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UNIDADE 1 – INTRODUÇÃO AO FILOSOFAR. *João Vicente Hadich Ferreira 1 “SER ou NÃO SER, eis a questão” dirá Sheakspeare 22 séculos depois da primeira indagação sobre o SER. Uma depreciação da profundidade desta indagação seria o popular “será que ele É?”, ao que cada um deverá responder dando conta de sua opção sexual. Para Moisés Deus disse: “EU SOU te envia”, respondendo a angustiada pergunta do profeta: “quem, direi ao faraó que me envia?” Por outro lado, a resposta “SOU, mas quem não É?” poderá justificar a consciência de quem não deseja mudar e, “SOU produto do meio” poderá endossar apenas uma visão determinista de um “SER” sem liberdade para construir-se. Profunda e intrigante, a questão do “SER” já aparece entre os gregos e, Parmênides, dos primórdios do pensar criticamente afirmará: “o SER É e, o não-SER, não É”. Aparentemente simplória, a conclusão parmenídea revelará a identidade entre o SER e o PENSAR, fundamentando o PRINCÍPIO de NÃO-CONTRADIÇÃO, assaz importante para o pensamento lógico. Mas, para quê nos interessa tudo isto? Evocar a questão do ser é adentrar num dos campos de estudo da FILOSOFIA, a metafísica e, neste sentido, despertar nosso próprio ser para o pensar de um modo diferente. Despertar para o pensar... em que implica isto? Nós já não pensamos naturalmente? Mas que tipo de pensamento nós temos, que “pensar” praticamos? Um pensamento livre? Ou será um pensamento formatado, definido por alguém ou por algum sistema? Somos autônomos, ou seja, capazes de pensar por nós mesmos ou dependemos exclusivamente do pensamento de outros para podermos “viver”? Afinal de contas, o que somos? É a questão do SER que se apresenta... Pensar, palavra tão corriqueira, que nos diferencia dos animais, esconde muito mais do que o simples ato de fazer contas ou ouvir coisas... está além da condição de entender palavras pelo simples processo de memorização ou visualização. Mas o que é pensar? Aqui somos convidados para uma viagem que, podemos ficar tranqüilos, não envolve substâncias ilícitas mas, apenas e tão somente, um exercício: o pensar! É uma viagem pelo mundo de sophia, palavra grega derivada de sophos (sábio) e que significa sabedoria. Unida à palavra philo, que derivou de philia (amor, amizade), deu origem à palavra philosophia, ou seja, filosofia que, etimologicamente significa “amor pela sabedoria”. Aventurar-se portanto no mundo da FILOSOFIA é a proposta, não no sentido de tornarmo- nos professores de filosofia mas de descobrir que somos naturalmente filósofos. Como dizia Kant, não se ensina filosofia mas apenas a filosofar. E, filosofar, é pensar!!! Que maravilha e que impressionante é o homem! Por isso, falar em educação, falar em conhecimento, falar no pensamento é falar dessa complexidade que é o ser humano. É falar em cultura, é falar no processo de humanização, no nascimento e na importância da linguagem, sua relação com o conhecimento e com a educação. O homem, essa aventura interminável a ser vivida, descoberta. Pensar talvez, seja tanto mais complexo quanto mais complexo descobrimos que é o homem. Por isso, pensar é uma grande aventura. Como dizia Lupicínio Rodrigues, “o pensamento parece uma coisa à-toa, mas como é que a gente voa quando começa a pensar!” Portanto, dentro desta proposta, algumas questões apresentam-se inevitavelmente: por quê pensar é uma “aventura filosófica?” Mas, o que é filosofia? Pra que serve? Por que estudar ou ensinar Filosofia? Como responder a estas e outras questões que nos afetam? Questões existenciais, como por exemplo: “Quem sou”? “De onde vim”? “Para onde vou”? “Há um sentido para a vida?”. O homem sempre buscou explicações que justificassem sua existência. Como já nos dizia PASCAL, o homem é um ser pensante: O homem não passa de um caniço, o mais fraco da natureza, mas é um caniço pensante. Não é preciso que o universo inteiro se arme para esmagá-lo: um vapor, uma gota de água, bastam para matá-lo. Mas, mesmo que o universo o esmagasse, o homem seria ainda mais nobre do que quem o mata, porque sabe que morre e a vantagem que o universo tem sobre ele; o universo desconhece tudo isso. Toda a nossa dignidade consiste, pois, no pensamento. O homem portanto, pensa, não apenas vive. Dirá o existencialismo, corrente da filosofia surgida no século XX que o homem é o único ser que existe, ou seja, que tem consciência de seu ser. As coisas não existem como consciência, como o homem. O homem pode refletir sobre si, olhar-se de fora, fazer a aventura da auto-reflexão... o homem tem consciência...consciência de si. Tal capacidade, que difere o homem de todos os seres vivos existentes no mundo, possibilitou não apenas conviver com a realidade, mas também conhecê-la, apreendê-la e explicá-la. Pensar é tão fantástico que não nos torna os mais fortes necessariamente, os mais perfeitos tecnicamente mas, nos torna diferentes, humanos e únicos. A capacidade de pensar nos permite criar, projetar. Dizia o existencialismo também que o homem é um projeto, o único capaz de projetar-se. Mesmo numa teoria mais materialista, MARX - nos seus estudos sociais e na produção da sua teoria - enaltece a capacidade do homem de pensar: As abelhas constroem colméias tão perfeitas que poderiam envergonhar a mais de um mestre-de- obras. Mas o pior mestre-de-obras é superior à melhor abelha porque, antes de executar a construção, ele a projeta em seu cérebro. Pensar portanto, é uma grande viagem! Podemos num momento estar aqui e noutro instante localizarmo-nos em qualquer lugar. Criamos teorias e buscamos conhecer mistérios. Pensamos em Deus e pensamos na vida. Mesmo prisioneiros fisicamente de situações adversas, podemos ser livres e independentes no nosso pensamento, na nossa alma. Como diria Jean- Paul Sartre, “o homem é condenado a ser livre”. Mas, o que é esta liberdade de pensar então? Pensar é buscar respostas, é querer conhecer, entender, descobrir, explicar. O homem que pensa pergunta, quer saber sobre si e sobre a realidade, a que ele vê e a que ele 1 Professor de Filosofia, formado pela Universidade Estadual de Londrina – U.E.L., com pós-graduação em Filosofia Moderna e Contemporânea: aspectos Éticos e Políticos pela mesma Universidade. 1

Apostila 1 filosofia cpia

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UNIDADE 1 – INTRODUÇÃO AO FILOSOFAR.*João Vicente Hadich Ferreira1

“SER ou NÃO SER, eis a questão” dirá Sheakspeare 22 séculos depois da primeira indagação sobre o SER. Uma depreciação da profundidade desta indagação seria o popular “será que ele É?”, ao que cada um deverá responder dando conta de sua opção sexual. Para Moisés Deus disse: “EU SOU te envia”, respondendo a angustiada pergunta do profeta: “quem, direi ao faraó que me envia?” Por outro lado, a resposta “SOU, mas quem não É?” poderá justificar a consciência de quem não deseja mudar e, “SOU produto do meio” poderá endossar apenas uma visão determinista de um “SER” sem liberdade para construir-se. Profunda e intrigante, a questão do “SER” já aparece entre os gregos e, Parmênides, dos primórdios do pensar criticamente afirmará: “o SER É e, o não-SER, não É”. Aparentemente simplória, a conclusão parmenídea revelará a identidade entre o SER e o PENSAR, fundamentando o PRINCÍPIO de NÃO-CONTRADIÇÃO, assaz importante para o pensamento lógico. Mas, para quê nos interessa tudo isto?

Evocar a questão do ser é adentrar num dos campos de estudo da FILOSOFIA, a metafísica e, neste sentido, despertar nosso próprio ser para o pensar de um modo diferente. Despertar para o pensar... em que implica isto? Nós já não pensamos naturalmente? Mas que tipo de pensamento nós temos, que “pensar” praticamos? Um pensamento livre? Ou será um pensamento formatado, definido por alguém ou por algum sistema? Somos autônomos, ou seja, capazes de pensar por nós mesmos ou dependemos exclusivamente do pensamento de outros para podermos “viver”? Afinal de contas, o que somos? É a questão do SER que se apresenta... Pensar, palavra tão corriqueira, que nos diferencia dos animais, esconde muito mais do que o simples ato de fazer contas ou ouvir coisas... está além da condição de entender palavras pelo simples processo de memorização ou visualização. Mas o que é pensar? Aqui somos convidados para uma viagem que, podemos ficar tranqüilos, não envolve substâncias ilícitas mas, apenas e tão somente, um exercício: o pensar! É uma viagem pelo mundo de sophia, palavra grega derivada de sophos (sábio) e que significa sabedoria. Unida à palavra philo, que derivou de philia (amor, amizade), deu origem à palavra philosophia, ou seja, filosofia que, etimologicamente significa “amor pela sabedoria”.

Aventurar-se portanto no mundo da FILOSOFIA é a proposta, não no sentido de tornarmo-nos professores de filosofia mas de descobrir que somos naturalmente filósofos. Como dizia Kant, não se ensina filosofia mas apenas a filosofar. E, filosofar, é pensar!!! Que maravilha e que impressionante é o homem! Por isso, falar em educação, falar em conhecimento, falar no pensamento é falar dessa complexidade que é o ser humano. É falar em cultura, é falar no processo de humanização, no nascimento e na importância da linguagem, sua relação com o conhecimento e com a educação. O homem, essa aventura interminável a ser vivida, descoberta. Pensar talvez, seja tanto mais complexo quanto mais complexo descobrimos que é o homem. Por isso, pensar é uma grande aventura. Como dizia Lupicínio Rodrigues, “o pensamento parece uma coisa à-toa, mas como é que a gente voa quando

começa a pensar!” Portanto, dentro desta proposta, algumas questões apresentam-se inevitavelmente: por quê pensar é uma “aventura filosófica?” Mas, o que é filosofia? Pra que serve? Por que estudar ou ensinar Filosofia?

Como responder a estas e outras questões que nos afetam? Questões existenciais, como por exemplo: “Quem sou”? “De onde vim”? “Para onde vou”? “Há um sentido para a vida?”.

O homem sempre buscou explicações que justificassem sua existência. Como já nos dizia PASCAL, o homem é um ser pensante:

O homem não passa de um caniço, o mais fraco da natureza, mas é um caniço pensante. Não é

preciso que o universo inteiro se arme para esmagá-lo: um vapor, uma gota de água, bastam para matá-lo. Mas,

mesmo que o universo o esmagasse, o homem seria ainda mais nobre do que quem o mata, porque sabe que

morre e a vantagem que o universo tem sobre ele; o universo desconhece tudo isso. Toda a nossa dignidade

consiste, pois, no pensamento.

O homem portanto, pensa, não apenas vive. Dirá o existencialismo, corrente da filosofia surgida no século XX que o homem é o único ser que existe, ou seja, que tem consciência de seu ser. As coisas não existem como consciência, como o homem. O homem pode refletir sobre si, olhar-se de fora, fazer a aventura da auto-reflexão... só o homem tem consciência...consciência de si.

Tal capacidade, que difere o homem de todos os seres vivos existentes no mundo, possibilitou não apenas conviver com a realidade, mas também conhecê-la, apreendê-la e explicá-la. Pensar é tão fantástico que não nos torna os mais fortes necessariamente, os mais perfeitos tecnicamente mas, nos torna diferentes, humanos e únicos. A capacidade de pensar nos permite criar, projetar. Dizia o existencialismo também que o homem é um projeto, o único capaz de projetar-se. Mesmo numa teoria mais materialista, MARX - nos seus estudos sociais e na produção da sua teoria - enaltece a capacidade do homem de pensar:

As abelhas constroem colméias tão perfeitas que poderiam envergonhar a mais de um mestre-de-

obras. Mas o pior mestre-de-obras é superior à melhor abelha porque, antes de executar a construção, ele a

projeta em seu cérebro.

Pensar portanto, é uma grande viagem! Podemos num momento estar aqui e noutro instante localizarmo-nos em qualquer lugar. Criamos teorias e buscamos conhecer mistérios. Pensamos em Deus e pensamos na vida. Mesmo prisioneiros fisicamente de situações adversas, podemos ser livres e independentes no nosso pensamento, na nossa alma. Como diria Jean-Paul Sartre, “o homem é condenado a ser livre”. Mas, o que é esta liberdade de pensar então? Pensar é buscar respostas, é querer conhecer, entender, descobrir, explicar. O homem que pensa pergunta, quer saber sobre si e sobre a realidade, a que ele vê e a que ele

1 Professor de Filosofia, formado pela Universidade Estadual de Londrina – U.E.L., com pós-graduação em Filosofia Moderna e Contemporânea: aspectos Éticos e Políticos pela mesma Universidade.

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não vê. Podemos afirmar que o homem que pensa, produz conhecimento e comunicação, aprende também a filosofar, ou seja, a ordenar seu pensamento em função de iluminar as trevas da razão.2 Por isso, o homem que filosofa suspeita a existência de outra realidade que não a apenas aparente, e busca desvelá-la decifrando os enigmas que a permeiam.3

Mas, qual é a realidade? Ou, filosoficamente perguntando, o que é a realidade? Aqui está um dos papéis da filosofia. É a inquietação com o que está dado. É o voltar-se sobre o que está dito e explicado. Como escreveu MERLEAU-PONTY, a verdadeira filosofia é reaprender a ver o mundo. Reaprender a ver o mundo é um bom ponto de partida. A leitura que fazemos do nosso mundo, a nossa vivência, os nossos valores, as nossas crenças... Tudo influi na nossa visão de mundo. Deste ponto, destes questionamentos, nasceu a filosofia na Grécia. Eis uma boa questão: qual é o mundo que vemos? Que mundo vivemos? Que sociedade criamos? É uma sociedade crítica? Formamos as pessoas para que mundo: o mundo do SER ou o mundo do TER? Que sociedade criamos e reproduzimos, que existência defendemos para o homem: a da humanidade ou a da “coisificação”? A escola esclarece ou ideologiza o pensamento? Costumo dizer que vivemos uma sociedade do “fast-food”. Você sabe o que é um fast-food, não é? Exatamente: “comida rápida”. São aquelas lanchonetes e restaurantes que te servem em cinco minutos, que te “satisfazem” rapidamente. O problema é que, como a comida rápida, que se apresenta como a melhor alternativa para a vida corrida do dia-a-dia, assim toda informação praticamente se constrói na sociedade do “tudo pronto” e do “descartável”. Somos educados dentro do lema “tempo é dinheiro!”. Portanto, não “podemos” perder tempo. Por isso, ávidos por informações, mais do que por uma boa formação, estamos nos tornando extremamente generalistas e vazios, transformando nosso cérebro muitas vezes num voraz consumidor da informação fast-food, como nosso estômago acostuma-se com o alimento rápido. É inevitável portanto que, nesta sociedade do consumo rápido, imediatamente depois de experimentarmos a ilusão de que fomos informados sobre tudo, percebemos que nada sabemos.4

Libertar-se da ideologia dominante, construir o pensamento crítico, refletir sobre a realidade, não aceitar o que está posto - dado como verdade - sem questionar-se, sem procurar “ler a entrelinha”, é pensar o próprio pensamento. Por isso podemos dizer que FILOSOFIA É O DESENVOLVIMENTO DA CAPACIDADE DE PENSAR O PRÓPRIO PENSAMENTO. Pensar todos praticamente pensam mas, pensar o próprio pensamento... é um exercício.

Como escreveu BRECHT, Nós vos pedimos com insistência: Não digam nunca: isso é natural! Diante dos acontecimentos de cada dia, Numa época em que reina a confusão, Em que corre sangue, Em que o arbitrário tem força de lei, Em que a humanidade se desumaniza, Não digam nunca: isso é natural! Para que nada passe a ser imutável!”

A Filosofia busca um despertar, um “algo” diferente para o que é comum. É a busca de uma ordem, da reflexão, como nos apontam DELEUZE & GUATTARI: Pedimos somente um pouco de ordem para nos proteger do caos. Nada é mais doloroso, mais angustiante do que um pensamento que escapa a si

2 LOVO & RODRIGUES, 2000, p. 4.3 Idem, ibidem. 4 CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia, 2003, p. 298.

mesmo, idéias que fogem, que desaparecem apenas esboçadas, já corroídas pelo esquecimento ou precipitadas em outras, que também não dominamos. [...] Perdemos sem cessar nossas idéias. É por isso que queremos tanto agarrar-nos a opiniões prontas.

A filosofia portanto, não quer calar. A sua proposta é de esclarecimento. Sobre esta questão, é muito interessante a explicação kantiana sobre “o que é o esclarecimento” no seu artigo de 1783: Esclarecimento [‘Aufklärung’] é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. É a idéia de autonomia do sujeito (autonomia do grego autós – eu próprio e nomos – norma, ou seja, o indivíduo capaz de determinar suas próprias normas). Como escreveu JEAN-PIERRE VERNANT, a filosofia traz o mistério para a praça. Não faz mais dele o motivo de uma visão inefável, mas o objeto de uma investigação em pleno dia. Através do livre diálogo, do debate argumentado ou do enunciado didático, o mistério se transmuta em um saber cuja vocação é ser universalmente compartilhado. É o querer nietzcheano ao afirmar que caça homens como verdadeiro corsário, não para vendê-los como escravos, mas para levá-los consigo para a liberdade. É, com certeza, uma grande aventura.

FRAGMENTOS: QUAL A “UTILIDADE” DA FILOSOFIA?

Para responder à questão, precisamos saber primeiro o que entendemos por utilidade. Eis o primeiro impasse. Vivemos num mundo em que a visão das pessoas está marcada pela busca dos resultados imediatos do conhecimento. Então, é considerada importante a pesquisa do biólogo na busca da cura do câncer; ou o estudo de matemática no ensino médio porque “entra no vestibular”; e constantemente o estudante se pergunta: “Para que vou estudar isto, se não usarei na minha profissão?”

Seguindo essa linha de pensamento, a filosofia seria realmente “inútil”: não serve para nenhuma alteração imediata de ordem pragmática. Neste ponto, ela é semelhante à arte. Se perguntarmos qual é a finalidade de uma obra de arte, veremos que ela tem um fim em si mesma e, nesse sentindo, é “inútil”.

Entretanto, não ter utilidade imediata não significa ser desnecessário. A filosofia é necessária.

Onde está a necessidade da filosofia?Esta no fato de que, por meio da reflexão

(aquele desdobrar-se, lembra-se?), a filosofia permite ao homem ter mais de uma dimensão, além da que é dada pelo agir imediato no qual o “homem prático” se encontra mergulhado.

É a filosofia que dá o distanciamento para a avaliação dos fundamentos dos atos humanos e dos fins a que eles se destinam; reúne o pensamento fragmentado da ciência e o reconstrói na sua unidade; retoma a ação pulverizada no tempo e procura compreendê-la.

Portanto, a filosofia é a possibilidade da transcendência humana, ou seja, a capacidade que só o homem tem de superar a situação dada e não-

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escolhida. Pela transcendência, o homem surge como ser de projeto, capaz de liberdade e de construir o seu destino.

O distanciamento é justamente o que provoca a aproximação maior do homem com a vida. Whitehead, lógico e matemático britânico contemporâneo, disse que “a função da razão é promover a arte da vida”. A filosofia recupera o processo perdido no imobilismo das coisas feitas (mortas porque já ultrapassadas). A filosofia impede a estagnação.

Por isso, o filosofar sempre se confronta com o poder, e sua investigação não fica alheia à ética e à política. É o que afirma o historiador da filosofia François Châtelet: “Desde que há Estado – da cidade grega às burocracias contemporâneas –, a idéia de verdade sempre se voltou, finalmente, para o lado dos poderes (ou foi recuperada por eles, como testemunha, por exemplo, a evolução do pensamento francês do século XVIII ao século XIX). Por conseguinte, a contribuição específica da filosofia que se coloca ao serviço da liberdade, de todas as

liberdades, é a de minar, pelas análises que ela opera e pelas ações que desencadeia, as instituições repressivas e simplificadoras: quer se trate da ciência, do ensino, da tradução, da pesquisa, da medicina, da família, da polícia, do fato carcerário, dos sistemas burocráticos, o que importa é fazer aparecer a máscara, deslocá-la, arrancá-la...”

Finalmente, a filosofia exige coragem. Filosofar não é um exercício puramente intelectual. Descobrir a verdade é ter a coragem de enfrentar as formas estagnadas do poder que tentam manter o status quo, é aceitar o desafio da mudança. Saber para transformar.

Lembremos que Sócrates foi aquele que enfrentou com coragem o desafio máximo da morte.

(ARANHA, M. L. de Arruda; MARTINS, M. H. Pires. Filosofando: introdução à filosofia. 2ª ed. rev. e atualizada. São Paulo: Moderna, 2001.)

UNIDADE 2 – O PENSAMENTO MÍTICO E O MITO NA GRÉCIA.*João Vicente Hadich Ferreira

Para melhor compreendermos como nasce a Filosofia, é fundamental entendermos primeiro como se dá e o que representa um tipo de pensamento tão antigo quanto o próprio homem: o mito. Compreender a questão do mito não implica em estabelecer um olhar negativo, condenatório mas, na realidade, buscar as bases desta forma quase natural, ou imediata, do homem dar respostas aos problemas que o afligem. Na Filosofia não entenderemos o mito de forma pejorativa ou completamente negativa. Para nós, o mito é a primeira forma de explicação que o homem encontra para aquilo que ele desconhece. Todos os povos, todas as culturas possuem seus mitos: egípcios, babilônios, caldeus, romanos, gregos... Hoje ainda transmitimos nossos mitos de geração em geração, tornando plausíveis explicações que poderiam ser no mínimo constrangedoras para os nossos filhos se recorrêssemos apenas à racionalidade. Por exemplo, quando os pais recorrem ao mito da cegonha, buscam dar a explicação para a indagação da criança supondo que o interesse dela é o mesmo que eles pensam como resposta: o sexo. O que a criança espera é uma reposta à sua pergunta sobre a sua origem, se ela é filha deles na verdade e não um tratado de sexologia. Recorremos a vários tipos de mitos, como o Papai Noel e Coelhinho da Páscoa, ou a mitos de “heróis”, buscando tranqüilizar nossa realidade, nossos sentimentos. Num determinado momento, contudo, o mito não satisfará mais como resposta à criança que amadureceu e, nem tampouco será coerente com a realidade que ela observa. Neste sentido, ela buscará uma explicação mais racional. Assim acontece com o homem na história do pensamento. No início, tudo era explicado através dos

mitos mas, em determinado momento, é preciso uma racionalidade maior, a necessidade de uma explicação mais coerente e científica para os fenômenos.

O mito, portanto, pode ser compreendido já de início, como a primeira forma de explicação que o homem tem para os fenômenos que contempla e para as realidades em que se encontra e, cujas respostas, ele desconhece. Mas, qual a definição de mito? Um olhar apressado pode levar-nos ao “olhar negativo” sobre o mesmo, onde o mito aparece-nos apenas como sendo algo fabuloso, alegórico, sem realidade. Podemos ver, por exemplo, no mini-dicionário Silveira Bueno a seguinte explicação: fato, passagem dos tempos fabulosos, tradição que, sob forma de alegoria, deixa entrever um fato natural histórico ou filosófico; (fig.) coisa inacreditável, sem realidade.5 A definição não está errada mas, dentro da concepção filosófica, porém, interessa-nos aprofundar um pouco mais esta questão.

Vinda do grego mythos, a palavra mito é derivada de dois verbos especificamente: mytheyo (que significa contar, narrar, falar alguma coisa para outros) e mytheo (que apresenta a idéia de conversar, contar, anunciar, nomear, designar). A importância disto é que os gregos entendiam o mito como sendo um discurso pronunciado ou proferido para ouvintes que recebem a narrativa como verdadeira porque confiam naquele que narra; é uma narrativa feita em público, baseada, portanto, na autoridade e confiabilidade da pessoa do narrador.6 Este narrador ou presenciou os fatos narrados, testemunhou-os pessoalmente ou conheceu quem o fez e recebeu dele a narrativa. Na tradição grega, quem detinha esta autoridade eram os poetas, ou os chamados aedos e rapsodos. Eram cantores ambulantes que apresentavam de forma poética os relatos populares, recitando-os de cor em praça pública (ARANHA & MARTINS, 2003, p. 79). Sua narrativa era

5 BUENO, Silveira. Minidicionário da Língua Portuguesa, p. 435.6 CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia, 2003, p. 35.

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respeitada porque acreditava-se que o poeta era um escolhido dos deuses. Estes, ao escolherem-no, mostravam-lhe os acontecimentos passados e permitiam que eles vissem a origem de todos os seres e de todas as coisas para que pudessem transmiti-las aos ouvintes (CHAUÍ, 2003, p. 35). Portanto, sua palavra – o mito – é sagrada porque vem de uma revelação divina. O mito é, pois, incontestável e inquestionável.7

Apesar do mito pertencer à cultura dos mais diversos povos, dedicaremos nossa atenção de forma especial aos gregos. O motivo disto está em que, a Filosofia, no entendimento que nos interessa abordar, é grega e fundamentou todo o pensamento Ocidental a partir do pensamento grego. Veremos que a Filosofia nasce na Grécia e que, somente lá houve uma sistematização do pensamento de tal forma a propiciar a passagem deste pensamento mítico para o que os gregos chamaram de logos, ou seja, a razão, a palavra, o discurso racional.

A preocupação do mito não está na veracidade, no provar a realidade mas, apenas e tão somente em explicá-la. Sem respostas para os sentimentos, fatos e fenômenos que contempla, o homem recorre a mitos e encontra respostas que lhe dão segurança. Saber o que é o amor, por que o universo está estruturado como está, por que a colheita foi boa ou não, são algumas das indagações que tomam conta do homem antigo. Procurando respostas, os gregos apresentaram seus mitos relacionados à genealogias. Tais genealogias são compreendidas como teogonias e cosmogonias. A palavra gonia, do verbo grego gennao (engendrar, gerar, fazer nascer e crescer) e do substantivo genos (nascimento, gênese, descendência, gênero, espécie), unida à palavra theos (deuses, coisas divinas ou seres divinos), representa a idéia do nascimento, da origem dos deuses, ou seja, teogonia. No caso da cosmogonia, a mesma palavra gonia aparece unida à palavra cosmos (mundo ordenado e organizado, o contrário de caos), o que nos remete à idéia do nascimento e a organização do mundo a partir de forças geradoras (pai e mãe) divinas.8

Para apresentar estas origens, do mundo e das coisas, os mitos narram-nas de três maneiras: relatam o nascimento de tudo a partir da relação sexual entre os seres divinos que governam o mundo e os homens (mitos sobre o nascimento dos titãs, dos heróis, dos humanos, dos animais, dos materiais da natureza e das qualidades, como bem e mal, justo e injusto, o nascimento do amor através do mito de eros...), da luta entre estes deuses que afeta o mundo humano (o ciúme das deusas na origem da Guerra de Tróia, por exemplo) e das alianças destes com os homens (o mito de Prometeu, que protegia os homens e lhes dá a “luz divina” como presente). Os deuses gregos, neste sentido, eram antropomórficos (do grego antropós = homem e morfo = forma), ou seja, criados à imagem e semelhança dos homens, diferentemente da concepção judaico-cristã, onde Deus nos fez a sua imagem e semelhança. Criando e crendo em vários deuses – era uma cultura politeísta -, a relação que estabeleciam com o divino era uma relação com a natureza. Por isso o antropomorfismo, onde estes seres divinos não diferenciavam-se muito dos homens em seus sentimentos e atitudes (eram bons ou maus, invejosos, ciumentos, apaixonavam-se por humanos ou humanas e protegiam os homens ou faziam deles seus joguetes...) e

7 Idem, ibid.8 Idem, p.36.

representavam a própria natureza (a beleza, o amor, a colheita, a fertilidade...).

Toda esta tradição mítica dos gregos foi construída, como já apontamos, a partir da autoridade dos poetas. Os dois grandes representantes desta tradição foram Homero e Hesíodo. Ao primeiro atribuem-se duas grandes obras clássicas: a Ilíada e a Odisséia. A Ilíada trata da Guerra de Tróia (Ílion é o original grego de Tróia) e a Odisséia refere-se ao retorno de Ulisses (cujo nome em grego é Odisseu) para casa após a guerra. É bem verdade que não temos a confirmação histórica de que Homero realmente as tenha escrito. O mais provável é que tenha sido o compilador dos mitos e tradições que se mantinham por gerações. O fato é que sua importância é fundamental na construção desta tradição. E é exatamente esta tradição, a chamada “tradição homérica” que Platão criticará quando “expulsa” os poetas da sua “cidade perfeita”. Homero representa o ápice e a vitalidade de todo um impulso cultural dos gregos. É considerado o “pai” da cultura helênica pois, dele, deriva a idéia marcante da mitologia grega: o destino, que comanda a vida dos homens e dos deuses. E esta força, atrelada ao mito é a pergunta básica na formação do pensamento ocidental: o que é essa força do destino que domina tudo? Por isso, a originalidade de Homero consiste no fato de ter legado à posteridade uma visão clara do espírito grego, em que a existência humana é profundamente permeada da presença do divino: cada momento da vida, nenhum detalhe da vida parece ter sentido sem referência à divindade. O ser divino não representa explicação, interrupção ou suspensão do curso natural do mundo: é o próprio mundo natural.9 Durante os séculos homéricos a narração se organiza em torno dos personagens divinos, sendo os humanos reduzidos à essências com o estatuto da quase-dependência. Por isso tudo se explica pelas cosmogonias e teogonias, conforme já foi relatado.

Num determinado momento contudo, o pensamento mítico começará a ser questionado. Não perderão suas crenças mas, buscando respostas de forma mais racional, os gregos darão nascimento ao pensamento filosófico. Por quê isto acontece na Grécia e não nos demais povos? No Egito e na China, entre os Caldeus e Babilônios, saberes também se construíram mas, nada como a Filosofia grega. O que permitiu à Grécia desenvolver tal condição? É o que tentaremos entender na próxima Unidade.

FRAGMENTOS: MITOS GREGOS

Um pai cruel.

No alto da luminosa montanha grega do Olimpo, na qual o ar era claro e transparente e onde reinava uma eterna primavera, habitava Cronos, o rei do Universo, num magnífico palácio.

Cronos, chamado Saturno pelos romanos, era filho de Géia (a Terra) e de Urano (o Céu), os quais haviam tido, antes, muitos filhos, chamados os Urânidas: doze Titãs, seis varões e seis mulheres; três Ciclopes (Brontes, Esteropes e Arges) e três Centímanos (Briareu, Cotos e Gias), que haviam sido

9 PAIM, Antônio; PROTA, Leonardo; RODRIGUEZ, Ricardo Velez. Curso de Humanidades 5 – Filosofia: guia de estudos, p. 45.

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todos precipitados pelo pai no Tártaro, para que não pudessem destroná-lo.

Cronos tomou por esposa a Réia, que se sentia muito infeliz porque tinha tido muitos filhos formosos e o cruel marido os havia devorado. Um oráculo anunciara ao feroz pai que seria destronado por um dos filhos e ele tratava de evitar essa desdita, engolindo-os quando nasciam.

A pobre mãe estava desesperada. Ao nascer-lhe um novo filho, ao qual pôs o nome de Zeus, saiu do Olimpo com o menino nos braços envolto no manto da Noite. Levou-o a uma gruta escondida na ilha de Creta e confiou-o ao cuidado das Ninfas. Depois, tranqüila quanto à sorte de seu último rebento, voltou aos altos cimos de sua régia morada e apresentou ao marido uma pedra envolta em paninhos, que ele engoliu, pensando que era o novo recém-nascido.

Titãs, Ciclopes e Centímanos.

Zeus, a quem os romanos, mais tarde, chamaram Júpiter, cresceu belo, forte e bom. Quando se tornou adulto, obedeceu ao que o Fado havia estabelecido: subiu ao Olimpo, destronou o pai e reinou em seu lugar. Mas os primeiros tempos do seu reinado foram turbulentos: ele era jovem e, portanto, inexperiente. Num momento de generosidade, pôs em liberdade os Titãs, monstros gigantescos, que, desde, muitos séculos, haviam sido encarcerados nas entranhas da Terra por Saturno. Eles, porém, em vez de ficarem agradecidos ao generoso soberano, saíram de sua morada subterrânea e, julgando-se com mais direito a reinar do que o próprio Zeus, assaltaram o Olimpo.

A luta contra os Titãs durou dez anos. Foi terrível e sem tréguas. Ao ver que não conseguia dominá-los, Zeus recorreu ao auxílio dos Ciclopes, irmãos dos Titãs, enormes gigantes de um olho só, no meio da testa e, para assegurar a vitória, pôs igualmente em liberdade os Centímanos (por ter cem mãos cada um). Desencadeou-se, então, uma espantosa luta: os Centímanos atiravam enormes penhascos contra os Titãs e os Ciclopes feriam-nos e queimavam-nos com raios de fogo. O ardor e a cólera dos combatentes sacudiam toda a terra, desde os seus alicerces, e seus gritos raivosos rasgavam o céu. Zeus, no meio da peleja, resplandecente no seu carro doirado, animava os seus defensores e lançava contra os inimigos poderosos raios, acompanhados de relâmpagos e trovões.

Por fim, decidiu-se a vitória e os Titãs foram precipitados no tenebroso Tártaro, por toda a eternidade.

Apenas vencidos os Titãs, Zeus teve de lutar novamente contra cem gigantes, nascidos do sangue de Urano, aos quais sua mãe, a Terra, incitou contra Zeus, para vingar aqueles; mas foram também derrotados. Depois desta nova e dura luta, chamada a Gigantomaquia, todos os deuses do Olimpo se submeteram a Zeus, que pode, então, reinar em paz sobre o Universo.

(MADEIRA, Marcos Almir (coord.). O livro dos nossos filhos: enciclopédia para adolescentes. Volume primeiro. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Editora Alfa S. A., 1961.)

UNIDADE 3 – NASCE A FILOSOFIA.* João Vicente Hadich Ferreira.

Filha dos gregos, a Filosofia tem data e local de nascimento específicos e, também, um “pai”, considerado o primeiro filósofo datado historicamente: Tales. Mileto, a cidade de Tales, ficava na Jônia, atual Turquia, uma das colônias micênicas desenvolvidas após a invasão dos dóricos. É exatamente aí portanto, na Jônia, no século VI a. C. que surge a primeira proposta filosófica. Mas, antes de tratarmos dos primeiros filósofos, vamos entender o contexto de formação do povo grego e o processo que levou ao nascimento do pensamento filosófico.

Geograficamente dispersa, a Grécia Antiga constituía-se por um grande número de pequenas comunidades independentes, no mar Mediterrâneo, desde o Jônia – atual Turquia -, na Ásia Menor até o sul da Itália. Apesar desta dispersão, havia uma certa unidade cultural, expressa por uma língua comum, formas de organização política semelhantes e mesmas crenças religiosas. A dispersão destas comunidades deveu-se, em grande parte, às invasões em busca de terras para cultivo mas, também, devido aos conflitos entre dois povos que praticamente formaram a cultura grega. Vindos da Europa, os micênicos, um povo mais avançado culturalmente, chega à Grécia por volta do ano 2.000 a. C. e, encontrando um povo mais atrasado na região, logo se estabelece como a cultura dominante. Os micênicos – ou aqueus, como também ficam conhecidos – encontravam-se na idade do bronze e tornam-se uma grande civilização, representada pela punjância da cidade de Micenas. Isto prevalece até que, por volta do séc. XII a. C., os dóricos – povo guerreiro que já dominava o ferro – invade a região e obriga o êxodo dos micênicos em busca de novas terras. Emigrando para a Ásia Menor - chamada Jônia na época -, os gregos fundaram novas colônias para fugir ao domínio dórico e preservar suas tradições. Desta colonização surgem duas cidades que se tornaram grandes centros culturais e econômicos: Mileto e Éfeso. Portanto, é nesse conjunto de comunidades independentes que, no século VI antes de Cristo, vai se formando um dos elementos que marcaram o surgimento do pensamento ocidental: a racionalidade.10

10 PAIM, Antonio; PROTA, Leonardo; RODRIGUEZ, Ricardo Velez. Filosofia – curso de Humanidades 5, 1999, p. 45.

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Como já podemos perceber, a filosofia não nasce na Grécia propriamente dita, mas na Jônia e na Magna Grécia, colônias desta no Oriente e no Ocidente. Mas, por quê nasce na Grécia e não nas culturas orientais antigas como Egito, Babilônia, China, Índia ou entre os Hebreus? Sofreu influência destas pelo menos ou, terá sido apenas um "milagre" o que aconteceu na Grécia? Este é um ponto que nos interessa discutir. Durante algum tempo duas teses foram defendidas para o fato de a Filosofia ter tido seu início na Grécia. Uma considerava o fato um “milagre”, ou seja, algo “a-histórico”, desconsiderando as condições sócio-econômico-culturais e políticas que faziam parte da cultura grega. A outra considerava o nascimento da Filosofia como sendo devida a “ensinamentos esotéricos que os gregos adquiriram em suas viagens pelo Oriente, ou seja, a Filosofia nasceu por influência dos povos orientais, sem mérito algum dos gregos e não, novamente, por um contexto sócio-cultural próprio que existia na Grécia. Estas duas correntes portanto, “milagre grego” versus influência oriental estão desacreditadas academicamente. A tese aceita atualmente defende o nascimento da Filosofia devido a uma série de fatores sócio-político-econômico-culturais que aconteceram somente na Grécia. Por isso, neste entendimento não foi possível o mesmo acontecer em outras culturas, não da forma como se dá no Ocidente. Com isto esclarecemos que, no entendimento acadêmico estamos falando da Filosofia Ocidental e não das “filosofias orientais”, que apresentam sua sabedoria e importância mas, num olhar mais depurado, não desenvolveram uma sistematização do pensamento de tal forma que permitisse o nascimento do que viria a ser conhecido posteriormente como ciência.

Retomando a questão da formação da Grécia, alguns contextos então contribuirão para uma construção diferente da cultura grega com relação às outras culturas. No mesmo período, as outras civilizações existentes apresentavam algumas características que, contrapostas à cultura grega, podem nos ajudar a esclarecer porque estes últimos apresentaram um terreno fértil para o surgimento da

ciência filosófica. Nas demais culturas geralmente existia uma casta sacerdotal dominante, responsável pela interpretação dos livros sagrados e de verdades reveladas, o que determinava o comportamento moral, político e econômico do povo. A escrita era restrita aos escribas – tratada como segredo e, portanto, acessível apenas à iniciados -, proibida aos homens comuns, o que impedia a ampla difusão e discussão de idéias. Religiões com dogmas e uma certa teologia elaborada eram outros fatores que impediam o livre desenvolvimento do pensamento, tornando a religião um instrumento de poder. Aliado a isto ainda, a cultura do poder vitalício do Rei e a figura do súdito, o que impedia qualquer manifestação política ou reflexão sobre a questão do poder. Pois bem, o contexto grego era contrário a este modo de ser.

Com o fim do domínio dórico, nós vemos a reconstrução da sociedade grega. Há um renascimento do comércio em torno do século VIII a.C. e a tendência à formação de centros maiores ao redor da ágora, - a praça pública - local das transações comerciais e das discussões sobre a vida da cidade. É o nascimento da política. Esclarece-nos Paim, Prota & Rodriguez (1999):

Vencendo o princípio de que todos são iguais diante da lei, a discussão torna-se a forma normal de tratar-se não só a política mas os acontecimentos em geral; prevalece a opinião de quem expõe suas idéias corretamente e com argumentos válidos, quer dizer há a supremacia do logos (que significa "palavra", "razão"). Assim que, enquanto antes os fenômenos divinos, naturais e humanos confundiam-se e eram vivenciados sem necessidades de explicação, com a pólis, esses fenômenos tornam-se problemas, à procura de explicação.11

11 PAIM, Antonio; PROTA, Leonardo; RODRIGUEZ, Ricardo Velez. Filosofia – curso de Humanidades 5, 1999, p. 47.

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Na estruturação política, cada comunidade grega era uma cidade-Estado – as chamadas polis -, autônoma, com a dimensão de pequeno município. Na Pólis é que se efetua a conquista política do estatuto cívico, da ordem da cidadania, na qual o destino de cada um é definido não pela obrigação de lealdade à um chefe, mas pela relação ao princípio abstrato que é a lei - primeira etapa. Num segundo momento. A democracia se instaura em Atenas. Apresenta-se a idéia de governo do povo ou, governo no "meio" do povo e não governo do "povinho". O grego tem consciência de sua cidadania porque participa da vida pública da cidade. Os destinos da pólis são de responsabilidade comum de todos os cidadãos, acima dos quais nada a não ser as leis que eles mesmos elaboraram. Escreve HOWART (1984):

Pode parecer exagero, porém acredito que seja justo afirmar que as realizações políticas e as experiências práticas de governo dos gregos, nas quais se basearam todas as formas modernas de política da Europa ocidental, pelo menos até a aparição do marxismo, não poderiam ter acontecido em outro ambiente que não fosse o da pólis. Conceitos tão familiares como, por exemplo, governo constitucional, império da lei, democracia e, acima de tudo, cidadania, eram completamente desconhecidos até que os gregos começaram a experimentá-los.12

O modelo de governo da pólis como esforço coletivo e exclusivo dos cidadãos, até então desconhecida em outras civilizações tem por fundamento a idéia de que os deuses abandonaram os homens. E a idéia do Destino, como força superior aos próprios deuses, sugere a visão democrática de que a lei está acima dos indivíduos. É nesse quadro que surge a reflexão filosófica, que busca uma lei universal, acima de todas as coisas, que possa explicar o homem e o mundo sem recorrer a forças divinas.

Outras condições histórico-sociais também foram proporcionando o questionamento do mito. O renascimento comercial citado exigiu do homem grego o “lançar-se ao mar” para encontrar novos mercados. Com o desenvolvimento das viagens marítimas, os gregos começam a confrontar os fatos reais com as tradições míticas. Chegando às ilhas e regiões que constituem o pano de fundo das epopéias e dos relatos poéticos, o grego não encontra as “divindades” e as “criaturas” citadas pela tradição. Singrando os mares não encontra as sereias e nem tampouco é confrontado com Posseidon13. Em Creta não depara-se com o Minotauro14

mas sim, com um povo que está disposto a comercializar também, como nas demais regiões. Questionamentos surgem sobre a veracidade do mito e a possibilidade ou não de encontrar novas explicações para os fatos e fenômenos antes entendidos apenas de forma mítica. Concomitante a isto, há a invenção da

12 HOWART, Ian. In.: HUMANIDADES, Ed. Universidade de Brasília, Janeiro / março – 1984 – vol. II – n.º 6, p. 170-171.13 Posseidon: na mitologia grega é o nome do “deus do mar”, irmão de Zeus. Teria, de acordo com o relato da Odisséia, sido o mentor dos problemas de Ulisses (do grego Odisseu) no seu retorno para casa. Para os romanos chamava-se Netuno.14 Minotauro: criatura que habitava o labirinto em Cretas, onde Minos, rei da ilha colocava seus inimigos para serem mortos pelo monstro. Teseu, o herói grego, vence a criatura e consegue sair do labirinto utilizando-se de um novelo de linha para reencontrar o caminho.

moeda e um desenvolvimento da escrita e do calendário. Criada pelos sumérios, a escrita ganha novo sentido com os gregos que descobrem-se capazes de expressar seu pensamento não mais de forma verbal apenas mas, a partir da concepção do alfabeto e da construção fonética, de forma mais elaborada, por escrito. Estes fatos exigem uma abstração do pensamento, um maior rigor na formulação das idéias e, conseqüentemente, uma mudança cultural. O grego descobre que não precisa trocar as mercadorias através de coisas concretas (um cavalo por um boi, por exemplo) mas sim, que é possível uma troca abstrata (um cavalo por 20 moedas, por exemplo). É o desenvolvimento da capacidade de elaboração do pensamento de forma diferente. O calendário produz condições semelhantes ao permitir uma observação sobre os dias e as estações do ano e, desta forma a percepção da natureza em seu curso, desmistificando a ação divina sobre os fenômenos da natureza (como no caso de a colheita ter sido boa ou ruim devido ao “deus” e não às condições climáticas ou época do ano). Por fim, o surgimento da vida urbana, que impulsiona este renascimento comercial e diminui o prestígio da classe aristocrática, proprietária de terras, faz nascer a política, que exige a construção de uma nova relação social, como já foi explicado anteriormente.

Por todos estes fatores portanto, e não por um “milagre” ou por “influência do oriente” como já esclarecemos, é que, no século VI a.C. Tales inicia a jornada que se tornará a grande aventura na História do Ocidente: o pensamento filosófico.

As mudanças começam a acontecer. Em torno do século V a.C. o homem, como cidadão-guerreiro, que fala e que combate, aparece como assumindo o seu destino. Nesta época, os gêneros culturais mudam de sentido e de estilo. A tragédia, antes fundamentalmente religiosa, torna-se cerimônia política. A história-geografia se afirma. As descrições lendárias e as genealogias míticas dão lugar à paisagens e costumes analisados e descritos com precisão. No campo da medicina surge um apelo pela investigação das causas das enfermidades e não mais aos recursos ambíguos da adivinhação. Na física o grego passa pouco a pouco das especulações mágicas para o estudo das relações fenomenais. A “arte da palavra” por sua vez deixa de ser privilégio das famílias nobres para ser o meio pelo qual todo cidadão dispõe, pelo menos em direito, para fazer valer suas opiniões e interesses.

O mito contudo, não perdeu sua beleza, seu sentido que propiciou todo este progresso. É uma forma diferente de olhar a realidade. Hesíodo fala em suas obras do "abandono dos deuses" com relação aos homens. Há um princípio de "secularização" do pensamento. O homem não precisa mais recorrer aos deuses para explicar o mundo. Na Teogonia – de Hesíodo - o homem encontra-se sem deuses, abandonado, mas livre para agir e pensar. Entre os séculos VIII e V a.C., portanto, desenvolve-se o esforço para a construção de uma sociedade justa, propiciada pelas condições históricas próprias do mundo grego. É neste contexto que nasce a filosofia e aparecem os primeiros filósofos, os chamados pré-socráticos.

FRAGMENTOS: “TUDO COMEÇOU...”

Tudo começou no início do século VI a.C., na cidade grega de Mileto, no litoral da Ásia Menor; onde os jônios estabeleceram colônias ricas e prósperas. No espaço de

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cinqüenta anos sucederam-se três homens, Tales, Anaximandro e Anaxímenes, cujas pesquisas são bastante próximas pela natureza dos problemas abordados e pela orientação espiritual para que se os tenham considerado, desde a Antiguidade, como os formadores de uma única e mesma escola. Quanto aos historiadores modernos, alguns acreditaram reconhecer, na florescência desta escola, o fato decisivo anunciador do “milagre grego”. A Razão ter-se-ia subitamente encarnado na obra desses três filósofos milésios. Pela primeira vez, em Mileto, descendo do céu para a terra, ela ter-se-ia irrompido no cenário da história; a sua luz, doravante revelada, como se tivessem enfim caído as escaras dos olhos de uma humanidade cega, não teria mais cessado de iluminar os progressos do conhecimento. [...]

“Admirar-se”, declara o Sócrates do Teeteto, “a filosofia não tem outra origem”. Admirar-se diz-se thaumazein, e este termo, pelo fato de testemunhar a derrocada que a investigação dos milésios efetua com relação ao mito, estabelece-os no mesmo ponto em que se origina a filosofia. No mito, thauma é “o maravilhoso”; o efeito de assombro que ele provoca é o sinal da presença nele do sobrenatural. Para os milésios, a estranheza de um fenômeno, em vez de impor o sentimento do divino, propõe-no ao espírito em forma de problema. O insólito não fascina mais, ele mobiliza a inteligência. De silenciosa veneração, a admiração faz-se questionamento, interrogação. Quando o thauma, no final da investigação, foi reintegrado na normalidade da natureza, do maravilhoso só resta a engenhosidade da solução proposta. Essa mudança de atitude ocasiona toda uma série de conseqüências. Para atingir o seu objetivo, um discurso explicativo deve ser exposto, não somente enunciado sob uma forma e nos termos que permitem compreendê-lo bem, mas ainda entregue a uma publicidade inteira, colocado aos olhos de todos, do mesmo modo que a redação das leis, na cidade, torna-se um bem comum para cada cidadão, distribuído com igualdade. Despojada do secreto, a theoria do físico transforma-se assim no objeto de um debate; ela se prepara para justificar-se; ser-lhe-á necessário prestar contas do que afirma, prestar-se à crítica e à controvérsia. As regras do jogo político – a livre discussão, o debate contraditório, o confronto das argumentações contrárias – impõem-se desde então como regras do jogo intelectual. Ao lado da revelação religiosa que, na forma do mistério, permanece o apanágio de

um círculo restrito de iniciados, ao lado também da profusão de crenças comuns de que todo o mundo participa sem que ninguém se interrogue a seu respeito, define-se e afirma-se uma nova noção da verdade: verdade aberta, acessível a todos e que fundamenta em sua própria força demonstrativa os seus critérios de validade. [...]

Assim reconstitui, por detrás da natureza e além das aparências, um pano de fundo invisível, uma realidade mais verdadeira, secreta e escondida, que o filósofo se encarrega de atingir e da qual ele faz o próprio objeto da sua meditação. Ao se prevalecer desse ser invisível contra o visível, do autêntico contra o ilusório, do permanente contra o fugaz do certo contra o incerto, a filosofia substitui, à sua maneira, o pensamento religioso. Ela se situa no próprio quadro que a religião havia constituído quando, ao colocar além do mundo da natureza as forças sagradas que, no invisível, asseguram o seu fundamento, ela estabelecia um completo contraste entre deuses e os homens, os imortais e os mortais, a plenitude do ser e as limitações de uma existência fugaz, vã fantasmática. Entretanto, a filosofia opõe-se à religião até nesta aspiração comum em ultrapassar o plano das simples aparências para aceder aos princípios ocultos que as confortam e as sustentam. Por certo, a verdade que a filosofia tem o privilégio de atingir e de revelar é secreta, dissimulada no invisível para as pessoas comuns; a sua transmissão, através do ensino do mestre ao discípulo, conserva em alguns aspectos o caráter de uma iniciação. Mas a filosofia traz o mistério para a praça. Não faz mais dele o motivo de uma visão inefável, mas o objeto de uma investigação em pleno dia. Através do livre diálogo, do debate argumentado ou do enunciado didático, o mistério se transmuta em um saber cuja vocação é ser universalmente compartilhado. O ser autêntico ao qual se liga o filósofo aparece assim como o contrário, tanto quanto herdeiro, do sobrenatural mítico; o objeto do logos é a própria racionalidade, a ordem que preside à dedução, o princípio de identidade da qual todo conhecimento verdadeiro tira a sua legitimidade.

VERNANT, Jean-Pierre. Mito e pensamento entre os gregos. Tradução de Haiganuch Sarian. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. P. 375-81.

UNIDADE 4 – UM OLHAR SOBRE OS PRÉ-SOCRÁTICOS.* João Vicente Hadich Ferreira.

Já vimos o contexto que permitiu o nascimento da Filosofia na Grécia e onde ela nasce especificamente. Vimos também o primeiro filósofo, Tales mas, é importante ainda, entendermos um pouco do seu pensamento e dos seus contemporâneos e sucessores, que formarão as diversas escolas que se seguirão na busca por respostas mais racionais sobre a realidade. Na busca por estas respostas, os filósofos estabelecerão suas teorias, acabarão formando “escolas de pensamento” e encontrarão críticas às suas teorias. Começa a filosofia. O processo é de constante busca, de construção e desconstrução de teorias. Na crítica ao antecessor, o filósofo constrói sua teoria e, desta forma, dá nova resposta ou vislumbra novo caminho para o que ele considera “incompleto”. A filosofia ao nascer defronta-se com problemas. E, o primeiro problema que desperta o pensar filosófico está relacionado à physis. Do grego, physis significa física, ou natureza. É portanto,

o problema da física, da natureza o primeiro a receber o olhar do filósofo. Da atitude de espanto e perplexidade surge a pergunta: o que é essa natureza, que apresenta tantas variações e mudanças? Há nela uma ordem ou é absolutamente caótica? Os primeiros a se colocarem tal questionamento foram os pré-socráticos. Assim chamados por antecederem à Sócrates, que será considerado posteriormente um marco no pensamento filosófico clássico, ponto de mudança da perspectiva inicial dos antecessores, os pré-socráticos são conhecidos também como “fisicóides” – relativo à physis – ou “filósofos da natureza”.

Tentando entender a natureza, os primeiros filósofos buscam um princípio para tudo. É a idéia de que há uma arcké. Traduzida portanto como princípio geral, original, a arcké possibilita a construção de uma cosmologia, que se contrapõe às cosmogonias e teogonias anteriores. Do grego cosmos – que significa ordem, universo – e logos – palavra, razão – a derivação logia pode ser entendida como teoria, estudo.

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Etimologicamente portanto, cosmologia pode ser definida como “ordem racional” ou, “teoria racional para o universo”. Esta é a busca dos primeiros pensadores. Neste sentido, cada pré-socrático apresentará a sua “tese” sobre a arcké da physis, construindo assim sua cosmologia. Vejamos alguns.

Para Tales (séc. VI a.C.), o princípio de tudo, a arkhé, seria a água. Apresentaremos duas interpretações para o seu pensamento. Na primeira acredita-se que Tales entenderia que, no princípio tudo estava encoberto pelas águas e que, ao evaporarem estas surgem as coisas, a natureza. Na outra versão, a afirmação de que “tudo surgia da água” permite entender que esta, ao resfriar-se, torna-se deusa e dá origem à terra. Ao se aquecer transforma-se em vapor e ar, que, por sua vez, novamente esfriados, retornam como chuva. Desse ciclo provocado pela água, nascem as diversas formas de vida. Independente de qual seja a interpretação correta, o importante é compreendermos que Tales expressa a primeira forma, rudimentar ainda, de se fazer ciência. É o uso de um pensamento novo, de uma racionalidade que é produzida filosoficamente.

Contemporâneo de Tales, Anaximandro (610-545 a.C.) por sua vez, procura uma explicação diferente. Para ele o princípio de tudo, da phisis, é o ápeiron, que significa "indeterminado", "ilimitado". É a idéia de uma substância infinita, eterna e sem idade, que envolveria todos os mundos. Para ele haveriam outros mundos.15 Transformada nas várias substâncias que conhecemos, que por sua vez se transformariam umas nas outras, está em contínuo movimento, dando origem a uma série de opostos, como água e fogo, frio e calor, dia e noite. A água, de Tales, seria muito “material” para explicar o imaterial, como no caso dos contrários. O ápeiron, desta forma, originaria tudo.

Também de Mileto, como Tales e Anaximandro, Anaxímenes (séc. VI a.C.) encontra uma resposta intermediária, considerando como princípio de tudo o ar – pneuma em grego -, que é um elemento nem tão abstrato como o ápeiron, nem tão palpável como a água. O ar é respiração e vida; o fogo é ar rarefeito; a água e a terra são condensação do ar; tudo o que existe, reduz-se a variações quantitativas do ar. Neste sentido, todas as coisas seriam produzidas por um duplo processo: a rarefação, que representaria a expansão, e a condensação, entendida como compressão. A água surgiria da condensação inicial do ar. Mais condensado ainda, teríamos a terra e, por fim, a pedra. Anaxímenes estabelece diferenças quantitativas entre substâncias diferentes, dadas pelo grau de condensação, o que não deixa de ser um mérito. Juntamente com seus dois contemporâneos, constitui o que ficou conhecido como a “escola de Mileto” ou, a filosofia dos milésios.

Na ilha de Samos, surge Pitágoras e, posteriormente os seguidores deste que constituirão a “escola pitagórica”. Voltado para a matemática, Pitágoras será o responsável pela criação do termo filosofia. Considerado sábio pelos seus conterrâneos, o matemático dirá que sábios seriam os deuses e que, ele, seria um amigo (philo) da sabedoria (sophia). Criador do famoso teorema que recebe seu nome, será um dos responsáveis pela íntima ligação entre a matemática e a filosofia nos tempos que se seguirão. Para ele “todas as coisas são números”, representando estes não quantidades mas a própria essência dos seres. Descobriu a importância dos números na música e, desta descoberta estabelecendo a relação entre música

15 RUSSEL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental – livro primeiro: a filosofia antiga, 2.ª ed. p. 31

e aritmética surgiram os termos matemáticos “média harmônica” e “progressão harmônica”.16 No entendimento pitagórico provavelmente as coisas manifestariam, de forma externa, a estrutura numérica da qual seriam compostas. Difícil de compreender mas, possível de imaginar, o sentido seria a composição das diversas substâncias através de unidades mínimas de matéria, unidades estas que promovem diversas combinações em conjuntos de diferentes quantidades. Conforme esclarece BERTRAND RUSSEL (1967), ele (sic!) considerava o mundo, provavelmente, como atômico, e os corpos feitos de moléculas compostas de átomos dispostos de várias formas. Esperava, assim, fazer da aritmética o estudo fundamental para a física e a estética.17

Empédocles de Agrigento (viveu em torno de 440 a.C.). Figura controversa e interessante, este pré-socrático era um político democrático que, ao mesmo tempo, reivindicava para si a qualidade de Deus.18 Teria morrido por saltar à cratera do Etna tentando provar que era deus. Escreveu-se num poema que O grande Empédocles, essa alma ardente, Saltou no Etna e foi totalmente torrado.19 Mas, independente disso, Empédocles propõe uma cosmologia que merece ser tratada. Para ele, quatro elementos constituiriam todas as coisas: a terra, o ar, o fogo e a água. Permanentes, estes elementos poderiam contudo misturar-se em diferentes proporções e produzir, assim, as substâncias complexas mutáveis que encontramos no mundo.20 Na sua teoria, o Amor unia as coisas e a Luta as separava. Substâncias primitivas, o Amor e a Luta alternavam sua predominância, ou seja, ora um era mais forte, ora outro e, desta forma estabelece-se um ciclo. Quando o Amor une os elementos, a Luta aos poucos os separa e, quando isto acontece, o Amor novamente os reúne, gradativamente. Por isso toda substância é temporal – passageira – e só os quatro elementos com o Amor e a Luta são eternos. Todas as transformações no mundo não obedecem a uma finalidade mas, são produzidas apenas pelo Acaso e pela Necessidade. Neste sentido, a originalidade da teoria de Empédocles, à parte a ciência, consiste na doutrina dos quatro elementos, e no emprego (sic!) dos princípios do Amor e da Luta para explicar a mudança.21

Na “escola atomista” encontramos Leucipo (provavelmente em torno de 440 a.C.) de Mileto e Demócrito (aproximadamente 432 a.C.) de Abdera. Acreditando que tudo é composto por átomos, estes pré-socráticos formularam a teoria que ficou conhecida como “atomismo”. Geralmente mencionados juntos, torna-se difícil distinguir a obre de um e de outro. Os átomos seriam fisicamente mas, não geometricamente, indivisíveis. Entre eles existiria um espaço vazio e, em eterno movimento, os átomos seriam também infinitos e indestrutíveis. Sendo de diversas espécies, seriam – os átomos – diferentes quanto à forma e ao tamanho. Seriam as combinações destes átomos portanto, que formariam os diversos tipos de substâncias existentes no Universo. Criticados na antiguidade como atribuindo tudo à casualidade, os atomistas na realidade eram deterministas rigorosos, que acreditavam que tudo

16 Id., p. 40.17 Id., ibid. 18 RUSSEL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental – livro primeiro: a filosofia antiga, 2.ª ed. p. 61.19 Id. Ibid. 20 Id., p. 63.21 Id., p. 66.

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acontece de acordo com as leis naturais.22 Aproximando-se mais da ciência moderna do que os seus antecessores, os atomistas produzem uma explicação mecanicista do Universo. Considerando não o princípio original do mundo mas sim que, uma vez este existindo, o seu desenvolvimento posterior teria sido fixado de forma inalterável por princípios mecânicos. Ao contrário de Sócrates, Platão e Aristóteles, procuravam explicar o mundo sem introduzir a noção de ‘propósito’ ou ‘causa final’.23 Revivida nos tempos modernos para explicar os fatos da química, a teoria atômica era original nos gregos, dada a questão de que eles desconheciam completamente estes “fatos”. Sem ser uma proposta empírica real, os atomistas contudo chegaram a uma hipótese cuja comprovação se verificou mais de dois mil anos depois.

22 Id., p. 76.23 Id., p. 77

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UNIDADE 5 – HERÁCLITO E PARMÊNIDES: sobre o SER e o DEVIR.

* João Vicente Hadich Ferreira.

Heráclito (544-484 a. C.)

Nascido em Éfeso, na Jônia (atual Turquia), Heráclito é aquele que trata do devir. É a idéia do movimento, de que tudo flui, nada é imóvel e os contrários formam uma unidade. Neste entendimento, para Heráclito, a unidade do mundo resulta da contínua tensão da oposição das coisas: a harmonia nasce da própria oposição. Aliás, a contradição não só produz a unidade do mundo, mas também a sua transformação. O mundo é como um rio que flui continuamente; é impossível banhar-se duas vezes na mesma água.24

Buscando compreender a multiplicidade do real mas, contrariando os pré-socráticos anteriores, Heráclito não rejeita as contradições e quer aprender a realidade na sua mudança, no seu devir. Conforme o esclarecimento de ARANHA & MARTINS (2003), todas as coisas mudam sem cessar, e o que temos diante de nós em dado momento é diferente do que foi há pouco e do que será depois25. Por isso é impossível nos banharmos duas vezes no mesmo rio pois, na segunda vez nós já mudamos e o rio também. Portanto, no entendimento heraclitiano não há ser estático e, o dinamismo de tudo pode ser representado pela metáfora do fogo, forma visível da instabilidade, símbolo da eterna agitação do devir, ‘o fogo eterno e vivo, que ora se acende e ora se apaga’.26

O ser em Heráclito é múltiplo. Esta multiplicidade não refere-se à idéia da existência de múltiplas coisas apenas, mas ao entendimento que o ser é composto de oposições internas, por isso múltiplo em si mesmo. Para este pré-socrático, o que mantém o fluxo do movimento não é o simples aparecer de novos seres, mas a luta dos contrários, pois ‘a guerra é pai de todos, rei de todos’. E é da luta que nasce a harmonia, como síntese dos contrários.27 Heráclito intui, com muita antecedência, a lógica dialética, uma das grandes contribuições do pensamento hegeliano - e depois marxista, no século XIX -, para a filosofia.

Parmênides (540-470 a. C.)

Tendo vivido em Eléia, sul da Magna Grécia (que é configurada na atual Itália), Parmênides é o principal expoente da escola eleática. Defendendo a imobilidade do ser, afirmará que os contrários jamais podem coexistir. Elaborou importantíssima teoria filosófica na medida em que influenciou de forma decisiva o pensamento ocidental. Ocupou-se longamente em criticar a filosofia heraclitiana opondo ao "tudo flui"(panta rei) de Heráclito, a imobilidade do ser. Na sua teoria entende como absurdo e impensável considerar que uma coisa pode ser e não ser ao mesmo tempo. À contradição opõe o princípio segundo o qual ‘o

24 PAIM, Antonio; PROTA, Leonardo; RODRIGUEZ, Ricardo Velez. Filosofia – curso de Humanidades 5, 1999, p. 48.25 ARANHA, M. L. Arruda; MARTINS, M. H. Pires. Filosofando: introdução à filosofia, 2003, p. 119.26 Idem, ibid.27 Idem, ibid.

ser é’ e o ‘não-ser não é’. Mais tarde, os lógicos chamarão a isto de princípio de identidade, base de toda construção metafísica posterior.28 Considerando que só o ser existe, isto deve ser para sempre, de forma única, permanente, imóvel, imutável e eterna. Ou seja, não pode mudar a todo instante. Por isso ele pode concluir que o ser é único, imutável, infinito e imóvel.

Para explicar a questão do movimento (as coisas nascem, morrem, mudam de lugar...), Parmênides afirmará que as mudanças, as contradições e os aspectos diferentes que o mundo apresenta são simples ilusões, aparências, fruto de opiniões e não de conhecimento do verdadeiro ser.29 Tudo isto existe apenas no mundo sensível e, este, é o mundo da ilusão. Desta forma, só o ‘mundo inteligível’ é verdadeiro, pois está submetido ao princípio que hoje chamamos de identidade e de não-contradição.30 Em consenso com ARANHA & MARTINS (2003), afirmamos que a teoria parmenídea produz como conseqüência a identidade entre o ser e o pensar, ou seja, a idéia de que o que eu não posso pensar equivale a dizer que não existe. O que está fora de mim deve ser idêntico ao meu pensar e, deste modo, o ser é pensável e por isso existe. Assim, ser e pensável se equivalem31. Parmênides estaria aqui inaugurando a lógica com esta teoria, que encontra-se no seu poema Sobre a Natureza. Dividido em três partes – introdução, “via da verdade” e “via da opinião” -, o poema parmenídeo permite deduzir que ele inaugura ao mesmo tempo a lógica e a metafísica. Enquanto a lógica se coloca contra a “via da opinião”, a metafísica investiga o que está por trás das coisas naturais e físicas; procura algum princípio ou essência das coisas. Em Parmênides, a idéia abstrata de Ser indica precisamente o conjunto de toda realidade como a sua essência.32 Por isso a identidade entre o ser e o pensar.

FRAGMENTOS:

Heráclito:

“Este mundo, que é o mesmo para todos, não foi feito nem pelos deuses nem pelos homens; mas sempre foi, é e será um Fogo eterno, com unidades que se acendem e unidades que se apagam. [...] As transformações do Fogo são, antes de tudo, os mares; e o mar é metade terra, metade turbilhão. [...] Os homens não sabem – diz êle – de que maneira o que não concorda está de acôrdo consigo mesmo. É uma harmonia de tensões opostas, como a do arco e a lira. [...] As coisas pares são inteiras e não inteiras, o unido e o separado, o harmonioso e o discordante. O uno é feito de tôdas as

28 Idem, Ibid. 29 PAIM, Antonio; PROTA, Leonardo; RODRIGUEZ, Ricardo Velez. Filosofia – curso de Humanidades 5, 1999, p. 49.30 ARANHA, M. L. Arruda; MARTINS, M. H. Pires. Filosofando: introdução à filosofia, 2003, p. 119.31 PAIM, Antonio; PROTA, Leonardo; RODRIGUEZ, Ricardo Velez. Filosofia – curso de Humanidades 5, 1999, p. 49.32 Idem, ibid.

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coisas, e tôdas as coisas provém do uno. [...] Deus é dia e noite, inverno e verão, guerra e paz, saciedade e fom; mas Êle adota várias formas, como o fogo, que, quando é misturado a especiarias, é chamado segundo o sabor de cada uma delas. [...] O fogo vive a morte do ar, e o ar vive a morte do Fogo; a água vive a morte da terra, a terra a da água. [...] Devemos saber que a guerra é comum a tudo, e que a luta é justiça. [...] Não se pode pisar duas vêzes nos mesmos rios, pois as águas novas estão sempre fluindo sôbre ti.”33

Parmênides.

“Não podes saber o que não é – isso é impossível – nem manifestá-lo; porque é a mesma coisa que pode ser pensada e existir. [...] Como pode, então, o que é vir a ser no futuro? Ou como poderia vir a ser? Se vem a ser, então não é; tampouco o é, se vai ser no futuro. Assim, o tornar-se desaparece, e o passar não se percebe. [...] A coisa que pode ser pensada, e aquilo pelo qual existe o pensamento, é o mesmo; porque não podes encontrar uma idéia sem algo que é, e a respeito do qual ela se manifesta.”34

33 RUSSEL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental – livro primeiro: a filosofia antiga, 2.ª ed. p. 50-51.34 Id., p. 56.

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UNIDADE 6 – SÓCRATES E A BUSCA DO CONCEITO.

* João Vicente Hadich Ferreira

Sócrates (469 ou 470 - 399 a.C.)

Considerado um marco na filosofia, nunca escreveu nada. Filho de um escultor – Sofronisco - e de uma parteira – Fenareta -, nasceu em Atenas, onde viveu o apogeu e a crise da democracia. Levando a filosofia para a ágora, criticando os sofistas e atraindo a admiração dos jovens, Sócrates provoca também o desafeto de outros que o combatem por considerá-lo um perigo para as tradições da pólis e uma má influência para a juventude. Admirado e criticado, Sócrates foi figura controversa e causou problemas à sociedade da época. O que sabemos de Sócrates foi-nos legado por seus discípulos ou detratores. Dentre os discípulos, os principais são Platão e Xenofonte. Platão é o grande divulgador do mestre, colocando-o como o principal interlocutor de seus diálogos e enaltecendo sua sabedoria. Na crítica, o principal desafeto socrático era Aristófanes, um comediante. Valoroso, virtuoso e destemido, Sócrates foi levado a julgamento acusado de “não reconhecer os deuses do Estado, introduzir novas divindades e corromper a juventude”. O julgamento, relatado por Platão no texto Apologia de Sócrates, apresenta-nos o pensador enfrentando seus opositores – o poeta Meleto, o político Anitos e Licão, um personagem de pouca importância – e mantendo sua integridade, suas convicções. Condenado por uma pequena margem de votos, Sócrates beberá cicuta e morrerá entre os seus amigos de forma serena e confiante. Poderia ter evitado a morte – ele podia fixar outra pena para si – mas não abriu mão de sua consciência pois, escapar à morte seria admitir a culpa no processo. Que ela recaísse sobre seus algozes. Ele cumpriria a lei.

Mas, por quê Sócrates incomodou tanto? Conversando com todos, discutindo e instigando seus interlocutores, o filho do escultor buscava a essência dos conceitos, a definição destes para fugir ao relativismo sofístico, tão comum naquele momento. A crítica socrática aos sofistas está tanto na cobrança pelos ensinamentos que eles dão quanto na “manipulação” que eles fazem dos conceitos para atender aos interesses de quem os contrata. Tal atitude mantém os homens na ignorância, sem desenvolverem o verdadeiro conhecimento. Aqui Sócrates entende sua missão: “libertar” os homens desta ignorância.

Sobre esta “missão”, ela teria tido início praticamente depois da visita de um amigo seu, Querofonte, ao oráculo de Delfos. Este, querendo saber se havia homem mais sábio do que Sócrates, obtém uma resposta negativa dos deuses, ou seja, Sócrates é o mais sábio. Recebendo o relato do amigo, e não se considerando sábio, Sócrates fica pensativo e resolve descobrir por que é considerado sábio. Intrigado, aborda um político considerado sábio e, na discussão descobre que este na realidade se considera sábio, sem saber de nada. Entende então que ele – Sócrates - é mais sábio por saber que nada sabe, ou seja, tem consciência de sua ignorância. Lembrando-se da inscrição na entrada do Templo de Delfos, o “conhece-te a ti mesmo”, e afirmando que “de tudo quanto sabe só sabe que nada sabe”, Sócrates entende que o conhecimento está dentro do homem e que este o desconhece por não buscá-lo. Para encontrá-lo, ele entende que é

necessário produzir-se um “parto”, um “parto de idéias.” Neste sentido Sócrates cria um método que, em homenagem a sua mãe, que era maieuta – parteira em grego -, chama-se maiêutico. “Parir idéias” é a proposta para o “conhecer-se a si mesmo”, encontrar a essência dos conceitos e compreender do que se está falando. É deixar o mundo da opinião e alcançar a ciência.

Como funciona este método? Pautado na ironia, o grande mérito dele é a busca do conceito. A ironia tem um duplo aspecto: a refutação e a maiêutica. A primeira significa não responder à pergunta formulada, mas retomar a resposta do interlocutor e demonstrar as contradições nela contidas. A função da refutação portanto, é a libertação do espírito, preparando-o para encontrar a solução. Esta será encontrada pelo próprio interlocutor, já que Sócrates finge ser capaz de atuar unicamente como parteiro, porém incapaz de conceber por conta própria; quer dizer, capaz de interrogar e não de ensinar, porque o conhecimento já está dentro de nós. Trata-se tão somente de extraí-lo do nosso interior. Aqui temos a maiêutica propriamente dita. Um claro exemplo da aplicabilidade do método está na obra chamada Laqués, de Platão. Laqués e Nícias são dois famosos generais que travam uma discussão com dois cidadãos sobre o exercício militar. A questão levantada é se “é útil ou não este exercício, se ele serve ou não para formar homens corajosos”. Convidado a participar da discussão, Sócrates muda o rumo da conversa: para sabermos se a arte militar é útil para formar homens corajosos, deve-se saber em primeiro lugar, o que é coragem. É a busca pela essência do conceito, aquilo que é o verdadeiro ponto da discussão. Conforme nos indicam PAIM, PROTA & RODRIGUEZ (1999), as questões que Sócrates privilegia são as referentes à moral. Por exemplo: o que é a coragem? O que é a justiça? O que é a virtude? Quer saber o que é a "coragem em si", o universal que representa, ou seja, um conceito que seja o mesmo para todos e não apenas construído conforme o interesse de quem o expõe. Dando novo sentido ao termo logos - que na linguagem comum significava conversa, palavra -, Sócrates desenvolve a idéia do mesmo com o sentido de “a razão que se dá de algo”, o conceito. Por isso, buscando a essência das coisas nunca vai diretamente a pergunta o que é. Antes, ouve e apresenta objeções aos argumentos dos outros. A pergunta remonta ao tempo dos jônios. Enquanto estes buscavam resolver o problema da natureza - physis –, Sócrates pretende indagar o problema dos valores. Acompanhando a decadência da democracia ateniense, momento em que os valores políticos e morais aparecem sempre mais conflitantes, Sócrates procura algo que constitua a essência de todas as virtudes particulares como a coragem, a sabedoria, a justiça. Ele identifica a virtude com o Bem que, por sua vez, é identificado com a própria Razão. Conhecer a virtude portanto é o objetivo da ciência, do verdadeiro conhecimento. No entendimento socrático só pratica o mal quem desconhece o que seja a Virtude. Quem tem o verdadeiro conhecimento só pode praticar o bem. A ciência para Sócrates é, desta forma, a ciência do universal, do permanente. Do indivíduo mutável só se dá opinião. Desta forma Sócrates prepara a doutrina de Platão: se com efeito, somente o conhecimento dos

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conceitos é verdadeiro conhecimento, será verdadeira realidade, unicamente, o objeto destes conceitos, isto é, o mundo das Idéias eternas.35 Este é outro assunto.

FRAGMENTOS: DISCURSO SOCRÁTICO.

“Enquanto viver, não deixarei jamais de filosofar. E, de instruir quem quer que eu encontre, dizendo-lhe à

minha maneira habitual: Querido amigo, és um ateniense, um cidadão da maior e mais famosa cidade

do mundo, pela sua sabedoria e pelo seu poder; e não te envergonhas de velar pela tua fortuna e pelo seu aumento constante, pelo teu prestígio e pela tua

honra, sem em contrapartida te preocupares em nada conheceres o bem, e a verdade, e com tornares a tua alma o melhor possível? E se algum de vós duvidar disto e asseverar que com tal se preocupa, não o

deixarei em paz; nem seguirei tranqüilamente o meu caminho, mas interrogá-lo-ei, examiná-lo-ei e refutá-lo-ei; e se me parecer que não tem qualquer arete,

mas que apenas a aparenta, investigá-lo-ei, dizendo-lhe que sente o menor respeito pelo que há de mais

respeitável, e o respeito mais profundo pelo que menos respeito merece. E farei isto com os jovens e com os anciãos, com todos os que encontrar, com os de fora e com os de dentro; mas sobretudo com os homens desta cidade, pois são por origem os mais

próximos de mim. Pois ficai sabendo que Deus assim me ordenou, e julgo que até agora não houve na

nossa cidade nenhum bem maior para vós do que este serviço que eu presto a Deus. É que todos os

meus passos se reduzem a andar por aí, persuadindo novos e velhos, a não se preocuparem nem tanto,

nem em primeiro lugar, com o seu corpo e com a sua fortuna, mas antes com a perfeição da sua alma”.

Sócrates, Livro Paidéia.

35 MONDOLFO, Rodolfo. In.: Paim, Antonio; Prota, Leonardo; Rodriguez, Ricardo Velez. Filosofia – curso de Humanidades 5, 1999, p. 51.

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UNIDADE 7 – PLATÃO E O MUNDO DAS IDÉIAS.* João Vicente Hadich Ferreira,em parceria com José Roberto Garcia.

Para compreensão da concepção de conhecimento sustentada por Platão (428-347 a.C.), temos que analisar alguns traços principais de sua vida e de seu pensamento filosófico.

Platão nasceu em Atenas e seu verdadeiro nome era Arístocles. Platão é um apelido que provavelmente tenha derivado ou de seu vigor físico ou da largura de sua testa (platos em grego significa amplidão, largura).

Nosso filósofo era descendente da fina flor da aristocracia ateniense, pelo lado paterno, Platão descendia do rei Codros e pelo lado materno do grande legislador Sólon. Diante disso, é natural de desde tenra idade ele tenha tomado contato com questões importantes, principalmente de ordem política e epistemológica.

Platão foi discípulo de Sócrates, com quem entrou em contato, provavelmente, com vinte anos de idade. Acredita-se que, no início, ele freqüentou o círculo socrático com os mesmos objetivos da maior parte dos outros jovens atenienses, ou seja, para melhor se preparar para a ativa vida política da Cidade Estado. No entanto, a convivência com o mestre e os demais acontecimentos de sua vida orientaram-no para outro rumo.

O profundo desgosto com a política praticada em Atenas chegou ao ponto máximo com a condenação à morte do amigo e mestre Sócrates. A partir daí, o nosso filósofo resolve manter-se afastado da política militante.

Em 388 a.C., Platão empreende uma grande viagem passando, entre outros lugares, pelo Egito e pela Itália. Durante sua estadia na península itálica, Platão foi convidado por Dionísio I para ir até Siracusa, na Sicília. Parece claro que Platão tinha a intenção de inculcar no tirano o ideal do rei filósofo, exposto no seu diálogo Górgias. Esta pretensão do filósofo ateniense logo fez surgir uma indisposição entre Dionísio I e ele. O tirano ficou tão irado com Platão que acabou vendendo-o como escravo a um embaixador espartano na cidade de Egina. Felizmente foi resgatado por um amigo da cidade de Cirene que, por sorte, se encontrava naquela cidade.

Ao retornar a Atenas, Platão funda sua famosa Academia num ginásio que se situava em um parque dedicado ao herói Academos, de onde derivou seu nome.

Não contente com sua malfadada experiência anterior, Platão retorna a Siracusa em 367 a.C., depois da morte de Dionísio I. Quem assumiu o trono foi Dionísio II que, para desespero de Platão, herdara do pai a mesma incompreensão e truculência, basta dizer que manteve o filósofo ateniense prisioneiro por alguns meses, somente permitindo que este retornasse à Grécia porque Siracusa estava envolvida em uma guerra.

Em 361 a.C., Platão retorna pela terceira vez a Siracusa atendendo a um convite do próprio Dionísio II, no entanto o tirano não queria outra coisa senão cuidar se sua formação pessoal, o que causou uma nova e definitiva decepção em Platão, que retornou a Atenas, onde permaneceu na direção da Academia até sua morte.

Durante sua vida, Platão escreveu muitas obras e, segundo os especialistas, seus escritos chegaram até nós na totalidade (cerca de 36 trabalhos). Normalmente ele escrevia na forma de diálogos, ou seja, os

personagens de seus escritos iam desenvolvendo temas polêmicos a partir de discussões entre si. Nos “Diálogos Platônicos”, Sócrates era o personagem principal. Podemos dizer que Platão tentava reproduzir, em seus escritos, o jogo de perguntas e respostas sobre o qual se assentava a “Ironia Socrática”. Através da boca de Sócrates, Platão cuida de disseminar suas teorias epistemológicas e políticas. Algumas de sua principais obras são: A República, Laqués, O Banquete, Fédro, Fédon, Teeteto, Timeu e Hípias Maior, entre outras.

6.1 - O mundo das idéias.

Considerando os conceitos como convenções, os sofistas estabelecerão assim também a questão da justiça ou injustiça. No entendimento socrático uma e outra se confundem, fato devido ao desconhecimento que os homens têm da essência da justiça. Recusando a concepção sofística, Platão aprofunda a idéia de Sócrates. O mundo dos sentidos seria constituído de aparências. Chamado de mundo sensível, nele tudo é instável e variável, sujeito às circunstâncias. Neste sentido, há muitas opiniões variadas e divergentes relacionadas à forma como cada um percebe o mundo. Viver desta opinião - doxa, no grego - não permite ao homem alcançar o conhecimento real, verdadeiro. Este é chamado de episteme, ou seja, o conhecimento das essências, das realidades que estão acima da opinião. Tal conhecimento implica no que Platão chamou de mundo inteligível ou, mundo das Idéias. Para que esta passagem ocorra, ou seja, do sensível para o inteligível, da doxa para a episteme, é fundamental admitir que existem as essências. Partindo de dois princípios – identidade e permanência – Platão recorre aos exemplos da geometria, onde temos diversas figuras que, na realidade, não existiriam neste mundo sensível mas, apenas no inteligível (somente lá elas permanecem, não mudam, não são diferentes de acordo com a interpretação de cada um). É o caso das diversas árvores ou diversos cavalos. Apesar das diferenças entre os vários tipos, há algo, um essência que nos faz perceber, reconhecer em cada um algo que não muda, que permanece e lhe dá identidade de cavalo ou árvore. Para Platão isto se dá no inteligível. Assim também se dá com os conceitos. Da justiça, por exemplo, o homem tem uma certa intuição. As opiniões divergem mas, todos trazemos em nós a essência do que seja a justiça. Denominadas por Platão de Eidós ("idéia" ou "forma"), as essências existem como idéias perfeitas lá no mundo inteligível. Dentro do sistema platônico, a teoria do mundo das idéias (hiperurânio) é um dos pontos centrais, pois nos dá a chave para a compreensão de boa parte de seu pensamento político e epistemológico.

O “Mundo das Idéias” é uma espécie de mundo transcendente, um lugar onde se encontram as formas, os modelos perfeitos, os paradigmas eternos e imutáveis de tudo o que existe e dos quais os objetos que se encontram no mundo de nossa experiência sensível são apenas cópias imperfeitas. Em resumo, as idéias que estão no hiperurânio são as verdadeiras e supremas causas e modelos do mundo sensível (o nosso).

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6.2 - O conhecimento como reminiscência (anamnese) e seus graus: a opinião (doxa) e a ciência (episteme).

Embora o problema do conhecimento tenha sido ventilado por alguns filósofos precedentes. Foi com Platão que o problema ganhou um tratamento mais pormenorizado e claro. Sem entrar nas minúcias do problema, podemos afirmar que o nosso filósofo percorre um caminho totalmente novo, ou seja, para ele o conhecimento é anamnese, isto é, uma forma de recordação daquilo que já existe desde sempre no interior de nossas almas, cumpre dizer que, para Platão, as almas dos homens, antes de se encarnarem tiveram como morada o Mundo das Idéias e, portanto, as recordações seriam a partir das “marcas” ou impressões deixadas pelas idéias em nossas almas.

Vamos agora tentar ilustrar a questão dos graus de conhecimento a partir do capítulo VII do diálogo “A República”, onde Platão expõe o mito da caverna, na verdade uma alegoria usada para tornar mais clara a sua teoria. Segundo esse famoso relato, os homens encontram-se acorrentados em uma caverna desde sua infância, de tal forma que, não podendo voltar para sua entrada, enxergam apenas o fundo da mesma. Aí são projetadas somente as sombras das coisas que passam às suas costas. Ora se um desses homens conseguisse libertar-se dessas correntes para contemplar, à luz do dia, os “verdadeiros objetos”, quando voltasse para contar o que vira, não mereceria o crédito de seus antigos companheiros, que o tomariam por insano e possivelmente o matariam.

Não podemos nos esquecer que Platão é um idealista, isto é, alguém que acredita que as idéias são mais perfeitas e reais que as próprias coisas do mundo sensível. Portanto, quando falamos em contemplação das “coisas verdadeiras” estamos falando em contemplação do “Mundo das Idéias”.

A análise da alegoria da caverna pode ser feita a partir de duas perspectivas: a epistemológica (relativa ao conhecimento) e a política, neste caso vamos nos ater à primeira.

Quanto à dimensão epistemológica, Platão compara os homens acorrentados aos homens comuns, que permanecem dominados pelos instintos e só alcançam um conhecimento imperfeito da realidade (conhecimento do mundo sensível, corruptível e mutável) , a esse conhecimento imperfeito do real o filósofo dá o nome de doxa (opinião). O homem que se liberta dos grilhões é o filósofo, ele ultrapassa os limites do conhecimento sensível e alcança o conhecimento do mundo das idéias, a esse conhecimento (das essências eternas e imutáveis das coisas, as idéias) Platão chama de episteme (ciência).

Resumindo, as almas de todos os homens tiveram, em um dado momento, como morada, o mundo das idéias, e ali conheceram as essências de todas as coisas. No entanto, estas foram esquecidas no momento da encarnação, quando as almas se tornaram prisioneiras do corpo. Por isso para nosso filósofo toda busca pelo conhecimento nada mais é do que o esforço para lembrar daquilo que outrora conhecemos, passando assim da doxa para a episteme, esta é a teoria da reminiscência.

FRAGMENTOS: A ALEGORIA DA CAVERNA.

Trata-se de um trecho do livro VII de A República: no diálogo, as falas na primeira pessoa são de Sócrates, e seus interlocutores, Glauco e Adimanto, são os irmãos mais novos de Platão.

---Agora --- continuei ---representa da seguinte forma o estado de nossa natureza relativamente à instrução e à ignorância. Imagina homens em morada subterrânea, em forma de caverna, que tenha toda a largura uma entrada aberta para a luz; estes homens aí se encontram desde a infância, com as pernas e o pescoço acorrentados, de sorte que não podem mexer-se nem ver alhures exceto diante deles, pois a corrente os impede de virar a cabeça; a luz lhes vem de um fogo aceso sobre uma eminência, ao,longe atrás deles; entre o fogo e os prisioneiros passa um caminho elevado; imagina que, ao longo desde caminho, ergue-se um pequeno muro, semelhante aos tabiques que os exibidores de fantoches erigem à frente deles e por cima dos quais exibem as suas maravilhas.

--- Vejo isso --- disse ele.--- Figura, agora, ao longo deste pequeno muro homens a transportar objetos de todo o gênero, que ultrapassam

o muro, bem como estatuetas de homens e animais de pedra, de madeira, e de toda a espécie de matéria: naturalmente, entre estes portadores, uns falam e outros se calam.

---Eis---exclamou---um estranho quadro e estranhos prisioneiros!---Eles se nos assemelham ---repliquei---mas, primeiro, pensas que em tal situação jamais hajam visto algo de si

próprios e de seus vizinhos, afora as sombras projetadas pelo fogo sobre a parede da caverna que está a sua frente?---E como poderiam?---observou---se não forçados a quedar-se a vida toda com a cabeça imóvel?---E com os objetos que desfilam, não acontece o mesmo?---Incontestavelmente---Se, portanto, conseguissem conversar entre si não julgas que tomariam por objetos reais as sombras que

avistassem?---Necessariamente---Considera agora o que lhes sobreviverá naturalmente se forem libertos das cadeias e curados da ignorância.

Que se separe um desses prisioneiros, que o forcem a levantar-se imediatamente, a volver o pescoço , a caminhar, a erguer os olhos à luz: ao efetuar todos esses movimentos sofrerá, e o ofuscamento o impedira de distinguir os objetos cuja sombra enxergava há pouco. O que achas, pois que ele responderá se alguém lhe vier dizer que tudo quanto vira até então eram fantasmas, mas que presentemente, mais perto da realidade e voltado para objetos mais reais, vê de maneira mais justa? Se enfim, mostrando-lhe cada uma das coisas passantes, o obrigar, à força de perguntas, a dizer que é isso? Não crês que ficará embaraçado e que as sombras que viu há pouco lhe parecerão mais verdadeiras do que objetos que ora lhe são mostrados?

---Muito mais verdadeiras ---reconheceu ele.

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---E se o forçam a fitar a própria luz, não ficaram os seus olhos feridos? Não tirará dela a vista, para retornar às coisas que pode olhar, e não crerá que estas são realmente mais distintas do que as outras que lhe são mostradas?

---Seguramente.---E se --- prossegui --- o arrancam à força de sua caverna, o compelem a escalar a rude e escarpada encosta e

não o soltam antes de arrastá-lo até a luz do sol, não sofrerá ele vivamente e não se queixará destas violências? E quando houver chegado à luz, poderá, com os olhos completamente deslumbrados pelo fulgor, distinguir uma só das coisas que agora chamamos verdadeiras?

---Não poderá --- respondeu ---; ao menos desde logo.--- Necessitará, penso, de hábito para ver os objetos da região superior. Primeiro distinguirá mais facilmente as

sombras, depois as imagens dos homens e dos outros objetos que se refletem nas águas, a seguir os próprios objetos. Após isso, poderá, enfrentando a claridade dos astros e da lua, contemplar mais facilmente durante a noite os corpos celestes e o céu mesmo, do que durante o dia o sol e sua luz.

---Sem dúvida.---Por fim, imagino, há de ser o sol, não suas vãs imagens refletidas nas águas ou em qualquer outro local, mas o

próprio sol em seu verdadeiro lugar, que ele poderá ver e contemplar tal como é.---Necessariamente.---Depois disso, há de concluir, a respeito do sol, que é este que faz as estações e os anos, que governa tudo no

mundo visível e que, de certa maneira, é causa de tudo quanto via, com seus companheiros, na caverna.---Evidentemente, chegará a esta conclusão.---Imagina ainda que este homem torne a descer a caverna e vá sentar-se em seu antigo lugar: não terá ele os

olhos cegados pelas trevas, ao vir subitamente do pleno sol?---Seguramente sim ---disse ele.---E se, para julgar estas sombras, tiver de entrar de novo em competição, com os cativos que não abandonaram

as correntes, no momento em que ainda está com a vista confusa e antes que seus olhos se tenham reacostumado (e o hábito à obscuridade exigirá ainda bastante tempo), não provocará riso à própria custa e não dirão eles que, tendo ido por cima, voltou com a vista arruinada, de sorte que não vale mesmo a pena tentar subir até lá? E se alguém tentar soltá-los e conduzi-los ao alto, e conseguissem eles pegá-lo e matá-lo, não o matarão?

---Sem dúvida alguma ---respondeu.---Agora, meu caro Glauco ---continuei---cumpre aplicar ponto por ponto esta imagem ao que dissemos mais

acima, comprar o mundo que a vista nos revela à morada da prisão e a luz do fogo que a ilumina ao poder do sol. No que se refere à subida á região superior e à contemplação de seus objetos, se a considerares como a ascensão da alma ao lugar inteligível; não te enganarás sobre o meu pensamento, posto que também desejas conhecê-lo. Deus sabe se ele é verdadeiro. Quanto a mim, tal é minha opinião: no mundo inteligível a idéia do bem é percebida por último e a custo, mas não se pode percebe-la sem conclui que é a causa de tudo quanto há de direito e belo em todas as coisas; que ela engendrou, no mundo visível e a luz e o soberano da luz; que; no mundo inteligível, ela própria é soberana e dispensa a verdade e a inteligência; e que preciso vê-la para conduzir-se com sabedoria na vida particular e na vida pública.

---Partilho de tua opinião ---replicou ---na medida em que posso.

(Platão, A República, v. 11, p. 105 a 109)

UNIDADE 8 – ARISTÓTELES: CAUSAS E TELOS.* João Vicente Hadich Ferreira.

Aristóteles (384-322 a.C.), que não era grego na realidade, nasceu na Macedônia, na região chamada Calcídia, na cidade de Estagira. Por isso será chamado também de o estagirita. Seu pai foi médico do Rei Filipe da Macedônia, pai por sua vez daquele que entraria para a História como Alexandre, o Grande. O jovem Alexandre foi discípulo de Aristóteles por um período até que, com a morte do pai deixa os estudos para assumir o poder. Discípulo de Platão por vinte anos na Academia, Aristóteles não poupou críticas ao mestre. Justificava-se dizendo que, apesar de amigo de Platão, era mais amigo da verdade. Produzindo uma vasta obra filosófica, da qual muito se perdeu, entra para a História, juntamente com Platão como um dos grandes sistemas filosóficos do Ocidente. Rigorosamente interligados, os assuntos de suas obras são muitos e abrangentes, o que torna Aristóteles um dos grandes pesquisadores da antigüidade. Responsável pelas primeiras classificações

da zoologia e estudioso das constituições das pólis, fundará sua própria escola, o Liceu.

Para o estagirita, a ciência implica no conhecimento verdadeiro. É um conhecimento das causas, que supera os enganos da opinião. Enveredando pelo caminho das causas, Aristóteles trabalha com a idéia de uma teleologia. Para ele tudo tem um telos, do grego fim, finalidade. A faca apresenta um telos: cortar. A cadeira tem o seu telos: serve para sentar. É um metafísico. Retomando a tese heraclitiana, Aristóteles entende que isto permite compreender o devir, ou seja, o vir-a-ser, o movimento defendido pelo pré-socrático. Retomando a questão do ser, demonstra que há diferença entre “ser alguma coisa” e “ser absolutamente”. O primeiro refere-se a um predicativo, ou seja, algo que atribuímos a substância ou ser. O segundo, por sua vez, é existencial, representando o necessário, aquilo existe realmente, aquilo que é. Partindo destes pressupostos, criticará Platão e sua Teoria das Idéias. Para ele Platão não explica o “ser”

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das coisas pois, ao desvincular a essência da própria coisa, não resolve o problema do conhecimento mas, apenas, demonstra a imperfeição deste

mundo. Racionalista como Platão, Aristóteles contudo considera que o inteligível platônico não resolve o problema. O conhecimento se dá não no inteligível, mas no próprio sensível. Para fundamentar sua tese, Aristóteles trabalhará com alguns conceitos. São eles: substância, essência e acidente, ato e potência, forma e matéria e a Teoria das Quatro Causas que, inevitavelmente o levará à Teoria da Causa Primeira.

No entendimento aristotélico, os dois mundos – sensível e inteligível – fundem-se na substância enquanto “aquilo que é em si mesmo”. Para explicar a substância, Aristóteles entende que ela possui dois atributos: a essência e o acidente. A primeira é o atributo que não pode faltar à substância, ou seja, sem esta não é possível entendermos a substância que se determina. O segundo, por sua vez, é um atributo facultativo. Aparecendo ou não na substância, nós a compreenderemos da mesma maneira. Para explicar o processo de transformação dos seres, recorre aos conceitos de forma e matéria onde, forma é o que faz com que uma coisa seja o que ela é, ou seja, ligada à essência, está no inteligível (que não é o platônico). Já, a matéria, constituiria o princípio indeterminado que comporia o mundo físico. Em outras palavras, a matéria seria “aquilo de que é feito algo”. A matéria, passiva, conteria a forma em potência e, o que geraria o movimento (o devir de Heráclito) seria a atualização da forma. Partindo para mais dois conceitos – ato e potência – Aristóteles explica com isto que todo ser tende a tornar atual a forma que tem em si como potência, contida na matéria. Estes conceitos explicariam a relação dos seres entre si, da ação de um sobre o outro onde, para se tornar ATO, o ser em POTÊNCIA precisa de outro ser já em ATO. Isto gera uma CONTINGÊNCIA, ou seja, um ser precisando do outro. É o caso do carvalho que, primeiro é potência dentro da semente. Para tanto, precisou de outro carvalho, já em ato, para que, depois ele também possa se atualizar e gerar outro ser em potência. Para

Aristóteles temos aqui o devir: é o movimento que envolve a passagem da POTÊNCIA para o ATO. Desenvolvendo uma análise dos movimentos, o estagirita terá que responder quais os tipos de causas que ocasionam o devir já que, o movimento é a passagem da potência para o ato. Ele desenvolve então sua “teoria das quatro causas”. Todas as substâncias apresentariam quatro causas: uma material, uma eficiente, uma formal e uma final. A material, ligada à matéria, representa “aquilo de que a coisa é feita”. Na causa eficiente, descobrimos “aquilo com que a coisa é feita”. Na formal está “aquilo que a coisa vai ser e, por fim, na final, “aquilo para o que a coisa é feita” – seu telos, sua finalidade. É o fim a que se destina. Um exemplo seria o da estátua, onde facilmente identificaríamos as quatro causas. Destas e outras análises, Aristóteles fundamentará a sua física geral, entendida como a ciência que trata do movimento e que estaria restrita aqui na Terra, local onde é possível o devir. A Terra, portanto, é o mundo da mudança.

A teoria das quatro causas, contudo, não fecha as questões. Se explica o movimento, não resolve a questão da petição de princípio em que cai o esquema proposto pelo filósofo. Por exemplo, se o carvalho em ato foi antes uma semente com a árvore em potência, que veio de outra árvore em ato que, por sua vez, antes de ser ato estava também em potência, advinda de outra árvore em ato, onde está o início: na semente ou no carvalho? Qual é a causa inicial? Para Aristóteles, se todo este processo é gerado e exige uma contingência, deve haver um SER que seja NECESSÁRIO e não CONTINGENTE. Este ser não precisou de outro para ser gerado. Seria portanto ATO PURO (nunca foi em potência), incausado – já que seria CAUSA PRIMEIRA – e, conseqüentemente, o responsável inicial por todo o desencadeamento do movimento. Chamado de MOTOR PRIMEIRO também, seria DEUS para Aristóteles. Pairando acima do Universo, movendo-o como causa final, não cria o mesmo e nem o conhece. O Universo é eterno. Incorpóreo, pura forma, Deus para Aristóteles é um pensamento auto-contemplativo. É fundamento para a metafísica aristotélica.

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GLOSSÁRIO:

Aedo: na Grécia antiga, poeta que recitava ou cantava suas composições religiosas ou épicas, acompanhando-se à lira.Antropomorfismo: crença ou doutrina que atribui a Deus ou a deuses forma(s) ou atributo(s) humanos.Arché: começo, ponto de partida, princípio, suprema substância subjacente, princípio supremo indemonstrável. Aristocracia: tipo de organização social e política em que o governo é monopolizado por um número reduzido de pessoas privilegiadas não raro por herança.Cinismo: doutrina e modo de vida dos cínicos, partidários dos filósofos gregos Antístenes de Atenas (444-365 a.C.) e Diógenes de Sínope (413-323 a.C.), fundadores da escola cínica. Cosmogonia: mito ou doutrina referente à origem do mundo. Cosmologia: qualquer doutrina ou narrativa a respeito da origem , da natureza e dos princípios que ordenam o mundo ou o universo, em todos os seus aspectos.Empirismo: doutrina ou atitude que admite, quanto à origem do conhecimento, que este provenha unicamente da experiência, seja negando a existência de princípios puramente racionais, seja negando que tais princípios, existentes embora, possam, independentemente da experiência, levar ao conhecimento da verdade.Épico: que diz respeito à epopéia e aos heróis. Epopéia: poema de longo fôlego acerca de assunto grandioso e heróico.Especulação: exame atencioso, averiguação minuciosa, observação, indagação, pesquisa.Ética: estudos dos juízos de apreciação referentes à conduta humana suscetível de qualificação do ponto de vista do bem e do mal, seja relativamente a determinada sociedade, seja de modo absoluto.Filosofia: (do gr. Philosophia, ‘amor à sabedoria’). Estudo que se caracteriza pela intenção de ampliar incessantemente a compreensão da realidade, no sentido de apreendê-la na sua totalidade, quer pela busca da realidade capaz de abranger todas as outras, o Ser (ora ‘realidade suprema’, ora ‘causa primeira’, ora ‘fim último’, ora ‘absoluto’, ‘espírito’, ‘matéria’, etc.), quer pela definição do instrumento capaz de aprender a realidade, o pensamento (as respostas às perguntas: que é a razão? O conhecimento? A consciência? A reflexão? Que é explicar? Provar? Que é uma causa? Um fundamento? Uma lei? Um princípio? etc.), tornando-se o homem tema inevitável de consideração. Ao longo da sua história, em razão da preeminência que cada filósofo atribui a qualquer daqueles temas, o pensamento filosófico vem-se cristalizando em sistemas, e cada um deles com uma nova definição de filosofia. Genealogia: série de antepassados, estudo das origens das famílias, origem, procedência, linhagem. Helenístico: diz-se do período histórico que vai desde a conquista do Oriente por Alexandre até a conquista da Grécia pelos romanos.Heleno: indivíduo dos Helenos, povos que, substituindo a dominação dos pélagos, povoaram a Grécia.Laicização: exclusão dos elementos religiosos ou eclesiásticos de determinada organização estatal, de ensino.Mito: 1. narrativa de significação simbólica, geralmente ligada a cosmogonia, e referente a deuses que encarnam as forças da natureza e/ou aspectos da condição humana. 2. Forma de pensamento oposta à do pensamento lógico e científico. 3. exposição de uma doutrina ou de uma idéia sob forma imaginativa, em que a fantasia sugere e simboliza a verdade que deve ser transmitida, como por ex. no mito da caverna figurado no livro VII da República de Platão. Moral: conjunto de regras de conduta consideradas como válidas, quer de modo absoluto para qualquer tempo ou lugar, quer para grupo ou pessoa determinada. Paradigma: modelo, padrão.Patriarcal: diz-se de um tipo ou forma que se desenvolveu em certas épocas, como, por ex., na Antiguidade Clássica, e em que o chefe de família ou patriarca, duma autoridade absoluta, resumia toda a instituição social do tempo.Pedagogia: teoria e ciência da educação e do ensino.Pólis: cidades-Estado gregas.Politeísmo: religião em que há muitos deuses. Pragmatismo: 1. doutrina de Charles Sanders Peirce, filósofo americano (1839-1914), cuja tese fundamental é que a idéia que temos de um objeto qualquer nada mais é senão a soma das idéias de todos os efeitos imagináveis atribuídos por nós a esse objeto, que possam ter um efeito prático qualquer, pragmaticismo. 2. Doutrina segundo a qual a verdade de uma proposição é uma relação totalmente interior à experiência humana, e o conhecimento é um instrumento a serviço da ação, tendo o pensamento caráter puramente finalístico: a verdade de uma proposição consiste no fato de que ela seja útil, tenha alguma espécie de êxito ou de satisfação.Socratismo: relativo à Sócrates.Subjetivo: relativo a sujeito. Existente no sujeito. Que pertence unicamente ao pensamento humano em oposição ao mundo físico, isto é, à natureza empírica dos objetos a que se refere. Suserania: autoridade sob determinado território. Teogonia: geração dos deuses e do mundo; cosmologia mítica.Theós: deus.

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