os entes estatais podem figurar no polo passivo dessa ação, 106

ao passo que na ação de improbidade, às entidades públicas cabe apenas a possibilidade

de propor a ação (ao lado do Ministério Público), nunca figurando como réus. A Lei de

Improbidade Administrativa resguarda o bom funcionamento da Administração Pública

responsabilizando seus agentes; a Lei da Ação Popular, por seu turno, tenta garantir esse

mesmo objetivo, primordialmente, controlando a atuação administrativa.

Conquanto essas duas ações se voltem para o controle legal da Administração

Pública, a diferença em seus respectivos regimes corresponde bem à forma como a

Constituição regula a responsabilidade civil do Estado, em seu §6º, art. 37. Esse

dispositivo consagra, como regra, a responsabilidade objetiva das pessoas jurídicas de

direito público (e das de direito privado prestadoras de serviços públicos), restando a

103 Fábio Medina Osório esclarece que a improbidade administrativa é uma patologia que poderia ser

vista de ângulos muito distintos, porém todos reconduzindo ao universo da honra funcional e da

imoralidade administrativa, como especialização de uma imoralidade mais ampla. A improbidade

administrativa seria, afinal, uma imoralidade qualificada pelo direito administrativo, no universo da

ética pública, no contexto de normas jurídicas especificamente protetoras das funções públicas, dos

valores imanentes às Administrações Públicas e aos serviços públicos (OSÓRIO, Fábio Medina.

Teoria da Improbidade Administrativa. São Paulo: RT, 2007. p. 86-87). 104

OSÓRIO, Fábio Medina. Op. Cit. p. 186. 105

Sobre um mesmo fato podem incidir normas penais e administrativas, de forma que um mesmo delito

pode configurar improbidade administrativa e também um ilícito penal, em razão da independência

das normas sancionadoras (OSÓRIO, Fábio Medina. Op. Cit. p. 229). 106

Ressalva-se a possibilidade do artigo 6º, § 3º, da Lei 4.717/65: “As pessoas jurídicas de direito público

ou de direito privado, cujo ato seja objeto de impugnação, poderá abster-se de contestar o pedido, ou

poderá atuar ao lado do autor, desde que isso se afigure útil ao interesse público, a juízo do respectivo

representante legal ou dirigente”.

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51

possível responsabilização direta dos seus agentes como direito de regresso, em caso de

dolo ou culpa. 107

Não obstante decisões recentes moderarem essa regra, 108

o regime básico de

responsabilidade civil no setor público excepciona, ou traz mais requisitos, quando se

trata de atingir diretamente o agente público causador de dano, encaixando-se bem a lei

de improbidade administrativa nesse quadro, pois traz maiores exigências formais e

legitimação restrita (apenas Ministério Público e pessoa jurídica interessada, nos termos

do art. 17), até mesmo porque pode afetar severamente a esfera de direitos civis e

políticos de agentes públicos e terceiros beneficiados (vide artigo 12 e seus incisos). Por

isso, mesmo que admitida a possibilidade de haver intercâmbio de normas entre os dois

diplomas legais em questão, nos assuntos afins, por força de integrarem o mesmo

microssistema, ainda assim as ações popular e de improbidade não se confundem,

submetidas cada qual a requisitos diferenciados.

107

Fábio Medina Osório deduz que, em sua evolução garantista, o direito administrativo de corte francês

conduziu a uma excessiva impessoalidade da Administração Pública europeia e, consequentemente,

latino-americana. O reflexo negativo desse processo notar-se-ia no enfraquecimento dos regimes de

responsabilidades pessoais, consagrando-se, crescentemente, uma espécie de quase-anonimato no qual

o sujeito se esconderia atrás do Estado, o qual ficaria responsável, como numa estrutura paternalista,

por todos os prejuízos. O oposto disso desenvolveu-se no common law, mais propenso a

responsabilizar pessoalmente os agentes públicos. Em vista disso, propõe esse autor que os sistemas

de civil law deveriam inspirar-se mais frequente nos postulados de responsabilização pessoal dos

agentes públicos disponíveis no common law, porquanto, embora a responsabilidade do Estado ante os

cidadãos seja muito conveniente a estes últimos, facilitando-lhes as demandas, não se poderia ignorar

que a ausência de responsabilidade do funcionário seria nociva ao bom andamento da Administração

Pública (OSÓRIO, Fabio Medina. Op. Cit. p. 96-97) 108

O Supremo Tribunal Federal consagrou em sua jurisprudência a chamada “tese da dupla garantia” (RE

327904, j. 15/08/06; RE 344133, j. 09/09/08; RE 720275, j. 10/12/12), que não permitia ao ofendido

propor a demanda de responsabilidade civil diretamente contra o agente público, pois o dispositivo

constitucional (§6º, art. 37) teria consagrado duas garantias, quais sejam, (i) a primeira, em favor do

particular lesado, pois intentando ação de indenização contra o Estado, não teria que provar que o

agente público agiu com dolo ou culpa; (ii) a segunda, em favor do próprio agente público que causou

o dano, pois, implicitamente, o dispositivo constitucional em questão garantiria que a vítima não

poderia acionar diretamente o agente público que praticou o ato, que somente poderia ser

responsabilizado pelo dano se acionado pelo Estado, em ação regressiva, após o Poder Público já ter

ressarcido o ofendido. A 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, contudo, reconheceu a

possibilidade de o particular ajuizar a demanda diretamente contra o servidor (REsp 1.325.862-PR, j.

05/09/2013), deduzindo que “o art. 37, § 6º, da CF/1988 prevê uma garantia para o administrado de

buscar a recomposição dos danos sofridosdiretamente da pessoa jurídica que, em princípio, é mais

solvente que oservidor, independentemente de demonstração de culpa do agentepúblico. Vale dizer, a

Constituição, nesse particular, simplesmenteimpõe ônus maior ao Estado decorrente do risco

administrativo; nãoprevê, porém, uma demanda de curso forçado em face da AdministraçãoPública

quando o particular livremente dispõe do bônus contraposto.Tampouco confere ao agente público

imunidade de não ser demandadodiretamente por seus atos, o qual, aliás, se ficar comprovado doloou

culpa, responderá de outra forma, em regresso, perante aAdministração”. Atualmente, portanto, a

jurisprudência dos tribunais superiores encontra-se dividida, havendo precedentes que admitem e

outros que não admitem acionar diretamente o agente público em casos de responsabilidade civil do

Estado.

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O mesmo se diga quanto às normas que regulam a ação popular e aquelas

direcionadas ao mandado de segurança coletivo (artigos 21 e 22, da Lei 12.016/2009),

também integrantes do microssistema da tutela coletiva. Ainda que também voltado ao

ataque de atos ilegais ou abusivos da Administração Pública (que atentem contra direito

líquido e certo), o mandado de segurança coletivo se distingue da ação popular, mais

uma vez, pela sua legitimação específica (partidos políticos com representação no

Congresso Nacional, organização sindical, entidade de classe ou associação) e caráter

residual (quando não cabível "habeas-corpus" ou "habeas-data"), não obstante possa ter

por objeto bens de titularidade transindividual.

Tais circunstâncias demonstram que o microssistema da tutela coletiva, que

será explorado mais detidamente em capítulo próprio, abre novas possibilidades de

aplicação a partir do caráter intercomunicante de suas normas, mas também ostenta

limitações.

O cotejo da ação popular com os outros principais meios de tutela coletiva do

nosso ordenamento demonstra o caráter singular dessa ação de origem remota, perante

tema tão atual como a defesa e concretização de direitos metaindividuais.

Hodiernamente no direito brasileiro, apenas a ação popular possibilita ao sujeito

individual invocar o amparo legal de interesses e direitos de toda a coletividade,

características que distinguem essa ação e orientam suas possibilidades de tutela.

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2. CAPÍTULO II.A AÇÃO POPULAR E OS PODERES DO ESTADO:

POSSIBILIDADES DE TUTELA E FORMAS DE EXERCÍCIO.

2.1 Introdução

Quando se trata de controle dos atos estatais – tema bastante caro ao direito

público – logo se mostra necessário fazer menção à ação popular, um dos meios mais

tradicionais para se tentar submeter os entes públicos ao direito e à lei. Como a ação

popular é marcada pela peculiaridade de ser postulada por um cidadão, a sempre

delicada relação entre Poder Público e particulares assume aqui destacada relevância,

eis que a forma como essa relação de poder é tratada pelo ordenamento e pelos

estudiosos da matéria irá influenciar na efetividade do controle possibilitado pela ação

popular.

A ação popular, como possibilidade legal de controle e reclamação perante o

Poder Público, há muito consta de nosso ordenamento (Cap. 01), razão pela qual se fez

presente em diferentes fases do desenvolvimento do Estado e sua relação com os

cidadãos, assim como acompanhou o gradual reconhecimento de bens coletivos

passíveis de tutela. Tudo isso faz necessário que o estudo da ação popular leve em conta

as transformações pelas quais passaram as relações de direito público nos últimos anos,

contextualizando seu tratamento legal com as exigências que a nova ordem

constitucional e a evolução do direito administrativo trouxeram para o controle da

atuação estatal.

Essa busca pela máxima efetividade da ação popular permite se vislumbrar

potencialidades de seu exercício em diferentes vias (judicial e administrativa), como

também diversas possibilidades de tutela, indo além do que tradicionalmente se

entendia como participação do cidadão na atuação administrativa. Para tanto, toma-se

como base a teoria da ação e os diversos planos em que o fenômeno jurídico pode se

manifestar (material, processual, pré-processual), a fim de se melhor compreender o

efetivo poder de controle e intervenção da ação popular.

2.2 Ação Popular e controle dos atos estatais: um novo entendimento acerca dos

paradigmas tradicionais do Direito Administrativo.

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Ao analisar o processo de formação do direito público europeu pós-Revolução

Francesa, García de Enterría trata dos fundamentos de um Direito Administrativo em

construção, que se valeu do conceito moderno de liberdade e individualismo pós-

revolucionário, para admitir restrições aos cidadãos apenas quando fundamentadas em

lei (la libertad de los modernos). 109

Essa noção se fez presente no modelo de

Administração exportado por Napoleão para as demais nações europeias sob seu jugo e,

com a instauração do contencioso administrativo, possibilitou-se o questionamento da

legalidade dos atos administrativos e sua possível anulação. 110

O doutrinador espanhol afirma que essa possibilidade de contraste dos atos

administrativos com a lei, a qual marcou o início do Direito Administrativo, não

existiria apenas para garantir que a atuação da Administração observasse a estrita

legalidade. Seria viável também para a anulação de um ato administrativo visando a um

direito subjetivo do cidadão, não para forçar determinado comportamento na

Administração, mas para garantir que a esfera vital de direitos da pessoa não fosse

afetada sem observância das competências e procedimentos legais. 111

Ao tratar das origens do Direito Administrativo, Celso Antônio Bandeira de

Mello também afirma que este nasce com o Estado de Direito, disciplinando as relações

entre Administração e administrados, com o fito de manter a conduta estatal restrita às

disposições legais e proteger o cidadão contra os descomedimentos dos detentores do

poder. 112

Sustenta que o regime jurídico-administrativo fundamenta-se sobre a

denominada supremacia do interesse público sobre o privado e a indisponibilidade dos

interesses públicos pela Administração, sendo a supremacia do interesse público um

axioma que, em suas palavras, “proclama a superioridade do interesse da coletividade,

109

Esse termo a que García de Enterría apenas faz referência é parte de uma distinção cunhada por

Benjamin Constant, em que são opostos os conceitos de liberdade dos antigos e liberdade dos

modernos. A liberdade dos antigos tem mais acentuada a participação política, pois, na Cidade grega,

a participação na decisão política, no seio da assembléia do povo, era a única expressão da liberdade,

podendo a regra democraticamente elaborada entrar em todos os pormenores da existência cotidiana

do cidadão, a ponto de privá-lo de toda autonomia e, ainda assim, este se considerava um homem

livre. Já a liberdade dos modernos teria como aspiração menos a participação no poder, concentrando-

se mais em subtrair do domínio público a condução da existência individual. A liberdade civil, para os

Modernos, seria a verdadeira liberdade. (RIVERO, Jean. Liberdades Públicas. São Paulo: Martins

Fontes, 2006. p. 54). 110

La Lengua de los derechos: la formación del derecho público europeo trás la revolución

francesa. Madrid: Alianza Editorial, 1999. p 186-194. 111

ENTERRÍA, Eduardo García de. Op. Cit. p. 195. 112

Curso de Direito Administrativo. 27ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 47.

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55

firmando prevalência dele sobre o do particular, como condição, até mesmo, da

sobrevivência e asseguramento deste último.” 113

A propósito, a ideia de um interesse público superior a nortear a atividade

estatal é comumente suscitada pelos estudiosos da matéria, seja para justificar a

autoridade que o Estado desfruta em suas relações jurídicas com os particulares, 114

seja

para temperar a estrita vinculação dos atos da Administração à lei, a fim de que as

formalidades legais não sejam direcionadas para beneficiar os interesses particulares de

grupos influentes. 115

Essa noção de interesse público sempre se mostrou muito cara ao Direito

Administrativo, porque justifica o regime jurídico especial dos entes públicos e seus

respectivos atos (atributos e prerrogativas), a fim de se atender ao bem geral. Logo,

como fim último da atividade administrativa, o interesse público deveria permear toda

esta atuação, não sendo compatíveis com a ordem jurídica os atos praticados sem tal

finalidade, de acordo com o entendimento clássico da matéria.

No entanto, essa configuração tradicional do Direito Administrativo, cuja

suposta defesa do interesse público coloca a Administração Pública em posição de

primazia sobre os administrados, vem sofrendo fortes críticas da doutrina nos últimos

anos.

Para Gustavo Binenbojm, o caráter autoritário do Direito Administrativo seria

decorrente de um “pecado original”, que se manifestou desde o surgimento desse ramo

autônomo do direito. Em suas palavras:

113

Idem. Ibidem. p. 69-75. 114

Carlos Ari Sundfeld afirma que a existência do Estado é justificada pela necessidade de atender a

certos interesses coletivos que os indivíduos isolados não poderiam alcançar, sendo estes interesses

públicos atribuídos ao Estado e qualificados pelo direito como mais relevantes e prioritários, quando

confrontados com os direitos particulares (Fundamentos de Direito Público. 5ª Ed . São Paulo:

Malheiros, 2012. p. 154). Nessa mesma linha, Hely Lopes Meirelles dispõe que “sempre que entrarem

em conflito o direito do indivíduo e o interesse da comunidade, há de prevalecer este, uma vez que o

objetivo primacial da Administração é o bem comum. As leis administrativas visam, geralmente, a

assegurar essa supremacia do Poder Público sobre os indivíduos, enquanto necessária à consecução

dos fins dos fins da Administração” (Direito Administrativo Brasileiro. 35ª Ed. São Paulo:

Malheiros, 2009. p. 50.) 115

Maria Sylvia Zanella di Pietro identifica a premência do interesse público na atividade administrativa,

em especial na aplicação da lei, nos seguintes termos: “Se a lei dá à Administração os poderes de

desapropriar, de requisitar, de intervir, de policiar, de punir, é porque tem em vista atender ao interesse

geral, que não pode ceder diante do interesse individual. Em consequência, se, ao usar de tais poderes,

a autoridade administrativa objetiva prejudicar um inimigo político, beneficiar um amigo, conseguir

vantagens pessoais para si ou para terceiros, estará fazendo prevalecer o interesse individual sobre o

interesse público e, em consequência, estará se desviando da finalidade pública prevista na lei. Daí o

vício do desvio de poderou desvio de finalidade, que torna o ato ilegal.” (Direito Administrativo. 22ª

Ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 66).

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A associação da gênese do direito administrativo ao advento do Estado de

Direito e do princípio da separação de poderes na França pós-revolucionária

caracteriza erro histórico e reprodução acrítica de um discurso de

embotamento da realidade repetido por sucessivas gerações, constituindo

aquilo que Paulo Otero denominou ilusão garantística da gênese. O

surgimento do direito administrativo, e de suas categorias jurídicas peculiares

(supremacia do interesse público, prerrogativas da Administração,

discricionariedade, insindicabilidade do mérito administrativo, dentre outras),

representou antes uma forma de reprodução e sobrevivência das práticas

administrativas do Antigo Regime que a sua superação. A juridicização

embrionária da Administração Pública não logrou subordiná-la ao direito; ao

revés, serviu-lhe apenas de revestimento e aparato retórico para sua

perpetuação fora da esfera de controle dos cidadãos. 116

A partir daí, sustenta uma mudança dos velhos paradigmas do Direito

Administrativo, em especial a supremacia do interesse público, pois a determinação a

priori de uma preponderância dos interesses públicos sobre os privados não seria

compatível com o reconhecimento da centralidade do sistema de direitos fundamentais

instituído pela Constituição, bem como com a estrutura pluralista e maleável dos

princípios constitucionais. 117

Aliam-se a essa posição crítica Alexandre Santos de Aragão, para quem o

interesse público deve ser considerado pela Administração de forma ponderada com

outros valores constitucionais e não sempre de forma superior a estes; 118

assim como

Daniel Sarmento, o qual destaca que a proteção e promoção dos direitos fundamentais

dos cidadãos é um imperativo constitucional do Estado, sendo por isso também um

interesse público, 119

além de outros estudiosos. 120

Nessa mesma linha, Raimundo Márcio Ribeiro Lima também identifica uma

vertente autoritária no direito administrativo desde seu reputado nascedouro, logo após a

Revolução Francesa, defendendo que o direito administrativo, de fato, nasceu da

116

Uma teoria do Direito Administrativo: direitos fundamentais, democracia e

constitucionalização. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 11. 117

BINENBOJM, Gustavo. Op. Cit. p. 31. 118

A “Supremacia do Interesse Público” no advento do Estado de Direito e na hermenêut ica do Direito

Público Contemporâneo. Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o

Princípio de Supremacia do Interesse Público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 05. 119

Interesses Públicos vs. Interesses Privados na perspectiva da Teoria e Filosofia Constitucional.

Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o Princípio de Supremacia do

Interesse Público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 83. 120

Nesse mesmo sentido, veja-se: SILVA, Frederico Rodrigues. A relatividade da Supremacia do

Interesse Público: um estudo comparado. Direito Público. v. 08, n. 43, jan./fev. 2012. p. 195-230;

SADDY, A. Conceito de interesse público em um Estado em transformação. Fórum Administrativo –

Direito Público – FA. Ano 10, n.108, fev. 2010. Belo Horizonte: Fórum, 2010. p. 29-42; CUNHA,

Carlos Eduardo Bergamini. Discricionariedade Administrativa e interesses públicos: superando a

supremacia em busca da ponderação. Fórum Administrativo – Direito Público – FA. Ano 11, n.

122, abr. 2011. Belo Horizonte: Fórum, 2011.p. 9-21; PEDRON, Flávio Quinaud. O Dogma da

Supremacia do Interesse Público e seu abrandamento pela jurisprudência do Supremo Tribunal

Federal através da técnica da ponderação de princípios. Direito Público. nº 28 – Jul-Ago./2009. p.

217-234.

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57

necessidade ou imperiosa comodidade de prescrever meios ou instrumentos

diferenciados para lidar com questões relacionadas ao Poder Público. Isso teria

resultado em um regime que outorgava enormes privilégios ao Estado, já em fins do

século XVIII e início do século XIX, o qual, em alguns pontos, ainda perduraria até

nossos dias. 121

Para este autor, o direito administrativo no Brasil absorveu diversas

contribuições estrangeiras em sua formação e desenvolvimento, além da já citada

tradição francesa, como a adoção do sistema de jurisdição una, de influência norte-

americana, e da noção de mérito administrativo, do direito italiano, entre outras

inspirações. Contudo, não se teria visto livre do exercício autocrático das funções

públicas, 122

característica que ainda se mostraria presente no nosso regime de direito

público, em que se outorgam garantias privilegiadas aos entes estatais, com base,

notadamente, na supremacia do interesse público.

Essa ideia de supremacia dos entes públicos nas relações de direito encontra

sustentação já em obras clássicas do direito administrativo. Oswaldo Aranha Bandeira

de Mello afirma que a manifestação de vontade do Estado-poder, em relação a sua

organização e ação, se exterioriza num plano de superioridade com relação a seus

órgãos, entidades políticas menores e aos particulares e, ante o “caráter autoritário dela”

(manifestação de vontade estatal), confere e assegura direitos a todos eles, ao mesmo

tempo que lhes impõe obrigações, porque regida pelo direito. 123

Esse mesmo autor ressalva que as possíveis lesões a direitos de terceiros,

decorrentes do exercício das respectivas atribuições dos órgãos do Estado-poder, seriam

resolvidas pela reparação das perdas e danos, compondo-se os prejuízos havidos,

configurando-se nesses estritos termos a responsabilidade do Estado-poder. 124

Vê-se que, em sua clássica doutrina publicista, admite-se o resguardo dos

direitos de terceiros perante a atuação do Poder Público, como um imperativo essencial

do direito administrativo. Todavia, apenas se reconhece a possibilidade de reparação

121

Da mesma forma que Gustavo Binenbojm, este autor também contesta o nascimento do direito

administrativo a partir da Lei de 28 pluviose do ano VIII (1800), tida como a origem formal do direito

administrativo. Afirma que a gênese do direito administrativo estaria ligada ao caso Arrêt Blanco, já

na metade do século XX, no qual ficou definida a existência de um direito aplicável aos particulares,

conforme a regra do direito civil, e outro, entre a administração pública e o particular, o qual seria o

direito administrativo. (LIMA, Raimundo Márcio Ribeiro. Administração Pública Dialógica.

Curitiba: Juruá, 2013. p. 36-37). 122

LIMA, Raimundo Márcio Ribeiro. Op. Cit. p. 50-52. 123

MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Princípios gerais de direito administrativo. 3ª Ed. São

Paulo: Malheiros: 1979. p. 70. Vol. 1. 124

MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira. Op. Cit. p. 71-72.

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patrimonial dos eventuais danos. A responsabilidade do Estado aqui assume um caráter

ressarcitório, sem se cogitar de outros deveres legais exigíveis do poder estatal em

decorrência de sua sujeição ao direito, assumindo o Poder Público posição de primazia

na relação jurídica que encabeça.

Em que pese não ser unânime essa tendência atual de conclamar a

incompatibilidade da supremacia do interesse público com o próprio Estado

Democrático de Direito e os direitos fundamentais, 125

é certo que a vertente crítica

desse axioma trouxe à tona diversas questões as quais não devem ser ignoradas quando

se considera a atuação da Administração Pública frente aos novos preceitos

constitucionais. A relação entre Administração e administrados é tida, atualmente, como

um dos pontos fulcrais na reflexão acerca dos problemas do direito administrativo,

tendo em vista que os novos parâmetros que regem o direito público demandam

mudanças na tradicional relação fechada e refratária entre a Administração e a

sociedade, bem como no tratamento dos indivíduos como súditos, e não como cidadãos.

126

Merece destaque, em especial, a crítica à visão unitária do interesse público. O

amplo espectro de direitos e garantias albergados em sede constitucional compreende

interesses de diversas naturezas, podendo-se identificar tanto aqueles de caráter

individual, quanto os de feição coletiva, havendo ainda os de cunho civil, político,

econômico, social, dentre outros. 127

125

Maria Silvia Zanella de Pietro é uma forte crítica dessa corrente, pois defende, a princípio, que a

noção de interesses gerais diversos dos interesses individuais encontra suas origens desde a

antiguidade greco-romana, tendo o princípio do interesse público no direito administrativo se

desenvolvido, principalmente, com o advento do Estado Social de Direito e a crescente atuação estatal

em diversos setores. Argumenta ainda que “a defesa do interesse público corresponde ao próprio fim

do Estado. O Estado tem que defender os interesses da coletividade. Tem que atuar no sentido de

favorecer o bem-estar social. Para esse fim, tem que fazer prevalecer o interesse público em

detrimento do individual, nas hipóteses agasalhadas pelo ordenamento jurídico. Negar a existência do

princípio da supremacia do interesse público é negar o próprio papel do Estado” (O princípio da

supremacia do interesse público. Interesse Público, ano 11, n. 56, jul./ago. 2009. Belo Horizonte:

Fórum, 2009. p. 36-48). 126

MEDAUAR, Odete. O direito administrativo em evolução. 2ª Ed. São Paulo: RT, 2003.p. 220. 127

Ao tratar da ideologia constitucional e sua presença no conceito material de Constituição, o professor

Ivo Dantas leciona que aquela deve representar a ordem constitucional como um todo, incluindo-se aí

os princípios consagrados pela sociedade, de diversas naturezas: econômicos, culturais, políticos, etc.

Contudo, o constitucionalista pondera que os diversos valores que compõem a ideologia

constitucional consagrada são frutos de uma tentativa de consenso dos representantes que elaboram o

texto da Constituição e não de uma unanimidade (Constituição e Processo. 2A Ed. Curitiba: Juruá,

2011. p. 45-46). Relaciona-se com essa idéia o quanto defendido por Gustavo Zagrebelsky, o qual

destaca a necessária coexistência de valores e princípios em uma Constituição, para que esta se

mantenha compatível com sua base material pluralista, além de comprometida com escopos de

unidade e integração. Tal conjuntura exigiria, por sua vez, que tais valores e princípios não

assumissem um caráter absoluto, a fim de que pudessem coexistir entre si de forma compatível (El

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59

A concepção heterogênea da atual Constituição, representativa de uma

sociedade complexa e pluralista, permitiria concluir não haver apenas um interesse

público, mas vários. Essa multiplicidade conduz a doutrina contemporânea a defender a

impossibilidade de rigidez na prefixação do interesse público, sendo certo que interesses

relevantes (como saúde pública, segurança, defesa do patrimônio público etc.) podem

conflitar no caso concreto, nem sempre havendo regra predeterminada que defina a

preponderância de um sobre o outro. 128

Ademais, com a superação do Estado Liberal e o advento de uma sociedade

mais aberta e democrática, a rígida separação entre as esferas pública e privada na

ordem jurídica não se mostraria mais suficiente para regular as relações que se formam,

até mesmo pela própria imprecisão dos referidos conceitos. 129130

A consagração em

sede constitucional de direitos sociais torna exigível do Estado o atendimento de

expectativas privadas e, portanto, essa esperada atuação mais incisiva do Poder Público

nas relações sociais culminaria por trazer para as relações privadas parâmetros de direito

público e vice-versa. 131

Esse notável agigantamento do Estado, a partir do significativo aumento de sua

esfera de intervenção, em grande medida, contribuiu para a crise pela qual passa o

direito administrativo. Quanto mais se aumentavam os fins do Estado e a consequente

necessidade de expansão de seus serviços em benefício da coletividade, mais se

mostrava evidente a anacronia dos cânones conceituais do direito administrativo,

porquanto as velhas estruturas não se mostram eficientes em atender às novas demandas

advindas das Constituições mais recentes. 132

Jean Rivero bem notou a distinção entre os clássicos direitos que consagravam

as chamadas liberdades públicas e aqueles posteriormente reconhecidos, de natureza

derecho dúctil: ley, derechos, justicia. Madrid: Trotta, 2009. p. 14). Como bem expõem os

estudiosos citados, a heterogeneidade de valores que costumam compor uma Constituição é um dado

que não deve ser ignorado, especialmente no âmbito das constituições dirigentes, da qual a brasileira é

um exemplo. 128

ARAGÃO, Alexandre Santos de. Op. Cit. p. 06-07. 129

SARMENTO, Daniel. Op. Cit. 49-50. 130

Nelson Saldanha observa que o advento do liberalismo, no mundo ocidental, consagrou

correlativamente o racionalismo burguês e a secularização da cultura, os quais aliados ao aumento

demográfico, contribuíram para a tecnocracia e os regimes de massa que eclodiram no século XX.

Essa “massificação”, ao lado do incremento das comunicações, resultaram por rebentar as divisões

entre publicidade e privacidade (O Jardim e a praça. Porto Alegre: SAFE, 1986. p. 19). 131

Como exemplo dessa tendência, pode-se apontar as relações de consumo, reguladas pelo Código de

Defesa do Consumidor (Lei 8.078/95), tendo em vista que a própria Constituição, em seu art. 5O, inc.

XXXII, já determinava que “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”. Com

isso, relações tipicamente privadas passaram a ser regidas também por normas de ordem pública, em

virtude das fortes repercussões sociais que advém das relações de consumo. 132

LIMA, Raimundo Márcio Ribeiro. Op. Cit. p. 56-57.

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diversa, os quais buscavam garantir um mínimo de segurança material, implicando

diversos deveres positivos ao Estado. Em suas palavras:

Esses direitos do homem, tão essenciais quanto aqueles que inicialmente

haviam sido reconhecidos, contudo, distinguem-se deles profundamente do

ponto de vista jurídico: conferem a seu titular, não um poder de livre opinião

e de livre ação, mas um crédito contra a sociedade, obrigada a fornecer, para

lhes satisfazer, prestações positivas que implicam a criação de serviços

públicos: seguridade social, serviço de colocação de emprego, ensino etc. 133

Essa passagem do Estado-Liberal para o Estado-Providência provocou abalos

nas estruturas básicas do direito administrativo, porquanto “construído para lidar com o

embate entre autoridade e liberdade, viu-se o direito administrativo, de súbito, tomado

por questões de organização e de execução da função administrativa, que antes lhe

eram, senão estranhas, ao menos subalternas”. 134

Vê-se então que, ao lado da já

destacada crise autoritária do direito administrativo, também é notável uma crise de

eficiência, vez que o Estado assumiu maiores deveres e, não obstante sua ampla gama

de prerrogativas nas relações jurídicas públicas, não logrou atender bem todas as

expectativas criadas.

Isso porque o direito administrativo, em sua feição tradicional, foi forjado para

regular a atuação estatal frente aos clássicos direitos liberais que exigiam condutas

omissivas da administração pública. Tal como se dessume das lições expostas por

García de Enterría e Oswaldo Bandeira de Mello, a sujeição do Estado ao direito, em

princípio, visava a controlar e reparar possíveis desbordamentos danosos de sua

conduta, sem se cogitar da possibilidade de se responsabilizar judicialmente o Estado

para forçar a prática de atos em favor dos cidadãos.

Atualmente, a própria ordem constitucional impõe ao Estado o cumprimento de

deveres positivos em favor dos indivíduos e da coletividade. Considerando a força

cogente das normas constitucionais, 135

é evidente que agora o controle legal da

133

RIVERO, Jean. Op. Cit. p. 12. 134

BAPTISTA, Patrícia. Transformações do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p.

19. 135

Esse reconhecimento da força normativa e cogente dos dispositivos constitucionais é derivada do

neoconstitucionalismo, termo que pretende explicar um conjunto de textos constitucionais que

começaram a surgir depois da Segunda Guerra Mundial, sobretudo a partir dos anos 70 do século XX,

entre os quais se enquadra a Constituição brasileira de 1988. Tais Constituições não se limitavam

mais a estabelecer competências e separar os poderes públicos, mas continham também normas

materiais que condicionavam a atuação do Estado, estabelecendo fins e objetivos. Caracterizavam-se

ainda por conter amplos catálogos de direitos fundamentais, renovando o marco de relações entre

Estado e cidadão e modificando a prática jurisprudencial, a qual passou a funcionar sob parâmetros

interpretativos novos, mais complexos, com a aplicação de princípios constitucionais, ponderação,

proporcionalidade e maximização dos efeitos normativos dos direitos fundamentais (CARBONELL,

Miguel. El neoconstitucionalismo: significado y niveles de análisis. El canon neoconstitucional.

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Administração Pública possibilita não apenas eventual anulação de ato administrativo,

como também a exigência de prática de ato em favor dos cidadãos, podendo-se, para

tanto, utilizar até mesmo as vias jurisdicionais, além dos meios administrativos de

resolução de conflitos.

Logo, não se pode mais entender que apenas a Administração Pública, em sua

atuação unilateral, pode definir o que é interesse público e conduzir sua atuação, sem

considerar os demais atores sociais. Os próprios cidadãos e suas entidades

representativas, até mesmo o Poder Judiciário, quando provocado, podem contribuir

para apontar os interesses relevantes que a Administração Pública deve considerar ao

concretizar sua atuação. 136

O valor participação ganha destaque nessa nova conjuntura,

representando uma via de abertura para os cidadãos influenciarem na atuação

administrativa, conferindo maior legitimidade às decisões e, assim, mitigando em parte

a crise autoritária e representativa da qual padece o Poder Público no Brasil. 137

Org.: Miguel Carbonell, Leonardo Jaramillo. Madrid: Trotta, 2010. p. 154-155). Integra o fenômeno

do neoconstitucionalismo aquilo que Ricardo Guastini identifica como “constitucionalização do

ordenamento jurídico”, marcado pela presença de uma Constituição bastante “invasora”, capaz de

condicionar a legislação, a jurisprudência, a doutrina, a ação dos atores políticos e as relações sociais.

As condições que marcam esse processo de constitucionalização do ordenamento são, entre outras, a

força vinculante da constituição (toda norma constitucional é vinculante e capaz de produzir efeitos

jurídicos) e a aplicação direta das normas constitucionais (as normas constitucionais – mesmo os

princípios e as normas programáticas – podem ser produzir efeitos diretos e ser aplicadas por qualquer

juiz, em qualquer controvérsia) (GUASTINI, Ricardo. La constitucionalización del ordenamento

jurídico. Neoconstitucionalismo(s). Org.: Miguel Carbonell. Madrid: Trotta, 2009. p. 49-55). O

ordenamento brasileiro, marcado por uma Constituição de cunho amplo e abrangente, não fugiu dessa

tendência, especialmente no que concerne ao reconhecimento da força normativa e da aplicação direta

dos direitos fundamentais. 136

Cabível nesse ponto fazer menção à noção trazida por Peter Häberle de que “no processo de

interpretação constitucional estão potencialmente vinculados todos os órgãos estatais, todas as

potências públicas, todos os cidadãos e grupos, não sendo possível estabelecer-se um elenco cerrado

ou fixado com numerus clausus de intérpretes da Constituição”. Daí porque defende que a

interpretação constitucional não é um evento exclusivamente estatal, tendo acesso a esse processo

todas as forças da comunidade política, de forma que “o cidadão que formula um recurso

constitucional é intérprete da Constituição tal como o partido político que propõe um conflito entre

órgãos” (Hermenêutica Constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição:

contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental da Constituição. Trad. Gilmar

Ferreira Mendes. Porto Alegre: SAFE, 1997. p. 14-23). 137

Em que pese no Brasil a participação na atividade pública não ter ganho o destaque constitucional que

ostenta nos textos constitucionais da Espanha (art. 9º e 23) e de Portugal (art. 48), em que assume um

valor autônomo de especial categoria, é possível se extrair da Constituição brasileira essa previsão. No

§ 3º, art. 37, da CR/88, se dispõe acerca das possibilidades de participação do usuário na

administração pública direta e indireta, comando constitucional acrescentado por força da EC nº

19/98. E ainda há aqueles que extraem o princípio da participação do art. 1º, § único, da CR/88: “todo

poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente” (SANTOS,

André Luiz Lopes; CARAÇATO, Gilson. A consensualidade e os canais de democratização. Curso de

direito administrativo econômico. Org.: José Eduardo Cardozo; João Eduardo Lopes Queiroz;

Márcia Walquíria Batista dos Santos. Vol. I. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 800).

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62

Essa nova perspectiva é essencial para se tentar alcançar uma tutela mais

adequada e efetiva por meio da ação popular, meio desde sempre vocacionado para o

controle da atuação do Poder Público pelos cidadãos.

Elival da Silva Ramos, que insere a ação popular na categoria dos direitos

políticos, dispôs sobre esse instrumento, justamente, como uma das formas de

participação do cidadão na gestão estatal. Não seria mero exercício de fiscalização, em

que meramente se verificaria a correção de procedimento por meio do exame da

exteriorização formal e dos demais elementos probatórios da conduta, mas efetivamente

um controle, que pressupõe atividade de fiscalização, mas vai além por importar na

possibilidade de imposição de medidas sancionadoras, no tocante à conduta irregular. A

ação popular constituiria, portanto, participação dos cidadãos na função de controle do

Poder Público, controle esse de natureza jurídica. 138

A lei que regulamenta o procedimento da ação popular constitucional – Lei nº

4.717/65 –, no entanto, ainda dispõe sobre o controle da Administração Pública de

forma muito arraigada àquele entendimento tradicional pautado apenas em valores

liberais. Isso porque, em sua literalidade, somente permite a anulação de ato, caso

presente a lesividade e a ilegalidade, sem tratar expressamente das possibilidades de

inibir uma conduta danosa, ou até mesmo, forçar a prática de atos, quando houver para

tanto exigência legal ou constitucional.

Esse anacronismo legal fica evidente quando se verifica que a doutrina

publicista, ao analisar as possibilidades de tutela decorrentes da ação popular

constitucional, costuma restringi-las apenas às de natureza constitutivo-negativa e

ressarcitória, extraindo tal entendimento de rigorosa interpretação do artigo 1º, da Lei

4.717/65. 139

À evidência, essa previsão lacunosa não poderia se sobrepor à necessidade de

se efetivar judicialmente, por meio da ação popular, os direitos fundamentais que

impõem deveres ao Estado, sobretudo porque muitos desses direitos ostentam

138

RAMOS, Elival da Silva. A ação popular como instrumento de participação política. São Paulo:

RT, 1991. p. 197-198. 139

Nesse sentido: “Além da invalidade do ato ou do contrato e das reposições e indenizações devidas, a

sentença em ação popular não poderá impor qualquer outra sanção aos vencidos” (MEIRELLES, Hely

Lopes; WALD, Arnoldo; MENDES, Gilmar Ferreira. Mandado de segurança e ações

constitucionais. 32ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 176); “A demanda popular é constitutiva

negativa e condenatória. (…) O que se pede, pois, imediatamente, na demanda popular, é uma

sentença desconstitutiva negativa, isto é, uma sentença que decrete a invalidade do ato lesivo. Em

decorrência dessa decisão, deverá a sentença condenar os responsáveis em perdas e danos” (SILVA,

José Afonso da. Ação popular constitucional: doutrina e processo. 2ª Ed. São Paulo: Malheiros,

2007. p. 104).

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repercussão transindividual (como o direito ao meio ambiente equilibrado, p.ex.), sendo

a ação popular ainda hoje um dos principais instrumentos do processo coletivo.

Ademais, o status de norma constitucional desses direitos exige meios para sua efetiva

implementação, podendo a ação popular assumir esse papel de via para realização das

demandas em favor dos cidadãos e da coletividade.

Nesse contexto de se repensar a atuação do Poder Público sob parâmetros mais

participativos, democráticos e efetivos, a ação popular se destaca pelo seu potencial de

permitir maior interferência dos destinatários da atuação administrativa (cidadãos) na

definição dos interesses que irão conduzir a concretização dos deveres estatais, assim

como de forçar a Administração a atender as novas demandas coletivas, em especial

aquelas de fundo constitucional.

Contudo, não seriam apenas tais imperativos categóricos provenientes da nova

conformação do direito público que emprestariam maior legitimidade à ampliação das

possibilidades de tutela da ação popular. É possível se extrair uma ação popular mais

efetiva não apenas de exigências sociais hodiernas, mas, especialmente, do próprio

sistema legal em que se encontra inserida essa ação.

Como se tentará demonstrar, comedidamente, logo adiante, não apenas é

necessário se ter uma ação popular com ampliadas hipóteses de tutela, como é, de fato,

possível se vislumbrar uma ação popular mais efetiva, não havendo impeditivos teóricos

que demonstrem ser esse meio processual incompatível com os novos parâmetros de

atuação estatal.

2.3 Processo judicial e processo administrativo: possíveis vias de exercício da

açãopopular.

A ação popular, como visto, não deve ficar imune às transformações que, no

direito público, provocaram a exigência de mudanças na forma de atuação do poder

estatal, notadamente na forma de controle legal de seus atos.

A princípio, ao se tratar do controle da Administração Pública, sempre se faz

referência às medidas jurisdicionais existentes para tanto, além das possibilidades e

limitações do Poder Judiciário nesse sentido. O sistema de Jurisdição Una, adotado no

Brasil desde a Constituição de 1891, 140

fortalece bastante esse tipo de controle, ao

140

O sistema de dualidade de jurisdição só teve aplicação no Brasil no período imperial, a partir da

estruturação de uma Justiça Administrativa, encabeçada por um Conselho de Estado (na forma

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permitir que os atos administrativos possam ser revistos pelo Poder Judiciário, de forma

final.

Nesse tipo de sistema, as funções judicial e administrativa operam de forma

paralela, mas também se relacionam, inevitavelmente, já que os pronunciamentos

daquela têm a aptidão não apenas de rever os atos desta, mas de estabilizar as relações

travadas sob o regime de direito público. Isso fica bem claro pela lição de Agustín

Gordillo que, ao distinguir as funções do Estado, destaca ser o regime jurídico próprio

da função jurisdicional aquele no qual suas decisões são definitivas, bem como

produzidas por órgão imparcial e independente (conceito orgânico-material). 141

Admite o autor que, em certos casos, o Poder Executivo está autorizado a

decidir controvérsias, com base legal. Contudo, em que pese esse tipo de atividade

administrativa se assemelhe materialmente à jurisdicional, não se submete ao mesmo

regime jurídico desta. O regime jurídico da função jurisdicional, sob o encargo dos

juízes, não se aplicaria às atividades similares que realiza a administração. 142

Em outras

palavras, as decisões administrativas de controvérsias não se revestem de definitividade,

podendo ser, a princípio, submetidas à revisão judicial.

A análise do controle legal da Administração Pública acaba sendo, muitas

vezes, reduzida ao controle judicial dessa função, com seus respectivos instrumentos e

métodos próprios. O controle jurisdicional da Administração sempre foi importante

objeto de estudo entre os publicistas, tendo sido ampliadas suas hipóteses de exercício

com o passar dos anos, seja por modificações no sistema legal, 143

seja por se admitir

prevista no art. 157, da Constituição Imperial e regulada, basicamente, pela Lei nº 234, de

24.11.1841). Francisco Cavalcanti, contudo, defende que tal estruturação legal não conferiu a esses

órgãos a necessária independência para que, de fato, representassem eficiente mecanismo de controle

da função administrativa do Estado. Ademais, sustenta o autor que, conquanto os publicistas do

período defendessem ser esta a forma que melhor se adequava à separação de poderes, não se poderia

esquecer que as condições sócio-econômicas do Estado brasileiro não eram muito favoráveis a um

efetivo controle jurídico sobre o exercício da função administrativa. A derrubada do regime imperial e

a instituição da República pelo golpe militar de 15.11.1889 provocaram modificações estruturais no

Estado brasileiro e radicais mudanças no sistema de controle do Poder Judiciários sobre as demais

funções do Estado, com destaque para a derrubada do sistema de dualidade da jurisdição, reputado

como fator responsável pela falta de autonomia dos órgãos judiciais controladores da Administração

Pública, e não “os problemas culturais presentes na disforme pirâmide social brasileira”, segundo

defende Francisco Cavalcanti. (CAVALCANTI, Francisco. Prefácio. In: SILVA NETO, Francisco

Antônio de Barros e. A improbidade processual da Administração Pública e sua responsabilidade

objetiva pelo dano processual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. XXI-XXII) 141

GORDILLO, Agustín. Tratado de derecho administrativo: parte general. Tomo I. 3ª Ed. Buenos

Aires: Machhi, 1995. p. IX-16. 142

GORDILLO, Agustín. Op. Cit. p. IX-16. 143

Nesse ponto, o mandado de segurança é um bom exemplo. Antes do advento dessa ação, a Lei nº 221,

de 20.11.1894, figurou como o primeiro instrumento legal voltado ao controle judicial dos atos

administrativos, instituindo a ação de anulação de atos da Administração Pública, em âmbito federal.

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maior ingerência do Judiciário nesse sentido, 144

tudo isso na tentativa de se aprimorar o

controle do poder e melhor conter arbitrariedades. Tal circunstância não escapou à

análise de Patrícia Baptista, a qual sustenta que:

Tradicionalmente, talvez em razão da origem jurisprudencial da disciplina, a

atenção dos administrativistas sempre se voltou para o controle jurisdicional

da Administração. Procura-se, cada vez mais, dotar o Poder Judiciário de

instrumentos e técnicas que permitam controlar com maior amplitude o

exercício da função administrativa. No juiz, em regra recaem todas as

esperanças e deposita-se a maior parte da responsabilidade de impedir a

arbitrariedade do administrador. O controle jurisdicional, todavia, tem

limitações. A adoção do modelo da separação dos poderes impõe que alguma

zona de escolhas da Administração remanesça ao abrigo do controle do

Judiciário. Até porque a discricionariedade do juiz não é, em si, melhor que a

do administrador. 145

O controle judicial, de fato, comporta limitações, notadamente no que se refere

à imposição de condutas à Administração e implantação de políticas públicas, medidas

judiciais possíveis, mas que podem, por vezes, esbarrar no princípio da “separação de

poderes”, problemática que no direito norte-americano deu ensejo ao chamado self-

restraint e que na nossa realidade jurídica ainda acende constantes debates. 146

Por isso,

A Lei nº 221/1894, apesar de representar um marco inicial no controle dos atos do Poder Público,

continha limitações que refrearam sua plena eficácia, tais como a impossibilidade de o juiz

liminarmente decidir sobre a suspensão do ato e a admissão da ação de anulação somente para os atos

da União Federal. A insatisfação quanto ao incipiente sistema de controle dos atos estatais, ensejou a

adoção, na prática judiciária, dos interditos possessórios para proteção de direitos pessoais violados

por autoridade pública (tema desenvolvido por Rui Barbosa no livro Posse de Direito Pessoais) e,

posteriormente, do habeas corpus, mesmo para proteção daqueles direitos não relacionados

diretamente à liberdade de locomoção. O mandado de segurança exsurgiu, assim, para preencher esse

vácuo normativo,inicialmente, inserida no ordenamento jurídico brasileiro a partir da Constituição de

1934 e, com exceção do interregno autoritário da Lei Fundamental de 1937, continuou a ser

consagrado nos textos constitucionais que se seguiram, até a atual Constituição, sendo marcado por

um rito expedito próprio, que possibilita a apreciação liminar da questão litigiosa, medida necessária

para fazer frente à força cogente dos atos expedidos pelo Poder Público. 144

García de Enterría demonstra que o desenvolvimento do Estado Social e Democrático de Direito não

provocou uma diminuição dos poderes do juiz no contencioso-administrativo e uma maior liberdade

dos gestores públicos, pelo contrário. Mesmo considerando que juízes no sistema europeu não

ostentam a legitimação popular dos membros do Executivo, eleitos democraticamente, as decisões

discricionárias dos agentes políticos devem respeitar o princípio constitucional de submissão da

Administração à lei e ao direito. Demais disso, o processo contencioso-administrativo ainda serviria

para garantir uma tutela judicial efetiva aos direitos e interesses legítimos dos cidadãos. Demonstram

esse incremento no poder de controle dos juízes nos últimos anos o reforço dado aos princípios gerais

do direito, o refinamento do poder de controle da discricionariedade por meio do princípio da

proporcionalidade, a teoria do balanceamento de custos-benefícios, a teoria do erro manifesto de

apreciação, bem como os progressos em matéria de medidas cautelares e execução de sentenças. Para

este autor, o juiz recebeu novas armas que completam seu arsenal (ENTERRÍA, Eduardo García de.

Democracia, jueces e control de la administración. Madrid: Editorial Civitas, 2009. p. 47-55.) 145

BAPTISTA, Patrícia. Op. Cit. p. 19-20. 146

André Ramos Tavares noticia que desde que o juiz Marshall da Corte Suprema estadunidense avocou

para esta a responsabilidade pela supremacia da Constituição, naquele exato momento o Judiciário

passou a enfrentar as acusações de usurpar um espaço que não lhe havia sido atribuído ou imaginado

pela Constituição de 1787. Não obstante tais críticas, o modelo implementado com o

constitucionalismo norte-americano difundiu-se amplamente em diversos países da América, a

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66

reforça a autora o argumento levantado, deduzindo que, sendo insuficiente esse controle

judicial da atividade administrativa, surgiria então a necessidade de se reforçar outras

formas de controle da Administração. 147

É nessa conjuntura que se insere o fenômeno da processualidade

administrativa, pois esse amplo poder de controle jurisdicional sobre a Administração

não impediu que o processo administrativo adquirisse cada vez mais prestígio e

relevância, sendo hodiernamente apontado como questão central do estudo do direito

administrativo.

Odete Medauar trata bem desse fenômeno, afirmando que, em um primeiro

momento, a processualidade era identificada unicamente com a função jurisdicional, de

solução de litígios pelo judiciário. A necessidade de se estabelecer parâmetros de

controle para os atos administrativos, especialmente os discricionários, assim como o

atendimento de garantias prévias dos cidadãos, levou-se a considerar uma

processualidade que transcenderia a função jurisdicional, sendo assim uma

processualidade administrativa. 148

Ao esboçar fundamentos de uma teoria geral do processo, Fredie Didier Jr. vai

ao encontro desse entendimento, considerando o “processo” como um conceito

fundamental primário de sua teoria geral e também um gênero, do qual o processo

jurisdicional seria apenas uma de suas espécies, havendo também os de natureza

legislativa, administrativa e negocial.149

Destaca ainda que, sob os auspícios da teoria

geral do direito, o poder de criação de normas somente pode ser exercido

exemplo do Brasil, que estabeleceu sua corte suprema e um modelo de controle difuso-concreto da

constitucionalidade das leis. Esse modelo conduziu os juízes, na sua evolução histórica, a

desempenhar um papel diferenciado, mais ativo na concretização implementadora da Constituição. A

conotação negativa atribuída a termos como “ativismo judicial” e “Estado judicial” não seria referente

à existência de tribunais constitucionais ou ao judicial review, mas antes trata de discutir e ponderar a

respeito da extensão de sua atividade e respectiva (falta de) legitimidade no que tange a certas

“intervenções, notadamente quanto aos limites da “separação de poderes”. É nesse contexto crítico

que surge a autocontenção judicial (self-restraint), movimento que também se inicia por força do

modelo estadunidense, mas que teria sido transportado sem maiores preocupações, por diversos

autores, para o modelo de matriz austríaca (Tribunal Constitucional tout court). O autor, contudo,

opina que, adotada de maneira ampla, a self restraint desemboca na deslegitimação do juiz

constitucional para extensas áreas nas quais sua atuação tem sido decisiva e legítima, notadamente

perante constituições como a brasileira, que oferece sinais de adoção (e exigência) de uma atuação

substantiva (ativista, se se quiser) do juiz constitucional, como implementador da Constituição. A

referida exclusão seria dogmaticamente inadmissível (TAVARES, André Ramos. Paradigmas do

judicialismo constitucional. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 114-130). 147

Idem, ibidem. p. 20. 148

MEDAUAR, Odete. A processualidade no direito administrativo. São Paulo: RT, 1993. p. 13-16. 149

DIDIER JR., Fredie. Sobre a teoria geral do processo. 2011. 198 f. Tese (Livre-docência) –

Universidade de São Paulo, Faculdade de Direito, Departamento de Direito Processual, 2011. p. 56-

68.

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67

processualmente, sendo o processo administrativo uma forma de produção de normas

gerais e individualizadas pela Administração. 150

É pertinente observar que essa visão que prestigia a processualidade

administrativa representa uma verdadeira evolução, eis que, por várias décadas, a

atenção dos administrativistas se voltava para a atividade estatal externada mediante os

serviços públicos e os atos administrativos. Os direitos dos administrados, por seu turno,

apenas se consideravam protegidos mediante mecanismos de controle a posteriori, como

o controle judicial. Com exceção dos procedimentos tendentes à aplicação de sanções

(em que se aplicava uma versão simplificada de contraditório), os demais

procedimentos de produção de atos administrativos eram tidos como matéria interna

corporis, subtraída à participação popular, de particulares e interessados. 151

O reconhecimento da processualidade como fenômeno não apenas

jurisdicional, mas também administrativo alcançou maior repercussão ao ser expresso

no próprio texto constitucional. O inciso LV, art. 5º, da CR/88, dispõe que “aos

litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são

assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”, de

forma que restou consagrado na ordem constitucional que o processo, como instrumento

para a resolução de conflitos, pode ser tanto jurisdicional, como administrativo.

Nos textos constitucionais anteriores, não se encontrava previsão de extensão

das garantias do devido processo legal para eventuais processos administrativos, sendo

a processualidade administrativa no Brasil, até então, muito pouco desenvolvida. 152

A

Constituição de 1988 inaugurou esse reconhecimento da processualidade administrativa

na ordem constitucional, alçando o processo administrativo a um patamar de maior

significância. Mesmo assim, Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari fazem crítica

contundente ao incipiente estado do processo administrativo no Brasil, reputando ser

“quase um escândalo” que date de 1999 a primeira lei federal geral do processo

administrativo (Lei 9.784), tendo em vista que, pela tradição constitucional brasileira, o

direito de petição e representação (exercidos de forma precípua na via administrativa) já

se encontravam muito antes consagrados como garantias individuais fundamentais. Essa

150

DIDIER JR., Fredie. Op. Cit. p. 59. 151

SILVA NETO, Francisco Antônio de Barros. A improbidade processual da Administração Pública

e sua responsabilidade objetiva pelo dano processual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 254 -

255. 152

MARINS, James. Direito processual tributário brasileiro (administrativo e judicial). 4ª Ed. São

Paulo: Dialética, 2005. p. 156-157.

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inexistência de disciplina normativa teria reforçado a autocracia burocrática da

Administração. 153

Daí se nota o salto qualitativo dado pela Constituição de 1988 ao relacionar o

processo administrativo com garantias do devido processo legal (contraditório, ampla

defesa e também duração razoável do processo, desde a EC nº 45/2004). Não apenas se

reconheceu textualmente processualidade no âmbito administrativo como se deixou

marcado que esse processo também se encontra submetido a balizas que garantem o

respeito aos direitos das partes, pois, assim como no processo judicial, há também no

processo administrativo a necessidade de se equacionar bem os poderes em jogo e se

evitar abusos.

Devido processo legal e o desenvolvimento do processo administrativo são,

afinal, ideias que se encontram em fina sintonia, vez que têm em comum o ensejo de

limitação do poder e contenção de arbitrariedades. 154

Nesse sentido, os autores acima

citados bem observam que “as normas de processo administrativo, disciplinando e

dando publicidade aos mecanismos de tomada de decisões, encerram, indubitavelmente,

uma redução ou uma contenção do poder pessoal da autoridade”, 155

ideal que se

encontra plasmado no texto constitucional, na medida em que define balizamentos

também para o processo administrativo.

Em razão dessa aptidão do processo administrativo para legitimar decisões e

balancear o exercício do poder estatal, não se mostra cabível uma aplicação restritiva

dos imperativos do contraditório e da ampla defesa apenas em processos administrativos

de caráter sancionatório, na medida em que a atividade processual da administração vai

153

FERRAZ, Sérgio; DALLARI, Adilson Abreu. Processo Administrativo. 3ª Ed. São Paulo:

Malheiros, 2012. p. 23. 154

O devido processo legal pode ser entendido como uma cláusula geral, um conceito aberto, razão pela

qual há uma tendência de se definir seu significado e conteúdo a partir de casos concretos. É possível

se identificar, contudo, a razão maior por trás desse princípio constitucional que é a tutela dos bens

maiores dos cidadãos: vida, liberdade e propriedade, por meio da limitação da atuação do poder estatal

(BRAGA, Paula Sarno. Aplicação do devido processo legal nas relações privadas. Salvador:

Juspodivm, 2008. p. 180-181). As garantias decorrentes do devido processo legal, como julgamento

pelo júri e igual tratamento processual, a princípio, faziam crer que o devido processo legal cuidava

apenas de questões procedimentais, mas em sua essência já estava a limitação do poder

governamental, noção aprimorada com o tempo (SILVEIRA, Paulo Fernando. Devido processo legal.

3ª Ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 135-136). Os ideais de limitação do poder e contenção de

abusos do devido processo legal são mais facilmente apreensíveis quando se enfoca seu aspecto

substancial. Ruitemberg Nunes Pereira identifica um caráter substancial do devido processo legal

desde sua origem, que reputa ser na Alemanha medieval (Decreto de Conrado II, século XI), pois tal

norma feudal não possuía caráter estritamente procedimental, mas estava dotada de nítidos contornos

substantivos, reproduzidos posteriormente pelo direito britânico. Protegia-se o direito dos vassalos

diante da atuação arbitrária e individual dos senhores feudais (PEREIRA, Roitemberg Nunes. O

devido processo legal substantivo. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 24-25). 155

FERRAZ, Sérgio; DALLARI, Adilson Abreu. Op. Cit. p. 40.

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69

bem além disso. Como já exposto, o processo como gênero é meio de produção de

norma jurídica, atividade também presente na seara administrativa, a qual tem sua

atuação pautada em parâmetros legais, que podem ser melhor concretizados de forma

processualizada. Francisco Antônio de Barros e Silva Neto segue semelhante linha de

raciocínio, ao também defender a ampla aplicação do contraditório e da ampla defesa

nos processo administrativos:

Não é lícito interpretar restritivamente a cláusula constitucional, reduzindo-a

à mera garantia procedimental na aplicação de sanções administrativas. A

menção a “litigantes em processo administrativo” abrange todas as hipóteses

em que os direitos dos cidadãos são atingidos pela conduta administrativa,

gerando conflito de interesses e, assim, litigância. Em todos esses casos se

impõe a observância do contraditório e da ampla defesa, com os seus

desdobramentos. 156

Mesmo o argumento de que os atos administrativos podem ser revistos

judicialmente não afasta a necessidade de se aparelhar bem o exercício do processo

administrativo, respeitando-se todas as garantias individuais das partes interessadas.

Isso porque tal medida atende não apenas aos interesses dos contendores particulares,

mas também, em última instância, da própria Administração, ao permitir a pacificação

de litígios ainda na esfera administrativa, sem necessitar da intervenção do Judiciário se

substituindo às outras autoridades públicas.

Ademais, como já ressaltado, o controle jurisdicional comporta limitações. O

juízo de discricionariedade que a própria ordem legal confere, em certos casos, àqueles

que exercem as funções administrativas, conquanto não seja permitido seu uso irrazoado

e sem critérios, ainda persiste como esfera de atuação própria das autoridades

administrativas, não sendo legítimo que a apreciação judicial se substitua ao juízo de

discricionariedade regularmente exercido no âmbito da Administração competente para

tal.

Essa questão se torna especialmente delicada quando se trata de uma

discricionariedade técnica, tema inicialmente desenvolvido na doutrina estrangeira, mas

que os tribunais brasileiros já começaram a enfrentar. É um assunto relacionado com a

já conhecida discricionariedade administrativa, mas essa sua variável técnica diz

respeito à aplicação, em determinados âmbitos materiais concretos, de critérios

resultantes de conhecimentos especializados requeridos pela natureza da atividade

desenvolvida pelos órgãos administrativos. 157

Em outras palavras, a discricionariedade

156

SILVA NETO, Francisco Antônio de Barros. Op. Cit. p. 256. 157

ALONSO, Augusto González. La doctrina de la discrecionalidad técnica a la luz de la jurisprudencia

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técnica “refere-se à necessidade de a Administração recorrer a outras ciências para

determinar o campo semântico de um conceito legal”. 158

Como conhecimentos técnicos especializados são utilizados pela

Administração em seu processo decisório, a revisão judicial em tais casos é feita de

forma mais criteriosa. Um exemplo disso pode ser encontrado em precedente do STJ

(Resp. 1171688 / DF, 2a Turma, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJe 23/06/2010)

que julgou contenda entre duas operadoras de telefonia, quanto aos valores de uso da

rede móvel (VU-M). O acórdão recorrido havia fixado valores para cobrança diferentes

do pactuado pelas partes, sem levar em conta a competência da ANATEL para fixar as

condições para interconexão, quando não houvesse acordo entre os interessados (art.

153, §2º, Lei 9.472/97).

Levando em conta “o alto grau de discricionariedade técnica que permeia o

assunto” e o princípio da “deferência técnico-administrativa”, aplicou-se ao caso

solução dada pela ANATEL em processo de arbitragem sobre a questão tratada,

afastando-se a decisão de primeira instância, afirmando-se assim a competência dessa

agência reguladora para decidir acerca do problema técnico discutido. Trecho do

julgado confirma o tratamento diferenciado que a tutela judicial deve conferir a casos de

discricionariedade técnica, ao expor que “em matéria eminentemente técnica, que

envolve aspectos multidisciplinares (telecomunicações, concorrência, direito de

usuários de serviços públicos), convém que o Judiciário atue com a maior cautela

possível - cautela que não se confunde com insindicabilidade, covardia ou falta de

arrojo”.

Diversos outros precedentes do STJ fazem menção à discricionariedade técnica

e aos cuidados que o controle judicial deve ter quando analisar decisões técnicas da

Administração, envolvendo a aplicação de conhecimentos especializados, muitas vezes

multidisciplinares. 159

O juízo de legalidade, próprio da análise jurisdicional, acaba por

esbarrar em questões que desbordam os limites jurídicos e alcançam matérias estranhas

à expertise judicial, circunstância que impõe um controle mais limitado.

del tribunal supremo. Justicia administrativa: revista de derecho administrativo. Nº 58.Valladolid:

Lex Nova, 2012. p. 19. 158

ROMAN, Flávio José. Discricionariedade técnica na regulação econômica. São Paulo: Saraiva,

2013. p. 86. 159

REsp 1162281 / RJ, 3a Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 25/02/2013; AgRg no AgRg no REsp

1043779 / SC, 2a Turma, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJe 21/11/2012; RMS 32464 / MG, 1

a

Turma, Rel. Min. Benedito Gonçalves, DJe 04/11/2010; AgRg no RMS 20200 / PA, 5a Turma, Rel.

Min. Arnaldo Esteves Lima, DJ 17/12/2007; AgRg na SLS 163 / PE, Corte Especial, Rel. Min. Edson

Vidigal, DJ 27/03/2006.

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Não se quer com isto apregoar a existência de âmbitos administrativos imunes

ao controle legal, ideia que seria a negação do próprio Estado de Direito. Uma vez que

há na atuação administrativa pontos que escapam ao exame judicial pleno e definitivo,

um processo administrativo, pautado no devido processo legal, pode servir para superar

essa limitação, permitindo um melhor sistema de contenção de abusos.

Logo, pode-se inferir que, não obstante a unidade de nossa jurisdição, é

possível se fiar em um processo administrativo, uma vez bem regulado e desenvolvido,

como forma de se garantir uma atuação estatal que atenda aos anseios do corpo de

cidadãos.

Por meio de um processo administrativo é possível se veicular uma pretensão e

obter um provimento estatal que garanta a proteção de um direito, especialmente

quando se trate de controlar a higidez da atividade administrativa e da proteção de

interesses gerais.

Em razão de todo esse panorama teórico subjacente ao processo administrativo

é que se vislumbra, ao lado da ação popular exercida em sede jurisdicional, também

uma espécie de ação popular em sede administrativa, em que o cidadão poderia

provocar diretamente a Administração, para resolver demandas de fundo coletivo.

No direito português, o direito de ação popular pode ser exercido em dois

âmbitos, o judicial e o administrativo, cabendo aqui trazer a lição de J. J. Gomes

Canotilho:

O direito de acção popular abrange dois tipos de acções: a acção

procedimental administrativa e a acção popular civil (art. 12.º). A acção

procedimental pode consistir numa acção judicial administrativa destinada à

defesa dos interesses já referidos ou num recurso contencioso contra actos

administrativos ilegais lesivos dos mesmos interesses (art. 12º/1). A acção

popular civil (art. 12.º/2) segue as formas de acção do Código de Processo

Civil, isto é, pode revestir as formas de acção preventiva, condenatória ou

inibitória. 160

Essas duas vias para exercício da ação popular encontram respaldo no art. 52, §

3º, da Constituição portuguesa, bem como na lei nº 83 de 1995, que regulamenta esse

dispositivo constitucional. Nos termos dessa lei – art. 12, § 1º – a ação popular

administrativa pode tanto assumir o caráter de recurso contencioso, contra atos

160

CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª Ed. Coimbra:

Almedina, 2003. p. 511.

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administrativos lesivos aos interesses descritos na lei, como também o de ação judicial

propriamente dita. 161

Essa dualidade de formas para se exercer a ação popular no direito português

guarda pertinência com a estruturação bipartida de seu sistema jurisdicional, que adota

também a via do contencioso administrativo. Não obstante tal peculiaridade, essa dupla

forma de se regulamentar o exercício da ação popular traz à tona a existência de

distinções relevantes nos interesses veiculados nas lides administrativas, tanto que se

franqueia meio próprio para se exercer a participação popular em tais casos, qual seja, a

acção popular administrativa (art. 12, Lei 83/95), ao lado da acção popular civil.

Mesmo no Brasil não havendo a estruturação de uma justiça administrativa

especializada, o direito de petição consagrado em sede constitucional (art. 5º, XXXIV,

“a”) fundamenta o exercício de uma ação popular no âmbito administrativo.

A Constituição vigente assegura o direito de petição, entre os direitos e

garantias fundamentais, para “defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de

poder”.

Para Eduardo Couture, o direito de petição não seria outra coisa que o direito

de comparecer perante uma autoridade, existente mesmo quando os poderes do Estado

encontravam-se confundidos, como no direito público romano, que desconhecia

separação nítida entre o Executivo e o Judiciário e no Parlamento inglês, até o século

XVIII, que também aglutinava o Poder Judiciário. No sentimento de injustiça que

acomete o homem lesado em sua esfera de direitos e que não pode fazer justiça por suas

próprias mãos, surgiria o impulso de se recorrer à autoridade e o poder jurídico de se

exigir a colaboração dos poderes constituídos do Estado. 162

Desde a Constituição de 1824 (art. 179, XXX) – a primeira de todas – o direito

de petição já se encontrava expressamente positivado, tendo sido consagrado também

nas demais ordens constitucionais sucessivamente instauradas, variando apenas na

forma como textualmente expresso. Conquanto sua origem histórica anteceda o

constitucionalismo moderno e nem sempre tenha ostentado feição de participação

política, 163

assume no atual sistema constitucional brasileiro o status de garantia

161

KUYEN, Luiz Fernando Martins. Análise comparativa da ação popular nos direitos português e

brasileiro. Ação Popular. Coord.: Ana Flávia Messa, José Carlos Francisco. São Paulo: Saraiva,

2013. p. 112-113. 162

COUTURE, Eduardo J. Fundamentos do Direito Processual Civil. Florianópolis: Conceito

Editorial, 2008.p. 32-37. 163

Nota Raimundo Márcio Ferreira Lima que o direito de petição, como expressão de súplica ou de

pedido ao soberano, remonta aos séculos VI e VII, embasando-se não em um dever jurídico próprio,

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73

fundamental, havendo quem defenda para esse instituto um caráter ambivalente, por

permitir tanto a defesa de pretensões de natureza individual, como também coletivas. 164

Com efeito, em que pese ser sucinto o dispositivo constitucional que trata do

direito de petição, a própria lei que regula o processo administrativo em âmbito federal

– Lei nº 9.784/99 – traz possibilidades de se defender, na esfera administrativa, direitos

tanto em caráter individual, como coletivos e difusos (vide art. 9º e art. 58). Não haveria

porque se restringir o exercício do direito de petição, por meio do processo

administrativo, para situações apenas de defesa de direitos individuais, já que situações

de ilegalidades ou abuso de poder são circunstâncias que já trazem consigo uma

repercussão social e podem ser atacadas pelo uso do direito de petição.

O exercício da ação popular é marcado pela postulação de direitos difusos e

coletivos (de cunho patrimonial ou não) por um membro individual do corpo social,

categoria esta que a Constituição define como cidadão. Essa forma peculiar de se

vindicar direitos é possível de ser observada na prática administrativa, pois há suporte

legal para tanto, tendo em vista que na própria lei do processo administrativo federal,

além das organizações e associações representativas, se confere legitimidade para

pessoas iniciarem o procedimento ou nele intervirem, para defesa de direitos ou

interesses difusos (art. 9º, IV, Lei 9.784/99). É possível, portanto, que pessoas,

individualmente consideradas, possam reivindicar direitos coletivos,

administrativamente.

Como exemplo, considere-se a paradigmática demanda para prestação de

medicamentos em face do Estado, com base na saúde pública como direito subjetivo

(art. 196, CR/88) e nas atribuições previstas para o Sistema Único de Saúde,

notadamente a assistência terapêutica integral (art. 200, CR/88; art. 6º, “d”, Lei

8.080/90). A exigência para o fornecimento de medicamentos pelo Estado pode ser feita

judicialmente, mas também é possível se reclamar tal direito nas vias administrativas,

impulsionando-se o procedimento próprio previsto na lei do SUS, destinado a definir as

prioridades de investimento nessa área.

mas em um fundamento moral e religioso de condescendência do rei para com seus súditos. Apenas

com o advento do Bill of Rights de 1689, na Revolução Gloriosa, este instituto teria começado a

assumir precisa definição de um direito de participação política. Defende ainda o autor que o direito

de petição, em seus contornos atuais, não é uma decorrência da democracia e nem do

constitucionalismo moderno, já que os antecede, sendo na verdade decorrente de uma necessidade de

se criar mecanismos de comunicação entre os atores do poder. (LIMA, Raimundo Márcio Ribeiro. Op.

Cit. p. 337-338). 164

LIMA, Raimundo Márcio Ribeiro. Op. Cit. p. 345-346.

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A Lei 8.080/90, que regulamenta o serviço de saúde pública, sofreu recente

alteração, para aprimorar a parte que trata da assistência terapêutica e a incorporação de

tecnologia no âmbito do SUS (Lei nº 12.401/2011), com o fito de procedimentalizar as

escolhas administrativas prévias acerca da prestação de medicamentos e produtos para a

saúde.

De acordo com as justificativas do então projeto de lei, essa inovação legal

levou em conta a constante expedição de medidas liminares pela Justiça nos últimos

anos, obrigando os gestores do SUS a fornecer medicamentos não ofertados ou não

disponíveis nas farmácias das unidades públicas de saúde, alguns até mesmo ainda não

registrados no País. A estruturação de um processo administrativo para definição de

estratégias terapêuticas poderia, assim, assegurar uma prestação da saúde mais adequada

e financeiramente mais segura. 165

O art. 19-Q da referida lei agora determina ser atribuição do Ministério da

Saúde, assessorado pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS, a

“incorporação, a exclusão ou a alteração pelo SUS de novos medicamentos, produtos e

procedimentos, bem como a constituição ou a alteração de protocolo clínico ou de

diretriz terapêutica”. Diz ainda que essa atribuição será realizada mediante a instauração

de processo administrativo (art. 19-R), o qual observará, no que couber, o disposto na

Lei nº 9.784/99, além das suas determinações especiais (§1º, art. 19-R).

Uma vez regido esse procedimento específico pelas regras gerais da Lei nº

9.784/99, seria possível que pessoa, individualmente considerada, no exercício de seu

direito de petição, iniciasse o processo administrativo próprio, com a finalidade de

tentar incluir no rol preestabelecido pelo SUS medicação ou produto terapêutico o qual

achasse necessário. Haveria aí nessa situação o exercício de uma ação popular no

âmbito administrativo, mesmo que a instauração do procedimento para inclusão de

medicamento visasse a interesse do próprio peticionante, que por ventura precisasse do

tratamento, tendo em vista que a possível aceitação de seu pleito (inclusão de

medicamento na lista) ampliaria o direito à saúde de todos os demais que necessitassem

desse medicamento no âmbito do SUS. Por meio desse pleito administrativo individual

poderia se concretizar um direito difuso (direito à saúde).

165

É isso que entende César Caúla, a partir dos pareceres expedidos na tramitação do projeto de lei na

Câmara dos Deputados e no Senado, para justificar os acréscimos legais na Lei 8.080/90. (CAÚLA,

César. Judicialização da saúde: o que deve mudar em face da lei número 12.401/2011? Direito

administrativo e direitos fundamentais – diálogos necessários. Coord(s): Luísa Cristina Pinto e

Netto, Eurico Bitencourt Neto. Belo Horizonte : Fórum, 2012. p. 99.).

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Importante observar que esses acréscimos legais operados pela Lei nº

12.401/2011 criaram uma esfera de discricionariedade técnica, porquanto estipularam

competências administrativas específicas, pautadas em critérios técnicos, de forma que,

uma vez atendido o regular procedimento de decisão, torna-se mais dificultoso para as

vias judiciais superarem ou substituírem as escolhas administrativas.

O pleito para fornecimento de medicamentos pelo Estado, em âmbito judicial,

é plenamente possível, pois o direito à saúde merece ampla proteção e efetivação.

Todavia, devem ser respeitadas as escolhas administrativas, se pautadas no regular

processamento feito para assegurar a segurança e a eficácia da prestação terapêutica,

circunstância que a análise judicial não poderá ignorar. César Caúla esclarece bem esse

ponto, ao analisar as inovações procedimentais trazidas pela Lei nº 12.401/2011 e como

isso afetará o exame judicial das prestações terapêuticas pelo Estado:

[…] A partir do momento em que a lei estabelece que a obrigação estatal se

prende a protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas, é induvidoso que

soluções simplistas, as quais apenas questionem acerca da pertinência entre

estado mórbido e medicação, procedimento ou produto, serão de todo

inadequadas para o trato judicial dos problemas relacionados à assistência

médica.

Perceba-se, inclusive, que os ditos documentos deverão, quanto às doenças e

aos agravos à saúde a que se refirma, estabelecer métodos de tratamento

alternativos, à consideração do quadro evolutivo daqueles, bem assim, da

ocorrência de intolerância ao tratamento ou de ineficácia dele. É necessário,

por conseguinte, que se estabeleçam os medicamentos, produtos ou

procedimentos de “primeira escolha”, mas que igualmente se determinem,

como alternativa a eles em situações nas quais se apresentem inadequados,

outros esquemas de tratamento. Ora, isso impõe que a tal “primeira escolha”,

tecnicamente estabelecida, deva ser respeitada pelo administrador público e

pelo julgador, apenas se justificando sua superação quando o determinarem

as condições específicas referidas pela lei (de cuja presença concreta, deverá

a parte autora, no processo judicial, fazer prova cabal, quando pretender que

o ente público lhe preste essa assistência distinta do padrão tecnicamente tido

como preferencial) e, ainda assim, em favor das demais alternativas

previamente referidas nos protocolos e diretrizes. 166

O exemplo ora trazido demonstra não apenas a possibilidade legal de se

exercer uma ação popular administrativa, como também a pertinência desse exercício

para provocar a Administração a rever ou a praticar atos que no âmbito judicial teriam

uma análise mais limitada.

Poderia se arguir contra a possibilidade de ação popular administrativa que o

direito constitucional de petição sobre o qual se acha fundamentada não poderia se

equivaler ao direito de ação que fundamenta a ação popular judicial, porquanto o direito

de ação no sistema brasileiro seria condicionado (legitimidade, interesse e possibilidade

166

CAÚLA, César. Op. Cit. p. 106.

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jurídica do pedido) e submetido a diversos requisitos formais (art. 267 e incisos, CPC)

que não poderiam ser transpostos para a seara administrativa.

Em verdade, é próprio do direito de petição seu livre exercício, em razão,

notadamente, de seu especial status constitucional (art. 5º, XXXIV, “a”) e da sua

aptidão para contenção de abusos e defesa de direitos. A gratuidade do seu uso é

assegurada na própria Constituição.

Ademais, o direito de petição decorre de um dispositivo constitucional

autoaplicável, podendo ser exercido perante qualquer órgão do Poder Público, de forma

provocada ou de ofício, independente de regulamentação prévia, não dispondo de forma

rígida de procedimento, porquanto se caracteriza também por ser informal. À evidência,

também não se exige para tanto o preenchimento da capacidade postulatória, tal qual no

exercício do direito de “ação”. 167

Mesmo considerando que a lei pode regular o modo, a

forma e a estrutura do processo administrativo que irá instrumentalizar o direito de

petição, em homenagem ao devido processo legal, é certo que o Poder Público não

poderá deixar de receber e processar o pedido nesses termos, só lhe cabendo denegar a

postulação se carecedora de amparo legal. 168

Não obstante as aparentes diferenças nos regimes jurídicos, “direito de petição”

e “direito de ação” são aptos a fundamentar a defesa de interesses legalmente

protegidos, inclusive os de caráter metaindividuais, eis que ação, como categoria

jurídica, ostenta não apenas uma feição processual, mas também material.

Quando aqui se defende o exercício de uma ação popular, no âmbito

administrativo, está-se tratando de uma ação de direito material, a qual subsiste

paralelamente à ação de direito processual, esta sim submetida a todos aqueles

condicionamentos que escapam ao direito de petição.

Essa distinção entre ação material e processual persiste em nosso sistema,

ainda que se considere o monopólio da jurisdição pelo Estado (art.5º, XXXV, CR/88),

já que, como visto, o plano administrativo também comporta a defesa de direitos,

individuais ou coletivos. Além disso, estando bem assentada essa diferenciação, torna-

se possível não apenas estender as possibilidades de prestação de direitos para a esfera

167

Todas essas características do direito de petição são listadas por Leonardo Carneiro da Cunha, ao

criticar a paradigmática decisão do STF que conferiu à Reclamação (prevista no art. 102,I, “l”, da

CR/88) a natureza jurídica de direito de petição e não de ação autônoma (ADIn 2.212-1/CE).

(Fazenda Pública em Juízo. 10ª Ed. São Paulo: Dialética, 2012. p. 644-645). 168

FERRAZ, Sérgio; DALLARI, Adilson Abreu. op. Cit. p. 147-149.

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administrativa, como também ampliar as hipóteses de tutela dentro da própria atividade

jurisdicional.

2.4 Ação de direito material e exercício da ação popular na via administrativa.

Quem melhor desenvolveu o tema da ação na doutrina pátria, notadamente em

sua perspectiva material, foi Pontes de Miranda, merecendo detalhada análise sua teoria

sobre o tema.

A ação sempre deu ensejo a diversas correntes de pensamento, as quais

procuravam dar consistência teórica e melhores possibilidades de exercício a esta que

sempre foi uma das categorias nucleares da teoria do processo. Mesmo já consagrada a

autonomia do plano processual, o estudo da ação não se vê livre de polêmicas, já que

nele o processo e o direito material se tangenciam, fenômeno nem sempre bem

compreendido apesar de sua ampla repercussão prática. Pontes de Miranda não ignorou

essa peculiaridade, trabalhando bem a ação tanto sob o aspecto material, como

processual, razão pela qual suas conclusões permitem uma visão mais ampla do tema.

É necessário, antes de tudo, deixar bem assentado que a ação material existe

mesmo antes de ser deduzida em juízo e invocada qualquer pretensão à tutela jurídica.

Isso porque é uma categoria pertencente ao âmbito do direito material,

consubstanciando-se como uma das decorrências do direito subjetivo, podendo ser

exercida em juízo ou fora dele. Logo, ação material e direito subjetivo são categorias

diretamente relacionadas.

Pontes de Miranda define o direito subjetivo como “a vantagem que veio a

alguém com a incidência da regra jurídica em algum suporte fático”. A distribuição dos

bens da vida (liberdade, honra, direitos políticos etc.) feita pelas regras jurídicas, quando

atribui posição de vantagem a alguém, confere a este um direito subjetivo. 169

O autor, contudo, faz notar que essa posição jurídica de vantagem que é o

direito subjetivo não se confunde com a pretensão, nem com a ação, as quais seriam um

“plus” àquele. A ação, portanto, não seria um elemento constitutivo do direito subjetivo,

mas uma decorrência dele, tal qual a pretensão. Ação e pretensão seriam, enfim,

acréscimos à esfera de vantagens do detentor do direito subjetivo, sendo derivados

deste, podendo ocorrer ou não, a depender da situação concreta.

169

MIRANDA, Pontes de. Tratado das ações: tomo I. São Paulo: RT, 1970. p. 30.

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Na relação jurídica básica formada em razão de um direito subjetivo, no lado

ativo há uma posição de vantagem; no lado passivo, um dever. Todavia, a coercibilidade

desse direito já seria um “plus”, pertencente ao plano das ações e da tutela jurídica. De

forma mais específica, conferido a alguém um direito subjetivo, se este se torna também

exigível, surge a pretensão; se descumprido o comando legal exigido, sobrevém a ação.

Não sendo a exigibilidade sempre existente no direito subjetivo, é possível se cogitar de

direitos sem pretensão ou ação, como os créditos de jogo. Da mesma forma, também é

possível que, mesmo após extinto o prazo para a ação, permaneçam intactos a pretensão

ou o direito subjetivo, como ocorre nas dívidas prescritas. 170

Por isso, direito subjetivo, pretensão e ação não se confundem. As pretensões

são dotadas de exigibilidade; a ação é a atividade para a satisfação, uma vez já exigido o

direito e não cumprido e, por sua vez, ambas (pretensão e ação) só podem ser exercidas

pelo titular do direito quando a lei assim permita. 171

Ação no sentido material, portanto, traz consigo uma ideia de agir

(possibilidade de agir), sendo uma atividade do titular do direito dirigida contra a parte

passiva da relação jurídica, dependendo de autorização legal para tanto.

Esse caráter ativo, próprio da ação material, também foi observado por Ovídio

Baptista da Silva, ao deduzir que “o direito subjetivo, assim definido é um status, uma

categoria jurídica estática, ao contrário da ação que pode ser esse próprio direito

subjetivo em seu momento dinâmico”. 172

Segundo o processualista, a ação de direito

material é o agir do titular do direito para a realização, independente da vontade do

obrigado; diferente do exercício da pretensão, que supõe a simples exigência por parte

do titular do direito subjetivo, “de tal modo que a realização ainda se dê como resultado

da ação do próprio obrigado”. 173

A ação material, portanto, já é a busca para a

realização do direito, em face da relutância em se cumprir o exigido.

Analisando a teoria de Pontes de Miranda, Pedro Henrique Nogueira destaca

que os direitos subjetivos são integrados por poderes (poder do proprietário de alienar a

coisa, poder do credor de renunciar ao crédito etc.), mas haveria ainda aqueles poderes

jurídicos conferidos in genere, independentes da natureza do direito que se estivesse a

170

MIRANDA, Pontes de. Op. Cit. p. 31-33. 171

MIRANDA, Pontes. Op. Cit. p. 47-48. 172

SILVA, Ovídio A. Baptista da. Direito subjetivo, pretensão de direito material e ação. Polêmica sobre

a ação. (Org. Fábio Cardoso Machado; Guilherme Rizzo Amaral). Porto Alegre: Livraria do

Advogado, 2006. p. 16. 173

SILVA, Ovídio A. Baptista da. Op. Cit. p. 18-19.

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tratar. Dentre esses poderes gerais, aponta a pretensão, como poder jurídico de exigir, e

a ação material, como o poder de impor a satisfação do direito subjetivo. 174

Afinal, a ação material seria “o poder jurídico conferido ao titular de um direito

subjetivo, após a ocorrência de um fato jurídico, de impor a sua satisfação, ainda que

contra a vontade do sujeito passivo”. 175

Este autor, contudo, ressalta ainda um

importante aspecto da ação material, muitas vezes ignorado, qual seja, a diferença entre

a sua titularidade e o seu exercício.

Isso porque a ação material seria um efeito jurídico específico e existiria em

potência, podendo-se ter a ação, sem no entanto exercê-la. 176

Comumente, quando se

trata da ação material se realça o momento de seu exercício que se dá, em regra, por

meio da ação processual. Contudo, a ação como categoria do direito material já existe

antes mesmo de ser invocada em juízo, havendo ainda as excepcionais hipóteses de

autotutela em que pode ser exercida a ação, independentemente de apelo jurisdicional

(p.ex. direito de retenção do depositário e legítima defesa, respectivamente, artigos 644

e 188, I, do CC/2002, entre outros).

Essas autorizações para exercício da ação material fora do Judiciário, todavia,

constituem hipóteses excepcionais, em razão do monopólio estatal da jurisdição e da

proibição geral da justiça de mão própria. Quando o titular do direito material não pode

realizar privadamente sua ação material, cabe ao Estado realizá-la, disso exsurgindo a

pretensão à tutela jurídica, exercida por meio dos remédios processuais.

Pontes de Miranda destaca que essa pretensão à tutela jurídica é irrenunciável,

de direito público e sempre dirigida contra o Estado, quer a exerça o autor ou o réu.

177Destaca ainda que é indiferente, para os fins da Justiça, que o postulante, de fato,

tenha direito subjetivo material ou disponha de pretensão. Os pressupostos da tutela

jurídica somente poderiam ser os pressupostos para que o Estado tenha de julgar, e não

os pressupostos para que tenha de julgar favoravelmente ao autor, ao demandado, ou ao

terceiro; sob pena de se misturarem pressupostos da tutela jurídica, com pressupostos da

pretensão de direito material. 178

174

NOGUEIRA, Pedro Henrique. A teoria da ação de direito material. Salvador: Juspodivm, 2008. p.

107. 175

NOGUEIRA, Pedro Henrique. Op. Cit. p. 110. 176

NOGUEIRA, Pedro Henrique. Op. Cit. p. 108. 177

MIRANDA, Pontes. Op. Cit. p. 232. 178

MIRANDA, Pontes. Op. Cit. p. 236-238.

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Pretensão à tutela jurídica não é, portanto, uma pretensão à sentença favorável

e do seu exercício surge a pretensão processual. 179

O dever estatal decorrente dessa

pretensão processual é o de decidir sobre o mérito, a questão de fundo, independente de

ser favorável ou não a quem postula. É ainda possível que esse tipo de pretensão se

submeta ao preenchimento de pressupostos, como capacidade e interesse, que

determinarão a admissibilidade da ação processual. 180

Vê-se, afinal, que a pretensão à tutela jurídica 181

é aquilo que comumente é

referido como “direito de ação”, de caráter abstrato e voltado contra o Estado, para que

este preste a tutela que passou a dever quando monopolizou a jurisdição.

O exercício dessa pretensão, por seu turno, é feito através dos remédios

jurídicos processuais, que nada mais são que o meio instrumental posto à disposição

daqueles que queiram suscitar uma prestação de tutela, 182

isto é, a via formal prevista

no ordenamento para obtenção de uma tutela processual.

Para muitos, o remédio jurídico seria a “ação processual”, 183

mas estes

conceitos não se confundem, pois aquele é o instrumento para se provocar a prestação

da tutela, inclusive perante o judiciário; ao passo que este é o meio para se afirmar em

juízo uma ação material, deduzida como um dos elementos da res in iudicium deducta,

sendo a forma mais comum de se tentar satisfazer uma ação material.

179

Pontes de Miranda explica que a pretensão à tutela jurídica se exerce pré-processualmente. Quem tem

pretensão à tutela jurídica tem-na, ainda que não a exerça. Já a pretensão processual depende do

pedido (para que se declare, constitua, condene, mande ou execute). Por isso, quem exerce pretensão à

tutela jurídica não a perde e se faz titular também da pretensão processual. (Pretensão à tutela jurídica,

pretensão processual e pretensão objeto do litígio. Revista Forense comemorativa 100 anos. t. V.

Coord: MOREIRA, José Carlos Barbosa. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 94-95.) 180

MIRANDA, Pontes. Op. Cit. p. 242-243. 181

Explica Marcos Bernardes de Mello que a pretensão à tutela jurídica decorre de um direito público

subjetivo que no Brasil tem status constitucional de direito fundamental (art. 5º, XXXV e LV). Diz

ainda que se insiste em chamar pretensão à tutela jurídica e não direito à tutela jurídica, porque aí o

direito e a exigibilidade já nascem simultaneamente, já se configurando uma pretensão, razão pela

qual não teria sentido se falar em direito, quando já existente a pretensão que o acoberta. (Da ação

como objeto litigioso no processo civil. Teoria quinária da ação: estudos em homenagem a Pontes

de Miranda nos 30 anos do seu falecimento. Coord.: COSTA, Eduardo José da Fonseca; MOURÃO,

Luiz Eduardo Ribeiro; NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa. Salvador: Juspodivm, 2010. p. 390-

392). 182

MIRANDA, Pontes de. Op. Cit. p. 277. 183

Remédio jurídico processual e ação processual, via de regra, são duas categorias equiparadas, vistos

como instrumentos fornecidos pelo ordenamento para se ir a juízo alegar uma pretensão violada.

Todavia, há quem defenda uma distinção entre um e outro, sendo o remédio jurídico processual meio

para obtenção da tutela jurisdicional; ao passo que a ação processual seria a afirmação (comunicação

de fato) que preenche o conteúdo do remédio jurídico processual, uma afirmação feita

processualmente da existência ou inexistência de situações jurídicas materiais, em especial a ação. O

primeiro seria o continente, o segundo o conteúdo. (GOUVEIA FILHO, Roberto P. Campos;

MIRANDA, Gabriela Expósito Tenório. O fenômeno processual de acordo com os planos material,

pré-processual e processual do direito: breves considerações do tema a partir (e além) do pensamento

de Pontes de Miranda. Artigo inédito.)

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Já se mostra possível agora perceber a ação material como categoria distinta do

remédio jurídico processual (exercido no plano processual), sendo aquela, como visto, a

possibilidade de imposição da pretensão não cumprida, de natureza concreta,

determinada e voltada contra o sujeito passivo da relação jurídica material. O remédio

jurídico processual, por outro lado, é de feição universal, abstrata e indeterminada, 184

atribuído a qualquer um que tenha capacidade de ser parte 185

(podendo ter ou não ação

material). Quando o remédio jurídico é exercido em juízo, dando ensejo à “ação

processual”, é manejado contra o Estado, na qualidade de devedor da prestação de tutela

jurisdicional.

Ao se distinguir ação material, remédio jurídico processual e pretensão à tutela

jurídica como diferentes acepções do termo ação, parte-se da noção de que o fenômeno

jurídico pode se manifestar em três planos: o material, o processual e o pré-processual.

O direito material e o processual se contrapõem, qualificando-se de material um direito

quando se toma como referência um processo. Admite-se, desse modo, que o direito

também existe fora do plano processual, uma vez titularizado e ainda que não exercido.

186

O pré-processual é um plano intermediário entre o material e o processual, mas

que com estes não se confunde, situando-se em tal limite aquelas categorias eficaciais

que não são objeto de um processo, mas que são necessárias para formação da relação

jurídica processual. 187

Aquilo que se situa no plano pré-processual (direitos, pretensões

etc.) é determinante para a eficácia da relação processual, sendo um pressuposto desta,

mas não faz parte daquilo que é levado a julgamento.

184

Pontes de Miranda esclarece que esse caráter universal vai até certo ponto, na medida em que a lei

pode determinar para os remédios processuais pressupostos de legitimação ativa e passiva que

atenuem a possibilidade de serem usados por todos, independentemente das ações que tenham

(abstração) e do objeto (indeterminação). De toda sorte, é possível se inferir que o remédio jurídico

processual é conferido a quem quer que se ache em condições de propô-lo, variando apenas os

pressupostos de legitimação ativa e passiva. (Op. Cit. p. 275). 185

Marcos Bernardes de Mello explica que os remédios jurídicos exigem para o seu uso a titularidade da

capacidade de ser parte, reconhecida no direito hodierno, indistintamente, a todas as pessoas físicas e

jurídicas. No entanto, no direito brasileiro, ainda haveria a possibilidade, em situação particulares, de

essa capacidade ser reconhecida a certos entes que não são pessoas, como o o espólio, o nascituro, o

condomínio etc. Em suma, leciona que “a simples possibilidade de poder estar em juízo como parte

ou interveniente, mesmo que seja por intermédio de representante (absolutamente incapaz) ou

assistente legal (relativamente incapaz), é que caracteriza a capacidade de ser parte”. (Op. Cit. p.

394). 186

O direito fora do processo subsiste por si só, não precisando, a princípio, ser qualificado de material.

Essa adjetivação surge quando se toma o processo como ponto de referência. Da mesma forma, o

plano pré-processual se define a partir dessa contraposição entre direito material e processual.

(GOUVEIA FILHO, Roberto P. Campos; MIRANDA, Gabriela Expósito Tenório. Op. Cit.). 187

GOUVEIA FILHO, Roberto P. Campos; MIRANDA, Gabriela Expósito Tenório. Op. Cit.

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Em razão desse caráter equívoco do termo ação, propenso a designar distintas

realidades, é importante delinear-se bem os diferentes planos do direito, a fim de melhor

destacar as consequências decorrentes dos diversos sentidos em que a ideia de ação

pode ser tomada.

Quando se fala em ação material, essencial se mencionar sua classificação pela

eficácia preponderante. Em que pese não ser a única forma de se classificar as ações,

tem como ponto positivo o reconhecimento de que as estas possuem sempre mais de

uma eficácia, as quais decorrem do próprio direito material, mesmo quando reconhecida

judicialmente a ação.

Assim ensina Pontes de Miranda quando diz que não há nenhuma ação

(material) que seja pura, que apenas disponha de eficácia declarativa (ou só constitutiva,

condenatória, mandamental ou executiva). Diz-se que uma ação material é, por

exemplo, declaratória, quando esta é sua eficácia preponderante, havendo sempre ainda

um pouco das demais, em força menor. A sentença julgada procedente também é dotada

de todas essas eficácias, em diferentes pesos, já que aí se reconhece, total ou

parcialmente, a ação material afirmada em juízo. Logo, também não há sentença

procedente de única eficácia. 188

No plano do processo, o remédio jurídico processual é a via pela qual se pede

que se declare, se condene, se constitua, se mande ou se execute a ação material, sendo

que este pedido não se confunde com a própria ação que se quer ver reconhecida. 189

A

afirmação de um direito subjetivo, pretensão ou ação material será objeto de exame no

processo, podendo ser reconhecida (procedência) ou não. Ação material e remédio

jurídico processual podem ser exercidos conjuntamente, porém, nem sempre que se

afirme uma ação material em um processo, necessariamente, esta será reconhecida

como existente.

A pretensão à tutela jurídica (“direito de ação”), devida tanto ao autor quanto

ao réu, é própria do plano pré-processual, assim como o direito ao remédio jurídico

processual (e sua respectiva pretensão), uma vez que devem ser pré-existentes ao

processo e são determinantes para sua formação regular. 190

Igualmente, aquilo que se

consagrou no direito brasileiro como condições da ação (art. 267, VI, CPC, que para

Marcos Bernardes de Mello deveriam ser chamados de pressupostos para o exercício da

188

MIRANDA, Pontes. Op. Cit. p. 124-126. 189

MIRANDA, Pontes. Pretensão à tutela... p. 94. 190

GOUVEIA FILHO, Roberto P. Campos; MIRANDA, Gabriela Expósito Tenório. Op. Cit.

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pretensão à tutela jurídica) 191

também se encontram no plano pré-processual, pois

configuram pressupostos para o desenvolvimento válido e regular da relação processual

jurisdicional.

É importante atentar-se para os fenômenos típicos do plano pré-processual, eis

que é nessa esfera intermediária entre o processo e direito material que se encontram as

situações jurídicas que irão justificar a possibilidade de prestação de tutela tanto em vias

judiciais, como administrativas.

Isso porque o remédio jurídico processual tanto pode assumir a forma de “ação

processual” como de “ação administrativa”, no sentido de se consubstanciar como uma

via para a afirmação e o exercício da ação material. Afinal, a pretensão e a ação material

não dispõem apenas do caminho judicial para sua satisfação e imposição, desde que a

ordem jurídica não proíba as demais vias. 192

A própria Constituição reconhece a via administrativa como apta ao

desenvolvimento do processo e defesa de interesses, como já destacado. É, portanto,

cabível se entender que há direito ao remédio jurídico processual também no plano

administrativo, em nosso ordenamento.

O direito ao remédio jurídico processual é determinado, previamente, pela lei

processual, podendo ser disponibilizado mais de um tipo de procedimento para

afirmação e satisfação de uma mesma situação material. Um exemplo claro disso é a

possibilidade de se exigir uma tutela mandamental tanto por meio do procedimento

ordinário, regulado no Código de Processo Civil, como pela via do mandado de

segurança, uma vez satisfeitos seus requisitos específicos. Caso se verifique a

necessidade de dilação probatória, a sentença desfavorável não irá atingir a ação

material, mas apenas a pretensão àquele remédio jurídico processual específico. 193

Essa possibilidade de previsão de mais de um remédio jurídico processual para

a tutela de uma mesma situação material (direito, pretensão, ação, exceção), ou até

191

Também é objeto de crítica pelo eminente jurista a inclusão da possibilidade jurídica do pedido e da

legitimidade ad causam como pressupostos para o exercício da pretensão à tutela jurídica, pois seriam,

na verdade, questões referentes ao mérito da causa, e não preliminares à formação da relação

processual. (MELLO, Marcos Bernardes de. Condições da ação: questões de mérito ou não mérito?

Pontes de Miranda e o direito processual. Salvador: Juspodivm, 2013. p. 858.) 192

Pontes de Miranda ainda reconhece a possibilidade de uma “ação” em juízo arbitral, ou em outro

corpo não estatal ou paraestatal. Diz ainda que o possível corte que o direito processual faça em

alguma dessas vias (judicial, administrativa, arbitral) não afeta a ação material, cujo corte total ou

parcial deve ser feito pelo direito material. (MIRANDA, Pontes. Tratado das ações...p. 110-112.) 193

BURIL, Lucas; PEIXOTO, Ravi. A denunciação da lide como remédio jurídico processual: uma

contribuição à luz da doutrina de Pontes de Miranda. Pontes de Miranda e o direito processual.

Coord.: DIDIER JR., Fredie; NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa; GOUVEIA FILHO, Roberto P.

Campos. Salvador: Juspodivm, 2013. p. 691-692.

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mesmo a concessão de remédio jurídico processual para uma situação material

específica (habeas corpus, execução fiscal, mandado de segurança, execução de títulos

extrajudiciais etc.), são formas de se concretizar a exigência de uma tutela adequada, 194

apta a efetivamente salvaguardar as situações materiais, notadamente as dotadas de

especificidade. 195

Uma vez que há, constitucionalmente, autorização para o processamento de

direitos pela via administrativa, a prestação de uma tutela adequada também se mostra

imperativa nesse âmbito, devendo-se permitir o uso de remédio jurídico apto ao

exercício de direitos, pretensões e ações materiais carentes da tutela administrativa.

À evidência, a relação jurídica processual formada a partir de remédio jurídico

exercido no judiciário, não será a mesma que exsurgirá do remédio jurídico utilizado em

âmbito administrativo.

Em sede jurisdicional, a relação jurídica formada contrapõe autor e réu perante

o juiz, sendo esta a angularização típica. 196

Já no processo administrativo, a relação

processual pode ser formada apenas entre o ente estatal julgador de um lado e, do outro,

a(s) parte(s) interessada(s), sem se cogitar de autor, réu e sucumbência entre um e outro,

como ocorre, por exemplo, nos processos fiscalizatórios que tramitam nos Tribunais de

Contas (prestação de contas, auditorias etc.), bem como nos processos administrativos

disciplinares em geral. Nesses casos, o objetivo é aplicar o direito ao caso, cominar a

devida sanção e recompor perdas, se necessário, não havendo, ao fim, uma situação de

vencedor e vencido.

Da mesma forma, a eficácia de uma relação processual administrativa não se

encontra condicionada aos pressupostos de admissibilidade listados no Código de

Processo Civil (condições da ação e os demais pressupostos processuais do art. 267 do

194

BURIL, Lucas; PEIXOTO, Ravi. Op. Cit. p. 691. 195

A prestação de uma tutela (que pode ser jurisdicional ou administrativa), para ser efetiva, deve guardar

respeito àquilo que se encontra previsto no plano do direito material. Nesse sentido, Luiz Guilherme

Marinoni afirma que “como o direito à efetividade da tutela jurisdicional deve atender ao direito

material, é natural concluir que o direito à efetividade engloba o direito à preordenação de técnicas

processuais capazes de dar respostas às necessidades que dele decorrem”. Mais adiante, arremata: “se

as tutelas dos direito (necessidades no plano do direito material) são diversas, as técnicas processuais

devem a elas se adaptar” (MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos.

3ªEd. São Paulo: RT, 2010. p. 114). 196

É o que Marcos Bernardes de Mello chama de estrutura angular triádica. Ressalva esse autor,

contudo, que nos procedimentos de jurisdição voluntária, ou em certos procedimentos administrativos

que se desenvolvem perante o Judiciário – inventário e partilha, por exemplo – a relação jurídica

processual se conforma apenas entre juiz e autor. Quando há demanda (lide) é que haveria,

necessariamente, a angularidade triádica da relação (juiz-autor-réu), uma vez que se mostraria

necessária a presença do réu, a partir de sua citação válida (MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do

fato jurídico: plano da eficácia -1ª parte. 4ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 214-215).

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CPC), porque tais requisitos condicionam e definem o desenvolvimento válido e regular

da relação processual jurisdicional, 197

devida pelo Estado em razão do monopólio da

jurisdição.

Conquanto se encontre vozes dissonantes na doutrina,198

é certo que no

processo administrativo brasileiro não há manifestação do poder jurisdicional, nem

exercício da sua decorrente pretensão à tutela jurídica (“direito de ação”), pois o

monopólio estatal da jurisdição, no Brasil, é desenvolvido perante o Poder Judiciário

(art. 5º, XXXV, CR/88), salvo raras e pontuais exceções (art. 52, I e II, CR/88).

Todavia, é possível que na esfera de poder administrativo se aplique o direito, com o

auxílio de um processo – embora não como função jurisdicional específica –

satisfazendo-se, quando necessário, situações jurídicas materiais.

Assim sendo, a atividade de aplicação do direito pelo ente estatal pode ser

realizada tanto sob os auspícios do poder jurisdicional, como em razão de outras

funções (exercício do poder de polícia – art. 78, CTN; do poder regulamentar – art.84,

IV, CR/88; do poder de fiscalização – art. 49, X, CR/88, entre outros), que podem

também se valer da forma processual.

O exercício da ação popular – como eficácia de direito material – fora das

esferas jurisdicionais, perante a própria autoridade obrigada, consubstancia-se, enfim,

como uma expressão da possibilidade jurídica de se provocar o Poder Público para se

efetivar direitos, reclamar abusos e ilegalidades (direito de petição).

O direito de petição é um direito subjetivo público (com suas respectivas

pretensões), de fundo constitucional, assegurado a todos aqueles submetidos às leis e

aos atos de autoridade, independente de capacidade (política ou civil), podendo ser

exercido perante qualquer das esferas de poder (legislativa, executiva, judiciária).

199Perante a Administração, impulsiona o dever de autotutela do Estado e sua submissão

ao direito, seja para defesa de interesse próprio do peticionante, ou geral.

197

Os pressupostos de admissibilidade (pressupostos pré-processuais, processuais ou processuais

especiais) condicionam o exercício da pretensão à tutela jurídica (obrigação do Estado de cumprir a

promessa de prestação jurisdicional). Verificada a ausência de tais pressupostos, não haveria a

obrigação de prestação da tutela jurisidicional, extinguindo-se o processo (MELLO, Marcos

Bernardes. Teoria do fato jurídico... p. 216-217). 198

Raimundo Márcio Ribeiro Lima é um exemplo dessa tendência ao afirmar, categoricamente, existir

uma jurisdição administrativa, caracterizada pela observância e aplicação do direito no caso concreto

pela autoridade competente (Administração Pública Dialógica. Curitiba: Juruá, 2013. p. 213). 199

MIRANDA, Pontes de. Comentários à constituição de 1946. 2ª Ed. São Paulo: Max Limond, 1953.

Vol. IV (arts. 141-156). p. 439-440.

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Um exemplo disso pode ser extraído do art. 41, §1º, da Lei 8.666/93,

dispositivo que permite a qualquer cidadão, no decorrer de um procedimento licitatório,

impugnar edital de licitação que incorra em ilegalidade, devendo a própria

Administração julgar e responder a tal reclamação. O referido comando legal prevê uma

ação popular (material) para ser exercida administrativamente, com o fito de forçar o

ente público a corrigir o edital de seleção, de acordo com o que determina a lei de

regência. Essa faculdade conferida a qualquer um – independente de ser parte ou não no

procedimento licitatório – não é exercício de uma pretensão de tutela jurídica contra o

Estado, na qualidade de terceiro imparcial, mas sim a reclamação contra uma possível

ilegalidade que o próprio ente estatal descumpriu, sendo mais uma expressão do direito

constitucional de petição.

Ao se conferir ao particular o poder de forçar o ente licitante a cumprir a lei,

“inflama-se” o plexo de direitos públicos que garantem uma licitação hígida (art. 3º, da

Lei 8.666/93), que passam a contar com a efetiva possibilidade de exigência para

satisfação, circunstância que denota a materialidade dessa espécie de ação popular.

Tudo isso demonstra que, ao lado da ação popular prevista como remédio

jurídico específico (como o previsto na Lei nº 4.717/65), também é possível se tratar de

uma ação popular de cunho material, como possibilidade prevista no ordenamento para

se buscar a satisfação de uma pretensão de direito público violada, que tanto pode ser

afirmada pelo exercício da pretensão à tutela jurídica (ação processual), como também

se valendo do direito de petição, iniciando-se um processo nas vias administrativas. 200

Esse reconhecimento de uma acepção material do termo ação não é uma

unanimidade na doutrina processualista, opondo-se a esse entendimento aqueles que

concebem a ação como uma categoria exclusiva do direito processual, que apenas nesse

plano pode ser exercida.

Defendem Cintra, Dinamarco e Grinover que a doutrina dominante no Brasil

conceitua a ação como um direito subjetivo público, ressalvando ainda vertente que a

compreende como um poder. De toda forma, para esses autores, a ação é uma situação

jurídica de que desfruta o autor (direito cívico, de natureza constitucional – art. 5º,

XXXV), que tem como objeto uma prestação positiva por parte do Estado, sendo

200

Não se adota aqui o pensamento de Eduardo Couture de que ação (no sentido de pretensão à tutela

jurídica) seria forma típica do direito constitucional de petição: a petição seria o gênero e a ação,

espécie. (COUTURE, Eduardo J. Op. Cit. p. 38-39.). Uma categoria não decorre da outra, possuindo

cada qual natureza jurídica distinta, em que pese ambas conferirem a oportunidade de se provocar o

Estado a cumprir o direito e, quando possível, satisfazer situações jurídicas materiais do peticionante

ou da coletividade.

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sempre dirigida contra este ente e nunca contra o adversário. Em que pese sustentarem

ser a ação um direito autônomo (independente da existência de direito subjetivo

material), admitem ser conexo a uma situação jurídica concreta, em razão de ser

também instrumental (já que sua finalidade seria dar solução a uma pretensão de direito

material). 201

Essa ideia de ação como um direito abstrato e autônomo, mas conexo a uma

situação material, faz alusão à teoria de Liebman, 202

francamente adotada pelo Código

de Processo Civil (vide as “condições da ação”, art. 267, IV, CPC), não obstante as

críticas de parte da doutrina contemporânea. 203

“Direito de ação” seria o direito ao

julgamento do mérito da causa, uma vez preenchidas as condições para tanto

(possibilidade jurídica, a legitimidade das partes e o interesse processual), as quais, por

sua vez, seriam como um elo entre a ação e o mérito, havendo até mesmo quem não

veja diferença entre condição da ação e mérito, em certos casos. 204

Faz-se uma

concessão ao direito material, mas nem por isso se admite que a ação também possa se

expressar fora do processo jurisdicional.

Além daqueles que ignoram uma possível acepção material do conceito de

ação, ainda há quem diretamente defenda a impertinência de uma ação material no

direito brasileiro. Carlos Aberto Alvaro de Oliveira encabeça essa tendência, sendo um

dos principais críticos da teoria de Pontes de Miranda, deduzindo que “tudo não passa

201

CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrine; DINAMARCO, Cândido Rangel.

Teoria geral do processo. 24ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 272-274. 202

A ação, para Liebman, é um direito que “tem por garantia constitucional o genérico poder de agir, mas

que em si mesma nada tem de genérico: ao contrário, guarda relação com uma situação concreta,

decorrente de uma alegada lesão a direito ou a interesse legítimo do seu titular (...)”. Quando, em

determinado caso, faltassem as condições da ação, ou mesmo uma delas, haveria carência de ação,

devendo o juiz negar o julgamento de mérito e declarar inadmissível o pedido (LIEBMAN, Enrico

Tullio. Manual de direito processual civil. vol. I. Rio de Janeiro: Forense, 1984. p. 150-151). Para

esse autor, a ação é um direito condicionado de obter um provimento de mérito, seja favorável ou não. 203

A chamada teoria da asserção é uma das principais vertentes críticas a essa opção legislativa.

Levando em conta a grande identidade entre condições da ação e mérito, bem como a autorização

legal para que as condições da ação sejam averiguadas a qualquer tempo e grau de jurisdição (§ 3º, art.

267, CPC), a teoria da asserção propõe que a análise das condições da ação, como questões estranhas

ao mérito da causa, fique restrita ao momento de prolação do juízo de admissibilidade inicial do

procedimento, a partir das alegações do demandante na petição inicial. Com isso, evitar-se-ia a

indesejável possibilidade de extinção do processo sem exame do mérito, por falta de condição da

ação, mesmo após vários anos de tramitação processual. Apesar dessa tentativa conciliatória, em razão

das inúmeras dificuldades práticas de sua aplicação, há quem simplesmente proponha a abolição das

condições da ação como categoria jurídica (DIDIER JR., Fredie. Pressupostos processuais e

condições da ação: o juízo de admissibilidade do processo. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 216-219. 204

Fredie Didier Jr. defende que, na tutela individual, quando se trata de legitimidade de agir ordinária e

possibilidade jurídica do pedido, seria impossível extremá-las do mérito da causa. Afirma ainda que,

em muitos casos, a falta de condições da ação revela situações de improcedência macroscópica, que

justificaria, até mesmo, o julgamento antecipado da lide (DIDIER JR., Fredie. Pressupostos

processuais … p. 214-219).

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de confusão entre os dois planos, com amesquinhamento do plano do direito

processual”. 205

Esse autor não nega que, nada obstante as afinidades e conexões existentes, o

direito material e o processual são dois planos distintos e bem definidos. Contudo,

sustenta que quando posto em lide, o direito material se torna incerto, de forma que não

seria possível se admitir uma ação material previamente existente ao processo.

Ademais, declarar, constituir, condenar, mandar e executar seriam verbos que não

existiriam no direito material, mas apenas no processual, eis que seriam imanentes ao

império e imparcialidade pressupostos pelo exercício da jurisdição. 206

Hermes Zaneti Jr. também criticaa ação material (e suas respectivas eficácias)

como categoria apartada do fenômeno processual. Para esse autor, o direito material,

quando afirmado em juízo, tornar-se-ia incerto, de forma que a incidência não

coincidiria com a aplicação da norma em abstrato, mas com a decisão judicial, que

constituiria essa incidência, criando o direito. 207

As críticas dirigidas contra a ação material, todavia, são insuficientes para

desmerecer toda a construção teórica “ponteana”, especialmente no que concerne à

possibilidade de exercício de uma ação popular material no processo administrativo.

Ovídio Baptista da Silva bem rebate esse rechaço à ação material. Identifica em

tal vertente crítica uma “apropriação indébita” da categoria ação, por supor que sua

transferência para o processo a tenha eliminado do direito material. E não apenas

defende a ação material como emanação própria do direito subjetivo, como sustenta sua

preexistência ao processo. Nesse ponto, refuta as afirmações de Carlos Alberto Alvaro

Oliveira, que não poderia, a seu juízo, considerar a jurisdição declaratória e, ao mesmo

tempo, sustentar que não seria possível haver ação material antes de seu reconhecimento

na sentença. Citando Chiovenda, arremata: “os direitos preexistem às sentenças que os

reconhecem”. 208

Quanto àqueles que negam pertencer ao plano material as eficácias

declaratórias, constitutivas, condenatórias, mandamentais e executivas – por entenderem

205

OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Direito material, processo e tutela jurisdicional. Polêmica

sobre a ação: a tutela jurisidional na perspectiva das relações entre direito e processo. Porto

Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 298. 206

OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Op. Cit. p. 289-295. 207

ZANETI JR., Hermes. Processo constitucional: o modelo constitucional do processo civil

brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 218. 208

SILVA, Ovídio A. Baptista da. Direito material e processo. Polêmica sobre a ação: a tutela

jurisidional na perspectiva das relações entre direito e processo. Porto Alegre: Livraria do

Advogado, 2006.p. 71-79.

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que sempre precisam de um processo para se concretizar – opõe-se Daniel Mitidiero.

Deduz esse autor que não se pode confundir a “vedação à autotutela” com o próprio

plano do direito material, pois o direito para existir não dependeria da proibição da

justiça de mão própria. Mesmo necessitando-se de um processo para sua satisfação, o

direito subjetivo por si só já garantiria ao seu titular uma situação de vantagem. Destaca

que a dificuldade em se admitir a materialidade, em especial, das ações declaratórias,

constitutivas e condenatórias, seria pelo fato de que essas ações seriam essencialmente

normativas, só podendo ser pensadas e compreendidas nessa sede. 209

Outros detalhes dessa polêmica ainda merecem destaque. Carlos Alberto

Alvaro de Oliveira exorta o caráter publicístico da jurisdição e do processo, afirmando

que “o comando daí resultante projeta sua eficácia no patrimônio das partes por força

própria, em razão da soberania do Estado-juiz, e não certamente em virtude de uma

norma de direito privado”. Daí a insuficiência do conceito de ação material, por seu

caráter eminentemente privado, que não resistiria ao confronto com o sistema

processual, de cunho eminentemente público e constitucional. 210

Inevitável concluir

que, para essa visão, direito material é direito privado e sua única forma de produzir

eficácia seria por força do exercício da jurisdição, de caráter público.

Além disso, prossegue o eminente processualista dizendo que as chamadas

ações de direito material (declaratórias, constitutivas, condenatórias, mandamentais e

executivas) não teriam existência mesmo antes do processo, em razão do já decantado

monopólio estatal da administração da justiça, como também porque “os

pronunciamentos judiciais e as sentenças, seja qual for o seu conteúdo (declaratório,

constitutivo, condenatório, mandamental ou executivo), não passam de formas próprias

e exclusivas da tutela jurisdicional”. Aqui, mais uma vez, se limita a força cogente do

direito material ao exercício da função jurisdicional, que se pressupõe imparcial e

imperativa.

A ação material, de fato, se contrapõe à “ação” processual, mas não por seu

caráter privado e sim por figurarem cada qual em planos distintos, como visto. Uma

ação material pode decorrer de um direito público e, assim, ostentar também natureza

publicística. Afinal, o que seria a chamada auto-executoriedade do ato administrativo se

209

MITIDIERO, Daniel. Polêmica sobre a teoria dualista da ação (ação de direito material - “ação”

processual): uma resposta a Guilherme Rizzo Amaral. Polêmica sobre a ação. Polêmica sobre a

ação: a tutela jurisidional na perspectiva das relações entre direito e processo. Porto Alegre:

Livraria do Advogado, 2006.p. 132-133. 210

OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro. Efetividade e tutela jurisdicional. Polêmica sobre a ação.... p.

100-101.

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não uma ação material de direito público? A ação popular material que ora se defende,

igualmente, é uma inflamação do direito subjetivo de caráter público, já que sua

impositividade é referente a interesses gerais, que acometem a todo o corpo de cidadãos.

Essa suposta natureza privatística da ação material não pode ser mencionada para

diminuí-la perante a ação processual, não apenas porque há casos de ação material de

direito público, mas especialmente porque, seja de direito público ou de direito privado,

a ação material sempre se caracteriza por sua impositividade, independentemente de um

processo.

Sem se negar ou diminuir a importância do processo jurisdicional, é certo que

essa não é a única via para a satisfação de situações materiais, notadamente da ação

material. O monopólio estatal da jurisdição não serve para reduzir todo o fenômeno

jurídico ao processo judicial, sendo o processo administrativo um exemplo de via

alternativa para aplicação do direito e satisfação de ações materiais.

Havendo autorização legal para tanto, a ação popular material pode ser

afirmada e exercida tanto pela via do processo judicial, como também do processo

administrativo, observadas as peculiaridades de cada uma dessas formas processuais.

2.5 Ação popular material no processo judicial e no processo administrativo.

Admitida, portanto, uma acepção material da ação popular, bem como sua

possibilidade de satisfação tanto pelo processo judicial, como pelo processo

administrativo, deve-se atentar para as repercussões práticas de tais conclusões.

De início, importante destacar que limitar a priori as possibilidades de tutela da

ação popular somente às de caráter constitutiva-negativa e ressarcitória, não apenas se

mostra insuficiente perante a atual ordem constitucional que atribui ao Estado maiores

deveres perante os cidadãos, mas também minimiza indevidamente o aspecto material

das ações, que é sempre dotado de várias eficácias, em diferentes medidas, inclusive a

mandamental. Não se pode restringir as possibilidades de tutela jurisdicional, quando o

próprio direito material afirmado e sua respectiva ação demandam satisfação mais

ampla.

Sérgio Cruz Arenhart ensina que as formas de prestação de tutela agrupam-se

em dois grandes grupos: aquelas que visam a operar exclusivamente no plano normativo

(declaratórias, constitutivas e condenatórias) – lidando apenas com a realidade jurídico-

normativa, sem alterar o plano fático – e aquelas que tendem a atuar no mundo

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concreto, alterando-o (mandamentais e executivas lato sensu). 211

Dentro desse quadro,

destaca que a tutela mandamental seria adequada para todo caso em que fosse

indispensável a colaboração do sujeito passivo da relação (aquele que deve realizar a

prestação) para satisfação do interesse, sendo duas as hipóteses que ocasionariam a

necessidade de se recorrer a essa forma de tutela: (i) as prestações infungíveis e (ii)

aquelas exigidas em face do Estado. Nesse último caso, reforça que a colaboração do

sujeito passivo (Estado) é imprescindível, em função da repartição de competências da

Administração Pública, que confere a cada um dos agentes estatais atribuições

vinculadas, que não poderiam ser exercidas por outros. 212

Como as eficácias de cada uma dessas possíveis tutelas deflui da ação material

que se afirma, uma ação popular material que exija uma prestação do Estado apenas

poderá ser satisfeita, de fato, com a concessão de uma tutela mandamental. Mesmo no

caso da ação popular constitucional (art. 5º, LXXIII, CR/88), que fala apenas em

“anular ato lesivo”, uma possível tutela mandamental não deve ser negada. Esse mesmo

dispositivo constitucional consagra a proteção pela ação popular, entre outros interesses,

do meio ambiente e do patrimônio histórico cultural, bens que para sua efetiva

salvaguarda, muitas vezes, demandam a concessão de uma tutela inibitória (prestação

negativa), já que o simples ressarcimento dos prejuízos e desconstituição do ato não

seriam suficientes para compensar danos irreversíveis ao ambiente histórico e natural. A

reação de tais direitos à sua, até mesmo, possível violação, se satisfaz apenas com um

provimento de eficácia mandamental, que altera o plano fático, mesmo que isso não

venha expressamente dito no comando constitucional que os protege.

Outrossim, é importante atentar que, para exercício da ação popular no

processo administrativo, não se cogita do preenchimento dos condicionantes e

pressupostos para o exercício da pretensão à tutela jurídica, pois o exercício do direito

de petição não os exige. Isso é relevante, pois, se uma mesma ação popular material

puder ser exigida tanto nas vias processuais administrativas como judiciais, caso se

negue o pedido por falta de legitimidade ou interesse (condições da ação), ou mesmo

211

Para este autor, as tutelas mandamental e executiva possuem alto grau de afinidade, permitindo

agrupá-las em uma só categoria: tutelas de prestação concreta. Essa classificação dos provimentos em

declaratórios, constitutivos, condenatórios (normativos) e mandamentais e executivos lato sensu

(concretos) apenas fariam referência ao conteúdo da ação de direito material, sem considerar as

demais informações apresentadas pelo direito material e a adequação do procedimento às suas

peculiaridades. Por isso que, ao lados das tutelas tradicionais, ainda propõe o reconhecimento das

chamadas tutelas inibitória, ressarcitória, reintegratória e tutela do adimplemento (ARENHART,

Sérgio Cruz. Perfis da tutela inibitória coletiva. São Paulo: RT, 2003. p. 92-100). 212

ARENHART, Sérgio Cruz. Op. Cit. p. 91.

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por não apresentação do título eleitoral (art. 1º, §3º, da Lei 4.717/65) ou qualquer dos

pressupostos de desenvolvimento válido da relação jurisdicional (capacidade

postulatória, competência etc.), nada disso pode impedir que se postule a ação popular

na esfera administrativa.

Aquilo que se considera no processo administrativo é se o objeto da postulação

possui ou não amparo legal. Contudo, lembrando que na função administrativa não é

possível se decidir acerca de situações materiais concretas de forma definitiva (art. 5º,

XXXV, CR/88), caso se julgue administrativamente que o postulante não teria

legitimidade ou mesmo razão em seu pedido, ainda seria possível se provocar um

processo judicial, respeitados os requisitos para tanto.

De toda forma, seja no processo administrativo ou judicial, será possível a

imposição da ação material em todas as suas eficácias (declaratória, constitutiva,

condenatória, mandamental, executiva), devendo-se prestar a tutela processual

adequada, que efetivamente garanta a satisfação da situação material afirmada.

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3 CAPÍTULO III. A AÇÃO POPULAR E O SISTEMA DE TUTELA DOS

DIREITOS COLETIVOS

3.1 Tutela dos direitos coletivos: primeiras linhas.

A existência de situações jurídicas de vantagem que ultrapassam a esfera de

interesses meramente individuais não é um fenômeno recente, tendo em vista a própria

origem romana da ação popular, que desde tempos antigos se mostrou apta a resguardar

direitos e valores metaindividuais, de fundamental importância para a vida em

sociedade.

O estudo do direito coletivo, contudo, ganhou especial relevância no Brasil nas

últimas décadas, graças ao incremento dado a esse sistema, com o gradual

reconhecimento pela legislação de novos direitos de caráter transindividual, criando a

necessidade de uma tutela jurisdicional mais efetiva.

Conforme destaca Antônio Herman Benjamin, o desenvolvimento do Estado

Social propiciou grandes avanços em termos de proteção legislativa aos mais fracos, já

que muniu o trabalhador de novos direitos, criou um aparato legal de proteção ao

consumidor e aos titulares de bens ambientais, amparou minorias, etc. Com o Welfare

State, teria surgido uma cultura de “expectativa geral de justiça”, 213

modelo em que se

encaixa a ordem instaurada com a Constituição de 1988.

Da mesma forma, a chamada massificação dos conflitos na sociedade

contemporânea influenciou o desenvolvimento do processo coletivo. Herman Benjamin

adverte que, nos tempos atuais, o litígio (em especial o ambiental e o de consumo), nem

sempre se resumiria a uma relação clara de conflituosidade entre dois sujeitos

absolutamente identificados, podendo assumir característica de massa, própria do

sistema econômico (industrial e pós-industrial) que lhe deu origem. Essa massificação

retiraria o litígio da esfera exclusiva dos diretamente envolvidos, publicizando-o,

levando para o âmbito do público aquilo que anteriormente era monopólio do privado.

214

213

BENJAMIN, Antônio Herman V. A insurreição da Aldeia Global contra o Processo Civil Clássico:

apontamentos sobre a opressão e a libertação judiciais do meio ambiente e do consumidor. Ação Civil

Pública: lei 7.347/85 – reminiscências e reflexões após dez anos de aplicação. São Paulo: RT,

1995. p. 79-80. 214

BENJAMIM, Antônio Herman V. Op. Cit. p. 79.

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Mauro Cappelletti, da mesma forma, também observa uma crise na estrita

divisão entre direito público (de titularidade do Estado, ou do povo)e privado (de livre

disponibilidade do indivíduo), summa divisio que justificaria a legitimação para agir no

processo e o caráter excepcional das hipóteses em que se permitiria a sujeitos ou grupos

agir em defesa de interesses coletivos, no direito positivo italiano. Reconhece o

processualista que a realidade social do período já era muito mais complexa, articulada

e sofisticada, restando irremediavelmente superada essa simplista dicotomia tradicional,

em razão dos novos interesses difusos, dos quais ninguém é titular, ao mesmo tempo em

que todos os membros de um dado grupo, classe, ou categoria, dele são titulares. Por

isso afirma que “o antigo ideal da iniciativa processual monopolística centralizada nas

mãos de um único sujeito, a quem o direito subjetivo ‘pertence’, se revela impotente

diante de direitos que pertencem, ao mesmo tempo, a todos e a ninguém”. 215

Tudo isso levou a uma revisão dos cânones individualistas do processo civil

tradicional, na tentativa de viabilizar uma tutela coletiva de direitos, movimento ainda

em curso, marcado por avanços e recuos, o qual culminou em um reconhecido sistema

de ações coletivas, informado por princípios e regras específicos.

Certamente, a ação popular é um dos principais componentes desse plexo de

vias para a tutela de direitos coletivos, eis que já figurava como hipótese legal mesmo

antes de se intensificar a série de construções teóricas e reformas legislativas que

propiciaram o processo coletivo no Brasil. Por isso é que se mostra pertinente

contextualizar o estudo da ação popular perante esse novo quadro de direitos coletivos,

atualizando esse importante meio de tutela, de acordo com o complexo de preceitos e

normas regentes da matéria.

Para tanto, toma-se como objeto de estudo a gradual construção do complexo

sistema de ações coletivas no Brasil, com suas normas intercomunicantes,

potencialidades e limitações, analisando-se a influência de todo esse aparato legal na

tutela fornecida pela ação popular. Como ponto de partida, destaca-se a experiência

norte-americana da class action, de amplo desenvolvimento teórico e prático, com

marcante influxo sobre nosso sistema. 216

215

CAPPELLETTI, Mauro. Formações sociais e interesses coletivos diante da justiça civil. Revista de

Processo, São Paulo, vol. 5, p. 128-159, jan./mar., 1977. p. 132-135. 216

Antônio Gidi destaca a importância do estudo das class actions, tendo em vista que as ações coletivas

brasileiras seriam daí derivadas, por via indireta, através da doutrina italiana (GIDI, Antônio. A class

action: como instrumento de tutela coletiva dos direitos. São Paulo: RT, 2007. p. 15).

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3.2 Class action norte-americana como marco na tutela coletiva.

O direito norte-americano, como se sabe, é um daqueles vinculados à Common

Law, tradição jurídica iniciada na Inglaterra, a qual se pauta fortemente nos precedentes

obrigatórios, os quais são, em grande medida, os responsáveis por distinguir as normas

desse sistema, com base em casos concretos, circunstância que acentua o papel da razão

pragmática nessa família jurídica. 217

Não obstante o ordenamento legal norte-

americano ter desenvolvido características próprias que lhe conferem posição peculiar

dentro da Common Law, 218

é importante fazer menção a essa sua ligação histórica com

o direito inglês, em razão de a Inglaterra ser apontada como o berço dos litígios

coletivos, havendo registros de demandas coletivas desde o seu período medieval.

As primeiras ações desse gênero teriam sido identificadas por Stephen Yeazell

(From medieval group litigation to the modern class action), na Inglaterra,a partir do

século XII. Tratava-se de conflitos envolvendo, de um lado, uma comunidade de

aldeões e, do outro, senhores, em relação à administração e utilização das terras nos

feudos; grupos de fiéis em face de párocos, no que concerne ao pagamento de dízimos;

corporações contra autoridades locais, quanto ao pagamento de tributos. 219

A respeito

desses litígios, observa Márcio Mafra Leal que o indivíduo, tal como se concebe hoje, é

uma “invenção” da cultura moderna e das revoluções liberais; ao passo que o ser

humano medieval estava indissociavelmente ligado à comunidade ou corporação a que

217

Explica Lucas Buril de Macêdo que o direito inglês, que é a raiz do common law, foi construído a

partir da criatividade jurisprudencial. A partir do século XII, uma série de decisões em casos

específicos passava a construir um sistema vasto e complexo de regras e princípios, dando ensejo à

formação inicial do direito comum inglês, no qual a legislação ocuparia um papel marginal. Contudo,

a doutrina dos precedentes vinculantes, peculiar à doutrina do common law, nem sempre esteve

presente nessa tradição. Embora sempre tenha sido atribuída importância aos precedentes, apenas em

1898, no julgamento do caso London Street Tramways Co. Ltd. V. London County Council,

estabeleceu-se com exatidão a vinculação aos precedentes judiciais (MACÊDO, Lucas Buril de.

Precedentes judiciais e o direito processual civil. Salvador: Juspodivm, 2015. p. 50-62). 218

O termo Common Law possui diversas acepções, mas em seu sentido geral, designando tradição

jurídica, não deve ser confundido com “sistema inglês”, eis que se aplica a vários países, embora

surgido na Inglaterra; nem com “anglo-saxão”, porquanto esse adjetivo designa o sistema dos direitos

que regiam as tribos antes da conquista normanda da Inglaterra, anterior à criação da Common Law

naquele país. Assim alerta Guido Fernando Silva Soares, o qual também adverte que o direito norte-

americano, com exceção do estado da Louisiana, é considerado como um direito da família Common

Law misto, ou seja, pertencente àquela família, mas sintonizado muito perto da Civil Law. Entre os

aspectos que distinguem o direito norte-americano dentro da Common Law destaca-se,

primordialmente, (i) sua organização federativa, com as autonomias dos estados-membros

“ferrenhamente instauradas e defendidas por eles” e a existência de uma realidade normativa paralela

aos mesmos; (ii) uma Constituição rígida e escrita, de fundamental importância, fenômeno

desconhecido pela Inglaterra e, enfim, (iii) maior relevância das universidades e maior tendência à

codificação (SOARES, Guido Fernando Silva. Common Law: introdução ao direito dos EUA. São

Paulo: RT, 2000. p. 58-60). 219

LEAL, Márcio Mafra. Ações coletivas: história, teoria e prática. Porto Alegre: SAFE, 1998. p. 24.

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pertencia. Não havia, portanto, discussão acerca da representatividade do autor dessa

ação coletiva, já que não se discernia indivíduo de comunidade como se concebe hoje,

razão pela qual o processo coletivo medieval voltava-se para o mérito do litígio, sendo

as partes e sua definição algo não problemático ou secundário. 220

Esses remotos exemplos de “ações de classe” demonstram que, pelo menos na

tradição jurídica da Common Law, demandas coletivas não são um fenômeno recente,

muito embora o acentuado caráter individualista das sociedades contemporâneas tenha

dado uma conformação diversa aos processos coletivos dos dias atuais.

Essa ascensão do indivíduo, como elemento distinto do seu meio social, já se

mostra mais delineada quando se analisa o bill of peace, apontado como o antecedente

histórico mais imediato da class action, pois nesse momento a representação de toda

uma coletividade por um ou alguns de seus integrantes já passa a ser uma questão

problemática.

Ainda quando o direito inglês se dividia em “jurisdição do direito” (law

jurisdiction) e “jurisdição da equidade” (equity jurisdiction), os tribunais da equidade –

Courts of Chancery – decidiram modificar seu regramento, a respeito da formação de

litisconsórcio fundado na existência de questões comuns. Exigia-se, de forma rigorosa,

a intervenção compulsória de todas as pessoas interessadas no julgamento da lide,

mesmo as interessadas só de fato, sob pena de extinção do processo (compulsory

joinder rule), objetivando evitar a multiplicidade de julgamentos e conceder a justiça o

mais abrangente possível. Já no século XVII, observou-se, no entanto, que a estrita

obediência a essa regra provocava inconvenientes e injustiças, nos casos em que nem

todas as pessoas interessadas pudessem intervir voluntariamente no processo, obstando

assim a satisfação do direito de todas as demais. 221

O bill of peace foi, então, criado como opção a essa rígida regra geral, de forma

que passou a existirem as ações representativas, em que um ou alguns dos membros de

um grupo poderiam representar em juízo o interesse dos demais e a coisa julgada, de

caráter erga omnes, vincularia todos os integrantes daquela coletividade. Para ser

admissível, era necessário que o grupo fosse tão numeroso que tornasse o litisconsórcio

de todos impossível ou impraticável, que todos tivessem um interesse comum e que o

autor fosse um representante adequado do interesse dos membros ausentes. 222

220

LEAL, Márcio Mafra. Op. Cit. p. 27. 221

GIDI, Antônio. Op. Cit. p. 41. 222

GIDI, Antônio. Op. Cit. p. 42.

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O direito americano herdou esse duplo sistema de Law x Equity, desde seu

período colonial, com as devidas adaptações (um mesmo tribunal exercia ambas as

jurisdições), absorvendo, desse modo, o bill of peace como criação própria do sistema

de equidade e, até mesmo, incrementando-o. 223

Em 1842, um conjunto de regras de equidade foi editado pela Suprema Corte

norte-americana, destacando-se a Equity Rule 48, que pela primeira vez trouxe

comandos escritos regulando as ações coletivas. Já em 1912, a Suprema Corte

reformulou as Equity Rules, editando a Rule 38, que passou a ser então o parâmetro

legal das class actions. 224

Para Antônio Gidi, as class actions dessa época eram um

instrumento muito mais simples que as ações coletivas atuais, pois o seu cabimento era

condicionado pela lei apenas à existência de um interesse comum entre os membros de

um grupo, tão numeroso a ponto de impedir o litisconsórcio dos demais interessados. Já

se encontrava implícita, no entanto, a ideia de que o representante do grupo deveria ser

um dos seus membros e que a representação deveria ser adequada, em respeito ao

devido processo legal. 225

Outro marco no desenvolvimento da tutela coletiva norte-americana deu-se no

ano de 1938, com o primeiro Código de Processo Civil, no âmbito federal (Federal

Rules of Civil Procedure), que na Rule 23, regulava as class actions, a partir de então

disponíveis para todo o direito e não apenas para os processos calcados na equidade.

Essa regra previa três categorias de ações coletivas: (i) as puras ou verdadeiras (true);

(ii) as híbridas (hybrid) e, por fim, (iii) as espúrias (spurious). Essa classificação, no

223

Além dos já consagrados critérios de necessidade e conveniência, o direito americano acrescentou

mais uma hipótese de cabimento da tutela coletiva: seria possível a defesa coletiva de um direito,

sempre que, assim não o fazendo, o juiz estivesse impedindo a realização da justiça, como nos casos

em que as pretensões individuais fossem tão reduzidas que não justificassem as despesas com um

litígio judicial (GIDI, Antônio. Op. Cit p. 44-45). 224

Aluísio Gonçalves de Castro Mendes destaca os estudos de Joseph Story, integrante da Suprema Corte

norte-americana de 1811 a 1845, como os primitivos escritos sobre demanda coletiva. Em 1836, Story

publicou a obra Commentaries on Equity Jurisprudence, em que apontou, entre outros pontos, a

importância das demandas coletivas para o acesso à justiça. Todavia, na segunda edição da obra, o

autor fez concessões ao individualismo reinante na época, passando a defender a não vinculação dos

ausentes no processo aos efeitos da decisão proferida na group litigation. A Equity Rule 48 teria

agasalhado esse entendimento de Story, à época ainda membro da Suprema Corte, eis que não

permitia que os efeitos do julgado atingissem os interessados ausentes do processo, limitando bastante

a força da tutela coletiva. Com a edição da Rule 38, em 1912, suprimiu-se no texto a referência aos

efeitos não vinculativos em relação aos membros da classe que não estivessem presentes no processo.

Contudo, pondera Castro Mendes que essa supressão textual não ensejou tratamento uniforme dos

tribunais em relação à questão, continuando a reinar o dissenso e a confusão sobre o tema nas cortes

americanas (MENDES, Aluísio Gonçalves de Castro. Op. Cit. p. 60-64). Isso demonstra que, também

nos Estados Unidos, ponto de referência no estudo da matéria, a tutela coletiva passou por momentos

de valorização, mas também de contenções, sendo paulatina a construção de um pensamento jurídico

consistente a respeito desse tema. 225

GIDI, Antônio. Op. Cit. p. 46.

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entanto, provocou uma série de dificuldades de interpretação e definição clara das

hipóteses até que, finalmente, a Suprema Corte norte-americana reformou

substancialmente o texto da Regra 23, em 1966, dando à class action sua feição mais

contemporânea. A reforma de 1966 enfatizou a representação adequada nas ações

coletivas, cujo julgamento passaria a atingir a todos os considerados membros da classe,

independentemente de o resultado ser benéfico ou não para o grupo representado. 226

A Regra 23 ainda passou por outras alterações pontuais após o ano de 1966

(em 1987, 1988, 2003, 2007), em que se fizeram pequenos ajustes redacionais,

incorporaram-se entendimentos jurisprudenciais sobre aprovação de acordos, escolha de

advogados, fixação de honorários, interposição de recursos, além da inserção do Class

Action Fairness Act (CAFA), estatuto contendo disposições diversas. Ainda assim,

manteve-se a estrutura básica delineada na reforma de 1966. 227

A característica central do procedimento disposto na Regra 23 é seu caráter

representacional, razão pela qual a jurisprudência estadunidense sobre o assunto é

bastante centrada no devido processo para proteção do interesse dos membros ausentes.

Ademais, o regulamento básico da class action é, sobretudo, procedimental, não

intenciona modificar ou ampliar direitos substantivos, nem é suplementado por um

226

A ação de classe pura pressupunha a unidade absoluta de interesses (unity of interest), ou seja, a

natureza indivisível do direito ou interesse, comum a todos os membros do grupo; nas híbridas, os

membros da classe teriam que compartilhar do interesse em relação a um bem jurídico, que está sendo

objeto na ação, mas o direito não seria único ou comum a todos, haveria uma pluralidade de direitos

incidindo sobre um mesmo objeto; já nas espúrias, haveria uma pluralidade de interesses, mas

decorrentes de uma questão comum de fato ou de direito, sendo mais indicada a agregação dos

direitos individuais para a realização de um remédio processual comum. Não era necessário um objeto

indivisível, nem mesmo um bem comum relacionado com a lide, mas apenas pessoas ligadas por

determinadas circunstâncias, pleiteando a mesma espécie de provimento jurisdicional, de forma que a

ação de classe espúria não era uma imposição, mas um permissivo, ao contrário das duas outras

espécies. Na ação de classe espúria, só se vinculavam ao julgado os membros participantes do

processo, ao passo que nas puras e híbridas, todos os membros da classe estariam submetidos à

decisão, mesmo os que não participaram do processo. Essa falta de vinculação nas ações de classe

espúrias, aliada à dificuldade em efetuar a distinção entre as categorias de ações de classe, figuram

entre os principais problemas que levaram à reforma da Rule 23, em 1966 (MENDES, Aluísio

Gonçalves de Castro. Op. Cit. p. 64-68). 227

Importa ainda mencionar que, em razão de sua organização federativa, os estados independentes

também possuem regras próprias para ações de classe, de forma que a Regra 23 do Federal Rules of

Civil Procedures só se aplica no âmbito federal da justiça estadunidense. A grande maioria dos

estados, contudo, segue regras semelhantes ou idênticas às federais, com pontuais diferenças (alguns

estados, curiosamente, ainda adotam a versão antiga de 1938, outros três – Mississipi, Nova

Hampshire e Virgínia – não possuem qualquer legislação processual, tendo recepcionado a class

action por meio do regime da equity), bem como perfilham decisões e jurisprudência desenvolvida os

tribunais federais, onde a prática da ação coletiva é mais avançada. Enfim, apesar de baseadas em

parâmetros legais distintos, as class actions federal e estaduais assemelham-se bastante (LEAL,

Márcio Mafra. Op. Cit. p. 166-167).

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conjunto de leis específicas sobre direitos substantivos, como em outros países da

Common Law. 228

Assim como na fase inicial das ações representativas, para que um ou alguns

dos membros de uma classe possa demandar ou ser demandado coletivamente, é

necessário o preenchimento de requisitos específicos, os quais ora se encontram

previstos na alínea “a”, da Regra 23. Em apertada síntese, tais exigências são: (i)

impraticabilidade do litisconsórcio – o grupo deve ser tão numeroso que o

litisconsórcio de todos os membros seja impraticável; (ii) questão comum – deve haver

questões comuns, de fato ou de direito, entre os membros da classe; (iii) tipicidade – os

pedidos ou defesas do representante do grupo devem ser típicos dos pedidos ou das

defesas dos membros do grupo; (iv) representação adequada – o representante do

grupo deve possuir condições de adequadamente proteger os interesses do grupo.

Tais requisitos legais condensam a evolução do pensamento jurídico norte-

americano quanto à pertinência ou não de uma ação de classe, sendo essencial a

presença concorrente de todos esses condicionantes.

Antônio Gidi explica que a ausência de apenas um desses requisitos

comprometeria a admissibilidade de uma ação como coletiva, podendo, contudo, esta

ação prosseguir na forma individual entre autor e réu. Classifica ainda os dois primeiros

requisitos (impraticabilidade do litisconsórcio e questão comum) como requisitos

objetivos e os dois últimos (tipicidade e representação adequada), como subjetivos. 229

O requisito da “impraticabilidade do litisconsórcio”, ou ainda numerosity,

como visto, remonta às origens da tutela coletiva, porquanto era essa a ideia que

embasava o cabimento do bill of peace, no século XVIII. Atualmente, essa condição não

exige a demonstração de que o ajuntamento de todos os interessados seja impossível,

contentando-se apenas com a existência de extrema dificuldade ou inconveniência para

228

Excepcionalmente, para algumas situações específicas, o sistema norte-americano prevê formas de

resolução coletiva de litígios com base no direito substancial, como ocorre, por exemplo, na área do

mercado de valores com o Private Securities Reform Litigation Act of 1995 e o Uniform Securities

Litigation Standards Act of 1998, diplomas legais que contém disposições procedimentais e

substanciais (GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo; MULLENIX, Linda. Os processos

coletivos nos países de civil law e common law. 2ª Ed. São Paulo: RT, 2011. p. 260). 229

Para este autor, se os requisitos objetivos estiverem presentes, determinada controvérsia coletiva é

passível, em tese, de solução através de um único julgamento coletivo, que trate a questão

uniformemente. Porém, somente quando também estiverem presentes os requisitos subjetivos, a ação

proposta poderá prosperar legitimamente na forma coletiva e proporcionar uma decisão que vincule

todos os demais. Se, contudo, em um dado processo os requisitos objetivos estiverem presentes, mas

não os subjetivos, ainda assim seria possível se processar a demanda coletivamente, substituindo-se o

representante do grupo por outro membro adequado, excluindo-se do processo aqueles representantes

e integrantes que não atendam às exigências de pertinência subjetiva (GIDI, Antônio. Op. Cit. p. 67-

68).

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tanto. Já o requisito da “questão comum”, ou commonality, exige que haja uma ou mais

questões de direito ou de fato, que sejam comuns à classe, não se exigindo também a

identidade absoluta de todas as questões apreciáveis no feito. 230

Antônio Gidi observa que a impraticabilidade do litisconsórcio não é uma

necessidade inerente à tutela coletiva, não havendo tal exigência, por exemplo, no

direito brasileiro, até mesmo porque, no nosso ordenamento, a coisa julgada coletiva

não poderia prejudicar os direitos individuais dos membros do grupo, não pretendendo

ser a tutela coletiva uma substituta à tutela individual. No direito estadunidense, ao

contrário, as class actions substituem a tutela individual e a coisa julgada coletiva

impede a propositura de ações individuais pelos membros do grupo (salvo eventual

possibilidade de auto-exclusão). A class action, portanto, é um instrumento

excepcional, tendo optado o legislador americano por não permitir a tutela coletiva nas

situações em que a tutela individual seja possível. 231

Já no que tange ao requisito da questão comum, esse autor a considera

indispensável, sendo “o alicerce do cabimento de qualquer ação coletiva e da própria

existência de uma controvérsia de natureza coletiva e de um grupo”. A exigência de que

haja uma questão comum a ser decidida seria implícita nas hipóteses de cabimento de

qualquer ação coletiva, razão pela qual, mesmo sem previsão explícita, vislumbra sua

presença no direito brasileiro, quando nossa legislação fala em “circunstâncias de fato”,

“relação jurídica-base” ou “origem comum”. 232

Mesmo sendo o próprio fundamento de uma pretensão coletiva, existente desde

os primórdios da class action, o requisito da commonality teve seu sentido alterado com

o passar dos anos, restringindo-se um tanto seu possível cumprimento. Desde o caso

Wal-Mart Stores, Inc. v. Dukes, a Suprema Corte norte-americana passou a entender

que, para o cumprimento desse requisito, seria insuficiente simplesmente se suscitar

uma questão comum (de fato ou de direito) entre os membros do grupo. Seria necessário

também que essa questão comum alegada fosse central no caso e permitisse resolver a

situação de todos de uma vez só. 233

230

MENDES, Aluísio Gonçalves de Castro. Op. Cit. p. 71-73. 231

GIDI, Antônio. Op. Cit. p. 73. 232

GIDI, Antônio. Op. Cit. p. 80-81. 233 O caso em questão tratava de um numeroso grupo de empregadas e ex-empregadas do Wal-Mart

(aproximadamente 1,5 milhão), representadas por Betty Dukes, que alegava conduta discriminatória

do seu empregador, eis que a política de pagamentos e promoções, baseada em juízos subjetivos,

propiciaria conduta discriminatória dos supervisores locais em desfavor das mulheres da empresa.

Entendeu-se, contudo, que esse alegado padrão de conduta discriminatória não cumpriria o requisito

da commonality, pelas razões acima expostas. Benjamin Spencer resume o entendimento desse

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Embora a class action seja um importante instrumento para resolver litígios de

forma coletivizada, esse tratamento unitário dado a um complexo de demandas não

pretende suplantar a singularidade dos sujeitos submetidos a esse procedimento. Pelo

contrário, a individualidade é um ponto bastante valorizado nesse sistema, circunstância

que se mostra patente quando se analisam os dois requisitos subjetivos – tipicidade e

representação adequada.

Embora existam posições divergentes a respeito da exata interpretação da

Regra 23(a)(3), essa norma pressupõe que um membro da classe, por possuir um

interesse pessoal e direto na lide, estará, a princípio, apto a empreender os melhores

esforços para perseguir os objetivos do grupo. 234

Ou seja, no requisito da tipicidade,

exige-se que o representante tenha os mesmos interesses e tenha sofrido o mesmo ilícito

que os demais. Não somente as questões devem ser comuns entre os membros do grupo,

mas também entre estes e o representante, que propõe a ação coletiva em nome próprio

e em nome todas as pessoas em situação semelhante. 235

Antônio Gidi comenta que “o individualismo presente na cultura americana só

admitiria que alguém representasse os interesses de outrem se, fazendo isso, estivesse

protegendo também os seus próprios interesses”. A autoridade de um membro para

representar os interesses dos demais ausentes no processo adviria da identidade de

interesse que os une. 236

Demais disso, destaca que o requisito da tipicidade não tem

precedente, ao comentar que “merely raising a common question “is not sufficient to obtain class

certification” said the majority; rather, commonality requires that the plaintiffs share the “same

injury,” raising “acommon contention” whose determination will resolve an issue that is “central” to

each of the claims, attributes that provide a basis to believe that all of the claims “can productively be

litigated at once”. Essa exigência de “centralidade” da questão comum até então não era exigível,

sendo bastante criticado pelo autor esse estreitamento na interpretação da commonality, entendendo

que ao dificultar bastante a certificação de ações como coletivas, poderá diminuir o efeito

desencorajador que a class action provoca nos ilícitos de massa (SPENCER, A. Benjamin. Class

actions, heightened commonality, and declining access to justice. Boston University Law Review.

Vol. 93. Disponível em: http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2113374##. Acessado em

21.01.2015. p. 04-08). 234

O dispositivo contido na Regra 23(a)(3) exige que: the claims or defenses of the representative parties

are typical of the claims or defenses of the class.Analisando essa regra, autores (como Robert H.

Klonoff) classificam em separado, como requisito implícito, a necessidade de a parte representativa

integrar a classe, deixando para o âmbito da tipicality somente a verificação da compatibilidade entre

a parte representativa e a classe, em termos de pretensão ou defesa. Já nos escritos de Jack H.

Friedenthal, Mary Kay Kane e Arthur R. Miller, ambas as indagações encontram-se no campo da

exigência ora tratada (MENDES, Aluísio Gonçalves de Castro. Op. Cit. p. 73-74). Vê-se que a ideia

de que “o representante deve integrar a classe” está presente em ambos os posicionamentos, apenas

essa exigência é tratada como um requisito a mais pela primeira corrente. 235

GIDI, Antônio. Op. Cit. p. 88-89. 236

GIDI, Antônio. Op. Cit. p. 94.

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equivalência nas ações coletivas brasileiras, que também conferem legitimidade para

essas ações ao Estado, ou a associações civis. 237

Por fim, a exigência da representação adequada é mais um elemento que

corrobora o marcante protagonismo individual na class action norte-americana.

Esse requisito é uma decorrência do devido processo legal, muito embora, de

forma excepcional, permita a defesa de direitos e interesses por outros titulares, sem a

voluntária concessão, a priori, de poderes específicos para tanto, pelos demais

representados. 238

O poder que tem o representante para tutelar os interesses do seu grupo advém,

justamente, de adequadamente representar em juízo os ausentes, sob o risco de não ser

reconhecido o efeito vinculante da coisa julgada coletiva em processo posterior, caso

esse requisito não tenha sido efetivamente cumprido. Existe, até mesmo, interesse da

parte contrária em zelar pela adequada representação do grupo, pois somente se litigar

contra um representante adequado poderá contrapor, em face de todos os interessados,

uma decisão contrária aos interesses do grupo, com força de coisa julgada. 239

A representação adequada é um requisito que se compõe de dois elementos: (i)

a possibilidade de assegurar a vigorosa tutela dos interesses dos membros ausentes; (ii)

ausência de conflitos entre o representante e o grupo. Esses dois componentes devem

ser analisados tanto em relação ao representante, quanto em relação ao seu advogado.

240

A demanda coletiva é ajuizada em nome do cidadão, membro do grupo, mas o

trabalho de representação será, em grande medida, feito pelos advogados, como bem

destaca Owen Fiss. É significativo o papel de comando do advogado na class action,

que em muitos casos acaba por arcar com os altos custos decorrentes do litígio coletivo

(discovery, notificação etc.), visando aos altos valores das condenações nos processos

de massa. 241

A Regra 23, na alínea “g”, traz uma série de critérios para análise da

237

GIDI, Antônio. Op. Cit. p. 99. 238

No caso Hansberry v. Lee, em 1940, a Suprema Corte dos Estados Unidos traçou um paralelo entre o

devido processo legal e os limites subjetivos da coisa julgada, admitindo essa excepcional hipótese

das class action, em que os limites internos poderiam ser rompidos, desde que respeitados certos

requisitos, entre os quais, a representação adequada (MENDES, Aluísio Gonçalves de Castro. Op. Cit.

p. 76-77). 239

GIDI, Antônio. Op. Cit. p. 101-103. 240

Em 2003, acrescentou-se à Regra 23 a alínea “g”(1)(b), passando-se a exigir expressamente que o

advogado represente adequadamente os interesses do grupo. Contudo, mesmo antes dessa modificação

já se extraía essa exigência da alínea “a”(4) (GIDI, Antônio. Op. Cit. p. 104-105). 241

No processo estadunidense, não há, na condenação, verba em separado para retribuir os honorários

advocatícios. A remuneração pelo trabalho do advogado deve ser retirada da indenização paga pela

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adequação do causídico na representação do grupo (experiência em outras ações de

classe, trabalho de investigação das possíveis reivindicações legais da demanda,

conhecimento geral do direito, investimento de recursos na causa, etc.), dado que

igualmente evidencia a importância desse sujeito no processo coletivo estadunidense. 242

A representação adequada acaba sendo um dos requisitos mais problemáticos

da class action, pois, aquele membro do grupo que ajuíza uma ação de classe age como

representante dos demais, mas sem respaldo consensual, eis que essa representação é

auto-atribuída. Demais disso, uma possível vitória do réu vinculará os representados,

parte vencida, caso a ação seja procedente. Por isso, quando o advogado adianta as altas despesas do

processo está, na verdade, fazendo um investimento na causa, tendo em vista que quanto mais alto o

possível valor da condenação, maior o interesse e comprometimento do advogado em “investir” e

atuar no processo, pois maior poderá ser sua recompensa final. Não por acaso, os valores que o

advogado empenha na causa – Regra 23(g)(iv) – serão levados em conta na hora de avaliar sua

adequada representação (FISS, Owen. The political theory of the class action. Washington and Lee

Law Review. Vol. 03, n. 01 (1966), Lexington: Virginia). 242

(g) CLASS COUNSEL.(1) Appointing Class Counsel. Unless a statute provides otherwise, a court that

certifies a class must appoint class counsel. In appointing class counsel, the court:

(A) must consider:

(i) the work counsel has done in identifying or investigating potential claims in the action;

(ii) counsel's experience in handling class actions, other complex litigation, and the types of claims

asserted in the action;

(iii) counsel's knowledge of the applicable law; and

(iv) the resources that counsel will commit to representing the class;

(B) may consider any other matter pertinent to counsel's ability to fairly and adequately represent the

interests of the class;

(C) may order potential class counsel to provide information on any subject pertinent to the

appointment and to propose terms for attorney's fees and nontaxable costs;

(D) may include in the appointing order provisions about the award of attorney's fees or nontaxable

costs under Rule 23(h); and

(E) may make further orders in connection with the appointment.

(2) Standard for Appointing Class Counsel. When one applicant seeks appointment as class counsel,

the court may appoint that applicant only if the applicant is adequate under Rule 23(g)(1) and (4). If

more than one adequate applicant seeks appointment, the court must appoint the applicant best able to

represent the interests of the class.

(3) Interim Counsel. The court may designate interim counsel to act on behalf of a putative class

before determining whether to certify the action as a class action.

(4) Duty of Class Counsel. Class counsel must fairly and adequately represent the interests of the

class.

(h) ATTORNEY'S FEES AND NONTAXABLE COSTS. In a certified class action, the court may award

reasonable attorney's fees and nontaxable costs that are authorized by law or by the parties’

agreement. The following procedures apply:

(1) A claim for an award must be made by motion under Rule 54(d)(2), subject to the provisions of

this subdivision (h), at a time the court sets. Notice of the motion must be served on all parties and, for

motions by class counsel, directed to class members in a reasonable manner.

(2) A class member, or a party from whom payment is sought, may object to the motion.

(3) The court may hold a hearing and must find the facts and state its legal conclusions under Rule

52(a).

(4) The court may refer issues related to the amount of the award to a special master or a magistrate

judge, as provided in Rule 54(d)(2)(D).

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que não mais poderão litigar individualmente sobre o decidido na class action (salvo

possibilidade de opt-out). 243

O sistema adversarial, no qual o processo norte-americano se enquadra, confere

às partes grande poder na determinação e condução do litígio, privilegiando a

autonomia individual e os interesses próprios dos litigantes. A class action, no entanto,

representa uma exceção nesse sistema, sendo o requisito da adequada representação o

“antídoto” para essa fuga à autodeterminação individual e consentimento. 244

Todos os quatro requisitos previstos na Regra 23, “a”, tem existência autônoma

e são analisados separadamente. Todavia, sob certo enfoque, podem mesmo se

confundir ou se sobrepor uns aos outros, tendo em vista que o limite conceitual que os

diferencia nem sempre se mostra bem demarcado. Antônio Gidi, no entanto, nota que a

sobreposição existente entre os requisitos da tipicidade da lide e da adequada

representação pode não ser tão evidente para o jurista brasileiro, já que nosso direito,

assim como o de outros países da Civil Law, legitima em geral entidades alheias à

controvérsia, como entes públicos e associações privadas, para a propositura de ações

coletivas. 245

Explica que, muito embora a tipicidade e a adequação sejam conceitos

logicamente distintos e independentes, a jurisprudência e a doutrina tendem a não

dissocia-los completamente. Essa confusão seria, afinal, opção da própria cultura

estadunidense, em que subjaz o raciocínio de que não haveria suficiente incentivo ao

representante para uma vigorosa defesa dos interesses do grupo, se os seus próprios

interesses também não estiverem em jogo no processo. 246

243

Em razão dessa problemática, Owen Fiss e John Bronsteen defendem que o regime de opt-out, que

será adiante explicado, seja aplicado para todos os tipos de class action, não apenas para as previstas

na subseção b(3), como atualmente prevê a Regra 23. Levam em conta que um membro da classe

pode melhor representar seus próprios interesses em ação separada, ou sequer ingressar com qualquer

ação, possibilidade legítima que deveria, a juízo dos autores, ser disponível para todos os tipos de

class action (FISS, Owen; BRONSTEEN, John. The class action rule. Notre Dame Law Review.

Vol. 78:5, 2003. p. 1441-1442). 244

A ausência de conflitos de interesses entre os representantes (membro autointitulado representante e

advogado) e o grupo representado é um dos elementos que consubstanciam a adequada

representação. Contudo, Jay Tidmarsh vislumbra em todos os tipos de class action (Regra 23, ”b”) a

presença de possíveis conflitos entre os representantes e os ausentes, bem como defende que esse

requisito não foi bem delineado na paradigmática decisão que afirmou sua presença no sistema e o

vinculou ao devido processo legal (Hansberry v. Lee). Por isso defende que o requisito da adequada

representação seja remodelado, para atingir singular medida, qual seja: a representação pelo membro

do grupo e pelo advogado é adequada quando, e apenas quando, a representação deixa os ausentes em

situação melhor do que se estes tivessem litigado individualmente (TIDMARSH, Jay. Rethinking

adequacy of representation. Texas Law Review. Vol. 87, p. 1137, 2009). 245

GIDI, Antônio. Op. Cit. p. 138. 246

GIDI, Antônio. Op. Cit. p. 139.

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O preenchimento de todos esses quatros requisitos é apenas o primeiro passo

para admissão de uma ação coletiva, pois na alínea “b”, da Regra 23, encontram-se

listados os tipos de class action, hipóteses de cabimento na qual a situação fática

litigiosa deve se subsumir. O enquadramento em algum dos tipos de ação de classe é

necessário não apenas para se obter autorização para litigar coletivamente, mas também

porque pode haver diferenças procedimentais, como a obrigatoriedade de notificação

dos membros ausentes e a possibilidade de auto-exclusão (opt-out), a depender do tipo

de class action em que a situação se enquadre.

O primeiro item da Regra 23(b) descreve duas categorias de ações de classe,

voltadas para situações em que, cumpridos todos os requisitos de admissão (Regra 23,

“a”), o processamento das ações em separado (pelos membros do grupo ou contra estes)

puder criar o risco de:

(A) medidas judiciais inconsistentes ou conflitantes, em face

dos indivíduos do grupo, as quais poderiam estabelecer padrões

de conduta incompatíveis, para a parte contrária ou para a

classe;

(B) medidas judiciais, em favor de alguns indivíduos do

grupo, as quais poderiam, na prática, causar prejuízo aos

interesses de outros membros que não ingressaram com ações

individuais, ou impedir ou enfraquecer substancialmente a

capacidade destes últimos de proteger seus interesses. 247

No primeiro caso, explica Castro Mendes que a incompatibilidade resultaria

não propriamente da conduta, mas do resultado jurídico decorrente da decisão judicial.

Traz como exemplos litígios em que se discute validade ou não de um empréstimo

realizado pela municipalidade; a legalidade ou invalidade de um tributo; ou ainda

demandas mandamentais, em que vizinhos pedissem determinações proibitivas em

relação a certo proprietário de terras, por perturbação da paz e da tranquilidade. Em tais

247

Regra 23(b): TYPES OF CLASS ACTIONS. A class action may be maintained if Rule 23(a) is satisfied

and if:

(1) prosecuting separate actions by or against individual class members would create a risk of:

(A) inconsistent or varying adjudications with respect to individual class members that would

establish incompatible standards of conduct for the party opposing the class; or

(B) adjudications with respect to individual class members that, as a practical matter, would be

dispositive of the interests of the other members not parties to the individual adjudications or would

substantially impair or impede their ability to protect their interests;

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casos, provimentos judiciais de conteúdos diversos e conflitantes não permitiriam a

pronta resolução da controvérsia, já que cominariam ordens incompatíveis para a parte

contrária ou para os membros da classe, como a determinação para que o vizinho

demandado interrompa suas atividades barulhentas às oito horas da noite em um

processo, e no outro, para que faça silêncio apenas depois das dez horas. A efetiva

resolução de controvérsias dessa espécie requer uma decisão judicial que trate da

questão de forma unitária. 248

No segundo caso, a preocupação maior é com as partes alheias ao processo que

também tenham interesse no objeto da causa. Decisões esparsas, em demandas

individuais, que não considerem o direito de outros interessados sobre o bem em litígio,

podem diminuir consideravelmente ou até impedir a possibilidade dos ausentes em

obter ressarcimento dos seus prejuízos.

Exemplo típico se dá quando membros de uma classe estiverem buscando o

pagamento de quantias compensatórias, advindas de um fundo comum limitado, pois se

porções do fundo forem distribuídas em ações individuais esparsas, corre-se o risco de

exaurir o fundo antes que todos os demais interessados tenham a oportunidade de

também pleitear sua parte em processos posteriores. 249

Mais uma vez, a efetiva e justa

composição desse tipo de litígio exige uma decisão única que vincule todos os

integrantes dessa coletividade.

A outra hipótese de ação coletiva em que uma determinada situação fática pode

se enquadrar vem descrita no item “2” da Regra 23(b). Esse dispositivo trata da situação

em que a parte contrária à classe age ou se recusa a agir, de uma forma que atinja toda a

essa categoria, de sorte que se mostra apropriada uma medida judicial mandamental ou

declaratória aplicável para todo o grupo. 250

Nesses casos, o pedido e o provimento jurisdicional seriam declaratórios,

mandamentais ou condenatórios em um fazer ou não fazer (declaratory e injuctive

relief), abarcando direitos e interesses de natureza indivisível, de sorte que a decisão

judicial e a coisa julgada, necessariamente, aproveitarão a todos os membros da classe,

não havendo possibilidade lógica de auto-exclusão. 251

248

MENDES, Aluísio Gonçalves de Castro. Op. Cit. p. 82. 249

MENDES, Aluísio Gonçalves de Castro. Op. Cit. p. 84. 250

No original: “(2) the party opposing the class has acted or refused to act on grounds that apply

generally to the class, so that final injunctive relief or corresponding declaratory relief is appropriate

respecting the class as a whole; or” 251

Com base nos ensinamento de Stephen Yeazell, Márcio Mafra Leal ainda destaca que nesse tipo de

ação, por não se tratar de direitos indenizatórios, é acentuada a possibilidade de conflito de interesses,

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Enquadram-se bem em tal hipótese legal as chamadas civil rights class actions,

bastante populares nos Estados Unidos na década de 60, contra padrões de conduta

discriminatórios e segregacionistas em função de raça ou gênero. 252

Finalmente, o item “3” da Regra 23(b) trata daquilo que se convencionou

chamar de class action for damages. Uma ação coletiva será admitida sob tal

enquadramento quando as questões de fato ou de direito comuns aos membros do grupo

predominarem sobre quaisquer outras questões que afetem apenas aos membros

individualmente e, também, quando o processamento coletivo da ação se mostrar

superior às outras técnicas disponíveis para, de forma justa e eficiente, resolver o

litígio.253

Ou seja, além dos quatro requisitos de admissão dispostos na Regra 23“a”

(impraticabilidade do litisconsórcio, questão comum, tipicidade e representação

adequada), a class action do tipo (b)(3), ainda exige que a situação fática cumpra mais

duas condições: (i) predominância de questões comuns e (ii) superioridade da tutela

coletiva.

A predominância de questões comuns é uma exigência que não se confunde

com a commonality, porquanto mais rígida. Isso porque, em certos casos, pode haver

questões comuns, mas que não predominem sobre as questões individuais. O que esse

requisito adicional pretende é que, sob o tipo (b)(3), apenas sejam certificadas ações

coletivas em que a diversidade das situações individuais, caso existente, não

comprometa o tratamento uniforme da questão comum. É necessário, enfim, que a

controvérsia possa ser efetivamente julgada em um único processo coletivo. 254

A exigência da superioridade da tutela coletiva, por seu turno, encontra-se

bastante ligada ao da predominância de questões comuns, pois, não se verificando este

requisito, certamente não haverá preeminência da tutela coletiva, já que não se mostraria

viável a tutela comum de direitos individuais, quando extremamente heterogêneos. Para

pois, não havendo um interesse financeiro direto, poderiam existir várias opções de atendimento do

direito material, implicando pedidos distintos. Como não se exige consulta aos membros da classe

sobre a concordância com o pedido formulado pelo adequado representante, evidencia ser grande a

probabilidade de conflito entre o representante e a classe (LEAL, Márcio Mafra. Op. Cit. p. 157-158). 252

Não apenas casos de civil rights, mas qualquer situação controvertida que possa ser resolvida por

decisão mandamental ou declaratória, pode se enquadrar nessa espécie de class action. Outros casos

comuns seriam ações trabalhistas, ambientais, antitruste, patente, securities e declaratórias de

inconstitucionalidade (GIDI, Antônio. Op. Cit. p. 154-155). 253

No original: (3) the court finds that the questions of law or fact common to class members

predominate over any questions affecting only individual members, and that a class action is superior

to other available methods for fairly and efficiently adjudicating the controversy […] 254

GIDI, Antônio. Op. Cit. p. 166-167.

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que a ação seja certificada sob o tipo (b)(3), é necessário, portanto, que a tutela coletiva

seja superior às outras técnicas disponíveis para a solução da controvérsia. 255

Nos termos da Regra 23(b)(3), a análise do enquadramento a esse dispositivo

ainda deve considerar: a) o interesse dos membros da classe de controlar,

individualmente, a persecução ou a defesa de suas pretensões em ações separadas; b) a

extensão e a natureza de qualquer litígio, a respeito da controvérsia, que já tenha

começado por iniciativa ou em face dos membros do grupo; c) a conveniência ou

inconveniência de concentrar a disputa em um determinado tribunal; d) as prováveis

dificuldades no manejo da ação de classe. 256

Na situação descrita no tipo (b)(3), a tutela coletiva não é conferida em razão

da indivisibilidade da situação conflituosa, nem pela necessidade de dar uma solução

uniforme à controvérsia, como nos tipos anteriores, mas sim pela mera possibilidade e

conveniência dessa tutela, já que nesse caso cada membro do grupo é titular de uma

pretensão individual e distinta dos demais. Além de ser fundada em razões de economia

processual, é também uma categoria residual, que tenta abarcar as situações que não se

enquadram bem nas outras categorias. Por tudo isso, não existe nas situações

subsumidas ao tipo (b)(3) a mesma coesão que há nos grupos dos tipos anteriores, razão

pela qual há particularidades em seu procedimento. 257

A notificação – forma de comunicar aos membros do grupo sobre a propositura

e certificação de uma ação de classe sobre seus interesses – apenas é obrigatória para as

ações coletivas do tipo (b)(3). A Regra 23(c)(2) traz disposições sobre a notificação

255

Antônio Gidi alerta, contudo, que o requisito da superioridade da tutela coletiva é praticamente

inaplicável no Brasil. Isso porque, no direito brasileiro, as únicas alternativas disponíveis para

resolução de controvérsias coletivas seriam as inúmeras ações individuais e a ação coletiva, ambas

com praticamente o mesmo nível de complexidade, só que a primeira opção resolveria o conflito

apenas para o autor, ao passo que a ação coletiva resolveria o litígio para o grupo inteiro. O processo

civil estadunidense, ao contrário, dispõe de diversas técnicas que proporcionam ao aplicador inúmeras

possibilidades de solução para os casos de litígios em massa. Alguns exemplos seriam a consolidação

(consolidation), a transferência (transfer), os casos-teste (test cases), o joint trial, o mini-trial, a

aplicação do colateral estoppel e o do stare decisis, além da ampla e flexível possibilidade de

litisconsórcio (Rule 20), entre outras técnicas. Tais métodos demonstram a maior flexibilidade do

processo norte-americano e, a depender do caso, podem se mostrar superiores à tutela coletiva (GIDI,

Antônio. Op. Cit. p. 171-172). 256

No original: (3) […] The matters pertinent to these findings include:

(A) the class members’ interests in individually controlling the prosecution or defense of separate

actions;

(B) the extent and nature of any litigation concerning the controversy already begun by or against

class members;

(C) the desirability or undesirability of concentrating the litigation of the claims in the particular

forum; and

(D) the likely difficulties in managing a class action. 257

GIDI, Antônio. Op. Cit. p. 162.

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tanto para as ações do tipo (b)(1) e (b)(2), como para a class action do tipo (b)(3), mas

apenas para essa última a comunicação oficial tem caráter obrigatório, além de

exigências específicas (linguagem clara e concisa, informações sobre possibilidade de

constituir advogado e intervir na causa, auto-exclusão etc.). 258

Esse comando legal ainda discrimina que, no tipo (b)(3), a notificação deve

comunicar a todos os interessados que o órgão julgador excluirá da contenda coletiva

todos aqueles que assim solicitarem, cumpridos o prazo e a forma estipulados. Se o

membro do grupo, uma vez adequadamente notificado, não requisitar formalmente sua

exclusão, será alcançado pela coisa julgada coletiva. É o que se chama de regime de

opt-out, ou direito de auto-exclusão.

As ações de classe que se enquadrem nos tipos (b)(1) e (b)(2), diferentemente,

submetem-se ao regime da presença compulsória, em que todos os membros do grupo

serão considerados presentes em juízo, sem possibilidade de se excluírem do grupo e

evitarem serem atingidos pela coisa julgada da ação coletiva. 259

Pode-se dizer ainda, de um modo geral, que as ações do tipo (b)(3) são

predominantemente voltadas para a tutela de pretensões de caráter pecuniário ou

indenizatório (daí a alcunha class action for damages), ao passo que as ações do tipo

(b)(1) e (b)(2) são, essencialmente, dirigidas para pretensões de caráter declaratório ou

injuntivo. 260

258

(2) Notice.

(A) For (b)(1) or (b)(2) Classes. For any class certified under Rule 23(b)(1) or (b)(2), the court may

direct appropriate notice to the class.

(B) For (b)(3) Classes. For any class certified under Rule 23(b)(3), the court must direct to class

members the best notice that is practicable under the circumstances, including individual notice to all

members who can be identified through reasonable effort. The notice must clearly and concisely state

in plain, easily understood language (para todas as ações de classe certificadas sob o tipo 23(b)(3), o

órgão julgador deve dirigir aos membros da classe a melhor notificação praticamente possível, de

acordo com as circunstâncias, incluindo notificação individual para todos os membros que possam

ser identificados por razoável esforço. A notificação deve, de forma clara e concisa, em linguagem

acessível, dispor sobre):

(i) the nature of the action (a natureza da ação);

(ii) the definition of the class certified (a definição do grupo certificado);

(iii) the class claims, issues, or defenses (as alegações da classe, questões e defesas);

(iv) that a class member may enter an appearance through an attorney if the member so desires (que o

membro da classe, se assim desejar, pode constituir advogado e intervir na causa);

(v) that the court will exclude from the class any member who requests exclusion (o órgão julgador

excluirá da classe qualquer membro que assim o requerer);

(vi) the time and manner for requesting exclusion; and (o prazo e a forma para requerer a exclusão

e...)

(vii) the binding effect of a class judgment on members under Rule 23(c)(3) (o efeito vinculante da

ação coletiva julgada, nos termos da Regra23(c)(3)). 259

GIDI, Antônio. Op. Cit. p. 291. 260

Essa conformação, todavia, não impede a cumulação de pedidos. Uma mesma class action pode

conter pretensões indenizatórias e mandamentais. Para permitir a solução de uma controvérsia dessa

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Essa distinção de regimes e provimentos típicos entre os tipos de class action

induz comparações com o quanto disposto no parágrafo único, art. 81, do Código de

Defesa do Consumidor brasileiro (lei nº 8.078/1990), comando legal que distingue três

categorias: os “interesses ou direitos difusos”, os “interesses ou direitos coletivos” e os

“interesses ou direitos individuais homogêneos”.

Assim como na alínea “b”, da Regra 23, esse dispositivo do CDC descreve

situações que, uma vez verificadas concretamente, autorizam o manejo da tutela

coletiva. De forma pouco precisa, identifica-se a ação em defesa dos direitos individuais

homogêneos no Brasil com a class action do tipo (b)(3), já as ações em favor de direitos

difusos e coletivos seriam comumente equiparadas com a class action do tipo (b)(2).

Antônio Gidi, contudo, alerta não ser adequado traçar essa espécie de paralelo entre as

ações coletivas no Brasil e nos Estados Unidos.

Isso porque, no direito norte-americano, não se sentiu a necessidade de criar

espécies ou categorias abstratas de interesses ou direitos subjetivos, como feito por

nossa legislação. Arremata essa ideia, dizendo que “a própria categoria do direito

subjetivo, uma das bases da nossa teoria geral do direito, é inexistente no sistema

americano e absolutamente irrelevante para seu funcionamento”. 261

3.3 O desenvolvimento do processo coletivo no Brasil

Em que pese ter herdado a ação popular do direito romano e contribuído para o

seu aprimoramento, o ordenamento legal brasileiro, até recentemente, não dispunha de

um sistema de tutela de direitos e interesses de natureza coletiva, que permitisse uma

abrangente efetivação dessa categoria no âmbito judicial. 262

A ação popular figurava

como exceção em um contexto processual que privilegiava litígios de caráter individual.

espécie em um único processo, o juízo pode certificar uma ação coletiva “mista”, em que algumas

pretensões serão regidas pelo procedimento da ação de tipo (b)(3), enquanto outras serão regidas pelo

procedimento das ações de tipo (b)(1) e (b)(2), assegurando-se aos membros do grupo os direito de

serem notificados e de exercerem o direito de auto-exclusão apenas para as primeiras espécies de

pretensão. Ainda há a opção, adotada de forma mais frequente, de certificar a ação toda como de um

único tipo, considerando-se qual das pretensões formuladas é a predominante no caso. Por exemplo,

se as pretensões predominantes forem de natureza indenizatória, mesmo havendo as de cunho

mandamental, a ação coletiva será toda certificada sob o tipo (b)(3), devendo-se atender ao seu

procedimento específico (GIDI, Antônio. Op. Cit. p. 142-145). 261

GIDI, Antônio. Op. Cit. p. 140-141. 262

ALei nº 8.078/1990, que instituiu o Código de Defesa do Consumidor, trouxe em seu bojo um título

todo dedicado à tutela dos direitos com repercussão coletiva (Título III), quais sejam, os difusos, os

coletivos stricto sensu e os individuais homogêneos (art. 81), determinando a aplicação recíproca das

normas desse diploma legal e da Lei nº 7.347/85, que instituiu a ação civil pública (art. 90 e 117).

Muito embora já constasse no ordenamento disposições procedimentais sobre a tutela coletiva, o

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Como bem repara Ricardo de Barros Leonel, os interesses que transpunham a

esfera própria do indivíduo sempre se mostraram presentes, mas antes eram tratados

com maior importância pela Administração Pública e apenas residualmente no âmbito

da jurisdição. O tratamento processual dessas situações jurídicas transindividuais teria

ganhado força e crescido nos últimos tempos. 263

O início desse movimento no Brasil deu-se por influência dos autores italianos

que, na década de 70, desenvolveram estudos comparados sobre a experiência norte-

americana da class action e demais problemáticas da tutela coletiva, cujos trabalhos

repercutiram fortemente na doutrina nacional, sendo objeto de análises e discussões. A

doutrina italiana desse período propiciou, inclusive, a influência reflexa da class action

sobre as ações coletivas posteriormente desenvolvidas no nosso direito. 264

Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr. destacam que as ações coletivas no Brasil

(re)surgiram por influência direta dos estudos dos processualistas italianos da década de

setenta, que forneceram elementos teóricos para a criação das ações coletivas brasileiras

e identificação das que já existiam (ação popular). Destacam ainda que, muito embora

não se tenham difundido as ações coletivas nos países europeus, aqui estas encontraram

ambiente propício para se desenvolver, impulsionadas pelo período de redemocratização

e revalorização do Ministério Público. 265

Assume posição pioneira nesse movimento Michelle Taruffo, que no trabalho

intitulado I limiti soggettivi del giudicato e le “class action”, publicado em 1969,

analisou a problemática dos limites subjetivos da coisa julgada e a insuficiência dos

parâmetros tradicionais para o trato de certas situações substanciais. 266

caráter abrangente de suas disposições e a autorização para o intercâmbio de normas fizeram do CDC

um marco no processo de formação de um sistema próprio para a tutela coletiva. 263

LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do processo coletivo. São Paulo: RT, 2002. p. 40. 264

José Carlos Barbosa Moreira, Waldemar Mariz de Oliveira Jr., Ada Pellegrini Grinover seriam alguns

dos nomes que encabeçaram esse movimento (ROQUE, André Vasconcelos. Origens históricas da

tutela coletiva: da actio popularis romana às class actions norte-americanas. Revista de Processo.

Ano 35/n. 188, out./2010. p. 102). 265

Os autores igualmente destacam o ativismo de grandes processualistas como Barbosa Moreira, Kazuo

Watanabe, Ada Pellegrini Grinover e Waldemar Mariz de Oliveira Junior, fundamentais para

impulsionar o interesse do legislador, assim como as obras de Antônio Gidi, Nelson Nery Jr. e Aluísio

Mendes, para o desenvolvimento da tutela coletiva no Brasil (DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR.,

Hermes. Curso de direito processual civil: processo coletivo. Vol. 4. 8ª Ed. Salvador: juspodivm,

2013. p. 29-30). 266

José Rogério Cruz e Tucci aponta esse pioneirismo de Taruffo no trato de questões referentes à tutela

coletiva, trabalho de investigação que teria sido seguido, posteriormente, por Federico Carpi,

L’efficacia “ultra partes” dela sentenza civile, 1974; Roberto Pardolesi, Il problema degli interesse

collettivi e i problemi dei giuristi, 1975; Girolamo A. Monteleone, I limiti soggettivi del giudicato

civile, 1978, entre tantos outros (TUCCI, José Rogério Cruz e. “Class action” e mandado de

segurança coletivo. São Paulo: Saraiva, 1990. p. 06).

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Apontou esse autor uma necessidade de se estender os efeitos da sentença a

sujeitos que, sem serem titulares da situação trazida a juízo e sem assumir a veste formal

de parte, estivessem em posição correlata com a relação deduzida em juízo. Tais

correlações poderiam surgir quando o interesse individual de quem é parte coincidisse

com o interesse da organização ou da categoria da qual este sujeito fosse integrante, ou

então quando o litigante fizesse valer um direito do qual fosse titular uti civis. Em tais

situações, uma interpretação rígida da regra sobre os limites subjetivos do julgado

poderia parecer inadequada, especialmente para lidar com as exigências de economia

processual e não contradição das diversas decisões. 267

Cotejando os sistemas de tutela, observou Taruffo que a class action norte-

americana oferecia um flexível instrumento de resolução, de aplicação geral a uma vasta

série de hipóteses, ao passo que no sistema italiano as normas que excepcionavam a

regra e permitiam a extensão dos efeitos subjetivos do julgado (p.ex. art. 2377, CC)

eram voltadas para situações específicas, sendo inadequadas para uma solução geral dos

problemas. 268

Outro dos mais influentes autores dessa leva é Vincenzo Vigoriti, que

desenvolveu a obra Interessi collettivi e processo: la legittimazione ad agire, em 1979.

Neste trabalho o autor abordou a questão dos interesses coletivos e suas repercussões

processuais, também comparando a experiência italiana com o sistema de class action

estadunidense.

De início, tratava de delimitar a significação do interesse coletivo, bem como

sua distinção do interesse difuso. Interesse, em si mesmo, exprimiria uma aspiração do

indivíduo sobre determinado bem, capaz de satisfazer uma exigência humana. Interesse

coletivo, por sua vez, não estaria relacionado a um conteúdo específico (seja privado ou

público), mas seria a orientação de interesses para um objetivo comum, aliado à

consciência dessa dimensão coletiva. Em comparação com o interesse coletivo, o

interesse difuso representaria um estado mais fluido de agregação dos interesses

individuais, sem coordenação das vontades. 269

Por não terem conteúdos a priori definidos, interesse coletivo e interesse difuso

poderiam versar sobre qualquer tipo de posição de vantagem, compartilhados por uma

267

TARUFFO, Michelle. I limiti soggettivi del giudicato e le “Class Action”. Rivista di Diritto

Processuale. Vol. 1. Padova: CEDAM, 1969. p. 616. 268

TARUFFO, Michelle. Op. Cit. p. 634. 269

VIGORITI, Vincenzo. Interessi collettivi e processo: la legittimazione ad agire. Milão: Giuffré,

1979. p. 59-61.

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pluralidade de indivíduos. Contudo, considera o autor que tais locuções são utilizadas

para se referir a posições subjetivas de vantagem com conteúdos diversos daquelas

situações tradicionais de matriz “codicista”. Interesses – difusos ou coletivos – seriam

referentes, sobretudo, a posições de vantagem que exprimiriam um modo novo de se

registrar a relação “indivíduo-bem”, posições que receberiam os valores diretamente

vinculados ao sistema constitucional. 270

Trazendo a discussão já para o âmbito processual, Vigoriti tratou de analisar a

legitimidade para agir, destacando que, no exercício da ação civil, esse instituto

sustentava-se na correlação rigorosa entre a (pretensa) titularidade de uma situação

substancial e a legitimação para deduzi-la em juízo, fundamento voltado a satisfazer a

exigência de tutela dos interesses de caráter individual. 271

Nas situações em que a

exigência de tutela fosse diversa do modelo individual, todavia, este ideal não poderia

ser rigorosamente observado, de forma que sustentava a inaplicabilidade aos interesses

coletivos da legitimação de agir elaborada nos termos da tutela dos interesses

individuais. Ou seja, defendia o autor que quando deduzida em juízo uma situação de

vantagem do tipo coletivo, a presença de todos os singulares titulares da situação

substancial correlata não seria condição necessária para a justiça e eficácia da decisão

judicial. Importaria em tais casos que a demanda fosse conduzida por quem tivesse

condição de assumir este dever de forma adequada. 272

Essa solução de controle da legitimação adequada sustentada na obra, a

propósito, foi diretamente inspirada no sistema norte-americano de class action.

Admitia o jurista a existência de outros sistemas de direito mais próximos da

experiência jurídica italiana e também abertos à tutela coletiva, como o alemão e o

francês. Porém, reconheceu o procedimento da class action como experiência mais rica

270

VIGORITI, Vincenzo. Op. Cit. p. 43. 271

A conformação do interesse de agir voltado essencialmente para a tutela dos interesses individuais,

para o autor, seria um corolário natural da filosofia liberalista no plano jurisdicional. Por pretender

retirar da vida em sociedade toda forma de associação intermediária entre o indivíduo e o Estado, essa

filosofia teria trazido para o processo uma visão individualista dos instrumentos de tutela, que seriam

usados apenas para a defesa da situação jurídica singular (VIGORITI, Vincenzo. Op. Cit. p. 74-77). 272

Esse autor ainda elabora um sistema de tutela dos interesses coletivos, com duas modalidades de

atribuição de legitimação de agir. Na primeira seriam legitimados quaisquer titulares da posição de

vantagem que alcançasse expressão coletiva, já na segunda modalidade, a legitimidade seria atribuída

apenas a alguns dos titulares da situação de vantagem de repercussão coletiva. Na primeira

modalidade, identifica como exemplos a class action norte-americana e a ação popular no

ordenamento italiano, defendendo a necessidade de nesse regime de legitimação se controlar a

representação adequada, mesmo não havendo, naquele momento, qualquer previsão a esse respeito

no sistema legal italiano (VIGORITI, Vincenzo. Op. Cit. p. 101-109).

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e mais madura de tutela coletiva, sendo por isso tomada como parâmetro de

comparação. 273

A insuficiência dos cânones tradicionais do processo civil para lidar com a

tutela dos direitos e interesses coletivos e difusos, bem como a ausência de um sistema

de tutela específico para esses casos, problemas francamente enfrentados pela doutrina

italiana, também começaram a ser objeto de estudo dos processualistas brasileiros.

Waldemar Mariz de Oliveira Jr., em trabalho publicado originalmente em

1978, debruçou-se sobre essa problemática, considerando, notadamente, o trabalho da

doutrina italiana sobre o assunto até então. 274

Na oportunidade, observou esse autor que

os direitos e interesses de grupos e formações intermediárias da sociedade, os quais não

se enquadravam com precisão como de natureza individual ou pública, demandavam

uma tutela que fugiria ao esquema tradicional. Seriam interesses que não pertenceriam

nem ao indivíduo, nem ao Estado, mas de existência inegável. Após analisar, no direito

comparado, as diversas soluções dadas para a legitimação de agir nos processos

coletivos (inclusive na class action norte-americana), constatou que a experiência de

uma ação coletiva provoca um impacto frontal sobre a concepção clássica do direito

abstrato de ação, fundado em bases liberais e individualistas, entre outros tantos

conceitos tradicionais como contraditório, defesa, poderes do juiz, etc.. 275

Nesse período inicial de estudo da tutela coletiva no Brasil, Ada Pellegrini

Grinover ocupou-se de analisar o grupo dos interesses metaindividuais, especialmente

os de natureza difusa. Tal classificação abrangeria interesses de massa, como os

relativos à defesa do meio-ambiente, à proteção de valores culturais e à tutela do

consumidor, de indiscutível proteção pelo ordenamento jurídico. Esses interesses não

encontrariam apoio em uma relação-base bem definida, reduzindo-se o vínculo a fatores

conjunturais e fáticos, frequentemente acidentais e mutáveis. Por isso, pertenceriam a

uma classe indeterminada de sujeitos, não havendo como investir um indivíduo de

titularidade exclusiva, abalando assim o conceito clássico de direito subjetivo. 276

273

VIGORITI, Vincenzo. Op. Cit. p. 252. 274

Em especial, destaca o encontro realizado em Florença, Itália, em maio de 1975, sobre “Liberdades

fundamentais e formações sociais”, em que autores como Mauro Cappelletti, Norberto Bobbio, Mario

Nigro, Paolo Basile, entre outros, publicaram sobre o assunto. Também ressalta o pioneiro trabalho de

Cappelletti, “Formações sociais e interesses dos grupos ante a justiça civil”, de setembro de 1975

(OLIVEIRA JR., Waldemar Mariz de. Tutela jurisdicional dos interesses coletivos. A tutela dos

interesses difusos. Coord.: Ada Pellegrini Grinover. São Paulo: Max Limonad, 1984. p. 12). 275

OLIVEIRA JR., Waldemar Mariz de. Op. Cit. p. 13-27. 276

GRINOVER, Ada Pellegrini. A problemática dos interesses difusos. A tutela dos interesses difusos.

Coord.: Ada Pellegrini Grinover. São Paulo: Max Limonad, 1984. p. 30-31

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O desenvolvimento do conceito de interesses difusos, com o reconhecimento

de necessidades coletivas a serem satisfeitas, daria margem à identificação de novos

direitos (como ao ambiente, à saúde, à informação), que tanto poderiam dimanar

expressamente de normas constitucionais, como também defluir do próprio

ordenamento, independentemente de regras constitucionais patentes, como no caso do

constitucional right of environment, que no sistema norte-americano não estava

expresso no texto da Constituição, tendo sido reconhecido por intermédio de princípios

diversos, como o devido processo legal. Para a processualista, também aqui isso seria

possível, pois, assim como no modelo estadunidense, a definição dos direitos e garantias

no sistema constitucional brasileiro não se daria em numerus clausus. 277

Reconhecida, em um primeiro momento, a existência de necessidades coletivas

com respaldo no ordenamento jurídico, até mesmo de fundo constitucional, ainda se

fazia necessário encontrar medidas jurisdicionais aptas a lidar com os litígios de

natureza transindividuais, problemática bem desenvolvida por José Carlos Barbosa

Moreira.

Esse autor identificou a ação popular constitucional como instrumento apto à

proteção jurisdicional dos interesses difusos, em razão do ampliado espectro que a Lei

nº 4.717/1965 deu ao conceito de “patrimônio público”, abarcando também bens de

natureza imaterial ou refratários a uma avaliação em termos de moeda, característica

própria desses interesses. Criticou, contudo, a falta de previsão nessa lei de uma eficaz

tutela específica, já que interesses de natureza difusa não se deixariam reduzir com

facilidade a expressão puramente monetária, sendo muitas vezes insuficiente a mera

invalidação do ato ilegítimo. 278

Em texto escrito pouco antes da Constituição de 1988, lamenta a notória

escassez na legislação brasileira de remédios especificamente preventivos na tutela dos

interesses difusos, especialmente porque nesse período o mandado de segurança não era

reconhecido senão como instrumento de defesa de direitos individuais. Todavia,

identifica que na lei da ação popular constitucional, em que pese haver previsão de

suspensão liminar dos efeitos do ato impugnado (art. 5º, § 4º), não havia qualquer

277

GRINOVER, Ada Pellegrini. Op. Cit. p. 34-35. 278

MOREIRA, José Carlos Barbosa. Ação popular do direito brasileiro como instrumento de tutela

jurisdicional dos chamados “interesses difusos”. Temas de direito processual(primeira série). 2ª Ed.

São Paulo: Saraiva, 1988. p. 115-121. – Trabalho publicado originalmente nos Studi in onore de

Enrico Tullio Liebman, vol. IV, Milão, 1979.

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medida de controle ou limite temporal para a vigência dessa sustação, ao contrário da

liminar no mandado de segurança. 279

Tais observações demonstram que, mesmo sendo possível o uso da ação

popular constitucional para defesa de interesses difusos nesse primeiro momento, o

regramento processual da matéria era insuficiente para abarcar todas as necessidades de

tutela.

Kazuo Watanabe também se esforçou em tentar encontrar soluções para a

defesa em juízo dos interesses difusos, no parco quadro de medidas legais compatíveis,

no período pré-Constituição de 1988.

Além da ação popular constitucional, apontou a Lei nº 6.938/1981 – que traçou

a política nacional do meio ambiente – como um possível instrumento de defesa de

interesses difusos, na medida em que legitimou o Ministério Público, União e Estados a

propor ação de responsabilidade não apenas criminal, como também civil, por danos ao

meio ambiente (art. 14, §1º), independente de eventual lesão a direito individual.

Igualmente, a Lei nº 6.385/76também representaria uma técnica diferenciada na defesa

de interesses transindividuais, ao conferir à Comissão de Valores Mobiliários a

faculdade de intervir nas demandas referentes à matéria de sua competência,

independente de interesse próprio dessa entidade. 280

Defendeu ainda a legitimação ordinária das associações e outros corpos

intermediários, que fossem criados para defesa de interesses difusos, a partir de uma

interpretação mais aberta do art. 6º, do CPC. Deduziu que a própria constituição então

vigente – CR/67 – asseguraria e estimularia a liberdade de associação para fins lícitos

(art. 153, §28; art. 166), bem como o valor solidariedade (art. 160 e 176), de forma que

teria a Constituição assegurado às associações todo o instrumental necessário à

consecução dos fins perseguidos, inclusive no acesso ao judiciário. 281

Advertiu, enfim, Watanabe que, admitida a legitimação dos corpos

intermediários, a ação não seria mais um simples instrumento de realização do direito

objetivo e, em consequência, de tutela de um direito subjetivo. Muito mais que isso,

279

MOREIRA, José Carlos Barbosa. A proteção jurisdicional dos interesses coletivos ou difusos. A

tutela dos interesses difusos. Coord.: Ada Pellegrini Grinover. São Paulo: Max Limonad, 1984. p.

103. 280

WATANABE, Kazuo. Tutela jurisdicional dos interesses difusos: a legitimação para agir. A tutela

dos interesses difusos. Coord.: Ada Pellegrini Grinover. São Paulo: Max Limonad, 1984. p. 89-93. 281

WATANABE, Kazuo. Op. Cit. p. 91-92.

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seria uma forma de participação pública através do Judiciário, como instrumento de

racionalização do poder. 282

Esse quadro de carência de medidas processuais começou a mudar com a

edição da Lei nº 7.347/85, que instituiu a ação civil pública, a qual incrementou o

sistema de tutela coletiva, especialmente no que concerne ao objeto tutelado,

legitimidade e provimentos judiciais possíveis.

Essa legislação elenca uma série de interesses protegidos como meio ambiente,

consumidor, bens e direitos de valor histórico, turístico, paisagístico, entre outros; rol

que foi sendo ampliado com o passar dos anos. 283

Ainda instituiu uma série de

legitimados para sua propositura, como Ministério Público, União, Estados, Municípios,

entidades públicas, associações, etc., formando um sistema de legitimação para agir

concorrente e disjuntivo, de forma que a atuação de um desses entes não excluiria a dos

outros. 284

A ação civil pública também passou a ser expressamente prevista na

Constituição de 1988, ao dispor sobre as funções institucionais do Ministério Público

(art. 129, III). Essa ordem constitucional, a propósito, não descuidou da tutela coletiva,

prevendo também o mandado de segurança coletivo (art. 5º, LXX), além da já

tradicional ação popular, entre outras medidas que admitem e possibilitam o amparo

jurisdicional de direitos e interesses transindividuais. 285

Outros diplomas legais como a Lei nº 7.853/89 (de apoio às pessoas portadoras

de deficiência), a Lei nº 7.913/89 (em defesa de investidores no mercado de valores

mobiliários) e a Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA), também

consagraram a defesa processual de direitos e interesses transindividuais, até mesmo

porque, de início, a lei da ação civil pública continha rol não exemplificativo de

interesses protegidos (art. 1º, da Lei nº 7.347/85). O advento do Código de Defesa do

282

WATANABE, Kazuo. Op. Cit. p. 97. 283

O projeto que deu origem à lei 7.347/85 continha uma norma de extensão (“a qualquer outro interesse

difuso ou coletivo”) que determinava o caráter exemplificativo desse rol de interesses tutelados, que,

no entanto,foi vetada. Com o advento do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), esse

mesmo comando foi inserido na lei 7.347/85, como inciso IV, do art. 1º, garantindo o uso da ação

civil pública para situações jurídicas de natureza transindividuais, mesmo que não expressamente

previstas na lei. Ainda assim, outras medidas legais incrementaram esse rol adicionando novos objetos

de tutela como “ordem econômica” (Lei nº 8.884/94), “ordem urbanística” (MP nº 2.180-35/2001),

“honra e dignidade de grupos raciais, étnicos ou religiosos” (12.966/2014) e “patrimônio público e

social” (Lei nº 13.004/2014). 284

Essa relação também sofreu alterações com o passar do tempo, com a inclusão da Defensoria Pública

entre os legitimados (Lei nº 11.448/2007), inovação ainda em vigor, não obstante sua

constitucionalidade esteja sendo objeto de discussão na Adin nº 3943. 285

O artigo 8º, inciso III, por exemplo, permite aos sindicatos a defesa dos direitos e interesses coletivos

ou individuais da categoria, em questões judiciais ou administrativas.

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Consumidor (Lei nº 8.078/90), contudo, viria a tornar mais coesa essa rede de medidas

legais, propiciando enfim a formação de um sistema de tutela coletiva.

No título III do CDC (Da defesa do consumidor em juízo), diversas medidas

relativas à tutela coletiva foram implementadas, com destaque para a definição dos

conceitos legais de interesses e direitos do tipo difusos, coletivos e individuais

homogêneos (art. 81, § único, inc. I, II, III), especificando também a extensão da coisa

julgada para cada caso e o possível direito de exclusão (art. 103-104). 286

Esse diploma legal ainda determina expressamente que, para a defesa dos

direitos e interesses nele protegidos, são admissíveis todas as espécies de ações capazes

de propiciar sua adequada e efetiva tutela. Contudo, o aspecto mais relevante dessa

codificação, afinal, é a sua interação com a Lei nº 7.347/85, pois acrescenta novos

dispositivos específicos para a lei da ação civil pública, 287

além dos dispositivos

contidos em ambos os diplomas legais que determinam a aplicação recíproca das

normas de tutela coletiva do Código de Defesa do Consumidor e da lei da ação civil

pública (art. 90, da Lei nº 8.078/90 e art. 21 da Lei nº 7.347/85).

Completa também o quadro de regramento das ações de natureza coletiva a Lei

da Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/1992), espécie de demanda que, tal qual a

ação popular, também visa a combater ofensas à moralidade na Administração Pública,

que nesse caso assumem a forma qualificada de atos de improbidade. Igualmente, a Lei

nº 12.016/2009, que regula o mandado de segurança também na modalidade coletiva

(art. 21 e ss.), entre outras leis esparsas.

Atualmente, a defesa em juízo de direitos e interesses de natureza

metaindividual é uma possibilidade prevista em diversos textos legais, em especial a

própria Constituição. Em que pese o regramento da matéria ter sofrido algumas pontuais

involuções, 288

muito se avançou em relação ao quadro inicial identificado pela doutrina

286

Ricardo de Barros Leonel expõe que a Lei 7.913/89, que disciplina a defesa coletiva dos investidores

do mercado de valores mobiliários, foi o primeiro texto legal a tratar da tutela de interesses individuais

homogêneos em juízo. Contudo, somente com o Código do Consumidor é que essa espécie teria sido

claramente introduzida no ordenamento (Op. Cit. p. 137). 287

Como exemplo, tem-se o acréscimo do inciso IV, ao artigo 1º, da Lei 7.347/85 (“a qualquer outro

interesse difuso ou coletivo”), conferindo ao rol de interesses protegidos por essa lei o caráter

exemplificativo. 288

Cássio Scarpinella Bueno expõe bem o quadro de “ataques” que o processo coletivo passou a sofrer,

ao analisar as sucessivas reedições da Medida Provisória nº 2.180-35/2001, a qual sedimentou

diversas modificações no âmbito da tutela coletiva, em especial na lei nº 7.347/85 e na lei nº 9.494/97.

Critica dizendo que “há uma coincidência contextual e temporal inegável entre a tomada gradativa de

consciência do significado do acesso coletivo à Justiça e os “cortes” efetuados, por medida provisória,

para obstaculizar, dificultar ou, apenas, apenas e tão-somente, impedir que esse acesso se verifique in

concreto. Prova disso é a delimitação ou fragmentação da coisa julgada nas ações coletivas propostas

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nacional de ausência quase total de medidas que privilegiassem a defesa das situações

de vantagem que ultrapassem a esfera de interesses meramente individual.

Como visto, o sistema de class action norte-americano desenvolveu-se com

foco no controle da representação em juízo, com regras predominantemente

procedimentais, desvinculadas, a princípio, de situações substanciais específicas. O

sistema de tutela coletiva no Brasil, por outro lado, foi sendo paulatinamente

desenvolvido, à medida que novos direitos e interesses transindividuais foram sendo

reconhecidos em nosso ordenamento.

3.4 O microssistema da tutela coletiva e a ação popular.

Apesar do desenvolvimento da tutela coletiva no Brasil ter sido bastante

fragmentado, há grande afinidade entre os diplomas legais que tratam da matéria, sendo

possível se verificar unidade nesse aglomerado de dispositivos, dando azo à formação

de um sistema próprio de normas e princípios, diverso daquele voltado para a resolução

individualizada de conflitos.

Ou seja, superada a fase de ausência de meios legais e estudos próprios sobre a

tutela coletiva, restava o desafio de articular todas essas informações de modo coerente.

É daí que surge a proposta de microssistema da tutela coletiva, em que as

peculiaridades no trato processual do direito coletivo ganham relevância.

Uma das inovações introduzidas pelo Código de Defesa do Consumidor foi,

justamente, a determinação de aplicação recíproca das normas de seu título III e do

quanto disposto na lei da ação civil pública (art. 90, CDC e art. 21, Lei nº 7.347/85). A

vinculação entre essas duas leis é mais do que notável, afirmando Aluísio Ruggeri Ré

que, certamente, “a célula nuclear da tutela coletiva repousa no elo entre a Lei da Ação

Civil Pública e o Código de Defesa do Consumidor, em constante integração”, restando

o desafio de aplicar de forma conjunta ou complementar os outros instrumentos

normativos, de imprescindível relevância à tutela coletiva. 289

contra o Poder Público e a vedação – pura e simples – do cabimento da ação civil pública para

questionar créditos tributários, previdenciários e fundos institucionais, dentre os quais o FGTS e todos

aqueles em que os beneficiários da ação podem ser individualmente apontados” (BUENO, Cássio

Scarpinella. O poder público em juízo. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 158.) 289

Esse autor ainda ressalta que, “não obstante a variedade de leis, a inexistência de regramente único

revela um processo coletivo por vezes incompleto e até mesmo extemporâneo, impondo ao exegeta

uma interpretação sistemática e lógica das diversas normas que compõem o microssistema da

regulação vigente”. (RÉ, Aluísio Iunes Monti Ruggeri. Processo civil coletivo e sua efetividade. São

Paulo: Malheiros, 2012. p. 54).

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Também consegue entrever a formação de um sistema integrado de normas

Ricardo de Barros Leonel. Os preceitos das leis que tratam da tutela judicial dos

interesses metaindividuais complementar-se-iam reciprocamente, situando-se no centro

desse sistema, como vetores de princípios básicos, o Código de Defesa do Consumidor

e a lei da Ação Civil Pública. Para esse autor, os outros diplomas integrariam esse

sistema de forma secundária, tratando de particularidades de determinadas matérias. 290

A ideia de microssistema da tutela coletiva que ora se sustenta, todavia, vai

além dessa mera integração entre o CDC e a LACP, admitindo o caráter intercambiante

e a influência recíproca de todo o aporte legal do direito coletivo, notadamente da lei da

ação popular.

Rodrigo Mazzei apresenta bem essa ideia destacando que um dos pilares do

microssistema está na existência de diferença principiológica do diploma especial com a

norma geral, circunstância existente no direito processual coletivo, de essência distinta

da postura individualista do Código de Processo Civil. Logo, as omissões internas das

leis que tratam do direito coletivo seriam supridas pelas normas dos outros diplomas

que fazem parte do microssistema, aplicando-se o Código de Processo Civil de forma

residual. Isto é, primeiro se buscaria a solução para uma lacuna entre as outras leis que

compõem o microssistema da tutela coletiva, para só então se cogitar de aplicar o CPC,

mesmo assim tentando adaptar suas normas de cunho individualista para a situação de

direito transindividual. 291

Essa construção teórica encontra apoio na jurisprudência do Superior Tribunal

de Justiça, que reiteradamente faz uso da ideia de microssistema da tutela coletiva,

afirmando o caráter intercambiante de suas normas componentes, para suprir lacunas no

trato do direito coletivo em juízo. 292

No microssistema da tutela coletiva, o rito da ação popular assumiria posição

de destaque, seja como (i) fonte irradiadora de normas; seja como (ii) receptáculo de

comandos provenientes de outros diplomas legais do microssistema.

290

LEONEL, Ricardo de Barros. Op. Cit. p. 148. 291

MAZZEI, Rodrigo Reis. Ação popular e o microssistema da tutela coletiva. DIDIER JR, Fredie;

MOUTA, José Henrique. (Org.). Tutela Jurisdicional Coletiva, 1ªed., Salvador: Juspodivm, 2009, v.

1. p. 382-384. 292

A 1ª Turma do STJ, em julgado de 2006, já deixou consignado, na ementa do REsp 791042 / PR, que

“A lei de improbidade administrativa, juntamente com a lei da ação civil pública, da ação popular, do

mandado de segurança coletivo, doCódigo de Defesa do Consumidor e do Estatuto da Criança e

doAdolescente e do Idoso, compõem um microssistema de tutela dosinteresses transindividuais e sob

esse enfoque interdisciplinar,interpenetram-se e subsidiam-se”. Essa ideia é retomada em outros

julgados, que serão discutidos no decorrer deste tópico.

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No primeiro caso, Rodrigo Mazzei traz como exemplo o art. 6º, caput, e

parágrafos 1º, 2º e 3º da lei da ação popular, os quais tratam da formação do

litisconsórcio passivo, matéria que não se encontraria regulada em boa parte das leis que

compõem o microssistema, nem mesmo na lei da ação civil pública, ou no CDC. Para o

processualista, esse conjunto de dispositivos da Lei nº 4.717/65 seria aplicável a todo

processo civil coletivo, sendo erro se invocar no caso art. 47 do Código de Processo

Civil. 293

É possível ainda se colher precedentes, do Superior Tribunal de Justiça, em que

normas de rito da lei da ação popular constitucional são utilizadas para suprir lacunas

das demais ações que compõem o microssistema, em especial a ação civil pública, ou

mesmo para reforçar a lógica própria e os princípios pertinentes ao processo coletivo.

É o que se depreende do julgamento do recurso especial de nº 1.177.453-RS,

em que o art. 9º, da Lei nº 4.717/65 foi invocado (ao lado do art. 5º, §3º, daLei nº

7.347/85) para deixar assentado que na tutela coletiva oreconhecimento dailegitimidade

ativa jamaispoderia conduzir àpura esimples extinção do processo sem resolução

demérito, antes de se conferir aos demais legitimados a oportunidade de assumir o polo

ativo da demanda. Do microssistema da tutela coletiva ainda foi suscitado o princípio da

primazia do conhecimento do mérito, que indicaria a superação de formalismos em

razão do “valor essencialmente social” que impregnaria as demandas de caráter

coletivo. 294

Outro exemplo pode ser conferido no julgamento do recurso especial de nº

791.042/PR, no qual a possibilidade de migração de polos prevista no § 3º, art. 6º, da

Lei nº 4.717/65 é aplicada em ação civil pública, para que ente político, inicialmente

réu, figure ao mesmo tempo em ambos os polos da relação processual, no que concerne

a pedidos distintos formulados na demanda. Mais uma vez, a ideia de microssistema é

293

MAZZEI, Rodrigo Reis. Op. Cit. p. 386-387. 294

No caso, tratava-se de ação civil pública ajuizada pelo Conselho Regional de Medicina da Secional do

Rio Grande do Sul (CREMERS), contra o Estado do Rio Grande do Sul, para discutir questões

relacionadas ao direito de pacientes no âmbito do SUS. A decisão atacada no Recurso Especial

reformou sentença que havia reconhecido a ilegitimidade ad causam da autarquia autora, em razão de

não haver pertinência temática, exigida à época pelo art. 5º, da Lei 7.347/85. O acórdão recorrido

reformou a sentença aplicando nova redação da lei, que não mais trazia essa exigência para as

autarquias. O voto condutor do Resp. não divergiu da conclusão do acórdão atacado, mas procurou

não apenas na lei da ação civil pública, como também em todo o microssistema da tutela coletiva a

solução para o caso dado, privilegiando o seguimento da ação coletiva (REsp 1177453/RS, 2ª Turma,

Rel. Min. Mauro Campbel Marques, DJe 30/09/2010).

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aplicada, eis que a legitimação para a causa (e sua respectiva polarização) é dotada de

peculiaridades, quando se trata da defesa de interesses transindividuais. 295

Não apenas o conjunto de medidas formado pela lei da ação civil pública e o

Código de Defesa do Consumidor se irradiaria para todas as demais ações do

microssistema, mas também as demais disposições concernentes à tutela coletiva,

dispersas pelos outros diplomas legais, serviriam para complementar os primeiros,

tendo em vista o caráter intercambiante das normas nesse sistema. Mesmo um

regramento que remete aos primórdios da tutela coletiva, como o da Lei nº 4.717/65,

poderia servir para suprir lacunas, porquanto partilha com os demais a mesma lógica

diversa da simples tutela de litígio individuais.

Por outro lado, a ação popular também poderia sofrer influência das demais

ações que compõem o microssistema, tendo o seu o rito complementado pelas normas

extraídas dos demais regramentos específicos, em favor de uma tutela mais efetiva. A

própria diversidade de bens de natureza difusa, que atualmente integram o espectro de

proteção da ação popular, exigiria uma interpretação menos estreita, visto que restam

consagrados interesses de valor pecuniário menos evidente, os quais exigiriam, para

efetiva proteção, provimentos judiciais que fossem além da mera condenação e/ou

desconstituição de ato.

Cabe aqui trazer a reflexão de Marcelo Abelha Rodrigues, que questiona se a

ação popular seria, efetivamente, um remédio que ofereceria resultados adequados à

proteção do meio ambiente, pois observa ser este instrumento idealizado e construído

visando o ressarcimento de uma situação lesiva, eis que sua utilização pressuporia a

invalidade e a lesividade do ato, contra os valores protegidos pela norma constitucional.

A seu juízo, a ação popular não seria voltada à proteção preventiva de direitos. 296

295

Tratava-se de ação civil pública intentada contra União, Estado do Paraná eMunicípio deLondrina, em

razão de irregularidades nos pagamentos realizados ahospitais, clínicas, laboratórios emédicos

credenciados pelo Instituto Nacional deAssistênciaMédica da Previdência Social -INAMPS, com

recursos do Sistema Único de Saúde, provenientes de repasses federais. Ocorre que contra a União

apenas se formulou pedido de obrigação de fazer, para que fiscalizasse devidamente o repasse de

verbas, sendo o pedido de ressarcimento das quantias percebidas indevidamente formulado contra os

outros entes políticos. O recurso especial interposto atacava agravo de instrumento o qual manteve

decisão que deferia mudança da União para o polo ativo da demanda, ao lado do Ministério Público.

No julgamento do REsp, contudo, decidiu-se pela mantença da União em ambos os polos da demanda,

eis que era demandada quanto à obrigação de fiscalizar a atuação dos delegatários do SUS, mas tinha

interesse na procedência do pedido de ressarcimento formulado contra os outros entes, pois os valores

dessa condenação reverteriam ao seu favor (REsp 791042 / PR, 1ª Turma, Rel. Min. Luiz Fux, DJ

09/11/2006). 296

RODRIGUES, Marcelo Abelha. Processo civil ambiental. 2ª Ed. São Paulo: RT, 2010. p. 97.

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123

Essa conclusão poderia facilmente ser deduzida a partir de leitura isolada da

Lei nº 4.717/65. Contudo, quando se considera a ação popular inserida em um

microssistema de normas intercambiantes, abrir-se-iam vias para complementação das

formas de satisfação da situação substancial deduzida em juízo. Mesmo que não haja

previsão específica na lei da ação popular, a ideia de microssistema tornaria possível se

pleitear medidas de caráter preventivo, ou cominatório, invocando-se o quanto dispõe

sobre tais hipóteses o conjunto integrado de regras do CDC e da LACP.

Uma vez que a própria lei da ação popular, em seu artigo 7º, define o

procedimento como ordinário (com pontuais alterações) e faz menção à aplicação

subsidiária do Código de Processo Civil (art. 22), o conjunto de medidas previstas nos

artigos 461 e 461-A do CPC poderia ser tomado como base para o cumprimento de

obrigações de fazer ou não fazer, assim como entrega de coisa, caso sejam deduzidas

tais demandas por via da ação popular. Rodolfo de Camargo Mancuso defende a

aplicação dessa técnica, pugnando por uma releitura da exegese que restringe ao

conteúdo pecuniário a condenação prevista no art. 11 da LAP. 297

Em que pese a própria aplicação subsidiária do CPC já apresentar solução para

essa lacuna, ainda assim as soluções trazidas pela teoria do microssistema não deveriam

ser afastadas no caso, em razão de o regramento do processo civil individual não

conseguir abarcar totalmente o fenômeno da tutela coletiva e suas peculiaridades.

Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr. defendem a existência de um

procedimento-padrão para as causas coletivas, previsto de forma integrada na lei da

ação civil pública e no Código de Defesa do Consumidor. Esse seria o procedimento

comum ou ordinário da tutela coletiva, de forma que quando leis que regulam o

processamento de demandas coletivas definirem seu rito como “ordinário” (tal como

posto na LAP e também na lei de improbidade administrativa, art. 17, p. ex.), de fato,

deveria ser considerado o rito comum estabelecido por esta junção do CDC com a

LACP, em razão do microssistema do processo coletivo. 298

Essa parece ser a solução mais acertada, pois esse procedimento comum,

diferentemente do procedimento ordinário do CPC, é todo projetado em razão das

especificidades dos direitos e interesses transindividuais em juízo. Questões como

legitimidade para agir, coisa julgada, competência, entre outros institutos ganham

297

MANCUSO, Rodolfo de Camargo.Ação Popular... p. 88-89. 298

DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Op. Cit. p. 62.

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124

tratamento especial, além de serem informados por princípios próprios, 299

formando um

regime diverso daquele disciplinado no Código de Processo Civil.

A aplicação de regras desse rito comum coletivo à ação popular recebe especial

acolhimento nos estudos da defesa do meio ambiente, notadamente em razão de uma

exaltada preeminência do aspecto substancial na determinação da ação coletiva. Flávia

Regina Ribeiro da Silva defende para a ação popular ambiental uma aproximação com

as regras da lei da ação civil pública e do Código de Defesa do Consumidor, suscitando,

nesse mesmo sentido, entendimento de José Rubens Morato Leite e Celso Antônio

Pacheco Fiorillo, 300

tendo em vista a carência de normas na lei nº 4.717/65, no que

concerne aos bens protegidos de natureza essencialmente difusa, como o meio

ambiente. 301

Não obstante a ideia de microssistema ampliar as vias de soluções no trato do

direito coletivo em juízo, os limites na aplicação dessa teoria ainda não se encontram

bem definidos na prática judiciária.

Notável exemplo dessa dificuldade está na discussão referente ao caráter

intercambiante da norma contida no art. 19 da lei nº 4.717/65, em que se encontra

prevista hipótese de reexame necessário. 302

299

Como exemplos, têm-se o da primazia do conhecimento do mérito no processo coletivo, citado em

precedente do STJ colacionado, bem como o da representação adequada, a ser discutido no próximo

tópico. 300

Celso Antônio Pacheco Fiorillo, em especial, frisa que a ação popular presta-se à defesa de bens de

natureza pública (patrimônio público) e difusa (meio ambiente), circunstância que implicaria a adoção

de procedimentos distintos, devendo-se adotar para a ação popular ambiental o procedimento previsto

na lei da ação civil pública e no código de defesa do consumidor. Já para a defesa de bem de natureza

pública, defende a adoção do procedimento previsto na lei nº 4.717/65 (FIORILLO, Celso Antônio

Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 716). A ação popular

para defesa do meio ambiente, de fato, requer uma aproximação com o quanto disposto na LACP e no

CDC (medida que pode ser realizada com fundamento na teoria do microssistema da tutela coletiva e

no caráter intercambiante de suas normas), contudo, o procedimento previsto na Lei nº 4.717/65 não

deve ser de todo afastado no caso, razão pela qual não se adota no presente trabalho o entendimento

de Pacheco Fiorillo em sua totalidade. O procedimento específico previsto na Lei nº 4.717/65 traz

diversas medidas pertinentes à participação popular que não se encontram dispostas no rito comum da

LACP e do CDC, as quais não devem ser afastadas, como, por exemplo, as regras que tentam

combaterum possível ajuizamento temerário da demanda (art. 13, art. 6º, § 4º, da Lei nº 4.717/65).

Igualmente, a defesa em juízo do patrimônio público pela ação popular também requer uma

aproximação com o quanto dispõem a LACP e o CDC, eis que o procedimento da Lei nº 4.717/65

nada dispõe acerca do deferimento de medidas cominatórias, por exemplo, que também se mostram

necessárias para a efetiva defesa do patrimônio público. 301

SILVA, Flávia Regina Ribeiro da. Ação popular ambiental. São Paulo: RT, 2008. p. 259-261. 302

Esse dispositivo determina: “a sentença que concluir pela carência ou pela improcedência da ação está

sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal;

da que julgar a ação procedente caberá apelação, com efeito suspensivo”. Nota-se que o procedimento

da ação popular adotou critério diferente do CPC/73 (art. 475, I e II), quanto à necessidade de reexame

necessário, em que devem se submeter ao duplo grau obrigatório sentenças prolatas em desfavor dos

entes públicos. Luiz Manoel Gomes Júnior comenta essa peculiaridade da ação popular, realçando o

interesse público que permeia a aplicação desse expediente, observando que “se o pedido em sede de

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125

Já havia decidido o Superior Tribunal de Justiça pela possibilidade de

aplicação da remessa obrigatória ao rito da ação civil pública, mesmo não havendo na

Lei nº 7.347/85 qualquer previsão a respeito, incidindo a ordem contida no art. 19 da lei

da ação popular, por força da ideia de microssistema da tutela coletiva. No ensejo,

afastou-se até mesmo a aplicação do §2º, art. 475, do CPC/73, dispositivo que traz

limites ao duplo grau obrigatório. 303

Contudo, em outra oportunidade, decidiu-se pela não extensão do reexame

necessário previsto no art. 19 da lei nº 4.717/65 ao rito da ação de improbidade. Mesmo

levando em conta o entendimento assentado no precedente anterior, concluiu-se que a

ausência de previsão da remessa de ofício na lei da ação de improbidade não poderia ser

vista como uma lacuna a ser preenchida pelo art. 19 da Lei nº 4.717/65. Destacou-se

ainda ser o reexame necessário instrumento de exceção no sistema processual, impondo-

se em razão disso uma interpretação restritiva. 304

Conquanto ambos os julgados admitam o caráter intercambiante das normas

que compõem o microssistema da tutela coletiva, a ausência de previsão expressa de

reexame necessário na lei da ação civil pública foi considerada uma lacuna pelo

primeiro precedente, ao passo que, em julgado posterior, essa mesma omissão na lei da

ação de improbidade foi considerada um “silêncio eloquente”.

Não se trata simplesmente de apontar um possível conflito entre decisões no

âmbito do Superior Tribunal de Justiça, mas antes se intenta demonstrar que, não

obstante a ideia de microssistema já tenha alcançado prestígio perante a doutrina

ação popular foi acolhido é porque houve ilegalidade e lesividade ou atentado à moralidade

administrativa”, razão pela qual entende ser incabível aplicar-se para a ação popular as hipóteses do

art. 475, CPC/73. Ambos os dispositivos fundamentam-se na proteção do interesse público, mas a lei

da ação popular deixa claro que este nem sempre se confundem com o interesse da Administração

(GOMES JÚNIOR, Luiz Manoel Gomes. Revista de Processo, vol. 102, p. 167, Abril/2001. Versão

digital). 303

Versava o caso sobre ação civil pública, ajuizada com vistas ao ressarcimento de prejuízos suportados

pelo erário, em virtude de possíveis irregularidades envolvendo a construção de um ginásio de

esportes, pelo prefeito do município de São José, estado de Santa Catarina. Nas razões do voto

condutor do acórdão, não apenas a ideia de microssistema da tutela coletiva é suscitada, para justificar

a extensão do reexame necessário da lei nº 4.717/65 à ação civil pública, mas também a função

assemelhada dessas duas ações, que se destinariam à proteção do patrimônio público em sentido lato

(REsp. 1108542/SC, 2ª Turma, Rel. Min. Castro Meira, DJe 29/05/2009). 304

Tratava-se de ação de improbidade ajuizada em desfavor de prefeito e ex-prefeito do município de

Ipatinga/MG, acerca da admissão de pessoal no quadro de servidores, sem concurso público. Após

extinto o feito sem resolução de mérito, o Ministério Público interpôs recurso de apelação apenas em

face de um dos demandados, de forma que no recurso especial intentava-se a aplicação do reexame

necessário em relação ao outro réu, que não figurou como parte no recurso de apelação do MP (REsp.

1220667/MG, Rel. Min. Napoleão Maia Filho, 1ª Turma, DJe 20/10/2014).

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especializada e os órgãos julgadores, não se mostra ainda, de forma clara, qual o critério

que limita o intercâmbio de normas entre as ações coletivas.

Quanto a isso, pondera Rodrigo Mazzei que “deverá o intérprete aferir – em

concreto – a eventual incompatibilidade e a especificidade de cada norma coletiva em

relação aos demais diplomas”, em favor da harmonia do sistema. 305

Porém, para esse

exame in concreto, de possíveis barreiras ao intercâmbio de normas, é imprescindível a

identificação de parâmetros mínimos, para que a teoria do microssistema não seja

desvirtuada, em desfavor da própria efetividade da tutela coletiva que visa garantir.

Essa parca definição de balizas na aplicação da ideia de microssistema,

também já se mostrou problemática no julgamento de questões que envolvem o tema da

prescrição nas ações coletivas.

Essa matéria é tratada de forma insuficiente pela legislação específica, não

havendo qualquer previsão a respeito na lei da ação civil pública, por exemplo.

Conquanto esse tema ainda suscite discussões no âmbito do Superior Tribunal de

Justiça, quer-se chamar atenção para o entendimento formado nessa Corte, sobre a

utilização do prazo de cinco anos, descrito no art. 21 da lei nº 4.717/65, como prazo

prescricional para as outras ações que compõem o microssistema da tutela coletiva, em

especial a ação civil pública. 306

Em decisão paradigmática, deixou-se assentado que “A Ação Civil Pública e a

Ação Popular compõem um microssistema detutela dos direitos difusos, por isso que,

não havendo previsão deprazo prescricional para a propositura da Ação Civil

Pública,recomenda-se a aplicação, por analogia, do prazo quinquenal previstono art. 21

da Lei n. 4.717/65”(REsp. 107.0896/SC, Rel. Ministro Luís Felipe Salomão, 2ª Seção,

DJe04/08/2010).

Com efeito, os prazos prescricionais atingem a exigibilidade do direito, isto é,

buscam encobrir a eficácia da pretensão (material), como hoje acertadamente reconhece

305

MAZZEI, Rodrigo Reis. Op. Cit. p. 384. 306

No informativo de jurisprudência de nº 400 (22 a 26 de junho de 2009), do Superior Tribunal de

Justiça, noticiou-se entendimento da 1ª turma, a respeito da prescrição em ação civil pública, que bem

sintetiza a tendência ora explorada: “Explica o Min. Relator ser cediço que a Lei n. 7.347/1985 é

silente quanto à prescrição para a propositura da ação civil pública e, em razão dessa lacuna, aplica-se

por analogia a prescrição quinquenal prevista na Lei da Ação Popular”. Nesse mesmo sentido, veja-se:

REsp 1375906/DF, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, DJe 30/05/2014; REsp 1365391/MS, Rel.

Min. Luís Felipe Salomão, 4ª Turma, DJe 21/06/2013; REsp 107.0896/SC, Rel. Ministro Luís Felipe

Salomão, 2ª Seção, DJe04/08/2010; REsp 1089206/RS, Rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma, DJe

06/08/2009; REsp 911961/SP, Rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma, DJe 15/12/2008; REsp 910625/RJ, Rel.

Min. Francisco Falcão, 1ª Turma, DJe 04/09/2008.

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o art. 189 do Código Civil. 307

A prescrição, portanto, representa uma situação jurídica

substancial (exceção), tanto que o art. 269, IV, do Código de Processo Civil, determina

que a sua pronúncia ensejará julgamento de mérito.

Logo, não se poderia aplicar indistintamente o prazo quinquenal do art. 21 da

lei nº 4.717/65 às outras ações do microssistema da tutela coletiva, de forma

desvinculada da situação material pleiteada em juízo, como vem sendo feito pela

jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.

Sérgio Cruz Arenhart ainda questiona a própria natureza “prescricional” do

prazo previsto na lei da ação popular, em seu art. 21, o qual determina que “aação

prevista nesta lei prescreve em 5 (cinco) anos”. Isso porque, sendo a prescrição tema

vinculado à cessação da eficácia do direito (à ineficácia da pretensão), não se poderia

falar em prescrição “de uma determinada ação judicial”. Para esse autor, o vocábulo

prescrição, empregado na lei da ação popular, obviamente, estaria utilizado de forma

equivocada. Afinal, nenhuma “ação” (em termos processuais) prescreveria, muito

menos uma espécie determinada de procedimento estaria sujeita a prazo

prescricional.308

Explica que, evidentemente, não haveria prescrição em cinco anos da ação

popular, pois isso implicaria dizer que uma determinada pretensão poderia ser extinta

nesse prazo. A seu juízo, a intenção da lei, porém, seria bem outra, “buscando

simplesmente dizer que o emprego daquele tipo definido de procedimento só pode ser

utilizado em até cinco anos”, à semelhança do prazo de 120 (cento e vinte) dias, contido

na lei do mandado de segurança (art. 23, da Lei n. 12.016/09).309

De toda sorte, o intercâmbio de um prazo prescricional entre leis distintas do

microssistema não poderia ser realizado desconsiderando as diferentes pretensões que

podem ser deduzidas, pelas vias do processo coletivo. Essa circunstância não passou

despercebida pela Ministra Nancy Andrighi, que em voto-vista proferido no julgamento

307

Pontes de Miranda conceitua a prescrição como “a exceção, que alguém tem, contra o que não

exerceu, durante certo tempo, que alguma regra jurídica fixa, a sua pretensão ou ação”. Uma vez que

os prazos prescricionais servem à paz social e à segurança jurídica, não destroem o direito, mas

encobrem a eficácia da pretensão, para que não perdure por demasiado tempo a exigibilidade ou

acionabilidade (MIRANDA, Francisco Pontes de. Tratado de direito privado: tomo VI. Campinas:

Bookseller, 2000. p. 135-136. 308

ARENHART, Sérgio Cruz.A tutela coletiva de interesses individuais: para além da proteção dos

interesses individuais homogêneos. São Paulo: RT, 2013. p. 274. 309

ARENHART, Sérgio Cruz. Op. Cit. p. 274.

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128

do Resp. 1.273.643/PR, 310

intentou modificar o entendimento consolidado do STJ sobre

a matéria, destacando que:

Realmente, a defesa de direitos coletivos não se confunde com a defesa

coletiva de direitos. Os diretos subjetivos individuais, uma vez tutelados

coletivamente, não podem receber o mesmo tratamento dispensado aos

diretos de natureza transindividual, notadamente quando isso acarretar

prejuízos em relação às vantagens que o interessado teria na defesa autônoma

dos seus direitos.

[...]

Assim, se a tutela coletiva de diretos individuais homogêneos se justifica

unicamente por motivos instrumentais, portanto sem a modificação do direito

subjetivo individual de cada interessado, não se pode admitir que a suposta

facilitação do acesso à justiça venha ter efeito inverso (e perverso), impondo

desvantagens a esses interessados.

O julgado em questão não considerou as diferenças substanciais existentes

entre os direitos difusos e coletivos (transindividuais) e os direitos individuais

homogêneos – apenas tutelados coletivamente, sem perder a natureza individual –

aplicando indistintamente para estes últimos, o prazo quinquenal da lei da ação popular

(art. 21) e, assim, desconsiderando o prazo vintenário previsto no Código Civil para a

pretensão material discutida (art. 177). Privilegiou-se, no caso, os aspectos

procedimentais da tutela coletiva.

Por isso, obtemperou ainda a douta ministra que o CDC, visando facilitar a

defesa dos direitos individuais homogêneos, apenas teria criado uma nova modalidade

de tutela coletiva para estes, não havendo sentido em se utilizar da via processual

coletiva para reduzir o prazo prescricional do direito material envolvido. O intercâmbio

de normas nesse caso minorou a o alcance dos direitos tutelados em sede coletiva.

Conquanto não tenha prosperado esse entendimento, serve para demonstrar que

o intercâmbio de normas para colmatar lacunas, com fulcro na ideia de microssistema,

não deve desconsiderar as peculiaridades da situação jurídica substancial, seja na forma

de direitos, pretensões, ações ou exceções, sob pena de se desvirtuar os objetivos da

tutela coletiva.

310

Tratava-se de Recurso Especial, julgado de acordo com o procedimento previsto no art. 543-C do

CPC/73, no qual se fixou a tese de que “no âmbito do Direito Privado, é de cincoanos o prazo

prescricional para ajuizamento da execução individualem pedido de cumprimento de sentença

proferida em Ação CivilPública". O caso versava sobre execução de sentença proferida em Ação Civil

Pública, ajuizada pela APADECO, em favor dos titulares deconta depoupança noEstado do Paraná.

Ao contrário do decidido no acórdão recorrido, optou-se por aplicar, para as execuções individuais do

julgado coletivo, o prazo quinquenal previsto no art. 21 da ação popular, ao invés do prazo

prescricional de vinte anos, do Código Civil de 1916, referente às pretensões individuais julgadas

coletivamente (Resp. 1273643 / PR. Rel. Min. Sidnei Beneti, Segunda Seção, DJe 04/04/2013).

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Os aspectos substanciais das situações deduzidas no procedimento coletivo

parecem, justamente, indicar limites para o caráter intercambiante de certas regras,

podendo-se, a partir dessas circunstâncias elementares, principiar-se a desenvolver os

parâmetros que irão definir as bordas do microssistema da tutela coletiva.

É certo, contudo, que as possibilidades fornecidas pela teoria do microssistema

da tutela coletiva não devem ser de todo dispensadas, apenas melhor compreendidas. O

rito específico da ação popular, disposto na lei nº 4.717/65, exerce papel fundamental

nessa construção teórica.

3.5 Condicionantes no processo coletivo: peculiaridades da ação popular.

O esforço em se construir um sistema próprio para a tutela coletiva e torná-lo

operacional bem demonstra que o processo desenvolvido sob o signo da coletividade é

dotado de características especiais, que escapam aos cânones mais tradicionais da

ciência processual.

Não se trata de abandonar totalmente a dogmática processual que em meados

do século XIX ganhou autonomia científica e, desde então, vem se desenvolvendo. Em

verdade, requer o estudo da tutela coletiva uma adaptação, ou ainda renovação, de

alguns dos institutos nucleares dessa ciência processual, em especial daquilo que se

convencionou chamar de condições da ação.

Essa abordagem mostra-se essencial para a ação popular, na medida em que tal

espécie de demanda se singulariza, entre outros elementos, pela legitimidade que

confere ao cidadão, para pleitear direitos e interesses cuja titularidade não lhe pertence,

pelo menos não de forma exclusiva.

No rito específico, ao Ministério Público ainda é conferida a possibilidade de

promover o seguimento da ação, caso o autor popular desista (art. 9º, Lei nº 4.717/65).

Também merece destaque o aspecto procedimental previsto no § 3º, art. 6º, da

Lei nº 4.717/65, que permite à pessoa jurídica (de direito público ou privado), cujo ato

seja objeto de impugnação, “migrar de polo” e passar a atuar ao lado do autor, se houver

interesse público no caso que justifique a medida.

Todas essas previsões legais indicam que, tanto a legitimidade ad causam,

como o interesse de agir, assumem formas diversas na ação popular, em alguns de seus

pontos elementares. De fato, esse desvio na conformação tradicional de tais categorias

jurídicas pode ser observado para as ações coletivas de um modo geral, uma vez que as

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próprias situações jurídicas substanciais tipicamente demandadas por essas vias

escapam à conformação clássica de direito subjetivo, em que se sobressai a vertente

individual.

Ao tratar de diferenciar as diversas situações jurídicas substanciais, Pontes de

Miranda acaba por enquadrar as ações populares como ações (materiais) sem direitos

subjetivos. Em suas palavras: “as ações populares, ainda quando não concebidas como

remédio jurídico processual, podem ser explicadas, em alguns casos, como ações a que

não correspondem direitos subjetivos, salvo no que implicam, quanto ao remédio

jurídico processual, a existência de pretensão ou de direito público subjetivo”. 311

Ainda que não se adote singular posicionamento, é evidente que a ação popular

consubstancia um tipo de demanda em que a titularidade do interesse protegido

dificilmente pode ser atribuída a um sujeito individualizado, ou a um grupo de sujeitos

totalmente identificável, sendo tormentoso tentar extrair das situações jurídicas ativas

que se configuram como ações populares (materiais), uma conformação que se amolde

ao esquema tipicamente individualista de direito subjetivo. As manifestações

processuais da ação popular, à evidência, devem tentar corresponder à natureza difusa

da sua vertente substancial, sem titularidade determinada.

Atento a essa conjuntura, José Afonso da Silva questiona em que consiste o

interesse de agir para a ação popular, a qual aparenta contrariar postulado básico

firmado pela doutrina, de que esse interesse deveria ser pessoal e direto. 312

Como o autor popular não seria “titular de um direito subjetivo nem de

interesse especificamente seu, violado ou ameaçado”, defende que na ação popular o

interesse de agir não é absolutamente pessoal, nem direto. O interesse de agir

concretizar-se-ia na possibilidade, em tese, de haver prejuízo, caso falte a tutela

jurisdicional. Na ação pessoal esse prejuízo seria a um interesse subjetivo do autor, ao

passo que na ação popular seria a um dos bens mencionados no art. 5º, LXXIII, CR/88,

que ao autor popular, como cidadão, interessaria defender. 313

Elton Venturi, por sua vez, defende que, na análise do interesse processual nas

ações de tutela de direitos difusos e coletivos, importaria menos à aferição da

necessidade de se recorrer ao Judiciário a referibilidade entre o titular da pretensão e o

tipo de tutela pleiteada do que a relevância social do interesse. Já haveria uma

311

MIRANDA, Francisco Pontes de. Tratado das ações: tomo I. São Paulo: RT, 1970. p. 94. 312

SILVA, José Afonso da. Ação popular constitucional. 2ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 151. 313

SILVA, José Afonso da. Op. Cit. p. 151-152.

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presunção da existência de interesse processual na propositura de demandas coletivas –

como a ação popular – em razão da importância social dos interesses protegidos nessas

ações. 314

Ainda ressalta um detalhe técnico que sustenta tal presunção: para fins de

proteção de direitos difusos e coletivos, a ação coletiva se apresentaria como a única

que viabilizaria a adequada proteção destes. Como se mostraria absolutamente

inadequado o manejo de ação individual para demandar direitos essencialmente

metaindividuais, a propositura de demanda coletiva não seria meramente uma opção,

mas sim a única opção, circunstância que acentuaria o interesse processual nessas

demandas. 315

A legitimidade para agir na ação popular também merece ser enquadrada sob o

filtro da tutela coletiva.

Isso porque a legitimação para agir é resumida por Liebman como a

pertinência subjetiva da ação, ou seja, “a identidade entre quem a propôs e aquele que,

relativamente à lesão de um direito próprio (que afirma existente), poderá pretender

para si o provimento de tutela jurisdicional pedido com referência àquele que foi

chamado em juízo”. O legitimado ordinário é definido, portanto, como o titular do

interesse alegadamente malferido, sendo a possibilidade de defesa de interesse alheio

reputada como legitimação extraordinária, situação excepcional, que exigiria expressa

autorização em lei. 316

Essa lógica tradicional encontra-se claramente expressa no art. 6º,

do CPC/73, ao dispor que “ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio,

salvo quando autorizado por lei”.

Por isso, a doutrina que cuida do processo coletivo, em relação à legitimação

para agir, divide-se, grosso modo, entre os que enquadram essa fuga à titularidade

individual da demanda como mais um caso de (i) legitimação extraordinária, eis que há

autorização legal para essa forma diferenciada de atuação processual; além dos que

defendem ser caso de (ii) legitimação autônoma para condução do processo, categoria

voltada especificamente para o processo coletivo, por não ser possível se identificar

efetivamente o titular dos direitos pleiteados nessa sede.

Representam bem a primeira corrente Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr.

Para esses autores, não há no processo coletivo coincidência entre o legitimado e o

314

VENTURI, Elton. Processo civil coletivo. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 230-231. 315

VENTURI, Elton. Op. Cit. p. 230 316

LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de direito processual civil. Vol. I. Trad.: Cândido Rangel

Dinamarco. Rio de Janeiro: Forense, 1984. p. 159-160.

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titular da situação jurídica discutida e, quando não há esse vínculo, é caso de

legitimação extraordinária. A legitimação ao processo coletivo seria, portanto, de

caráter extraordinária, autorizando-se um ente a defender em juízo situação jurídica que

seja titular um grupo ou uma coletividade. 317

Já a legitimação autônoma para condução do processo, como dito, é uma

classificação que tenta fugir dos parâmetros traçados para o processo individual. Explica

Antônio Gidi que essa ideia, introduzida pela doutrina de Nelson Nery Jr., intenta

desunir a legitimidade processual da titularidade do direito material objeto do processo

(como nas ações individuais), pois o critério utilizado pelo direito para atribuir

legitimidade para a propositura das ações coletivas seria a aptidão, ou idoneidade social

para ser considerado como representante adequado para a defesa judicial dos direitos

superindividuais. 318

Ademais, seria possível ainda se vislumbrar uma espécie de “direito próprio”

das entidades legitimadas a defender os direitos superindividuais em juízo, já que

ninguém mais poderia fazê-lo. 319

Ainda que conflitantes, tais posicionamentos demonstram que nas ações

coletivas há um “descolamento” entre aquele autorizado a pleitear em juízo e o titular da

pretensão invocada, que não precisam coincidir, até mesmo porque esse último

geralmente possui natureza indeterminada. Ou seja, na ação popular, a despeito da

classificação doutrinária escolhida, a legitimidade é dada a quem, a princípio, ostenta a

qualidade de cidadão, independente de a situação jurídica ativa deduzida ter lhe sido

atribuída pela ordem legal, de forma exclusiva ou não.

3.6 O controle da representação adequada na ação popular

A consciência acerca da conformação diferenciada dos condicionantes na ação

coletiva, contudo, é apenas uma etapa inicial no estudo dos problemas na admissão de

uma ação popular. O caráter especial da legitimação dada ao cidadão, se por um lado

faz da ação popular um importante instrumento de participação política e controle da

Administração Pública, por outro, provoca desconfianças quanto a um possível mau uso

dessa ação, seja por má-fé ou mesmo por despreparo técnico do postulante individual.

317

DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Op. Cit. p. 205. 318

GIDI, Antônio. Coisa julgada e litispendência em ações coletivas. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 41-

42. 319

GIGI, Antônio. Coisa julgada... p. 42.

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133

Tais receios não merecem ser, de pronto, deslegitimados em razão unicamente

do potencial transformador contido na ação popular. O risco, de fato, existe e isso fica

claro quando se recorda que o regime especial da coisa julgada em seu procedimento

específico limita a eficácia erga omnes da sentença, mas apenas em caso de julgamento

improcedente por deficiência de prova (art. 18, lei nº 4.717/65). Ou seja, ainda existe a

possibilidade de a coisa julgada na ação popular vincular toda a comunidade de

cidadãos, mesmo que de forma prejudicial ao interesse coletivo, caso haja carga

probatória suficiente.

O procedimento específico da lei nº 4.717/65 traz hipóteses que buscam

minimizar os riscos de um possível mau uso da ação popular, como a condenação do

autor ao décuplo das custas, se verificado o ajuizamento temerário da ação (art. 13);

bem como a participação do Ministério Público como fiscal da lei (art. 6º, §4º), podendo

ainda assumir o polo ativo em caso de desistência do autor popular (art. 9º).

A previsão dessas medidas, contudo, não afastou de todo as desconfianças com

a participação popular na tutela coletiva.

Elton Venturi identifica a permanência desse receio no legislador brasileiro, ao

destacar que a legitimação individual para as ações coletivas restringiu-se ao

procedimento da ação popular constitucional, tendo sido repelido, posteriormente, para

as demais ações civis que instrumentalizaram a tutela de direitos difusos e coletivos,

como a ação civil pública, a ação de impugnação de mandato eletivo, as ações de

controle de constitucionalidade, as ações do Código de Defesa do Consumidor, a ação

de improbidade, o mandado de segurança coletivo, o mandado de injunção coletivo e a

arguição de descumprimento de preceito fundamental. Para o ajuizamento de todas

essas ações foi outorgada a legitimação ativa a entidades previamente escolhidas,

excluindo-se de forma notória a iniciativa individual. 320

Conclui esse autor que:

De fato, a exemplo do que ocorre com a legitimação das demais entidades

privadas (associações civis e sindicatos, sobretudo), a experiência brasileira

já demonstrou à saciedade que a mera autorização legal para que qualquer

pessoa física ou jurídica possa ajuizar ações coletivas desacompanhada de

uma análise empírica sobre a viabilidade econômica, técnica e política da

empreitada judicial intentada, ao invés de propiciar o aperfeiçoamento e o

incremento da tutela coletiva, parece conspirar contra.

Por isso, apesar de ser sempre interessante, sob o ponto de vista do ideal

democrático e da expansão do acesso à justiça, a ampliação da participação

popular na defesa dos direitos meta-individuais, a autorização para que

320

VENTURI, Elton. Op. Cit. p. 169-170.

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134

qualquer pessoa física venha a propor demandas coletivas deve ser vista com

reservas.321

Certamente, não haveria razão para se tentar promover uma utilização mais

efetiva da ação popular, com ampliadas possibilidades de tutela, sem também se

preocupar com um melhor controle dos sujeitos habilitados a conduzir tal demanda,

para que possíveis abusos não comprometam a viabilidade dessa ação singular em nosso

ordenamento.

Para tanto, faz-se necessário mais uma vez recorrer às construções teóricas

próprias da tutela coletiva, mais especificamente ao que se denominou controle

darepresentação adequada, fortemente desenvolvido no regime declass action.

É importante, nesse ponto, salientar que, assim como nas ações de classe norte-

americanas, na ação popular o poder de impulso e condução do litígio coletivo é

conferido a um singular indivíduo, que pode ou não estar associado a outros membros

da coletividade. Muito embora nosso direito não exija para a ação popular que o

postulante tenha interesse pessoal e direto na lide (typicality), requisito indispensável da

class action, ainda assim a ideia de controle da representação adequada pode ser trazida

para o estudo da ação popular, respeitadas as peculiaridades dessa demanda.

Esse controle in concreto da representação coletiva não se encontra

expressamente previsto na lei que regula a ação popular, ou em qualquer outro diploma

contido no microssistema da tutela coletiva, circunstância que motiva parte da

resistência à aplicação dessa construção teórica no nosso direito.

Havia previsão de controle da representação adequada pelo juiz, quando

elaborado o chamado projeto de lei Flávio Bierrenbach (elaborado pelos juristas Ada

Pellegrini Grinover, Cândido Rangel Dinamarco, Kazuo Watanabe e Waldemar Mariz

de Oliveira Jr.), voltado apenas às associações. Todavia, essa iniciativa não vingou e o

projeto substitutivo que deu origem à lei da ação civil pública optou pela fórmula de

legitimação ope legis, sem qualquer referência ao controle judicial da representação

adequada. 322

Assim como a lei da ação popular indica o cidadão como legitimado, os demais

diplomas legais integrantes do microssistema limitam-se a listar os entes legitimados,

sem mencionar uma possível participação do juiz no controle da adequada

321

VENTURI, Elton. Op. Cit. p. 171-172. 322

ROQUE, André Vasconcelos. Class action. Ações coletivas nos Estados Unidos: o que podemos

aprender com eles? Salvador: Juspodivm, 2013.p. 558-559.

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representação (salvo a específica situação descrita no §4º, art. 5º, da lei nº 7.347/85, que

permite ao juiz dispensar o requisito de pré-constituição para as associações, em razão

de manifesto interesse social). Essa ausência de previsão, no entanto, não implica o

afastamento total do controle ope judicis da representação na tutela coletiva.

Até mesmo porque os institutos da legitimidade coletiva e da representação

adequada não devem ser confundidos. Nesse ponto, explica Jordão Violin que a

legitimidade, de fato, é dada legislativamente, sendo autorizadas a representar os

interesses coletivos apenas as entidades arroladas na lei; mas, prossegue dizendo que

“dessa previsão não se extrai que tais entes possam ser relapsos, desidiosos, ou que

possam agir em conluio com a parte adversária, sem que o juiz possa exercer seu poder

de polícia dentro do processo”. 323

Compartilha dessa mesma preocupação André Vasconcelos Roque, ao advertir

que caso não se permitisse o controle judicial, ainda que evidenciada incompetência,

má-fé, mediocridade, ou mesmo fraude cometida pelo representante, o juiz estaria

obrigado a aceitar passivamente e dar prosseguimento ao processo, “como se nada

estivesse acontecendo bem diante dos seus olhos”. 324

Esse autor ainda observa que a participação do Ministério Público nas ações

coletivas não afastaria a viabilidade do controle judicial da representação adequada, pois

de nada adiantaria o trabalho de fiscalização desse órgão se não tivesse também o poder

de informar ao magistrado e pedir a substituição do representante, ou mesmo a extinção

da ação coletiva. Demais disso, a própria representação adequada do Ministério Público

mereceria controle, nos casos em que fosse o demandante do processo coletivo. 325

A questão não é pacífica, todavia, pois há quem defenda que o legislador

brasileiro teria optado por elencar taxativamente na lei os requisitos de

representatividade adequada, sem possibilidade de consideração de quaisquer outros

pelo magistrado na hipótese concreta. Haveria ainda o risco de, sob o pretexto de

controle judicial da representatividade adequada, abrir-se espaço para exigências

discriminatórias e considerações de ordem personalíssima por parte dos magistrados,

passíveis de acarretar indevida restrição à participação judicial da coletividade. 326

323

VIOLIN, Jordão. Protagonismo judiciário e processo coletivo estrutural. Salvador: Juspodivm, 2013. 324

ROQUE, André Vasconcelos. Op. Cit. p. 158-160. 325

ROQUE, André Vasconcelos. Op. Cit. p. 560-561. 326

MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Ação civil pública em defesa do meio ambiente: a representatividade

adequada dos entes intermediários legitimados para a causa. A ação civil pública após 20 anos:

efetividade e desafios. São Paulo: RT, 2005. p. 49-51.

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136

Além disso, há quem trate o controle da representatividade adequada como a

simples análise do cumprimento dos requisitos já previstos na lei nº 7.347/85

(compatibilidade da finalidade institucional da entidade com o interesse defendido em

juízo; pré-constituição há pelo menos um ano, no caso das associações). 327

Mesmo havendo embate doutrinário sobre o cabimento ou não de controle

judicial da representação adequada no direito brasileiro, é possível encontrar julgados

que enfrentam a matéria no âmbito do STJ, admitindo essa possibilidade. Essa tentativa

de controle, todavia, ainda é feita de forma tímida, amalgamando o que se chama de

controle da “representatividade adequada” com exame da “pertinência temática” (a

propósito, exigência que não se encontra atualmente prevista em lei para nenhuma das

entidades legitimadas para o processo coletivo), além da mera análise em concreto de

requisitos legais e fins estatutários das associações. 328

Eduardo Scarparo entende que esse desdobramento jurisdicional acerca da

“pertinência temática” nas ações coletivas (que se valeu do desenvolvimento da

legitimidade no controle concentrado de constitucionalidade) aponta para a quebra do

fundamento estritamente legalista do controle jurisdicional, que impediria o controle

judicial da representatividade. Teria se superado, ainda que forma tíbia, a dependência

do texto da lei para a atividade de controle do juiz acerca da legitimidade. 329

Cabe aqui relembrar que, como visto, no regime de class action, a análise da

representatividade adequada leva em conta não apenas a vigorosa defesa e a ausência de

conflitos entre o representante e a classe representada, mas também se analisam os

atributos do advogado, em especial a capacidade técnica e financeira. A

representatividade adequada, além de requisito para certificação da ação coletiva, ainda

é condição para que a coisa julgada no processo coletivo vincule toda a classe. 330

327

MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 22ª Ed. São Paulo: Saraiva,

2009. p. 307-308. 328

Vide: REsp 1192577/RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, DJe 15/08/2014 (limita a

representação adequada da Defensoria Pública, para a defesa de interesses coletivos em sentido estrito

ou individuais homogêneos, restrita àspessoas notadamente necessitadas); AgRg no REsp 901936/RJ,

Rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma, DJe 16/03/2009 (necessidade de “pertinência temática” para configurar

legitimatio ad causam do sindicato); REsp 651064/DF, Rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma, DJ 25/04/2005

p. 240 (adequada representação de cooperativa que litiga em interesse de seus associados). 329

SCARPARO, Eduardo. Controle da representatividade adequada em processos coletivos no Brasil.

Revista de Processo. São Paulo, n. 208. p. 136-140, junho de 2012. 330

Esclarece André Vasconcelos Roque que nos Estados Unidos, ao contrário do que acontece no Brasil,

o advogado não é considerado pela lei, nem pela Constituição, como indispensável à administração da

justiça, sendo permitido, de modo geral, que as partes compareçam em juízo sem patrono. No caso

específico da class action essa postura “aventureira” não é admitida, em virtude da proteção dos

interesses dos membros ausentes, indeferindo-se o processamento coletivo em tais casos por falta de

representatividade adequada. Além disso, pontua que a falta de representatividade adequada ainda

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137

O controle judicial da representatividade adequada, portanto, vai além da

simples conferência in concreto dos requisitos já previstos na lei, visando averiguar se o

demandante, efetivamente, dispõe de condições técnicas, ou até mesmo financeiras de

deduzir a pretensão coletiva, não havendo entre esse sujeito e a classe representada

divergências de interesses tão intensas que sujeitem a ação coletiva a uma utilização

indevida. 331

Porém, é importante considerar que o afastamento da coisa julgada – uma das

consequências da falta de representação adequada no sistema de class action – consiste

em uma possibilidade que deve ser transposta com cautela para o sistema brasileiro de

tutela coletiva.

O controle de representatividade adequada no Brasil serviria para afastar

situações esdrúxulas, que escapassem ao mero exame dos requisitos dados pela lei para

o preenchimento da legitimidade ad causam. Nada obstante, quer se entenda a falta de

representação adequada como questão de validade, quer como de eficácia, é pertinente

destacar que não são todos os vícios que implicam a excepcional situação de

afastamento ou desconstituição da coisa julgada em nosso ordenamento, havendo

hipóteses e formas específicas de se combater essa autoridade (ação rescisória; querela

nullitatis; §1º, art. 475-L e § único, art. 471, do CPC).

Já se a falta de representação adequada puder ser constatada enquanto ainda

não findada a atividade jurisdicional, o princípio da primazia do conhecimento do

mérito no processo coletivo já indica que não deve haver a extinção do feito de forma

açodada, se houver alternativa que permita a continuidade da demanda e análise da

questão de fundo. Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr. ponderam pela substituição

pode extinguir a class action, ou transformá-la em uma simples ação individual, aliviando os riscos

processuais para o demandado. Por isso a análise dos precedentes mostra que, na esmagadora maioria

dos casos, quem questionou a representatividade adequada foi a parte contrária, pois se o réu

prevalece na ação coletiva, a decisão de improcedência vincula todo o grupo (ROQUE, André

Vasconcelos. Op. Cit. p. 134-136.) 331

No caso dos interesses difusos, em especial, aponta Rodolfo de Camargo Mancuso ser característico

dessa categoria uma intensa litigiosidade interna, já que as pretensões metaindividuais daí decorrentes

não teriam por base um vínculo jurídico definido, mas derivariam de situações de fato, contingentes,

por vezes até ocasionais. Nos interesses difusos não haveria um parâmetro jurídico que permitisse um

julgamento axiológico preliminar sobre a posição “certa” e “errada”. Como exemplo, apresenta o caso

do projeto de despoluição do Rio Ganges, na Índia, que sofreu forte oposição de grupos religiosos

defensores da “pureza” do rio, independente da quantidade de lixo jogada nele. Conflitaram no caso,

de um lado, o interesse difuso à saúde e à despoluição e, do outro, o interesse à propagação de rituais

religiosos (MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir.

6ª Ed. São Paulo: RT, 2004. p. 104-106). Na análise da representação adequada, deve ser levada em

conta a inevitável presença de divergências internas no grupo representado quando se tratar de

interesses difusos, devendo se averiguar se o demandante está apto a manejar os interesses divergentes

em conflito.

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(sucessão) da parte reputada inadequada para condução da demanda, como nos casos de

desistência ou abandono do processo pelo autor popular ou da ação civil pública, em

que se determina a sucessão processual, com assunção do Ministério Público, ou de

outro legitimado da posição de condutor do processo coletivo. 332

Essa solução, contudo, não é a única possível em caso de inadequação do

representante, argumentando Lucas Buril de Macêdo que “o legitimado pode possuir

argumentos técnicos relevantes, específicos ao direito sob crivo ou jurídicos, ou ter

provas importantes para a instrução e, contudo, não dispor dos meios econômicos à

condução do processo, ou, ao contrário, ter interesse e disponibilidade financeira, mas

pouca qualificação técnica”. Nesse caso, a melhor solução seria não substituir o

proponente, mas integrar o requisito da representação adequada chamando outros

legitimados para participar do processo, permitindo a construção de uma decisão mais

qualificada. 333

À evidência, nem sempre tais soluções conciliatórias serão possíveis, sendo

mais recomendável a pronta extinção do feito quando se tratar de ação proposta de

forma temerária, fraudatória, ou de má-fé.

Isso tudo demonstra que o controle judicial da representação adequada é mais

um filtro para se adequar a tutela coletiva às especificidades das situações substanciais

pleiteadas nessa sede e, não necessariamente, uma barreira. Uma vez verificada sua

ausência, não indica a extinção inexorável da ação.

Essa noção mostra-se imprescindível para a ação popular, já que o seu titular –

um cidadão – pode se encontrar dotado de interesse e legitimidade, mas nem sempre de

total preparo técnico ou financeiro (como um órgão ou instituição especializados em

questões coletivas), circunstância que não deve impedir o fim maior de proteção dos

interesses difusos da coletividade, se puder ser aproveitado de alguma forma o trabalho

iniciado pelo autor popular.

Em razão de seu resultado não ser sempre umóbice ao seguimento da ação, o

controle da representatividade adequada também pode servir para lidar com o

descompasso do rito específico da ação popular em relação às pretensões difusas que

posteriormente puderam ser pleiteadas nessa sede, notadamente as de caráter ambiental.

332

DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Op. Cit. p. 220. 333

MACÊDO, Lucas Buril. O controle judicial da representação adequada: notas ao tratamento legal e

doutrinário e proposta de adequação constitucional de seus efeitos. Revista de Processo. São Paulo:

RT, 2014, nº 227, p. 223.

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A Constituição de 1988 ampliou o espectro de proteção da ação popular

acrescentando o meio ambiente, entre outros interesses, como possível objeto dessa

ação, conferindo ao cidadão a condição de legitimado para causa, sem estabelecer

qualquer requisito para comprovação dessa situação ativa.

Ocorre que, quando instituída a Lei nº 4.717/65, a ação popular buscava apenas

combater atos ilegais e lesivos ao patrimônio de entidades públicas, visando à proteção

do erário. A ampliação do objeto da ação popular, conferida pela Constituição de 1988,

não veio acompanhada de modificações no rito específico dessa demanda, razão pela

qual a doutrina especializada passou a defender que certas regras deveriam ser revistas

quando se tratar de ação popular ambiental, em especial a exigência de comprovação da

condição de eleitor.

Gregório Assagra de Almeida observa que a concepção de cidadão como sendo

cidadão-eleitor não é exigida pelo texto constitucional, que só faz menção à expressão

cidadão. Demais disso, a ação popular estaria contida nas garantias constitucionais

fundamentais, sendo incompatível com essa espécie qualquer interpretação restritiva, de

sorte que entende não ter sido recepcionado a exigência contida no art. 1º, § 3º, da Lei

nº 4.717/65, que determina a comprovação da qualidade de cidadão por meio do título

de eleitor, especialmente para a ação popular ambiental. 334

Nesse mesmo sentido também Celso Antônio Pacheco Fiorillo, para quem a

ação popular ambiental reclamaria uma interpretação contemporânea do conceito de

cidadão, uma vez que, sendo de todos os bens ambientais (art. 225, caput, CR/88), nada

mais lógico que não só o eleitor quite com a Justiça Eleitoral, mas todos os brasileiros e,

até mesmo, estrangeiros residentes no país pudessem ser rotulados cidadãos para fins de

propositura da ação popular ambiental. 335

Igualmente, Flávia Regina Ribeiro da Silva entende que o conceito de cidadão,

conforme consta da Constituição de 1988, não está restrito ao eleitor, havendo uma

ampla gama de pessoas legitimadas a defenderem os direitos tuteláveis em sede de ação

334

No que diz respeito à ação popular ambiental, encampa o posicionamento de Celso Antônio Fiorillo,

Marcelo Abelha Rodrigues e Rosa Maria de Andrade Nery, os quais defendem que a concepção de

cidadão, para efeito de legitimidade ativa, não poderia ser restrita apenas ao nacional que estivesse no

gozo de seus direitos políticos, pois a todos foi conferido o direito ao meio ambiente ecologicamente

equilibrado, disposto no art. 225, caput, da CR/88 (ALMEIDA, Gregório Assagra. Direito processual

coletivo brasileiro: um novo ramo do direito processual. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 403 e 422-

423). 335

FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Op. Cit. p. 718-719.

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140

popular ambiental. O conceito de cidadão seria mais amplo do que aquele que pretendeu

a Lei nº 4.717/65. 336

De fato, atualmente a própria Constituição autoriza a defesa de interesses

difusos de natureza diversa pela ação popular, nem sempre possíveis de ser reduzidos a

padrões monetários, ou até mesmo submetidos a imperativos de ordem política, sendo o

meio ambiente o exemplo mais evidente. O controle da representatividade adequada

pode permitir que, no caso concreto, a necessidade de comprovação da condição de

eleitor seja dispensada, se estiver em discussão uma situação jurídica não relacionada

necessariamente ao exercício de um direito cívico e o autor popular se mostre apto a

vigorosamente defendê-la em juízo.

A ideia de controle da representatividade adequada, portanto, pode ser

conjugada às razões já trazidas pela doutrina especializada do direito ambiental, mais

uma vez adequando-se o exercício da ação popular, à luz dos requisitos próprios do

processo coletivo.

336

SILVA, Flávia Regina Ribeiro da. Op. Cit. p. 278.

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CONCLUSÃO

A ação popular perpassou por diferentes períodos de conformação do poder

político e estatal, bem como por diferentes fases metodológicas do processo civil, sendo

possível identificar, em cada uma dessas etapas, acepções diversas para essa mesma

demanda. Em razão de substanciais mudanças no quanto se entende por participação

popular e controle da Administração Pública; bem como em face do desenvolvimento

de um efetivo sistema de tutela coletiva (com alguns parâmetros diversos do regime

clássico de tutela individual), mostra-se necessário, mais uma vez, uma releitura da ação

popular, sob esses novos imperativos categóricos. O presente trabalho pretendeu

contextualizar o estudo da ação popular em vista de tais grandes transformações, no

direito público e no direito coletivo, a fim de manter a relevância dessa ação, ameaçada

por vetustas interpretações sobre a matéria.

Já no primeiro capítulo, deixou-se assentado que ação popular é um gênero, a

qual comporta diversas espécies. Mais ainda, o próprio entendimento a respeito da ação

popular como gênero passou por modificações no tempo, porquanto as noções de “coisa

pública”, “cidadão”, “Estado”, “ação”, entre outros elementos fundantes, também

adquiriram novos significados no curso da formação histórica do direito nacional. Além

disso, a efetiva consagração da ação popular na tradição constitucional brasileira acabou

por sedimentar a aceitação desse instituto, pelo menos no plano teórico, após tentativas

de proscrevê-la do sistema. Atualmente, diversas hipóteses de ação popular encontram-

se descritas no ordenamento nacional.

Identificam-se essas diferentes modalidades de ação popular quando, ao sujeito

singular – cidadão –for conferido o poder de, efetivamente, exigir ou impor a satisfação

de uma situação material, que transcenda sua esfera de interesses, independente de

autorização ou impulso de outra autoridade, como o Ministério Público, ou a pessoa de

direito público interessada. Essas entidades poderiam até participar do processo, mas,na

ação popular, ao cidadão é conferido o poder de, por si só, exigir que determinada

situação material seja realizada. Logo, por definição, a ação popular se não confunde

com os requisitos formais exigidos para seu exercício na via específica.

A ação popular em sua acepção material – diversa do remédio jurisdicional

específico – foi detidamente explorada, ao se intentar traçar formas mais abrangentes de

controle da Administração Pública por essa espécie de demanda (capítulo 2).A ação

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popular, entendida como situação de direito material, possibilita não apenas se

vislumbrar possibilidades de tutela além do quanto expressamente descrito na Lei

4.717/65, mas ainda permite admitir o exercício dessa demanda por outras vias, como o

processo administrativo.

Como visto, a forma de se controlar a submissão do Estado ao direito não se

resume, necessariamente, às vias jurisdicionais. Ainda que caiba ao Judiciário o poder

de rever os atos administrativos de forma final,estabilizando relações, também é

possível o controle da atuação estatal por meio do processo administrativo, até mesmo

para diminuir as esferas de “imunidade do poder”, em que se mostraria mais dificultosa

a intervenção jurisdicional, como nos casos de decisões administrativas pautadas em

critérios discricionários e técnicos. A própria Constituição de 1988 respalda esse

entendimento, aoerigir o processo administrativo a um patamar de maior significância

(art. 5º, LV).

Logo, as eficácias de direito material podem ser postas para cumprimento tanto

pelas vias processuais jurisdicionais, como administrativas, uma vez que haja

fundamento para tanto na lei ou na Constituição. A partir dessa releitura da ação

popular, os deveres – positivos e negativos – que podem ser exigidos do Poder Público

(amplificados substancialmente com a nova ordem constitucional) ganham maiores

possibilidades de realização, intensificando-se a participação do cidadão no controle da

Administração Pública, por meio da ação popular.

Na derradeira parte da pesquisa (capítulo 3), contextualizou-se o estudo da

ação popular em vista do regime específico do processo coletivo, submetido a regras e

princípios próprios, que em parte divergem do sistema de tutela clássico, voltado para

litígios individuais. A forma como se desenvolveram e se utilizam as ações de classe

norte-americanas (class action) também foi objeto de análise, em razão da influência

que esse sistema ainda exerce sobre os estudos de processo coletivo, também para fins

de comparação com o tratamento dado no Brasil à defesa em juízo dos direitos e

interesses transindividuais.

O desenvolvimento e aprimoramento do processo coletivo no Brasil permitiu

identificar-se a ação popular como uma das ações típicas desse contexto. Mesmo com a

ampliação do quadro legal de medidas específicas e a formação de um efetivo

microssistema, a ação popular ainda ocupa posição de destaque, sendo tanto receptora

de normas, como também fonte de emanação de comandos para as demais ações

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coletivas, em razão de ser característicodo microssistema da tutela coletiva o caráter

intercambiante de suas normas.

Portanto, o rito específico da ação popular, disposto na Lei nº 4.717/65, tanto

pode ser complementado com normas provenientes de outros diplomas legais do

microssistema, como pode também oferecer soluções para as demais lacunas

encontradas no regramento das demais ações coletivas. Essainteração entre as normas,

contudo, esbarra em limitações substancias, aferidas em casos concretos, circunstância

ainda pendente de maior esclarecimento na teoria do microssistema da tutela coletiva.

Por fim, destacou-se que, entre as inúmeras especificidades da tutela coletiva,

os condicionantes para exercício da ação também se submetem a regime especial. A

ação popular é voltada para proteção de situações jurídicas de titularidade difusa,

subsistindo o risco de um possível mau uso dessa ação vincular toda coletividade, razão

pela qual se mostra premente adaptar ao seu rito a possibilidade de controle judicial da

representatividade adequada, construção própria do sistema de class action.

Afinal, o trabalho de fomentar uma utilização mais efetiva da ação popular,

com ampliadas possibilidades de tutela, requer que também sejam consideradas formas

de se controlar adequadamente os sujeitos habilitados a promover essa demanda, para

que esta não seja desvirtuada de seus objetivos maiores.

Admitindo-se a possibilidade de controle da representatividade adequada na

ação popular, mostra-se possível não apenas afastar o postulante mal intencionado, ou

desidioso, mas ainda chamar ao processo os demais legitimados, a fim de complementar

a vigorosa defesa técnica do direito.

Ademais, requisitos formais – como a comprovação da qualidade de eleitor –

poderiam ser dispensados, quando no caso não representassem empecilho para a

adequada representação da classe, ou mesmo quando o caráter específico do interesse

protegido não exigisse tamanha cautela para sua defesa, como no caso do meio-

ambiente.

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