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REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO – UFPR | CURITIBA, VOL. 62, N. 3, SET./DEZ. 2017 | P. 187-220
CONSTITUIÇÃO, CONSTITUCIONALISMO E EFETIVIDADE NA CHINA:
ILAÇÕES ENTRE CULTURA TRADICIONAL, PRÁXIS POLÍTICA E
DISCURSO CONSTITUCIONALISTA NO CONTEXTO CHINÊS
CONSTITUTION, CONSTITUTIONALISM, AND EFFECTIVENESS IN
CHINA: ILLATIONS ABOUT TRADITIONAL CULTURE, POLITICAL
PRACTICES, AND CONSTITUTIONALIST SPEECH IN THE CHINESE
CONTEXT
Diva Julia Sousa da Cunha Safe Coelho
Universitat de Barcelona – UB – (Barcelona, Espanha)
Saulo de Oliveira Pinto Coelho
Universidade Federal de Goiás – UFG – (Goiânia, GO, Brasil)
Ricardo Martins Spindola Diniz
Universidade de Brasília – UnB – (Brasília, DF, Brasil)
Recebimento: 15 jun. 2017
Aceitação: 21 set. 2017
Como citar este artigo / How to cite this article (informe a data atual de acesso / inform the current date of access):
COELHO, Diva Julia Sousa da Cunha Safe; COELHO, Saulo de Oliveira Pinto; DINIZ, Ricardo Martins Spindola.
Constituição, constitucionalismo e efetividade na China: ilações entre cultura tradicional, práxis política e discurso
constitucionalista no contexto chinês. Revista da Faculdade de Direito UFPR, Curitiba, PR, Brasil, v. 62, n. 3, p. 187-
220, set./dez. 2017. ISSN 2236-7284. Disponível em: <http://revistas.ufpr.br/direito/article/view/53275>. Acesso em: 21
dez. 2017. DOI: http://dx.doi.org/10.5380/rfdufpr.v62i3.53275.
RESUMO
O presente artigo constrói uma comparação entre o discurso nomológico oficial da Constituição
chinesa vigente e as diferentes abordagens sobre o papel da Constituição e dos direitos humano-
fundamentais desenvolvidas pelos constitucionalistas chineses. Parte, como principal estratégia
metodológica, da configuração de uma amostragem de obras construídas na literatura jurídica chinesa
sobre a Constituição e os direitos humano-fundamentais naquele país. Ademais, incrementa-se a
análise a partir da reflexão sobre a influência das diferentes tradições políticas e culturais chinesas
nas igualmente diferentes perspectivas do constitucionalismo chinês contemporâneo. Como
principais resultados verifica-se não só a existência de posições conflitantes na cultura constitucional
chinesa como a presença majoritária de uma abordagem pragmática e utilitarista do discurso dos
direitos humano-fundamentais e de uma primazia tanto das dinâmicas políticas, como econômicas,
sobre as balizas constitucionais, que ainda possuem na China pouca capacidade vinculativa ou
dirigente.
PALAVRAS-CHAVE
Constitucionalismo chinês. Direitos humano-fundamentais. Direito comparado. Cultura
constitucional. China.
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ABSTRACT
The present work constructs a comparison between the official nomological discourse of the Chinese
Constitution in force and the different approaches about the meaning of the Constitution and of
fundamental-human rights developed by the Chinese constitutional scholars. Its main methodological
strategy is to configure a sampling from the data collected from the Chinese legal literature related to
its constitutional law and fundamental-human rights. Moreover, the analysis is incremented through
a reflection regarding the influence of the different Chinese political and cultural traditions in the
equally distinct perspectives of its contemporary constitutionalism. As its main results it is verified
not only the existence of conflicting perspectives in Chinese constitutional culture, but a majoritarian
presence of pragmatical and utilitarian approaches to the discourse of fundamental-human rights as
well, and also a primacy of political and economic dynamics in comparison to the constitutional
guideposts, which still have a low binding or guiding power.
KEYWORDS
Chinese constitutionalism. Fundamental-human rights. Comparative law. Constitutional culture.
China.
INTRODUÇÃO
O presente artigo tem por objeto a construção de um diagnóstico sobre o lugar e o alcance
do discurso sobre direitos humano-fundamentais na cultura constitucional chinesa, e, por conseguinte,
sobre o lugar da própria cultura constitucional nas relações sociopolíticas da China. O enfoque
específico da análise se volta para a avaliação dos desencontros entre a atual textualidade
constitucional e a deficitária efetividade constitucional no país. Como técnica e metodologia de
abordagem, a pesquisa constrói uma comparação entre os planos da normatividade tradicional
chinesa, da textualidade constitucional atual, e da literatura contemporânea vinculada ao que se pode
considerar um discurso acadêmico-constitucionalista na China. Da comparação entre tradição, norma
e constitucionalismo é possível inferir contradições entre o discurso oficial e as práticas reais
existentes no constitucionalismo chinês contemporâneo.
Tal qual será detalhado no desenvolvimento desse artigo, as análises sobre a estrutura
jurídica e política da China contemporânea nos planos tradicional, nomológico e do discurso
intelectual permitiu-nos promover uma reflexão sobre as efetivas práticas chinesas relativas aos
direitos humano-fundamentais. Nosso foco foi a busca por entender a real dimensão dos Direitos
Fundamentais na dinâmica social, política e jurídica chinesa, com vistas a explicitar as diferenças
(aliás, sempre existentes em qualquer país) entre a constitucionalidade formal e a constitucionalidade
real (cf. CUNHA, 2009) na China, especialmente no que tange à efetiva capacidade dos Direitos
Fundamentais caros à dignidade humana, para vincular e nortear o exercício do poder naquele país
(cf. SALGADO, 2006).
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A principal ferramenta metodológica utilizada consistiu na formação de uma amostragem de
discursos intelectuais sobre o fenômeno constitucional desenvolvidos na própria China e por autores
chineses. Da amostra de diversos constitucionalistas chineses, com diferentes perspectivas, foi
possível construir uma aproximação diatópica do debate atual sobre direitos humano-fundamentais
no constitucionalismo chinês.
Tomou-se em consideração aqui a percepção de que as diferenças que caracterizam a
normatividade chinesa em relação à normatividade ocidental são notáveis. Um exemplo disso é o fato
de a normatividade ocidental ser justificada por um critério de ordem exterior ao mundo, enquanto a
normatividade chinesa se apresenta numa concepção materialista, na qual “a ordem do mundo
encontra-se na espontaneidade inerente da sua efetivação” (RAMOS, 2010, p. 260).
Nossa reflexão, assim, partiu, enquanto referencial teórico básico, da abordagem jus-
comparativista de Eric Agostini, notadamente quanto à sua exposição dos processos de
“ocidentalização jurídica” consistentes nos movimentos de “migração jurídica” operados pelas
experiências de importação e exportação do direito ocidental para culturas não ocidentais, que se
deram principalmente na modernidade (AGOSTINI, [198-?]). Nesses processos, Agostini trata de
explicitar que a realocação de modelos jurídicos ocidentais acoplados em bases culturais não
ocidentais costuma provocar uma vivência e uma experiência efetiva bastante diferentes desses
mesmos modelos que, ainda que sejam formalmente símiles, se tornam materialmente outros.
Dessa forma, uma de nossas hipóteses de trabalho é de que no contexto chinês é possível
constatar que lá ocorre um dos fenômenos de “distorção do modelo jurídico ocidental” apontados por
Agostini, qual seja, a tratativa pragmática e utilitarista das estruturas fundamentais do direito
ocidental contemporâneo (AGOSTINI, [198-?], p. 128 et seq.). No caso chinês pode-se dizer que
existe um “pragmatismo jurídico” e um “utilitarismo jurídico” na tratativa de duas estruturas que, no
ocidente, são essenciais ao modelo jurídico atual: a Constituição e os Direitos Fundamentais.
Portanto, se somamos às considerações de Agostini as análises que apresentamos nesse
artigo sobre o direito chinês, verificamos como resultado da pesquisa que os Direitos Fundamentais
não cumprem na China (ou pelo menos não cumprem em um sentido forte) o mesmo papel finalístico
e principiológico que cumprem no ocidente. No ocidente, a função dos Direitos Fundamentais é a de
mediar numa linguagem objetiva o acordo fundamental sobre quais são os fins últimos, ou seja, qual
é o telos do poder político para que possa ser considerado legítimo (SALGADO, 1998). Essa função
mediadora capital que possuem no ocidente não se apresenta com o mesmo peso e realidade no
contexto do Estado chinês.
Ademais, também foi possível verificar, como se verá no desenvolvimento do trabalho, que
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na China os Direitos Fundamentais, ainda que plasmados na atual Constituição, não constituem uma
substancialidade de direitos oponíveis a todo e qualquer ato de poder político. Portanto, os Direitos
Fundamentais na China não atuam como limite último de conformação dos processos de tomada de
decisão no Estado, na mesma medida e com o mesmo peso em que atuam nos países ocidentais (cf.
COELHO, 2012, p. 289-310). Não queremos com isso dizer que nos países ocidentais tais direitos
não sejam desrespeitados ou não tutelados nos processos de tomada de decisão política. Mas, dentro
dos processos institucionais de tomada de decisão os Direitos Fundamentais são critério capital de
controle de validade de todo e qualquer ato jurídico. Logo, qualquer desrespeito ou distorção no
atendimento de tais direitos só pode ser juridicamente validado por meio de um discurso igualmente
baseado em tais direitos, ainda que construído falaciosamente. O que queremos dizer é que, pelo
menos no plano institucional, os Direitos Fundamentais possuem “supremacia constitucional” na
hierarquia jurídica, no sentido explicado por Luís Roberto Barroso (1996).
Por outro lado, na China a própria institucionalidade política trata tanto a Constituição como
os Direitos Fundamentais não como o fim ultimo do Estado, mas como um instrumento de gestão do
interesse público da sociedade chinesa, ainda que se trate de importantes instrumentos de gestão.
Logo, na China os Direitos Fundamentais estão em função do interesse público (traduzido na
linguagem constitucional chinesa como a ditadura democrático-popular da classe operária e
consubstanciado em todas as demais chaves semânticas ligadas a essa ideia de subordinação dos
direitos ao interesse maior de prevalência do sistema socialista de Estado1), quando, em um Estado
Constitucional de Direitos Fundamentais, é o interesse público que deve ser mensurado em função da
conformação dos diferentes direitos fundamentais em cada situação (cf. JUSTEN FILHO, 1999).
1 A FORMAÇÃO DA CULTURA CONSTITUCIONAL CHINESA
A história da normatividade chinesa é comumente dividida em três etapas, quais sejam: a
etapa do devenir da normatividade tradicional chinesa durante as Dinastias Chinesas (771 a.C. – 1911
d.C.); a etapa da peculiar modernização chinesa de matriz precipuamente socialista (1911-1978); e a
etapa do direito chinês atual (1978-atual); buscando em cada qual suas contribuições para a
1 São exemplos dessa característica da constitucionalidade chinesa as seguintes passagens da Constituição: no artigo 15
dispõe o seguinte: “São proibidas quaisquer perturbações do funcionamento regular da economia social ou atentados ao
plano económico estatal, por parte de qualquer organização ou indivíduo.” Já o artigo 51 dispõe que “No exercício das
suas liberdades e dos seus direitos os cidadãos da República Popular da China não podem atentar contra os interesses do
Estado, da sociedade e da colectividade ou contra as legítimas liberdades e direitos dos outros cidadãos”.
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construção da prática da Dignidade na normatividade chinesa como um todo, evidentemente
suprassumidas no ordenamento chinês atual.
A modernização da normatividade chinesa começa tão somente ao final do período dinástico.
Assim sendo, tem-se o desenvolvimento da normatividade tradicional, com a formação e interação
de suas duas bases, o confucionismo e o legalismo. Tal processualidade implica um decurso temporal
que vai desde o passado mais remoto até o ano de 1911. Nesse ínterim, foram as dinastias que
comandaram a China, com as diferentes perspectivas do Confucionismo e legalismo, e as respectivas
noções de Li e Fa, confrontando-se (e, por vezes, complementando-se) na formação e constituição da
base da normatividade tradicional.
O Li se interpreta como a ordem moral derivada da natureza intrínseca do homem,
compreendendo-se, a partir dele, que a conciliação é a principal via de solução de conflitos. Na ordem
moral presente no Confucionismo, cada indivíduo tinha seu papel determinado, seus deveres já lhes
sendo atribuídos de acordo com sua posição e importância na sociedade. Ou seja, a cada um se atribuía
deveres próprios, não havendo sentido em se falar em igualdade na liberdade, em moldes ocidentais.
Cada indivíduo já tinha como predeterminado seus deveres desde seu nascimento, tomando-se em
consideração a família, a progenitura e o sexo. Como frisa Ramos, qualquer autodeterminação ou
autonomia representaria uma obstrução ao curso natural, tendo-se o respeito devido à conformação e
integração ao processo espontâneo da natureza, enquanto um dos mais caros compromissos
(RAMOS, 2010).
Para a corrente de pensamento confucionista, aplicar normas gerais e abstratas não era
suficiente para atender as diversas especificidades de cada caso em concreto, inclusive atender os
interessados de modo a fazer jus a seu status social. Ademais, levar a juízo um caso poderia ser
considerado desonroso, pois se constataria que a tentativa de conciliação fora frustrada, tendo em
vista que, para Confúcio, a conciliação deve ser o meio mais eficaz para manter a paz social.
O Fa, por sua vez, se traduz como o modelo, régua, ou compasso, e deve ser entendido como
símbolo fundamental desta escola de pensamento de direito chinês, a partir da qual, inclusive, o dito
sintagma passou a significar propriamente lei (GRANET, 1934). Para a escola legalista era a lei,
portanto, a única forma de buscar a manutenção da ordem social, o que implicaria a submissão da
população (e do próprio imperador). Posição de todo coerente com as motivações do surgimento da
corrente legalista, originalmente contrária ao privilégio nobiliárquico ou funcional, afirmando, em
um primeiro momento, a necessidade de se estabelecer uma igualdade perante as leis, especialmente
por entender provir daí a maior fonte de legitimação do poder político (INCHAURRAGA, 2015).
Para além disso, segundo Ramos, os legalistas defendiam a claridade, inteligibilidade,
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comunicabilidade ao povo e uniformidade na aplicação normativa, com vistas à manutenção
satisfatória da ordem e da unidade do império (RAMOS, 2010).
Não obstante suas diferenças, é possível, ainda conforme Marcelo Maciel Ramos, apreender
um centro comum a esses três traços constituidores da autorreflexão da normatividade tradicional
chinesa, qual seja, aquilo que o autor denomina por “princípio da harmonia imanente”. Tal princípio,
profundamente entremeado na civilização chinesa, afastou-a significativamente, durante parte
considerável de sua história, de uma normatividade propriamente jurídica.
Uma das consequências disso seria o desencontro de qualquer apoio nos fundamentos
originais do pensamento chinês para os direitos humanos. A partir de tal perspectiva, qualquer
reivindicação implicaria a perda da harmonia espontânea (RAMOS, 2010). Ocorre que a exigibilidade
(reivindicabilidade) constitui um elemento estrutural de um direito subjetivo numa cultura jurídica tal
como configurada no ocidente (COELHO, 2010). E, em certa medida, semelhante ilação paradoxal
não deixa de ser construída pelas autoridades chinesas, que dela se valem para fazer frente à
postulação de direitos humanos diante da denúncia de suas violações (JULLIEN, 2009).
No final da Dinastia Qing o jurista Shen Jiaben (1840-1913), vendo o êxito das codificações
japonesas inspiradas nas codificações alemãs, liderou, sob o comando imperial, várias reformas, entre
elas estando presentes a feitura de códigos modernos. Existia então um projeto de ordenação que se
assemelhava ao Código Civil Alemão (BGB). No entanto, “a queda do Império e as convulsões
subsequentes levaram a que, apenas no ano de 1929, fosse aprovado um primeiro Código Civil chinês:
também modelado sobre o BGB, embora com abertura a soluções tradicionais chinesas”
(CORDEIRO, 2010).
Para além das codificações, no mesmo contexto, intensa produção nomológica e pesquisa
jurídica foram dedicadas às questões relativas ao estabelecimento do caminho que levaria do Império
a um governo constitucional, destacando-se, na leitura de Jianfu Chen (2008), os trabalhos das várias
comissões estendidos de 1905 a 1907, envolvendo uma série de esboços e anteprojetos de textos
constitucionais, bem como, e inclusive, visitas ao Japão, Estados Unidos e Europa, com vistas à
identificação do melhor modelo para se efetuar a transição.
Politicamente, é possível avaliar que todos esses esforços acabaram sendo deveras tardios.
Em 1911 dá-se o fim da Dinastia Qing. Contudo, a República, estabelecida pelos revolucionários
liderados por Sun Yatsen em 1912, logo se viu desafiada pelos dilemas jurídicos comuns a todas as
revoluções, o de lidar com a força do passado imediatamente anterior. Assim, ao menos de um ponto
de vista jurídico, os alicerces lançados pela última corte imperial permaneceriam inicialmente, com
o governo republicano optando pela manutenção de várias leis imperiais, reformando-as ou
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rejeitando-as apenas naquilo que contrariassem os ideais republicanos, e pela continuidade das
reformas (CHEN, 2008).
O tema Nacionalismo (Minzu) passa a ter notoriedade no período republicano, como um dos
chamados Três Princípios do Povo, de Sun Yatsen, juntamente à Democracia (Minquan) e à
Subsistência do Povo (Minsheng). A doutrina nacionalista se preocupava basicamente com a
reconstrução da China, pautada na manutenção de sua unificação e de seu fortalecimento perante
outros países (CHEN, 2008). Tais preocupações, especificamente quanto à unificação, são
perceptíveis na legislação infraconstitucional, principalmente na Lei de Cidadania, na qual se destaca
a distinção entre cidadania e nacionalidade – “[…] A la ciudadanía se le conferían derechos y deberes
cívicos y a la nacionalidad se le ‘identificaba con la estirpe racial del individuo’” (INCHAURRAGA,
2015, p. 122) – que seria muito importante no processo de coesão nacional, tendo em vista ser a China
composta por mais de cinquenta etnias diferentes.
Ao final do período republicano, contudo, tais princípios se verão paulatinamente taxados
como pertencentes à “escola ocidental’, cada vez mais confrontada e contestada pela “escola russa”,
em concomitância ao aumento da influência da Rússia soviética na China. Um marco jurídica e
politicamente importante desse período foi a “Constituição Provisória” que entrou em vigor em 1931
“para el período de Tutela Política en Nanking por el Gobierno del Kuomintang”, a qual declarava a
assimilação, por parte da China, do apelidado “caminho de Moscou” (CHEN, 2008).
Em outubro de 1949 a China aderiu ao Dogma Marxista-Leninista, tal como a URSS. No
mesmo ano, promoveu-se a implementação do “Programa Comum”, que aboliu todas as leis, decretos
e tribunais existentes. Internacionalmente, essa aderência teve repercussões tais como a assinatura do
Tratado de Amizade Chinês-Soviético, em 14 de fevereiro de 1950, muito mais influenciado pelas
suas respectivas posições críticas a respeito do Japão e dos Estados Unidos da América do que por
um objetivo comum de construção de um internacionalismo proletário (RIOS, 2005). A esse respeito,
tal como aponta Jizeng Fan, “as elites dirigentes chinesas favoreceram o modelo constitucional
soviético. A educação jurídica da China estava completamente orientada pela ideologia soviética”.
Consequentemente, “não poderíamos nos surpreender ao encontrar uma série de disposições no
código constitucional da China semelhantes às encontradas nos textos constitucionais soviéticos”
(FAN, 2015, p. 57).
Não obstante, malgrado as influências soviéticas, Fernando Mezzetti a interpreta como um
sinal sutil do impacto em solo chinês de mudanças ocorridas em termos globais em meio aos diversos
países socialistas. Apesar de aspectos decorativos, como no caso do papel do chefe de Estado, a
Constituição, ao instituir regras de organização do Estado e da vida associativa, opunha-se às
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campanhas políticas desregradas de Mao Tsé-Tung. Ainda que se tratasse de “regras de jogo
socialistas”, por serem escritas teriam valor erga omnes, “em teoria superiores ao indivíduo e ao líder”
(MEZETTI, 2000, p. 49).
Em meio às primeiras fissuras do monólito chinês, Mao, inadaptável “às características mais
prosaicas da construção de um Estado moderno, com toda a complexidade de seus problemas
econômicos e administrativos”, viu-se crescentemente afastado do centro do poder, mediante a
introdução de cada vez mais limitações. Sua resposta veio na campanha das “Cem Flores”, um misto
de armadilha e manobra canhestra. Segundo Mezzetti, as “Cem Flores” “constituíam um convite aos
não comunistas, aos intelectuais, a exprimir abertamente críticas ao Partido Comunista” (MEZETTI,
2000, p. 50-55), convite que acabou servindo à identificação dos adversários do regime,
autodenunciados para a repressão que se seguiu.
Por conseguinte, durante a China Maoísta, nos anos de 1949 a 1975, a base normativa que
se afirmou não foi a do modelo jurídico formal, mas a de um modelo comportamental institucional
baseado na burocracia a serviço do comandante, que foi moldando a estrutura social no decorrer do
tempo (INCHAURRAGA, 2015, p. 165). O que implicou, em suma, a derrogação de toda a produção
jurídica anterior, sobrevindo para substituí-la uma série de instruções outorgadas pelo próprio Mao.
Essas cartilhas, assim consideradas e apelidadas por muitos estudiosos, continham regramentos a
respeito de como as pessoas deveriam se comportar e frases que eram consideradas como dogmas e
imperativas.
Quando Mao faleceu, em 9 de setembro de 1976, Deng Xiaoping, que com ele participara
da Longa Marcha e da guerra contra os japoneses, emergiu vitorioso. Muito mais que sucessor,
tratando-se, de fato, de seu usurpador e carrasco, Deng Xiaoping, com sua ênfase em resultados e
suas amargas experiências políticas, acabaria por reintroduzir, na China, o valor positivo do Direito
para a construção de um governo socialista, concomitantemente imbuído de uma noção de
democracia. A partir desses pressupostos, não havendo dúvidas a respeito da necessidade de um
sistema jurídico efetivo e vinculante, de 1978 em diante a China mudará radicalmente.
Assim, no final da década de 1970 houve na China uma necessidade de reorientação
ideológica, deixando de lado o modelo socialista soviético-maoísta para ser o início de “un período
de creatividad, de libertación intelectual y de reconstrucción, impulsado por el cuestionamiento
crítico de la ortodoxia y por un nuevo interés por otras tradiciones intelectuales no marxistas”
(INCHAURRAGA, 2015, p. 204), ainda que mantendo-se a característica tradicional do poder
político da China, de busca por um forte controle social e ideológico.
Para Deng Xiaoping era mister promover a modernização socialista, o que se daria pela
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política de “duas mãos”: em uma a economia, que deveria ser desenvolvida; em outra, o sistema
jurídico, que carecia de fortalecimento (CHEN, 2004). Logo, era necessário que o direito passasse
por revisões, ampliações e codificações, de modo a acompanhar essas transformações. Nesse sentido,
segundo González, nos anos de 1978 a 1989 a reforma, a reestruturação ou até mesmo o que
poderíamos chamar de “a utilidade do direito chinês” foram propostas para, de fato e definitivamente,
mudar a prática jurídica do período maoísta, de modo a trazer ao país o desenvolvimento nacional
(INCHAURRAGA, 2015, p. 206).
2 O DIREITO CONSTITUCIONAL CONTEMPORÂNEO DA CHINA
2.1 A CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA POPULAR DA CHINA DE 1982 E SUAS REVISÕES
A atual Constituição Chinesa (CRPC) é a quarta Constituição após a Revolução. Suas
principais ideias advieram das reformas empreendidas por Deng Xiaoping (JIHONG, 2015, p. 5). O
texto de 1982 sofreu significativas reformas revisionais, nos anos de 1988, 1993, 1999 e 2004,
visando planificar a compatibilização do modelo socialista à economia de mercado. Os princípios
vetores da CRPC são: i) Ditadura Popular Democrática como forma de governo; ii) A liderança do
Partido Comunista; iii) Aderência à teoria Marxista-Leninista, ao Maoísmo e ao pensamento de Deng
Xiaoping e; iv) Reforma e abertura ao exterior (MAZZA, 2006, p. 17 et seq.).
O modelo trazido pela CRPC ganha síntese na máxima comumente usada pelos chineses:
um país, dois sistemas. Por um lado, existe uma grande autonomia administrativa interna, como em
Hong Kong e Macao. Por outro, o estabelecimento de um ordenamento jurídico nacional pensado
para compatibilizar (harmonizar) capitalismo e socialismo.
O preâmbulo do texto constitucional dispõe o seguinte:
A presente Constituição consolida as conquistas do povo chinês de todas as nacionalidades e
define o sistema e as tarefas básicas do Estado, sob forma jurídica; é a lei fundamental do
Estado e reveste-se da suprema autoridade jurídica. O povo de todas as nacionalidades, todos
os órgãos de Estado, as Forças Armadas, todos os partidos políticos e organizações públicas
e todas as empresas e unidades produtivas do país devem observar a Constituição como
norma básica do seu comportamento, têm a obrigação de defender a dignidade da
Constituição e devem assegurar a sua execução. (REPÚBLICA POPULAR DA CHINA,
2000, p. 690).
No plano do discurso nomológico oficial, plasmado no texto constitucional (cf.
FERNANDEZ PEREZ, 1978), podemos verificar uma aparente valorização da importância da
Constituição para o direito chinês, que estaria revestida de uma “suprema autoridade jurídica”. É
interessante notar que há no texto uma ênfase muito grande em qualificar de “jurídica” a autoridade
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da Constituição. Talvez, tal escolha textual demarca os limites da própria Constituição na cultura
chinesa. Provavelmente incapaz de ser o norte fundamental e a autoridade máxima no plano político,
cultural, econômico e social, sua função é ser a referência jurídica, não mais que isso. A questão,
então, é saber se a dimensão jurídica possui capacidade de impor limites à dinâmica político-partidária
chinesa, cujo funcionamento, historicamente, jamais se submeteu à ideia de Constituição e de Direitos
Fundamentais. Ao contrário do que se planteia numa tradição constitucional tipicamente ocidental,
em que o discurso constitucional se propõe como máxima autoridade também no plano político, nossa
hipótese de análise é a de que, na cultura constitucional chinesa, a constituição está a serviço do
político, sem a capacidade de limitar da dinâmica política.
Por outro lado, o texto do artigo quinto da Constituição chinesa cumpre formalmente com
os requisitos de superioridade hierárquica da norma constitucional, nos moldes da expectativa
ocidental:
Artigo 5.º O Estado defende a uniformidade e a dignidade do sistema jurídico socialista.
Nenhuma lei ou regra da administração central ou local poderá infringir a Constituição.
Todos os órgãos do Estado, as forças armadas, todos os partidos políticos e organizações
públicas e todas as empresas e estabelecimentos devem obedecer à Constituição e à lei. Todos
os actos ofensivos da Constituição ou da lei devem ser reapreciados. Nenhuma organização
ou indivíduo pode gozar do privilégio de estar acima da Constituição e da lei. (REPÚBLICA
POPULAR DA CHINA, 2000, p. 691).
2.2 A ESTRUTURA DAS FONTES DO DIREITO E DA DIVISÃO DE PODERES NO
CONSTITUCIONALISMO CHINÊS CONTEMPORÂNEO
O direito chinês possui importantes fontes e “embora o pensamento de Confúcio não seja
fonte de Direito”, o confucionismo se soma (cf. RAMOS; ROCHA, 2015), enquanto normatividade
tradicional difusa, ao complexo de referentes desse Direito, tendo certamente influenciado o atual
estado de coisas do direito chinês (VICENTE, 2012, p. 449).
Em primeiro lugar, teríamos a Constituição, seguida das diferentes leis ordinárias e dos
regulamentos administrativos, que nas últimas décadas aumentaram consideravelmente em
quantidade, deixando clara a intensão de cada vez mais tornar codificado o ordenamento jurídico
chinês. Incluímos também como fontes os costumes (xi sú), a jurisprudência e o direito internacional
(BENITEZ-SHAFER, 2007, p. 11).
Com efeito, todo este arcabouço de normas, regulamentos e informes administrativos acaba
por gerar controvérsias e disparidades, no complexo normativo produzido pelos entes federativos
(CAICEDO; SANTIVÁNEZ, 2007, p. 118-119). Isso somente se estabiliza pela presença incomum
do Partido Comunista chinês no processo de organização das fontes.
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Vale ressaltar que alguns “usos constitucionais” adquirem grande importância para os
trâmites constitucional e legislativo na China. Como bem destaca Moura Vicente (2012, p. 461):
“Entre eles se avulta o de que as revisões constitucionais e as principais medidas legislativas devem
ser aprovadas pelo Comité Central do Partido Comunista antes de serem agendadas no Congresso
Nacional Popular”. Tal uso constitucional confirma em grande medida a ideia de que na cultura
constitucional chinesa a Constituição não funciona como referente determinante das possibilidades-
de-ser da política, mas é esta que determina as possibilidades-de-ser da Constituição, num jogo, muito
próprio à cultura chinesa, em que o respeito à Constituição é harmonizado às diretrizes políticas por
meio de estratégias como o uso da prévia aprovação do Partido Comunista, para que a dimensão da
política não precise impor-se conflitivamente à Constituição.
Explica Jianfu Chen (2008) que a Constituição chinesa estabelece um sistema em que, na
prática, a produção jurídico-estatal se dá em um modelo composto por autoridades posicionadas em
múltiplos níveis e dimensões, em que o Conselho Estatal (com forte presença do Partido) e as
autoridades locais são ao menos tão importantes quanto o Congresso Nacional do Povo2.
No modelo da atual CRPC, muitos problemas de consistência e integridade começaram a
surgir, sem contar a aura de segredo e mistério então característica ao processo legislativo.
Consequentemente, aponta Jianfu Chen, já no começo dos anos 90, acadêmicos e oficiais sugeriam a
adoção de uma lei sobre leis (lifafa) como solução para essa problemática, o que veio a ser feito 10
anos depois (CHEN, 2008). De imediato, e em consonância com a Constituição de 1982, nela se
classificam os documentos jurídicos em leis, regulações administrativas, regulações locais,
regulações autônomas, regras departamentais e regras de governo local. Não obstante a
complexidade, existe um consenso geral em meio à doutrina de que o sistema jurídico chinês se divide
em três níveis: primário (leis nacionais, falü), secundário (regulações administrativas nacionais,
xingzheng faguí) e terciário (regulações locais, difangxing fagut).
Quanto ao primeiro nível, ao topo da hierarquia ter-se-ia a Constituição, seguida das leis
basilares (jiben falü). Logo abaixo se têm as “outras leis” (qita falü), promulgadas pelo Comitê
Permanente, as quais teriam, supostamente, efeitos mais setoriais do que as leis basilares. Contudo,
assevera Jianfu Chen (2008), na prática a distinção entre o que seriam leis basilares e quais seriam as
demais não é tão clara, com a atuação constante do Comitê Permanente (responsável por estas) em
áreas e temas que facilmente seriam interpretados como “fundamentais”.
2 A título de exemplo, segundo Chen, entre 1979 e 2004 foram promulgadas 727 leis em âmbito nacional, 3.809 regulações
administrativas, 51.554 regras departamentais (equivalentes a portarias, decretos, resoluções, etc.), 91.334 regras locais e
realizadas 2.889 interpretações judiciais.
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Pela expressão “regulações administrativas”, perfazendo a totalidade do segundo nível
nomológico chinês, compreendem-se todas as medidas, regras, regulações, ordens e decretos
administrativos emitidos pelo Conselho de Estado. Para além do expressamente delimitado por meio
do artigo 89 da CRPC, a lei reguladora estabelece a competência do Conselho de Estado para editar
normativas em matérias de desenvolvimento econômico e social, educação, ciência, cultura, saúde,
planejamento familiar, administração da justiça, segurança pública, direito internacional, financeiro,
trabalhista, urbano e agrário, entre outros. Ademais, tal escopo se encontra em constante extensão,
em razão das rotineiras delegações por parte do Congresso Nacional do Povo e de seu Comitê
Permanente (embasadas no artigo 89 (18) da CRPC), tornando-o, de fato, nas palavras de Jianfu Chen
(2008, p. 183), “a instituição nomogênica mais poderosa na China”.
O envolvimento e a autoridade do Partido Comunista chinês quanto à reprodução do sistema
jurídico é questão determinante (cf. SULI, 2007, p. 535). Sabe-se que o Partido possui um comitê
político-jurídico que exerce controle direto sobre todas as principais questões jurídicas nacionais,
inclusive no que diz respeito à produção legal. Mais ainda, todas as entidades governamentais
possuem, em sua estrutura organizacional, comitês partidários.
Segundo Shigong Jiang (2010), a verdadeira “norma fundamental” da China, alicerce de
todas as suas instituições, mesmo antes da Constituição de 1954, é a liderança do Partido Comunista
chinês. Convenção ou parte da Constituição não escrita da China, fato é que o Partido tem total
controle sobre qualquer revisão constitucional (em que pese constar no texto constitucional que o
poder de interpretar a Constituição cabe ao Comitê Permanente do Congresso Nacional, conforme o
artigo 67 (1) da CRPC), bem como de toda e qualquer lei considerada importante. Antes de chegarem
ao Congresso Nacional, é uma questão de princípio que as questões mais importantes relacionadas à
produção legislativa sejam aprovadas pelo Comitê Central do Partido.
Para Jianfu Chen (2008), tal princípio, se estritamente aplicado, transformaria o Comitê
Central na legislatura de fato, enquanto ao Congresso Nacional e seu Comitê Permanente restaria o
papel de uma legislatura de direito. Contudo, pesquisas realizadas por Chen demonstram que apesar
da forte influência real do Partido, começaram já a aparecer espaços de determinação jurídica
institucionalmente autônomos (CHEN, 2008), ainda que sejam espaços de autonomia em planos
menos relevantes (e, por isso mesmo, permitidos pelo Partido).
Se se aceita a interpretação de que a liderança partidária é a norma fundamental da República
Popular da China, a prática judicial, estendida desde à Suprema Corte até as cortes inferiores, de se
evitar por completo qualquer referência ao texto constitucional (ZHANG, 2010) – seja como
fundamento para decisões, ponto de inflexão, ou argumento para a judicialização de determinado
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valor – não parece de todo incompreensível. Essa é uma caraterística realmente marcante da produção
jurisdicional chinesa. O que, contudo, não deixa de ser problemático, especialmente se analisado no
horizonte maior da ausência de quaisquer mecanismos consolidados de controle de
constitucionalidade – judicial ou não (ZHANG, 2010).
Como anteriormente pontuado, comitês partidários se localizam em toda a estrutura estatal,
perfazendo os três poderes formal e constitucionalmente declarados. Especialmente no que diz
respeito ao judiciário, essa interferência, em geral resistida por parte tanto dos tribunais como das
procuradorias, se dá, segundo Suli (2007), por meio desde a determinação da decisão em um dado
litígio judicial à simples emissão de uma opinião (pishi) em resposta a alguma questão social polêmica
e judicializada3.
Quanto ao sistema de organização territorial, o direito constitucional chinês alberga aquilo
que ali se convencionou chamar de princípio do centralismo democrático, o que representa, segundo
Caicedo e Santivánez (2007, p. 117-118), um maior nível de independência e autodeterminação dos
entes administrativos locais, sob tutela do Estado soberano chinês.
3 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS NA CONSTITUIÇÃO CHINESA: REFLEXÕES SOBRE
O DISCURSO NOMOLÓGICO CONSTITUCIONAL
A Constituição chinesa prevê a garantia da igualdade perante a lei (artigo 33), da liberdade
de expressão, de imprensa, de associação, de reunião, desfile e manifestação (artigo 35), de liberdade
de crença religiosa (artigo 36), bem como a inviolabilidade da liberdade pessoal (artigo 37), entre
outras garantias básicas. Segundo Ramiro Avilés (2010, p. 3), “el listado de derechos que se incluye
en el Capítulo segundo de la Constitución recoge todas las generaciones de derechos y nominalmente
no es muy diferente del que puede encontrarse en otra Constitución”.
À primeira vista, podemos inferir que o texto constitucional chinês se assemelha a outros
diplomas constitucionais de Estados de direito. Entretanto, o conceito (ou significado) das palavras
ordenadas na Constituição não necessariamente têm o mesmo sentido, peso, aplicabilidade, alcance
ou grau de efetividade para cada país. Dentre outros motivos para tanto, está a própria construção
3 De acordo com Jianfu Chen (2008), a hermenêutica das normas distingue-se dogmaticamente entre interpretações
legislativa, administrativa e judicial. A interpretação judicial, contudo, se restringe à Suprema Corte do Povo e àquelas
questões advindas exclusivamente de seus respectivos trabalhos, isto é, da casuística. Todavia, a Suprema Corte por
muitas vezes emite interpretações acerca de leis específicas pouco depois de serem publicadas, chegando a tecer
comentários detalhados, artigo por artigo – o que poderia ser denominado, como o faz Jianfu Chen, de um exercício muito
particular de ativismo judicial. A mesma Suprema Corte, contudo, por meio de normativas específicas, vedou às cortes
inferiores usarem essas interpretações como fundamento para suas decisões – ainda que elas acabem sendo utilizadas nos
raciocínios construídos para tanto.
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histórica e cultural da sociedade e do direito interno.
Como exemplo dessa questão, podemos analisar a declaração relativa ao reconhecimento da
proteção da dignidade pessoal dos cidadãos chineses, no artigo 38 da CRPC. Da leitura desse
dispositivo o que se verifica é a aparentemente proposital ilação entre a ideia de dignidade e a noção
convencional de proteção à honra. Veja-se o texto do citado artigo 38: “A dignidade pessoal de todos
os cidadãos é inviolável. São proibidos o insulto, a calúnia, as falsas acusações ou as injúrias dirigidas
aos cidadãos”. Ora, ao relacionar a proteção da honra e da imagem com a proteção da dignidade
pessoal, o texto constitucional chinês permite interpretações altamente restritivas do que seja a
proteção à dignidade humana. Permite-se, assim, ao mesmo tempo, considerar declarado esse direito,
sem que o Estado chinês tenha maiores compromissos com tal direito, além daqueles que este Estado
entenda conveniente ter.
Porém, em outros dispositivos da Constituição chinesa, ainda que não esteja explicitamente
mencionado, o direito à dignidade acaba por ser tutelado por meio da proteção de aspectos específicos
da existência digna. Um exemplo claro dessas transformações mais recentes está na determinação da
inclusão das pessoas com deficiências no mercado de trabalho, tal como dispõe o artigo 45, parágrafo
3, da CRPC. Outro exemplo é a inclusão da proibição de “maus tratos a velhos, mulheres e crianças”
presente no artigo 49, parágrafo 3 (REPÚBLICA POPULAR DA CHINA, 2000, p. 698).
De acordo com o informe do Examen Periódico Universal, até 2013 foram aprovadas na
China mais de 60 leis e regulamentos a dispor sobre a proteção de diversos direitos referentes a
pessoas com deficiências (ORGANIZACIÓN DE LAS NACIONES UNIDAS, 2013, p. 13). Ainda
assim, Caicedo e Santiváñez (2007, p. 121) afirmam que “si bien los avances legislativos han sido
relevantes, en la práctica queda mucho por hacer. La noción de derechos inherentes a la dignidad
humana no se encuentra muy arraigada en la sociedad china”.
Outra questão sensível para a proteção dos direitos fundamentais na China é o modelo de
controle de constitucionalidade. Cabe à Assembleia Popular tanto fazer o controle de
constitucionalidade das normas infraconstitucionais como reformar a própria Constituição. “En otras
palabras, es el mismo legislador el encargado de controlar la constitucionalidad de sus actos y al
mismo tiempo de revisar el contenido de las disposiciones constitucionales” (CAICEDO;
SANTIVÁNEZ, 2007, p. 123). Soma-se a isso o uso constitucional de se passar previamente pela
cúpula do Partido Comunista qualquer questão que venha a ser deliberada pela Assembleia Popular,
tornando-se, assim, extremamente controverso o sistema de controle de constitucionalidade chinês.
Tais críticas não afastam, por outro lado, a transformação pela qual já passou o direito chinês
nas últimas três décadas, impulsionada em muito por motivações econômicas e centradas em
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instituições políticas que permanecem autoritárias e extrativistas (ACEMOGLU; ROBINSON,
2012), mas que acabou, em termos jurídicos, por ser centrar na inclusão dos direitos humanos dentro
do rol de direitos e garantias fundamentais dos cidadãos, numa linguagem focada em separar a
proteção oferecida pelo direito interno chinês de qualquer ilação com o direito internacional dos
direitos humanos.
Notadamente sobre a rejeição implícita do caráter universal dos direitos humanos, Chen
afirma o seguinte:
Enquanto o Capítulo II da Constituição pode ser visto como uma versão de uma declaração
de direitos, o termo “direitos humanos” não foi usado até o processo de revisão constitucional
de 2004. Na verdade, o termo “direitos humanos” teve uma história bastante acidentada na
RPC. […] Em vez disso, todas as constituições chinesas têm consistentemente usado o termo
“direitos civis”, que rejeita implicitamente a universalidade dos direitos humanos. (CHEN,
2008, p. 130).
A CRPC recebeu em sua última revisão (2004) um acréscimo referente ao respeito aos
Direitos Humanos, previsto no artigo 33, que passou a dispor que “o Estado respeita e assegura os
Direitos Humanos” e que “todo o cidadão goza dos direitos e, simultaneamente, tem de cumprir os
deveres prescritos pela Constituição e pela lei”. Ainda assim, a proteção a direitos humanos
permanece sujeita a restrições definidas no interesse do Estado. O artigo 51 da Carta prevê que “no
exercício das suas liberdades e dos seus direitos os cidadãos da RPC não podem atentar contra os
interesses do Estado, da sociedade e da coletividade ou contra as legítimas liberdades e direitos dos
outros cidadãos”.
Não se questiona a necessidade de compatibilização entre o exercício de direitos
constitucionais e os demais direitos de outros cidadãos ou os interesses da coletividade. Porém, ao se
dizer que o exercício de tais direitos não se oporá aos interesses do Estado, a Constituição chinesa
contraria um dos referentes principais do atual paradigma constitucionalista, o de que o interesse do
Estado é e somente pode ser o respeito e máxima promoção dos direitos fundamentais.
Em que pesem as alterações na legislação chinesa, tanto em âmbito constitucional, quanto
infraconstitucional, os relatos são no sentido de ainda haver muitos problemas de densificação
normativa adequada, o que nos possibilita perguntar sobre a existência ou não de um abismo entre o
texto constitucional chinês e as vivências jurídico-políticas efetivas.
Assim sendo, a grande questão que devemos nos perguntar quanto à situação da proteção de
direitos da dignidade humana na China diz respeito a até que ponto o atual modelo de Estado chinês
(e a cultura constitucional a ele subjacente) verdadeiramente se configura como estrutura voltada para
a promoção de tais direitos enquanto sua razão-de-ser; ou se, ao contrário, o discurso nomológico de
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CONSTITUIÇÃO, CONSTITUCIONALISMO E EFETIVIDADE NA CHINA: ILAÇÕES […]
proteção de direitos da pessoa e do cidadão na China é mais um instrumento de governança, gestão e
estratégia do Estado (portanto serve ao Estado) do que telos constitucional do Estado chinês. Esta
possibilidade, a nosso ver, não pode obscurecer os avanços em termos de direitos e garantias
fundamentais dos cidadãos ocorridos nas últimas décadas. Não obstante, uma reflexão acurada, como
faremos em seguida, da linguagem e do discurso constitucional desenvolvido pelos próprios juristas
chineses, nos últimos anos, faz-se imprescindível como importante indicador de qual das duas
possibilidades acima aventadas espelha melhor a atual realidade constitucional na China.
4 O PENSAMENTO CONSTITUCIONALISTA CHINÊS: VARIÁVEIS DE PERSPECTIVA
E DE ABORDAGEM SOBRE OS DIREITOS HUMANO-FUNDAMENTAIS E
EFETIVIDADE CONSTITUCIONAL NA CHINA
Na China, o debate constitucionalista parece acompanhar os padrões e posições formados
em torno da discussão acerca da formação de um Estado de direito chinês – especialmente em vista
de que tal evento, iniciado em 1978, é apontado pela jurística como responsável pelo renascimento
da pesquisa e do debate jurídicos no país.
Do mapeamento realizado nesta pesquisa, todos os autores parecem concordar, no básico,
acerca da relevância dos direitos humanos e do discurso a seu respeito, bem como acerca dos textos
juridicamente relevantes para a articulação de generalizações de cunho jurídico-dogmático. Quando
a dignidade humana é debatida, suas origens ocidentais aparecem nesses autores quase sempre
contrapostas a pontos de partida presentes na tradição oriental, e a atual relevância do discurso da
dignidade no Ocidente é rastreada pelos chineses como impacto da 2ª Guerra Mundial. Na China, por
sua vez, parece haver consenso de que a importância dos direitos humano-fundamentais se dá
especialmente em razão dos eventos em torno da Revolução Cultural (ainda que no tom pelo qual se
a trate já se verifiquem variações, isto é: por vezes lamenta-se, por outras denuncia-se; variações que
se estendem à interpretação do legado de Mao Tse Tung, ora um líder carismático, ora um demagogo).
Outro ponto generalizadamente aceito (à exceção de algumas leituras laudatórias apegadas apenas à
textualidade da Constituição) é a ausência de mecanismos processuais positivados a garantir a
“justiciabilidade”, seja da dignidade humana, seja de direitos humanos assegurados tanto na
Constituição, como em tratados e convenções dos quais a China faça parte. Poder-se-ia assim dizer
que estes são os pontos-chave da perspectiva “geral” a respeito do tema na China.
Uma possível dicotomia entre os autores poderia ser desenhada a partir das interpretações
articuladas quanto à função constitucional da ideia de dignidade. Ter-se-ia, então, aqueles que
procuram defender uma interpretação da dignidade humana enquanto e exclusivamente a “direito à
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subsistência” (ou estrito), em termos exclusivamente “materiais”, ou “materialistas”; e aqueles que a
entendem em termos mais “espirituais” (ou amplo), especialmente vinculados à participação política,
expressão e liberdade de pensamento, autonomia individual, etc.
No primeiro caso, justifica-se a interpretação tanto pela tradição marxista-leninista-maoísta
da República Popular da China (estatista-socialista), como pela “perspectiva científica sobre
desenvolvimento” (neoautoritários e comunitaristas), em que se inverte o axioma então sustentado
pelo movimento ocidental conhecido por Law & Development, de que a implementação do Estado de
direito (com separação de poderes, constituições escritas e direitos humano-fundamentais) implicaria
desenvolvimento social e econômico. Assim, para os neoautoritários e comunitaristas, é o
desenvolvimento econômico e social que acabará resultando em um avanço no que concerne aos
direitos, avanço concomitante à contínua ascensão da nação enquanto ator global.
Já no segundo caso, a abordagem acaba (sobretudo no contexto chinês) por ser mais
denunciativa e dá ênfase no que se pode nomear por dimensões individual e política da dignidade
humana, bem como se sustenta com recurso a experiências no direito comparado. A denúncia de
casos de desrespeito patente e latente aos direitos humanos, na China contemporânea, acaba por ser
um produto comum nessa segunda perspectiva.
Enquanto para o primeiro lado o isolamento da China, seja por questões geopolíticas, ou por
questões culturais, aparece como pressuposto determinante da interpretação da dignidade humana, no
que se verifica uma certa “instrumentalização” assumida tanto do sistema legal como do próprio
discurso dos direitos humanos, para o segundo é justamente a internacionalização da China e a
“racionalização” de seu sistema legal que direcionam a concepção que se constrói a seu respeito (cuja
objeção poderia ser o caráter acriticamente ocidentalizante que, por vezes, possui).
Dificilmente algum dos autores analisados seria perfeitamente emoldurado em um dos lados
descritos. Qiafan Zhang, por exemplo, ao mesmo tempo que advoga uma versão claramente liberal-
democrata, mesmo “ocidentalizada” em comparação a outros autores, de “dignidade humana”,
esforça-se com bastante afinco em identificar tais traços na tradição cultural chinesa. Já Jianfu Chen
defende, concomitantemente, a atenção para a especificidade do caso chinês e a implementação de
mecanismos institucionais para a concretização de direitos humanos constitucionalmente positivados
– o que, não necessariamente, implicaria o controle difuso de constitucionalidade nos moldes
estadunidenses tal qual proposto por Zhang. Jiang Shigong, por sua vez, autor classificado como
neoautoritário, entende a discrepância entre texto constitucional e realidade política como um falso
problema – a afastar, consequentemente, a necessidade da implementação de mecanismos quaisquer,
enquanto outros autores, como Chengming Yang e Yucheng Guo, que lhe são próximos em outros
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pontos, aceitam a legitimidade do problema – especialmente no que diz respeito à concretização da
dignidade humana e o avanço da causa dos direitos humanos na China –, para então argumentar pela
pertinência de alocar sua resolução seja ao Congresso Nacional, seja ao Partido Comunista
propriamente dito.
Em suma, os caminhos do que poderíamos chamar de pensamento constitucional chinês, os
nortes seguidos pela intelectualidade chinesa para pensar seu próprio fenômeno constitucional, são
variados, complexos e de difícil esquematização. A amostragem de autores a seguir busca demonstrar
essa variedade e complexidade.
4.1 A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO AUTÊNTICO DE DIGNIDADE HUMANA NA
CHINA E SUAS IMPLICAÇÕES NA REDUÇÃO DO DÉFICIT DE SUBSTANCIALISMO
CONSTITUCIONAL SEGUNDO ZHANG E JIANG
Em seu livro Human Dignity in Classical Chinese Philosophy: Confucianism, Mohism, and
Daoism, Qianfan Zhang, professor de direito da Universidade de Pequim, busca responder se existe
uma contribuição conceitual, da filosofia clássica chinesa, à compreensão conceitual do que seria a
dignidade humana (e, existindo, qual seria). A seu ver, uma teoria constitucional embasada na
dignidade humana tem muitas implicações na vida prática, ao trazer consigo, por exemplo, a
capacidade inata de resolver tensões surgidas do conflito entre direitos e servir, portanto, de critério
organizador da complexidade normativa. Em seu entender, a ênfase da perspectiva chinesa nas
dimensões de reciprocidade e harmonia inerentes à dignidade humana tem a contribuir tanto
doméstica como internacionalmente nesse tema.
Assim, um ponto em comum na perspectiva do autor entre os ensinamentos confucianos,
maoístas e daoístas seria a noção de que o “respeito pela dignidade humana comanda que se o poder
público quer ser legítimo ele deve tratar todos como um fim, e nunca como meros meios”, seja para
a realização dos objetivos do próprio governo, seja “visando à manutenção da ordem social ou a
estabilidade política”. Consequentemente, “o Estado e a sociedade precisam assumir tal crença moral
seriamente, abstendo-se de qualquer ato positivo a impedir o desenvolvimento pessoal dessas
virtudes”. A dignidade humana seria, nessa interpretação, “violada toda vez que uma pessoa é privada
da oportunidade de desenvolver plenamente suas virtudes inatas, e qualquer privação em nome apenas
da autoridade pública deve ser vista como um exercício ilegítimo do poder” (ZHANG, 2016, p. 202).
Já em seu artigo A constitution without constitutionalism? The paths of constitutional
development in China, Zhang procura analisar os desenvolvimentos recentes do direito constitucional
chinês a partir de duas perspectivas, retratadas por ele em dois episódios. Na primeira, ele analisa o
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“caminho oficial” iniciado pela decisão da Suprema Corte do Povo no caso Qi Yuling, em 2001. Na
segunda, no caminho “não oficial”, analisa-se o desenvolvimento populista simbolizado pelo
incidente de Sun Zhigang em 2003, quando o povo, pela primeira vez desde 1989, protestou
veementemente contra as ilegalidades de um governo local. Avaliando os sucessos e fracassos de
ambas as alternativas, o artigo conclui pela necessidade de arranjos institucionais que possibilitem a
efetivação da Constituição e, concomitantemente, o florescimento de uma tradição constitucionalista.
Especificamente sobre a diferença entre os discursos oficiais e as práticas reais chinesas,
quanto ao tema da efetivação dos direitos e liberdades, os comentários de Zhang são significativos.
Se por um lado, na maioria das vezes, as “leis e regulações na China parecem ter sido promulgadas
com vistas ao bem comum”, o que pode se dar tanto como “consequência da boa vontade do
governante”, como enquanto “resultado de constrangimento político”, com sua promulgação sendo
muitas vezes fruto “da necessidade de aparecer de uma maneira atraente perante o povo”, por outro,
todas essas novidades jurídicas permanecem “inutilizadas em razão da ausência de qualquer melhora
no que diz respeito aos mecanismos institucionais para assegurar direitos” (ZHANG, 2010, p. 954).
Novamente aparece no texto de Zhang o estilo pautado por remissões à tradição chinesa para
abordar as questões do constitucionalismo chinês contemporâneo. Assim, o autor retorna a Mêncio
para lembrar que as leis não se aplicam sozinhas, do que se deriva a “necessidade de um governo
moral e institucionalmente vinculado à execução fiel das leis”. Tendo isso em vista, e conquistado
certo distanciamento, aqueles bem-sucedidos casos de constrangimento político, “como o caso Sun
Zhigang, o incidente Tang Fuzhen” ou mesmo a famosa passeata na praça Xiamen, “quando
mensurados contra o bem maior número de falhas no dia a dia da vida pública chinesa, ilustram que
a luta por direitos pode ser uma luta rumo à subida de um morro extremamente íngreme”, se ausente
o devido suporte institucional (ZHANG, 2010, p. 975).
Por conseguinte, protestos, demonstrações e outros modos de o povo se expressar e vindicar
seus interesses necessitam da proteção por meio de arranjos institucionais efetivos, “como eleições
periódicas de representantes públicos, liberdade para a formação de grupos políticos a competir pelo
apoio dos constituintes, pesos e contrapesos entre os vários centros de poder, e o controle de
constitucionalidade por tribunais imparciais”. Sem isso, a China restaria na sua atual situação, de uma
constituição sem constitucionalismo, em razão da falta de “arranjos institucionais que mantenham
seu governo responsável perante seus cidadãos, de modo que ele concretize fielmente a Constituição
e as leis” (ZHANG, 2010, p. 976).
Em paralelo, cabe destacar o trabalho do Professor de Teoria do Direito da Universidade de
Pequim, Shigong Jiang. Em recente artigo procura argumentar pelo caráter estrutural em toda e
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qualquer ordem legal da dicotomia entre uma constituição escrita e uma constituição não escrita,
sendo a primeira uma das formas de manifestação da segunda, intimamente relacionada à realidade
política de cada nação. Mas não tão somente. As constituições não escritas condicionariam e
determinariam a aplicação prática dos dispositivos constitucionais, de modo que as pesquisas em
direito constitucional, se desejosas de assumir um caráter científico e não ideológico, deveriam se
voltar para a sistematização das constituições não escritas. Especialmente na China, isso implicaria a
abdicação de se denunciar ou acusar a República Popular da China de não se conformar com os ideais
abstratamente importados do Ocidente, reconhecendo a importância da realidade constitucional para
a ascensão do país à sua atual posição internacional, bem como seu papel na continuidade desta
trajetória (JIANG, 2010, p. 14).
Não obstante, Jiang, em sua análise do estado de coisas do atual pensamento constitucional
chinês, acaba por reconhecer que o constitucionalismo chinês se encontra em sua maioria estruturado
a partir de referências ao constitucionalismo de modelo ocidental. Assim, tanto aqueles que
propugnam por colocar abaixo o atual texto constitucional para erigir daí uma nova constituição mais
democrática e verdadeiramente comprometida com direitos de dignidade, quanto aqueles que pensam
o problema constitucional chinês como um problema de aplicabilidade do texto pelos tribunais,
quanto ainda aqueles que propugnam por revisões pontuais no modelo constitucional chinês, estão,
em sua grande maioria, condicionados a aplicar ideias ocidentais na interpretação dos conceitos
constitucionais chineses, segundo Jiang (2010, p. 15).
Portanto, em que pese a distinta interpretação referente à necessidade de um controle de
constitucionalidade por tribunais imparciais nos trabalhos de Shigong Jiang, suas conclusões também
são no sentido da busca pelo desenvolvimento de um constitucionalismo chinês autêntico e autônomo
aos modelos constitucionais tipicamente ocidentais. Mas não tão somente. Essa seria, na visão desse
autor, a “verdadeira contribuição” que a China teria a fazer pela civilização humana. Assumir essa
responsabilidade implicaria também “levar a ascensão da China a sério”, com a abordagem
igualmente séria do “sistema constitucional que possibilitou o sucesso chinês”, com vistas a diminuir
o descompasso entre “as inovações dos próprios estudiosos chineses” e a “criatividade prática” de
seu povo e de seus governantes (JIANG, 2010, p. 43).
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4.2 OS DESAFIOS DA CONSTRUÇÃO DE UMA CULTURA CONSTITUCIONAL CHINESA
DE RESPEITO À DIGNIDADE HUMANA NA TRÍPLICE SUPERAÇÃO DA TRADIÇÃO
MILENAR, DA TRADIÇÃO SOCIALISTA E DA TRADIÇÃO OCIDENTAL, SEGUNDO CHEN
E LIU
Em seu livro Chinese Law: Context and Transformation, Jianfu Chen, professor de Direito
da La Trobe Law School, propõe uma apresentação sintética, porém historicamente orientada, do
estado atual do direito chinês. O autor analisa os diversos âmbitos do direito chinês, com enfoque no
confronto entre os impulsos de transformação e a permanência da tradição chinesa, seja aquela
milenar, seja aquela mais recente, relativa a uma legalidade socialista.
Chen ressalta, quanto à Constituição, que o capítulo segundo do texto constitucional somente
passou a realmente funcionar como uma carta de direitos fundamentais a partir da reforma de 2004.
Isso demonstra o caráter conturbado da temática, até então, no contexto chinês. O autor pontua que a
expressão “direitos humanos” era sistematicamente substituída pela expressão “direitos dos
cidadãos”, o que implica uma sujeição desses direitos a questões de Estado e a uma possível
seletividade. O autor identifica uma mudança a esse respeito a partir de 2004, mas com ressalvas.
Desse modo, em que pesem os esforços de “muitas organizações internacionais de direitos humanos,
ativistas de direitos humanos e dissidentes chineses” para tornar claro “o grande abismo entre direito
e realidade”, as próprias fundações conceituais e teóricas dos direitos meramente positivados são
marcadas por falhas preocupantes, ainda mais se interpretadas no contexto dos “constrangimentos
impostos à sua efetivação” (CHEN, 2008, p. 130).
Assim, se a revisão de 2004 às “liberdades informais, particularmente nas esferas
econômicas, foram expandidas de maneira bem considerável desde 1978, juntamente às bênçãos da
liberalização econômica”, não se pode perder de vista, contudo, “as motivações iniciais para tanto”.
Ainda que “a inclusão de provisões a respeito da dignidade e segurança pessoais tenham resultados
de uma preocupação genuína com o tratamento cruel sofrido por milhões de chineses, incluindo os
oficiais de alto escalão durante a Revolução Cultural”, essa atuação enfática na proteção dos direitos
dos cidadãos “foi largamente motivada por considerações envolvendo a reconstrução da legitimidade
do Partido, fortalecendo sua dominação, bem como o estabelecimento de uma ordem social estável
para um desenvolvimento econômico suave” (CHEN, 2008, p. 131-132).
Chen, em sua análise, chama atenção para o peso do princípio marxista da “Unidade entre
Direitos e Deveres” na configuração do sistema constitucional chinês de proteção de direitos e
liberdades. O autor afirma que esse princípio mitiga o nível de proteção de direitos na China, pois as
práticas estatais e as autoridades governamentais dão mais peso à dimensão dos deveres que à dos
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direitos, ainda que um número crescente de acadêmicos chineses enfatize cada vez mais em seus
discursos a importância dos direitos. Para Chen, o princípio pode ser inferido diretamente da
Constituição, em seu artigo 33, o que reforça a resistência das autoridades governamentais a
mudanças quanto a esta questão. Chen ressalta ainda que outros dispositivos da Constituição reforçam
a posição governamental e dificultam as transformações. Tal é o caso do artigo 42 da Constituição,
que, ao tratar o trabalho ao mesmo tempo enquanto direito e dever acaba por reforçar a leitura
governamental (CHEN, 2008, p. 133).
Chen ressalta outro aspecto problemático da constitucionalidade chinesa, com raízes tanto
na tradição milenar, quanto na experiência marxista-maoísta, consubstanciada na quase ausência de
mecanismos de controle do Estado quanto ao respeito a direitos humanos básicos. Para ele, esta
questão dá sinais de transformações desde 2004. As mudanças, porém, ainda são insipientes quanto
a este importante aspecto da construção de uma sociedade respeitadora dos direitos humanos, segundo
Chen. Afinal, “a Constituição deixa claro que os interesses do Estado, os quais devem ser
interpretados pelas próprias autoridades estatais, estão acima daqueles dos indivíduos”. Essa
dimensão afasta a aparente similaridade dos direitos presentes na Constituição chinesa para com as
cartas ocidentais, segundo Chen, sendo uns e outros de qualidades distintas. Nesse sentido, o autor
pontua que “não há nenhuma menção ao direito dos cidadãos ou de organizações de questionar a
constitucionalidade das ações governamentais, ou qualquer mecanismo estabelecido para a efetivação
de direitos constitucionais”, a sugerir a vedação de fato quanto à efetivação direta das provisões
constitucionais perante um tribunal de justiça. Como resultado, “a proteção e o exercício dos direitos
dos cidadãos” dependeriam “mais do desenvolvimento de estatutos individuais como, por exemplo,
os referentes a direito administrativo, do que da própria Constituição” (CHEN, 2008, p. 135).
Consequência dessa realidade, a constatação de um abismo entre texto e realidade, sistema
e prática, é um lugar-comum para um número considerável de juristas chineses. Para Jianfu Chen, a
raiz deste problema é o poder, ou, melhor dizendo, a falta de pesos e contrapesos quando de seu
exercício, e as consequências disso para proteção de direitos da pessoa. O resultado seria, em termos
gerais, a “privatização dos poderes públicos”, o que tem por consequência, por exemplo, a crítica da
dificuldade de se efetivar a lei independentemente, por meio da devida mediação de instituições justas
que deveriam estar interpostas na relação entre indivíduos e governo. Ainda que, a esse respeito, se
observem os esforços de alguns órgãos, em âmbito central ou local, infelizmente, esses não
conseguem transcender os casos específicos para os quais são inicialmente mobilizados, a colocar
dúvidas, no entender do autor, quanto à própria importância de se adotar leis especificadoras de
direitos no atual sistema chinês (CHEN, 2007, p. 738). Parece que, de certa forma, as instruções
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governamentais e as instruções do Partido ainda têm mais peso prático nas tomadas de decisão junto
à jurisdição chinesa que as próprias leis abstratas, muito mais voltadas para serem uma resposta
discursiva às expectativas de reconhecimento de direitos, que um instrumento de transformação
propriamente dito.
Em artigo que se propõe a atualizar este debate, oito anos depois da análise feita por Chen
em 2007, o autor, em suma, se refere aos quase dez anos transcorridos como uma “década perdida”
no que diz respeito à constitucionalização substantiva do país. Chen afirma que a escolha do Partido
por uma “modernização não segundo as expectativas ocidentais, mas segundo a realidade e as
necessidades dos chineses”, infelizmente significou, nos últimos anos, não o engajamento por
transformações humanitárias e sociais ao modo próprio, mas, isto sim, a preocupação por manter sob
estrito controle do Partido o que se pode considerar na China como as “necessidades” dos chineses.
Assim, para o autor, a proposta de modernização apresentada para a última década direcionou-se
muito mais à manutenção da liderança e controle consolidados do Partido, do que ao estabelecimento
de um sistema efetivo de freios e contrapesos sem os quais continua a ser tarefa inglória a luta e
reivindicação por direitos na China (CHEN, 2007, p. 922).
Um exemplo dessa forma de encarar a questão dos direitos a partir do princípio da unidade
entre direitos e deveres propagado pelas autoridades chinesas, e de como essa leitura encontra ecos
na intelectualidade chinesa, pode ser encontrado em autores como Huawen Liu, Diretor Assistente
do Instituto de Direito Internacional da Academia Chinesa de Ciências Sociais.
Liu possui uma abordagem constitucional muito consertada com a perspectiva
governamental chinesa; e, ademais, verticaliza essa perspectiva na abordagem do tema do direito à
dignidade. Liu explica e analisa o que seria a “teoria da dignidade” adotada, ainda que implicitamente,
pelas autoridades chinesas. Para o autor, a particular interpretação oficial a respeito dos direitos
humanos e da dignidade humana está em completa pertinência para com a realidade política chinesa.
Assim, a preferência concedida à dimensão material da dignidade humana, então traduzida na ênfase
nos direitos econômicos e sociais, seria uma exigência das circunstâncias nas quais a República
Popular da China se vê inserida. Por fim, de todo modo, a dita “teoria”, em razão de sua pertinência,
mostraria um acertado caminho para o desenvolvimento da causa dos direitos humanos na China
(LIU, 2012).
Recentemente, em 2010, o então primeiro-ministro chinês, Wen Jiabao, na terceira sessão
do nono Congresso Nacional Popular, declarou que todas as decisões e ações tomadas e adotadas pelo
governo chinês têm em vista promover a felicidade e a dignidade dos cidadãos, bem como a promoção
de uma sociedade justa e harmoniosa. Segundo Huawen Liu, a mídia chinesa não demorou em
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apelidar tais declarações por “teoria da dignidade” da liderança chinesa. Tal teoria, em seu entender,
não deixaria de estar em acordo com a política externa da República Popular da China, no que diz
respeito a direitos humanos, em razão de sua coerência ou harmonia para com a natureza atribuída
aos direitos humanos nos diversos instrumentos internacionais, seja das Nações Unidas, seja de outras
comunidades ou organizações com as quais a China passou a compactuar (LIU, 2012, p. 368-368).
Mais ainda, para Huawen Liu, a “teoria da dignidade” avançada pelas autoridades chinesas
estaria em acordo com as demais posições por elas declaradas, como a de um governo orientado para
o povo, e de um desenvolvimento econômico e social cientificamente orientado. O que, em última
instância, comprovaria que o governo chinês protege e respeita os direitos humanos, e que seu modo
de o fazer contribuiria significativamente para o futuro desenvolvimento da causa dos direitos
humanos na China (LIU, 2012, p. 368). Leituras como a de Liu, em nosso entender, coadunam-se
com o discurso das estruturas de poder na China, e expressam a dificuldade de superação da herança
política chinesa, tal como expressado por Chen.
4.3 OS DISCURSOS LAUDATÓRIOS SOBRE O PAPEL DO PARTIDO COMUNISTA CHINÊS
NA CONFIGURAÇÃO DA PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NA CHINA, SEGUNDO
XIAOWEN YE E XIAOLING ZHANG
Xiaowen Ye, da Sociedade para Estudos em Direitos Humanos da China, propõe responder a três
perguntas recorrentes no cenário internacional a respeito da causa dos direitos humanos na China. A
principal delas, a informar todas as demais, diz respeito ao papel do Partido Comunista da China em
relação ao Estado chinês e, consequente e especificamente, o desenvolvimento e proteção dos direitos
humanos no país. Para o autor, é o Partido Comunista que possibilita a tradução dos valores universais
a determinar o conteúdo dos direitos humanos à realidade concreta chinesa, em razão de seu
comprometimento para com o povo chinês. Esse autor, portanto, traz uma leitura favorável ao papel
constitucional do Partido na proteção dos direitos humanos.
Para Ye, a importância e a centralidade do Partido Comunista da China não podem ser
ignoradas ou menosprezadas, estendendo-se, por evidente, às interpretações disseminadas e
concorrentes a respeito dos direitos humanos pela jurística chinesa. Nesse sentido, Xiaowen Ye
defende, por exemplo, em tons de causalidade pretensamente científica, que o Partido protege os
direitos humanos em razão de seu princípio fundamental de agir a serviço do povo. Mais importante,
contudo, é a sua posição privilegiada para escolher a maneira correta de efetivar os direitos humanos,
em acordo com a lógica histórica e as condições nacionais da China, com vistas à sua libertação e
promoção de seu desenvolvimento econômico e social. Tal curso de ação, embasado na doutrina
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científica de desenvolvimento adotada pelo Partido, rompe, no entender do autor, com a dicotomia
supostamente tradicional quando da efetivação dos direitos humanos, isto é, entre indivíduo e Estado.
Assim, respeitar-se-ia a universalidade dos direitos humanos ao dar prioridade ao direito à vida e à
subsistência; à igualdade de participação e desenvolvimento, ao garantir um desenvolvimento
econômico e social constante e acelerado; à liberdade do povo, pela proteção da ordem pública. Em
suma, ao se desenvolver econômica e socialmente, a República Popular da China, liderada pelo
Partido Comunista, estaria caminhando, segundo o autor, rumo à harmonização e à emancipação
humana, com o consequente progresso de sua causa quanto a direitos de dignidade (YE, 2012).
Já Xiaoling Zhang, Diretora do Centro de Estudos em Direitos Humanos da Escola do
Partido Comunista da China, procura explicar de que modo o governo chinês vem procurando
proteger e respeitar os direitos humanos, com sua ênfase em direitos econômicos e sociais, e de que
modo tal curso de ação tem gerado resultados positivos, de modo a se poder falar em um progresso
da causa dos direitos humanos na China.
Na interpretação de Zhang, a dignidade está enucleada, no sistema constitucional chinês, no
direito à subsistência. Porém, para essa autora, “o direito à subsistência se traduz no direito do povo
de viver com decência, cobrindo todo o conteúdo básico dos direitos à vida, bem como dos direitos
econômicos, sociais e culturais” (ZHANG, 2012, p. 434). Assumi-lo enquanto o mais importante dos
direitos humanos é uma exigência das “circunstâncias concretas” da China, as quais se encontram
adequadamente levadas em consideração pelo governo chinês e pelo Partido Comunista da China, ao
determinarem que o desenvolvimento econômico é a tarefa central, de mais suma importância, e
primeira prioridade do governo. Para a autora, por consequência, desde 1978, muitos são os ganhos
da população chinesa. Por exemplo, 200 milhões de pessoas foram retiradas da pobreza, a expectativa
de vida aumentou para 73 anos e meio, bem como toda a população chinesa, de todas as idades,
cursou os nove anos compulsórios do ensino fundamental, no que diz respeito ao ano de 2010. A
autora acrescenta que as garantias de subsistência vêm sendo incrementadas na China, com
melhoramento e ampliação das condições de acesso a moradia, emprego e serviços básicos. Para
Zhang, a atual política vem desenvolvendo o direito à subsistência em direitos econômico, sociais e
culturais, tudo por meio da atuação positiva do Partido Comunista chinês (ZHANG, 2012, p. 434-
437).
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4.4 CETICISMO QUANTO AO DISCURSO OCIDENTAL DOS DIREITOS HUMANOS E AS
MARCAS DE UM OLHAR MARXISTA NA ATUALIZAÇÃO DO DEBATE SOBRE DIREITOS
HUMANOS NA CHINA, SEGUNDO AS LEITURAS DE YUNHU, SUN E WU
Dong Yunhu, Secretário da Sociedade para Estudos em Direitos Humanos da China,
considerado por muitos como a maior autoridade em direitos humanos na China, em seu texto
programático e estratégico, busca identificar a importância dos direitos humanos enquanto discurso
legitimador da dominação hegemônica do Ocidente na comunidade internacional, de que maneira
esta situação pode ser contestada, e eventualmente invertida em favor da China e de sua concepção
distinta da causa dos direitos humanos.
De certa maneira, quem quer que detenha o direito de discurso e dominação no campo dos
direitos humanos ocupa o mais elevado estrato moral, mestre da opinião pública
internacional. A luta internacional pelos direitos humanos é, essencialmente, a luta pelo
direito de discurso e por dominação. No presente, a comunidade internacional não só está
cheia de expectativas quanto ao desenvolvimento chinês, mas também com dúvidas, e os
problemas envolvendo direitos humanos são sempre os principais instrumentos utilizados
pelo mundo Ocidental para distorcer e difamar a China, enganando a opinião pública
internacional. Portanto, a inovação e o desenvolvimento do discurso de direitos humanos
chinês e o melhoramento do discurso jurídico de direitos humanos da China não são só os
únicos requerimentos para contra-atacar a ofensiva ocidental de direitos humanos,
salvaguardando a segurança nacional, mas também o requisito inevitável para melhorar tanto
a imagem nacional como seu poder suave, criando um contexto favorável com a opinião
pública internacional para a pacífica ascensão da China. (YUNHU apud SUN, 2015, p. 212).
Pinghua Sun, professor da Universidade de Ciência Política e Direito da China, busca
desenvolver e sistematizar, com aportes empíricos, o programa proposto por Dong Yunhu (acima
explicitado), ao contrastar as perspectivas chinesa e ocidental, e como o discurso de direitos humanos
resultante da segunda acaba por prejudicar e atrapalhar, em sua visão, a ascensão da República
Popular da China. Os traços fundamentais de uma alternativa chinesa ao discurso ocidental dos
direitos humanos buscam ser identificados, e sugestões de como eles podem ser desenvolvidos são
propostas, juntamente à promoção da tarefa de desenvolvê-los.
Assim, mesmo constatando todos os problemas e desafios da atual sociedade chinesa, Sun
constrói um discurso com pretensões performáticas encarando o Ocidente como o outro a ser
superado e propondo o desenvolvimento dos discursos e das práticas dos direitos humanos na China
como estratégia para assumir uma liderança geopolítica. Nas palavras do autor, só quando os
intelectuais chineses fortalecerem “as pesquisas em problemas realistas, explorando estratégias e
métodos para resolvê-los”, poderá a China “enfrentar bravamente os desafios dos poderes do
Ocidente, com suas acusações e críticas”. O discurso dos direitos humanos chinês serviria então como
base para a ocupação de seu posto de comando quanto ao “discurso internacional de direitos humanos
nas trocas internacionais, alcançando efetividade racional, benéfica e procedimental” (SUN, 2015, p.
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211-212).
Por outra parte Xiaohui Wu propõe, em interessante artigo, explicar as particularidades da
interpretação chinesa dos direitos humanos, afastando as aparentes deficiências em comparação com
as democracias liberais do Ocidente, ao vinculá-la à sua tradição marxista-leninista, e ao analisar de
que modo tal tradição está em acordo com a realidade chinesa. Assim, Wu começa por constatar que,
ainda que a Constituição de 1982 inclua muitos dos mesmos direitos das democracias liberais
ocidentais, há deficiências e limitações no texto constitucional chinês mesmo depois de suas reformas,
se ele pretende ser a base da proteção completa de direitos civis e políticos na China (WU, 2002, p.
343).
O autor busca identificar a peculiar forma chinesa de encarar a questão da promoção de
direitos humanos, por meio de três características fundamentais a marcar o DNA do
constitucionalismo chinês. Em primeiro lugar, o discurso sobre direitos humanos da República
Popular da China se pauta no entendimento de que as questões correlatas são, em sua maioria, matéria
“dentro da jurisdição doméstica ou da soberania de cada país”. Consequentemente, “críticas
estrangeiras acerca dos direitos humanos na China são interpretadas como interferências em seus
assuntos domésticos”. Segundamente, “o desenvolvimento econômico” é posto como fundamento
dos direitos humanos, determinando “a extensão de garantia desses direitos”. O sistema de direitos
resultante dessa postura tem o direito à subsistência como o mais importante, com o governo chinês
dando precedência, “em razão de sua enorme população e falta de modernização”, à “alimentação,
moradia, saúde e educação em detrimento de outros direitos”. Em terceiro, e por fim, direitos e
deveres dos cidadãos seriam inseparáveis. Todo cidadão, assim, gozaria de seus direitos ao mesmo
tempo que “precisa cumprir com suas obrigações prescritas em lei”. Os direitos humanos estariam
assim “sempre sujeitos a limitações em seu gozo, as quais os governos estão legitimados a impor”
(WU, 2002, p. 343-344).
Nesse sentido, a ilação da herança marxista como a forma peculiar com a qual os chineses
tratam a promoção de direitos humanos, privilegiando o aspecto da satisfação do mínimo existencial
e, em geral, calando sobre os direitos civis, de liberdade privada e política, possui função-chave na
compreensão da promoção de direitos humanos no constitucionalismo chinês. De imediato, para uma
“Nação há muito sujeita à crise e caos, pareceu razoável para a República Popular em seus primeiros
anos de existência dar prioridade ao direito de subsistência ante outros tipos de direitos”. Mais ainda,
na avaliação de Wu, desde a fundação da República Popular da China em 1949 “o sistema econômico
socialista” foi “muito bem-sucedido em assegurar a equitativa distribuição de bens, de modo que as
necessidades básicas da população fossem atendidas, apesar do baixo nível tecnológico, e da baixa
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renda per capita do país”. Ao assim fazê-lo não só na teoria como na prática, tornar-se-ia difícil negar
“que a China teve sucessos memoráveis em atender as necessidades básicas do povo com sua prática
até então” (WU, 2002, p. 368).
5 CONCLUSÃO
A história constitucional chinesa demonstra a história de uma Constituição que vai se
moldando à planificação construída pelo Partido Comunista chinês. Em sua conformação atual, a
experiência constitucional chinesa apresenta vários sinais da permanência da primazia do político
sobre o jurídico e do econômico sobre o jurídico. Veja-se que os direitos fundamentais na China são
todos eles apresentados como algo que o Estado provê e que o Estado estabelece, nos termos daquilo
que o Estado planifica. Assim, a linguagem constitucional chinesa não superou o paradigma da
primazia do interesse público estatal. Se é o Estado que provê o direito ao trabalho e se é o estado que
oferece o direito à vida, por exemplo, então, do ponto de vista lógico, tais direitos não são oponíveis
ao Estado, nem podem ser apresentados como resistência às planificações estatais da economia e da
sociedade. Os direitos fundamentais são, assim, instrumento de gestão e estabilização da progressiva
abertura social e democrática da China, mas não são (pelo menos ainda) a baliza fundamental da
institucionalidade jurídico-política chinesa.
O isolacionismo chinês aparece, tal qual o tão debatido e, historicamente, mais recente
isolacionismo americano (HIRSCHL, 2014, p. 28-31), como uma outra possível postura, marcada,
particular e atualmente, por sua resistência ao controle judicial de constitucionalidade e ao controle
internacional de convencionalidade. As raízes estruturais dessa opção chinesa retrocedem ao período
Dinástico, em razão da consolidação de uma autointerpretação calcada na superioridade chinesa, e se
reafirmou nos períodos soviético e maoísta, deixando, ainda, marcas no modo chinês de “abertura” à
economia, sem qualquer abertura real à interconstitucionalidade, quando, então, o discurso dos
direitos humano-fundamentais pôde tornar-se apenas discurso, no jogo das relações internacionais
comerciais.
Quanto aos resultados da pesquisa desenvolvida acerca da dignidade da pessoa humana na
cultura constitucional chinesa: as bases tradicionais chinesas são evidentemente não ocidentais (e
poderíamos dizer, com Jullien, radicalmente não ocidentais), e uma assimilação correlata forte e
estável do constitucionalismo ocidental é algo bastante duvidoso. Vimos nesse trabalho que a tradição
normativa chinesa é marcada tanto pela presença de profundas mundivisões – como o confucionismo,
o taoísmo e o legalismo – quanto por uma mais que milenar experiência burocrática e de gestão do
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poder em territórios de dimensão continental. Como legado, concluímos, em suma, que essa tradição
marca a China como uma sociedade bastante permeável a lógicas de hierarquização, bem como a
lógicas de exercício inconteste do poder, e da superposição do dever ao direito. De outra parte, é
possível ver na China uma peculiar vocação para a harmonia social, na mesma medida em que é
possível colocar em dúvida se a ideia chinesa de harmonia social guarda relação com a ideia de
promoção da dignidade humana (pelo menos quanto à sua configuração ocidental).
A experiência chinesa de modernização ocidentalizante é complexa. Como vimos, conta
tanto com uma primeira fase construída em termos próximos a um liberalismo nacionalista, quanto
com uma segunda fase marcada pela recepção do modelo socialista soviético, por sua vez seguida de
uma radicalização à própria maneira do Socialismo de Estado na experiência do Maoísmo e da
Revolução Cultural, culminando, por fim, em um processo autodenominado de “abertura”,
atualização e flexibilização do modelo socialista, que permitiu tanto a peculiar introdução chinesa do
capitalismo no socialismo quanto a suposta, ou pelo menos oficialmente anunciada, ascensão da
ordem constitucional ao patamar de superioridade na hierarquia nomológica estruturadora do Estado
chinês.
As análises e reflexões críticas desenvolvidas nessa pesquisa permitiram concluir que a
cultura constitucional chinesa contemporânea, em que pesem as transformações em direção ao
discurso dos direitos civis e sociais, ainda se faz marcada por um utilitarismo e um pragmatismo
constitucional (um uso estratégico e instrumental do discurso constitucional), daí derivando uma
dificuldade de se tratar a Constituição e os direitos fundamentais como fim da experiência político-
estatal, continuando esses a funcionar muito mais como meio legitimador do fazer político em tempos
de globalização, que como razão de ser do Estado e do Partido.
Assim sendo, apesar da demonstração que fizemos da presença do discurso dos direitos
humanos e da dignidade humana na nomologia constitucional chinesa, constatamos que a herança
marxista-maoísta (recente, se consideramos a cronologia chinesa) mitiga a força normativa desses
dispositivos constitucionais, tendo em vista a permanência de técnicas de exercício da regulação
social e organização das políticas públicas centradas em um sistema político em que o foco são os
norteamentos e metas do Partido Comunista chinês (que pode ser considerado o amálgama da elite
burocrática chinesa). Internamente, a elite burocrática chinesa entende que a experiência de partido
único não impediu a consolidação de um sistema democrático de deliberação política em seu país,
mas a impossibilidade, por exemplo, de o Poder Judiciário na China citar diretamente a Constituição
como fonte para decidir e julgar questões envolvendo direitos civis e sociais (tal como demonstrado
na tese) evidencia, no mínimo, um desequilíbrio no balanceamento de poderes na cultura
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constitucional chinesa, cujo resultado se traduz, sobretudo, em uma dificuldade de empoderamento
da sociedade civil chinesa ante o status quo político estabelecido.
No contexto desse estado de coisas, foram analisadas criticamente nessa pesquisa uma
amostragem de posicionamentos de intelectuais chineses dedicados ao estudo do fenômeno
constitucional, dos direitos humanos e do discurso da dignidade humana na China. Dessa análise
concluiu-se por um complexo cenário de posições no atual debate chinês acerca desses temas. Uma
possível tipificação explicativa alcançada na tese organiza o debate constitucional sobre direitos
fundamentais na China em uma dicotomia entre aqueles autores que procuram defender uma
interpretação da dignidade humana exclusivamente como “direito a subsistência”, e aqueles que a
entendem em termos mais voltados a direitos de “autoexpressão”, especialmente vinculados à
participação política, expressão e liberdade de pensamento, autonomia individual, etc.
Para os primeiros, a baixa permeabilidade da China à conversação global, seja por questões
geopolíticas, ou por questões culturais, aparece como pressuposto determinante da interpretação da
dignidade humana, que assume um caráter instrumental, como consequência de se entender direitos
em uma perspectiva utilitária ou pragmática.
Já para a segunda tipificação de autores, é justamente a internacionalização da China e a
“racionalização” de seu sistema legal que direcionariam a concepção de dignidade que deveria,
segundo eles, vingar na China. A objeção dos primeiros a esses normalmente se dá na acusação do
caráter acriticamente ocidentalizante que, por vezes, possui.
O primeiro grupo de autores, que acaba por ser maioria hoje na cultura constitucional
chinesa, fundamenta aquela interpretação tanto pela permanência na tradição marxista-leninista-
maoísta, quanto pela alternativa de emprego de uma perspectiva cientificista sobre desenvolvimento,
com a peculiar nota da inversão, na China, do axioma sustentado pelo Law & Development, de que a
implementação do Estado de direito implicaria desenvolvimento social e econômico. Assim, para o
grupo majoritário de constitucionalistas chineses, seria, como vimos, o desenvolvimento econômico
e social que acabaria resultando em um avanço no que concerne aos direitos humanos, em
concomitância à contínua ascensão da nação enquanto ator global.
Já no segundo grupo de autores, vimos que a abordagem acaba por ser mais denunciativa,
dando ênfase nas insuficiências e omissões das práticas governamentais chinesas quanto à promoção
de direitos de dignidade, bem como se sustentando com recurso a experiências no direito comparado.
A denúncia de casos de desrespeito patente e latente aos direitos humanos na China
contemporânea acaba por aparecer (ainda que de forma não ostensiva) na literatura produzida por
essa segunda perspectiva, enquanto se faz praticamente inexistente na produção intelectual dos
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constitucionalistas chineses ligados ao status quo.
Assim, configura-se na China um hiato entre declaração e promoção de direitos humano-
fundamentais. O caso chinês não é o de um país que não cumpre suas leis (como nos parecer ser o
caso brasileiro). O caso chinês é o caso de um país que cumpre suas leis, mas que enxerga os deveres
nelas previstos como superiores e anteriores aos direitos, e as regulamentações administrativo-
burocráticas como as balizas principais, em que a Constituição é apenas um símbolo de uma nova
utopia (a do desenvolvimento econômico pleno), cuja busca justifica e legitima regras do dia a dia
que contrariam a própria utopia constitucional.
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CONSTITUIÇÃO, CONSTITUCIONALISMO E EFETIVIDADE NA CHINA: ILAÇÕES […]
Diva Julia Sousa da Cunha Safe Coelho
Doutora em Cidadania e Direitos Humanos pela Universidade de Barcelona. Mestre em
Filosofia Política pela Universidade Federal de Goiás. E-mail: [email protected]
Saulo de Oliveira Pinto Coelho
Mestre e Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, com estágio pós-
doutoral na Universidade de Barcelona. Coordenador do Programa de Pós-Graduação em
Direito e Políticas Públicas (Mestrado Profissional) da Universidade Federal de Goiás. E-
mail: [email protected]
Ricardo Martins Spindola Diniz
Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília. Bacharel
em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás. E-mail: