55
"Por que, nos dias que correm, filhos encetam a morte dos pais, ou pais jogam nenes contra o para-brisa de carros? Por quo nao ha mais referencias eticas em criminosos absolutamentc indiferentes a lei? Enfim, quais causas ensejam o crescimento tao agudo da criminalidade? A yiolencia urbana e unia situacao vivenciada em muitos paises, de maneiras distintas, mas asscmelhadas, com multiplos fatores de risco dos quais muitos teóricos apontam desde a disparidade social atć a vulnerabilidade adaptativa dos homens. Os mais yulnerayeis sao os que tiveram a personalidade formada num ambiente desfavoravel ao desenvolvimento psicológico pleno. Da mesma forma, causas sociais sao vetores de criminalidade antes desconsiderados nas iiwestigacócs cientificas explicativas do crime. A conyergencia entre fatores pessoais e sociais forma urna quimica extremamente deleteria no descncadeamento de atos delituosos. (...) Associados a falta de acesso aos recursos materiais, a desigualdade social, a corrupcao policial, ao pessimo exemplo de impunidade dado pelos criminosos de colarinho-branco, a falta de possibilidade de ascensao social ou mesmo de urna vida digna para essas pessoas, esses fatores de risco criam urn caldo cię cultura quc alimenta a yiolencia crescente nos grandes centros urbanos." (Da Introdufńo, do AUTOR. ISBN 85-203-2619-6 9788520 326190 re? EDITORA REYISTA DOS TRIBUNAIS

Criminologia - Sérgio Salomão Shecaira

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Excelente pra vai prestar para as polícias.

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"Por que, nos dias que correm, filhos encetam a morte dos pais, oupais jogam nenes contra o para-brisa de carros? Por quo nao ha maisreferencias eticas em criminosos absolutamentc indiferentes a lei?Enfim, quais causas ensejam o crescimento tao agudo da criminalidade?A yiolencia urbana e unia situacao vivenciada em muitos paises, demaneiras distintas, mas asscmelhadas, com multiplos fatores de riscodos quais muitos teóricos apontam desde a disparidade social atć avulnerabilidade adaptativa dos homens. Os mais yulnerayeis sao osque tiveram a personalidade formada num ambiente desfavoravel aodesenvolvimento psicológico pleno. Da mesma forma, causas sociaissao vetores de criminalidade antes desconsiderados nas iiwestigacócscientificas explicativas do crime. A conyergencia entre fatores pessoaise sociais forma urna quimica extremamente deleteria no descncadeamentode atos delituosos. (...) Associados a falta de acesso aos recursosmateriais, a desigualdade social, a corrupcao policial, ao pessimoexemplo de impunidade dado pelos criminosos de colarinho-branco,a falta de possibilidade de ascensao social ou mesmo de urna vida dignapara essas pessoas, esses fatores de risco criam urn caldo cię cultura qucalimenta a yiolencia crescente nos grandes centros urbanos."

(Da Introdufńo, do AUTOR.

ISBN 85-203-2619-6

9 7 8 8 5 2 0 3 2 6 1 9 0 re?EDITORAREYISTA DOS TRIBUNAIS

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SUMARIO

PREFACIO-ALYiNoAuGUSTODESA 7

NOTA DO AUTOR 15

INTRODUgAO 17

PARTE PRIMEIRA

NOgÓES INTRODUTÓRIAS

1. Conceito, objęto e metodo da criminologia 31

1.1 ConsideracSes preliminares 31

1.2 Conceito 36

1.3 Objęto da criminologia: delito, delinąiiente, yftima e con-trole social 43

1.3.1 O delito 43

1.3.2 O criminoso 47

1.3.3 A yftima 50

1.3.4 Controle social do delito 55

1.4 Metodo da criminologia 60

2. Nascimento da criminologia 73

2.1 Aportes iniciais 73

2.2 Estudo dos precursores 77

2.3 O Iluminismo easprimeiras escolas sori<>loj ', ir: i,s ')()

Page 3: Criminologia - Sérgio Salomão Shecaira

f 2(1 CRIMINOLOGIA

2.4 Consideracoes criticas ąuanto aos marcos cientificos dacriminologia 103

2.5 Notas conclusivas 127

PARTE SEGUNDA

AS ESCOLAS SOCIOLÓGICAS DO CRIME

3. Criminologia do consenso e do conflito 133

4. Escola de Chicago 139

4. l Antecedentes históricos 139

4.2 Importancia metodológica da escola de Chicago 146

4.3 Elementos conceituais adotados pela escola de Chicago . 151

4.4 A ecologia criminal 160

4.5 As propostas da ecologia criminal 166

4.6 A discussao recente do problema e as intervenc5es atuais . 172

4.7 Pondera^ao critica sobre a ecologia criminal 179

4.H Notas conclusivas 182

.V li-oiiadaassociacaodiferencial 187

5 l N ol as introdutórias 187

5 ' Aiik-cedcntesdateoriadaassociacaodiferencial 188

5 ( A .issodacaodiferencialeocrimedocolarinho-branco .. 193

."> l A I j M i m a s Ibrmulaęóes posteriores 202

*> ' < < )hsi-i v;n;ocs conclusivas, criticas e releyancia da teoria.. 209

(l l i - i t t l.l <l. l .IIKIIIIIII 213

< . l Nd.i:; i n l r o t l i i l ó r i a s 213

< • ' < > p . i i ' , . i n k - i i i o de limile Durkheim 215

'• l < • IM i i : . . i i n c i i l o de Robert Merton 224

d l < H r . i i \ . n , ( K - s n i l i r a s c notas conclusivas 229

SUMARIO 27

7. Teoria da subcultura delinąuente 241

7.1 Notas introdutórias 241

7.2 Noticia histórica 246

7.3 Definięao e modalidades 249

7.4 Notas conclusivas 267

8. Labelling approach 271

8.1 Notas introdutórias 271

8.2 Ofermentodaruptura 273

8.3 O labelling approach 287

8.4 A influencia do labelling approach no pensamento juridi-cobrasileiro 311

9. Teoria critica 327

9.1 Notas introdutórias 327

9.2 As ideias centrais da teoria critica 330

9.3 Um enfoąue finał e notas conclusivas: a contribui9ao dateoria critica 357

CONCLUSOES 363

BIBLIOGRAFIA 369

Page 4: Criminologia - Sérgio Salomão Shecaira

PARTE PRIMEIRA

NOgÓES INTRODUTORIAS

Page 5: Criminologia - Sérgio Salomão Shecaira

.

CONCEITO, OBJĘTOE METODO DA CRIMINOL

SUMARIO: 1.1 Consideragoes prcliminares - 1.2 Conceito -1.3 Objęto da criminologia: delito, delinąiiente, vitima e con-trole social: 1.3.1 O delito; 1.3.2 O criminoso; 1.3.3 A vitima;1.3.4 Controle social do delito -1.4 Metodo da criminologia.

1.1 Considera^oes preliminares

Criminologia e um nome generico designado a um grupo detemas estreitamente ligados: o estudo e a explicacao da infragaolegał; os meios formais e informais de que a sociedade se utilizapara lidar com o crime e com atos desviantes; a natureza das postu-ras com que as vitimas desses crimes serao atendidas pela socieda-de; e, por derradeiro, o enfoąue sobre o autor desses fatos desvian-tes. O estudo dos criminosos e de seus comportamentos e hoje umcampo fertil de pesąuisas para psiąuiatras, psicólogos, sociólogose antropólogos, bem como para os juristas. Nas diferentes esferasde investigacao muitos escreveram sobre o comportamento anti-social como se fosse sempre, ou em geral, atribufvel a anormalida-des da personalidade, constitutiyas ou adąuiridas. No entanto, oprofissional da area medica, hoje, tem limitado sua observacao aosinlralorcs q u e sofrem de distiirbios com sinlomas incqufvocos.Estcs sao unia minoria, a i i u l a qiie' se i i i c l i i a i n dculre os "distiirbiosanti-sociais da porsonalidade". ' l a l obsei V;K;;H), dc'sdc logo, ta/-se

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32 CRIMINOLOGIA

necessaria para se entender a perspectiva que se adotara neste traba-Iho: urna visao macrocriminal, sob o enfoąue das ciencias sociais.

Qualquer observacao conceitual sobre a criminologia esbar-ra nas diferentes perspectivas existentes nas ciencias humanas.Definir criminologia sob a perspectiva critica e algo totalmentediferente do que faze-lo sob a ótica do positiyismo italiano. Ao semencionar ser ela urna ciencia, parte-se da ideia da neutralidadecientifica e, eyidentemente, prescinde-se da ideologia. De outraparte, ao se ignorarem os padróes de desenvolvimento do pensa-mento criminológico, com suas diferentes posturas metodológi-cas, impede-se que se tenha como referenda o estagio atual de"objetivagao" de seus resultados. Dai por que, necessariamente,esbarra-se em um terreno minado que esta a depender das perspec-tivas pessoais de quem enfrenta o tema. Nao se deixara de voltar aoassunto, oportunamente.

Segundo Hilario Veiga de Carvalho, autor que influenciou urnageragao de estudiosos da criminologia na Faculdade de Direito daUSP, "a criminologia define-se, geralmente, como sendo o estudodo crime e do criminoso, isto e, da criminalidade".1 Mesmo fazen-do uma crftica a definięao inaugural de seu livro e ao próprio nome- Criminologia - que atribui a essa ciencia,2 nao deixa de destacarque seu estudo volta-se, precipuamente, ao campo das cienciasantropológicas e, mais nuclearmente, das ciencias medicas e psi-cológicas.

Partindo- se da ideia de que conceituar algo e dizer oąuea coisae, nao se tem, com o conceito acima expendido, unia exata dimen-

(2)

Compendio de criminologia. p. 11."O nome e consagrado pelo uso e ja entendemos o que ele quer signi-ficar. Se ainda nao e uma ciencia autonoma e perfeitamente consti-tuida, o denominamo-la como tal, quando menos, obrigar-nos-a a lutarpor esse alvo. Mantenhamos, pois, o nome de Criminologia, ąuandomais nao seja para nos constranger a, um dia, assim corretamente po-dermos denominar a ciencia que professamos" (Op. cit. p. 12).

j

CONCEITO, OBJĘTO E METODO .< *•

sao do que venha a ser criminologia. E que tanibem o direito penalnao deixa de ser o estudo do crime e do criminoso e, na essencia, dacriminalidade. De resto, a politica criminal tambem nao prescindede indagar quanto ao estudo do crime e do criminoso, bem comoda criminalidade. Estamesma observacao quem afaz e Ernst Seelig,ao asseverar que "criminologia e, como o nome indica, a cienciado crime. Mas a ciencia do direito penal trata igualmente do crimee, todavia, estas duas ciencias sao diferentes nao só no objęto comotambem no metodo".3 Seriam, entao, a mesma coisa a criminolo-gia, o direito penal e a politica criminal? Parece evidente que nao.Mas quais as diferencas - bem como pontos de semelhanca - quetem entre si tais distintas esferas de estudos do fenómeno crimi-nal? Ou, indagando de outra forma, pode-se fazer o estudo da cri-minologia sem que, ao mesmo tempo, venha a se examinar o direi-to penal e a politica criminal?

Tais indagaęóes remetem o estudo da criminologia a um pe-riodo anterior em que aportava a discussao quanto as ciencias inte-gradas criminais ou a condięao de ser a criminologia uma "cienciaauxiliar" do direito penal. De outra parte, nao se pode deixar deatribuir relevancia ao fato de que, no Brasil, raramente, o estudoda criminologia integra o curriculo minimo das Faculdades deDireito, dentro de uma velha visao posithdsta e isolacionista dodireito. O nao-estudo da criminologia nas faculdades brasileiras -o que e a regra, em termos gerais - cria um vies ąuanto a aborda-gem do fenómeno criminal. Para a compreensao cientifica da tare-fa de aplicac. ao do direito penal nao basta o conhecimento das nor-mas postas, mas e indispensavel o dominio das contribuięoes cor-relatas existentes naquilo que se convencionou denominar "cien-cias criminais". Como nas nossas faculdades normalmente nao seensinam tais disciplinas, nao raro o estudante que queira investi-gar tais assuntos acaba por recorrer ao professor de direito penalno que nem sempre e bem atendido, posto que a criminologia, alem

(3) Manual de criminologia. vol. l, p. 1.

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CRIMINOLOGIA

de reąuerer consideraveis esforcos, reąuer profundos conhecimen-tos psicológicos e sociológicos, por ser urna disciplina que traba-Iha com metodos diferentes daąueles normalmente utilizados naesfera juridico-penal.4 Assim, as ciencias humanas, dentro da vas-ta gama das ciencias autónomas relacionadas com o crime (socio-logia criminal, antropologia criminal, psicologia e medicina foren-se, psiąuiatria criminal etc.), consubstanciam-se naąuilo que sepode denominar da vasta visao de ciencias criminais, que se inte-gram em um unico bloco do conhecimento. Dai por que, nos tem-pos que correm, cada urna dessas modalidades de conhecimentopode aspirar a certa autonomia, e a dogmatica penal nao ha de terurna ascendencia sobre as demais formas de estudo da criminali-dade, ainda que venha a conservar caracteristicas próprias, dife-renciadoras dessas paralelas formas de conhecimento.5

A criminologia, se nao fosse por seu próprio interesse, rela-cionado com seu objęto e finalidade, tambem estaria a merecer umestudo mais acurado dos juristas. Em primeiro lugar, porque, seexiste uma curiosidade daquele que estuda o ordenamento penal,impoe-se que venha a estudar quais razoes levam os homens a de-linqiiir, o que tambem significa dizer por que realizam atiyidadesque o direito penal proibe. De outra parte, nao pode ser indiferentea politica criminal, posto que indicaria tal disciplina o estudo das

CONCEITO, OBJĘTO E METODO \5

(4)

(5)

GIMBERNAT ORDEIG, Enriąue. Conceito e metodo da ciencia dodireito penal. p. 34.Interessante notar que as revistas cientificas brasileiras nem sempreexprimiram tal pensamento. A antiga Revista Ciencia Penal, em suasdiversas fases, discutia ąuestoes criminológicas como tambem dePolitica Criminal. Por sua vez, a Revista Brasileira de Ciencias Cri-minais, órgao oficial do Instituto Brasileiro de Ciencias Criminais,nao tinha, em suas primeiras edięSes, uma secao especifica para dis-cussao da sociologia criminal ou da psicologia criminal; isto se deuum pouco mais tarde, exatamente para poder fazer jus a ideia de cien-cias criminais, o que era resultado do próprio nome desse importanteperiódico.

medidas que poderiam ser tomadas para impedir, ou diminuir, m >futuro, o cometimento de novos delitos. Ademais, nao só por curiosidade deveria o jurista estudar tal ciencia. Com efeito, as con-sidera§oes criminológicas sao absolutamente imprescindiveis paraque o jurista possa levar a cabo sua própria tarefa dogmatica. Naoe crivel que se possa compreender o conteudo da norma sem recor-rer a criminologia, ciencia que Ihe da o substrato ultimo de conhe-cimento pre-juridico.

Segundo Figueiredo Dias, foi merito de Franz von Lizst tercriado entre os varios pensamentos do crime uma relaęao que po-deria ser denominada de modelo tripartido da "ciencia conjunta"do direito penal. "Uma ciencia conjunta, esta que compreenderiacomo ciencias autónomas: a ciencia estrita do direito penal, oudogmatica juridico-penal, concebida, ao sabor do tempo como oconjunto dos principios que subjazem ao ordenamento juridico-penal e devem ser explicitados dogmatica e sistematicamente; acriminologia, como ciencia das causas do crime e da criminalida-de; e a politica criminal, como 'conjunto sistematico dos princi-pios fundados na inyestigagao cientifica das causas do crime e dosefeitos da pena, segundo os quais o Estado deve levar a cabo a lutacontra o crime por meio da pena e das instituicoes com esta rela-cionada' ".6 Tal concepęao foi objęto de acerbas criticas de autoresque se ancoravam no positivismo juridico e que mencionavam queas concep9oes globais desse tipo faziam com que o estudo da cri-minalidade entrasse em uma area moyediga, abandonando o solofirmę da lei e do seu tratamento dogmatico-juridico especifico.

(6) DIAS, Jorge de Figueiredo. Questoes fundamentais do direito penalrevisitadas. p. 24. No original: "A politica criminal, em seu novo sen-tido, apóia-se, como exigencia metódica, em uma investigaęao cau-sal do delilo c das pcnas, (|iier dizer, na Criminologia (Garófalo), el Vi i«>loj>,ia (LiclicT). I',nlio a polflira cr iminal c o direito penal, dao-sel i m i l f s iiisupi'niveis, como ON qur r x i s l i - i i i i-ul io a polilica r o tlirei-lo". In: VON LIS/,'l', han/,. 'Iniiiido tli' ilfirclio i>,'iiul. p. 63 64.

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36 CRIMINOLOGIA

Assim, o direito penal deveria ser reservado exclusivamente aosjuristas, enąuanto as outras esferas de estudo deveriam ser analisa-das por seus especialistas.7

1.2 Conceito

Alguns autores consideram que conceito e definigao sig-nificam a mesma coisa. Outros afirmam que o conceito expri-me somente urna visao geral do objęto, levando em conta os tra-cos globais do que se pretende conceituar, ao passo que a defi-nigao exprime a determinacao exata, ou seja, que as expressoesdefinidas implicam a explicac. ao precisa sobre alguma coisa ouobjęto.8 Em outras palavras, definir um objęto e dar a oracaoreveladora do que a coisa e; enquanto o conceito e apresentarurna visao global, nao reduzindo a urna oracao, do que essamesma coisa seja. Nao querendo entrar napolemica, parece-nosmais relevante indagar sobre quais dados sao necessarios paraconceituar a criminologia, tendo sempre como parametro com-parativo o direito penal, imediata referenda de todos quantosoperam na area juridica.

A maior parte dos autores define a criminologia como urnaciencia. Ainda que tal premissa nao seja absoluta na doutrina, naoha como negar que, em sua grandę maioria, esta ve um metodopróprio, um objęto e urna funcao atribuiveis a criminologia. Mes-mo entendendo a ciencia como uma forma de procurar o conhe-cimento, diversa daquela que pode existir a partir do senso co-mum, nao se tem duvidas em afirmar que a criminologia e umaciencia. Tambem nao se ignora a discussao segundo a qual as cien-cias humanas ou sociais nao sao realmente ciencias, porque naotrazem teorias de validade universal, nem dispoem de metodos

(7) DIAS, Jorge de Figueiredo, op. cit. p. 24-25.(8) FERNANDES, Newton; FERNANDES, Yalter. Criminologia inte-

grada. p. 26.

CONCEITO, OB JĘTO E METODO .17

unitarios ou especificos.9 Emnosso entender, no entanto, cre-sf ( | i n•a criminologia reune uma informacao valida e confiavel s o b i x - « >problema criminal, que se baseia em um metodo empirico de im;ilise e obseryaęao da realidade. E claro que tal informacao nao lra/„necessariamente, uma forma absoluta, concludente e definitiva clever toda realidade fenomenica. Como ciencia do "ser", nao e umaciencia "exata", que traduz pretensoes de seguranca e certeza ina-balaveis. Nao e considerada uma ciencia "dura", como sao aque-las que possuem conclusSes que as aproximam das universais.Como qualquer ciencia "humana" apresenta um conhecimentoparciał, fragmentado, provisório, fluido, adaptavel a realidade ecompativel com evolucoes históricas e sociais. De sorte que o sa-ber empirico, subjacente ao conhecimento da criminologia, naodeixa de apresentar certa dose de inexatidao em oposicao as ferre-as leis universais das ciencias "exatas".10

De outra parte, relevantes sao as consideracoes que apontampara a nao-neutralidade das ciencias humanas, dentre as quais seinclui a criminologia. O velho metodo positivista ve a existenciade um mundo que existe, ainda que nao se saiba como explicd-lo.A escola positivista de pensamento separa o sujeito cognoscentedo objęto cognoscwel. Isto e, ha um mundo fisico que esta fora doobseryador. Assim, deve este procurar que o conhecimento sejaobjetivo, como se pudesse fracionar a relacao entre o sujeito e oobjęto. Isto e importante, porque sobre estas bases e que se assen-tam as presumidas neutralidades da ciencia. O sujeito cognoscen-te descobre, de forma objetiva e neutra, o mundo a sua volta. Suaatividade nao e reflexiva (e, portanto, nao pode ser transformado-ra). Ele esta fora da realidade, nao se analisa e nao se observa.'' A

'"' Nesse sentido o pensamento de Carlos Alberto Elbert, Manuał h<isi~co de criminologia, p. 31.(iARCIA-PABLOS DE MOLINA, Antonio; GOMES, L i i i : ; l b v i . .( 'liniinologia p. 43-44.

( l l ) A N I Y A U DE CASTRO, Lola. Criminologia da inn;,i,< .v,-, / , / / |. ' .ł.

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38 CRIMINOLOGIA

partir do pensamento critico da realidade fenomenica, o observa-dor cientifico se insere na própria realidade a ser observada. Elebusca alternativas para transcende-la e transforma-la. Isto e, seuconhecimento se insere em urna forma de concepęao de mundoque pressupóe a transformaęao de seu objęto de estudo. Passa,pois, acomporumconceitodepraxis. Nao secontentacomaexis-tencia, mas sini com a essencia, pois pretende urna ampla com-preensao do fenomeno estudado para servir de guia transforma-dor da realidade posta. Partindo dessa mesma critica ao positi-vismo aparentemente neutro, merece destaąue o pensamento deEugenio Raul Zaffaroni ąuando afirma que "o poder e o saber sevinculam mediante estes pensamentos de maxima abstragao, quesao os que nos permite visualizar, em toda sua dimensao, o signi-ficado de urna ideia referida a um campo particular do saber. Seperdermos esta necessaria semantica orientadora, ficaremos total-mente confusos".12

Feitas essas observacoes releyantes sobre a natureza da cien-cia criminológica, convem precisar seu objęto. Ocupa-se a crimi-nologia do estudo do delito, do delinquente, da yftima e do contro-le social do delito e, para tanto, langa mao de um objęto empirico einterdisciplinar. Diferentemente do direito penal, a criminologiapretende conhecer a realidade para explica-la, enquanto aquelaciencia valora, ordena e orienta a realidade, com o apoio de urnaserie de criterios axiológicos. A criminologia aproxima-se do fe-nomeno delitivo sem prejuizos, sem mediacSes, procurando obterurna informacao direta deste fenomeno. Ja o direito limita interes-sadamente a realidade criminal, mediante os principios da fragmen-tariedade e seletividade, observando a realidade sempre sob o pris-ma do modelo tipico. Se a criminologia interessa saber como e arealidade, para explica-la e compreender o problema criminal, bemcomo transforma-la, ao direito penal só Ihe preocupa o crime en-quanto fato descrito na norma legał, para descobrir sua adequagao

(12) Criminologia: aproximación desde un margen. p. 6.

( "

CONCEITO, OBJĘTO E METODO 39

tipica. O direito penal versa sobre normas que interpretam em suasconex5es internas, sistematicamente. Interpretar a norma e aplica-la ao caso concreto, a partir de seu sistema, sao os momentos cen-trais da tarefa juridica. Por isso, ao contrario da criminologia, quee urna ciencia empirica, o direito tem um metodo juridico-dogma-tico e seu proceder e dedutivo sistematico. O direito penal tem na-tureza formal e normativa. Ele isola um fragmento parciał da rea-lidade, com criterios axiológicos, e a intervengao estatal tem porimperativo o principio da legalidade. A criminologia reclama doinvestigador urna analise totalizadora do delito, sem mediaęoesformais ou valorativas que relativizem ou obstaculizem seu diag-nóstico.13 Interessa a criminologia nao tanto a qualificacao formalcorreta de um acontecimento penalmente relevante, senao a ima-gem global do fato e de seu autor: a etiologia do fato real, sua estru-tura interna e dinamica, formas de manifestaęao, tecnicas de pre-venęao e programas de intervenęao junto ao infrator. O direito penalc a criminologia aparecem assim como duas disciplinas que tem omesmo objetivo com meios diversos: a criminologia com o conhe-cimento da realidade, e o direito penal com a yaloraęao interessa-da dessa mesma realidade. Hoje e possfyel precisar, perfeitamen-te, a autonomia de ambas as disciplinas e, ao mesmo tempo, firmarsua interdependencia reciproca. O direito penal nao esta em con-di§6es, como se pensava antigamente, de circunscrever o conteu-do da criminologia, pois isso significaria que a criminologia naopodcria como o faz - estudar urna serie de mecanismos de con-1 1 oli- social que, de qualquer modo, assemelha-se ao direito penal.Mais aiiula, a criminologia, na atualidade, erige-se em estudos cri-l "K-OS do próprio direito penal, o que evita qualquer ideia de subor-(liii;n,;ao dc inna ciencia em cotejo com a outra.14

" ( i , \ K ( ' I A I V \ H I < >N l > l ; M< ) l . I N A , A i i l o n i o ; (lOMIiS, Luis Flavio.< V i n |> l x

i l h n i i 1 , i < >', K- \ M i i v i / I M . n i l .1 c ii..!..••! i Elptnsamtentocrimi-/ / I ' / < M ; / , , . / I N I . l l l . l l l - . l ' , l l l l l l I I | > 2 4 ,

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;

CRIMINOLOGIA

Como postulafao provisória pode-se afirmar que a ciencia dodireito e valorativa e normativa, ao passo que a criminologia eempirica e causal-explicativa. No que concerne ao seu objęto deestudo - o delito -, o direito se ocupa de suas caracteristicas nor-mativo-sistematicas, de suas consequencias juridicas e dos sujei-tos que participam dessa relacao substancial, todos como compo-nentes do conjunto de normas que constituem o direito positivo.Tem, pois, por finalidade o conhecimento de um direito penal po-sitivo que tangencia o estudo da vitima e do criminoso; para a cri-minologia seu objęto e o estudo do delito, do delinquente, da viti-ma e do controle social. Quanto ao metodo, tem-se a distin9ao en-tre o lógico-dedutivo, dogmatico para o direito e o empirico, indu-tivo e interdisciplinar para a criminologia.15

Estabelecidos os conceitos que constituem a base do pensa-mento criminológico, trata-se agora de definir a criminologia.Seguindo o pensamento de Antonio Garcia-Pablos de Molina, e acriminologia "urna ciencia empirica e interdisciplinar, que se ocu-pa do estudo do crime, da pessoa do infrator, da vitima e do contro-le social do comportamento delitivo, e que trata de subministrarurna informacao valida, contrastada, sobre a genese, dinamica evariaveis principais do crime - contemplado este como problemaindividual e como problema social -, assim como sobre os progra-mas de preyenfao eficaz do mesmo e tecnicas de intervencao posi-tiva no homem delinqiiente".16 Outras nao sao as principais defini-coes, mais ou menos na mesma linha que a exposta acima.17

Se a criminologia traz urna realidade objetiva constituindo-se em um substrato teórico que pode ser utilizado pelo direito pe-

(15) MORILLAS CUEYA, Lorenzo. Metodologia y ciencia penal. p. 316.(16) Op. cit. p. 33.(17) Vide, dentre outras: MORILLAS CUEYA, Lorenzo. Op. cit. p. 312;

FERNANDES, Newton; FERNANDES, Yalter. Op. cit. p. 26-27;REYES ECHANDIA, Alfonso. Criminologia. p. 1-2. ALBERGA-RIA, Jason. Nocoes de criminologia. p. 33.

CONCEITO, OBJĘTO E METODO 41

nal, qual o papel desempenhado pela politica criminal na relaęaoentre aquelas ciencias? A politica criminal e urna disciplina queoferece aos poderes publicos as opgoes cientificas concretas maisadequadas para controle do crime, de tal forma a servir de ponteeficaz entre o direito penal e a criminologia, facilitando a recepęaodas investigaęoes empiricas e sua eventual transforma9ao em pre-ceitos normativos. Assim, a criminologia fornece o substrato em-pirico do sistema, seu fundamento cientifico. A politica criminal,por seu turno, incumbe-se de transformar a experiencia crimino-lógica em opęoes e estrategias concretas assumiveis pelo legisla-dor e pelos poderes publicos. O direito penal deve se encarregar deconverter em proposięoes juridicas, gerais e obrigatórias o sabercri minológico esgrimido pela politica criminal.'8 Assim, a diferenęaentre a politica criminal e criminologia e que aquela implica asestrategias a adotarem-se dentro do Estado no que concerne a cri-minulidade e a seu controle; ja a criminologia converte-se, em faceda politica criminal, em urna ciencia de referenda, na base mate-r i a l , no substrato teórico dessa estrategia.

A politica criminal, pois, nao pode ser considerada urna cien-cia igual a criminologia e ao direito penal. E urna disciplina quenao lem um metodo próprio e que esta disseminada pelos diversospoderes da Uniao, bem como pelas diferentes esferas de atuaęaodo próprio Estado. Assim, quando a Prefeitura, diante da ocorren-i i ; i dr sucessivos crimes de estupro, em um lugar mai iluminadot l . i « idadr, resolve prevenir a ocorrencia de novos delitos, com an r . i a l a c a t ) ile inwos postes de luz, esta fazendo urna politica crimi-1 1 . 1 1 1 >i went i va. Tambem o faz quando elege a seguran9a dos muni-( i | H - S t ( t n i o unia de suas prioridades ao criar aSecretaria de Segu-/ , / / / ( < / Urhiiiiti.1" Da inesina forma, ao implementar politicas pu-l ' h < .r. tnitigadoras dos ronlrasles soc-iais, estant implantando urna

< . \|.'( l \ l' \HI < > ' . l >l M< >l INA. Ani.i ( J ( )MI',S, l ,iiis l''l;ivio.

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42 CRIMINOLOGIA CONCEITO, OBJĘTO E METODO 43

politica com repercussao na esfera criminal. Tambem o PoderExecutivo na esfera do Estado faz politica criminal. A Secretariada Seguranga Piiblica do Estado de Sao Paulo, ao adotar urn siste-ma informatizado de mapeamento da criminalidade, rua a rua,denominado Infocrim, agiu conforme urna politica criminal.Evidentemente que o Poder Legislativo implementa politicas cri-minais.20 Faz isso todos os dias, especialmente por estar pressiona-do pela própria midia.21 Da mesma forma, os operadores do direi-to e, em especial, aąueles do Poder Judiciario fazem suas politicascriminais em decisóes cotidianas. Ainda que busąuem fundamen-tos intradogmaticos, nao deixam de atender "as boas razóes depolitica criminal" para absolverem com fundamento nos principiosda insignificancia ou da adeąuaęao social. Enfim, a constatacaocientifica pela criminologia de que nao se deve usar a prisao e opróprio sistema punitivo, posto que instancias criminógenas e quemotivam os operadores do direito a utilizaęao da chamada politicacriminal em seu cotidiano.

Assim, para concluir este tópico, pode-se asseverar que odireito penal, a criminologia e a politica criminal sao os tres pila-res de sustentaęao do sistema integrado das chamadas cienciascriminais.

(20) Ha urna certa duvida se o Estado brasileiro, nos ultimos anos, teveurna ou diversas politicas criminais. E que, ao mesmo tempo em queadotou leis mais repressoras, em atendimento ao chamado "Movimen-to da Lei e da Ordem", de cujo paradigma a Lei de Crimes Hedion-dos (Lei 8.072/1990) e a principal referenda, e que se insere no fir-mę propósito denominado de "expansao do direito penal", tambemteve iniciatiyas mitigadoras, consubstanciadas nas Leis 9.099/1995e9.714/1998, que tem nitidos objetivos de fazer diminuir a carga pu-nitiva do Estado.

(21> Em um próximo capitulo voltar-se-a ao tema com urna abordagemmais incisiva sobre o poder da midia na determinacjo de algumasaęóes estatais.

Objęto da criminologia: delito, delinąuente, vitima e con-trole social

, -,1.3.1 O delito

0 conceito de delito nao e exatamente o mesmo para o direitopenal e para a criminologia. Para o direito penal o crime e a a$aotipica,ilfcitaeculpavel.22Pode-senotar,dessadefmi5ao,queavisaoque o direito penal tem do crime e unia visao centrada no compor-tamento do individuo. Ainda que o conceito contemple fatores quese voltam para a generalidade das normas - e por via de conseqiien-cia para a generalidade das pessoas -, como e o caso da ilicitude,nao se pode deixar de mencionar que tal conceito aponta para ocaminho natural e cotidiano feito pelos operadores do direito emrelaęao aos fatos delituosos: um purojuizo de subsun9ao do fato anorma, juizo esse que e puramente individual. Para a criminolo-gia, no entanto, como o crime deve ser encarado como um fenó-meno comunitario e como um problema social, tal conceituaęao einsuficiente. Ademais, que fatores levam os homens, vivendo emsociedade, a "promover" um fato humano corriqueiro a condięaode crime? E evidente que a evoluęao de novas tecnologias sempreesta a demandar novas intervenęoes nas esferas penais. E assim coma criminalidade que envolve as questoes de bioetica ou aquela re-lativa a informatica. No entanto, o que fez com que os homens, emdado momento de sua evolu$ao histórica, resolvessem criminali-/ar a conduta de corte de certas arvores, algo que a humanidadevinha fazendo por muitos seculos, sem qualquer aęao dos gover-nos que visasse a coibir tal atitude? Ou, ainda, por que durante se-culos e seculos os homens foram inamistosos caęadores e agora pas-s;u ani a punir aqueles que ca9am certos animais, desregradamente?

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t44 CRIMINOLOGIA

Em outras palavras, o que se quer saber e: quais sao os criteriosensejadores de cristalizaęao de urna conduta como criminosa?

Um dos primeiros autores a enfrentar o problema de se ter umconceito pre-penal de delito foi Garofalo. Em seu intento de criarum conceito materiał de crime, que pudesse sobreviver as trans-formaęoes temporais e espacial, criou um conceito de "delito na-tural" como: "urna lesao daquela parte do sentido morał, que con-siste nos sentimentos altruistas fundamentais (piedade e probida-de) segundo o padrao medio em que se encontram as rac. as huma-nas superiores, cuja medida e necessaria para adaptaęao do indivi-duo a sociedade".23 Se o objetivo do mestre positivista era criarum conceito atemporal, o simples fato de circunstanciar sua de-finięao "segundo os padroes medios das racas humanas superio-res" ja foi o suficiente para eliminar a atemporalidade do concei-to. Na realidade, melhor seria se procurasse criterios adaptaveissegundo o desenvolvimento histórico e social de cada povo, parafazer formulacoes variaveis, conforme o estagio de matura9ao decada sociedade.

Encarando como um problema social e tendo como referen-da os atos humanos pre-penais, alguns criterios sao necessarios paraque se reconhe9am nesses fatos condicóes para serem compreen-didos coletivamente como crimes. O primeiro ponto e que tal fatotenha urna incidencia massiva napopulacao. Nao ha que reconhe-cer a condięao de crime a fato isolado, ocorrido em distante localdo pais, ainda que tenha causado certa abje9ao da comunidade. Seo fato nao se reitera, desnecessario te-lo como delituoso. Um exem-plo disso aconteceu, anos atras, no litoral do Rio de Janeiro. Houveum encalhe de um filhote de baleia em urna praia carioca e um dosbanhistas, que por ali passava, introduziu um palito de sorvete noorificio de respiraęao do animal. Pouco tempo depois, por pressaode entidades ambientalistas, o Congresso Nacional aprova urna lei

(23) GAROFALO, Rafaele. Criminlogie. p. 3-4.

CONCEITO, OBJĘTO E METODO -O

de cinco artigos (Lei 7.643/1987) em que se descrevia a supostaconduta praticada por aquele banhista: molestamento intencionalde cetaceo (art. 1.° com a atribuięao de urna pena de 2 a 5 anos).Nem se pretende fazer a critica do verbo utilizado para descrever aconduta praticada por aquele agente, mas tao-somente destacar aimpropriedade de, por ocorrencia unica no Pais, promover aquelefato a condięao de crime.

O segundo elemento, a concorrer com os demais, e que hajaincidencia aflitiva do fato praticado. E natural que o crime produ-za dor, quer a vitima, quer a comunidade como um todo. Assim, edesarrazoado que um fato, sem qualquer relevancia social, sejapunido na esf era criminal. Exemplo da inexistencia da dor, que deveser insita ao crime, e a lei que pune todos aqueles que utilizam, ina-dequadamente, a expressao "couro sintetico".24 E evidente que ovocabulo couro sintetiza a ideia da procedencia animal. No entan-to, provavelmente atendendo aos interesses económicos de empre-sarios dessa area de produęao, convencionou-se punir aqueles que,para descreverem os tecidos sinteticos assemelhados ao couro,passassem a denomina-lo de "couro sintetico". Qual a incidenciaaflitiva para a comunidade em denominar um tecido que nao e deprocedencia animal como o sendo?

Terceiro elemento constitutivo do conceito criminológico decrime e que hajapersistencia espaco-temporal do fato que se querimputar de delituoso. Nao ha que ter como delituoso um fato, ain-

(24) Nos termos da Lei 4.888/1965: "Art. l .° Fica proibido por a venda ouvender, sob o nome de couro, produtos que nao sejam obtidos exclu-sivamente de pele animal. Art. 2.° Os produtos artificiais de imitagaoterao de ter sua natureza caracterizada para efeito de exposicao evenda. Art. 3.° Fica tambem proibido o emprego da palavra couro,mesmo modificada com prefixos ou sufixos, para denominar prochi-los nao enąuadrados no art. 1.°. Art. 4.° A infraęao da presenU- l ,i-iconstitui o crime previsto no art. 196 e seus paragrafos do ( 'o1'cnal".

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da que seja massivo e aflitivo, se ele nao se distribui por nosso ter-ritório, ao longo de um certo tempo. Isto ocorreu com os furtos deyeiculos. Sua reiteraęao, sua lesividade ao bem juridico, sua per-sistencia espaęo-temporal, fizeram com que o legislador aumen-tasse a pena desses fatos, ąuando o veiculo fosse transportado paraoutros Estados ou ąuando transpusesse as fronteiras do Pais (art.155, § 5.°, do CP). No entanto, muitos outros fatos nao tiveram omesmo tratamento. Uma moda fugaz, exatamente por sua fugaci-dade, nao deve ser considerada mais do que urna simples moda.Lembram-se, muito mais atitulo de curiosidade, as transformacSesefetivadas pelo movimento da Jovem Guarda nos anos 60. Umasdas influencias deitadas por aąuela geraęao de cantores foi a mu-danęa da indumentaria para algo pouco convencional. A utiliza-£ao de colares, roupas coloridas, aneis, nao era muito comum na-ąueles tempos. Certo dia, um daąueles cantores apresenta-se comum "anel de brucutu"; tratava-se de um peąueno materiał, pareci-do com um rosto, e que era retirado dos para-brisas dos velhos"fusąuinhas" e que tinha a finalidade de direcionar a agua para alimpeza dos para-brisas. Foi uma verdadeira febrę. Muitas pessoaspassaram a desatarraxar os brucutus dos carros parados, causandograndę desconforto aos proprietarios daąueles veiculos. No entanto,por nao haver persistencia espaęo-temporal, ninguem imaginouampliar a pena para tal conduta, como se fez com o furto dos Yei-culos, mais recentemente.

Por derradeiro, o ąuarto elemento a exigir-se para a configu-ragao de um fato como delituoso e que se tenha um inequivococonsenso a respeito de sua etiologia e de ąuais tecnicas de inter-vencao seriam mais eficazes para o seu combate. Tomemos comoexemplo o uso do alcool. Seguramente poderiamos qualificar oalcool como uma droga licita, mas uma droga que produz profun-das consequencias nao somente para todos os dependentes, bemcomo para todos quantos tem que se relacionar com o adicto. Naose tem diivida, pois, de que o uso indiscriminado de bebidas alcoó-licas produz conseqiiencias massivas, aflitivas, e de que tais con-

CONCEITO, OBJĘTO E METODO 47

seqiiencias tem uma persistencia espago-temporal. Mas ąuantosestudiosos serios proporiam a criminalizagao do uso ou contrabandodo alcool? Quantos cometeriam o mesmo erro do passado, no pe-riodo da Lei Seca nos Estados Unidos? Sem duvida, nao sao todosos fatos que, aflitivos e massivos, com persistencia espaęo-tempo-ral, devem ser considerados crimes. Na realidade, qualquer refor-ma penal deveria averiguar o preenchimento dos criterios acimaelencados para a verifica$ao do juizo de necessidade da existenciade cada fato delituoso.

1.3.2 O criminoso

Desde os teóricos do pensamento classico, o centro dos inte-resses investigativos estava no estudo do crime, definido por aque-les pensadores como um ente juridico. Na realidade, o foco nao sevoltava ao estudo do criminoso, ate que surge a perspectiva da es-cola positiva. A partir dai nasce uma especie de dicotomia: crime/criminoso. Mencionar-se-ao, sucintamente, algumas das perspec-tivas surgidas após esse periodo, pois no decorrer do trabalho taisperspectivas serao aprofundadas pelo estudo das escolas.

A primeira grandę perspectiva era a dos chamados classicos,que entendiam ser o criminoso um pecador que optou pelo mai,embora pudesse e devesse respeitar a lei. Tal aporte advem, natu-ralmente, das ideias de Jean Jacąues Rousseau, firmadas em seu Ocontrato social. Para Rousseau, a sociedade decorria na suas ori-gens da fixa9ao de um grandę pacto. Por meio deste, as pessoasabriam mao de parcela de sua liberdade e adotavam uma conven-9ao que deveria ser obedecida por todos. Como a premissa naturalde todos ąuantos fizeram aquela avenga era a capacidade de com-preender e de querer, supunha-se que qualquer um que quebrasseo pacto fa-lo-ia por seu livre-arbitrio. Assim, se uma pessoa come-tcssc um crime - o cometimento do crime e, evidentemenlc, innaąuebra do pacto - deveria ser punida pelo deliberado nial causadoa comunidadc. A punięao deveria ser proporcional a<> mai causa-

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do, a partir da lógica formulaęao dialetica hegeliana segundo a quala "pena era a nega9ao da negaęao do direito".

Tal concep9ao foi duramente criticada pelos autores positi-vistas, que representam uma segunda ordem de visao sobre o mes-mo tema. Para eles o livre-arbitrio era uma ilusao subjetiva, algoque pertencia a metafisica. O infrator era um prisioneiro de suaprópria patologia (determinismo biológico), ou de processos cau-sais alheios (determinismo social). Era ele um escravo de sua car-ga hereditaria: um animal selvagem e perigoso, que tinha uma re-gressao atavica e que, em muitas oportunidades, havia nascido cri-minoso. A critica feita pelos positiyistas aos classicos marcou to-das as discussoes e a literatura do finał do seculo XIX e inicio doseculo XX. Muitos se dhddiram entre a pena proporcional ao maicausado (proposta pelos classicos) e a medida de seguranęa com ;finalidade curativa, por tempo indeterminado, enquanto persistis-se a patologia (proposta pelos positivistas). Tambem muitas legis-laęoes adotaram postulados concebidos em tais assertivas, comofoi o caso de nosso ordenamento de 1940.

Terceira perspectiva quanto ao crime foi a visao correciona-lista, que nao teve grandę importancia no Brasil, mas que influen-ciou, a partir da Espanha, todos os paises da America espanhola.25

Para os correcionalistas o criminoso e um ser inferior, deficiente,incapaz de dirigir por si mesmo - livremente - sua vida, cuj a debilyontade requer uma eficaz e desinteressada intervenęao tutelar doEstado. Assim, o Estado deve adotar em face do crime uma postu-ra pedagógica e de piedade. O criminoso nao e um ser forte eembrutecido, como diziam os positivistas, mas simum debil, cujoato precisa ser compreendido e cuj a vontade necessita ser direcio-

: nada. Embora em nossa doutrina tal perspectiva nao tenha sido taoimportante, nao se pode deixar de verificar que os fundamentos para

(25) Vide, nesse sentido, a obra de Pedro Dorado Montero, Derechoprotector de los criminales.

punir, adotados pelos correcionalistas, nao sao muito diversos davisao hoje dominantę para a reproyagao dos atos infracionais pra-ticados por adolescentes, em face da doutrina da proteęao integral.

,

Outra visao da criminalidade foi aquela concebida pelo mar-xismo que considera a responsabilidade do crime como uma de-correncia natural de certas estruturas economicas, de maneira queo infrator se torna mera vftima inocente e fungfyel daquelas. Queme culpavel e a sociedade. Cria-se, pois, uma especie de determinis-mo social e económico. E importante ressaltar que Marx jamais sedebruęou sobre a materia juridica.26 Tinha sua atenęao voltada paraa explicaęao dos fenómenos associados ao modo de producao ca-pitalista. Segundo sua visao, existia uma base de produ9ao (ou infra-estrutura) sobre a qual se assentava uma superestrutura. Esta seconstituia em reflexo daquela e, havendo modificaęao da base,naturalmente a superestrutura estaria alterada. Assim, o direito,parte integrante da superestrutura, restaria modificado se a basefosse mudada. O crime, definido pelo chamado "direito burgues",tambem se modificaria com a natural transformac. ao da sociedade,dai por que desnecessario um estudo mais aprofundado do direitopelos marxistas.

Dadas as diferentes perspectivas, e em face de todas as dis-cussoes posteriores as concepcoes originais acima formuladas,entende-se que o criminoso e um ser histórico, real, complexo eenigmatico. Embora seja, na maior parte das vezes, um ser absolu-tamente normal, pode estar sujeito as influencias do meio (nao aosdeterminismos). Se for verdade que e condicionado, tem vontadeprópria e uma assombrosa capacidade de transcender, de superar olegado que recebeu e construir seu próprio futuro. Esta sujeito aum consciente coletivo, como todos estamos, mas tambem tem acapacidade impar de conservar sua própria opiniao e superar-se,

(26) Escreveu poucas passagens, comentarios muito sucintos, oni A ideo-logia alemd e em Critica ao programa de Goliia.

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transformando e transformando-se. Por isso, as diferentes perspec-tivas nao se excluem; antes, completam-se e permitem um grandęmosaico sobre o qual se assenta o direito penal atual.

1.3.3 A vitima

Edgard deMouraBittencourt, destacando as dificuldades paraestabelecer um conceito unico de vitima, pondera haver "o sentidoorigindrio, com que se designa a pessoa ou animal sacrificado adivindade; o geral, significando a pessoa que sofre os resultadosinfelizes dos próprios atos, dos de outrem ou do acaso; ojuridico-geral, representando aquele que sofre diretamente a ofensa ouamea9a ao bem tutelado pelo direito; o juridico-penal-restrito,designando o ihdividuo que sofre diretamente as conseqiiencias daviolac.ao da norma penal; e, por firn, o sentido juridico-penal-am-plo, que abrange o indivfduo e a comunidade que sofrem direta-mente as consequencias do crime".27

A vitima, nos dois ultimos seculos, foi totalmente menospre-zadapelo direito penal. Somente com os estudos criminológicos eque seu papel no processo penal foi resgatado. Tem-se convencio-nado dividir os tempos em tres grandes momentos, no que concerneao protagonismo das vitimas nos estudos penais: a "idade de ouro"da vitima; a neutralizaęao do poder da vitima; e a reyalorizaęaodo papel da vitima. Mesmo que tais perfodos encontrem um cer-to questionamento, essa classificaęao e aceita pela maioria dosautores.

A idade de ouro da vitima e aquela compreendida desde osprimórdios da civiliza9ao ate o firn da Alta Idade Media. Com aadocao do processo penal inquisitivo, a vftima perde seu papel deprotagonista do processo, passando a ter uma fungao acessória."Com o inicio da Baixa Idade Media (seculo XII), periodo marca-do pela crise do feudalismo, pelas Cruzadas e surgimento do pro-

(27) Vitima,p. 51.

CONCEITO, OBJĘTO E METODO 51

cesso inquisitivo, a yftima inicia seu caminho ramo ao ostracismo,sendo substituida, no conflito de natureza criminal, pelo sobera-no. E, de f ato, um periodo histórico extremamente largo, o que, porsi só, faz temeraria qualquer classificaęao e dificulta a exata com-preensao da eyoluęao."28 O fato e que, com o firn da autotutela, dapena de taliao, da composic, ao e, fundamentalmente, com o decli-nio do processo acusatório, ha uma certa perda do papel da vitimanas relaęoes processuais decorrentes de delitos.

Na segunda fasę histórica, tem-se uma neutralizaęao do po-der da vitima. Ela deixa de ter o poder de reaęao ao fato delituoso,que e assumido pelos poderes publicos. A pena passa a ser umagarantia de ordem coletiva e nao yitimaria (principalmente a partirdo Código Penal frances e com as ideias dominantes do liberalis-mo moderno). A partir do momento em que o Estado monopolizaa reaęao penal, quer dizer, desde que proibe as yitimas castigar aslesSes de seus interesses, seu papel vai diminuindo, ate quase de-saparecer. Mesmo institutos, como o da legitima def esa, aparecem,hoje, minuciosamente regrados. Pode haver reaęao desde que estaseja proporcional a aęao e que respeite certos limites, sem o quehavera alguma responsabilidade penal.29 Na realidade, por muitotempo o foco de interesse mais intenso foi em detrimento da viti-ma. Foi centrado nas perspectivas doutrinarias de politica penal;este fato, inclusive por parte de alguns teóricos radicais, demons-trou uma nao declarada solidariedade, nos conflitos, com o reu eum total esquecimento da vitima.30

Em um terceiro momento, revaloriza-se o papel da vitima noprocesso penal. Desde a escola classica, ja se tem a intuigao da re-levancia desse processo. Carrara chega a afirmar nao ser morał que

(28> OLIYEIRA, Ana Sofia Schmidt de. A vitima e o direito penal. p. 19.<29) LANDROYE DIAZ, Gerardo. Yictimologia. p. 23.(30) PONTI, Gianluigi. A vitima. Uma divida a ser paga. Ensnius crimi-

nológicos. p. 83.

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os governos se enriąuegam com os valores das multas impostas pelosdelitos que nao conseguiram evitar; e morał, ao contrario, que asociedade, da qual os bons cidadaos tem o direito a exigir prote-cao, repare os efeitos da fracassada vigilancia.31 De outra parte,desde logo, e bom que se observe ser facil surgirem alguns equivo-cos ao enveredar-se pelo estudo de um tema tao envolvente quantoo da Yitimologia. Nao raro surgem propostas em que se tem penasmuito severas ou duras prisoes como medidas supostamente com-pensatórias as vitimas. Na realidade, nao se propugna um códigomais punitivo, mas sim que os operadores do direito eliminemcertos desvios comuns aqueles que se ocupam das coisas da Jus-tięa.32 Este movimento, iniciado ha dois seculos, ainda esta emeyoluęao e encontrou eco em inumeros dispositiyos recentemen-te editados, em que se tem urna grandę preocupaęao com a viti-ma do delito.33

Todavia, a questao da vitima só tem um contorno sistematicoem sua abordagem pela criminologia, algo que e muito mais re-cente.34 Seu estudo, feito de maneira mais pronunciada, aparecelogo após a 2.a Guerra Mundial, especialmente em face do marti-rio sofrido pelos judeus nos campos de concentraęao comandadospor Adolf Hitler. E considerado como fundador do movimentocriminológico o advogado israelita Benjamim Mendelsohn, pro-fessor da Universidade Hebraica de Jerusalem, em funcao de urnafamosa conferencia proferida em Bucareste, em 1947, intitulada

(31) CARRARA, Francesco. Programma del corso di diritto cńminale.Parte generale. vol. l, p. 493.

02) Neste sentido, especialmente, o pensamento de Gianluigi Ponti, op.cit, p. 83.

(33) Note-se, por exemplo, as recentes reformas feitas no Código Penal,com o advento da Lei 9.714/1998 que adotou medidas indenizatóriasas yitimas (art. 45, §§ l.° e 2.°, do CP); bem como o art. 297 do CTB(Lei 9.503/1997) e art. 12 da Lei 9.605/1998.

"4) CALHAU, Lelio Braga. Vitima e direito penal. p. 26.

Um horizonte novo na ciencia biopsicossocial: a vitimologia.35

Tambem merece destaque o primeiro trabalho de folego a falar deforma sistematica sobre o tema. Trata-se do livro de Hans vonHentig, de 1948, divulgado na Universidade de Yale, intitulado Ocńminoso e sua vftima, em que esboęou o autor conjugar uma aju-da da psicologia com o estudo do binómio "ofensor/vitima".36 Al-guns anos mais tarde, sob a presidencia de Israel Drapkin, e reali-zado o 1.° Simpósio Internacional de Yitimologia, em Jerusalem,no Van Leer Jerusalem Foundation Building, de 02 a 06.09.1973,com o patrocfnio da Sociedadc Internacional de Criminologia, doGoYerno de Israel e da Universidade Hebraica de Jerusalem.37 Aessc seininario seguiram-se outros, tendo sido o VII Simpósio In-ternacional de Yitimologia realizado no Brasil, em 1991, no Riode Janeiro.38 A particularidade essencial da vitimologia reside emquestionar a aparente simplicidade em relagao a vitima e mostrar, aomesmo tempo, que o estudo da vitima e complexo, seja na esfera doindividuo, seja na inter-relagao existente entre autor e vitima.

Os estudos vitimológicos sao muitos importantes, pois per-mitem o exame do papel desempenhado pelas vitimas no desenca-deamento do fato criminal. Ademais, propiciam estudar a proble-

(35) OLIYEIRA, Edmundo. Yitimologia e direito penal: o crime precipi-tado pela vitima. p. 7.

<36) CALHAU, Lelio Braga. Op. cit. p. 35-36. Hans von Hentig volta aotema, no ano de 1962, ao escrever um longo capitulo sobre a vitima,em seus aspectos dogmaticos, biológicos e em suas rela9oes com omundo circundante, inserido no livro El delito: el delincuente bajo lainfluencia de las fuerzas del mundo circundante, vol. 2, p. 408-570.

(37) PELLEGRINO, Laercio. Yitimologia: historia, teoria, pratica e juris-prudencia. p. 3.

<38) Neste seminario, muitos estudiosos europeus ficaram vivamente in-teressados na experiencia brasileira da Delegacia da Mulher. A dolegaęao holandesa, especialmente, teve sua aten9ao voltada para o trmapor entender ser a experiencia brasileira muito inovadora. ("In.-}',;!! ania elaborar um relatório a ser encaminhado ao Ministro da . l u s l i v ; i » laHolanda para que pudesse adotar tal medida naąuele- p:us.

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matica da assistencia juridica, morał, psicológica e terapeutica,especialmente naąueles casos em que ha violencia ou grave amea-?a a pessoa, crimes que deixam marcas e causam traumas, even-tualmente ate tomando as medidas necessarias a permitir que taisYltimas sejam indenizadas por programas estatais, como ocorre eminumeros paises (Mexico, Nova Zelandia, Austria, Finlandia e emalguns Estados americanos). De outra parte, os estudos vitimoló-gicos permitem estudar a criminalidade real, medianie os informesfacilitados pelas yftimas de delitos nao averiguados (cifra negra dacriminalidade). Este ultimo aspecto e muito relevante, pois a pri-meira pesąuisa de yitimizaęao norte-americana, de 1966, desco-briu que os crimes relatados eram mais que duas vezes maiores queas estimativas produzidas pelas estatisticas oficiais.39 Ha casos emque a diferenga entre os fatos delituosos ocorridos e os comunica-dos as agencias de controle social e de 99% (para os crimes de da-nos em veiculos) e em crimes sexuais esta em torno de 90%.40 Aexistencia maior ou menor de comunicagao dos delitos dependeda percepcao social da eficiencia do sistema policial; da seriedadeou do montante envolvido no crime; do crime implicar ou nao umasituagao socialmente vexatória para a vitima (estupro, "conto doyigario" etc.); do grau de relacionamento da vitima com o agres-sor; da coisa furtada estar ou nao segurada contra furto; da expe-riencia preterita da vitima com a policia etc.

Algumas classificaęoes chegaram a ser imaginadas para com-portar as diferentes perspectivas que se tem sobre o assunto. Taisclassificagoes, muitas das quais exaustivas, tentamdelineartodo oarcabouęo existente acerca do fenómeno vitimológico. Nao noscabe, aqui, enveredar por tal seara, posto nao ser este o objetivodeste trabalho.41 No entanto, parece ser necessario, apenas para

(39) KAHN, Tulio. Pesąuisas de yitimizaęao. Revista do Ilanud, n. 10, p. 8.(40) Idem, ibidem, p. 12.(41) Ha farta literatura sobre o assunto. Podem-se mencionar, dentre outros:

FERNANDES, Antonio Scarance. Opapel da vitima noprocesso cri-

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adotar um parametro consagrado na literatura especifica, estabe-lecer a diferenęa entre vitimizacao primaria, secundaria e terciaria.Considera-se haver Yltimaprimaria quando um sujeito e diretamen-te atingido pela pratica de ato delituoso.42 A vftima secundaria eum derivativo das relaęoes existentes entre as yitimas primarias e oEstado em face do aparato repressivo (policia, burocratizaęao dosistema, falta de sensibilidade dos operadores do direito envolvi-dos com alguns processos bastante delicados etc.). Ja a vitimaterciaria e aqucla que, mesmo possuindo um envolvimento com ofalo delituoso, tem um sofriinenlo excessivo, alem daquele deter-minado pcla lei do pafs. li o caso do acusado do delito que sofreseyfcias, torluras ou oulios l ipos dc violćncia (as vezes dos pró-prios presos), ou c|uc icspoiuk- ;i |MoccssosqueevidentementenaoIhe devcriam ser impi i tados (ex.: caso da Escola Base).

l >' / Controle social do delito

No anibi lo da sociologiade origemnorte-americana a expres-sao conlrole social e familiar desde o inicio do seculo XX, com oadvento de alguns artigos escritos por Edward A. Ross.43 Toda so-ciedade (ou grupo social), desde que Max Weber introduziu a ideiade "monopólio da forca legitima", necessita de mecanismos disci-plinares que assegurem a convivencia interna de seus membros,razao pela qual se ve obrigada a criar uma gama de instrumentosque garantam a conformidade dos objetivos eleitos no piano so-

minal; BUSTOS RAMIREZ, Juan; LARRAURI, Elena. Yictimologia:presente y futuro; KOSOYSKI, Ester; SEGUIN, Elida (Org). Temasde vitimologia; NEUMAN, Elias et al. Yictimologia.

(42) Segundo Gerardo Landrove Diaz, tais Yltimas podem ser divididasem: fungiveis, acidentais, indiscriminadas, participantes, alternati-vas, yoluntarias, familiares, especialmente vulneraveis, simbólicasou falsas yitimas (Op. cit. p. 40 e ss).

(43) BERGALLI, Roberto. Contml socialpunitivo: sistema pciuil c instandasde aplicación (połicia, jurisdicción y carcel). p.0().

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ciał. Este processo ira pautar as condutas humanas, orientandoposturas pessoais e sociais. Dentro desse contexto, podemos defi-nir o controle social como o conjunto de mecanismos e sangoessociais que pretendem submeter o individuo aos modelos e normascomunitarios. Para alcangar tais metas as organizacoes sociais lan-gam mao de dois sistemas articulados entre si. De um lado tem-seo controle social informal, que passa pela instancia da sociedade ci-vil: familia, escola, profissao, opiniao publica, grupos de pressao,clubes de seryigo etc. Outra instancia e a do controle social formal,identificada com a atuagao do aparelho politico do Estado. Sao con-troles realizados por intermedio da Policia, da Justiga, do Exercito,do Ministerio Publico, da Administragao Penitenciaria e de todos osconsectarios de tais agencias, como controle legał, penal etc.

Quando as instancias informais de controle social falham,entram em agao as agencias de controle formais. Assini, se o indi-viduo, em face do processo de socializagao, nao tem urna posturaem conformidade com as pautas de conduta transmitidas e apren-didas na sociedade, entrarao em agao as instancias formais que atua-rao de maneira coercitiva, impondo sancoes qualitativamente dis-tintas das reprovagoes existentes na esfera informal. Este controlesocial formal e seletivo e discriminatório, pois o status prima so-bre o merecimento. Ademais, e ele estigmatizante, desencadean-do desviacoes secundarias e carreiras criminais, o que sera apro-fundado em capitulo posterior. A efetMdade do controle socialformal e muito menor do que aquela exercida pelas instancias in-formais. E isso que explica, por exemplo, ser a criminalidade mui-to maior nos grandes centros urbanos do que nas pequenas comu-nidades (onde o controle social informal e mais efetivo e presen-te). De outra parte, nas grandes cidades, onde os mecanismos decontrole informais nao sao tao presentes, ha de se buscar urna me-Ihor integragao das duas esferas de controle.44

(44) O permanente interesse na busca das policias comunitarias, forma depoliciamento em que se entrelacam as duas esferas de controle so-cial, decorre da (teórica) melhor articulaęao dessas duas esferas.

A efetividade do controle social e sempre relativa. Com razaoJeffery, citado por Antonio Garcia-Pablos de Molina e Luis FlavioGomes, afirmava que "mais leis, mais penas, mais policiais, maisjuizes, mais prisóes significam mais presos, porem nao necessa-riamente menos delitos. A eficaz prevengao do crime nao dependetanto da maior efetividade do controle social formal, senao damelhor integragao ou sincronizacao do controle social formal einformal".45 Tal relatMsmo e, em tudo e por tudo, aplicavel as res-postas penais, dai por que sao do interesse geral respostas nao tao(aparentemente) duras - com a utilizacao dos efeitos meramentesimbólicos dapena-como as que o Pais vivenciou nos ultimos anos(Lei de Crimes Hediondos, do Crime Organizado etc.).

A pena, nas sociedades avangadas, implica um vfnculo deautoridade entre quem reprova e quem e reprovado. O primeiro dizao segundo: voce e o responsavel, vale dizer, culpavel, por um de-terminado fato delituoso e por isso ha de ser condenado; o segundoaquiesce e, ao faze-lo, anui a sua culpa e reconhece o vmculo deautoridade. Instaura-se, dai, o reconhecimento de que o direito penale um instrumento de controle social que trabalha no niesmo senti-do de outros instramentos controladores. Diferencia-se de outrosinstramentos de controle social em face de seu aspecto formal, urnavez que carrega consigo a ameaęa concreta e racional da sancao.As outras formas de sancao - como o controle etico - manifestam-se informal e espontaneamente. As de direito penal, ao contrario,ajustam-se a um procedimento determinado, limitado por parame-tros definidos pela consagracao do princfpio da legalidade, e sóatuam quando todas as outras instancias de controle social nao atua-rem. Numa terminologia moderna, "o direito penal, junto comoutros instramentos de controle social medianie sangoes, formaparte do controle social primario, por oposicao ao controle social

<45) JEFFERY, C. P. Criminology as an interdisciplinary behavioralscience. Criminology,n. 16, p. 149-169, apudGARCIA-PABLOS DEMOLINA, Antonio e GOMES, Luis Flavio. Op. ci i . p. 105.

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secundario, que trata de internalizar as normas e modelos de com-portamento social adeąuados sem recorrer a san9&o nem ao pre-mio (por exemplo, o sistema educativo)".46

O conceito acima expendido remete-nos ao pensamento dualde Estado, compreendendo sociedade civil e sociedade polltica, quefoi consagrado por Antonio Gramsci, e que serve de fonte de estu-dos do Estado moderno. A sociedade civil e um conjunto comple-xo e abrangente, tendo em seu campo: a ideologia da classe diri-gente, das artes a ciencia, incluindo a economia; a concepgao demundo difundida por toda a sociedade e que advem da filosofia, dareligiao, do senso comum, do folclore etc. Atuam como elementosmultiplicadores dessa hegemonia existencial os instrumentos tec-nicos de difusao da ideologia, como o sistema escolar, a midia emsuas diferentes esferas, as bibliotecas, os artistas de rua etc. Emcontrapartida, a sociedade polltica concentra o aparato juridico-coercitivoparamanter,pelaforca, aordemestabelecida. Compreen-de o exercito, a polfcia, o aparelho burocratico, as esferas de go-verno etc. Dessa concepęao dual surge o conceito de Estado, comnovas determinacóes, comportando duas formas de dominagao:urna representada pela hegemonia (sociedade civil) e outra pelopoder coercitiyo (sociedade polltica). A complexidade do Estadomoderno faz com que a dominagao habitual, em decorrencia dahegemonia, seja a usada diuturnamente. Nos momentos de criseorganica, a classe dirigente perde o controle da sociedade civil eapóia-se na sociedade polltica para lograr manter sua dominaęao.47

Nas sociedades menos diferenciadas e em torno da sociedade po-litica que a luta se concentra; nas sociedades mais complexas, oessencial do combate ideológico se da no ambito da sociedade ci-vil. Na esfera e por meio da sociedade civil, as posięoes controver-sas buscam exercer sua hegemonia mediante a direęao polltica e o

(46) BACIGALUPO, Enriąue. Manual de derecho penal. p. l.w pORTELLI, Hugues. Gramsci e o bloco histórico. p. 31.

CONCEITO, OBJĘTO E METODO 59

consenso; por meio da sociedade polltica, ao contrario, as classesexercem urna dominacao mediante a coeręao.48

No piano juridico-penal, a analise sociológica tem mostradoque esse sistema penal nao atua de forma isolada. Ele deve ser vis-to como um subsistema encravado dentro de um sistema de con-trole social e de selecao de maior amplitudę existente dentro doEstado. Identificar esse sistema de penas com a repressao extre-mada da criminalidade e aproximar o direito penal do sistema coer-citivo das sociedades politicas. Ao contrario, distanciar a repres-sao penal da pratica corriqueira dos ilicitos e contextualizar a penadentro do processo dialógico inerente a sociedade civil. A contra-digao entre o controle penal absoluto e o direito penal, usado comoultima instancia de controle, e reflexo direto da dualidade existen-te entre sociedade polltica e sociedade civil, entre o regime ditato-rial e o regime democratico. Pretender utilizar a pena como meiode ordenar condutas dos cidadaos, alem do minimo essencial, irre-mediavelmente levara a arbitrariedade e ao autoritarismo do regi-me. Nao e por outra razao que as ditaduras extremaram as formasde controle social - e penal - em detrimento das formas de dissuasao,acentuaram o interesse de proteęao da sociedade em prejuizo daassecuraęao da liberdade individual.

A pena privativa de liberdade e a forma mais extremada decontrole penal. E sabido que o regime penitenciario reguła de modominucioso todos os momentos da vida do condenado, podendodespersonaliza-lo e converte-lo num automato. A própria arquite-tura prisional visa a induzir no detento um estado consciente e per-manente de visibilidade, que assegura de forma plena o controlede suas aęoes. Dentro do contexto do carcere, "a punięao e urnatecnica de coer9ao dos indiyfduos; ela utiliza processos de treina-mento do corpo - nao sinais - com os traęos que deixa, sob a formade habitos, no comportamento; ela supóe a implantaęao d^ um poder

(48) COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci. p. 92.

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especifico de gestao da pena. O soberano e sua forca, o corpo so-cial, o aparelho administrativo. A marca, o sinal, o trafo. A ceri-monia, a representaęao, o exercicio. O inimigo vencido, o sujeitode direito em vias de reąualificaęao, o individuo submetido a urnacoeręao imediata".49

A pena privativa de liberdade (como de resto todas as penas)tem um vmculo umbilical com o próprio Estado que a criou. A penae um instrumento assecuratório do Estado, a reafirmacao de suaexistencia, urna necessidade para sua subsistencia. A pena surgeąuando fracassam todos os controles sociais, e por isso mesmo emais que um controle: e expressao absoluta de seu carater repres-sivo. E, dessa forma, como controle e como repressao do Estado,manifesta-se na especificacao de determinadas relacóes concretasque aparecem desvaloradas pelo próprio Estado.50 Nao e por outrarazao que só deyemos utilizar os mecanismos formais de controlesocial, entre os quais as penas se incluem, quando falharem as de-mais formas de controle social. E o que o direito chama de ultimaratio regum, principio informador de todo o direito penal consubs-tanciado no chamado direito penal minimo.

1.4 Metodo da criminologia

A reflexao sobre o metodo da criminologia permite identifi-car um extenso conjunto de questocs e materias que integram oproblema criminológico. O que hoje denominamos saber cientifi-co esta diretamente ligado ao ideał iluminista, fonte de nossos co-nhecimentos e base de nossas instituicóes. A ciencia como forcarelevante para o homem comecou com Galileu Galilei (1564-1642),existindo ha mais de trezentos e cinqiienta anos. Se na primeira

(49) FOUCAULT, Michel. Yigiarepunir: historia da violencianasprisoes.p. 116.

(50) BUSTOS RAMIREZ, Juan. Bases cńticas de un nuevo derecho pe-nal. p. 143.

CONCEITO, OBJĘTO E METODO 61

metade desse periodo nao houve qualquer modificacao no cotidia-no do ser humano comum, o esforęo dos sabios traduziu-se emgrandes transformac.5es para toda a humanidade, no periodo pos-terior. Nesta ultima metade, em que acentuadamente se cultuou aciencia, as transforma9oes foram mais revolucionarias que cincomil anos de cultura pre-cienttfica. Este processo, acelerado peloideał da Ilustracao, colocou os cidadaos no centro do sistema, fa-zendo com que os processos investigatórios abarcassem todas aspessoas que vivem em comunidade. A ciencia trata em primeirolugar de conhecimentos, que sao de determinado tipo, procurandoleis gerais que liguem certo numero de fatos particulares. Na rea-lidade, a ciencia nao passa de urna forma de procurar o conheci-mento; e, em outras palavras, um metodo de busca cientifica, daipor que muitos chegam a afirmar que os conceitos de ciencia emetodo51 sao empregados como sinónimos. Assim, o que mais in-teressa nessa forma de conhecimento e o dominio da natureza e darealidade, o que se faz por meio de urna tecnica, cuja importanciapratica sera abordada.

"O metodo cientffico, embora nas formas mais perfeitas pos-sa parecer complicado, e, em essencia, notavelmente simples.Consiste na observacao de fatos que permitam a descoberta de leisgerais que os goyernem."52 E, em outras palavras, um instrumentocapaz de levar seu espirito a conquista da verdade.53 Na origem,especialmente na area das ciencias da natureza (exatas ou duras),os primeiros cientistas partiam da obseryaęao de fatos particulareschegando ao estabelecimento de leis quantitativas exatas, e, pormeio dessas, fatos particulares futuros poderiam ser preditos. Des-cartes chegou a mencionar quatro preceitos que deveriam neces-sariamente ser observados para chegar-se ao conhecimento cientf-

(51) ELBERT, Carlos Alberto. Manual..., cit., p. 30.(52) RUSSEL, Bertrand. A perspectiva cientifica. p. 13.<53) DESCARTES, Renę. Discurso do metodo, p. 3 J,

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fico e, pois, a verdade: "o primeiro consistia em nunca accitar, porverdadeira, coisanenhuma que nao conhecesse como evidcnte; istoe, devia evitar cuidadosamente a precipitaęao e a prevencao; e nadaincluir em meus juizos que nao se apresentasse tao clara e tao dis-tintamente ao meu espirito que nao tivesse nenhuma ocasiao de opor em duvida. O segundo - dividir cada urna das dificuldades queexaminasse em tantas parcelas quantas pudessem ser e fossem exi-gidas para melhor compreende-las. O terceiro - conduzir por or-dem os meus pensamentos, comecando pelos objetos mais simplese mais faceis de serem conhecidos, para subir, poucoiipouco, comopor degraus, ate o conhecimento dos mais compostos, e supondomesmo certa ordem entre os que nao precedem naturalmente unsaos outros. E o ultimo - fazer sempre enumeracoes tao completase revisoes tao gerais, que ficasse certo de nada omitir".54 As regraselencadas por Descartes sao a da evidencia; a da divisao ou anali-se; a da ordem ou deducao; a da enumerac. ao. Desse procedimentoregrado chega-se a conclusao de que urna opiniao sera considera-da cientifica quando ha urna razao para acreditarmos que seja ver-dadeira; e uma opiniao, ao contrario, nao o e quando emitida pormotivo diverso que o de sua provavel verdade.55

A semelhanca do que ocorre com as demais ciencias, particu-larmente as ciencias humanas, a investigac.ao criminológica naoobedece a um unico principio nem se atem a metodos que possamser enclausurados em uma unica perspectiva. A investigacao podeser definida como o uso de processos padronizados e sistematicosna procura do conhecimento.56 O destaque dessa forma especificae metódica de conhecimento cientlfico esta exatamente nos elemen-tospadronizaędo e sistematizagdo. No entanto, mesmo estando esteconhecimento em consonancia com determinados padroes siste-

<54> DESCARTES, Renę. Discurso do metodo, p. 85-86.(55) RUSSEL, Bertrand. Op. cit. p. 15.(56) MANNHEIM, Herman. Criminologia comparada. vol. I, p. 117.

CONCEITO, OBJĘTO E METODO !> 1

maticos a serem seguidos, nao se pode deixar de mencionai sn cmeles muito pouco obj etivaveis na esfera das ciencias hu m a 11; i s. N a sciencias duras - de onde as ciencias do homem buscaram sen padrao, por analogia - a ideia de ciencia imparcial, pura, objęli v; i ,ainda pode ser sustentavel. Nao o e, no entanto, nas ciencias d « «homem, salvo sob o enfoque positivista que aqui nao se adota. N;Jrealidade, nas ciencias humanas - e, em particular, na criminologia - tem o saber um valor intimamente ligado ao jogo do poder.As relacoes de forca que se dao entre esses elementos se condicio-nam mutuamente e contribuem para a estrategia do conhecimen-to. Assim, tal conhecimento e uma forma de vida, uma concepgaodo mundo, o que aponta para umaprdxis.51 Nao obstante reconhe-cer tal parcela de subjetividade nesse conhecimento, nao se deve,só por isso, descurar a visao segundo a qual a possibilidade de seatingir uma "verdade cientifica" só sera posswel com alguns pro-cedimentos e cuidados nessa investigacao.

Na criminologia, ao contrario do que acontece com o direito,ter-se-ao a interdisciplinaridade e a visao indutiva da realidade. Aanalise, a observacao e a induęao substituiram a especulagao e osilogismo, distanciando-se, pois, no metodo abstrato, formal ededutivo dos pensadores iluministas, chamados de classicos. Talmetodo - observe-se - ainda hoje e utilizado pelos operadores dodireito. Assim, pode-se afirmar que a abordagem criminológica eempirica, o que significa dizer que seu objęto (delito, delinquente,vitima e controle social) se insere no mundo do real, do verifica-vel, do mensuravel, e nao no mundo axiológico (como o saber nor-mativo). Yale dizer, ela se baseia mais em fatos que em opinióes,mais na observacao que nos discursos ou silogismos. Como os fa-tos humanos encontram uma riqueza incomensuravel, muitas ve-/es nos limites do imperscrutavel, demanda-se alargar a esfera doconhecimento, fazendo com que muitas pesquisas sejam feitas - i i *

( V / ) Nesse sentido o pensamento de Lola Aniyar de Castro, < 'nm/n, •/. -gia..., cit., p. 9, e Carlos Alberto Elbert, Manual..., c i i . , p • l

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eąuipes, com visoes diferenciadas da realidade, em face das for-magoes distintas e que possam contemplar diferentes perspectivasinterpretativas. Dai a necessidade da interdisciplinaridade, em quese acomodam sob a mesma investigacao psiąuiatras, psicólogos,ass;stentes sociais, estatisticos, juristas etc. Iiwestigando em faixaprópria, as ciencias que subsidiam a criminologia inter-relacionam-se, interpenetram-se, interagem-se e completam-se, e e desse ricocontexto que a criminologia sorvera suas conclusSes.58 De outraparte, a explicagao do fenomeno criminal nao pode prescindir dedados, de informagoes, sem as quais nao se pode inferir nada, econcluir sobre resultados que possam vir a ser generalizados.

Toda pesquisa contempla algumas dificuldades inerentes aoseu objęto. O acesso ao materiał de investigacao pode ser dificilemmuitas disciplinas, mas e particularmente complexo quando selida com questoes que envolvem a criminalidade. Ha o medo daestigmatizacao dos condenados; os envolvidos com f atos delituososnao se sentem a vontade para dar entrevistas para pesquisadoresque nao sao seus conhecidos; muitos pais ou professores sao refra-tarios a perguntas sobre delinqiiencia de seus filhos ou alunos; au-toridades policiais e da administracao prisional tendem a nao for-necer informacoes sobre fatos considerados "sigilosos" etc. Mui-tas destas situaęoes concorrem quando se investigam areas sensi-veis da criminalidade. Grandę parte dessas experiencias, por exem-plo, foi vivenciada pela excelente pesquisa levada a cabo por KikoGoifman, junto a penitenciaria de Campinas. Tendo trabalhado naesfera antropológica com a imagem do preso, o autor narra quaoarredio era o interno a qualquer tipo de abordagem que priyilegiassea imagem como forma de registro. "Yarios internos, envolvidosem problemas com outras quadrilhas fora dos muros da cadeia, naoconcordaram em mostrar suas imagens. Outros tinham parentes ou

(58) Quanto a relevancia dos trabalhos em eąuipe, veja-se: ALBERGA-RIA, Jason. Op. cit. p. 39; FERNANDES, Newton; FERNANDES,Valter.Op.cit. p. 31.

CONCEITO, OBJĘTO E METODO 65

amigos que nao sabiam que estavam presos e assim preferiram naoaparecer no video. Alguns ainda temiam um reconhecimento fu-turo, optando por esconder sua situagao para nao sofrerem com orótulo estigmatizante de ex-presos."59 Por outro lado, mesmo aque-les que se negaram a aparecer no video com depoimentos acaba-ram solicitando que fossem filmados trabalhando nas oficinas, la-vanderias etc.60 De outra parte, nao raro, a própria diregao do pre-sidio cria algumas dificuldades, colocando empecilhos a livre cir-culacao dos pesquisadores, receosa de que estes venham a denun-ciar eventuais faltas de carcereiro, atos de corrupgao de guardas depresidio etc. Ademais, ha certos interesses na limitacao da infor-magao por parte das pessoas que Udam com o sistema prisional.Isso ocorreu no Brasil, logo no inicio da divulgacao de fatos acercada epidemia de Aids realizadapor varios órgaos de imprensa. Muitosgovernos estaduais sonegaram informagoes sobre o preocupanteavango da epidemia, quer para ocultar os alarmantes indices dadoenca, quer por nao ter recursos suficientes para urna efetiva po-litica de saiide dentro do sistema prisional.

A segunda dificuldade na investigaęao metodológica resultada existencia de ideias preconcebidas na pessoa do investigador.Urna pessoa que, conscientemente ou nao, e possuidora de deter-minados valores esta, provavelmente, inclinada a tomar urna certadireęao e isto, como premissa do trabalho, pode determinar umresultado que nao expresse a realidade. Em minha dissertacao demestrado cheguei a incorrer em urna dessas falhas. Enfatico de-fensor da prestacao de seryigos a comunidade, como alternativa apena privativa de liberdade, cometi a impropriedade de dizer que aaplicaęao daquela pena, pelos dados por mim coletados sobre rein-c-idencia, quando cotejados com os indices gerais de reincidenciano Brasil, diminuia a criminalidade secundaria, algo que deman-

' '" (5OIFMAN, Kiko. Yaletes em slow motion. p. 98.""" Idem, ibidem, p. 53.

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daria outros dados nao colhidos empiricamente na pesąuisa, sóvisualizaveis por meio de tecnicas de grupo de controle.61 Tambemse traduz em grandę dificuldade o filtro que se deve ter sobre asopcoes ideológicas da pesąuisa. Isto e, deve o homem assumir anatureza de membro social e, portanto, participante ativo das deci-s5es sociais vinculadas ao exercicio da cidadania. Como ja se disseanteriormente, as ciencias humanas, por sua própria natureza, naopodem ter um carater neutro como os autores positMstas afirma-vam. De outra parte, nao se pode deixar que as concepcoes pes-soais e ideológicas do pesquisador sirvam como um mero instru-mento de demonstracao de um fato inexistente, por razoes meno-res, em face da ideia de ciencia.

Outros problemas decorrem da necessidade de resultados pra-ticos imediatos, seja em funcao dos interesses da agencia financia-dora, seja pelos prazos (nao raro) exiguos para apresentaęao dosresultados. Muitas vezes, a sociologia, como investigacao "pura",cede espaco a criminologia, como investigacao "aplicada". E que,muitas vezes, a investigacao criminológica esta associada a umapronta intervencao na realidade, que Ihe sucedera.

Dificuldade muito grandę a ser enfrentada e a de se ter umperfeito trabalho organizado em torno de uma equipe. Embora sejanecessaria a utilizacao de grupos interdisciplinares, com diferen-tes saberes, aparticipacao de individuos possuidores de diferentescapacidades ou f ormacóes cientfficas, com diversos interesses, porsi só ja traduz uma grandę dificuldade nas abordagens criminoló-gicas. Os Gluecks, no classico trabalho Unravelling JuvenileDelinąuency, leyaram a cabo uma pesquisa com um enorme grupode apoio, com diferentes investigadores sociais, contemplandopsicólogos, psiquiatras, especialistas em teste de Rorschach, an-

(61) SHECAIRA, Sergio Salomao. Prestaęao de servięos a comunidade:alternativa a pena privativa de liberdade. p. 71 e ss; sobre as tecnicasde grupo de controle veja-se sua explica9ao neste mesmo capitulo.

(ropólogos e peritos de estatistica, nao tendo, porem, nenhum so-dólogo, omissaoja varias vezes criticada.62

Dentre os metodos empiricos consagrados, e necessario umscntido de replica para dar ao trabalho a possibilidade de cotejo.Duas sao as formas basicas: estudos diacrónico e sincronico. Peloprimeiro, o projeto tende a investigar ate que ponto tal pesquisatlilere, no seu escopo, de elementos, tecnicas e conclusoes das dossens predecessores. E muito pouco provavel que, dentro de umaclcterminada investigaęao de cunho histórico, e dentro de um con-texto evolutivo, tenham-se rompimentos epistemológicos signifi-cativos. Isto e, se, em determinado pais, sempre houve violencial^olicial, os estudos que apontam questoes como a tortura dentrode distritos policiais nao podem ser feitos sem que haja umacomparacao com estudos equivalentes anteriores. De outra parte,tambem nao se deve prescindir de estudos sincrónicos, para que osresultados sejam comparados com estudos interculturais, colhidosem outros paises ou em outras regiSes do mesmo pais. Tais abor-dagens dao ensejo a uma possivel "sintonia fina", nos dados colhi-dos, por meio da chamada replica.63 Desde 1989 o Unicri (UnitedNations International Crime and Justice Research Institute) reali-za pesquisas de yitimizacao que envolvem mais de cinquenta pai-ses em todo o mundo. No Brasil, tais pesquisas sao realizadas porintermedio do Ilanud - Instituto Latino Americano das NacóesUnidas para a prevencao do delito e tratamento do delinqiiente - epermitem um cotejo com outros paises, essencial para o conheci-mento da nossa realidade criminal. Apenas a titulo de mencao, pode-se lembrar a pesquisa feita em 1992, mostrando os dados compa-rativos entre crimes praticados em diversos paises europeus e ame-ricanos. Dessa simples constatacao empirica varias conclusoes

("2) MANNHEIM, Hermann. Criminologia..., cit., vol. I, p. 145."'•'' Os cotejos sincrónicos e diacrónicos recebem, no direito, os nonies

dedireito comparado e historia, respectivamente, e sao muito cominisnas teses doutorais mais academicas.

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podem ser tiradas: a relacao existente entre a pobreza e a crimina-lidade; a maior utilizacao das agencias de controle social formal,sempre que o pais tenha sólidas instituicoes policiais com credibi-lidade; indices de comunicacao de delitos sexuais mais ou menoshomogeneos em diversos paises do mundo, mesmo naąueles maisdesenvolvidos, o que mostra que alguns crimes nao tem urna liga-cao direta com problemas economicos do pais etc.64 De outra par-te, tambem no ambito da criminalidade, e necessario forjar uminstrumento de trabalho para avaliar o fenómeno da violencia dasgrandes cidades, bem como oferecer subsidios para elaboracao depoliticas publicas de combate a essa criminalidade. Embora se sai-ba que um indicador jamais representa de forma absoluta a verda-de sobre o fenómeno social que procura medir, pesquisas de crimi-nalidade, como quaisquer indicadores, podem ajudar na reflexaodo estudo em todas as suas dimensoes e nuancas. Pode servir deguia para politicas criminais na area da seguranca publica, bastan-do que dęła nao se exija mais do que pode fornecer.65

Dentre as muitas formas metodológicas existentes para per-cepcao da realidade, merece destaque a utilizacao dos chamadosinąueritos sociais (social surveys). "Trata-se de inqueritos que uti-lizam um interrogatório direto feito, normalmente por urna equi-pe, a um numero considerado suficiente de pessoas, sobre deter-minados itens considerados criminologicamente relevantes, sen-do os resultados finais apresentados em forma de diagrama."66 Apartir dos estudos teóricos da Universidade de Chicago, que de-ram ensejo a teoria da ecologia criminal, tais inqueritos sociaispopularizaram-se de tal forma que nao ha, hoje, qualquer interven-9 ao criminológica, cientificamente embasada, sem que se tenha a

(64) KAHN, Tulio. Pesąuisas..., cit, p. 10-13.(65) KAHN, Tulio. Metodologia para a construcao de um indice de cri-

minalidade. Revista do Ilatiud, n. 2, p. 10.(66) DIAS, Jorge de Figueircdo; ANDRADE, Manuel da Costa. Crimi-

nologia: o homem delincjiiente e a sociedade criminógena. p. 119.

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utilizacao de tais formas empiricas de constataęao da realidade. Eque nao e possivel combater certo tipo de crime sem que se tenhaum mapeamento da criminalidade, dias e horas em que o fato ecometido, para que um projeto pró-ativo de prevcnęao nao venha adesperdi9ar recursos publicos que poderiam ser alocados em areasmais necessitadas. Por isso, sempre que se tem a necessidade deestabelecer-se urna estrategia, esta e feita segundo parametros de-terminados nesses tipos de inqueritos de larga abrangencia.

Em muitos casos, no entanto, os inqueritos sociais nao saosuficientes, enquanto tecnica investigativa, para explicacao de certasrealidades. Sempre que houver necessidade de um estudo descriti-vo e analitico de experiencias delinqiientes, ao longo de certo tem-po, faz-se um Estudo Biografico de Casos IndMduais (case studies).A analise macrocriminal, em muitas ocasiSes, nao prescindira daperspectiva microcriminal. Sao esferas que se articulam e que tra-duzem os porques (pessoais) do cometimento do delito associadosaos porques sociais. O classico estudo feito em 1930 por CliffordR. Shaw, intitulado The Jack-Roller. a delinquent boy's own story(Chicago, The University of Chicago Press), e um perfeito exem-plo de um estudo individual, de enorme folego, da vida de um cri-minoso, chamado apenas de Stanley (nome fictfcio), mostrandotodas as preocupaęoes, ansiedades e yicissitudes, tudo dentro daperspectiva do próprio criminoso. O estudo permite, por exemplo,a exata visualizacao da seqiiencia de eventos, a partir da descrięaoda vida de Stanley, desde os setę anos, quando abandona a escola epassa a furtar frutas e doces em feiras e supermercados. O própriolivro mostra como o metodo permite decifrar caminhos para ou-tros criminosos assemelhados.67

Como ja foi mencionado, urna das muitas dificuldades exis-tentes relativamente a pesquisa criminológica, especialmente quan-do trata com questoes relacionadas ao encarceramento de pessoas,

(W) SHAW, Clifford R. Op. cit. p. 17-18.

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e a obtencao de dados confiaveis para pessoas que nao tem um con-tato com o cotidiano da prisao. Por isso, muitas vezes, o pesquisa-dor tem que se integrar ao locus onde serao obtidos os dados a se-rem coletados. Tal mergulho ativo na vida desse grupo e denomi-nado observaęao participante. Sao inumeros os exemplos dessapostura metodológica. Tom Brown, para melhor estudar as condi-c5es de existencia dos presos, foi viver um certo periodo de tempona prisao de Auburn, registrando suas impressoes no livro Withinpńson walls (1914).68 Entre nos, o sociólogo Guaracy Mingardifez concurso publico para investigador de policia, com o propósitode viver a realidade de urn distrito policial de Sao Paulo e narrarcomo a instituicao pagava os informantes policiais.69

Outro mecanismo metodológico utilizado comumente e a tec-nica de grupos de controle. Trata-se de estabelecer comparac5esestatisticas entre um grupo de delinąiientes (grupo experimental)e um grupo de nao-delinquentes (grupo de controle), com vista aoestabelecimento de conclusoes sobre a relevancia de determinadavariavel quanto ao comportamento do grupo delinqiiente. Tal tec-nica obedece a urna ideia de conseguir dois grupos assemelhadosreferentes a uma serie de variaveis (sexo, idade, nivel cultural etc.),exceto em relacao a uma variavel especifica que se quer estudar. Aobra de Sheldon e Eleanor Glueck, Unravelingjuvenile delinąuency(1950), cotejou dois grupos de quinhentos jovens, por mais decinco anos, para tentar demonstrar as conseqiiencias que um tra-tamento institucional produz aqueles que sao submetidos a umainstituicao fechada em cotejo com aqueles que nao sao submeti-dos a internacao.70

(68)

(69)

(70)

DIAS, Jorge de Figueiredo. Op. cit. p. 121.De gansos, tiras e trutas: cotidiano e reforma na policia civil.Tal tecnica tem clara inspiraęao nos metodos das ciencias biológicas,especialmente ąuando se fazem testes com remedios, dando-se a umgrupo o remedio a ser testado e a outro, placebo, para posterior veri-ficacao dos resultados estatisticos. Sobre a tecnica de grupo de con-

CONCEITO, OBJĘTO E METODO 71

Outros metodos sao utilizados para que se possa aquilatar a,",1 andeza da delinquencia oculta, a chamada cifra negra da crimi-nalidade. Tres sao os normalmente lembrados. O primeiro deles et > da autoconfissao, que consiste em fazer pesquisas anónimas paraconhecer quantas pessoas cometeram certos fatos em determina-do periodo de tempo. O segundo meio de obtencao de dados da cifranegra e o metodo da vitimacdo. Sao realizadas pesquisas sobre umamostra representativa da populacao, a firn de determinar quantaspessoas foram yitimas de certos delitos em certo periodo de tem-po. Por firn, ha o metodo de andlise das maneiras deprosseguir ouabandonar que tem os tńbunais e a policia. Sao feitos esquemasgraficos das entradas e saidas de delitos e delinqiientes no sistemade controle formal, em cada uma das etapas da detencao e do pro-cesso.71 Nem e necessario dizer que todos esses metodos investi-gatórios apresentam certos problemas, razao pela qual só seraoobtidos dados mais seguros com a combinacao desses mecanismosevitando-se falhas nos resultados das pesquisas.

(71)

trole, veja-se: DIAS, Jorge de Figueiredo. Op. cit. p. 122-123; fMANNHEIM, Hermann. Op. cit. vol. I, p. 144-145.ANIYAR DE CASTRO, Lola. Criminologia..., cit., p. 70-72.

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NASCIMENTO DA CRIMINOLOGIA

SUMARIO: 2. l Aportes iniciais - 2.2 Estudo dos precursores -2.3 O Iluminismo e as primeiras escolas sociológicas - 2.4 Con-sideraęSes criticas ąuanto aos marcos cientificos da criminolo-gia - 2.5 Notas conclusivas.

2.1 Aportes iniciais

Os diversos autores que estudam a criminologia nao sao una-nimes ao concluirem em qual momento histórico teria iniciado oestudo cientffico da criminologia. Os criterios sao muitos e os pontosde referenda sao distintos. Se essa data fosse certa, seguramenteter-se-ia uma indicaęao mais precisa em urna obra ou em um pen-samento determinado. No entanto, muitos sao os autores que, dealguma forma, tangenciaram a ąuestao sem se dar conta de quefaziam de seu objęto de estudo aąuilo que, hoje, convencionamoschamar criminologia. Lombroso, por exemplo, uma das mais lem-bradas referencias para se indicar o termo inicial do estudo crhni-nológico, intitulava-se da escola antropológica italiana e nao se di-zia criminólogo. Outros, por sua vez, usaram a palavra criminologia, sem adotar um metodo que pudesse ser identificado com l ; i lciencia. Assim, varios autores (ou mesmo obras) que t rah; i l l i ; i i .micom a criminologia poderiam marcar os paradigmas t | iu- u l i - m i i icariam o ponto inicial de seu estudo histórico-cientffico No < ntanto, see verdade queenquanto c ienc iaacr i i i i in i ) l ( i r i , i icm u i n . i

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74 CRIMINOLOGIA

curta historia, nao e menos yerdade que tenha um longo passado -ou pre-história -, ou ainda urna larga etapa pre-cientifica.

Para gizar esse momento pre-cientifico, e necessario identifi-car o ponto em que a criminologia passa a ser conhecida com certaautonomia cientifica. Para a maioria dos autores, Cesare Lombrosofoi o "fundador da criminologia moderna", com a edi9ao do Ho-rnem delinąuente, em 1876. "Em sentido estrito, a criminologia eurna disciplina 'cientifica', de base empfrica, que surge ąuando adenominada escola positiva italiana (scuola positiva), e dizer, opositMsmo criminológico, cujos representantes mais conhecidosforam Lombroso, Garofalo e Ferri, generalizou o metodo de in-vestigacao empirico-indutiYo".1 Outros autores, emoposięao aessacomiccao, afirmam que Lombroso, embora tenha sido o respon-savel por um importante impulso nos estudos cientfficos do crime,do criminoso, do controle social do delito, e da própria vitima, naofoi o primeiro a fazer tal estudo de forma sistematica. Destacam,por exemplo, escolas e autores que j a estudavam o f enómeno, comoo antropólogo Topinard, que em 1879, pela primeira vez, empre-gou a palavra "criminologia", e o próprio Garofalo, seguidor deLombroso, que em 1885 utilizou o termo como titulo de urna obracientifica. Dentro desse contexto, diminui, em parte, o protagonis-mo precursor de Lombroso.2 Ha autores, ainda, que nao deixam dedestacar a existencia de urna criminologia da escola classica, emgrandę parte devida a Carrara e seus seguidores, o que faria retro-ceder ao marco inicial dessa linha de pensamento, com a edicao doPrograma de direito cńminal, em 1859. Por outro lado, nao se podedeixar de lembrar que o pensamento dogmatico da escola classicasó se configuraria no inicio da segunda metade do seculo XIX,porquanto precedido pelo pensamento filosófico precursor de

(1) GARCIA-PABLOS DE MOLINA, Antonio; GOMES, Luiz Flavio.Op. cit. p. 131.

(2) Nesse sentido, vide a obra de Israel Drapkin Senderey, Manual de cri-minologia. p. 9.

NASCIMENTO DA CRIMINOLOGIA 73

Cesare Bonesana, Marques de Beccaria, ao publicar scu Dos dclitos e daspenas, em 1764. Sendo assim e considerando que m u i t ; i \das concepęSes do Direito Penal liberał ja haviam sido lancadaspor Beccaria, nao se poderia deixar de reconhecer nele o prinici n >pensador da chamada criminologia,3 nao obstante haja quem possą ver em Quetelet, principal autor da escola cartografica, que cni1835 publica seu Ensaio defisica social, o verdadeiro marco dacriminologia, dentro de urna perspectiva nao biológica.

Deixando de lado a anedótica (em grandę medida) discussaoque poderia advir da briga para se ter um "pai" da ciencia criminoló-gica, poder-se-ia dizer, em duas grandes linhas de pensamento, quea criminologia nasce com o positMsmo seja sociológico ou biológi-co; ou, ainda, que a criminologia nasce com a escola classica.4

Sabemos que a Ilustraęao foi um fabuloso movimento cultu-ral do seculo XVIII, com epicentro na Franga, que produziu mu-dancas politicas, sociais e culturais. Talvez, no entanto, uma dasmais radicais modificacoes tenha se dado no piano das ideias, peloculto arazao. As acentuadas modificacoes surgidas nesse periodo,que contaram com grandes movimentos de massas e com a revolu-ęao industrial, requisitaram um certo movimento interpretativo eexplicativo que pudesse dar respostas mais precisas as indagaęoesdaquele momento. Tais respostas só foram possiveis com o apare-cimento do pensamento racional que pretendia fazer encadear, lo-gicamente, modelos explicativos para as questoes sociais. Dai osurgimento daideiade "ciencias sociais", comesteio analógico nosmesmos paradigmas das ciencias naturais. Se os modelos teóricosda investigacao experimental eram suficientes para as cienciasnaturais, nao haveriam de se-lo, tambem, para as ciencias sociais'/Ou ainda, sob outra perspectiva, o culto a razao, modeladoi d < >

(3) Nesse sentido: DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRAOK M.murl < l . iCosta. Op. cit. p. 5-10.

(4) ZAFFARONI, Eugenio Rauł. Criminologia..., cii.. |>. l ( M l .

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76 CRIMINOLOGIA NASCIMENTO DA CRIMINOLOGIA 77

pensamento biológico cientifico, nao poderia ser suficiente paraexplicaęoes filosóficas e sociais dos fenómenos decorrentes daąue-las profundas transformaęoes? Para as duas perguntas surgiram duasrespostas distintas: a positivista e a classica. Ambas, no entanto,tem algo em comum. Sao respostas que ancoram seu pensamentona grandę transformacao iluminista.5 A escola classica enraiza suasideias exclusivamente na razao iluminista e a escola positivista, naesacerbacao da razao confirmada por meio da experimenta5ao.Classicos focaram seus olhares no fenomeno e encontraram o cri-me; positivistas fmcaram suas reflexoes nos autores desse fenome-no, encontrando o criminoso. Classicos e positivistas, na realida-de, sao distintas faces da moeda iluminista, tese e antitese que naopodem superar essa relaęao dialetica de oposicao senao ąuandoproduzem a sintese; e esta e muito diferente dos fatores que Ihederam origem. A rigor, a busca de um metodo criminológico - ouas discussóes acerca deste -, de suas finalidades e funcóes, e quefez dos estudos, que envolviam a criminalidade, nascer a crimino-logia. Esta nao e obra de um livro, nao e produto de urna "escola"nem tampouco resultado de um pensamento. E, em verdade, a sin-tese de um seculo que fez acentuar o fenomeno da criminalidade epermitiu a cria9ao de diferentes modelos explicativos dęła. Se forverdade que Lombroso e seguidores tiveram decisiva importanciano surgimento da criminologia medianie o estudo do homem cri-minoso, tambem nao e menos yerdade que Carrara e os pensado-res que convergiam com seu pensamento (embora nao agissemcomo urna "escola") tiveram relevancia nos estudos dogmaticosque permitiram surgir urna ciencia criminal. Ambas as categorias,embora tenham na origem um condicionamento comum - e, por-tanto, possam ser estudadas como urna mcsma disciplina -, hojeatingem diversidades que as identificam enquanto individualida-des. E possfyel ate que os dois termos da dicotomia (de um lado,crime e criminoso - de outro lado, classicos e positMstas) se

(5) ELBERT, Carlos Alberto. Manuał..., cit., p. 28-29.

condicionem reciprocamente, no sentido de se reclamarem, conti-nuamente, um ao outro, por contraste; mas adąuiriram autonomiaem suas construęoes categóricas, o que nos permite individualiza-los, para distingui-los. Hoje, como ja o fizemos em capitulo ante-rior, claramente identificamos o direito pehal e a criminologia. Emseu tempo, no entanto, tal distinęao nao era tao clara.

2.2 Estudo dos precursores

A Antigiiidade tem alguns poucos exemplos de questóes quesuscitaram discussóes sobre os crimes, criminosos e suas corres-pondentes penas. O Código de Hammurabi, por exemplo, dispu-nha que pobres e ricos fossem julgados de modos distintos, corres-pondendo aos ultimos a maior severidade, em razao das maioresoportunidades que tiveram de aceder a melhores bens materiais eculturais. No entanto, e na Idade Media e no inicio da Idade Mo-derna que vamos encontrar as mais diferentes e curiosas manifes-tacoes acerca da criminalidade. Ja no Código das Setę Partidas haumadescrięao interessante dos tipos de assassinos,6tipos esses quemereceriam classificaęoes e estudos posteriores da parte de variosautores. Alguns desenvolveram a discussao da chamada crimino-genese: o exame dos fatores que podiam influenciar a condutadelinqiiencial; as forcas fisicas e cósmicas foram estudadas, mui-tas vezes apresentando urna formulacao aparentemente cientifica.Assim, Kropotkin,baseando-seemdadosclimaticos, chegouacriarum calculo numerico para os homicidios: H= T xl + Ux2(Heonumer o de homicidios; Te a temperatura media e U e a unidademedia). Muitas ciencias ocultas (oupseudociencias) surgiramnesseperiodo. A oftalmoscopia, por exemplo, pretendia estudar o cara-ter do homem pela obseryagao dos olhos, assim como a metopos-copia o fazia por meio da observaęao das rugas da fronte e a ąuiro-mancia pretendia prever o futuro, com base no passado, pela anii-lise das linhas das maos.

(6) SENDEREY, Israel Drapkin. Op. cit. p. 12.

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78 CRIMINOLOGIA

Todavia, a mais importante de todas essas pseudociencias e afisionomia. Os fisionomistas preocupavam-se com o estudo daaparencia externa do individuo, ressaltando arelaęao existente entreo corpo e o psiąuico. Para eles, dos dados fisionómicos de urnapessoa poder-se-iam deduzir seus caracteres psiąuicos, relacionan-do-se desse modo os aspectos fisico e morał do ser humano.7 Umdos mais importantes fisionomistas e Giovanni Battista Delia Por-ta Vico Eąuense, mais conhecido como Delia Porta. Nascido emNapoles em 1535, falecido na mesma cidade em 1615, foi estudio-so de filosofia, aląuimia e magia natural. Foi perseguido pelaInąuisięao, exatamente por criar urna sociedade denominadaAccademia dei Segreti, dedicada aos estudos da natureza humana.Em 1586publicou, em sua cidade natal, De humanaphysiognomia,obra em que sustentava a perfeita correspondencia entre os aspec-tos interiores e a forma externa da natureza humana.8 Ao lado dele,podemos tambem destacar Johan Caspar Lavater, teólogo suico,nascido em 1741 e falecido em 1801, que publicou em Leipzig, em1776, L'art d'etudier la physionomie. Lavater estudava com pro-fundidade a craniometria9 e defendia o "julgamento pelas aparen-cias". Acreditava que o carater e o temperamento do homem pode-riam ser lidos pelos contornos da face humana; defendeu que seatentasse para a riqueza facial mediante suas artisticas representa-9oes. Para tanto, coletou centenas de ilustra9oes humanas com asquais exemplificava suas ideias.10 Para ele, tanto abeleza quanto afeiura eram reflexos da bondade ou da maldade da pessoa. Hornemdelinqiiente tem maldade natural, tem o nariz obliquo, tem barba

(7) DITULLIO,Benigno. Trattatodeantopologiacńminale: studioclinicoe medico legale ad uso dei medici, dei giuristi e degli studenti. p. 43.

(8) Dispomvel em: <http://www.galileo.imss.firenze.it>. Acesso em: l.°fev. 2002.

(9) Estudo externo das aparencias cranianas.(10) Disponivel em: <http://www.newcastle.edu.au>. Acesso em: 31 jan.

2002.

NASCIMENTO DA CRIMINOLOGIA / ( '

naopontiaguda, apalavranegligente, olhos grandes e f ero/es, M M I Iprę iracundos, brilhantes, as palpebras abertas, circulos de um vnmelho sombrio a rodear a pupila, urna lagrima colocada nos angu-los inferiores etc.11 Outro fisionomista importante foi o holandcsPetrus Camper (1722-1789). Camper mostrava a escala de perfei-cao dos seres, partindo dos macacos, no pe da escala, ate chegar aApolo, no topo da escala (passando pelos homens comuns) e asdiferenęas organicas dos seres humanos.12 Tais autores autoriza-ram o surgimento de consequencias na esfera juridica de medidasevidentemente discriminadoras. Um juiz napolitano, conhecidocomo Marques de Moscardi, decidia em ultima instancia os pro-cessos que ate ele chegavam. Criou o conhecido Edito de Yalerioque afirmava: ąuando se tem duvida entre dois presumidos culpa-dos, condena-se sempre o maisfeio. A pena que sempre aplicavaera a de morte ou a perpetua, terminando sempre suas sentenęascom o bordao: "ouvidas acusa9§o e defesa e examinadas a cabecae a face do acusado, condeno-o".13

A fisionomia deu origem a cranioscopia, desenvolvida porFranz Joseph Gali (1758-1828), por volta de 1800. Tal metodopermitia, mediante medięoes externas da cabeęa, adivinhar a per-sonalidade e o desenvolvimento das faculdades mentais e morais,com base na forma externa do cranio. Posteriormente, tais estudosevoluiram para urna analise do interior da mente, o que deu origema frenologia (phrenos - mente), precursora da moderna neurofi-siologia e da neuropsiquiatria. Desenvolvidos precipuamente pelocitado medico alemao, esses metodos permitiram localizar cada umdos instintos e inclinacSes humanas em urna parte determinada do

(11) GARCIA-PABLOS DE MOLINA, Antonio; GOMES, Luiz Fkivio.Op. cit. p. 137.

(12) Disponivel em: <http://www.pages.britishlibrary.net>. Acesso cm:l.°fev. 2002.

(13) SENDEREY, Israeł Drapkin. Op. cit. p. 13; GARCIA I ' A H I < >S l » l ,MOLINA, Antonio; GOMES, Luiz Flavio. Op. c i i . p. l «..

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cerebro, cujo desenvolvimento poderia ser apreciado segundo aforma do cranio. Cada instinto perverso deveria ter sua própriaorigem que o provocava e o identificava. Gali ofendeu lideres reli-giosos e cientistas. A Igreja considerou sua teoria contraria a reli-giao (era um anatema afirmar que a mente, criada por Deus, tinhaum local fisico). Os cientistas, por seu turno, acusaram-no de naofornecer provas concretas sobre sua teoria, afirmando haver urnaespecie de charlatanismo. Gali deixou Yiena, onde ensinava, indo,sucessivamente, para a Franęa e a Inglaterra, onde em defmitiyo seestabeleceu; suas ideias, ali, passaram a ser mais bem aceitas. Eque as teorias de Gali permitiram aos governantes justificar a "in-ferioridade" de servos coloniais, incluindo os irlandeses. Em suaobra, o crime e visto como resultado de um desenvolvimento par-ciał e nao compensado do cerebro, que ocasiona urna hiperfuncaode determinado sentimento. Assim, agressividade, instinto homi-cida, sentido patrimonial e sentido morał estavam localizados emareas cerebrais, o que permitiria sua identifica9ao externa. Suaprincipal obra, intitulada Sur lesfonctions du cervau, foi publica-da entre os anos de 1823 e 1825, em seis volumes.14 Outro impor-tante frenologista foi o tambem alemao Johann Caspar Spurzheim(1776-1832). Discipulo de Gali, deixou sua terra natal indo paraYiena onde se transformou em seu colaborador nas pesquisasneuroanatómicas. Em 1815, ja vivendo na Inglaterra, publicou seuThe physiognomical system no qual modificou um pouco as ideiasde seu mestre, chegando a fazer urna carta cranioscópica, imitan-do as geograficas, em que cada um dos órgaos cerebrais tinha seuslimites precisos. Seus opositores chegaram a ironiza-lo, afirman-do que tais precisas fronteiras eram tao seguras quanto a de algunspaises.15 Coube ao espanhol Mariano Cubf y Soler (1801-1875),

(14)

(15)

LANGON CUŃARRO, Miguel. Cńminologia: historia y doctrinas.p. 19; disponivel em: <http://www.epub.org.br>. <http://www.artsci.wustl.edu>, acesso em: 1.° fev. 2001.LANGON CUŃARRO, Miguel, Cńminologia..., cit., p. 20; disponi-vel em: <http://www.usyd.edu.au>, acesso em: 1.° fev. 2002.

NASCIMENTO DA CRIMINOLOGIA 8 l

autor de Manual defrenologia e Sistema completo defrenologia(1844), o merito de ser um dos primeiros a afirmar e expor a teoriado criminoso nato, caracterizando-o como um "subtipo humano".Para ele, "ha criaturas humanas que nascem com um desmedidodesenvolvimento da destrutividade, acometMdade ou combatM-dade, aquisitividade (...) cuja organiza9ao constitui relac.ao natu-ralmente ao ladrao, ao violador, ao assassino, ao fraudador e a ou-tros tipos criminais".16

No ambito da psiquiatria, muitos autores poderiam ser cita-dos pela importancia de seus trabalhos. Benedict-Augustin Morel(1809-1873), por exemplo, escreveum7razY<?ćfes degenerescencesphysiąues, intellectuelles et morales de l'espece humaine et descauses quiproduisent ces varietes maladives (l 856), associando acriminalidade adegenera9ao, tema que seriamuito caro aLombrosoe seus seguidores. Antes mesmo dele, o termo degenera9ao era deuso corrente. Morel relaciona a degeneraęao a alteraęao do tipoantropológico ou do biotipo humano com a patologia, particular-mente com a mental. Era, para ele, um desvio doentio do tipo nor-mal da humanidade, hereditariamente transmissivel, com evolu-ęao progressiva no sentido de decadencia. Em principio, as doen-9as mentais provenientes da degenera9ao do sistema nervoso eramconsideradas incuraveis e tinham como causa o paludismo, o al-cool, o ópio, as intoxica9oes alimentares, as doen9as infecciosasou congenitas, a miseria, a imoralidade dos costumes e influenciashereditarias.17 Philippe Pinel (1745-1826), importante psiquiatrafrances, realizou os primeiros diagnósticos clinicos, separando osdelinquentes dos enfermos mentais. Teve a aten9§o despertadaparao problema mental quando um amigo seu ficou louco e morreu daenfermidade. A partir dai desenvolve ideias humanitarias de tratamento das doen9as mentais. Antes dele, o louco, considerado p< >s

(16) SALDAŃA, Quintiliano. Los origenes de la cńminoloynt. \>. '< l < >(17) CARRARA, Sergio. Crime e loucura: oaparecinu-uliul.i U C I H K . .nno

judiciario na passagem do seculo. p. 82-86.

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82 CRIMINOLOGIA NASCIMENTO DA CRIMINOLOGIA 83

suido pelo diabo, era acorrentado; foi, pois, o primeiro a conseguirelevar o deficiente mental da situaęao de parła a categoria de doen-te. Seu Traite medico-philosophiąue sur l'alienation mentole(1801) marca o coroamento do saber psiąuiatrico de seu tempo.18

Jean Etienne Dominiąue Esąuirol, psiąuiatra frances nascido em1772 e morto em 1840, discipulo de Pinel, foi um dos pioneiros nadiferenciaęao entre deficiencia mental e insanidade. Para ele aidiotia nao era urna doenęa, mas sim uma condicao das faculdadesmentais. Esąuirol contribuiu com a psicologia por meio do traba-Iho com internos e loucos em manicómios, chegando a desenca-dear a criacao de uma comissao de investigacao, na Franga, parayerificagao do tratamento dado aos internos. No piano criminoló-gico afirmou, em sua principal obra, Des Maladies Mentales, de1838, que o ato criminal só poderia ser realizado sob estado deli-rante, em que o autor agę por um impulso maąuinal, irresistivel, oque logicamente nao autorizaria uma punigao, posto que o autorseria irresponsavel.19 Muitos outros autores poderiam ser lembra-dos, como Próspero Despine que, em 1869 em Paris, com sua obraPsychologie naturelle, sob a rubrica de "loucura morał" define ainsensibilidade morał pefmanente de certos delinqiientes, anteci-pando-se a Lombroso nos estudos de taras degenerativas de crimi-nosos. A ideia de loucura morał permitia a definicao daqueles que,com bom nivel de inteligencia, tinham graves defeitos constituti-vos de seus principios morais.

Muito ligados a psiquiatria e a frenologia, nesse periodo dahistoria, estavam os antropólogos, aos quais se devem algumasimportantes ideias utilizadas por Lombroso. Lucas (1805-1885),em seu Traitephilosophique etphysiologiąue de l 'heredite naturelle,em 1847, enuncia o conceito de atavismo como o reaparecimento,

(18> Dispomveł em: <http://www.whonamedit.com>. Acesso em: l.° fev.2002.

(19) Disponwel em: <http://www.indiana.edu>; <http://www.drwebsa.com.ar>. Acesso em: 1.° fev. 2002.

em um descendente, de um carater nao presente em seus ascendentesimediatos, mas, sim, em remotos. Lucas faz referenda a uma ten-dencia criminal transmissfvel pela via hereditaria, e presente jadesde o momento do nascimento do individuo.20 Ja Gaspar Yirgflio(1836-1907) que, em 1874, dois anos antes de Lombroso, escre-veu Sulla natura morbosa del delito, referiu-se as caracteristicasanormais dos delinqiientes e estabeleceu, como causa importantedo delito, a anormalidade do seu autor, usando na Italia o conceitode criminoso nato, algo que ja havia sido mencionado na Espanhapor Cubi y Soler.

Nunca e demais notar que, em grandę medida, tais ideias re-ceberam as decisivas contribuięoes de Lamarck e Charles Darwin.O primeiro afirmava que os caracteres adquiridos em funcao danecessidade do meio sao transmitidos aos descendentes, criando,assim, a base para o pensamento evolucionista utilizado por Lom-broso, em sentido inverso. O crime podia ser causado por uma re-gressao - especie de involugao -, ja que os seres evoluiam e eramselecionados pelo meio. E, no entanto, Charles Darwin (1809-1882), em sua obra The origin ofspecies, de 1859, quem propor-ciona uma reyoluęao paradigmatica. Seu livro poe de cabeca parabaixo tudo o que a ciencia biológica havia escrito ate entao. E comele que fica demonstrada a eyolugao das especies, desde as formasviventes mais elementares ate chegarmos aos hominideos. Sua teo-ria implicava afirmar que a humanidade nao resultou de um pro-cesso criador repentino, mas foi decorrencia de uma lenta evolu-gao natural. Para Darwin, os membros que se denominavam "ge-neros identicos" (o homem, por exemplo) sao descendentes linea-res de alguma outra especie, sendo a sele§ao natural o meio demodificacao mais importante, ainda que nao o unico. Tais ideias,no piano das ciencias biológicas, foram trazidas para o pensamen-to social por Herbert Spencer (1820-1903), quando fez uma ana-

(20) GARCIA-PABLOS DE MOLINA, Antonio; GOMES, l .ni/, l ; hiv in .Op. cit. p. 141.

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S4 CRIMINOLOGIA

logia entre o funcionamento de um figado e o da cidade inglesa deManchester. Em seu ultraliberalismo, Spencer chega a afirmar queos pobres, imprudentes, incapazes, debeis, enfim fracos, em geral,seriam superados pelos mais aptos. Para ele, as "raęas inferiores"tinham um grau inferior de sensibilidade e por isso nao era conve-niente instrui-las mais do que em trabalhos manuais, enfim o sufi-ciente para sua sobrevivencia dada a sua inaptidao para o cresci-mento intelectual.21

E tambem deste periodo o discurso disciplinario ingles, devi-do a Howard (1726-1790) e Bentham (1748-1832). Tais autores,diferente da maioria dos citados anteriormente, influenciaram achamada criminologia classica. Em 1777, depois de visitar diver-sas pris5es europeias, John Howard publica seu The state ofprisons.O livro, embora denunciasse o estado miseravel dos condenadosdentro dos presidios, trazia um discurso puritano que propugnava,a semelhanca do que ocorreu com a prisao dos Quackers, a supera-gao do pecado por meio da meditaęao, da introspecęao e do traba-Iho. Esta ideia disciplinaria foi levada adiante, anos mais tarde, porJeremy Bentham. O utilitarismo de Bentham nada mais era do queurna ideologia positMsta com um calculo de rentabilidade, muitoao gosto dos nossos economistas de hoje. Sua maxima era trazer amaior felicidade ao maior numero possivel de pessoas.22 A criaęao

(21) ZAFFARONI, Eugenio Raul. Criminologia..., cit., p. 139; ELBERT,Carlos Alberto. Manual..., cit., p. 43-44.

(22) A convergencia dos pensamentos positivista e utilitarista pode ser ob-servada na própria bandeira brasileira. Adotada pelo Govemo Provi-sório da Republica, foi desenhada por Teixeira Mendes, chefe doApostolado PositMsta no Brasil, ąuatro dias depois da proclamaęaoda Republica. E urna sintese do pensamento de Comte que tinha o amorpor principio, a ordem por base e o progresso por firn. Rui Barbosa,um dos defensores da frase "Ordem e Progresso", assim expressousuas ideias: "O povo brasileiro, como todos os povos ocidentais, acha-se vivamente solicitado por duas necessidades, ambas imperiosas, quese resumem nas palawas - Ordem e Progresso. Todos sentem, por um

NASCIMENTO DA CRIMINOLOGIA 85

maior de Bentham foi o panóptico (1791 - Panopticum or TheInspection House). Era um sistema de construęao prisional quepermitia, com o minimo de esforęo - e com o maximo de econo-mia -, obter o maximo de controle dos condenados. Da torre cen-tral de um presidio circular todos os corredores radiais seriam ob-servados, bastando, para tanto movimentar a cabe9a nas diferentesdireęoes, para se ter o controle pleno de todo o edificio, sem que ospresos pudessem saber que estavam sendo vigiados. Enfim, asse-guravam-se ordem e progresso das atividades diuturnas de traba-Iho, sem qualquer contrapartida. Cuidava-se da disciplina de uniaforma bastante positiva. Era este o principio da ideologia utilitarista.Foi Bentham o primeiro autor a referir-se a certas medidas preven-tivas do delito, as quais Ferri posteriormente denominou de "subs-titutivos penais". Foucault demonstra, em Vigiar e punir, como onascimento da prisao estava fincado na ideia da disciplina: "a pu-nicao e urna tecnica de coercao dos individuos; ela utiliza proces-sos de treinamento do corpo - nao sinais - com os tracos que deixa,sob a forma de habitos, no comportamento; ela supoe a implanta-9ao de um poder especifico de gestao da pena".23 De outra parte,como bem ressalta Massimo Pavarini, as instituięoes fechadas,como o carcere, surgem destinadas a ideia de disciplinar a forga detrabalho assalariado, medianie a educaęao.24 Nao e por outra razao

lado, que e imprescindivel manter as bases da sociedade, mas todospercebem tambem que as instituięóes humanas sao suscetfveis deaperfeicoamento. Ora, acontece que o tipo da Ordem só foi, ate hoje,fornecido pelo regime teológico e guerreiro do passado, e que o Pro-gresso tem exigido a eliminagao, por vezes yiolenta, de certas insti-tui9oes, sendo, por isto, o espirito publice empiricamente levado asupor que sao irreconciliaveis as duas necessidades. Dai a formaęaode dois partidos opostos, tomando um para lema a Ordem e o outro oProgresso". In: LYRA, Roberto; ARAUJO JR., Joao Marcelo dc.Criminologia. p. 35.

(23) FOUCAULT, Michel. Yigiar..., cit., p. 116.(24) PAYARINI, Massimo. Los confines de la córce!. p. 13.

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que as primeiras prisoes nao se destinaram aos presos violentos ouaąueles ąue cometeram crimes mais graves, mas sim aos vagabun-dos e mendigos. Tal fato bem demonstra o pensamento utilitarioingles como proveitoso para a ideologia do contrato social. Haviaa necessidade de justificar a pena como urna retribuicao propor-cional a ąuebra desse contrato pelo criminoso, que tinha liberdadede ąuerer e de fazer.25 Ja se disse alhures que as fabricas pareciamcarceres; ao contrario, os carceres e que foram construidos sob omodelo das fabricas.26

Um dos pensamentos precursores da sociologia moderna, eda criminologia de cariz sociológico, resulta dos estudos da cha-mada escola cartografica. Seu mais proeminente autor f oi AdolpheQuetelet (1796-1874). Nascido na Belgica, ganhou fama comomatematico e estatlstico. Trabalhando como estatlstico para aspesquisas censitarias de seu pais, desenvolveu as ideias de "homemmedio", que foi apresentado como um tipo ideał e abstrato quepoderia ser visto como um padrao para analises sociológicas.27 Istolevava a urna certa regularidade dos fenómenos criminais. Repre-senta, para muitos, a ponte entre a criminologia classica e a positi-vista. Seus estudos numericos do crime estimularam a discussaosobre o livre-arbitrio e o determinismo, discussao central na cha-madabriga das escolas. Como estatlstico, Quetelet afirmava exis-

(25) E interessante observar que no Brasil, no periodo de vigencia doCódigo de 40 e da Lei das Contravencoes Penais, a porta de entradado criminoso para o sistema punitivo era a Lei das Contraven9ÓesPenais, principalmente mediante os tipos de vadiagem e mendican-cia, utilizados para repressao dos identificados como marginais queainda nao tinham passagens criminais anteriores. A lógica perversado capitalismo, com o desemprego, fechou essa porta e, dificilmen-te, encontrar-se-a ąualąuer punięao, com base naąueles dispositivos,nos ultimos decenios.

(26) ZAFFARONI, Eugenio Raul. Criminologia..., cit., p. 107.(27) Disponwel em: <http://www.tdl.edu.au>. Acesso em: 1.° fev. 2002.

K /NASCIMENTO DA CR1MINOUK i lA

tiruma"leidosgrandesnumeros"eestudavaodelitonriol;iiii(>(um fenomeno de massas, mas afirmando que os del inqiirulrs srlimitavam a executar os fatos preparados pela sociedade, conr 1 1 1 1 1 1do, assim, que a criminalidade e urna funcao representavel n i a i rmaticamente em decorrencia dos estados económicos e sociais i l < >momento. A liberdade individual, em ultima analise, e um próbiema psicológico e pessoal sem transcendencia estatistica. Alem cl i sso,o crime tem uma regularidade constante. Trata-se do "postulacie>das relacóes constantes entre a criminalidade real, aparente e legał(existe uma relacao invariavel entre os delitos conhecidos e jul-gados e os delitos desconhecidos que sao cometidos)". Surgia,aqui, a ideia das chamadas cifras negras que seria desenvolvidano seculo posterior. Com base nesse pensamento, Quetelet con-clui que o unico metodo adequado para a investigacao do crime,como fenomeno macrossocial, e o metodo estatlstico. Deve-se aestatistica a lei da saturaęao criminal, segundo a qual o ambientefisico e social, associado as tendencias individuais, hereditariase adquiridas, e aos impulsos ocasionais, determina, necessaria-mente, relatiyo contingente de crimes.28 Tais assertivas deQuetelet, alem de granjearem seguidores europeus como Guerry(1802-1866), tambem permitiram antecipar os metodos utiliza-dos, anos mais tarde, pela escola de Chicago. Mesmo hoje, pou-cos sao os criminólogos que nao se valem de metodos estatisti-cos para analisar os dados da criminalidade, com os quais fazemo diagnóstico do problema e os prognósticos da devida intervcncao, preventiva ou repressiva.

Contemporaneos de Lombroso, porem com visoes dislinlus,estao os franceses da Escola de Lyon, Alexandre LacassaL'iu-1-Gabriel Tarde, dentre outros. Lacassagne (1843-1924) foi um importante professor de medicina legał em Lyon. Respousav>-l | « > \estudos cientificos especificos na area, com aplicai , .n> di uovł»s

(28) LYRA, Roberto. Introduęao ao estudo do din'il*

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88 CRIMINOLOGIA NASCIMENTO DA CRIMINOLOGIA H')

tecnicas na identificagao de cadaveres (necropsia) e tambem embalistica, que permitiram associar as bałaś as estrias da arma de ondeprovinha o tiro,29 notabilizou-se por ser o mais ferrenho opositordas teorias italianas da escola antropológica liderada por Lombro-so. Segundo Lacassagne, que se opos pessoalmente a Lombrosono I Congresso Internacional de Antropologia Criminal (Roma,1885) e tambem no II, realizado ąuatro anos depois em Paris, hadois fatores que influem para o ato delituoso: os predisponentes(por exemplo, os de carater somatico) e os determinantes (os so-ciais, decisivos para o delito ser praticado). A sociedade era urnaespecie de meio de cultivo que abriga em seu seio urna serie demicróbios que sao os delinqiientes, os quais nao se desenvolveraose o meio nao Ihes for propicio. Dai a ideia segundo a qual maiordesorganizacao social significaria maior criminalidade; a menordesorganizacao corresponderia menor criminalidade, sintetizadana frase "cada sociedade tem o criminoso que merece". Tal opi-niao e importante, pois indica ser o meio social um caldo de cultu-ra da criminalidade, ao contrario do que afirmavam os seguidoresda escola antropológica italiana. As condięoes económicas, por-tanto, jogam um papel definitivo: e a miseria que produz o maiornumero de criminosos.30 Contemporaneo de Lacassagne, GabrielTarde (1843-1904) foi outro importante autor a permitir o desen-volvimento da perspectiva sociológico-criminal. Agudo critico daperspectiva lombrosiana, jurista renomado e diretor de EstatisticaCriminal do Ministerio da Justięa da Franca, com atividade pio-neira neste aspecto em toda a Europa, teve participac, ao ativa naspolemicas contra a escola italiana. Tambem discordava das ideiasde Emile Durkheim, por entender nao ser a criminalidade um fe-

(29) Disponivel em: <http://www.perso.wanadoo.fr>; <http://www.mdpd.com>. Acesso em: 1.° fev. 2002.

(30) LANGON CUŃARRO, Miguel. Criminologia..., cit., p. 32-33;LYRA, Roberto; ARAUJO JR., Joao Marcelo de. Op. cit. p. 45-46;SENDEREY, Israel Drapkin. Op. cit. p. 56-57.

nómeno que pudesse ser classificado conio "normal".31 Polcinislamordaz, refuta com veemencia as assertivas segundo as quais ocriminoso possuia urna regressao atavica. Afirma que isto o renieteria para um ser envolvido, portanto com menor peso e estaturu.Segundo ele, nao e o que ocorre. "Anatomicamente, o criminoso e,em geral, grandę e pesado. Nao digo forte, porąue, ao contrario, efraco de musculos. Pela sua estatura e seu peso medio, sobrepóe-se a media das pessoas honestas; (...) Seja como for, sua capacida-de media e bem superior a dos selvagens, aos quais nosso autor,como bom darwiniano, se compraz em assimila-los".32 Quanto aGarofalo, nao deixa de refutar a ideia segundo a qual haveria maishomicidios no Sul da Italia e mais roubos no Norte. Para ele naoexistia qualquer lei termica da criminalidade, razao pela qual saocausas sociais e nao fisicas que poderiam explicar tais diferencasem termos estatisticos.33 Tarde afirmava que a "escola do crime'era a praca, a rua onde crescem as criancas; tal concepcao veio in-fluenciar poderosamente Sutherland, principal autor da teoria daassociacao diferencial, nos Estados Unidos. Segundo ele, ha tresleis chamadas Leis da Imitaęao. A primeira delas permite dizer queo indMduo, em contato próximo com outros, imita-os na propor-ęao direta do contato que mantem entre si. Tarde diferenciava oscontatos diferentes e rapidos que ele denomina de moda, caracte-risticos da grandę cidade, e os contatos mais lentos e menores, queele denomina costume, caracteristicos do campo. Por forca dessaideia, ele acreditava ter a imprensa um papel central nos meios decomunicac. ao e interacao entre as pessoas, propagando e potencia-lizando essas imitacoes. Sua segunda lei de imitacao projetava adireęao do processo: o inferior imita o superior; os jovens imitam osmais velhos, os pobres imitam os ricos, os camponeses imitam a

(31) Disponfyel em: <http://www.droitpca.citeglobe.com>; <hltp://www.multimani.com>. Acesso em: 1.° fev. 2002.

02) TARDE, Gabriel. A criminalidade comparada. p. 19-?,().(33) Op. cit. p. 201.

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reałeza e assim por diante. Isto permite as pessoas seguirem omodelo de maior status, na esperanga de que suas condutas pos-sam garantir-lhes uma recompensa associada aquele patamar su-perior social. A terceira lei e a da inserc, ao. Se duas modas diferen-tes se superpoem, a mais nova substitui a mais antiga. Por exem-plo, o assassinato a facadas e substituido pelo executado com ar-mas de fogo; as drogas substituem o papel estimulador desempe-nhado, no passado, pelo alcool.34 Dentro dessa linha de pensamen-to, sempre que existir um contato social deleterio, havera crimina-lidade potencializada.

Todos esses autores tiveram grandę importancia na historiada criminologia. No entanto, nenhuma escola ou pensamento, comoa escola antropológica italiana (assim chamada na epoca) ou opositivismo italiano (nome hoje mais encontradico), liderado porLombroso, Ferri e Garofalo, tiveram maior repercussao para a cri-minologia; sejapelas polemicas causadas, sejapelo marco históri-co representado. E o que analisaremos a seguir, nao sem antespincelarmos alguns pontos da criminologia classica.

2.3 O Iluminismo e as primeiras escolas sociológicas

Os tempos modernos viram nascer essas correntes do pen-samento filosófico-juridico em materia penal e em criminologia:a escola classica e a positivista. Embora tenham se formado e dis-tinguido uma da outra, a ambas e subjacente o caldo de culturailuminista.

A escola classica caracteriza-se por ter projetado sobre o pro-blema do crime os ideais filosóficos e o ethos polftico do humanis-mo racionalista. Pressuposta a racionalidade do homem, haveriade se indagar, apenas, quanto a racionalidade da lei.

04) WILLIAMS, Gwens. Gabriel Tarde and the imitation ofdeviance.Disponivel em: <http://www.criminology.fsu.edu>. Acesso em: l.°fev. 2002.

Emboraopensamentoclassico,deumafonn;i ;n . i l i . n l . i pser identificado com o seculo XIX, e com Cesare Hoiu-saiu M.nques de Beccaria, que se fincam os pilares que p e r m i l i r i ; i n i i « > n .truir o arcabouęo teórico do classicismo. A hwestigacao n i m i m >lógica comeęa - como tudo em ciencia - em uma busca do a >i i i u •cimento racional e fundamentado. E dificil afirmar que uma d iściplina nasca do dia para a noite, ou que seja obra de algum pensach >i"iluminado", ou aindaproduto deumapublicacao especifica. Pot 1«se afirmar que a busca do conhecimento cientifico sobre o fenó-meno criminal e gestada por meio da concorrencia de tres circunstancias que, habitualmente, acompanham o processo de hwestigaęao: a colocacao em diivida das ideias antes dominantes; a crfticada situacao dos sistemas processuais; a necessidade crescente dccomprovagao do surgimento do novo paradigma da ciencia: a ra-cionalidade. O livro que abre as portas desse periodo vem a lumeem 1764: Dei delitti e delie pene. A exigencia polftica de ąuererlimitar o arbitrio e a opressao de um poder centralizado e autorita-rio somam-se as exigencias filosóficas do jusnaturalismo de Grócioe do contratualismo de Rousseau. A necessidade de reafirmar aexistencia de um direito estranho e superior as forcas históricas,resultante da própria natureza do homem, imutavel na essencia ou,ainda, que fosse o produto de um livre acordo de vontades entre osseres racionais, e que vai orientar tal pensamento.35 Beccaria trans-portou essas aspiracoes e esses principios filosóficos ao campo dodireito penal, e veio marcar o pensamento cientifico especifico dessaciencia, mas tambem da criminologia. A rigor, o que explica suaimportancia para o direito penal moderno nao e a originalidade nemtampouco o conteudo especifico de sua obra. Ele produziu umasmtese das ideias penais iluministas entao em curso, algumas dasquais bastante antigas. A concepęao filosófico-penal de Beccariaf oi a maior expressao da hegemonia da burguesia no piano das ideiaspenais, motivada pelas necessidades de transforma9Óes politicas e

(35) BRUNO, Anibal. Direito penal. p. 94.

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92 CRIMINOLOGIA NASCIMENTO DA CRIMINOLOGIA 03

economicas.36 Beccaria defendeu a existencia de leis simples, co-nhecidas pelo povo e obedecidas por todos os cidadaos. "Se a arbi-traria interpretagao das leis constitui um mai, a sua obscuridade oe igualmente, visto como precisam ser interpretadas. Tal inconve-niente ainda acresce ąuando as leis nao sao escritas em lingua co-mum."37 Para ele, só as leis poderiam fixar as penas, nao sendopermitido ao juiz aplicar sanęoes arbitrariamente. Defendeu o firndo confisco e das penas infamantes, que recaem sobre a familia docondenado, como ainda o firn das penas crueis e da capital. "O ri-gor do castigo faz menor efeito sobre o espirito do homem do quea duraęao da pena, pois a nossa sensibilidade e mais facil e commais constancia atingidapor urna impressao ligeira, porem freąiien-te, do ąue por abalo violento, porem passageiro."38 Para ele nao eratao importante o rigor da lei, mas a ef etividade de seu cumprimen-to. Foi dos primeiros a criticar de maneira acerba o sistema de pro-vas que nao admitia o testemunho da mulher e nao dava atenęao apalavra do condenado. Lutou contra a tortura, o testemunho secre-to e os juizos de Deus, pois tais metodos nao permitiam a obtencaoda verdade. Nilo Batista, com muita propriedade, descreve a tortu-ra no periodo medieval: "Se o suspeito nao confessou nem contraele se produziu prova plena (como nas insuficientes combinacoesde boato mais urna só testemunha, ou de indicios mais boato etc.),ou ainda se 'vacila em suas respostas', um despacho raivoso ('paraque nao ofendas mais os ouvidos de teus juizes') o encaminhara atortura'' ,39 Dos delitos e das penas, inicialmente publicado sob pseu-dónimo, teve acolhida surpreendentemente grandę. Nos anos seguin-tes, Beccaria viaja a Fran§a para fazer urna serie de conferencias e

PC) FREITAS, Ricardo de Brito A. P. Razao e sensibilidade: fundamen-tos do direito penal moderno, p. 145.

(37) BONESANA, Cesare. Dos delitos e das penas. p. 19.(38) Op. cit. p. 46.(39) BATISTA, Nilo. Matrizes ibericas do sistema penal brasileiro — I.

p. 265.

acaba por disseminar suas ideias por toda a Europa. Dos dcliio,\ •das penas e a pedra fundamenta! do direito penal liberał e da própi i; \criminologia classica, razao por que tambem foi a maior fonte dccriticas dos pensadores positivistas, especialmente pelo radical mccanismo de racionalidade a que deveriam estar sujeitos os condenados e que, ja naquela epoca, estava sendo submetido a prova.

Para o pensamento utilitarista, a pena era urna forma de curarurna enfermidade morał, disciplinando o instinto dos pobres compremios e castigos, em urna especie de taliao disciplinador. Para aescola criminológica classica, fundada no contratualismo de urnaburguesia em ascensao, apena era a reparaęao do dano causado pelayiolaęao de um contrato (o contrato social de Rousseau). No direi-to civil, quando urna parte viola o contrato, surge a reparagao comoresultado inevitavel daquele descumprimento. No direito penal deurna sociedade baseada metaforicamente nesse mesmo contrato,nao ha como evitar anecessariareparacao do dano por meio da pena.Dai e que surgem penas certas e determinadas, como decorrenciadessa matematica reparatória fixa. Essas medidas e que levarao oscódigos iluministas, como o Napoleónico e o Código do Imperiobrasileiro de 1830, a impor as penas fixas.40

O pensamento classico tem representantes na Alemanha(Feuerbach, por exemplo), em Portugal (Mello Freire) e em ou-tros paises europeus (Rossi chegou a naturalizar-se frances). E, noentanto, altaliaquetemos mais convictos adeptos dessaperspectivapenal. Sao nomes de proa desse pensamento: Filangieri (1752-1788), Pellegrino Rossi (1768-1847), Carmignani (1768-1847),Romagnosi (1761-1835) e Carrara (1805-1888), dentre outros. Narealidade tais autores nao agiam enquanto "escola", tendo somen-te algumas ideias em comum, que poderiam assim ser sintetizadas,especialmente a partir da obra do mais importante desses aulim-s,que foi Francesco Carrara: o crime nao e um ente de fato, ć i m i c n u-

(40 ZAFFARONI, Eugenio Raul. Criminologia..., cii., |>. I I I

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94 CRIMINOLOGIA

juridico; nao e urna agao, e unia infraęao. E um ente juridico por-que sua essencia deve consistir necessariamente na yiolaęao de umdireito. Com tal pensamento ąueria se dizer que o crime e a viola-ęao do direito como exigćncia racional e nao como norma de direi-to positivo, em urna clara alusao ao pensamento contratualista. Seo crime e uma exigencia racional, ele só pode emanar da liberdadede querer como um axioma fundamental para o sistema punitivo.Advem dai o chamado livre-arbftrio, base da atribuięao de uma penaproporcional e grandę fonte de criticas por parte dos posithdstas.Para os classicos, a pena e uma retribuicao juridica que tem comoobj etivo o restabelecimento da ordem externa violada. A pena, comonegacao da negaęao do direito (segundo Hegel), ou o justięamentodo ultimo assassino que se achasse na prisao, caso a sociedade fos-se se dissolver (segundo Kant), sao exemplos de como a pena tinhacomo objetivo o restabelecimento da ordem externa (leia-se juri-dica) violada. Evidentemente que o metodo de estudo subjacente aessa forma de pensar nao poderia ser experimental, mas sim ometodo lógico-abstrato ou o dedutivo.

O alheamento natural dos classicos, em funcao de suas ideias,criou uma certa incapacidade explicativa de alguns fenómenos daepoca. A comecar pelo postulado da racionalidade pura, capaz desupor umahomogeneidade absoluta de todos os homens no que tocaaos processos pessoais, biopsicológicos, de motivacao do atodelituoso. Em contrapartida, o suposto efeito dissuasório da penanao se mostrou efetivo, nao obstante os contra-estimulos penaisserem concretos. Damesmaforma, aaplicaęaorigorosamenteigualda lei e impossfyel de ser alcangada. Ha uma pluralidade de instan-cias que se interpoem entre a abstracao da lei na concepcao do le-gislador e sua aplicaęao concreta. Na realidade, a ideologia daburguesia em ascensao, quando submetida as falencias das expec-tativas otimistas depositadas nas mudangas de paradigmas do ca-pitalismo, que nao só nao diminufram a dimensao da criminalida-de, como ainda foram incapazes de entender o grave momento his-tórico e criminal decorrente da Reyolugao Industrial, fez com que

NASCIMENTO DA CRIMBfOLOGIA 95

surgisse uma aguda, consideravel e irrespondivel critica em relucao ao pensamento denominado classico. Foi exatamente nesscclima que surgiu a critica positivista. Independentemente de suashipóteses explicativas serem, ou nao, adequadas, tambem nao sepode deixar de considerar a existencia de um amplo flanco abertoas criticas deixado pelos classicos.

Em 1876, mais de um seculo depois da publicacao da obra deBeccaria, Dos delitos e das penas, o livro de Cesare Lombroso(1835-1909), Uuomo delinąuente, 6 publicado, inaugurando-secom ele um novo periodo da criminologia, denominado "cientffi-co". Pode-se dizer que Lombroso foi produto de seu tempo. Assimcomo Beccaria nao foi um "inovador", enfeixando em sua obra opensamento dominantę da filosofia iluminista aplicada ao direitopenal, tambem Lombroso nao foi um "criador" de uma novissimateoria; foi, sim, alguem que teve a capacidade de recolher o pensa-mento esparso que vicejava a sua volta para articula-lo de formainteligente e comdncente. Se para o olhar dos nossos dias seu pen-samento pode ser considerado um tanto quanto bizarro, suas ideiaseram muito aceitas entre seus contemporaneos. Lombroso empres-tou algumas ideias dos fisionomistas para fazer seu próprio retratodo delinqiiente. Examinavaprofundamente as caracteristicas fisio-nomicas com dados estatisticos que verificava desde a estrutura dotórax ate o tamanho das maos e das pernas. A quantidade de cabe-lo, estatura, peso, incidencia maior ou menor de barba, enfim, tudoera circunstanciadamente analisado. Alguns detalhes eram verda-deiramente precisos. "Rugas frontais - E verdadeiramente tipicoo modo de se apresentar a caracteristica destas rugas em algunscriminosos ainda jovens. Sao tao profundas que a fronte se apre-senta em tais casos reiteradamente pregada, ou com uma incisaocomo uma ferida proveniente de um corte."41 Adotou dezenas deparametros frenológicos para examinar as cabegas, pesando-as,medindo-as e conferindo grandę sentido cientifico nos estiulos do

"" LOMBROSO, Cesare. L'uomo delinąuente. p. 245. . „ , -'•'

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l>6 AIOUJ CRIMINOLOGIA*•'

criminoso nato. Suas pesquisas envolviam tópicos como capaci-dade craniana, capacidade cerebral, circunferencia, formato, dia-metro, feicao, indices nasais, detalhes damandibula, fossa occipital(diferente nos criminosos natos), dados esses que eram distribui-dos conforme a regiao da Italia. Assim, havia estudos de craniosestenocefalos e sua relacao geografica com a Sicilia e a Sardenha,enquanto os oligocefalos eram mais freqiientes em outras regioes.42

Dos antropólogos que Ihe precederam extraiu o conceito de ata-vismo e de especie nao evolucionada, alem de utilizar o conceitode criminoso nato. Quanto ao atavismo, por exemplo, seus estudoscompreendiam ate mesmo um cotejo das tatuagens existentes noscriminosos com os desenhos encontrados em cavernas pre-histó-ricas do Egito, Assiria, Fenicia etc.43 Por derradeiro, da psiquiatriaemprestou a analise da degeneraęao dos loucos morais, muito utilpara construir seu pensamento e explicar a existencia dos primei-ros delinqiientes. E verdade que Lombroso tambem apresentou seugenio criador. O fator aglutinante do posithdsmo criminológico emtorno de suas ideias decorreu em grandę medida de ter sido ele oprimeiro desses autores, alem de trazer seu pensamento como umtodo articulado, a fazer a defesa do metodo empirico-indutivo ouindutivo-experimental que era sustentado pelos seus representan-tes perante a analise filosófico-metafisica, eles que reprovavam nafilosofia classica. O metodo indutiyo ajustava-se ao modelo causalexplicativo que o positivismo propos como paradigma de ciencia.Lombroso afirmava ser o crime um fenómeno biológico e nao umente juridico (como sustentavam os classicos), razao pela qual ometodo que deve ser utilizado para o seu estudo havia de ser o ex-perimental (indutivo). Nunca e demais lembrar que suas pesquisasforam em grandę parte feitas em hospitais, manicómios e peniten-ciarias. Lombroso afirmava ser o criminoso um ser atavico querepresenta a regressao do homem ao primitivismo. E um selvagem

• ; ' ; «( . ) ' .• a .-;»••

<42> Op. cit. p. 155.(«) Op. cit. p. 373 e ss.

NASCIMENTO DA CRIMINOLOGIA 97

c|iie ja nasce delinquente. A causa da degeneraęao que condu/ aonascimento do criminoso e a epilepsia, que ataca os centros nervo-sos dele. Tais ideias surgem, basicamente, de duas experienciasvivenciadas por Lombroso. AoautopsiarVillela,assaltantecalabres,yerifica que este possuia urna fossa occipital igual a dos yertebra-dos superiores, mas diferente do homo sapiens. Aplica a teoria dadegeneracao de Benito Morel que o leva ao conceito de atavismo.Mais tarde, ao examinar os crimes de sangue praticados pelo sol-dado Misdea, constata que o ataque epileptico, que causa convul-soes, podia ser substituido por impulsos violentos, especialmentenas situagoes em que a pessoa fosse portadora da chamada "epi-lepsia larvar". Com isso passa a explicar os impulsos criminosos.Assim, lancam-se as bases para a sua teoria basica: atavismo, de-generacao pela doenca e criminoso nato, com certas caracteristi-cas: fronte fugidia, assimetria craniana, cara larga e chata, grandędesenvolvimento das macas do rosto, labios fmos, criminosos namaioria das vezes canhotos, cabelos abundantes, barba rala; ladroescom olhar errante, móvel e obliquo; assassinos com olhar duro,yftreo, injetado de sangue. A mulher delinquente tambem tinha umcapitulo especial em sua obra. Desde os estudos comparados dospesos dos cranios pelos diferentes continentes, ate suas diferentesmedidas.44 Evidentemente que os resultados desses cotejos, espe-cialmente entre os sexos masculino e feminino, enveredaram paratemas pitorescos: "A principal inferioridade da inteligencia femi-nina em rela9ao a masculina diz respeito ao genio criador. Estainferioridade se revela imediatamente nos graus mais altos da in-

"" Segundo Lombroso, os cranios dos europeus possuiam, em media,urna capacidade de l .367 gramas entre os homens e l .206 gramas paraas mulheres; na Oceania estes numeros eram de 1.319 e 1.219, rcspectivamente; na America de 1.308e 1.187;naAsiade 1.304e 1.194;na Africa de 1.214 e 1.111. Tais capacidades nao eram diretamenteproporcionais a estatura, mas tinham explica5ao direta c-om :i m i r hgencia. In: LOMBROSO, C.; FERRERO, G. La donna <lrlin,/n,'ni<-:la prostituta e la donna normale. p. 21-22.

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teligencia, na falta do poder criador. Se se considera a freąiienciado genio dos dois sexos, a superioridade do homem e notória emrela9ao a mulher".45 O criminoso nato em ambos os sexos era con-siderado um especime retardatario de formas que ahumanidade jasuperara. Existem tais formas em face da existencia do atavismo,em vista de certas anomalias anatomicas e psicológicas serem ca-racteristicas desses criminosos. Por ser o delinąiiente um subtipohumano, seu estudo e prioritario, estando a analise do criminosoacima do relevo que se possa atribuir ao estudo do crime, abstrata-mente considerado. Lombroso afirmava que o mundo circundanteera motivo desencadeador de urna predisposic, ao inata, própria dosujeito em referenda. Ele nao nega os fatores exógenos, apenasafirma que estes só servem como desencadeadores dos fatores cli-nicos (endógenos). Para Lombroso, o criminoso sempre nasciacriminoso. O positivismo lombrosiano e marcadamente de umdeterminismo biológico, em que a liberdade humana -o livre-ar-bitrio - e urna mera ficcao. Nao e preciso falar muito dessa teoriapara imaginar a quantidade torrencial de criticas a que foi subme-tida. Censura-se Lombroso por seu particular evolucionismo caren-te de toda base empirica. Se for verdade que o criminoso era um sel-vagem, involuido, as tribos primitivas, por ele denominadas de sel-yagens, deveriam ter altos indices de criminalidade. Nao tinham.Ademais, encontrar alguns dos tracos anatómicos dos criminososnatos em pessoas tidas como normais era f ato comum, evidencia quenem todos os delinqiientes apresentam tais anomalias que pudessemamolda-los ao retrato do criminoso pintado pelos positivistas. Tam-bem ha de ser criticada a visao segundo a qual o criminoso e analisa-do exclusivamente por seus fatores biológicos. Ha centenas de mi-Ihares de epilepticos que jamais cometeram crimes, mesmo sendoportadores de uma doenęa que, aindahoje, só e controlada. Portan-to, os fatores biológicos só poderiam ser admitidos se compatibili-zados com os sociais. Foi o que Ferri fez, na defesa de seu mestre.

(45) Op. cit. p. 114.

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NASCIMENTO DA CRIMINOLOC11A '

Enrico Ferri (1856-1929), sucessor e continuador do pensmento de seu sogro, foi um dos mais importantes pensadores iseu tempo. Teve a dificil incumbencia de ser o grandę orieniadda escola na ardua polemica que travou ref erente a reaęao dos c l a ssicos. A ele devem a criminologia e o direito penal, semais nao UMpor ser o criador da chamada sociologia criminal. Diferentemenli-de Lombroso, sua perspectiva de analise voltava-se para as ciencias sociais, com uma compreensao mais larga da criminalidade,evitando-se o reducionismo antropológico do iniciador da escolapositivista italiana. Dizia ele que o fenómeno complexo da crimi-nalidade decorria de fatores antropológicos, fisicos e sociais. Dentrodesse sistema de foręas condicionantes e que criara uma nova clas-sificagao dos criminosos, superando os pensamentos anteriores,ainda que dentro da perspectiva positivista em sua furia classifica-tória. No entanto, em sua classificaęao preponderam os fatoressociais. Para ele, que em sua tese doutoral, La negazione del liberoarbitrio e la teoria delia imputabilitd, critica o livre-arbitrio comofundamento da imputabilidade, a responsabilidade morał deve sersubstituida pela responsabilidade social, ja que o "livre-arbftrio euma mera ficgao". A razao e o fundamento da reacao punitiva e adefesa social, que se promove mais eficazmente pela prevengao doque pelarepressao aos fatos criminosos. "A evolucao das ideias tirouaos povos a crenca no ananke, fatum, destino - que no antigo Orientee na ciyilizaęao greco-romana se dizia dominar 'homens e deuses'.Mas tem, porem, muito diminuida e reduzida a crenca pós-socratica,e, sobretudo medieval, na livre vontade, que por si só - acima econtra as circunstancias individuais e de ambiente - se decide pelayirtude ou o vicio, a honestidade ou o crime. Tanto mais que paraos crentes nao e posswel, no terreno lógico (enquanto o e no terre-no sentimental e mistico), conciliar esta livre vontade com osdogmas da predestina§ao e da onisciencia e onipotencia di v i nas.""1

Em sua renovada classificaęao, Ferri yisualiza cinco p r i i u - i p a i s

FERRI, Enrico. Sociologia criminale. p. 223-224.

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categorias de delinąiientes: o nato, o louco, o habitual, o ocasionale o passional. Nato era o criminoso conforme a classificaęao origi-nal de Lombroso. Caracterizava-se por impulsividade insita quefazia com que o agente passasse a aęao por motivos absolutamentedesproporcionados a gravidade do delito. Eram precoces e incor-rigweis, com grandę tendencia a recidiva.47 O louco e levado aocrime nao somente pela enfermidade mental, mas tambem pelaatrofia do senso morał, que e sempre a condięao decisiva na geneseda delinqiiencia.48 O delinqiiente habitual preenche um perfil ur-bano. E a descrięao daquele que nascido e crescido num ambientede miseria morał e materiał comeęa, de rapaz, com leves faltas(mendicancia, furtos pequenos etc.) ate urna escalada obstinada nocrime. Pessoa de grave periculosidade e fraca readaptabilidade,preenche um perfil que se amolda, em grandę parte, ao perfil doscriminosos mais perigosos.49 O delinqiiente ocasional esta condi-cionado por urna forte influencia de circunstancias ambientais:injusta provocac,ao, necessidades familiares ou pessoais, facilida-de de esecuęao, comoęao publica etc.; sem tais circunstancias naohaveria atividade delituosa que impelisse o agente ao crime. "Nodelinquente ocasional e menor a periculosidade e maior a readap-tabilidade social; e, porque ele, na massa dos autores de verdadei-ros e próprios crimes, representa a grandę maioria, que se podecomputar aproximadamente na metade do total dos criminosos."50

Por derradeiro, encontramos o criminoso passional, categoria queinclui os criminosos que praticam crimes impelidos por paixoespessoais, como tambem politicas e sociais.

Rafaele Garofalo (1851-1934) foi o terceiro grandę nome dopositwismo italiano. Jurista de renomę, afirma que o crime sem-pre esta no individuo, e que e a reyelac. ao de uma natureza degene-

<47> Op. cit. p. 254.<48> Idem. p. 255.

Idem. p. 257.<5(» Idem. p. 258.

NASCIMENTO DA CRIMINOLOGIA 101

rada, quaisquer que sejam as causas dessa degenera9ao, antigas ourecentes. Introduz o conceito de temibilidade que sustenta ser aperversidade constante e ativa do delinqiiente e a quantidade do maiprevisto que se deve temer por parte do mesmo delinqiiente. Talconceito foi decisivo para as formulacóes posteriores concernen-tes a intervenc.ao penal, propostas pelos positivistas: a medida deseguranca. "A temibilidade implicava a perversidade constante dodelinqiiente, bem como a quantidade de mai previsto que se deve-ria recear por parte do individuo perigoso, configurando-se a me-dida de seguranęa seu instrumento de contenęao; nascia a relacaotemibilidade-medida de seguranca. Com a analise dos exames queconstatavam a inadaptabilidade social do delinqiiente, bem comoseu perigo social, escolhia-se, na medida de tratamento, o firnprofilatico a proteger a sociedade. A temibilidade era a justificati-va para a imposięao do tratamento. Unificava os fins de protecaosocial e tratamento, alcanc. ando a eficacia com a obstrucao de no-vos delitos."51 Sua grandę contribuięao criminológica, no entanto,foi a tentativa de conceber um conceito de delito natural. Sua pro-posta basica era saber se, "entre os delitos previstos pelas nossasleis atuais, ha alguns que, em todos os tempos e lugares, fossemconsiderados puniveis. A resposta afirmativa parece impor-se,desde que pensamos em atrocidades como o parricldio, o assassi-nio com o intuito de roubo, o homicidio por mera brutalidade".52

Seu conceito de delito natural passa a ser apresentado como a vio-la§ao daquela parte do sentido morał que consiste nos sentimen-tos altruistas fundamentais de piedade e probidade, segundo opadrao medio em que se encontram as raęas humanas superiores,cuja medida e necessaria para a adapta9ao do individuo a socie-dade.53 Tal conceito influenciou inumeros autores nacionais.

(S'' FERRARI, Eduardo Reale. Medidas de seguranęa e direito penal noEstado Democrdtico de Direito. p. 22-23.

» GAROFALO, Rafaele. Op. cit. p. 3-4.|M) Idem. passim.

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Candido Motta, por exemplo, ao escrever sobre o tema em 1924,em disserta9ao para o cargo de professor substituto da Faculdadede Direito de Sao Paulo, adota a posigao determinista da escolapositivista italiana, asseverando que: "E, de fato, quer se consi-dere o crime como unia mera perturbaęao da ordem juridica, pelayiolaęao daąuilo ąue a lei convencional e escrita proibe de o fa-zer; quer como um fenómeno natural e necessario, pela yiolaęaodos sentimentos fundamentais de piedade e probidade, cujo con-junto forma o senso morał, vemos com a observac.ao e experien-cia de todos os dias que nao e o crime que devemos combater,porque a despeito de todo o esforco possfyel e imaginavel elesubsistira com esse carater de fatalidade que caracteriza princi-palmente o mundo fisico".54 O trabalho de Garofalo, cuja impor-tancia foi reconhecida pelos inumeros autores que o adotaram comoreferenda paradigmatica, esta grandemente influenciado pelo pen-samento de Herbert Spencer. Por tal razao, conduz suta propostapenal por um profundo rigor, acabando por fazer com que venhapropugnar pela eliminacao de alguns criminosos por meio da penade morte.

Superadas as diferencas pontuais entre os principais autoresdo positivismo, algumas importantes ideias comuns podem seridentificadas entre eles. O crime passa a ser reconhecido como umfenómeno natural e social, sujeito as influencias do meio e de mul-tiplos fatores, exigindo o estudo da criminalidade a adoęao dometodo experimental. A responsabilidade penal e responsabilida-de social, por viver o criminoso em sociedade, tendo por base apericulosidade. A pena sera, pois, urna medida de defesa social,yisando a recuperaęao do criminoso. Tal medida, ao contrario doque pensavam os classicos, defensores da pena por tempo deter-minado, tera denominaęao de medida de seguran9a e sera por tem-po indeterminado, ate ser obtida a recuperac.ao do condenado. O

(54) MOTTA, Candido. Classificagao dos criminosos: introduęao ao es-tudo do direito penal. p. 28-29.

NASCIMENTO DA CRIMINOLOGIA

criminoso sera sempre psicologicamente um anormal, temporariaou permanentemente.

2.4 Consideraęoes criticas ąuanto aos marcos cientificos dacriminologia

No primeiro momento da criminologia, a ideologia dominantęhavia instrumentalizado o saber por meio do paradigma do contra-to. Tal periodo coincide com a ascensao da burguesia enąuantoclasse dominantę. Derrotado o antigo regime, feita a RevolucaoIndustrial e dado o maior passo para o desenvolvimento tecnológi-co de que ate entao se tivera noticia na historia da humanidade,varios problemas comecaram a surgir. A criminalidade cresce di-retamente proporcional ao aumento da miseria. A migragao demilhares de camponeses para as grandes urbes cria problemas ateentao nao vivenciados por urna sociedade monolitica e conserva-dora. A solucao desses problemas passa a demandar um novo pa-radigma. Nasce o paradigma cientffico. A ciencia nasce para ridicu-larizar a ideia de contrato, da mesma forma que ridicularizava osvelhos argumentos teocraticos, fundados na religiosidade domi-nantę no periodo medieval.55 Este pensamento gestado nos paisescentrais traz suas influencias para os paises perifericos de maneiramuito pronunciada. Traz nao só para o direito, a medicina, mastambem para as artes, e em especial para a literatura.

Tal perspectiva de pensamento foi dominantę na Europa e naAmerica Latina, mas nao teve grandę influencia nos Estados Uni-dos. La vicejou o pensamento da escola de Chicago (que sera deta-Ihadamente examinada no capitulo subseqiiente), surgido no ini-cio do seculo XX, que via, por exemplo, nos movimentos migrató-rios e nas diferengas raciais nao fatores negativos, atentatórios apureza da raęa ou da cultura; ao contrario, considerava a migrncaoessencialmente positiva, especialmente para a sociedade. Segim-

(55) ZAFFARONI, Eugenio Raul. Criminologia..., cii., p.

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do tal ideia, as forcas que se mostraram decisivas na historia dasociedade sao as que se uniram por intermedio da competigao, doconflito e da cooperacao.56

Tobias Barreto, por exemplo, examinou o homem delinąuen-te no livro Menores e loucos em direito criminal, cuja primeiraedięao e de 1884. Embora o mestre de Recife nao tenha aderido asideias de Lombroso, nao deixa de aplaudir o golpe que o professorde Turim da nos criminalistas metafisicos, como Carrara. Emboratenha vaticinado o firn do positivismo italiano, nao deixa de consi-derar importante tal contribuic, ao e, mesmo, adotar algumas de suasideias, apesar de sua concepgao humanista. Refuta, no entanto, opensamento conservador criminal dos classicos, assumindo posi-gao bastante heterodoxa: "o direito de punir e um conceito cienti-fico, isto e, urna formuła, uma especie de notaęao algebrica, pormeio da qual a ciencia designa o fato geral e quase quotidiano daimposigao de penas aos criminosos, aos que perturbam e ofendem,por seus atos, aordem social".57 ParaRoberto Lyra, "Tobias Barretocriticou tantos os classicos com sua metafisica - geografia do ab-soluto - quanto os positivistas e os ecleticos, a metaistória, ametapolitica. Tambem ai foi genuino precursor, atirando a barraadiante com os conceitos mais largos do que os deles... Exortou ocriminalista a nao se deixar arrastar pelo carro triunfal das cienciasnaturais ou ata-las as asas de uma filosofia romanesca".58 Se aquiele adere ao cientificismo positMsta, tambem refuta ideias dessespensadores: "a teoria romantica do crime-doenęa, que quer fazerda cadeia um simples apendice do hospital e reclama para o delin-qiiente, em vez de pena, o remedio, nao pode criar raizes no terre-no das solugoes aceitaveis. Porquanto, admitindo mesmo que o

(56) MELOSSI, Dario. A imigraęao e a constru9ao de uma democraciaeuropeia. Discursos Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade, n. 11,p. 105.

(57) BARRETO, Tobias. Estudos de direito. p. 164.(38) Direito..., cit., p. 43.

crime seja sempre um fenomeno psicopatico, e o criminoso sim-plesmente um infeliz, substituida a indignagao contra o delito pelacompaixao da doenca, o poder publico nao ficaria por isso tolhidoem seu direito de fazer aplicaęao do saluspopuli suprema lex estoe segregar o doente do seio da comunhao".59 No que concerne amulher, por exemplo, menciona a sua propalada subjetividade efraqueza com uma linguagem bastante candente: "mas o pouco,mas muito pouco mesmo, que nos e dado conhecer das riquezas emaravilhas desse pafs encantado, inexploravel, que se chama a vidaespiritual, a subjetividade feminina, autoriza-nos a induzir que alias flores abrem cantando, as aves brilham como estrelas, e as estre-las deixam-se colher como flores. O que no homem e passageiro eocasional, o predominio da paixao, na mulher e permanente, cons-titui a sua própria essencia. A roupa de festa das grandes emogoes,dos sentimentos elevados, ela nao espera os momentos solenes edramaticos para vesti-la; veste-a diariamente. O homem, quandoama, ainda tem tempo de trabalhar, ou de dar o seu passeio, ou defumar o seu cigarro; nao assim, porem, a mulher, que, nesse esta-do, nao tem tempo de pensar em outra coisa senao no seu amor".60

Na realidade, vigorava naquele tempo uma concepgao bastantepreconceituosa quanto a mulher. O livro de Lombroso e Ferrerosobre a mulher delinqiiente e marcante ao associar a mulher crimi-nosa a prostituic. ao. O perfil destacado pelos referidos autores tra-duz um histrionismo verdadeiramente hilariante. "As mulheres saoinstintiva e surdamente inimigas entre si: e em relagao aos fracos eas outras pessoas de seu sexo que se exerce de preferencia sua cruel-dade. Freqiientemente, a crueldade feminina tonią uma forma epi-demica, como acontece nas reyolugoes, em que o furor femininonao conhece mais limites. A mentira, geral na humanidade, atingena mulher, como na crianęa, um maximo de intensidade. Nela amentira e fisiológica e estimulada por uma infinidade de causas:

|W) Idem. p. 166.W) BARRETO, Tobias. Menores e loucos em direito criniiiiul. |>. (>7 08.

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fraąueza, menstruacao, atavismo, sugestionabilidade, desejo detornar-se interessante... Duas mulheres sao amigas entre si quan-do tem urna inimizade comum por uma terceira. O genio deserta amulher, mas ela e dotada de um real talento de imitaęao... Incapazde guardar um segredo, confessa seus crimes com uma extremafacilidade. E a necessidade de tagarelar, de tornar-se interessanteque faz de toda mulher criminosa uma imprudente nata."61

Lombroso, sobre o genio desertado da mulher e sobre os dife-rentes indices de criminalidade, polemizou com inumeros autores.Gabriel Tarde refutou a ideia segundo a qual "a mulher apresentauma maior analogia com o homem primitivo e, portanto, com omalfeitor; mas sua criminalidade nao e inferior a do homem, quandoa prostituicao ai vem se juntar". Segundo ele, "a criminalidade dasmulheres e inferior a dos homens, nao obstante a prostituicao. Senos algarismos da delituosidade feminina pretendemos inserir ascortesas, pergunto-me por que nao inseririamos nos algarismos dadelituosidade masculina nao somente os rufioes, mas ainda os dis-solutos, os jogadores, os bebados, os preguicosos e os desclassifi-cados de nosso sexo".62

Outro importante autor brasileiro com influencia da escolapositiva foi Raimundo Nina Rodrigues. Sua principal obra, As ra-ęas humanas e a responsabilidade penal no Brasil, publicada em1894, mereceu um longo artigo de Lombroso e Bruni, no Archiviodi Psichiatria de 1895, vol. 16, p. 281 e ss. Nele, os autores mos-tram como Nina Rodrigues adaptou as ideias, entao em vigor, asracas e clirnas locais, chegando a ser taxado como o "apóstolo da

((ll) DARMON, Pierre. Medicos e assassinos na Belle Epoąue. p. 63; nooriginal de I .ombroso (escrito com G. Ferrero), encontra-se uma am-pla descricao dos tatores femininos que permitem nao admitir a rnu-Iher em jmzo, como debilidade, menstruacao, senso de pudor, desejode tornar-se interessante, sugestionabilidade etc. (Op. cit. p. 95-99).

(62) TARDE, Gabriel. A criminalidade..., cit., p. 65.

antropologia criminal no Novo Mundo".63 Nesse trabalho, NinaRodrigues critica o ecletismo de Tobias B arreto e em particular suasposięoes quanto ao livre-arbitrio. Para ele, "o postulado da vonta-de livre como base da responsabilidade penal só se pode discutirsem flagrante absurdo, quando for aplicavel a uma agremiaęaosocial muito homogenea, chegada a um mesmo grau de culturamental media",64 algo que, evidentemente, a seu juizo, nao ocorriano Brasil. Assume, ademais, uma posięao racial em que diferenciaas rac. as formadoras da nossa patria com assertiyas segundo as quais"o negro e rixoso, violento nas suas impulsóes sexuais, muito dadoa embriaguez, e esse fundo de carater imprime o seu cunho na cri-minalidade colonial atual".65 Chegou, com base em argumentossociológicos, a sustentar a "necessidade de, pelo menos, quatrocódigos penais no Brasil",66 por considerar um erro ter um só códi-go que nao atende as diversidades raciais e regionais. Para ele, m-dios e negros nao podiam ser contidos mediante o temor ao castigoe receio da violencia, pois absolutamente nao teriam conscienciade que seus atos pudessem implicar a violacao de um dever ou oexercicio de um direito daquilo que, ate entao, era para eles direitoe dever.67 O resultado do pensamento de Nina Rodrigues foi, tal-vez, uma especie de racismo condescendente e paternalista queserviu de base para justificar diferenęas de tratamento e de estatu-to social para os diversos grupos etnicos presentes na sociedadehrasileira. Somente anos mais tarde tal discurso e desconstruido."Com a aparigao de Casa-Grande & Senzala, em 1933, estavadadaa partida para uma grandę mudanga no modo como a ciencia e o

"'" CASTIGLIONE, Teodolindo. Lombroso perante a criminologia con-tempordnea. p. 280-281.

"H" NINA RODRIGUES. As raf as humanas e a responsabilidade penalno Brasil. p. 71.

"" Idem. p. 161.""" LYRA, Roberto. Direito..., cit., p. 109."'" Op. cit. p. 109.

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CRIMINOLOGIA

pensamento social e polftico brasileiros encaravam os povos afri-canos e seus descendentes,hibridos ounao. GilbertoFreyre (1933),ao introduzir o conceito antropológico de cultura nos circulos eru-ditos nacionais e ao apreciar, de modo muito positivo, a contribui-ęao dos povos africanos a civiliza9ao brasileira, representou ummarco no deslocamento e no desprestigio que, dai em diante, so-freram o antigo discurso racialista de Nina Rodrigues e, principal-mente, o pensamento da escola de niedicina legał italiana, aindainfluente nos meios medicos e juridicos nacionais."68

Pensamentos racistas foram dominantes por um longo perio-do entre nos. Afranio Peixoto, por exemplo, foi um moderado cri-tico de Lombroso, embora tenha adotado muitas de suas ideias.Baiano de nascimento, foi catedratico de Higienę e Medicina Le-gał na Faculdade de Medicina e na Faculdade de Direito da Uni-versidade Federal do Rio de Janeiro, onde organizou, dirigiu e pro-fessou o primeiro curso de criminologia em moldes de pós-gradua-ęao (1932).69 Ferri a ele sereferiu afirmando que tinha adesoes pelomenos relativas ao pensamento positivista.70 Afranio Peixoto afir-mava que os criminosos natos constituiam o tipo mais frisante, oamago das ideias positivistas. Tal qual Garofalo, defensor das di-feren§as e influencias das raęas nas decisoes que levam as pessoasaos atos criminais71 (o que o levou a defender a pena de morte para

(68) GUIMARAES, Antonio Sergio Alfredo. Racismo e anti-racismo no

Brasil. p. 60-61.(69) LYRA, Roberto. Direito..., cit., p. 111.(70) CASTIGLIONE, Teodolindo. Op. cit. p. 284.(71) "E conhecida a maior persistencia do homicidio em algumas regioes

da Espanha que tem um acentuado carater de raca, como Aragao eAndaluzia; sucede o mesmo na Sicilia, em Napoles, em Roma, naCórsega. Na Austria observou-se que o homicidio e raro nas regioesde raca alema e naąuelas em que predominam os eslavos do Norte,sendo, pelo contrario, freąiiente onde predominam os eslavos meri-dionais. Para os outros crimes de sangue da-se aproximadamente omesmo, de sorte que pode afirmar-se que na Austria a raca se mani-

NASCIMENTO DA CRIMINOLOGIA

os criminosos), Afranio Peixoto foi defensor da eugenia. "Paraprover a isso a eugenia, a boa gera9ao, a boa cria9ao que rciine epropaga, depois de investigar para resolver os problemas biolog i -cos da gesta9ao, para que se produzam seres sadios e yalidos, dota-dos de todas as qualidades requeridas a um perfeito exemplar hu-mano. E um mundo novo, entrevisto e esperan9ado: Renato Kehltem sido aqui o paladino da causa; aos seus livros documentadosenvio os estudiosos."72 Na verdade, o termo eugenia (eu: boa; genus,geraęao), criado pelo cientista britanico Francis Galton, em 1883,teve alguma repercussao na esfera penal. A tentativa de proibi9aode casamentos inter-raciais, as restri9oes que incidiam sobre alcoó-latras, epilepticos e alienados, visavam, segundo a ótica da epoca,a um aprimoramento das popula9oes. Renato Kehl e Miguel Couto,no Congresso Brasileiro de Eugenia, em 1929, chegaram a insistirem medidas restritivas a entrada de mao-de-obra asiatica no Bra-sil, tendo a firmę oposi9ao de Roquete-Pinto, que entendia que aquestao brasileira era urna questao de higienę e nao racial.73 Des-sas medidas eugenicas as medidaspenais eugenicas bastavadar umpasso...

No seculo XIX nao havia duvidas de que as ra9as eram subdi-visoes da especie humana, grosso modo identificadas com as po-pula95es nativas dos diferentes continentes, caracterizadas porparticularidades morfológicas, tais como cór da pele, formato donariz, grossura dos labios e forma do cranio. Na verdade, a exis-tencia do racismo acompanha o homem. O sentimento humanosempre foi o de tentar mostrar sua superioridade sobre os outros

MLifi < festa como um fator de indubitavel eficacia nos crimes violentos. E

ainda na Alemanha as provincias em que, como na Priissia oriental eocidental, os alemaes se misturam aos eslavos e raęa germanica ćmenos pura, sao aquelas em que os homicidios se realizam em maiornumero." GAROFALO, Rafaele. Op. cit. p. 313.

(72) PEIXOTO, Afranio. Criminologia. p. 323.(73) SCHWARCZ, LiliaMoritz. O espetdculodas raęas: c i i M i l i s l n s , u i s l i

tuięoes e questao racial no Brasil - 1870-1930. p. ')(>.

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animais, bem como de diferenciar-se de outros homens tidos comoinferiores. Na India, no Código de Manu, o estrangeiro e o parianao tinham equivalencia legał. Em hindu casta e "baru", palavraque significa cór, o que demonstra, possivelmente, alguns senti-mentos racistas.74 De outraparte, oTalmud, do povo hebraico, trans-borda sua milenar sabedoria ao advertir o homem sobre a yirtudeda humildade. O homem nao deve se seutir orgulhoso ou enaltecidosobre as demais coisas, pois, se ele foi criado por Deus no sexto diado processo de criagao, o mosquito foi criado antes dele. A Biblianos ensina que Moises, libertador dos hebreus, teve contra si mur-murios de repreensao e desaprovacao de Aarao e Maria, por causada mulher etiope com quem casara (Nm 12, 1). A compensacaodivina foi a de restaurar a Justica, ate de forma irónica, pois "Mariafoi ferida por urna lepra branca como a neve" (Nm 12,10).

No entanto, como acontece com a maioria dos fenómenoshumanos, somente a partir da verdadeira furia racional iluministae que o homem, autopromovido ao centro das relacoes humanas,passa a querer racionalizar todas as coisas, utilizando-se de ummetodo que o conduz a ciencia, para que possa explicar os fenó-menos humanos que vivenciara por seculos e que somente a intui-cao fora capaz de fazer aflorar em periodos anteriores. Como dou-trina, o racismo surge no mundo com Gobineau, em 1856, com otrabalho "Sobre a desigualdade das ra9as humanas", oportunidadeem que se exalta a raca branca e se prenuncia, por causa da mesti-ęagem, a decadencia da civiliza9ao.75 Para Gobineau o resultadoda mistura e sempre um dano, ja que os caracteres fixos existentesnas diferentes racas determinam a necessidade de perpetuacao dostipos puros76 (na realidade, Gobineau nao teve tanto impacto no

(74) GARCIA ANDRADE, Jose Antonio. La xenofobia y el crimen. Cua-dernos de Politica Criminal, n. 54.

(75) CARYALHO, Pedro Armando Egydio de. Racismo. Revista Brasi-leira de Ciencias Criminais, n. 21, p. 413.

<7Ć> SCHWARCZ, Lilia Moritz. Op. cit. p. 64.

NASCIMENTO DA CRIMINOLOGIA I I I

contexto europeu de finais do seculo XIX, vindo a ser recuperadonos anos 30 do seculo XX, exatamente no momento anterior a Se-gunda Grandę Guerra). Nao e por outra razao que os positivistasmais radicais, adotando posigóes claramente racistas, propuserama extin9ao ou, no mmimo, a neutraliza9ao da "sub-ra9a" criminalencarnada pela figura lombrosiana do "criminoso nato". Parecedificil nao concordar com Fran9ois Jacob, premio Nobel de Biolo-gia, quando afirma que o conceito de ra9a e, para nossa especie,nao operacional (o que significa dizer que nao existe "ra9a" brancaou negra); no entanto, convivemos muito tempo com o racismoapesar de nao existirem meios cientificos que consigam demons-trar a presen9a de diferentes ra9as no seio da especie humana. Taisestudos eugenicos repercutiram no Brasil produzindo urna culturaracista - aqui nao dissimulada - em que negros e brancos passam aser declarados distintos por sua condi9ao de ra9a. O importanteestudioso do direito penal e da criminologia, autor que influenciouum sem-numero de seguidores no Brasil, Raimundo Nina Rodri-gues, com grandę naturalidade afirmaya que "o criterio cientificoda inferioridade da ra9a negra nada tem de comum com a revoltan-te explora9ao que dęła fizeram os interesses escravistas dos norte-americanos. Para a ciencia nao e essa inferioridade mais do que umfenómeno de ordem perfeitamente natural, produto na marchadesigual do desenvolvimento filogenetico da humanidade nas suasdiversas divisoes ou se9oes". E mais adiante arrematava: "o estudodas ra9as inferiores tem fornecido a ciencia exemplos bem obser-vados dessa incapacidade organica, cerebral".77

Pondere-se que a existencia de manifesta9Óes de cunho racis-ta correu o mundo, e o racismo foi dominantę por um largo perfo-do. Renę Resten, membro da Sociedade Internacional de Crimi-nologia e professor da Universidade de Poitiers, citando o prolessor americanoEarnestA. Hooton, destacava que inumeros prsqui-sadores haviam demonstrado que o fator determinank- nn-n i-ra

(77) NINARODRIGUES, Raimundo. Op. cit. p. 5 c 51 , n-s|.r< I I V . M I K M I I C .

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preponderante para o cometimento do crime. "Os mediterraneospraticam mais homicidios; os nórdicos sao falsarios e autores defurto sem violencia; os moradores dos Alpes praticam furto comescalada; moradores do baltico atentam contra os costumes, comou sem yiolencia (...) Sob o ponto de vista da estetica constitucio-nal e da diferenciaęao tipológica, tais criminosos eram inferiores aseus congeneres nao delinąiientes."78

O pensamento determinista da epoca sugeria tres distintas te-ses, respaldadas nos ensinamentos de unia antropologia de mode-lo biológico. A primeira tese afirmava a realidade das ra9as, dizen-do existir urna distancia entre os homens assim como existia entreo cavalo e o asno, criticando-se, pois, o cruzamento racial. A se-gunda maxima instituia urna continuidade entre caracteres fisicose morais, de tal forma que a divisao racial corresponderia a urnadivisao reproduzida culturalmente. O terceiro aspecto aponta para apreponderancia do grupo etnico no comportamento do sujeito, con-formando-se com urna doutrina de psicologia coletiva, ou biologi-camente determinada, hostii a ideia do livre-arbitrio do individuo.79

A importancia do racismo para o direito penal e, evidentemen-te, para a própria criminologia pode ser verificada pelo simples fatode que, nos anos 40, vinte e setę dos ąuarenta e oito Estados norte-americanos autorizavam ou impunham medidas de castraęao oude esterilizaęao de loucos e delinąiientes, sendo a primeira dessasleis do Estado de Michigan. Na democratica Suica, em 1928, esta-beleceu-se a esterilizagao de oligofrenicos e psicóticos, determi-naęao que no ano seguinte foi estendida aos morfinómanos. NaAlemanha, desde osidos de 1933/1934, havianormas autorizadorasde castraęao de delinąuentes sexuais e "degenerados". Iguais dis-posicoes existiram nos pafses nórdicos, Finlandia e nos paises bal-ticos.80 Na Argentina, por exemplo, Francisco de Yeyga, recomen-

<78) RESTEN, Renę. Caracteriologia del criminal. p. 17.(79) SCHWARCZ, Lilia Moritz. Op. cit. p. 60.(so) ZAFFARONI, Eugenio Raul. Criminologia..., cit., p. 156.

NASCIMENTO DA CRIMINOLOGIA 113

dava, de maneira asseptica, "urna medida de carater higienico des-tinada a evitar a procria§ao de seres indesejaveis e a prevenir deforma definitiva a concepęao de indivfduos (delinąuentes, idiotas,amorais) que podem, por seus defeitos ffsicos, dar lugar a umaproleenferma e influir nocivamente sobre o porvir da raęa".81 MesmoIngenieros"nao pode escapar ao clima intelectual e politico de suaepoca, o que explica sua adesao a alguns aspectos da criminologiapositMsta e concretamente a concepęao do criminoso como umindividuo caracterizado por limitagoes degenerativas por defeitospsicológicos.82 Tambem de unia maneira indireta, o grandę autorda Criminologia argentina do periodo defendia medidas bem aogosto de radicais positMstas: "impoe-se evitar que certos grupossociais encaminhem a outros sua popula9ao criminosa; e indiscu-tivel que cada Estado deve preocupar-se com o saneamento do seuambiente, medianie urna defesa social bem organizada, e nao re-metendo para outros os seus baixos fundos degenerativos e anti-sociais.83 Tal pensamento racista, fundado em raizes biológicas,ainda contempor aneamente tem muitos defensores. A busca da basegenetica da criminalidade nunca arrefeceu. A geneticista escoce-sa, Patricia Jacobs, no ano de 1965, constatou que um numero sig-nificativo de criminosos era portador de urna anomalia geneticaligada a existencia de um cromossomo supranumerario, o cromos-somo Y. Estes indiyiduos, do sexo masculino, em vez de seremportadores da formuła XY, tinham um cariótipo XYY, o que leva-va o portador da anomalia a urna condicao de "supermacho", comatitudes indicativas de mais violencia do que as praticadas por pes-soas normais. Estava ressuscitada a discussao pela descoberta do"cromossomo assassino". Somente em 1972, em um colóquio orga-nizado pelo Instituto de Criminologia da Universidade de Cambridge,varios participantes do evento demonstraram que os indiyfduos

(81) Idem. p. 156.(82) DEL OLMO, Rosa. Criminologia argentina: apuntes para su recons-

trucción histórica. p. 36.(83) INGENIEROS, Jose. Criminologia. p. 190-191.

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XYY só tem em comum a altura, a miopia e a caMcie precoce.Todos as pesquisas abordavam a falta de importancia do cariótipopara efeitos de produęao de criminalidade.84

Na realidade, mesmo em finais do seculo XIX, em uma visaodesapaixonada do problema, ja seriam perfeitamente demonstra-veis as situagoes estranhas vivenciadas pelos cientistas lombrosia-nos e as diferentes correntes que discutiam o problema, sob aperspectiva da craniometria e da frenologia. No inicio de mes dejulho de 1889, os parisienses participavam, junto com dezenas dedelegacóes estrangeiras, de um encontro comemorativo do cente-nario da Revolucao Francesa. Todas as sumidades europeias emmateria de medicina legał, antropologia criminal, bem como mui-tos alienistas, estavam presentes. Alexandre Lacassagne, da esco-la de Lyon, o antropólogo Topinard, o yienense Benedikt, o soció-logo e jurista Ferri, assim como o principal nome do encontro:Cesare Lombroso. A delegaęao de sabios visitava o pavilhao dasciencias antropológicas quando o mestre de Turim estanca diantedo cranio de Charlotte Corday. Lombroso toma o cranio do "anjodo crime" e passa a dissertar sobre suas caracteristicas anatomicas:"este cranio e muito rico em anomalias. Ele e platicefalo, caracte-ristica mais rara nas mulheres que nos homens. Tem uma apófisejugular muito proeminente, uma capacidade media de 1.360 gra-mas em lugar de l .337 gramas, que e a media, uma saliencia tem-poral muito acentuada, uma cavidade orbital enorme e maior a di-reita que a esquerda. Tem, enfim, este cranio anormal, uma fossetaoccipital. Trata-se de anomalias patológicas e nao de anomaliasindividuais. Eu nao penso assim, objetou o antropólogo Topinard,trata-se de um belo cranio. Ele e regular, harmónico, tendo todasas delicadezas e as curvas um pouco fracas, mas corretas, dos cra-nios femininos. E pequeno, com uma boa capacidade media e umbelo angulo facial. O vienense Benedikt interveio como mediador:E verdade que esse cranio apresenta maxilar de tamanho exagera-

(84) DARMON, Pierre. Op. cit. p. 283.

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do e muitas outras anomalias. Mas essas anomalias podem trans-mitir-se por hereditariedade, tendo perdido sua significagao deoutrora".85 A discussao entre os cientistas ganhou corpo após ocolóquio. Topinard escreve um artigo intitulado Ensaios de cranio-metria a propósito do cranio de Charlotte Corday, publicado em1890. Tres meses mais tarde Benedikt responde ao artigo do antro-pólogo frances com seu Estudo do cranio de Charlotte Corday. Em1892, Lombroso redargiiiu aos polemistas com um novo estudo dotema em seu livro As novas aplicaęoes de antropologia criminal.A polemica esquentara. O que ninguem sabia e que (cerca de cincoanos depois) se descobrira que, por um grave engano, tal pegaanatomica, que havia suscitado tantos argumentos e na qual Lom-broso, pego na armadilha de suas próprias ideias, vira o arquetipodo cranio criminalóide, nao era o cranio da chamada "virgem nor-manda". O cranio havia sido trocado. A polemica criada com basena falsa reliquia, por si só, j a ilustr ava a ambigiiidade do pensamentopositivista.86

Tambem curiosas eram as classificacoes cerebrais conformeseu peso. A ideia dominantę era relacionar a inteligencia ao pesodo encefalo. As grandes inteligencias da epoca tinham, suposta-mente, cerebro mais pesado que aqueles seres involuidos, dentreos quais estavam os delinquentes e as mulheres. O Prof. Mathiega,de Praga, chegou a estabelecer uma interessante escala desses pe-sos, relacionando-os a categoria socioprofissional: o cerebro de umtrabalhador agricola pesava, em media, 1.400 gramas; o de umoperario artifice, 1.433;odeumzeladordepredio, 1.436;odeummecanico, 1.450; de um homem de negócios, de um funcionariopublico e de um fotógrafo, l .468; de um medico, l .472; e, por firn,de um professor, 1.500.87 Tal classificagao nao foi por ninguemcontestada. Sabia-se que isso era uma verdade tao absoluta quanto

(85) Idem, ibidem, p. 13-14(86) Idem. p. 15-16.(87) Idem. p. 31.

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a deficiencia intelectual feminina decorrer do menor peso de seuencefalo (1.275 gramas contra os 1.400 gramas dos cranios mas-culinos). Morto Lombroso, em 18.10.1909, criou-se urna certaansiedade ąuanto ao peso cerebral daąuele que concebera as maiscriativas "teorias cientfficas" que deram ensejo ao positMsmo. Seucerebro, após a necropsia, constatou-se ter urn peso bastante me-diocre: 1.308 gramas (muito mais próximo de cerebro femininodo que masculino!! !).88

Arecepcao das teorias cientfficas deterministas produziu trans-formac5es em varias esferas do conhecimento — nao só no direito(e mais especificamente no direito penal) -, nao podendo deixarde ser mencionada a esfera da literatura.89 Nas obras literarias flo-resceram muitos exemplos das transformaęoes trazidas pelo pen-samento determinista, representado na criminologia pela escolapositivista italiana. Tal qual os positivistas nutriam ódio visceralpelos classicos, os literatos da vertente realista e sua visao maisextremada, os naturalistas, nutriam antipatia feroz contra o roman-tismo. A sociedade idealizada pelos classicos coincide com o pen-samento sublimado dos romanticos. Da mesma forma, a critica"cientifica" dos positivistas reflete-se tambem na visao "darwinia-namente" superior dos deterministas realistas e naturalistas .90Nun-ca e demais ressaltar que algumas das tendencias mais vivas daestetica moderna estao empenhadas em estudar como a obra de arteplasma o meio, cria o seu publico e as suas vias de penetraęao. Ou,

DARMON, Pierre. Op. cit. p. 39.Nao se pode deixar de mencionar a assertiva de Jules Michelet ąuan-do ressaltava: "Ai daąuele que tenta isolar um ramo do saber de ou-tro. (...) Toda ciencia e una: linguagem, literatura e historia, fisica,matematica e filosofia; assuntos que parecem os mais distantes umdo outro sao na realidade interligados; ou melhor, todos formam umunico sistema". In: WILSON, Edmund. Rumo a estaęao Finlandia.p. 11.SCHWARCZ, Lilia Moritz. Op. cit. p. 151.(90)

NASCIMENTO DA CRIMINOLOGIA l /

no dizer de Antonio Candido: "Para o sociólogo moderno, ambasas tendencias tiveram a virtude de mostrar que a arte e social I K K ;dois sentidos: depende da aęao de fatores do meio, que se exprimem na obra em graus diversos de sublimacao; e produz sobre osindividuos um efeito pratico, modificando a sua conduta e con-cepgao do mundo, ou refor9ando neles o sentimento dos yaloressociais. Isto decorre da própria natureza da obra e independe dograu de consciencia que possam ter a respeito os artistas e os re-ceptores de arte".91 A concepcao vigente antes da escola positivaitaliana, representada pelo pensamento da escola classica, "coin-cide" com o papel desempenhado pelo romantismo em nossa for-macao histórica, em oposięao ao pensamento realista/naturalista.O pensamento nacionalista de nossa formac. ao cultural-literaria foiassociado a existencia de urna literatura indigena, autenticamentenossa, que, a nao ter sido sufocada pelo colonizador, teria desem-penhado o papel formador que coube a portuguesa. Nao se podedeixar de lembrar que urna das fases do romantismo brasileiro foia da corrente "indianista", seguramente influenciada pelo mito dobom selvagem de Rousseau. "Dai, a concepcao passou a criticanaturalista, e dęła aos nossos dias, levando a conceber a literaturacomo processo retilineo de abrasileiramento, por descoberta darealidade da terra ou recuperac. ao de urna posicao idealmente pre-portuguesa, quando nao antiportuguesa. Resultaria urna especie dcespectrograma em que a mesma cór fosse passando de tonalidadesesmaecidas para as mais densamente carregadas, ate o nacionalis-mo triunfal dos indianistas romanticos."92 Vejam-se, a propósilo,alguns destaques literarios de interesse para a abordagem penal.

A tematica criminal aparece idealizada no romantismo i i u l i: inista. A descricao que Jose de Alencar faz de "Iracema", ao; i i i 1 1 •• i iMartim, e paradigmatica. Iracema, a virgem dos labios t Ir 11 n l i

(91) CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. p. l l ) .(92) Idem, ibidem, p. 83.

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nha os cabelos mais negros que a asa da grauna e o sorriso maisdoce que o favo da jati. Ao avistar um guerreiro estranho, ela o ata-ca: "Foi rapido, como o olhar, o gęsto de Iracema. A flecha embe-bida no arco partiu. Gotas de sangue borbulham na face do desco-nhecido. De primeiro impeto, a mao lesta caiu sobre a cruz da es-pada; mas logo sorriu. O moco guerreiro aprendeu na religiao desua mae, onde a mulher e simbolo de ternura e amor. Sofreu maisd'alma que da ferida. O sentimento que ele pos nos olhos e no ros-to, nao sei eu. Porem a virgem lanęou de si o arco e a uiracaba, ecorreu para o guerreiro, sentida de magoa que causara. A mao querapida ferira, estancou mais rapida e compassiva o sangue que go-tejava. Depois Iracema quebrou a flecha homicida".93 Do pequenotrecho citado extrai- se, com clareza, a maneira mais elevada do f ato.O conjunto dos fatores morais, esteticos, eticos e politicos e desta-cado conforme a aspiragao do ato. O ato livre de atacar foi estanca-do com o sangue que gotejava. Martim, por sua vez, teve o instintode atacar ao "deixar a mao lesta cair sobre a espada", mas imedia-tamente dominou seu instinto pela vontade, cerne do livre-arbitrio.Fe-lo com um simples manifestar de um sorriso. Aqui, o homemtern o comando de seus atos. Mesmo os "selvagens" sao bons. Naoha diferenęa atavica entre as geracoes. Assim como e o livre-arbi-trio que detem o comando das agoes humanas.

Machado de Assis, um dos maiores nomes da literatura nacio-nal, nao deixa de tocar, em muitos de seus livros, a questao da cri-minalidade. Em um capitulo de poucas palavras, intitulado Pro-verbio errado, em urna das muitas aparentes digressóes que faz nocurso da estória, assim ele discorre em seu Esau e Jacó, livro querelata as semelhangas e dessemelhangas entre gemeos identicos:"Pessoa a quem li confidencialmente o capitulo passado, escreve-me dizendo que a causa de tudo foi a cabocla do Castelo. Sem assuas predięoes grandiosas, a esmola de Natividade seria minima

(93) Iracema. p. 54-55.

NASCIMENTO DA CRIMINOLOGIA 119

ou nenhuma, e o gęsto do corredor nao se daria por falta de nota. 'Aocasiao faz o ladrao', conclui o meu correspondente. Nao concluimai. Ha todayia alguma injustica ou esquecimento porque as ra-zoes do gęsto do corredor foram todas pias. Alem disso, o prover-bio pode estar errado. Urna das afirmacoes de Aires, que tambemgozava de estudar adagios, e que esse nao estava certo. -Nao e aocasiao que faz o ladrao, dizia ele a alguem; o proverbio esta erra-do. A forma exata deve ser esta: 'A ocasiao faz o furto; o ladraonasce feito'".94 Aqui encontra-se a polemica central da luta dasescolas entre classicos e positivistas: o ato delituoso e algo quedecorre do livre-arbitrio, pensamento fundado no racionalismoburgues, ou e ele "determinado" por circunstancias que escapamaos seus ditames racionais? Nos somos nos e nossas circunstancias(para lembrar Ortega Y Gasset) ou sao as circunstancias que fazemde nos o que somos? O "ladrao" de Machado de Assis e um crimi-noso nato ou sera feito conforme a ocasiao? Note-se que, quando oadagio e citado pela primeira vez, afirma-se que a conclusao nao ema, ainda que haja alguma injustięa ou esquecimento. A tematicarealista ja introduz a polemica influenciada pelo pensamentodarwiniano e que repercutiu na escola positivista. No entanto o fazcomo urna especie de possibilidade e nao de forma acabada, defi-nitiva; algo que só ocorrera com a introducao radical do pensamentoliterario naturalista.95

As influencias deterministas na corrente literaria naturalistasao inconfundiveis.AlufsioAzevedo, com urna linguagemcanden-te, em sua obra O cortięo, mostraya as transformaęoes de um per-sonagem portugues pela influencia do meio social e o seu abrasi-leiramento. "Passaram-se semanas. Jerónimo tomava agora, todasas manhas, urna xicara de cafe bem grosso, a moda da Ritinha etragava dois dedos de parati 'prą cortar a friagem'. Urna transfor

(94) Esau e Jacó. p. 149.(95) Vołtar-se-aaMachadodeAssis,

responsabilidades pessoais em O alienista.

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magao, lenta e profunda, operava-se nele, dia a dia, hora a hora,reviscerando-lhe o corpo e alando-lhe os sentidos, num trabalhomisterioso e surdo de crisalida. A sua energia afrouxava lentamen-te: fazia-se contemplatiyo e amoroso. A yida americana, a nature-za do Brasil patenteavam-lhe agora aspectos imprevistos e seduto-res que o comoviam; esquecia-se dos seus primitivos sonhos deambigao, para idealizar felicidades novas, picantes e yiolentas;tornava-se liberał, imprevidente e franco, mais amigo de gastar quede guardar; adquiria desejos, tomava gosto aos prazeres e volvia-se preguigoso, resignando-se, vencido, as imposigoes do soi e docalor, muralha de fogo com que o espirito eternamente revoltadodo ultimo tambor entrincheirou a patria contra os conquistadoresaventureiros."96 Paginas adiante, na mesma linguagem direta, osyalores raciais, exógenos, afloram de maneira clara: "Amara-o aprincipio por afinidade de temperamento, pela irresistivel cone-xao do instinto luxurioso e canalha que predominava em ambos,depois continuou a estar com ele por habito, por urna especie de vi-cio que amaldigoamos sem poder larga-lo; mas desde que Jeronimopropendeu para ela, fascinando-a com a sua tranqiiila seriedade deanimal bom e forte, o sangue da mestiga reclamou os seus direitosde apuragao, e Rita preferiu no europeu o macho de raca superior.O Cavouqueiro, pelo seu lado, cedendo as imposigoes mesológicas,enfarava a esposa, sua congenere, e queria a mulata, porque a mu-lata era o prazer, era a yolupia, era o fruto dourado e acre destessertoes americanos, onde a alma de Jeronimo aprendeu lascMasde macaco e onde seu corpo porejou o cheiro sensual dos bodes".97

Os tons carregados de Aluisio Azevedo mostram bem os aspectosexógenos e endógenos da transformagao do portugues. De um lado,"a vida americana e a natureza do Brasil", e, de outro, "o sangue damestiga", daąuela "que prefere o macho de raga superior" a fazercom que o branco "aprenda as lascMas de macaco", em verdadei-

<96> Ocortifo.p. 113-114.(97) Idem. p. 204.

ra regressao atavica, ate as origens. Do mi to do bom selvagem aconstatagao de que nada ha de bom no primitivo. Do livre-arbitrioao determinismo biológico e social. Tudo nao passa de urna consta-tagao segundo a qual o ser humano era visto de maneira bastantediversapelas distintas abordagens cientificas, tanto quanto literarias.

Em O alienista, Machado de Assis narra com aguda ironia a"medicalizagao" dos fenómenos juridicos, por meio do persona-gem do renomado cientista Simao Bacamarte. Ele inicia mandan-do a sua Casa Verde, nome dado ao hospicio, toda a populagao dacidade. No finał, ele próprio acaba por se recolher a instituigao quecriou. "Ao cabo de cinco meses estavam alojadas umas dezoitopessoas (na Casa Yerde); mas Simao Bacamarte nao afrouxava; iade rua em rua, de casa em casa, espreitando, interrogando, estu-dando; e quando colhia um enfermo, levava-o com a mesma ale-gria com que outrora os arrebanhava as duzias. Essa mesma des-proporgao confirmava a teoria nova; achara-se enfim a verdadeirapatologia cerebral. Um dia conseguiu meter na Casa Yerde o juizde fora; mas procedia com tanto escrupulo, que o nao fez senaodepois de estudar minuciosamente todos os seus atos e interrogaros principais da vila. Mais de urna vez esteve prestes a recolherpessoas perfeitamente desequilibradas; foi o que se deu com umadvogado, em que reconheceu um tal conjunto de qualidades mo-rais e mentais que era perigoso deixa-lo na rua. Mandou prende-lo(...)".98 "Era decisivo. Simao Bacamarte curvou acabegajuntamentealegre e triste, e ainda mais alegre do que triste. Ato continuo, re-colheu-se a Casa Yerde. Em vao a mulher e os amigos Ihe disseramque ficasse, que estava perfeitamente sao e equilibrado: nem rogosnem sugestoes nem lagrimas o detiveram um só instante. -A ques-tao e cientifica - dizia ele -; trata-se de urna doutrina nova, cujoprimeiro exemplo sou eu. Reuno em mim mesmo a teoria r a pr;itica. (...)Fechada a porta da Casa Yerde, entregou-seaocstudoe ;i

(98) O alienista. p. 30.

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cura de si mesmo."99 Nesta obra, Machado de Assis mostrou comperspicacia a concorrencia sofrida pelos bachareis em direito, se-jam eles "advogados ou juizes de fora", pelo alienista, mais lucidorepresentante das ciencias biológicas. Sua importancia era tal quepodia determinar a internaęao do próprio juiz, de um advogado"com tantas ąualidades morais e mentais que era perigoso deixa-lo na rua" e, por fim, determinar a própria internacao, que ninguemo contestaria. A ciencia chegava ao apice com os positivistas.

O alienista foi escrito no ano de 1882. Estavamos sob a egidędo Código do Imperio. Ja com o Código Republicano de 1890, oestatuto repressivo passou a dizer que tais delinqiientes, penal-mente irresponsaveis, deveriam ser entregues as suas familias, ouinternados nos hospicios publicos se assim exigisse a segurancados cidadaos. O arbitrio em cada caso era uma atribuicao do juiz,ouvido o perito medico. Em 1903, um decreto (Dec. 1.132, de22.12.1903) tenta organizar a assistencia medico-legal a alienadosno Distrito Federal, o qual se pretendia modelo para a organizaęaodesses servicos nos diversos Estados da Uniao. Segundo tal decre-to, cada Estado alocaria recursos para a constru9ao dos manicó-mios judiciarios e, enquanto tais estabelecimentos nao fossem cons-truidos, deveriam ser utilizados anexos especiais nos asilos publi-cos. No Rio de Janeiro, entao Capital Federal, foi criada a chama-da Secao Lombroso do Hospicio Nacional. Somente em 1920 e quefoi lancada a pedra fundamental da nova instituicao, oficialmenteinauguradaeml921 (Dec. 14.831, de 25.05.1921). Abria-se o pri-meiro manicomio judiciario do Brasil e da America Latina, sobdireęao de Heitor Pereira Castilho, que ja ha alguns anos chefiavaa Seęao Lombroso do Hospicio Nacional.100

A influencia da escola positivista foi marcante no Código de40, ainda que ele tivesse ideias muito caras aos classicos. A própria

<"> O alienista. p. 35.

<100) CARRARA, Sergio. Op. cit. p. 49.

NASCIMENTO DA CRIMINOLOGIA 123

Exposi9ao de Motivos explicava que o Código era o resultado dasideias mais importantes dos autores da epoca. Na Exposi§ao esta:"Ao inves de adotar uma politica extremada em materia penal, in-clina-se para uma politica de transacao ou de conciliac. ao. Nele, ospostulados classicos fazem causa comum com os principios daEscola Positiva. A responsabilidade penal continua a ter por fun-damento a responsabilidade morał, que pressupSe no autor do cri-me, contemporaneamente a agao ou omissao, a capacidade de en-tendimento e a liberdade de vontade, embora nem sempre a res-ponsabilidade penal fique adstrita a condigao de plenitude do esta-do de imputabilidade psiquica e ate mesmo prescinda de sua coe-xistencia com a agao ou omissao, desde que esta possa ser conside-rada libera in causa ou ad libertatem relata. A autonomia da von-tade humana e um postulado de ordem pratica, ao qual e indiferen-te a interminavel e insoluvel controversia metaffsica entre o deter-minismo e o livre-arbitrio". O sistema do duplo binario, adotadopelo legislador da epoca, permitia a aplicacao dapena (adotada combase no ideario classico) e da medida de seguranca (fmcada nasideias positivistas). Mais do que isso, ele presumia a periculosida-de em inumeros dispositivos tanto do Código Penal como da Leidas Contravencoes Penais. O art. 14 deste ultimo estatuto preve apresuncao de periculosidade, dentre outras hipóteses, para o con-denado por contravencao "cometida em estado de embriaguez peloalcool ou substancia de efeitos analogos, quando habitual a em-briaguez" (art. 14,1). Tambem permitia a presuncao para os con-denados por yadiagem ou mendicancia (art. 14, II). Tambem podeser considerado um resquicio do positiyismo a punięao por possenao justificada de instrumento de emprego usual na pratica de fur-to (art. 25 do mesmo diploma normativo): "Ter alguem em seupoder, depois de condenado por crime de furto ou roubo, ou en-quanto sujeito a liberdade yigiada ou quando conhecido como vadio ou mendigo, gazuas, chaves falsas ou alteradas ou msinimrntos empregados usualmente na pratica de crime de furio, c l r s(k-1 |i icnao prove destinaęao legitima". E eyidente que tal ai l i IM i sc iuscre

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l124 CRIMINOLOGIA

na lógica da existencia de presunęao de periculosidade (leia-sepresunęao de culpa) daąuele que, por ter cometido fato delituosoanterior, supoe-se que, dada certa circunstancia, voltara a praticarilicito. Tambem no Código Penal tais dispositivos se faziam pre-sentes. O art. 77 estabelecia que, "quando a periculosidade nao epresumida por lei, deve ser reconhecido perigoso o individuo, se asuapersonalidade e antecedentes, bem como os motivos e circuns-tancias do crime autorizem a suposicao de que venha ou torne adelinqiiir". E interessante notar que a periculosidade era presumi-da "se, a pratica do fato, revela torpeza, malvadez, cupidez ou in-sensibilidade morał" (art. 77, II) conceitos bastante porosos e dedificil definicao. Tambem eram presumidos perigosos os reinci-dentes em crime doloso e os envolvidos em quadrilha ou bando (art.78, IV e V). Ainda hoje, nao obstante a Reforma Penal de 84, quebaniu o sistema de duplo binario, muitos aspectos do positivismopermaneceram, seja da interpretacjo doutrinaria, seja de julgadosdos nossos tribunais. O atual Código Penal, com a Reforma de 84,manteve a orientacao do Código anterior que adotava, no queconcerne a unificacao de penas (art. 71 do CP), a teoria puramenteobjetiva (Tópico 59 daExposicao deMotivos da Lei 7.209/84). Noentanto, a doutrina que disserta sobre o assunto continuou a fazercóro com parte da jurisprudencia, ao reafirmar os pensamentosposithdstas fundantes do sistema de duplo binario, ignorando queou se tem culpa, atributo da imputabilidade, ou se tem periculosi-dade, atributo da inimputabilidade. Veja-se, ainda que por curiosi-dade, o pensamento exposto por Yaldir Sznick, que destoa da pró-pria essencia de um direito penal da culpa, e que faz mencao a clas-sifica9ao elaborada por Ferri que contempla o criminoso habitual:"Reu habitual apresenta urna figura intermedia entre o reu ocasio-nal e por tendencia. E salienta (citando Grispigni) que 'o reu habi-tual nao comete delitos por efeito de situacoes externas (ambien-te), mas especialmente por causa da psique tornada diversa da ori-ginal (quase um delinqiiente endógeno), levando alguns a confun-direm-no com o delinqiiente constitucional' (de Di Tullio) ou com

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o Zustandsverbrechers (de Exner). (...) A habitualidade tem comogenusproximum a periculosidade, ou seja, a probabilidade de queo delito venha a ocorrer. Como diferen9a (especifica), a periculo-sidade deflui de apenas um delito; a habitualidade requer repeti-ęao. A habitualidade e urna inclinaęao ao delito. A reincidencia estano direito retributivo, ao passo que a habitualidade tem mais fun-9ao preventiva. A periculosidade esta baseada na probabilidade.Provavel e o que, dentro da possibilidade, esta em vias de traduzir-se em ato".101 Tais categorias (criminoso habitual/crime continua-do/periculosidade) sao recorrentes na doutrina: "Fundamentando-se no criterio da menor periculosidade, da benignidade ou da utili-dade pratica, a razao de ser do instituto do crime continuado nao secoaduna com a aplicaęao do beneficio da exasperaęao da pena paraaquele agente mais perigoso, que faz do crime profissao e vivedeliberadamente a margem da lei. A habitualidade e, portanto, di-ferente da continuagao. A culpabilidade na habitualidade e maisintensa do que na continuaęao, nao podendo, portanto, ter trata-mento identico.102 De tudo o que aqui se disse pode se notar que oconceito de periculosidade, que tecnicamente empregado só po-deria, no sistema vicariante, ser aplicavel ao cometimento de fatotipico por agente inimputavel, acaba por ser utilizado como o lei-go emprega a frase: perigoso e o imputavel que pratica muitos cri-mes ou crimes muito graves! A melhor doutrina sobre o tema, emum dos mais profundos estudos sobre o assunto, nao deixou dereconhecer tal aspecto: "O fato do agente haver cometido um grandęnumero de outros delitos, por si apenas, nao afasta a possibilidadede alguns deles terem sido continuados e, portanto, reclamarempena unificada. Assim, e gravemente inexato dizer que a continui-dade delitiva nao se conforma a habitualidade ou ao profissiona-lismo criminoso, porque nao estamos diante de um 'beneficio', urna

(101) SZNICK, Yaldir. Delito habitual. p. 36-37.(102) BEZE, Patricia Mothe Glioche. Concurso formal e ciiinc conlinnu

do. p. 155.

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'graca' jurisdicional. Crimes repetidos, naąuela acepęao que sepreserva, sao crimes que se reproduziram por si próprios, nao por-ąue elencados por um nexo especifico, mas porąue o agente os re-produziu sem nexo algum. Portanto, crimes repetidos podem serapenas dois, ou muitos, o que e indiferente para a constru9ao dateoria, de nada importando a habitualidade ou o profissionalismotao invocados pela jurisprudencia".103 Anote-se, a propósito, que orecorte exterior ao tema, visualizado pelo numero de delitos prati-cados, supostamente indicativos da "habitualidade" criminosa, naonos permite alcancar a verdadeira essencia das coisas. Pode havera hipótese, que nao e incomum, de um autor que praticou urna cen-tena de delitos, sendo condenado, no entanto, em apenas dois. Urnaleitura exterior ao fato indicara nao ter ele "habitualidade" crimi-nosa, enquanto alguem, condenado em tres processos, os unicosefetivamente por ele cometidos, podera ser ąualificado como um"criminoso habitual", em classificacao devida a Ferri. Ha julga-dos dos Tribunais que, ainda hoje, após a Reforma Penal de 84, queinstituiu o sistema vicariante, insistem explicitamente nessa clas-sificacao, utilizando a "temibilidade" de Garofalo e os "crimino-sos habituais" de Ferri; e nao sao poucos.104

(los) MARTINS, Sergio Mazina. Unificaęao de penas pela continuidadedelitiva. Revista Bmsileira de Ciencias Criminais, vol. 18, p. 259.

do4) «A habitualidade criminosa somente tem influencia, em tema de uni-ficacao de penas, ąuando se observa, pela temibilidade do delinąiiente,pela extensao total das penas que se considerou, separadamente, ade-ąuada, que a reprimenda unificada seria inutil a reprovacao e preven-cao dos crimes" (rei. Ralpho Waldo, JUTACrim 86/147); no mesmosentido o aresto do STF: "As caracteristicas reveladas pelo modo deacao do paciente na perpetra9ao dos seis crimes de roubo ąualifica-do revelam que houve mera reiteracao no crime, e nao continuidadedelitiva, conyergindo para a conducao de que o paciente adotou ocrime como meio de vida. Firmou-se jurisprudencia do STF no sen-tido da descaracterizacao do crime continuado quando, independen-temente da homogeneidade das circunstancias objetivas, a naturezados fatos e os antecedentes do agente identificam reiteracao crimi-

NASCIMENTO DA CRIMINOLOGIA 127

2.5 Notas conclusivas

Da polemica entre classicos e positivislas, muitas lięoes po-dem ser tiradas. Na Europa, aexacerbacao da cliscussao acabou porcausar uma especie de autofagia juridica. Todos os aulorcs viam,no adotar uma das posturas, uma necessidade imperiosa de sobre-vivencia intelectual. Ou se era classico, ou positivista. () maximoquesepermitiaeraterumaopiniaodistintadasditasescolas,criaiidouma terceira, cujo pensamento nao deixava de ser o resultado datornada de postura ora coincidente com uma delas, ora com outra.As tentativas nao eram de superacao daquelas perspectiyas, massim de posicionamento em face daqueles pensamentos.

Para a criminologia, sem qualquer duvida, nao obstante asconsideracoes de natureza penal dos classicos terem sido impor-tantes, sao os positivistas que trazem as principais contribuicóes.Primeiro porque construfram seu pensamento em um momento deeclosao de varias ciencias, em que se afirmaram, dentre outras, aantropologia, a sociologia, a fisiologia, a psiquiatria criminal. Otransito para essas diferentes formas de conhecimento permitiu acriacao da criminologia como uma ciencia multidisciplinar quecongrega diversas formas de conhecimento. Tal perspectiva fezsuperar o pensamento anterior, juridico-centrado, que concebia(como, de resto, alguns ainda hoje o fazem) o direito como o gran-dę planeta com seus peąuenos satelites a gravitarem em seu redor.Hoje, e a partir do pensamento positMsta, e em especial do livroCriminologia de Garofalo, que marcou a reuniao desses conheci-mentos previos, tem-se uma especie de equilibrio integrador entreaqueles conhecimentos. Nesta polidisciplinaridade sobre o feno-meno criminal esta o germe da complexa e sempre atual nature/a

onosa indicativa e delinqiiencia habitual ou profissional" (Hf' 71 ,('S(),rei. Ilmar Galvao, DJU 03.05.1996, p. 13.899). Op. cit. p. :v.o ,'(. lHa ainda, no STJdecisoes no mesmo sentido (REsp 54. S3 l '), i v l . I ,ui/Yicente Cernicchiaro, dentre outras).

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interdisciplinar da criminologia.105 Sem ąualąuer duvida, a con-tribuigao metodológica foi, pois, o grandę avan9o trazido por essaperspectiva de pensamento, para esta nova ciencia, posto que au-torizou intelectualmente a superac. ao da visao exclusivamente de-dutiva, de raciocmio lógico-abstrato, para a adoęao de urn posicio-namento indutivo, empfrico, de constatagao da realidade para a ob-tencao de sua efetiva explicaęao. Assim, tem-se aąuilo ąue RobertaLyra e Joao Marcelo de Araujo Jr., com bastante propriedade, deno-minavam de unidade de metodo com pluralidade de meios.106 Ade-mais, foi o positivismo italiano, principalmente, que mudou o focodo delito para o estudo mais aprofundado do delinąiiente, o ąuepor si só ja constituiria urna relevante contribuicao para a ciencia.

No entanto, se boas contribuicoes foram trazidas pelos auto-res positivistas, tambem nao se pode deixar de reconhecer nelesvisoes distorcidas da sociedade e da criminalidade, que trouxeramconseąiiencias deleterias significativas. A patologizaęao do feno-meno delituoso, traduzida pela assertiva segundo a qual todo cri-minoso tinha um vies patológico e nao podia ser curado, demons-trou-se um cabal engano. Outro erro grave, especialmente de Lom-broso, foi subvalorizar o entorno social como mero fator desenca-deante da criminalidade. Os fatores circundantes nao se constituiamseąuer em vetores criminais. Mesmo com as contribuicóes poste-riores de Ferri e Garofalo, tal pensamento nao foi de todo supera-do. "Lombroso foi incompleto nas suas hwestigacoes, apaixona-do e ate inescrupuloso, o que constituiu o melhor trunfo para osseus detratores; suas conclusóes foram prematuras, baseadas emsimples premissas, que nao foram suficientemente estudadas. Par-tia-se de urna nwestigaęao incompleta e chegava a conclusóes pre-maturas, a sua doutrina nao podia ser boa... E certo que ha delin-qiientes que apontam os traęos lombrosianos; mas tambem encon-tramos esses tracos em homens inteligentes, em debeis mentais nao

<105) ELBERT, Carlos Alberto. Manual..., cit., p. 47.

(106) Criminologia..., cit., p. 66 e ss.

delinqiientes etc., como tambem ha criminosos que nao apresen-tam tais tracos."107 Nao e diffcil encontrar em qualquer individuoalguns desses tracos, sem que isso tenha uma explicacao atavica eancestral, nem muito menos criminógena. Pelo contrario, e umaevidencia que nem todos os delinquentes apresentam tais anoma-lias e, de outro lado, nem os nao delinqiientes estao livres delas.Nao existe, pois, o "tipo delinqiiente", como de resto nao ha crimi-nosos "habituais", ou "loucos" (naacepcaolombrosianadotermo),ou "por tendencia" etc. Por outro lado, a ideologia do tratamentoproposta pelos positivistas, que produziu uma inversao do pensa-mento classico, em vez do recuo do poder sancionatório na socie-dade, significou, em nome da defesa da comunidade, uma expan-sao do sistema punitivo, algo que chegou a ser considerado umaideia natural, em face da inexistencia de alternativas curativas paracertos delinquentes. Este entendimento deu fundamento as dou-trinas daprevencao especial nas suas mais extremas manifestacoes.Deste mito cientifico da possibilidade do alcance explicativo dosfatores desencadeantes da criminalidade e que nasce a crise deparadigmas, a que aludem alguns autores por nao yisualizaremperspectivas de prevencao para grandę parte do fenómeno crimi-nal; especialmente quanto aquela parte do fenómeno criminal quese traduz na critica do "feio", do "mau", do "anormal", do "lou-co", do "primitivo", do "selvagem", ainda hoje voz corrente nopensamento juridico nacional em muitas questóes do direito cri-minal. Um ultimo erro metodológico dos positivistas e precisodestacar. Os sujeitos que eram observados clinicamente para for-maęao da teoria das causas da criminalidade tratava-se de indivf-duos cafdos na engrenagem judiciaria da justięa penal, sobretudoos clientes dos carceres e manicomios judiciarios, individuos jćiselecionados pelo complexo sistema de filtros sucessivos que e osistema penal.108 Assim, os mecanismos seletivos ja tinham atua-

(107) SENDEREY, Israel Drapkin. Op. cit. p. 37-38.

cios) BARATTA, Alessandro. Criminologia critica e crilicti </<> ./ '" ' '/<»penal: introducao a sociologia do direito penal. p. 40.

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do, exercendo seu papel de selegao da clientela que viria a ser iden-tificada com algumas caracteristicas pessoais, quando estas ja fo-ram determinantes para a sele9ao pelo sistema punitivo. Mas piórdo que isto e acreditar, ainda hoje, que tais parametros criminoló-gicos podem ser referencia dogmatica para atuacao perante os tri-bunais, ou mesmo para o desenvolvimento das ideias doutrinariasmais recentes. E essa a superaęao que ainda esta a se exigir dosoperadores do direito.

PARTE SEGUNDA

AS ESCOLAS SOCIOLÓGICASDOCRIME