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Paulo Freire - Política E Educação

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Page 1: Paulo Freire - Política E Educação
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POLÍ TI CA E EDUCAÇÃO

Page 3: Paulo Freire - Política E Educação

Coleção QUESTÕES DA NOSSA ÉPOCA

Volume 23

Dados I nternacionais de Catalogação na Publicação ( CI P) ( Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Í ndices para catálogo sistemático:

1. Educação e polít ica 379 2. Política e educação 379

Freire, Paulo, 1921 – 1997

Política e educação : ensaios / Paulo Freire. – 5. ed - São Paulo, Cortez, 2001. (Coleção Questões de Nossa Época ; v.23)

ISBN 85-249-0506-9 1. Educação - Brasil 2. Política e educação I. Título. II.Série

93-2593 CDD – 379

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PAULO FREI RE

POLÍTICA E EDUCAÇÃO

5ª Edição

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POLÍTICA E EDUCAÇÃO: Ensaios Paulo Freire Capa: Carlos Clémen Revisão: Maria Bacelar, Marise S. Leal Composição: Dany Editora Ltda. Coordenação Editorial: Danilo A. Q. Morales Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem autorização expressa do espólio do autor e do editor. 1993 by Paulo Freire Direitos para esta edição CORTEZ EDITORA Rua Bartira, 317 – Perdizes 05009-00 – São Paulo – SP Tel.: (11) 3864-0111 Fax: (11) 3864-4290 Email: [email protected] www.cortezeditora.com.br Impresso no Brasil – abril de 2001

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A Anita, minha mulher

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Sumário

PRI MEI RAS PALAVRAS .......................................................................................... 8 EDUCAÇÃO P ERMANENTE E AS CI DADES EDUCATI VAS ............................... 1 1 EDUCAÇÃO DE ADULTOS, HOJE. Algum as Reflexões .................................... 1 6 ANOTAÇÕES SOBRE UNI DADE NA DI VERSI DADE .......................................... 1 8 EDUCAÇÃO E QUALI DADE ................................ ................................ ................... 2 1 ALFABETI ZAÇÃO COMO ELEMENTO DE FORMAÇÃO DA CI DADANI A ........... 2 5 DO DI REI TO DE CRI TI CAR – DO DEVER DE NÃO MENTI R, AO CRI TI CAR .. 3 1 EDUCAÇÃO E PARTI CI PAÇÃO COMUNI TÁRI A ................................................. 3 4 NI NGUÉM NASCE FEI TO: É EXPERI MENTANDO -NOS NO MUNDO QUE NÓS NOS FAZEMOS ....................................................................................................... 4 0 EDUCAÇÃO E RESPONSABI LI DADE ................................................................... 4 4 ESCOLA PÚBLI CA E EDUCAÇÃO POPULAR ....................................................... 4 7 UNI VERSI DADE CATÓLI CA – Reflexões em torno de suas tarefas ............. 5 3

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PRI MEI RAS PALAVRAS Os textos que com põem este pequeno volum e, com exceção de apenas um , “Alfabet ização com o elemento de formação da cidadania” , foram escritos no decorrer de 1992 e discut idos em reuniões realizadas ora no Brasil, ora fora dele. Há um a nota que os at ravessa a todos: a reflexão polít ico- pedagógica. É esta nota que, de cer ta maneira, os unifica ou lhes dá equilíbr io enquanto conjunto de textos. Gostar ia de tecer uns poucos com entár ios nesta espécie de conversa direta com os seus prováveis leitores em torno de dois ou mais pontos de reflexão polít ico- pedagógica a eles sem pre presente. O prim eiro a sublinhar é a posição em que m e acho, cr it icam ente em paz com m inha opção polít ica, em interação com m inha prát ica pedagógica. Posição não dogm át ica, m as serena, firm e, de quem se encont ra em perm anente estado de busca, aberto à m udança, na m edida mesma em que, de há m uito, deixou de estar dem asiado certo de suas certezas. Quanto m ais certo de que estou certo m e sinto convencido, tanto m ais corro o r isco de dogm at izar m inha postura, de congelar- m e nela, de fechar- me sectariamente no ciclo de m inha verdade. I sto não significa que o correto seja “peram bular” irresponsavelm ente, receoso de afirm ar- me. Significa reconhecer o caráter histór ico de m inha certeza. A histor icidade do conhecim ento, a sua natureza de processo em perm anente devir . Significa reconhecer o conhecim ento com o um a produção social, que resulta da ação e reflexão, da cur iosidade em constante movimento de procura. Curiosidade que term inou por se inscrever historicamente na natureza humana e cujos objetos se dão na Histór ia com o na prát ica histór ica se gestam e se aperfeiçoam os m étodos de aproximação aos objetos de que resulta a maior ou menor exat idão dos achados. Métodos sem os quais a cur iosidade, tornada epistem ológica, não ganhar ia eficácia. Mas, ao lado das certezas histór icas em torno das quais devo estar sempre aberto à espera da possibilidade de revê- ias, eu tenho certezas ontológicas tam bém . Certezas ontológicas, social e histor icam ente fundadas. Por isso é que a preocupação com a natureza hum ana se acha tão presente em m inhas reflexões. Com a natureza humana const ituindo- se na História mesma e não antes ou fora dela. E historicamente que o ser humano veio virando o que vem sendo: não apenas um ser finito, inconcluso, inserido num permanente movimento de busca, mas um ser consciente de sua f initude. Um ser que, vocacionado para ser m ais pode, histor icam ente, porém , perder seu endereço e, distorcendo sua vocação, desum anizar- se1 . A desumanização, por isso mesmo, não é vocação mas distorção da vocação para o ser mais. Por isso, digo, num dos textos deste volum e, que toda prát ica, pedagógica ou não, que t rabalhe cont ra este núcleo da natureza hum ana é im oral. Est a vocação para o ser m ais que não se realiza na inexistência de t er , na indigência, demanda liberdade, possibilidade de decisão, de escolha, de autonom ia. Para que os seres hum anos se movam no tempo e no espaço no cumprimento de sua vocação, na realização de seu dest ino, obviamente não no sent ido comum da palavra, como algo a que se está fadado, como sina inexorável, é preciso que se envolvam permanentemente no domínio polít ico, refazendo sempre as est ruturas sociais, econôm icas, em que se dão as relações de poder e se geram as ideologias. A vocação para o ser m ais, enquanto expressão da natureza hum ana fazendo- se na História, precisa de condições concretas sem as quais a vocação se distorce. Sem a luta polít ica, que é a luta pelo poder, essas condições necessárias não se cr iam . E sem as condições necessárias à liberdade, sem a qual o ser humano se imobiliza, é privilégio da minoria dom inante quando deve ser apanágio seu. Faz parte ainda e necessariam ente da natureza hum ana que tenham os nos tornado este corpo conscient e que estam os sendo. Este corpo em cuja prát ica com out ros corpos e cont ra out ros corpos, na exper iência social, se tornou capaz de produzir socialmente a linguagem, de mudar a qualidade da curiosidade que, tendo nascido com a vida, se aprimora e se aprofunda com a existência hum ana. Da cur iosidade ingênua que caracter izava a

1 . A este propósito ver Paulo Freire; a) Pedagogia do oprim ido; 1975; b) Pedagogia da esperança. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992.

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leitura pouco rigorosa do mundo à curio sidade exigente, metodizada com rigor, que procura achados com maior exat idão. O que significou mudar também a possibilidade de conhecer, de ir m ais além de um conhecim ento opinat ivo pela capacidade de apreender com r igor crescente a razão de ser do objeto da curiosidade. Um dos riscos que necessariamente correríamos ao ult rapassar o nível meramente opinat ivo de conhecer, com a m etodização r igorosa da cur iosidade, era a tentação de supervalor izar a ciência e menosprezar o senso comum. Era a tentação, que se concret izou no cient if icism o que, ao absolut izar de tal m aneira a força e o papel da ciência, term inou por quase m agicizá- la. É urgente, por isso mesmo, desm it ificar e desm ist ificar a ciência, quer dizer, pô- la no seu lugar devido, respeitá- la, portanto. O corpo consciente e cur ioso que estam os sendo se veio tornando capaz de com preender, de inteligir o m undo, de nele intervir técnica, ét ica, estét ica, cient íf ica e polit icam ente. Consciência e mundo não podem ser entendidos separadamente, dicotom izadamente, m as em suas relações cont raditór ias. Nem a consciência é a fazedora arbit rár ia do m undo, da objet iv idade, nem dele puro reflexo. A im portância do papel interferente da subjet iv idade na Histór ia coloca, de m odo especial, a im portância do papel da educação. Se os seres humanos fossem puramente determ inados e não seres “programados para aprender” 2 não haveria por que, na prát ica educat iva, apelarm os para a capa- cidade cr ít ica do educando. Não havia por que falar em educação para a decisão, para a libertação. Mas, por out ro lado, não havia tam bém por que pensar nos educadores e nas educadoras com o sujeitos. Não seriam sujeitos, nem educadores, nem educandos, com o não posso considerar Jim e Andra, m eu casal de cães pastores alemães, sujeitos da prát ica em que adest ram seus filhotes, nem a seus filhotes objetos daquela prát ica. Lhes falta a decisão, a faculdade de, em face de m odelos, rom per com um , optar por outro. A nossa experiência, que envolve condicionamentos mas não determ inismo, implica decisões, rupturas, opções, r iscos. Vem se fazendo na afirm ação, ora da autor idade do educador que, exacerbada, anula a liberdade do educando, caso em que este é quase objeto, ora na afirmação de ambos, respeitando- se em suas diferenças, caso em que são, um e out ro, sujeitos e objetos do processo, ora pela anulação da autoridade, o que implica um clima de irresponsabilidade. No primeiro caso, temos o autoritar ismo; no segundo, o ensaio democrát ico, no terceiro, o espontaneísm o licencioso. No fundo, conceitos – autor it ar ismo, ensaio democrát ico, espontaneísmo – que só fomos capazes de inventar porque, pr imeiro, somos seres programados, condicionados e não determ inados; segundo, porque, antes de inventá- los, experimentamos a prát ica abst rat izada por eles. Enquanto condicionados nos veio sendo possível reflet ir cr it icam ente sobre o própr io condicionamento e ir mais além dele, o que não seria possível no caso do determ inismo. O ser determ inado se acha fechado nos lim ites de sua determ inação. A prát ica polít ica que se fund a na com preensão m ecanicista da Histór ia, redutora do fut uro a algo inexorável, “ cast ra” as mulheres e os homens na sua capacidade de decidir, de optar, mas não tem força suficiente para mudar a natureza mesma da História. Cedo ou tarde, por isso mesmo, prevalece a com preensão da Histór ia com o possibilidade, em que não há lugar para as explicações m ecanicistas dos fatos nem tam pouco para projetos polít icos de esquerda que não apostam na capacidade cr ít ica das classes populares. Neste sent ido, aliás, as lid eranças progressistas que se deixam tentar pelas tát icas em ocionais e m íst icas por lhes parecerem mais adequadas às condições histór ico- sociais do contexto, term inam 2 François Jacob. Nous sommes programmés, mais pour apprendre, Le Courr ier de L’Unesco. Paris, Février, 1991.

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por reforçar o at raso ou a im ersão em que se acham as classes populares devido aos níveis de exploração e subm issão a que se acham t radicionalmente submet idas pela realidade favorável às classes dom inantes. Obviam ente que seu equívoco não está em respeitar seu estado de preponderantem ente im ersas na realidade, mas em não problemat izá- las. E assim que se impõe o reexame do papel da educação que, não sendo fazedora de tudo é um fator fundamental na reinvenção do mundo. Na pós- modernidade progressista, enquanto clima histórico pleno de ot im ismo crít ico, não há espaço para ot im ismos ingênuos nem para pessim ismos acabrunhadores. Com o processo de conhecim ento, form ação polít ica, m anifestação ét ica, procura da boniteza, capacitação cient íf ica e técnica, a educação é prát ica indispensável aos seres hum anos e deles específica na Histór ia com o m ovim ento, como luta. A História como possibilidade não prescinde da cont rovérsia, dos conflitos que, em si mesmos, já engendrariam a necessidade da educação. O que a pós- m odernidade progressista nos coloca é a com preensão realm ente dialét ica da confrontação e dos conflitos e não sua inteligência m ecanicista. Digo realm ente dialét ica porque m uitas vezes a prát ica assim cham ada é, de fato, puram ente m ecânica, de um a dialét ica domest icada. Em lugar da decretação de uma nova História sem classes sociais, sem ideologia , sem luta, sem utopia, e sem sonho, o que a cot idianidade mundial nega contundentemente, o que tem os a fazer é repor o ser hum ano que atua, que pensa, que fala, que sonha, que am a, que odeia, que cria e recria, que sabe e ignora, que se afirma e que se nega, que const rói e dest rói, que é tanto o que herda quanto o que adquire, no cent ro de nossas preocupações. Restaurar assim a significação profunda da radicalidade. A radicalidade de m eu ser, enquanto gente e enquanto m istério, não perm ite, porém, a inteligência de m im na est reiteza da singularidade de apenas um dos ângulos que só aparentemente me explica. Não é possível entender- m e apenas com o classe, ou como raça ou como sexo, mas, por out ro lado, m inha posição de classe, a cor de m inha pele e o sexo com que cheguei ao m undo não podem ser esquecidos na análise do que faço, do que penso, do que digo. Como não pode ser esquecida a experiência social de que part icipo, m inha formação, m inhas crenças, m inha cultura, m inha opção polít ica, m inha esperança. Me darei por sat isfeito se os textos que se seguem provocarem os leitores e leitoras no sent ido de um a com preensão crít ica da Histór ia e da educação.

Paulo Freire São Paulo, abril de 1993

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EDUCAÇÃO PERMANENTE E AS CI DADES EDUCATI VAS

Mais uma vez me ponho em frente de uma proposta temát ica envolvida numa frase, cuja inteligência espera por um discurso que, não sendo neut ro, dirá de com o, quem o faça, se posiciona em face do tem a fundam ental. Quer dizer, se posiciona em face da educação, em face do que o conceito sofre ao receber o at r ibuto perm anente que incide qualitat ivam ente sobre a com preensão do term o, em face da cidade que se alonga em educat iva. Em face, finalm ente, das relações ent re educação, enquanto processo perm anente e a v ida das cidades, en quanto contextos que não apenas acolhem a prát ica educat iva, com o prát ica social, m as tam bém se const ituem , at ravés de suas m últ iplas at ividades, em contextos educat ivos em si m esm as. O que quero dizer é que o discurso sobre o enunciado que, ao desvelá- la, dest r inça ou esm iúça a sua significação mais ínt ima, expressa ou explícita a compreensão do mundo, a opção polít ica, a posição pedagógica, a inteligência da vida na cidade, o sonho em torno desta vida, tudo isso grávida de preferências polít icas, ét icas, estét icas, urbaníst icas e ecológicas de quem o faz. Não há possibilidade de um discurso só sobre os diferentes aspectos do tem a. Um discurso que agrade, em term os absolutos, a gregos e t roianos. Em verdade, este não é um tem a neut ro cuja inteligência e cujas conseqüências prát icas sejam com uns a todas ou a todos os que dele falem . I sso não deve significar, porém , que as diferenças de opções que m arcam os dist intos discursos devam afastar do diálogo os sujeitos que pensam e sonham diversamente. Não há crescim ento dem ocrát ico fora da tolerância que, signif icando, substant ivam ente, a convivência ent re dessemelhantes, não lhes nega contudo o direito de brigar por seus sonhos. O importante é que a pura diferença não seja razão de ser decisiva para que se rompa ou nem sequer se inicie um diálogo at ravés do qual pensares diversos, sonhos opostos não possam concorrer para o crescim ento dos diferentes, para o acrescentam ento de saberes. Saberes do corpo inteiro dos dessemelhantes, saberes resultantes da aproximação m etódica, r igorosa, ao objeto da curiosidade epistem ológica dos sujeitos. Saberes de suas experiências feitos, saberes “m olhados” de sent im entos, de em oção, de m edos, de desejos. Enquanto certa m odernidade de direita e de esquerda, m ais para cient ificista do que para cient íf ica, tendia a fixar- se nos lim ites est reitos de sua verdade, negando a seu cont rár io qualquer possibilidade de acerto, a pós- modernidade, sobretudo progressista, rompendo as amarras do sectar ism o, se faz radical. É im possível, hoje, para o pensam ento pós- moderno radical, fechar- se em seus próprios muros e decretar a sua como a única verdade. Sem ser ant i- religioso, mas, de maneira nenhuma, dogmát ico, o pensamento pós- m oderno radical reage cont ra toda certeza dem asiado certa das certezas. Reage cont ra a “ dom est icação” do tem po, que t rans- forma o futuro num pré- dado, que j á se conhece – o futuro afinal com o algo inexorável, com o algo que será porque será, porque necessariam ente ocorrerá. Ao recusar a “dom est icação” do tem po, a pós- modernidade progressista não apenas reconhece a im portância do papel da subjet iv idade na histór ia, m as atua polít ico- pedagogicam ente no sent ido de fortalecer aquela importância. E o faz at ravés de programas em que a leitura crít ica do mundo se funda numa prát ica educat iva crescentem ente desocultadora de verdades. Verdades cuja ocultação interessa às classes dom inantes da sociedade. Me sinto, obviam ente, num a posição pós- moderna- m ente progressista e é com o tal que discut irei a educação perm anente e as cidades educat ivas. Numa primeira aproximação ao tema direi algo sobre educação, que se alongará à compreensão de sua prát ica enquanto necessariam ente perm anente. Em seguida, estudarei a sua relação com a cidade até surpreender esta como educadora também e não só como o contexto em que a educação se pode dar, formal e informalmente. Algumas reflexões primeiras em torno do ser humano me abrem o caminho para o entendimento da educação com o prát ica perm anente.

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Ressaltam os inicialm ente a sua condição de ser histór ico- social, experimentando cont inuamente a tensão de estar sendo para poder ser e de estar sendo não apenas o que herda m as tam bém o que adquire e não de forma mecânica. I sto significa ser o ser humano, enquanto histórico, um ser finito, lim itado, inconcluso, mas consciente de sua inconclusão1 . Por isso, um ser ininterruptamente em busca, naturalmente em processo. Um ser que, tendo por vocação a humanização, se confronta, no entanto, com o incessante desafio da desum anização, com o distorção daquela vocação2 . Por out ro lado, com o salienta François Jacob 3 , nós somos seres “programados mas para aprender” . Nesse sent ido, aprender e ensinar, já que um implica o outro sem que jamais um prescinda normalmente do outro, vieram, na história, tornando- se conotações ontológicas. Aprender e ensinar fazem parte da existência hum ana, histór ica e social, com o dela fazem parte a cr iação, a invenção, a linguagem , o am or, o ódio, o espanto, o m edo, o desejo, a at ração pelo r isco, a fé, a dúvida, a cur iosidade, a arte, a m agia, a ciência, a tecnologia. E ensinar e aprender cortando todas estas at iv idades hum anas. O impossível teria sido ser um ser assim , mas ao mesmo tempo não se achar buscando e sendo às vezes interditado de fazê- lo ou sendo às vezes est im ulado a fazê- lo. O impossív el seria, também, estar sendo um ser assim , em procura, sem que, na própria e necessária procura, não se t ivesse inserido no processo de refazer o mundo, de dizer o mundo, de conhecer, de ensinar o aprendido e de aprender o ensinado, refazendo o aprendido, melhorando o ensinar. Foi exatamente porque nos tornam os capazes de dizer o mundo, na medida em que o t ransformávamos, em que o reiventávamos, que term inamos por nos tornar ensinantes e aprendizes. Sujeitos de uma prát ica que se veio tornando polít ica, gnosiológica, estét ica e ét ica. Seria realmente impensável que um ser assim , “programado para aprender” , inacabado, mas consciente de seu inacabam ento, por isso m esm o em perm anente busca, indagador, curioso em torno de si e de si no e com o mundo e com os out ros; porque histór ico, preocupado sem pre com o am anhã, não se achasse, com o condição necessária para estar sendo, inser ido, ingênua ou cr it icam ente, num incessante processo de form ação. De form ação, de educação que precisam ente devido à invenção social da linguagem conceituai vai muito mais além do que o t reinamento que se realiza entre os outros animais. A educação é perm anente não porque certa linha ideológica ou certa posição polít ica ou certo interesse econôm ico o exijam . A educação é perm anente na razão, de um lado, da finitude do ser hum ano, de out ro, da consciência que ele tem de sua finitude. Mais ainda, pelo fato de, ao longo da histór ia, ter incorporado à sua natureza “não apenas saber que vivia mas saber que sabia e, assim , saber que podia saber mais. A educação e a formação permanente se fundam aí. Um a coisa é a “ form ação” que dão a seus filhotes os sabiás cujo canto e boniteza m e encantam , salt itantes, na folhagem verde das jabot icabeiras que tem os em frente à nossa biblioteca e out ra é o cuidado, o desvelo, a preocupação que t ranscende o inst into, com que os pais hum anos se dedicam ou não aos filhos. O ser “aberto” em que nos tornamos, a existência que in- ventam os, a linguagem que socialmente produzimos, a história que fazemos e que nos faz, a cultura, a cur iosidade, a indagação, a com plexidade da vida social, as incertezas, o r itm o dinâm ico de que a rot ina faz parte mas a que não o reduz, a consciência do mundo que tem neste um não eu e a de si como eu const it uindo- se na relação cont raditór ia com a objet ividade, o “ser programado para aprender” , condicionado mas não determ inado, a imaginação, os desejos, os medos, as fantasias, a at ração pelo m istér io, tudo isso nos insere, com o seres educáveis, no processo perm anente de busca de que falei. O que eu quero dizer é que a educação, com o form ação, com o processo de conhecimento, de ensino, de aprendizagem, se tornou, ao longo da aventura no mundo dos seres hum anos um a conotação de sua natureza, gestando- se na histór ia, com o a vocação para a humanização de que falo na Pedagogia do oprim ido e na Pedagogia da esperança, um reencont ro 1 . Ver: Paulo Freire, Pedagogia do oprim ido, 1975. 2 Ver: I dem, Pedagogia do opr im ido e pedagogia da esperança; um reencontro com a pedagogia do oprim ido. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992. 3 François Jacob, Le Courr ier de L'unesco, Février, 1991

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com a Pedagogia do opr im ido. Em out ras palavras e talvez reiteradamente, não é possível ser gente sem , desta ou daquela form a, se achar ent ranhado num a cer t a prát ica educat iva. E entranhado não em termos provisórios, mas em termos de vida inteira. O ser humano jamais pára de educar- se. Num a cer ta prát ica educat iva não necessar iam ente a de escolar ização, decer to bastante recente na histór ia, com o a entendem os. Daí que se possa observar facilm ente quão violenta é a polít ica da Cidade, como Estado, que interdita ou lim ita ou m inim iza o direito das gentes, rest r ingindo- lhes a cidadania ao negar educação para todos. Daí tam bém , o equívoco em que tombam grupos populares, sobretudo no Terceiro Mundo quando, no uso de seu direito m as, indo além dele, cr iando suas escolas, possibilitam às vezes que o Estado deixe de cumprir seu dever de oferecer educação de qualidade e em quant idade ao povo. Quer dizer, em face da omissão crim inosa do Estado, as com unidades populares cr iam suas escolas, instalam- nas com um mínimo de material necessário, cont ratam suas professoras quase sempre pouco cient ificamente form adas e conseguem que o Estado lhes repasse algum as verbas. A situação se torna côm oda para o Estado. Criando ou não suas escolas com unitár ias, os Movim entos Populares ter iam de cont inuar, de m elhorar, de enfat izar sua luta polít ica para pressionar o Estado no sent ido de cumprir o seu dever. Jamais deixá- la em sossego, jamais eximi - lo de sua tarefa pedagógica, j am ais perm it ir que suas classes dom inantes durmam em paz. Sua bandeira de luta, a dos Movimentos Populares, deve ser alçada noite e dia, dia e noite, em favor da escola, que sendo pública, deve ser dem ocrát ica, à altura da dem anda social que dela se fará e em busca sempre da melhoria de sua qualidade. Este é também um direito e um dever dos cidadãos do Primeiro Mundo: o de se baterem por uma escola mais democrát ica, menos elit ista, menos discrim inatória. Por uma escola em que as cr ianças do Terceiro Mundo do Primeiro não sejam t ratadas como gente de um mundo est ranho e dem asiado exót ico. Um a escola aberta, que supere preconceitos, que se faça um cent ro de alegr ia com o, por este sonho, se vem batendo este notável pensador francês, incansável lutador pela alegria na escola, que é Georges Snyders4 . Os conteúdos, os objet ivos, os m étodos, os processos, os inst rum entos tecnológicos a serviço da educação perm anente, estes sim , não apenas podem m as devem variar de espaço tem po a espaço tem po. A ontológica necessidade da educação, da form ação a que a Cidade, que se torna educat iva em função desta mesma necessidade, se obriga a responder, esta é universal. A forma como esta necessidade de saber, de aprender, de ensinar é atendida é que não é universal. A cur iosidade, a necessidade de saber são universais, repitam os, a resposta é histór ica, polít ico- ideológica, cultural. Por isso é que é im portante afirm ar que não basta reconhecer que a Cidade é educat iva, independentemente de nosso querer ou de nosso desejo. A Cidade se faz educat iva pela necessidade de educar, de aprender, de ensinar, de conhecer, de cr iar, de sonhar, de im aginar de que todos nós, mulheres e homens, impregnamos seus campos, suas montanhas, seus vales, seus r ios, impregnamos suas ruas, suas praças, suas fontes, suas casas, seus edifícios, deixando em tudo o selo de certo tem po, o est ilo, o gosto de certa época. A Cidade é cultura, cr iação, não só pelo que fazemos nela e dela, pelo que criamos nela e com ela, mas também é cultura pela própria m irada estét ica ou de espanto, gratuita, que lhe dam os. A Cidade som os nós e nós som os a Cidade. Mas não podemos esquecer de que o que somos guarda algo que foi e que nos chega pela cont inuidade histór ica de que não podem os escapar, m as sobre que podem os t rabalhar, e pelas marcas culturais que herdamos. Enquanto educadora, a Cidade é tam bém educanda. Muito de sua tarefa educat iva im plica a nossa posição polít ica e, obviamente, a maneira como exerçamos o poder na Cidade e o sonho ou a utopia de que em bebam os a polít ica, a serviço de que e de quem a fazem os. A polít ica dos gastos públicos, a polít ica cultural e educacional, a polít ica de saúde, a dos t ransportes, a do lazer. A própria polít ica em torno de com o sublinhar este ou aquele conjunto de memórias da Cidade at ravés de cuja só existência a Cidade exerce seu papel educat ivo. Até aí, a decisão polít ica nossa pode interferir. Mas há um m odo espontâneo, quase com o se as Cidades gest iculassem ou andassem ou se movessem ou dissessem de si, falando quase com o se as Cidades proclam assem feitos e fatos

4 Georges Snyders. La Joie à l’École. Paris, Presses Universitaires de France, 1986.

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vividos nelas por mulheres e homens que por elas passaram, mas ficaram, um modo espontâneo, dizia eu, de as Cidades educarem. I nsistam os em que até sobre esse m om ento espontâneo da vida das Cidades, em que elas revelam sua memória desnuda, o poder polít ico pode interferir. De qualquer forma, esse momento espontâneo é de grande riqueza, não importa que tenha suas negat ividades tam bém . No fundo ele explícita form as de estar sendo de gerações anter iores, maneiras de valorar, de reagir, expressões discrim inatórias disto ou daquilo, que não se acham apenas arquivadas na m em ória das Cidades. São m anifestações vivas de sua cultura, de nossa cultura. O respeito mútuo que as pessoas se têm nas ruas, nas lojas. O respeito às coisas, o zelo com que se t ratam os objetos públicos, os m uros das casas, a disciplina nos horár ios. A m aneira com o a Cidade é t ratada por seus habitantes, por seus governantes. A Cidade som os nós tam bém , nossa cultura, que, gestando- se nela, no corpo de suas t radições, nos faz e nos refaz. Perfilam os a Cidade e por ela somos perfilados. No fundo, a tarefa educat iva das Cidades se realiza tam bém at ravés do t ratam ento de sua memória e sua memória não apenas guarda, mas reproduz, estende, comunica- se às gerações que chegam . Seus m useus, seus cent ros de cultura, de arte são a alm a viva do ím peto cr iador, dos sinais de aventura do espír ito. Falam de épocas diferentes, de apogeu, de decadência, de cr ises, da força condicionante das condições m ater iais. Às vezes, sinto um certo descom passo em certas Cidades ent re a quant idade de m arcos que falam ou que proclam am envaidecidam ente feitos de guerra e os que falam da paz, da doçura de viver. Não que esteja defendendo a ocultação dos fatos belicosos que escondem ou explicitam malvadezas, perversidades in - críveis de que tem os sido capazes nos descom passos de nossa histór ia. Most rá- los às gerações m ais jovens é tam bém tarefa educat iva das Cidades. Mas m ost rá -los nem sempre como quem deles se orgulha. Como não há educação sem polít ica educat iva que estabelece pr ior idades, m etas, conteúdos, meios e se infunde de sonhos e utopias, creio que não faria mal nenhum neste encont ro que sonhássemos um pouco. Que nos aventurássemos um pouco, que corrêssemos o r isco de pensar em certos valores concretos que pudessem ir se incorporando a nós e aos anseios de Cidades educat ivas neste fim de século que já vivemos e que é também fim de m ilênio. Um desses sonhos por que lutar, sonho possível m as cuja concret ização dem anda coerência, valor, tenacidade, senso de just iça, força para br igar, de todas e de todos os que a ele se ent reguem é o sonho por um mundo menos feio, em que as desigualdades dim inuam, em que as discrim inações de raça, de sexo, de classe sejam sinais de vergonha e não de afirmação orgulhosa ou de lam entação puram ente cavilosa. No fundo, é um sonho sem cuja realização a dem ocracia de que tanto falam os, sobretudo hoje, é um a farsa. Que dem ocracia é esta que encont ra para a dor de m ilhões de fam intos, de renegados, de proibidos de ler a palavra, e mal lendo seu mundo, razões climát icas ou de incompetência genét ica? Um out ro sonho fundamental que se deveria incorporar aos ensinamentos das Cidades educat ivas é o do direito que temos, numa verdadeira democracia, de ser diferentes e, por isso mesmo que um direito, o seu alongam ento ao direito de ser respeitados na diferença. As Cidades educat ivas devem ensinar a seus filhos e aos filhos de out ras Cidades que as visitam que não precisam os esconder a nossa condição de judeus, de árabes, de alem ães, de suecos, de nor t e- am ericanos, de brasileiros, de afr icanos, de lat ino- americanos de origem hispânica, de indígenas não im porta de onde, de negros, de louros, de hom ossexuais, de crentes, de ateus, de progressistas, de conservadores, para gozar de respeito e de atenção.

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Não se faz nem se vive a substant iv idade dem ocrát ica sem o pleno exercício deste direito que envolve a vir tude da tolerância. Talvez as Cidades pudessem est im ular as suas inst ituições pedagógicas, culturais, cient íf icas, ar t íst icas, religiosas, polít icas, f inanceiras, de pesquisa para que, empenhando- se em cam panhas com este objet ivo, desafiassem as cr ianças, os adolescentes, os jovens a pensar e a discut ir o direito de ser diferente sem que isto signifique correr o r isco de ser discrim inado, punido ou, pior ainda, banido da vida. Em lugar, por últ imo, da hipocrisia arvorada em ét ica dos costumes, que vê imoralidade no corpo do homem ou da mulher, que fala de cast igo divino ou o insinua, associado à t ragédia da AIDS com o se am ar fosse pecado, que as cidades educat ivas testem unhem sua busca incessante da Pureza e sua recusa veem ente ao puritanism o.

São Paulo, novembro de 1992

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EDUCAÇÃO DE ADULTOS, HOJE. Algumas Reflexões

No Brasil e em outras áreas da Am érica Lat ina a Educação de Adultos viveu um processo de amadure- cimento que veio t ransformando a compreensão que dela t ínhamos há poucos anos at rás. A Educação de Adultos é m elhor percebida quando a situam os hoje com o Educação Popular. Tratem os de com entar esta t ransform ação que, a nosso ver, indica os passos qualitat ivos da experiência educat iva reflet ida por inúmeras pessoas/ grupos lat ino- americanos. O conceito de Educação de Adultos vai se m ovendo na direção do de educação popular na m edida em que a realidade com eça a fazer algum as exigências à sensibilidade e à com petência cient ífica dos educadores e das educadoras. Um a destas exigências tem que ver com a com preensão crít ica dos educadores do que vem ocorrendo na cot idianidade do m eio popular. Não é possível a educadoras e educadores pensar apenas os procedim entos didát icos e os conteúdos a serem ensinados aos grupos populares. Os próprios conteúdos a serem ensinados não podem ser totalm ente est ranhos àquela cot idianidade. O que acontece, no m eio popula r, nas per ifer ias das cidades, nos cam pos – t rabalhadores urbanos e rurais reunindo- se para rezar ou para discut ir seus direitos –, nada pode escapar à cur iosidade arguta dos educadores envolvidos na prát ica da Educação Popular. A Educação de Adultos, v irando Educação Popular, se tornou m ais abrangente. Certos program as com alfabet ização, educação de base em profissionalização ou em saúde pr im ária são apenas um a parte do t rabalho mais amplo que se sugere quando se fala em Educação Popular. Educadores e grupos populares descobriram que Educação Popular é sobretudo o processo permanente de reflet ir a m ilitância; reflet ir , portanto, a sua capa- cidade de mobilizar em direção a objet ivos própr ios. A prát ica educat iva, reconhecendo - se com o prát ica polít ica, se recusa a deixar-se apr isionar na est reiteza burocrát ica de procedim entos escolar izantes. Lidando com o processo de conhecer, a prát ica educat iva é tão interessada em possibilit ar o ensino de conteúdos às pessoas quanto em sua conscient ização. Nesse sent ido, a Educação Popular, de corte progressista, dem ocrát ico, superando o que cham ei, na Pedagogia do oprim ido, “ educação bancár ia” , t enta o esforço necessár io de ter no educando um sujeito cognoscente, que, por isso mesmo, se assume como um sujeito em busca de, e não com o a pura incidência da ação do educador. Dessa form a são tão im portantes para a form ação dos grupos populares certos conteúdos que o educador lhes deve ensinar, quanto a análise que eles façam de sua realidade concreta. E, ao fazê-lo, devem ir, com a indispensável ajuda do educador, superando o seu saber anter ior, de pura experiência feito, por um saber mais crít ico, menos ingênuo. O senso comum só se supera a part ir dele e não com o desprezo arrogante dos elit istas por ele. Preocupada seriamente com a leitura crít ica do m undo, não im porta inclusive que as pessoas não façam ainda a leitura da palavra, a Educação Popular, m esm o sem descuidar a preparação técnico-profissional dos grupos populares, não aceita a posição de neut ralidade polít ica com que a ideologia m odernizante reconhece ou entende a Educação de Adultos. Respeitando os sonhos, as frust rações, as dúvidas, os m edos, os desejos dos educandos, cr ianças, jovens ou adultos, os educadores e educadoras populares têm neles um ponto de part ida para a sua ação. I nsista- se, um ponto de part ida e não de chegada. Cr ianças e adultos se envolvem em processos educat ivos de alfabet ização com palavras pertencentes à sua experiência existencial, palavras grávidas de m undo. Palavras e tem as. Assim compreendida e posta em prát ica, a Educação Popular pode ser socialm ente percebida com o facilitadora da com preensão cient ífica que grupos e m ovim entos podem e devem ter acerca de suas experiências. Esta é um a das tarefas fundam entais da educação popular de cort e progressista, a de inserir os grupos populares no movimento de superação do saber de senso comum pelo conhecimento mais crít ico, mais além do “penso que é” , em torno do mundo e de si

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no mundo e com ele. Este movimento de superação do senso comum implica uma diferente compreensão da História. Implica entendê- la e v ivê- la, sobretudo vivê- la, como tempo de possibilidade, o que significa a recusa a qualquer explicação determ inista, fatalista da Histór ia. Nem o fatalism o que entende o futuro com o a repet ição quase inalterada do presente nem o fatalism o que percebe o futuro com o algo pré- dado. Mas o tem po histór ico sendo feito por nós e refazendo- nos enquanto fazedores dele. Daí que a educação popular, prat icando - se num tempo-espaço de possibilidade, por sujeitos conscientes ou v irando conscientes disto, não possa prescindir do sonho. É preciso mesmo brigar cont ra certos discursos pós- modernamente reacionários, com ares t r iunfantes, que decretam a morte dos sonhos e defendem um pragmat ismo oportunista e negador da Utopia. É possível vida sem sonho, mas não existência hum ana e História sem sonho. A dim ensão global da Educação Popular cont r ibui ainda para que a com preensão geral do ser humano em torno de si como ser social seja menos monolít ica e mais pluralista, seja menos unidirecionada e m ais aberta à discussão dem ocrát ica de pressuposições básicas da existência. Esta vem sendo uma preocupação que me tem tomado todo, sempre – a de me ent regar a uma prát ica educat iva e a um a reflexão pedagógica fundadas am bas no sonho por um mundo menos malvado, menos feio, menos autoritário, mais democrát ico, mais humano.

São Paulo, fevereiro de 1992.

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ANOTAÇÕES SOBRE UNI DADE NA DI VERSI DADE Par to de duas constatações óbvias: a) As diferenças interculturais existem e apresentam cortes: de classe, de raça, de gênero e, com o alongam ento destes, de nações. b) Essas diferenças geram ideologias, de um lado, discrim inatórias, de out ro, de resistência. Não é a cultura discrim inada a que gera a ideologia discrim inatória, mas a cultura hegem ônica a que o faz. A cultura discr im inada gesta a ideologia de resistência que, em função de sua experiência de luta, ora explica formas de comportamento mais ou menos pacíficos, ora rebeldes, mais ou menos indiscrim inatoriamente violentos, ora cr it icam ente voltados à recr iação do m undo. Um ponto importante a ser sublinhado: na medida em que as relações ent re estas ideologias são dialét icas, elas se interpenet ram . Não se dão em estado puro e podem m udar de pessoa a pessoa. Por exemplo, posso ser homem, como sou, e nem por isso ser machista. Posso ser negro mas, em defesa de meus interesses econôm icos, contemporizar com a discrim inação branca. c) É impossível compreendê- las sem a análise das ideologias e a relação destas com o poder e com a fraqueza. As ideologias, não importa se discrim inatórias ou de resistência, se encarnam em formas especiais de conduta social ou individual que variam de tem po espaço a tem po espaço. Se expressam na linguagem – na sintaxe e na sem ânt ica –, nas form as concretas de atuar , de escolher, de valorar, de andar, de vest ir , de até dizer olá, na rua. Suas relações são dialét icas. Os níveis destas relações, seus conteúdos, sua m aior dose de poder revelado no ar de superior idade, de distância, de fr ieza .- com que os poderosos t ratam os carentes de poder; o maior ou menor nível de acomodação ou de rebelião com que respondem os dom inados, tudo isso é fundamental no sent ido de superação das ideologias discrim inatórias, de modo a que possamos viver a Utopia: não mais discrim inação, não mais rebelião ou adaptação, mas Unidade na Diversidade. d) É im possível pensar, pois, na superação da opressão, da discr im inação, da passividade ou da pura rebelião que elas engendram, primeiro, sem uma compreensão crít ica da História, na qual, f inalm ente, essas relações interculturais se dão de form a dialét ica, por isso, cont raditór ia e processual. Segundo, sem projetos de natureza polít ico- pedagógica no sent ido da t ransform ação ou da re- invenção do mundo. Falemos um pouco da primeira questão, a com preensão da Histór ia que tem os, um a vez que, históricos, mulheres e homens, nossa ação não apenas é histórica também mas historicamente condicionada. Às vezes, nem sequer, ao atuar, estam os conscientem ente claros em torno de que concepção da Histór ia nos m arca. Daí a im portância que reconheço, nos cursos de form ação de educadores, das discussões em torno das diferentes maneiras de compreendermos a História que nos faz e refaz enquanto a fazem os. Falemos sucintamente de algumas das diferentes maneiras de reflet irm os sobre nossa presença no mundo em que e com que estamos. De acordo com uma primeira versão, mulheres e homens, seres espir ituais, dotados de razão, de discernim ento, capazes de separar o bem do m al, m arcados pelo pecado or iginal, precisam evitar a todo custo cair no pecado ou nele recair , pecado sem pre precedido de for tes tentações e procurar o cam inho da salvação. O pecado e a sua negação se tornam de tal modo, o primeiro, sinal de absoluta fraqueza, a segunda, um gr ito fácil de vitória, que a existência humana, reduzida a essa luta, term ina por quase se perder no medo à liberdade ou na hipocrisia puritana que é uma forma de ficar com a feiúra e negar a boniteza da pureza. A Histór ia, no fundo, é a histór ia dessa procura. A salvação da alm a pela fuga ao pecado. As principais armas, os fundamentais métodos de ação para quem idealistamente experimenta esta

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concepção da Histór ia são as orações, as penitências, as prom essas. A Teologia da Libertação, diga- se de passagem, significa uma radic al ruptura com essa form a m ágico- mít ica de religiosidade e, pondo suas raízes na exper iência concreta tem po- espacial, dos homens e das mulheres, do Povo de Deus, fala de out ra com preensão da Histór ia, na verdade feita por nós. De acordo com esta inteligência da História, Deus é uma Presença nela que, porém, não me proíbe de fazê- la. Pelo contrário, empurra- m e a fazê- la. E de fazê- la não no sent ido da negação dos direitos dos out ros, só porque diferentes de m im. Que ét ica é essa que só vale quando a ser aplicada em favor de mim? Que est ranha m aneira é essa de fazer Histór ia, de ensinar Dem ocracia, espancando os diferentes para, em nome da Democracia, cont inuar gozando da liberdade de espancar! Com relação ainda ao futuro, gostar ia de sublinhar duas out ras compreensões da História, ambas imobilizadoras, determ inistas. A primeira, que tem no futuro a pura repet ição do presente. De modo geral assim é que pensam os dominadores. O amanhã para eles e para elas é sempre o seu presente de dom inadores sendo reproduzido, com alterações adverbiais. Não há nesta concepção lugar para a substant iva superação da discr im inação racial, sexual, lingüíst ica, cultural, etc. Os negros cont inuam inferiores, m as, agora, podem sentar em qualquer lugar do ônibus... Os lat ino- americ anos são boa gente, m as não são pontuais... Maria é uma excelente jovem. É negra m as é m uito inteligente.. . Nos t rês exem plos a conjunção adversat iva m as está grávida da ideologia autoritariamente racista, discrim inatória. Um a out ra concepção da Histór ia e, tanto quanto as demais, no m ínimo, condicionadora de prát icas, não im porta em que cam po, o cultural, o educat ivo, o econôm ico, o das relações ent re as nações, o do m eio am biente, o da ciência, o da tecnologia, o das artes, o da com unicação, é a que reduz o amanhã a um dado dado. O futuro é um pré- dado, um a espécie de sina, de fado. O futuro não é problem át ico. Pelo cont rár io, é inexorável. A dialét ica que essa visão da Histór ia reclam a, e que tem sua origem num certo dogmat ismo marxista, é uma dialét ica dom est icada. Conhecem os a síntese antes de exper im entarm os o em bate dialét ico ent re a Tese e a Ant ítese. Uma out ra maneira de entender a História é a de submetê- la aos caprichos da vontade individual. O indivíduo, de quem o social depende, é o sujeito da Histór ia. Sua consciência é a fazedora arbit rária da História. Por isso, quanto melhor a educação t rabalhar os indivíduos, quanto melhor fizer seu coração um coração sadio, am oroso, tanto m ais o indivíduo, cheio de boniteza, fará o mundo feio virar bonito. Para esta visão da História e do papel das mulheres e dos homens no mundo o fundamental é cuidar de seu cor ação deixando, porém , intocadas as est ruturas sociais. A salvação dos hom ens e das mulheres não passa por sua libertação permanente e esta pela re invenção do m undo. Vejo a História, exatamente como os teólogos da libertação ent re quem me sinto muito bem, em total discordância com as dem ais com preensões dela de que falei. Para m im, a História é tempo de possibilidade e não de determ inações. E se é tempo de possibilidades, a pr im eira conseqüência que vem à tona é a de que a Histór ia não apenas é m as também demanda liberdade. Lutar por ela é uma forma possível de, inserindo- nos na História possível, nos fazer igualmente possíveis. Em lugar de ser perseguição constante ao pecado em que me inscrevo para me salvar, a História é a possibilidade que criamos ao longo dela, para nos libertar e assim nos salvar. Somente numa perspect iva histórica em que homens e mulheres sejam capazes de assumir- se cada vez mais com o sujeitos- objetos da História, vale dizer, capazes de reinventar o mundo numa direção ét ica e estét ica m ais além dos padrões que aí estão é que tem sent ido discut ir com unicação na nova etapa da cont inuidade da m udança e da inovação. I sto signif ica então reconhecer a natureza polít ica desta luta.

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Natureza polít ica que descarta prát icas puram ente assistencialistas de quem pensa com prar um ingresso no céu com o que colhe na terra de sua falsa generosidade. Pensar a Histór ia com o possibilidade é reconhecer a educação também como possibilidade. É reconhecer que se ela, a educação, não pode tudo, pode algum a coisa. Sua força, com o costum o dizer, reside na sua fraqueza. Um a de nossas tarefas, com o educadores e educadoras, é descobrir o que histor icam ente pode ser feito no sent ido de cont r ibuir para a t ransform ação do m undo, de que resulte um mundo mais “ redondo” , menos arestoso, mais humano, e em que se prepare a materialização da grande Utopia: Unidade na Diversidade.

Montego Bay,

Jamaica, 9 de maio de 1992

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EDUCAÇÃO E QUALI DADE O t ítulo geral com que o SENAC (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial) nomeia este encont ro, Educação e Qualidade, possibilita, com o o próprio program a exem plifica, diferentes hipóteses tem át icas que se desdobram dele ou que nele se acham inseridas. Educação para a qualidade. Qualidade da educação. Educação e qualidade de vida. Neste pr im eiro m om ento do Encont ro, nos cabe, com o deve ser, um a reflexão abrangente sobre o tema de tal maneira que possamos passar de um tema a out ro, apreendendo ou nos predispondo para apreender suas necessár ias inter- relações. Creio, porém , que o m elhor cam inho para o processo desta busca de apreensão das inter- relações dos temas tem como ponto de part ida uma reflexão crít ica em torno de Educ ação e Qualidade. Não propriamente uma reflexão crít ica sobre a educação em si ou sobre a qualidade mas em torno de educação e qualidade que nos rem ete à educação para a qualidade, qualidade da educação e educação e qualidade de vida. Me parece fundam ental, neste exercício, deixar claro, desde o início, que não pode exist ir uma prát ica educat iva neut ra, descom prom et ida, apolít ica. A diret iv idade da prát ica educat iva que a faz t ransbordar sempre de si mesma e perseguir um certo fim , um sonho, uma utopia, não permite sua neutralidade. A impossibilidade de ser neutra não tem nada que ver com a arbit rária imposição que faz o educador autor itár io a “ seus” educandos de suas opções. É por isso que o problema real que se nos coloca não é o de insist ir numa teimosia sem sucesso – a de afirm ar a neut ralidade im possível da educação, m as, reconhecendo sua polit icidade, lutar pela postura ét ico- dem ocrát ica de acordo com a qual educadoras e educadores, podendo e devendo afirmar- se em seus sonhos, que são polít icos, se impõem, porém: 1) deixar claro aos educandos que há out ros sonhos cont ra os quais, por vár ias razões a ser explicadas, os educadores ou as educadoras podem até lutar; 2) que os educandos têm o direito de ter o dever de ter os seus sonhos também, não import a que diferentes ou opostos aos de seus educadores. O respeito aos educandos não pode fundar- se no escam oteam ento da verdade – a da polit icidade da educação e na afirmação de uma ment ira: a sua neut ralidade. Uma das bonitezas da prát ica educat iva está exatam ente no reconhecim ento e na assunção de sua polit icidade que nos leva a viver o respeito real aos educandos ao não t ratar, de form a sub- rept ícia ou de forma grosseira, de impor- lhes nossos pontos de vista. Não pode haver cam inho mais ét ico, mais verdadeiram ente dem ocrát ico do que testem unhar aos educandos com o pensam os, as razões por que pensam os desta ou daquela form a, os nossos sonhos, os sonhos por que brigamos, mas, ao mesmo tempo, dando- lhes provas concretas, irrefutáveis, de que respeitam os suas opções em oposição às nossas. Não haver ia exercício ét ico- democrát ico, nem sequer se poderia falar em respeito do educador ao pensam ento diferente do educando se a educação fosse neut ra – vale dizer, se não houvesse ideologias, polít ica, classes sociais. Falaríam os apenas de equívocos, de erros, de inadequações, de “obstáculos epistem ológicos” no processo de conhecim ento, que envolve ensinar e aprender. A dim ensão ét ica se rest r ingir ia apenas à com petência do educador ou da educadora, à sua form ação, ao cumprim ento de seus deveres docentes, que se estender ia ao respeito à pessoa humana dos educandos. Falam os em ét ica e em postura substant ivam ente dem ocrát ica porque, não sendo neut ra, a prát ica educat iva, a form ação hum ana, im plica opções, rupturas, decisões, estar com e pôr- se cont ra, a favor de algum sonho e cont ra out ro, a favor de alguém e cont ra alguém. E é exatam ente este

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imperat ivo que exige a et icidade do educador e sua necessária m ilitância democrát ica a lhe exigir a vigilância permanente no sent ido da coerência ent re o discurso e a prát ica. Não vale um discurso bem art iculado, em que se defende o direito de ser diferente e um a prát ica negadora desse direito. A natureza formadora da docência, que não poderia reduzir- se a puro processo técnico e m ecân ico de t ransfer ir conhecim entos, enfat iza a exigência ét ico- dem ocrát ica do respeito ao pensam ento, aos gostos, aos receios, aos desejos, à cur iosidade dos educandos. Respeito, contudo, que não pode exim ir o educador, enquanto autoridade, de exercer o direit o de ter o dever de estabelecer lim ites, de propor t arefas, de cobrar a execução das mesmas. Lim ites sem os quais as liberdades correm o r isco de perder- se em licenciosidade, da mesma forma como, sem lim ites, a autoridade se ext ravia e vira autoritarismo. A im possibilidade ainda de poder ser a educação neut ra coloca ao educador ou educadora, perm ita-se- me a repet ição, a imperiosa necessidade de optar, quer dizer, de decidir , de romper, de escolher. Mas, lhe coloca tam bém a necessidade da coerência com a opção que fez. Coerência que jam ais podendo ser absoluta, cresce no aprendizado que vam os fazendo pela percepção e constatação das incoerências em que nos surpreendem os. É descobrindo a incoerência em que caímos que, se realmente hum ildes e compromet idos com serm os coerentes, avançam os no sent ido de dim inuir a incoerência. Esse exercício de busca e de superação é, em si, j á, um exercício ét ico. Façam os agora um as rápidas considerações sobre a questão da qualidade ou das qualidades1 . Os gregos se preocuparam com as qualidades das coisas, dos objetos, dos seres. Preocupação que cont inuou durante a implantação da ciência moderna mas foi Locke quem mais sistemat izou a questão no seu An Essay concerning hum an understanding. Em seu estudo m et iculoso ele classific a as qualidades em: a) Primárias b) Secundár ias c) Terciár ias. As qualidades primárias independem, para sua existência, da presença de um observador – movimento, figura, forma, impenetrabilidade, dureza –, enquanto as secundárias existem com o cont eúdos de consciência – dor , cor , gost o, et c. –, causados em nós pelas qualidades primárias e secundárias inerentes à m atéria. As terciárias são as que se somam às primárias e às secundárias; são valores que at r ibuímos às coisas que têm suas qualidades primárias. São as qualidades terciár ias as que, sobretudo, nos interessam aqui na análise da frase educação e qualidade. Uma primeira afirmação que gostaria de fazer é a de que assim como é impossível pensar a educação de form a neut ra é im possível igualm ente pensar a valoração que se dê a ela neutralmente. Não há qualidades por que lutemos no sent ido de assumi - ias, de com elas requalif icar a prát ica educat iva, que possam ser consideradas com o absolutam ente neut ras, na medida mesma em que, valores, são vistas de ângulos diferentes, em função de interesses de classes ou de grupos. É neste sent ido, por exem plo, que tem os de reconhecer que se, de um ponto de vista progressista, a prát ica educat iva deve ser, coerentem ente, um fazer desocultador de verdades e não ocultador, nem sem pre o é do ponto de vista reacionário. E se o faz, o será de form a diferente. É que há form as antagônicas de ver a verdade – a dos dom inantes e a dos dom inados. 1 Peter Angeles, Dict ionary of Philosophy. Harper Collins, 1992. A. R. Lacey, A Dict ionary of Philosophy. Rout ledge, 1991. Nicola Abbagnano, Dicionário de Filosofia. São Paulo, Editora Mest re Jou, 1970. Dict ionary of Philosophy, edited by Dagobert D. Runes, 1983. J. Locke, An Essay concerning human understanding [ 1690] Book 2, Chapter 8, 1959.

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No fundo, ocultar ou desocultar verdades não é um a prát ica neut ra. Um racista ensina que o que lhe parece ser a “ infer ior idade” do negro radica na genét ica, dando ainda ares de ciência a seu discurso. Um sectár io de esquerda, necessariam ente autor itár io, nega o papel da subjet iv idade na Histór ia e nega tudo o que difere de si. Recusa qualquer diferença. Confronta o diferente, vaia - o, ofende- o, enquanto o antagônico, seu inim igo principal, descansa em paz. A t ítulo de exercício em torno de afirm ações que venho fazendo neste pequeno texto, reflitam os um pouco sobre o enunciado dos t rês temas. 1) Educação para a Qualidade. O enunciado deixa claro que nos estam os refer indo a um a certa educação cujo objet ivo é a qualidade, um a qualidade fora da educação e não a “qualidade prim ária” que a prát ica educat iva tem em si. Uma certa qualidade com que sonham os, um certo objet ivo. Mas, exatam ente porque não há uma qualidade substant iva, cujo perfil se ache universalmente feito, uma qualidade da qual se diga: esta é a qualidade, temos de nos aproximar do conceito e nos indagar em torno de que qualidade estam os falando. É exatam ente quando percebem os que há qualidades e qualidades, enquanto qualidade terciár ia, quer dizer, valor que at r ibuím os aos seres, às coisas, à prát ica educat iva. Nos Estados Unidos, por exemplo, se vem falando, de um tempo para cá, em excelência da educação. Um a coisa era o que o presidente Nixon ou o Presidente Reagan entendiam por excelência da educação e out ra, aposta, era e é o que pensadores radicais, com o Giroux, Madaleine Grumet , Michael Apple, MacLaren, I ra Shor, Donaldo Macedo ou econom istas com o Mart in Carnoy, Bowls, Gint ies e cient istas polít icos com o Stanley Aronowitz, alongados tam bém em pedagogos, pensam da excelência, para falar só nestes. Um elit ista com preende a expressão com o um a prát ica educat iva cent rando- se em valores das elites e na negação im plícita dos valores populares. O culto da sintaxe dom inante e o repúdio, como feiúra e corruptela, da prosódia, da ortografia e da sintaxe populares. Por out ro lado, um dem ocrata radical, jam ais sectár io, progressistam ente pós- moderno, entende a ex- pressão com o a busca de uma educação séria, r igorosa, democrát ica, em nada discrim inadora nem dos renegados nem dos favorecidos. I sso, porém , não significa um a prát ica neut ra, m as desveladora das verdades, desocultadora, ilum inadora das t ram as sociais e histór icas. Uma prát ica fundamentalmente justa e ét ica cont ra a exploração dos homens e das mulheres e em favor de sua vocação de ser m ais. O mesmo t ipo de análise se estende aos temas 2 e 3. O tema 2 diz: Qualidade da Educação. Aparente- m ente aqui no enunciado do tem a 2, a palavra educação se refere a um a provável qualidade prim ária do conceit o de educação. Na verdade, contudo, a explicitação da signif icação da palavra qualidade vem à tona quando o redator do enunciado diz: rela to da experiência da Secretar ia da Educação Municipal de São Paulo. Fica claro, pois, que não se t rata de qualquer qualidade da educação, m as de um a certa qualidade, a que caracter izou e ainda caracter iza a adm inist ração da cidade de São Paulo (Adm inist ração pet ista de Luiza Erundina, 1989 - 1992) . Essa adm inist ração, por sua vez, não se bate por qualquer t ipo de qualidade, mas por uma certa qualidade da educação – a democrát ica, popular, r igorosa, séria, respeitadora e est im uladora da presença popular nos dest inos da escola que se vá tornando cada vez m ais um a escola alegre. Escola alegre que Snyders tanto defende. O terceiro tem a, Educação e Qualidade de Vida, se oferece ao m esm o t ipo de análise e revela tanto quanto os out ros a natureza polít ica não só da educação mas da qualidade, enquanto valor. Agora, no tema 3, o substant ivo qualidade é lim itado por uma expressão rest r it iva, a locução adjet iva de vida. Nada disso, porém , altera a natureza polít ica da qualidade da educação.

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Qualidade da educação; educação para a qualidade; educação e qualidade de vida, não importa em que enunciado se encont rem , educação e qualidade são sem pre um a questão polít ica, fora de cuja reflexão, de cuja compreensão não nos é possível entender nem uma nem outra. Não há, finalmente, educação neut ra nem qualidade por que lutar no sent ido de reorientar a educação que não im plique um a opção polít ica e não dem ande um a decisão, tam bém polít ica de materializá- la.

São Paulo, 28 de setembro de 1992

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ALFABETI ZAÇÃO COMO ELEMENTO DE FORMAÇ ÃO DA CI DADANI A Este é o tem a sobre o qual m e propuseram falar aqui e agora os organizadores deste encont ro. É interessante observar a maneira pela qual se combinam ou relacionam os termos da frase, em que a conjunção com o, valendo enquanto, na qualidade de, estabelece um a relação operacional ent re alfabet ização e form ação da cidadania. É verdade que o bloco elem ento de form ação ameniza um pouco a signif icação da força que, de certa form a, se em presta à alfabet ização, no corpo da frase. Ser ia m ais forte ainda se disséssem os: a alfabet ização com o form ação da cidadania ou a alfabet ização com o form adora da cidadania. Por out ro lado, se faz necessário, neste exercício, relem brar que cidadão significa indivíduo no gozo dos direitos civis e polít icos de um Estado e que cidadania tem que ver com a condição de cidadão, quer dizer, com o uso dos direitos e o direito de ter deveres de cidadão. Buscar a inteligência da frase significa, de fato, indagar em torno dos lim ites da alfabet ização com o prát ica capaz de gera r nos alfabet izandos a assunção da cidadania ou não. I m plica pensar tam bém nos obstáculos com os quais nos defrontam os na prát ica e sobre os quais ou sobre alguns dos quais espero falar mais adiante. Considerando que a alfabet ização de adultos, por m ais importante que seja, é um capítulo da prát ica educat iva, m inha indagação se or ienta no sent ido da com preensão dos lim ites da prát ica educat iva, que abrange a prát ica da alfabet ização, bem com o dos obstáculos acim a refer idos. A primeira afirmação que devo fazer é a de que não há prát ica, não importa em que domínio, que não esteja subm et ida a certos lim ites. A prát ica que é social e histór ica, m esm o que tenha um a dimensão individual, se dá num certo contexto tempo- espacial e não na int im idade das cabeças das gentes. É por isso que o voluntarism o é idealista, pois se funda precisam ente na com preensão ingênua de que a prát ica e a sua eficácia dependem apenas do sujeito, de sua vontade e de sua coragem. E por isso, por out ro lado, que o espontaneísmo é irresponsável, porque implica a anulação do intelectual com o organizador, não necessariam ente autoritár io, m as organizador sempre, de espaços para o que é indispensável sua intervenção. Voluntarismo e espontaneísmo têm ambos assim sua falsidade no menosprezo aos limites. No primeiro, se desrespeitam os lim ites porque nele só há um , o da vontade do voluntar ista. No segundo, o intelectual não intervém , não direciona, cruza os braços. A ação se ent rega quase a si m esm a, é m ais alvoroço, algazarra. Neste sent ido, volunt ar ism o e espontaneísm o se const ituem com o obstáculos à prát ica educat iva progressista. A com preensão dos lim ites da prát ica educat iva dem anda indiscut ivelm ente a clar idade polít ica dos educadores com relação a seu projeto. Demanda que o educador assuma a polit icidade de sua prát ica. Não basta dizer que a educação é um ato polít ico assim com o não basta dizer que o ato polít ico é tam bém educat ivo. É preciso assum ir realm ente a polit icidade da educação. Não posso pensar- m e progressista se entendo o espaço da escola como algo meio neut ro, com pouco ou quase nada a ver com a luta de classes, em que os alunos são vistos apenas com o aprendizes de certos objetos de conhecim ento aos quais em presto um poder m ágico. Não posso reconhecer os lim ites da prát ica educat ivo- polít ica em que m e envolvo se não sei, se não estou claro em face de a favor de quem prat ico. O a favor de quem prat ico m e situa num certo ângulo, que é de classe, em que divisa o cont ra quem prat ico e, necessariam ente, o por que prat ico, isto é, o próprio sonho, o t ipo de sociedade de cuja invenção gostar ia de part icipar. A compreensão crít ica dos lim ites da prát ica tem que ver com o problema do poder , que é de classe e tem que ver, por isso m esm o, com a questão da luta e do conflito de classes. Compreender o nível em que se acha a luta de classes em um a dada sociedade é indispensável à dem arcação dos espaços, dos conteúdos da educação, do histor icam ente possível, por tanto, dos lim ites da prát ica polít ico- educat iva.

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Uma coisa, por exemplo, foi t rabalhar em alfabet ização e educação de adultos no Brasil dos fins dos anos cinqüenta e com eços dos sessenta, out ra, foi t rabalhar em educação popular durante o regime militar. Uma coisa foi t rabalhar no Brasil, na fase do regime populista que, por sua própria ambigüidade, ora cont inha as massas populares ora as t razia às ruas, às praças, o que term inava por lhes ensinar a vir às ruas por sua conta, out ra, foi t rabalhar em plena ditadura m ilitar com elas reprim idas, silenciadas e assustadas. Pretender obter no segu ndo m om ento o que se obteve no anter ior na aplicação de um a certa m etodologia revela falta de com preensão histór ica, desconhecimento da noção de lim ite. Uma coisa foi t rabalhar no início mesmo da ditadura m ilitar, out ra, nos anos setenta. Um a coisa foi fazer educação popular no Chile do governo Allende, out ra é fazer hoje, na ditadura. Uma coisa foi t rabalhar em áreas populares no regime Somoza na Nicarágua, out ra, é t rabalhar hoje, com o seu povo se apossando de sua histór ia. O que quero dizer é que uma mesma compreensão da prát ica educat iva, uma mesma metodologia de t rabalho não operam necessariam ente de form a idênt ica em contextos diferentes. A intervenção é histór ica, é cultural, é polít ica. É por isso que insisto tanto em que as experiências não podem ser t ransplantadas mas reiventadas. Em out ras palavras, devo descobrir , em função do meu conhecim ento tão r igoroso quanto possível da realidade, com o aplicar de form a diferente um mesmo princípio válido, do ponto de vista de m inha opção polít ica. A leitura atenta e crít ica da m aior ou m enor intensidade e profundidade com que o conflito de classes vai sendo vivido nos indica as form as de resistência possíveis das classes populares, em certo momento. Sua maior ou menor mobilização que envolve sempre um certo grau de organização. A luta de classes não se ver if ica apenas quando as classes t rabalhadoras, mobilizando- se, organizando- se, lutam claramente, determ inadamente, com suas lideranças, em defesa de seus interesses, m as, sobretudo, com vistas à superação do sistem a capitalista. A luta de classes existe tam bém , latente, às vezes escondida, oculta, expressando- se em diferentes form as de resistência ao poder das classes dom inantes. Form as de resistência que venho chamando “manhas” dos oprim idos, no fundo, “ imunizações” , que as classes populares vão cr iando em seu corpo, em sua linguagem, em sua cultura. Daí a necessidade fundamental que tem o educador popular de com preender as form as de resistência das classes populares, suas festas, suas danças, seus folguedos, suas lendas, suas devoções, seus m edos, sua sem ânt ica, sua sintaxe, sua religiosidade. Não me parece possível organizar programas de ação polít ico- pedagógica sem levar seria- m ente em conta as resistências das classes populares. É preciso entender que as formas de resistência envolvem em si mesmas lim ites que as classes populares se põem com relação à sua sobrevivência em face do poder dos dom inantes. Em muitos momentos do conflito de classe, as classes populares, mais imersas que emersas na realidade, têm em sua resistência um a espécie de m uro por det rás de que se escondem . Se o educador não é capaz de entender a dimensão concreta do medo e, discursando numa linguagem já em si difícil, propõe ações que ult rapassam dem asiado as fronteiras da resistência, obviam ente será recusado. Pior ainda, pode intensificar o medo dos grupos populares. I sto não significa que o educador não deva ousar. Precisa saber, porém, que a ousadia, ao implicar uma ação que vai mais além do lim ite aparente, tem seu lim ite real. Se falta este à percepção do grupo popular não pode faltar ao educador. Em últ ima análise, quanto mais r igorosamente competentes nos consideremos a nós mesmos e a nossos pares, tanto m ais devem os reconhecer que, se o papel organizador, interferente, do educador progressista não é jamais o de alojar- se, de arm as de bagagens, na cot idianidade popular, não é também o de quem, com desprezo inegável, considera nada ter a fazer com o que lá ocorre. A cot idianidade, Karel Kosik 1 deixou- o muito claro em sua Dialét ica do concret o, é o espaço- tem po em que a m ente não opera epistem ologicam ente em face dos objetos, dos dados, dos fatos. Se dá conta deles m as não apreende a razão de ser m ais profunda dos m esm os. I sto não significa, porém, que eu não possa e não deva tomar a cot idianidade e a forma como nela me

1 Karel, Kosik. Dialét ica do concreto. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976.

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movo no mundo como objeto de m inha reflexão; que não procure superar o puro dar- m e conta dos fatos a part ir da com preensão crít ica que dele vou ganhando. Às vezes, a violência dos opressores e sua dom inação se fazem tão profundas que geram em grandes setores das classes populares a elas subm et idas um a espécie de cansaço existencial que, por sua vez, está associado ou se alonga no que venho cham ando de anestesia histór ica, em que se perde a idéia do amanhã como projeto. O amanhã vira o hoje repet indo- se, o hoje violento e perverso de sem pre. O hoje do ontem , dos bisavós, dos avós, dos pais, dos filhos e dos filhos destes que virão depois. Daí a necessidade de uma séria e r igorosa “ leitura do mundo” , que não prescinde, pelo cont rár io, exige um a séria e r igorosa leitura de textos. Daí a necessidade de com petência cient ífica que não existe por ela e para ela, m as a serviço de algo e de alguém , portanto cont ra algo e cont ra alguém ... Daí a necessidade da intervenção com petente e democrát ica do educador nas situações dramát icas em que os grupos populares, dem it idos da vida, estão como se t ivessem perdido o seu endereço no mundo. Explorados e oprim idos a tal ponto que até a ident idade lhes foi expropriada 2 . Recentem ente, em conversa com igo em que falava de sua prát ica num a área cast igada, sofr ida, da periferia de São Paulo, uma pré- escola que funciona em salão paroquial e de cuja direção hoje fazem parte representantes das fam ílias locais, m e descreveu a educadora Madalena Freire Weffor t um dos seus momentos de intervenção. O caso de Madalena tem que ver com as reflexões que fiz anter iorm ente. Rondando a escola, peram bulando pelas ruas da vila, sem inua, sujo na cara, que escondia sua beleza, alvo de zom baria das out ras cr ianças e dos adultos tam bém , vagava perdida, e o pior, perdida de si mesma, uma espécie de menina de ninguém. Um dia, diz Madalena, a avó da menina a procurou pedindo que recebesse a neta na escola, dizendo também que não poderia pagar a quota quase simbólica estabelecida pela direção popular da escola. “Não creio que haja problema, disse Madalena, com relação ao pagamento. Tenho, porém, uma exigência para poder receber ‘Carlinha’. que me chegue aqui limpa, banho tomado, com um mínimo de roupa. È que venha assim todos os dias e não só am anhã.” A avó aceitou e prom eteu que cumprir ia. No dia seguinte Carlinha chegou à sala completamente mudada. Limpa, cara bonita, feições descobertas, confiante. Cabelos louros, para surpresa de toda gente. A limpeza, a cara livre das marcas do sujo, sublinhavam sua presença na sala. Em lugar das zombarias, elogios dos outros meninos. Carlinha começou a confiar nela mesma. A avó começou a acreditar também não só em Carlinha mas nela igualmente. Carlinha se descobriu; a avó se re-descobr iu. Um a apreciação ingênua dir ia que a intervenção de Madalena ter ia sido pequeno- burguesa, elit ista, alienada. Como exigir que uma criança favelada venha à escola de banho tomado? Madalena, na verdade, cum priu o seu dever de educadora progressista. Sua intervenção possibilitou à cr iança e à sua avó a conquista de um espaço, o da sua dignidade, no respeito dos out ros. Amanhã, será mais fácil a Carlinha se reconhecer, também, como membro de uma classe toda, a t rabalhadora, em busca de melhores dias. Sem intervenção do educador, intervenção dem ocrát ica, não há educação progressista. Mas, a intervenção do educador não se dá no ar . Se dá na relação que estabelece com os educandos no contexto m aior, em que os educandos vivem sua cot idianidade na qual se cria um 2 É preciso deixar claro, mesmo correndo o r isco de repet ir- me, que a superação de uma tal forma de estar sendo por parte das classes popula res se vai dando na práxis histór ica e polít ica, no engajam ento crít ico nos conflitos sociais. O papel, porém , do educador neste processo é de im ensa importância.

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conhecim ento de pura exper iência feito. A at iv idade docente da escola que visa à superação do saber de pura experiência feito, não pode, porém, como disse antes, recusar a importância da cot idianidade. É preciso sermos um pouco mais humildes quando nos refer im os a este saber – o de experiência feit o. Sábado passado part icipei do Primeiro Tribunal do Menor, em Teresina, a que acorreram umas sete m il pessoas. Ent re as testem unhas havia t rês cr ianças cham adas geralm ente “m enores carentes” , que falaram de sua vida, de seu t rabalho, da discr im inação que sofrem , do assassinato de seus companheiros. E o fizeram com ót imo domínio de linguagem, com clareza, com sabedoria e, às vezes, com humor. “Se diz – afirmou um deles – que nós, as cr ianças, som os o futuro do país. Mas não temos nem presente” , concluiu com um riso leve. A preocupação com os lim ites da prát ica, no nosso caso, da prát ica educat iva, enquanto ato polít ico, significa reconhecer, desde logo, que ela tem um a certa eficácia. Se não houvesse nada a fazer com a prát ica educat iva não havia por que falar dos seus lim ites. Da m esm a form a como não havia por que falar de seus lim ites se ela tudo pudesse. Falamos de seus lim ites precisamente porque, não sendo a alavanca da t ransform ação profunda da sociedade a educação pode algo no sent ido desta t ransform ação. Tenho dito vár ias vezes m as não é m au repet ir agora que não foi a educação burguesa a que cr iou a burguesia mas a burguesia que, emergindo, conquistou sua hegemonia e, derrocando a ar istocracia, sistem at izou ou com eçou a sistem at izar sua educação que, na verdade, v inha se gerando na luta da burguesia pelo poder. A escola burguesa ter ia de ter, necessariam ente, com o tarefa precípua dar sustentação ao poder burguês. Não há com o negar que esta é a tarefa que as classes dom inantes de qualquer sociedade burguesa esperam de suas escolas e de seus professores. É verdade. Não pode haver dúvida em torno disto. Mas, o out ro lado da questão está em que o papel da escola não term ina ou se esgota aí. Este é um pedaço apenas da verdade. Há out ra tarefa a ser cumprida na escola apesar do poder dom inante e por causa dele – a de desopacizar a realidade enevoada pela ideologia dom inante. Obviam ente, esta é a tarefa dos professores e das professoras progressistas que est ão certos de que têm o dever de ensinar com petentem ente os conteúdos m as tam bém estão certos de que, ao fazê- lo, se obrigam a desvelar o m undo da opressão. Nem conteúdo só, nem desvelam ento só, com o se fosse possível separá - los, mas o desvelamento do mundo opressor at ravés do ensino dos conteúdos. O cumprimento dessa tarefa progressista implica ainda a luta incansável pela escola pública, de um lado, e de out ro, o esforço para ocupar o seu espaço no sent ido de fazê- la melhor. Esta é uma luta que exige claridade polít ica e com petência cient íf ica. É por isso que, ao perceber a necessidade de sua com petência e de sua perm anente atualização o educador e a educadora progressista têm de criar em si mesmos a virtude ou a qualidade da coragem. A coragem de lutar por salários menos imorais e por condições menos desfavoráveis ao cumprimento de sua tarefa. Consciente dos lim ites de sua prát ica, a professora progressista sabe que a questão que se coloca a ela não é a de esperar que as t ransform ações radicais se realizem para que possa atuar. Sabe, pelo cont rár io, ter m uito o que fazer para ajudar a própria t ransform ação radical. É aí, ao saber que tem m uito o que fazer, que não está condenada ao im obilism o fatalista, im obilism o que não é capaz de com preender a dialet icidade ent re infra e supra est rutura, que o problem a dos lim ites à sua prát ica se põe a ele ou a ela. É exatam ente nesse nível crít ico que, recusando a visão ingênua da educação com o alavanca da t ransform ação, recusa, igualm ente, o desprezo por ela, com o se a educação fosse coisa a ser feita só “depois” da m udança radical da sociedade. É aí tam bém que deve com eçar e intensificar um grande e bom com bate: o de fazer educação popular na escola pública, não importa o grau. É esse o momento também em que o educador progressista percebe que a clar idade polít ica é indispensável, necessária, m as não suficiente, com o tam bém percebe que a com petência cient ífica é necessária m as igual- m ente não suficiente.

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Gostaria, agora, de apresentar, numa listagem cuja ordem não implica maior ou menor im portância, alguns dos obstáculos com os quais nos defrontam os na prát ica educat iva e a respeito dos quais devem os estar alertados. A distância dem asiado grande ent re o discurso do educador e sua prát ica, sua incoerência, é um desses obstáculos. O educador diz de si mesmo que é um progressista, discursa progressistamente e tem um a prát ica ret rógrada, autor itár ia, na qual t rata os educandos com o puros pacientes de sua sabedoria. Na verdade, sua prát ica autor itár ia é que é o seu verdadeiro discurso. O out ro é pura sonoridade verbal. Obstáculo, tam bém , à prát ica progressista, com o já salientei antes, é a posição que às vezes se pensa ser o cont rár io posit ivo da autor itár ia e não é: a licenciosa, em que o educador recusa interferir como organizador necessário, como ensinante, como desafiador. Não m enos prejudicial à prát ica progressista é a dicotom ia ent re prát ica e teor ia que ora se vive em posições de caráter basista, em que só a prát ica em áreas populares é válida, funcionando como uma espécie de passaporte do m ilitante, ora só é válida num a teor ização academ icista ou intelectualista. Na verdade, o que devem os buscar é a unidade dialét ica, cont raditór ia, ent re teor ia e prát ica, jam ais sua dicotom ia. A questão da linguagem, no fundo, uma questão de classe, é igualm ente out ro ponto em que pode emperrar a prát ica educat iva progressista. Um educador progressista que não seja sensível à linguagem popular, que não busque int im idade com o uso das metáforas, das parábolas no meio popular, não pode com unicar- se com os educandos, perde a eficiência, é incom petente. Quando me refiro aqui à sintaxe, à est rutura de pensamento popular, à necessidade que tem o educador progressista de fam iliar izar- se com ela, não estou sugerindo que ele renuncie à sua, como também à sua prosódia para ident ificar- se com a popular. Ser ia falsa esta postura, populista e não progressista. Não se t rata de que o educador passe a dizer “a gente cheguem os” . Trata- se do respeito e da compreensão a e por uma linguagem diferente. Não se t rata tam pouco de não ensinar o chamado “padrão culto” mas de, ao ensiná- lo, deixar claro que as classes populares, ao aprendê- lo, devem ter nele um inst rumento a mais para melhor lutar contra a dominação. O problema da sintaxe nos remete ao da est rutura do pensam ento, à sua organização. Pensam ento, linguagem , concretude, apreensão do concreto, abst ração, conhecim ento. Nisso se acha out ro ponto de est rangulam ento da prát ica progressista. A form ação intelectual do educador o leva a pensar a part ir do abst rato, dicotom izado do concreto. Por isso é que m e parece m ais preciso dizer que sua form ação o leva a descrever m ais o conceito m esm o do objeto. Na sintaxe ou na organização popular do pensam ento se descreve o objeto e não o seu conceito. Se se pergunta a um estudante universitár io o que é favela, sua tendência é, usando o verbo ser, verbo conotat ivo, descrever o conceito favela. Se se faz a m esm a pergunta a um favelado, sua tendência é descrever a sit uação concreta da favela, usando o verbo t er na negat iva. “Na favela não t em água, farm ácia” , etc. O m ilitante progressista que vai à área popular tende a fazer um discurso sobre a mais- valia em lugar de discut i- la com os t rabalhadores, surpreendendo- a na análise do m odo de produção capitalista, quer dizer, na análise da própria experiência do t rabalhador3 . Me disse certa vez um am igo, o jovem educador m exicano Arturo Ornelas, que, pretendendo fazer a const rução de um círculo, já não m e recordo com que objet ivo, após haver m arcado no terreno quatro pon t os cuja ligação daria a redondez, pediu a t rês cam poneses com certa experiência de const rução que fizessem a obra. Poucos dias depois o am igo voltou ao terreno e nada havia sido feito. Os homens diziam que, na verdade, não sabiam como realizar, como const ruir a redondez. O amigo insist iu em que poderiam fazer e marcou novo encontro para ver como iam as coisas. No dia

3 É a partir daí que o educador pode mais tarde dar aula sobre a mais-valia.

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acertado voltou e encont rou dois círculos de estacas f incadas no solo com a distância de uns cinqüenta cent ím et ros ent re um e out ro. Foi discut indo com os hom ens sobre a ut ilidade dos dois círculos de estacas que eles perceberam que, ret irando as estacas, poderiam dem arcar o terreno com cal e facilm ente cavar o chão e fazer o alicerce. Foi preciso, primeiro, part indo de uma pura vaguidade sobre a redondez, fazê- la concretam ente para, depois, apreendê- la em abst rato e, assim , voltar ao concreto. Const ruí- la. Certa vez, num encont ro que t ive em São Luiz do Maranhão, com intelectuais que atuavam em áreas rurais e urbanas com t rabalhadores populares, ouvi dois depoimentos sobre os quais vale a pena pensar. Depoimentos em torno da linguagem e do saber popular. O primeiro fala de uma reunião entre um grupo de cam poneses e out ro, de educadores profissionais, em que se tentava um a avaliação do t rabalho então se realizando. Em pouco tem po, diz o inform ante, os intelecutais com eçaram a preocupar- se com porm enores técnicos de sua prát ica e a distanciar- se da realidade concreta. De repente, então, cont inua o inform ante, um dos cam poneses fala e diz: “Do jeit o que as coisas vão não vai dar pra cont inuar nossa conversa, porque, enquanto vocês aí tá interessado no Sal, nós, cá” , refer indo- se aos cam poneses, “ tá interessado no Tem pero e o sal é só um a parte do tem pero” . O segundo se refer ia ao esforço que fizera para ser aceito por um a com unidade eclesial de base na esperança de obter a perm issão de se experimentar a si mesmo nas reuniões com os camponeses. Na terceira tentat iva foi finalm ente aceito. I niciada a reunião o cam ponês que liderava pediu que se apresentasse e, em seguida, conta o segundo inform ante, dir igindo- se a ele disse: “Am igo, se você veio aqui pensando que ia ensinar nós a derrubar o pau, nós tem de dizer a você que não tem precisão. Nós já sabe derrubar o pau. O que nós quer saber é se você vai tá com nós na hora do tom bo do pau” . Um dos obstáculos à nossa prát ica está aí. Vam os às áreas populares com os nossos esquem as “ teóricos” m ontados e não nos preocupam os com o que sabem já as pessoas, os indivíduos que lá estão e com o sabem . Não nos interessa saber o que homens e mulheres populares conhecem do m undo, com o o conhecem e com o nele se reconhecem , não nos interessa entender sua linguagem em torno do mundo. Não nos interessa saber se já sabem derrubar o pau. I nteressa- nos, pelo cont rár io, que “conheçam ” o que conhecem os e da form a com o conhecem os. E quando assim nos com portam os, prát ica ou teoricam ente, som os autor itár ios, elit istas, reacionários, não importa que digamos de nós mesmos que somos avançados e pensamos dialet icam ente. Para concluir: Que a alfabet ização tem que ver com a ident idade individual e de classe, que ela tem que ver com a formação da cidadania, tem. É preciso, porém, sabermos, primeiro, que ela não é a alavanca de uma tal formação – ler e escrever não são suficientes para perfilar a plenitude da cidadania –, segundo, é necessário que a tornem os e a façam os com o um ato polít ico, jam ais com o um que fazer neut ro.

São Paulo/ Brasília, maio de 1987

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DO DI REI TO DE CRI TI CAR – DO DEVER DE NÃO MENTI R, AO CRI TI CAR O direito de crit icar e o dever, ao cr it icar, de não faltar à verdade para apoiar nossa crít ica é um imperat ivo ét ico da mais alta importância no processo de aprendizagem de nossa democracia. É preciso aceitar a crít ica sér ia, fundada, que recebem os, de um lado, com o essencial ao avanço da prát ica e da reflexão teór ica, de out ro, ao crescim ento necessár io do sujeito cr it icado. Daí que, ao serm os cr it icados, por m ais que não nos agrade, se a crít ica é correta, fundam entada, feita et icam ente, não tem os com o deixar de aceit á- la, ret ificando assim nossa posição anterior. Assumir a cr ít ica im plica, portanto, reconhecer que ela nos convenceu, parcial ou totalm ente, de que estávamos incorrendo em equívoco ou erro que merecia ser corr igido ou superado. I sto significa termos de aceitar algo óbvio: que nossas análises dos fatos, das coisas, que nossas reflexões, que nossas propostas, que nossa com preensão do m undo, que nossa m aneira de pensar, de fazer polít ica, de sent ir a boniteza ou a feiúra, as injust iças, que nada disso é unanim em ente aceito ou recusado. I sto significa, fundam entalm ente, reconhecer que é im possível estar no m undo, fazendo coisas, influenciando, intervindo, sem ser cr it icado. Mas, apesar da obviedade do que acabo de dizer, isto é, de que é impossível agradar a gregos e t roianos, quem faz algo tem de exercitar a hum ildade antes mesmo de começar a aparecer em função do que com eçou a fazer. Vivida autent icam ente, a hum ildade acalm a, pacifica os possíveis ím petos de intolerância de nossa vaidade em face da crít ica, mesm o justa, que recebem os. Não é possível, por out ro lado, exercermos o direito de cr it icar, em termos const rut ivos, pretendendo ter no cr it icar um testem unho educat ivo, sem encarnar um a posição r igorosam ente ét ica. Assim , o direito à prát ica de cr it icar exige de quem o assume o cumprimento à risca de certos deveres que, se não observados, ret iram a validade e a eficácia da cr ít ica. Deveres com relação ao autor que cr it icam os e deveres com relação aos leitores de nosso texto cr ít ico. Deveres, no fundo, com relação a nós mesmos também. O primeiro deles é não ment ir. Não ment ir em torno do crit icado, não ment ir aos leitores nem a nós próprios. Podemos nos equivocar, podemos errar. Ment ir, nunca. Um out ro dever é procurarm os, com r igor, conhecer o objeto de nossa cr ít ica. Não é ét ico nem rigoroso crit icar o que não conhecemos. Não posso fundar m inha crít ica ao pensamento de A ou de B no que ouvi dizer de A e de B, nem sequer no que apenas li sobre A e B, mas no que eu mesmo li, no que pesquisei em torno de seu pensam ento. É claro que, para cr it icar posit iva ou negat ivamente o pensamento de A ou de B, me é importante também saber o que deles dizem out ros autores. I sto porém não basta. A exigência de conhecer o pensam ento a ser cr it icado independe do bem- querer ou do malquerer que tenham os à pessoa cujo pensam ento analisam os. Com o cr it icar um texto que nem sequer li, baseado apenas na raiva que tenho do autor ou da autora ou porque José e Maria m e disseram que o autor do texto é espontaneísta? Que tem os o direito de ter raiva de gentes não há dúvida. É óbvio tam bém . O direito que tenho de ter raiva de Maria ou de José não pode se alongar, porém, ao de ment ir em torno dele ou dela. Não posso dizer, por exemplo, sem provar, que José e Maria disseram que pode haver prát ica educat iva sem conteúdos. Em primeiro lugar, esta afirmação é uma inverdade histórica. Nunca houve nem há educação sem conteúdos. Segundo, se digo isto de José e de Maria, sublinhando portanto seu erro, sem provar que eles, na verdade, fizeram tal afirmação, m into com relação a José e Maria, m into com relação a m im mesmo e cont inuo t rabalhando cont ra a democracia, que não se const rói no falseam ento da verdade. Se minha indisposição por A ou por B provoca em mim um mal- estar que vai mais além dos lim ites, o que inviabiliza ou, no mínimo, dificulta que os leia, me devo obrigar uma posição de silêncio em face do que escrevem. E devo ainda cr it icar- m e por não ser capaz de superar m eus mal- estares pessoais. O que não posso é engrossar a fila dos que falam por falar, por ouvir dizer, e às vezes até sem nenhum a recusa afet iva a quem cr it ica. Pelo cont rár io, dos que inclusive se dizem am igos do intelectual cr it icado m as que gravaram , com o clichê im utável frases feitas que se

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repetem com ares de enorme sabedoria. I nsisto em que a falha destes não está no fato de crit icarem um amigo. Não há pecado nenhum em crit icar um amigo desde que o façamos et icam ente. Certa vez li, em um texto crít ico de meu t rabalho, que sou pouco r igoroso no t rato dos temas. Em certo mo mento, por uma razão de que já não me recordo, o crít ico citou um t recho da Pedagogia do oprim ido com um erro lamentável que vinha se repet indo em diferentes reimpressões. “A invasão da práxis” em lugar de “A inversão da práxis” . Me impressionou que um int electual, que surpreende falta de rigor noutro, não perceba quão pouco r igoroso é ao citar sem elhante não-senso: “a invasão da práxis.” E não como prova de m inha falta de r igor. Faltoso de r igor, esse intelectual sublinha o pouco r igor do out ro. O direit o à crít ica exige também do crít ico um saber que deve ir além do saber em torno do objeto direto da crít ica. Saber indispensável à r igorosidade do crít ico. Out ro dever ét ico de quem cr it ica é deixar claro a seus leitores que sua cr ít ica abarca um texto apenas do cr it icado ou sua obra toda, seu pensam ento. Se o autor cr it icado escreveu vários t rabalhos, ao cr it icarm os um deles, não podem os dizer que a cr ít ica é a seu pensam ento com o totalidade, a não ser que, conhecendo a totalidade, nos convençam os disto. Reitero: o que não é possível é ler um ent re dez textos e estender aos nove restantes a crít ica feita a um , antes de analisar r igorosam ente os dem ais. A est icidade do t rabalho intelectual não me perm ite a irresponsabilidade de ser leviano na apreciação da produção dos out ros. Com o disse antes, posso errar, posso m e equivocar ou m e confundir na m inha análise m as não posso distorcer o pensam ento que estudo e cr it ico. Não posso dizer que o autor que cr it ico disse Y se ele disse M e eu estou cer to de que ele disse M. Não posso crit icar por pura inveja ou por pura raiva ou para simplesmente aparecer. É inadm issível que, ent re intelectuais de bom nível, escutemos afirmações como esta: – Você já leu um t rabalho recente desse autor que você cr it ica tão duram ente? – Não. E tenho raiva de quem leu. Este discurso nega totalm ente o intelectual que o faz. Pior ainda: este discurso em nada cont r ibui para a form ação ét ico- cient ífica dos alunos ou alunas de tal intelectual. Recentem ente escutei de educanda em tom sofrido, o quanto a decepcionara ter ouvido de professor em quem confiava referências cr ít icas a certo intelectual fundadas quase no “m e disseram” ou no “é isso o que se diz” . Os professores não ensinam os apenas os conteúdos. At ravés do ensino deles, ensinam o s também a pensar cr it icam ente, se som os progressistas e ensinar para nós, por isso m esm o, não é depositar pacotes na consciência vazia dos educandos. O nosso testem unho de ser iedade nas citações ou nas referências que fazem os a autores de quem discordamo s ou com quem concordam os ou, pelo cont rár io, a nossa irresponsabilidade no t rato dos tem as e dos autores, tudo isso pode interfer ir de m aneira negat iva ou posit iva na form ação perm anente dos educandos. De estudante brasileiro fazendo seu doutoramento em Paris ouvi, anos at rás, o seguinte: “Aprendi recentem ente a signif icação profunda das citações. Estava discut indo um pequeno texto com m eu orientador em que fazia um a citação de Merleau - Ponty. O professor fez um gesto de pausa e m e colocou duas perguntas: – Você leu, pelo m enos, o capítulo inteiro de que você ret irou a citação? – Você está m esm o cer to de que precisa fazer esta cit ação?”

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“Na verdade” , disse o am igo, “não havia lido Ponty e, desafiado pelas perguntas do or ientador, fui ao texto de Merleau, revi o m eu e percebi que a citação era desnecessár ia” . Citar, realmente, não pode ser pura exibição intelectual ou remédio para insegurança. Ler um livro, por exemplo, na t radução brasileira, por não dominar suficientem ente a língua m aterna do autor, mas fazer a citação naquela é procedim ento pouco ét ico e nada respeitável. Citar não pode ser, ainda, art ifício, at ravés do qual alongam os o nosso texto com retalhos de textos de out ros. Creio ser urgente, ent re nós, superar este m au hábito que é, no fundo, um testemunho deformante, de crit icar, de m inim izar um autor, de imputar- lhe afirmações que jamais fez ou distorcer as que realm ente fez. E de fazê- lo com ares de seriedade e de certeza tais que poderiam deixar em dúvida até o autor injustam ente cr it icado. Em certo m om ento do processo os cr ít icos se apóiam apenas no que ouvem e não no que lêem ou pesquisam. A crít ica fácil, ligeira, se alast ra irresponsável e, não raro, se perde no tem po. De repente, se ouve ainda de alguns desses crít icos perdidos no tem po, como presenças mal- assombradas, que Freire é idealista. Que a conscient ização na sua obra é a melhor prova de sua ilusão subjet ivista. Não leram um texto de 1970 em que discuto det idamente este problema, um outro de 1974, ambos publicados pela Editora Paz e Terra em 1975, em Ação cultural para a liberdade e out ros escr it os. Não leram uma série de ensaios, de ent revistas, de livros dialógicos aparecidos nos anos 80 e, m ais recentem ente, a Pedagogia da esperança, um reencont ro com a Pedagogia do opr im ido, que a Paz e Terra acaba de publicar. Não leram igualm ente A educação na cidade publicação da Cortez, de dezembro de 1991. Não que me pense devendo ser lido por toda gente. Não! Mas por quem, cr it icando- m e, não pode fur tar- se à leitura do que cr it ica. O direito incontestável de cr it icar exige de quem o exerce o dever de não m ent ir .

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EDUCAÇÃO E PARTI CI PAÇÃO COMUNI TÁRI A Numa primeira aproximação ao enunciado que guarda em si o tema sobre que devo falar hoje, me parece fundamental que, dele tomando distância, alcance a sua substant iv idade. Sua signif icação mais profunda. Em últ ima análise, o que o enunciado sugere é que, part indo de uma compreensão crít ica da prát ica educat iva bem como de uma compreensão crít ica da par t icipação com unit ár ia, nos alonguem os em considerações e análises em torno de suas relações. Em torno de com o, fazendo educação num a perspect iva crít ica, progressista, nos obr igam os, por coerência, a engendrar, a est im ular, a favorecer, na própria prát ica educat iva, o exercício do direito à par t icipação por parte de quem esteja direta ou indiretamente ligado ao que fazer educat ivo. Assim , comecemos a pensar um pouco e em voz alta sobre o que entendemos por prát ica educat iva. Deixem os a com preensão de um a certa prát ica educat iva, a progressista, para mais adiante, e nos f ixem os, agora, no esforço de inventar iar conotações da prát ica educat iva que tanto estão presentes se a prát ica é progressista ou se se realiza para tentar m anter o st at us quo; se é neo- liberal, pós- m odernam ente conservadora ou se, pelo cont rár io, é pós- modernamente progressista. O que nos interessa agora, pois, é surpreender certos núcleos fundam entais que fazem com que possam os dizer: esta não é um a prát ica educat iva. Esta é um a prát ica educat iva. Me parece que o primeiro aspec to a sublinhar é que a prát ica educat iva é um a dim ensão necessár ia da prát ica social, com o a prát ica produt iva, a cultural, a religiosa, etc. Enquanto prát ica social a prát ica educat iva, em sua r iqueza, em sua com plexidade, é fenôm eno t ípico da existência , por isso mesmo fenômeno exclusivamente humano. Daí, também, que a prát ica educat iva seja histór ica e tenha histor icidade. A existência hum ana não tem o ponto determ inante de sua cam inhada fixado na espécie. Ao inventar a existência, com os “m ateriais” que a vida lhes ofereceu, os homens e as mulheres inventaram ou descobriram a possibilidade que implica necessariamente a liberdade que não receberam mas que t iveram de criar na briga por ela. Seres indiscut ivelmente programados, mas, como salienta François Jacob 1 , “programados para aprender” , portanto seres curiosos, sem o que não poderiam saber, mulheres e homens se arr iscam, se aventuram, se educam no jogo da liberdade. Sem a invenção da linguagem nada disso teria sido possível mas, por out ro lado, a linguagem, que não existe sem pensamento enquanto é possível pensamento sem linguagem, não surgiu ou se const ituiu por pura decisão inteligente do anim al virando gente. As m ãos soltas, liberadas, t rabalhando inst rum entos para a caça, que alongavam o corpo am pliando assim seu espaço de ação, t iveram importância indiscut ível na const rução social da linguagem. Faz muito tempo que Sollas disse: “Os t rabalhos feitos pelas mãos do homem são seu pensamento revest ido de matéria2 . ” Não há dúvida de que a linguagem se desenvolveu e se desenvolve enquanto coisas são feitas por indivíduos para si mesmos ou para out ros também, em cooperação. É preciso, porém, reconhecer que o uso de inst rum entos e sua fabr icação não bastavam , tam pouco o t rabalho não isolado. Outros animais usam instrumentos e, mais ainda, caçam juntos e, nem por isso, falam.

1 François Jacob. Nous sommes programmés, mais pour apprendre, Le Courr ier de L’Unesco, Févr ier, 1991. 2 Ashley Montagu. Toolmaking, hunt ing and the Origin of Language; in The Sociogenesis of' Language and Hum an Conduct . Edited by Bruce Bain, New York, Plenum Press, p. 3.

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“A at iv idade específica dos seres hum anos” , diz Josef Schubert 3 “ é o uso cooperat ivo de inst rum entos na produção e na aquisição de alim ento e out ros bens.” E, para isso, a linguagem se fez necessár ia. Foi reinventando- se a si m esm o, experim entando ou sofrendo a tensa relação ent re o que herda e o que recebe ou adquire do contexto social que cr ia e que o recria, que o ser hum ano veio se tornando este ser que, para ser , tem de estar sendo. Este ser histór ico e cultural que não pode ser explicado som ente pela biologia ou pela genét ica nem tam pouco apenas pela cultura. Que não pode ser explicado som ente por sua consciência com o se esta em lugar de ter- se const it uído socialm ente e t ransform ado seu corpo em um corpo consciente t ivesse sido a cr iadora todo-poderosa do m undo que o cerca, nem tam pouco pode ser explicado com o puro resultado das t ransform ações que se operaram neste m undo. Este ser que vive, em si m esm o, a dialét ica ent re o social, sem o que não poderia ser e o individual, sem o que se dissolveria no puro social, sem marca e sem perfil. Este ser social e histór ico, que som os nós, m ulheres e hom ens, condicionado m as podendo reconhecer- se como tal, daí poder superar os lim ites do próprio condicionamento, “programado [ mas] para aprender” – ter ia necessariam ente que ent regar- se à experiência de ensinar e de aprender. A organização de sua produção, a educação das gerações m ais j ovens ou o culto de seus m ortos, tanto quanto a expressão de seu espanto diante do m undo, de seus m edos, de seus sonhos, que são um a certa “escr ita” art íst ica de sua realidade que ele sem pre “ leu” , m uito antes de haver inventado a escr ita ou a tentat iva sem pre presente de decifrar os m istér ios do m undo pela adivinhação, pela magia e, depois, pela ciência, tudo isso teria de acompanhar mulheres e homens como criação sua e como inst igação para mais aprender, para mais ensinar, para mais conhecer. Fixemo - nos agora na prát ica educat iva em si tal qual a realizam os hoj e e t entem os detectar nela os sinais que a caracter izam com o tal. Procurem os surpreender seus com ponentes fundam entais sem os quais não há prát ica educat iva. De forma simples, esquemát ica até, mas não simplista, poderemos dizer que toda situação educat iva implica: a) Presença de sujeitos. O sujeito que, ensinando, aprende e o sujeito que, aprendendo, ensina. Educador e educando. b) Objetos de conhecim ento a ser ensinados pelo professor (educador) e a ser apreendidos pelos alunos (educandos) para que possam aprendê- los. Conteúdos. c) Objet ivos m ediatos e im ediatos a que se dest ina ou se or ienta a prát ica educat iva. É exatamente esta necessidade de ir mais além de seu momento atuante ou do momento em que se realiza – diret iv idade da educação – que, não perm it indo a neut ralidade da prát ica educat iva, exige do educador a assunção, de form a ét ica, de seu sonho, que é polít ico. Por isso, im possivelm ente neut ra, a prát ica educat iva coloca ao educador o im perat ivo de decidir , por tanto, de rom per e de opt ar , tarefas de sujeito part icipante e não de objeto m anipulado. d) Métodos, processos, técnicas de ensino, m ater iais didát icos, que devem estar em coerência com os objet ivos, com a opção polít ica, com a utopia, com o sonho de que o projeto pedagógico está im pregnado. Se os seres hum anos não t ivessem virado capazes, por causa, ent re out ras coisas, da invenção da linguagem conceituai, de optar, de decidir , de rom per, de projetar, de refazer- se ao 3 Josef Schubert , The im plicat ions of Lur ia’s theor ies for cross- cultural research on language and intelligence; in The Sociogenesis cif Language and Hum an Conduct . Edited by Bruce Bain, New York, Plenum Press, p. 61.

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refazer o m undo, de sonhar; se não se t ivessem tornado capazes de valorar, de dedicar- se até ao sacrifício ao sonho por que lutam , de cantar e decantar o m undo, de adm irar a boniteza, não havia por que falar da impossibilidade da neut ralidade da educação. Mas não havia também por que falar em educação. Falam os em educação porque podem os, ao prat icá- la, até mesmo negá- la. É o uso da liberdade que nos leva à necessidade de optar e esta à im possibilidade de ser neut ros. Agora bem, a impossibilidade total de ser neut ros em face do mundo, do futuro – que não entendo como um tempo inexorável, um dado dado, mas como um tempo a ser feito at ravés da t ransform ação do presente com que se vão encarnando os sonhos –, nos coloca necessar iam ente o direito e o dever de nos posicionar como educadores. O dever de não nos om it ir . O direit o e o dever de viver a prát ica educat iva em coerência com a nossa opção polít ica. Daí que, se a nossa é um a opção progressista, substant ivam ente dem ocrát ica, devem os, respeitando o direito que têm os educandos de tam bém optar e de aprender a optar, para o que precisam de liberdade, testem unhar- lhes a liberdade com que optamos (ou os obstáculos que t ivemos para fazê- lo) e jamais tentar sub- rept iciamente ou não impor- lhes nossa escolha. Se a nossa é um a opção dem ocrát ica e se som os coerentes com ela, de tal maneira que nossa prát ica não cont radiga o nosso discurso, não nos é possível fazer um a sér ie de coisas não raro realizadas por quem se proclama progressista. Vejamos algumas: 1) Não tom ar em consideração o conhecim ento de experiência feito com que o educando chega à escola, valorando apenas o saber acum ulado, cham ado cient ífico, de que é possuidor. 2) Tom ar o educando com o objeto da prát ica educat iva de que ele é um dos sujeitos. Desta form a, o educando é pura incidência de sua ação de ensinar. A ele com o sujeito lhe cabe ensinar, quer dizer, t ransfer ir pacotes de conhecim ento ao educando; a este cabe docilm ente receber agradecido o pacote e memorizá- lo. Ao educador dem ocrata lhe cabe tam bém ensinar m as, para ele ou ela, ensinar não é este ato m ecânico de t ransfer ir aos educandos o perfil do conceito do objeto. Ensinar é sobretudo tornar possível aos educandos que, epistem ologicam ente curiosos, vão se apropriando da significação profunda do objeto som ente com o, apreendendo- o, podem aprendê- lo. Ensinar e aprender para o educador progressista coerente são m om entos do processo m aior de conhecer. Por isso m esm o, envolvem busca, viva cur iosidade, equívoco, acerto, erro, serenidade, r igorosidade, sofr imento, tenacidade mas também sat isfação, prazer, alegria 4 . 3) Alardear aos quat ro ventos que quem pensa diferentemente, quer dizer, quem respeita o saber com que o educando chega à escola, não para ficar girando em torno dele mas para ir além dele, é populista, focalista e licencioso. 4) Defender a visão est reit a da escola com o um espaço exclusivo de “ lições a ensinar e de lições a tom ar” , devendo assim estar im unizada (a escola) das lutas, dos conflitos, que se dão “ longe dela” , no m undo distante. A escola, no fundo, não é sindicato.. . 5) Hipert rofiar sua autoridade a tal ponto que afogue as liberdades dos educandos e se estas se rebelam a solução está no reforço do autoritar ism o. 6) Assum ir constantem ente posições intolerantes nas quais é im possível a convivência com os diferentes. A intolerância é sectár ia, acrít ica, cast radora. O intolerante se sente dono da verdade, que é dele. Não é possível crescer na intolerância. O educador coerentem ente progressista sabe que estar dem asiado certo de suas certezas pode conduzi- lo a considerar que fora delas não há salvação. 4 Ver a este propósito Georges Snyders, sobretudo La Joie à l’école. Paris, Press Universitaires de France, 1986.

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O intolerante é autoritário e messiânico. Por isso mesmo em nada ajuda o desenvolvimento da dem ocracia. 7) Fundar sua procura da m elhora qualitat iva da educação na elaboração de “pacotes” conteudíst icos a que se j untam m anuais ou guias endereçados aos professores para o uso dos pacot es. Percebe- se como uma tal prát ica t ranspira autoritarismo. De um lado, no nenhum respeito à capacidade cr ít ica dos professores, a seu conhecim ento, à sua prát ica; de out ro, na arrogância com que meia dúzia de especialistas que se julgam ilum inados elabora ou produz o “pacote” a ser docilmente seguido pelos professores que, para fazê- lo, devem recorrer aos guias. Um a das conotações do autor itar ism o é a total descrença nas possibilidades dos out ros. O máximo que faz a liderança autoritár ia é o arremedo de democracia com que às vezes procura ouvir a opinião dos professores em torno do programa que já se acha, porém, elaborado. Em lugar de apostar na form ação dos educadores o autor itar ism o aposta nas suas “propostas” e na avaliação poster ior para ver se o “pacote” foi realm ente assum ido e seguido. Do ponto de v ista coerentem ente progressista, portanto dem ocrát ico, as coisas são diferentes. A m elhora da qualidade da educação im plica a form ação perm anente dos educadores. E a form ação perm anente se funda na prát ica de analisar a prát ica. É pensando sua prát ica, naturalm ente com a presença de pessoal alta- mente qualificado, que é possível perceber embut ida na prát ica uma teor ia não percebida ainda, pouco percebida ou já percebida m as pouco assum ida. Ent re “pacotes” e form ação perm anente o educador progressista coerente não vacila: se ent rega ao t rabalho de form ação. É que ele ou ela sabe m uito bem , ent re out ras coisas, que é pouco provável conseguir a cr it icidade dos educandos at ravés da dom est icação dos educadores. Com o pode a educadora provocar no educando a cur iosidade cr ít ica necessár ia ao ato de conhecer, seu gosto do r isco, da aventura cr iadora, se ela m esm a não confia em si, não se arr isca, se ela m esm a se encontra amarrada ao “guia” com que deve t ransfer ir aos educandos os conteúdos t idos com o “salvadores”? Esta form a autor itár ia de apostar nos pacotes e não na form ação cient íf ica, pedagógica, polít ica do educador e da educadora revela com o o autor itár io tem e a liberdade, a inquietação, a incer teza, a dúvida, o sonho e anseia pelo imobilismo. Há muito de necrofilico no autoritário assim como há muito biofilico5 no progressista coerentem ente dem ocrát ico. Creio que, depois de todas as considerações feitas até agora, nos é possível com eçar a reflet ir cr it icam ente tam bém sobre a questão da part icipação em geral e da part icipação com unitár ia em part icular. A pr im eira observação a ser feita é que a part icipação, enquanto exercício de voz, de ter voz, de ingerir, de decidir em certos níveis de poder, enquanto direito de cidadania se acha em relação direta, necessár ia, com a prát ica educat ivo - progressista, se os educadores e educadoras que a realizam são coerentes com seu discurso. O que quero dizer é o seguinte: const itui cont radição gr itante, incoerência clam orosa um a prát ica educat iva que se pretende progressista m as que se realiza dentro de modelos de tal maneira rígidos, vert icais, em que não há lugar para a mais m ínim a posição de dúvida, de curiosidade, de crít ica, de sugest ão, de presença v iva, com voz, de professores e professoras que devem estar subm issos aos pacotes; dos educandos, cujo direito se resume ao dever de estudar sem indagar, sem duvidar, subm issos aos professores; dos zeladores, das cozinheiras, dos vigias que, t rabalhando na escola, são tam bém educadores e precisam ter voz; dos pais, das m ães, que são convidados a vir à escola ou para fest inhas de fim de ano ou para receber queixas de seus filhos ou para se engajar em mut irões para o reparo do prédio ou até para

5 A propósito de necrofilia e biofilia, ver Erich Fromm, sobretudo O coração do hom em , Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1981.

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“part icipar” de quotas a fim de comprar material escolar... Nos exemplos que dei, temos, de um lado, a proibição ou a inibição total da part icipação; de out ro, a falsa part icipação. Quando fui Secretár io de Educação da cidade de São Paulo, obviam ente compromet ido com fazer um a adm inist ração que, em coerência com o nosso sonho polít ico, com a nossa utopia, levasse a sér io, com o devia ser, a questão da part icipação popular nos dest inos da escola, t ivem os, m eus companheiros de equipe e eu, de começar pelo com eço m esm o. Quer dizer, com eçam os por fazer um a reform a adm inist rat iva para que a Secretaria de Educação t rabalhasse de form a diferente. Era impossível fazer uma adm inist ração democrát ica, em favor da autonom ia da escola que, sendo pública fosse também popular, com est ruturas adm inist rat ivas que só viabilizavam o poder autor itár io e hierarquizado. Do Secretár io aos diretores im ediatos, destes aos chefes de setores que, por sua vez, estendem as ordens às escolas. Nestas, a Diretora, j untando às ordens recebidas alguns caprichos seus, em udecem zeladores, vigias, cozinheiras, professoras e alunos. Claro que há sempre exceções, sem as quais o t rabalho de mudança restaria demasiado difícil. Não seria possível pôr a rede escolar à altura dos desafios que a demo cracia brasileira em aprendizagem nos coloca est im ulando a t radição autor itár ia de nossa sociedade. Era preciso, pelo cont rár io, dem ocrat izar o poder, reconhecer o direito de voz aos alunos, às professoras, dim inuir o poder pessoal das diretoras, cr iar instâncias novas de poder com os Conselhos de Escola, deliberat ivos e não apenas consult ivos e at ravés dos quais, num primeiro momento, pais e mães ganhassem ingerência nos dest inos da escola de seus filhos; num segundo, esperamos, é a própria comunidade local que, tendo a escola com o algo seu, se faz igualm ente presente na condução da polít ica educacional da escola. Era preciso, pois, dem ocrat izar a Secretar ia. Descent ralizar decisões. Era necessário inaugurar um governo colegiado que lim itasse o poder do Secretário. Era preciso reor ientar a polít ica de form ação dos docentes, superando os t radicionais cursos de fér ias em que se insiste no discurso sobre a teor ia, pensando- se em que, depois, as educadoras põem em prát ica a teor ia de que se falou no curso pela prát ica de discut ir a prát ica. Esta é um a eficaz forma de vivermos a unidade dialét ica ent re prát ica e teoria. O que quero deixar claro é que um m aior nível de part icipação dem ocrát ica dos alunos, dos professores, das professoras, das m ães, dos pais, da comunidade local, de uma escola que, sendo pública, pretenda ir tornando- se popular, demanda est ruturas leves, disponíveis à mudança, descent ralizadas, que viabilizem, com rapidez e eficiência, a ação governam ental. As est ruturas pesadas, de poder cent ralizado, em que soluções que precisam de celer idade, as arrastam de setor a setor, à espera de um parecer aqui, de out ro acolá, se ident ificam e servem a adm inist rações autor itár ias, elit istas e, sobretudo, t radicionais, de gosto colonial. Sem a t ransform ação de est ruturas assim que term inam por nos perfilar à sua maneira, não há como pensar em part icipação popular ou comunitária. A democracia demanda est ruturas dem ocrat izantes e não est ruturas inibidoras da presença part icipat iva da sociedade civil no comando da r es- pública. Foi isso o que fizem os. Devo ter sido o Secretár io de Educação da cidade de São Paulo que m enos poder pessoal teve m as pude, por isso m esm o, t rabalhar eficazm ente e decidir com os out ros. Recentemente, aluna 6 de pós- graduação do Program a de Supervisão e Curr ículo da Pont ifícia Universidade Católica de São Paulo, que t rabalha em sua dissertação de mest rado sobre Part icipação Popular na Escola: um aprendizado dem ocrát ico no país das excludências, em conversa com m ães de alunos de um a das escolas municipais, ouviu de uma delas, ao perguntar-lhe: “Você acha que é im portante o Conselho de Escola? Por quê?” “Sim” respondeu a mãe indagada. “É bom porque em parte a comunidade pode saber como a escola é por dent ro. O que é feito com nossos filhos, a ut ilização do dinheiro. Antes, a com unidade ficava do portão para fora. Só ent rávam os na escola para saber das notas e reclam ações dos filhos. Era só para isso que, ant igamente, os pais eram chamados – ou para t razer para as festas um prato de quitute. “Com a chegada do Conselho se abre um espaço para que o pai” , cont inua ela, “ao ent rar na escola, com ece a conhecer a escola por dent ro. At ravés do Conselho conseguim os alm oço para o Segundo Período, porque, pelo horário, as crianças não almoçam em casa.” 6 Margarite May Berkenbrock, a quem agradeço por me haver perm it ido fazer a citação de afirm ação de um a das suas ent revistas.

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Não foram poucas, porém, as resistências que enfrentamos por parte de Diretoras, de Coordenadoras Pedagógicas, de Professoras, “hospedando” nelas a ideologia autor itár ia, colonial, elit ista. “Que isso? indagavam às vezes, ent re surpresas e fer idas, será que vamos ter que aturar palpites e cr ít icas dessa gente ignorante, que nada sabe de Pedagogia?” A ideologia, cuja morte foi proclamada mas cont inua bem viva, com seu poder de opacizar a realidade e de nos m iopizar, as proibia de perceber que o saber de “exper iência feito” dos pais, educadores primeiros, t inha muito a cont r ibuir no sent ido do crescimento da escola e que o saber das professoras poderia ajudar os pais para a melhor compreensão de problemas vividos em casa. Finalmente, o ranço autoritár io não deixava pressent ir , sequer, a importância para o desenvolvim ento de nosso processo dem ocrát ico do diálogo ent re aqueles saberes e a presença popular na int im idade da escola. É que, para os autoritár ios, a dem ocracia se deteriora quando as classes populares estão ficando dem asiado presentes nas escolas, nas ruas, nas praças públicas, denunciando a feiúra do mundo e anunciando um mundo mais bonito. Gostar ia de encerrar m inha cont r ibuição a este encont ro dent ro do tem a sobre que m e coube falar insist indo em que a part icipação com unitár ia, no cam po em torno do qual falei m ais, o da escola, em busca de sua autonom ia, não deve significar, para m im , a om issão do Estado. A autonom ia da escola não im plica dever o Estado fugir a seu dever de oferecer educação de qualidade e em quant idade suficiente para atender a dem anda social. Não aceito certa posição neo - liberal que vendo perversidade em tudo o que o Estado faz defende uma privat ização sui- gener is da educação. Pr ivat iza- se a educação m as o Estado a f inancia. Cabe a ele então repassar o dinheiro às escolas que são organizadas por lideranças da sociedade civil. Alguns grupos populares têm engrossado esta linha sem perceber o r isco que correm: o de est imular o Estado a lavar as mãos como Pilatos diante de um de seus mais sérios compromissos – o comprom isso com a educação popular. Os grupos populares certamente têm o direito de, organizando- se, cr iar suas escolas com unitár ias e de lutar para fazê- las cada vez melhores. Têm o direito inclusive de exigir do Estado, at ravés de convênios de natureza nada paternalista, colaboração. Precisam , contudo, estar advert idos de que sua tarefa não é subst ituir o Estado no seu dever de atender às cam adas populares e a todos os que e as que, das classes favorecidas, procurem suas escolas. Nada deve ser feito, portanto, no sent ido de ajudar o Estado elit ista a descartar- se de suas obr igações. Pelo cont rár io, dent ro de suas escolas com unitár ias ou dent ro das escolas públicas, as classes populares precisam, aguerr idas, de lutar para que o Estado cumpra com o seu dever. A luta pela autonom ia da escola não é ant inôm ica à luta pela escola pública.

São Paulo, 25 de outubro de 1992

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NI NGUÉM NASCE FEI TO: É EXPERI MENTANDO -NOS NO MUNDO QUE NÓS NOS FAZEMOS

Ninguém nasce feito. Vamos nos fazendo aos poucos, na prát ica social de que tornam os parte. Não nasci professor ou m arcado para sê- lo, embora m inha infância e adolescência tenham estado sempre cheias de “sonhos” em que rara vez me vi encarnando figura que não fosse a de professor. “Brinquei” tanto de professor na adolescência que, ao dar as pr im eiras aulas no curso então chamado de “adm issão” no Colégio Osvaldo Cruz do Recife, nos anos 40, não me era fácil dist inguir o professor do imaginário do professor do mundo real. E era feliz em ambos os m undos. Feliz quando puramente sonhava dando aula e feliz quando, de fato, ensinava. Eu t inha, na verdade, desde menino, um certo gosto docente, que jamais se desfez em m im. Um gosto de ensinar e de aprender que m e em purrava à prát ica de ensinar que, por sua vez, veio dando forma e sent ido àquele gosto. Umas dúvidas, umas inquietações, uma certeza de que as coisas estão sempre se fazendo e se refazendo e, em lugar de inseguro, me sent ia firme na compreensão que, em m im , crescia de que a gente não é, de que a gente está sendo. As vezes, ou quase sempre, lamentavelmente, quando pensamos ou nos perguntamos sobre a nossa t rajetór ia profissional, o cent ro exclusivo das referências está nos cursos realizados, na form ação acadêm ica e na exper iência v iv ida na área da profissão. Fica de fora com o algo sem importância a nossa presença no mundo. É como se a at ividade profissional dos homens e das mulheres não t ivesse nada que ver com suas experiências de menino, de jovem, com seus desejos, com seus sonhos, com seu bem- querer ao mundo ou com seu desamor à vida. Com sua alegria ou com seu mal- estar na passagem dos dias e dos anos. Na verdade, não me é possível separar o que há em mim de profissional do que venho sendo como homem. Do que est ive sendo como menino do Recife, nascido na década de 20, em fam ília de classe m édia, acossada pela cr ise de 29. Menino cedo desafiado pelas injust iças sociais com o cedo tomando- se de raiva cont ra preconceitos raciais e de classe a que juntar ia m ais tarde out ra raiva, a raiva dos preconceitos em torno do sexo e da mulher. Como não perceber, por exemplo, que de m inha formação profissional faz parte bom tempo de m inha adolescência em Jaboatão, perto do Recife, em que não apenas joguei futebol com meninos de córregos e de morros, meninos das cham adas classes m enos afortunadas, m as tam bém com eles aprendi o que significava comer pouco ou nada comer. Algumas opções radicais, jamais sectárias, que me movem hoje como educador, portanto como polít ico, começaram a se gestar naquele tempo dist ant e. A Pedagogia do oprim ido, escr ita tanto tem po depois daquelas part idas de futebol ao lado de Toinho Morango, de Reginaldo, de Gerson Macaco, de Dourado, cedo roídos pela tuberculose, tem que ver com o aprendizado jamais interrompido, que comecei a fazer naquela época – o da necessidade de t ransformação, da reinvenção do mundo em favor das classes oprim idas. Um segundo momento desta t rajetória, importante também, se dá quando o diretor do Colégio Osvaldo Cruz, Aluízio Araujo, que me recebera em seu colégio como aluno gratuito, me convidou para assumir umas turmas de Português do então curso ginasial. Me lembro ainda hoje do que significou para m im, ent re assustado e feliz, ent re temeroso e ousado, dar m inha primeira aula. O gosto que t ive naquela man hã de tantos verões passados é o gosto que tenho hoje nas aulas primeiras que cont inuo dando, às vezes temeroso também. Li muito naquela fase. Varei noites com as obras de Ernesto Carneiro Ribeiro, com as de Rui Barbosa. Estudei gram át icos portugueses, gramát icos brasileiros. Me experimentei em estudos de lingüíst ica e recusei sempre me perder em gramat iquices. Dei aula de gramát ica propondo aos alunos a leitura de Gilberto Freyre, de Graciliano Ramos, de Machado de Assis, de Lins do Rego, de

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Manuel Bandeira, de Drummond de Andrade. O que buscava incansavelmente era a boniteza na linguagem, oral ou escrita. Foi Vossler1 , quem primeiro me chamou a atenção para o problema do m om ent o est ét ico da linguagem. Entre um ela vinha aproxim ando- se e ela vinha se aproxim ando, jamais t ive dúvida. Fiquei sempre com a segunda hipótese. Foram desses tempos as primeiras tentat ivas no sent ido de desafiar ou de est imular, de inst igar os alunos, adolescentes dos pr im eiros anos do então cham ado curso ginasial, a que se dessem à prát ica do desenvolvimento de sua linguagem – a oral e a escr ita. Prát ica im possível, quase, de ser vivida plenamente se a ela falta a busca do momento estét ico da linguagem, a boniteza da expressão, coincidente com a regra gram at ical ou não. Busca da boniteza da expressão a que se junte a preocupação com a clareza do discurso, com a precisão r igorosa do pensam ento e com o respeito à verdade. Estét ica e ét ica se dão as m ãos. Um tempo intensamente vivido por m inha experiência docente àquela época era o que dedicava à discussão com os alunos de seus textos. Discussão colet iva de que part icipavam com vivo interesse, em torno de frases, de retalhos de seus t rabalhos, que eu selecionava e na análise dos quais se abria todo um horizonte tem át ico. Horizonte que ia da colocação pronom inal que envolve questões estét icas, ao uso da crase; da sintaxe do verbo Haver ao em prego do infinito pessoal. Era analisando com os alunos seus t rabalhos concretos, sua experiência de redação, que eu ia, com indiscut ível facilidade, pondo sobre a m esa questões de sintaxe cujo estudo era previsto, na program ação dos conteúdos, para um ano ou dois m ais adiante. A sintaxe em ergia esclarecedora da fala viva dos autores dos textos. Não era t ransplantada das páginas fr ias de um a gram át ica. Da mesma forma como a procura da boniteza do discurso se dava com o bom gosto sendo provado na experiência concreta que os alunos faziam com sua linguagem , na com paração que eu estabelecia muitas vezes entre a frase de um dos jovens autores e a de um Gilb erto Freyre ou de um Lins do Rego ou de um Graciliano Ramos. Um a das conseqüências óbvias de um a prát ica assim era o gosto com que os alunos se ent regavam à escr ita e à leitura. O gosto e a segurança. O estudo da gramát ica deixou de ser um desgosto, um obstáculo à convivência com os professores da linguagem. Em lugar de termos nela a prisão da criat ividade, do r isco, o espantalho à aventura intelectual, passam os a ter nela um a ferram enta a serviço de nossa expressão. Os estudos gramaticais deixaram de ser um inst rumento repressivo com que a cultura dominante inibe os intelectuais populares e passaram a ser vistos como algo necessário, incorporado à própria dinâmica da linguagem. Por isso mesmo tais estudos só se just ificam na medida em que nos ajudam a libertar a nossa cr iat ividade e não enquanto im pedidores dela. Sem negar a gramát ica, é preciso realmente superar a sua compreensão colonial segundo a qual ela é um a espécie de cabo de eito de nossa at iv idade intelectual. Na infância e na adolescência havia t ido, ent re out ras, duas experiências com professoras que m e desafiavam a entender as coisas em lugar de me fazer memorizar mecanicamente pedaços ou retalhos de pensam ento. Eunice Vasconcelos, no Recife, com quem aprendi muito cr iat ivamente a formar sent enças e Cecília Brandão, em Jaboatão, que me int roduziu, na adolescência, a uma compreensão não gram at icóide da gram át ica. A maneira sempre aberta como me experimentei em casa, com direito posto em prát ica, de perguntar, de discordar, de cr it icar , não pode ser desprezada na compreensão de como venho sendo professor. De com o, desde os com eços de m inha indecisa prát ica docente, eu já m e inclinava, convicto, ao diálogo, ao respeito ao aluno. Minha prát ica dialógica com m eus pais m e preparara para cont inuar a vivê- la com meus alunos.

1 Karl Vossler. Filosofía del Lenguaje. Buenos Aires, Losada, 1963.

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Como desconhecer a importância de m inhas primeiras leituras de Gilberto Freyre para a m inha m aneira de entender a at ividade docente e não apenas para a m inha preocupação com a elegância da forma? O est ilo arredondando de Gilberto, sem esquinas arestosas, aconchegante, não apenas dá boas-vindas ao leitor e à leitora mas os convida a cont inuar com ele. Seu est ilo me predispôs a ter uma concepção plást ica de m inha prát ica docente. A entender m inha at iv idade docente com o um ato dialógico, aber to e, t anto quanto eu pudesse, bonito. Na verdade, não nasci m arcado para ser um professor a esta maneira, mas me tornei assim na experiência de m inha infância, de m inha adolescência, de m inha juventude. Out ro instante, que durou dez anos, de grande importância para a m inha formação permanente de educador, foi o de m inha passagem pelo Serviço Social da I ndúst r ia, SESI , Departamento Regional de Pernam buco2 . Quando hoje penso nos projetos em que me envolvi à frente da Divisão de Educação e, poster iorm ente, na Superintendência Geral do órgão, percebo o quanto aprendi. Percebo o quanto me foi fundamental naquela época e cont inua sendo hoje o exercício a que me ent regava e me entrego de pensar a prát ica para melhor prat icar. Não temo afirmar que aqueles dez anos já distantes e o que neles pude fazer, sem pre com out ras gentes, foram um a fonte para o desenvolvim ento de grande parte das coisas que venho realizando. Não há dúvida, porém, de que, para que a prát ica a que me dava se aprimorasse, era preciso que a subm etesse sem pre à análise cr ít ica de que resultasse a ret if icação ou a rat if icação da m esm a. A prát ica precisa da teor ia com o a teor ia precisa da prát ica. Educação e atualidade brasileira, tese com que, obtendo o segundo lugar num concurso na ent ão Universidade do Recife, me tornei livre docente e doutor, foi uma expressão teórica daquele m om ento. Educação e atualidade brasileira anunciava Educação com o prát ica da liberdade bem como a própria Pedagogia do oprim ido, este, na verdade, um livro mais crít ico e m ais radical3 . Posso afirmar que as prát icas vividas ao longo daqueles dez anos reforçaram intuições que me tornavam desde a juventude e que vir iam sendo confirmadas ao longo de m inha experiência profissional. Uma delas: você só t rabalha realmente em favor das classes populares se você t rabalha com elas, discut indo com respeito seus sonhos, seus desejos, suas frust rações, seus medos, suas alegrias. I sto não significa que o educador- polít ico ou polít ico- educador se acomode ao nível de maior ou menor ingenuidade das classes populares, em dado momento. I sto significa não ser possível esquecer, subest im ar, negar as aspirações das classes populares, se a nossa é um a opção progressista. Neste sent ido é que t rabalham em favor da reação tanto o intelectual que, dizendo- se progressista, menospreza o saber popular, quanto o que, dizendo- se igual- mente progressista, fica, porém, girando em torno do saber popular, sem buscar superá- lo. A serviço tam bém da reação se acha o intelectual ou a intelectual para quem os conteúdos possuem uma força especial, um poder quase mágico – uma espécie de “Complexo B” . Cabe ao professor m inist rá- los e ao aluno enguli- los. Puro engano! Faz parte da im portância dos conteúdos a qualidade crít ico- epistemológica da posição do ed ucando em face deles. Em out ras palavras: por mais fundamentais que sejam os conteúdos, a sua importância efet iva não reside apenas neles, mas na maneira como sejam apreendidos pelos

2 Ver Paulo Freire. Pedagogia da esperança. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992 e Ana Maria Freire, no mesmo livro, p. 211, nota nº 5. 3 Ver novamente Paulo Freire. Pedagogia da esperança, 1992.

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educandos e incorporados à sua prát ica. Ensinar conteúdos, por isso, é algo mais sério e complexo do que fazer discursos sobre seu perfil. As pesquisas, os estudos teóricos que fiz, com efet iva colaboração de Elza, m inha pr im eira m ulher, naqueles dez anos, viabilizaram o que veio a se chamar método Paulo Freire. No fundo, muit o mais um a com preensão dialét ica da educação do que um m étodo de alfabet ização. Com preensão dialét ica da educação vivam ente preocupada com o processo de conhecer em que educadores e educandos devem assum ir o papel cr ít ico de sujeitos cognoscentes. Minha presença no Movim ento de Cultura Popular do Recife, de cuja equipe fundadora faço parte e que teve no Prof. Germano Coelho o maior e o mais inquieto pensador bem como minha passagem com o professor à frente do então Serviço de Extensão Cultural da Universidade do Recife têm que ver com a formação que a prát ica vivida no SESI me ofereceu, submet ida, como foi, a uma r igorosa reflexão teórica. Foi desse universo de prát icas que vim , em junho de 1963, para Brasília, a convite de Paulo de Tarso, então m inist ro da Educação, para coordenar o Program a nacional de Alfabet ização, ext into pelo golpe de primeiro de abril de 1964. A part ir daí, serão quase 16 anos de vida longe do Brasil, mas de vigorosa importância na m inha caminhada profissional. Em primeiro lugar é preciso dizer que não foi fácil educar a saudade do Brasil. Não foi fácil pôr lim ites a ela, sem os quais viraria nostalgia e tornaria a vida mais difícil de ser vivida. E foi exatamente na medida em que aprendemos a conviver com a falta do Brasil que o tempo do exílio, assum ido, se fez um tempo de produção. Centrado, primeiro, no Chile, depois em Cambridge, onde fui professor em Harvard e, finalmente na Suíça, em Genebra, percorri o mundo. Meus livros, sobretudo a Pedagogia do oprim ido, com eçaram a ser t raduzidos para várias línguas, o que aum entava o núm ero dos convites que foram me tornando um andarilho. As experiências de que part icipei na Áfr ica, na Ásia, na Europa, na Am érica Lat ina, no Caribe, nos Estados Unidos, no México, no Canadá, discut indo com educadores nacionais problemas fundamentais de seus subsistemas educacionais; m inha part icipação em cursos e sem inários em universidades norte- americanas, lat ino- am ericanas, afr icanas, européias, asiát icas; m eus encont ros com lideranças de movimentos de liber tação na Áfr ica, na Am ér ica Lat ina, tudo isso está guardado em m inha memória não como algo do passado, que se recorda com saudade. Tudo isso, pelo cont rár io, está bem vivo e bem atua14 . E quando sobre tudo isso penso, algo m e faz crer que uma das marcas mais visíveis de m inha t rajetória profissional é o empenho a que me entrego de procurar sempre a unidade ent re a prát ica e a teoria. É neste sent ido que meus livros, bem ou mal, são relatórios teóricos de quefazeres com que me envolvi. Não nasci, porém, m arcado para ser um professor assim . Vim me tornando desta forma no corpo das t ram as, na reflexão sobre a ação, na observação atenta a out ras prát icas ou à prát ica de out ros sujeitos, na leitura persistente, cr ít ica, de textos teór icos, não im porta se com eles estava de acordo ou não. É impossível ensaiarmos estar sendo deste modo sem uma abertura crít ica aos diferentes e às diferenças, com quem e com que é sempre provável aprender. Um a das condições necessárias para que nos tornem os um intelectual que não tem e a m udança é a percepção e a aceitação de que não há vida na im obilidade. De que não há progresso na estagnação. De que, se sou, na verdade, social e polit icam ente responsável, não posso m e acom odar às est ruturas injustas da sociedade. Não posso, t raindo a vida, bendizê- las. Ninguém nasce feito. Vam os nos fazendo aos poucos na prát ica social de que tornam os parte. 4 Na Pedagogia da esperança me estendo na análise destes e de out ros momentos de m inha experiência de educador.

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EDUCAÇÃO E RESPONSABI LI DADE Me perguntaram recentemente num desses muitos encont ros de que part icipo no Brasil e fora dele como eu via as relações ent re educação e responsabilidade. Em primeiro lugar, qualquer que seja a prát ica de que part icipemos, a de médico, a de engenheiro, a de torneiro, a de professor, não im porta de quê, a de alfaiate, a de elet r icista, exige de nós que a exerçamos com responsabilidade. Ser responsável no desenvolvimento de uma prát ica qualquer implica, de um lado, o cumprimento de deveres, de out ro, o exercício de direitos. O direito de ser t ratados com dignidade pela organização para a qual t rabalhamos, de ser respeitados como gente. O direito a uma remuneração decente. O direito de ter, finalmente, reconhecidos e respeitados todos os direitos que nos são assegurados pela lei e pela convivência humana e social. O respeito a estes direitos é dever daqueles que têm o comando em diferentes níveis de poder, sobre a at ividade de que fazemos parte. Sua responsabilidade exige deles ou delas que cumpramos os nossos deveres. O desrespeito aos direitos e o não cum prim ento de deveres ent re nós é de tal modo generalizado e af rontoso que o clim a que nos caracter iza é o da irresponsabilidade. I rresponsabilidade de Presidentes, de Minist ros, de Eclesiást icos, de Diretores, de Magist rados, de Legisladores, de Comandantes, de Fiscais, de Operários. A impunidade é a regra. Aplaude- se o espertalhão que rouba um milhão. Pune- se, porém , o m iserável que rouba um pão. Obviam ente, a superação de tais descalabros não está nos discursos e nas propostas m oralistas, mas num clima de r igorosidade ét ica a ser cr iado com necessárias e urgentes t ransform ações sociais e polít icas. Transform ações que, por sua vez, vão viabilizando cada vez m ais a posta em prát ica de uma educação voltada para a responsabilidade. Voltada, por isso mesmo, para a libertação das injust iças e discr im inações de classe, de sexo e de raça. Assevero ingênua ou astuta a dicotom ia ent re educação para a libertação e educação para a responsabilidade. Desta form a, a educação para a responsabilidade ser ia a negação da educação para a libertação, v ista então com o prát ica ir responsáv el. Esta é um a apreciação incorreta. Não há educação para a libertação, cujos sujeitos atuem coerentemente, que não seja imbuída de forte senso de responsabilidade. O antagonismo não se dá ent re a prát ica educat iva para a liber tação e a prát ica educat iva para a responsabilidade. O antagonism o se ver ifica ent re a prát ica educat iva, libertadora, r igorosam ente responsável e a autor itár ia, ant idem ocrát ica, dom est icadora. I sto não significa, porém , que a educação autor itár ia, dom est icadora, seja irresponsável. Ela é também responsável, mas a sua é uma responsabilidade em relação aos interesses dos grupos e das classes dom inantes, enquanto a responsabilidade na prát ica educat iva libertadora está em relação com a natureza hum ana fazendo- se e refazendo- se na Histór ia. Está em relação com a vocação ontológica dos seres hum anos para a hum anização que os insere na luta perm anente no sent ido de superar a possibilidade, histórica também, da desumanização, como distorção daquela vocação1 . Há um a qualidade diferente nas duas formas de ser responsáveis, de entender e assum ir a responsabilidade. Em out ras palavras, a responsabilidade na prát ica educat iva dom est icadora exige de seus agentes com petência cient íf ica e astúcia polít ica tanto quanto educadoras e educadores progressistas necessitam de conhecer o que e com o fazer ao lado da perspicácia polít ica. Os primeiros, porém, a serviço dos interesses de quem domina. Os segundos, em nome do sonho ou da utopia de ser m ais de mulheres e de homens.

1 A este propósito, ver Paulo Freire: a) Pedagogia do oprim ido, l975; b) Pedagogia da esperança, 1992.

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É possível, contudo, que educadoras e educadores, autor itár ios e progressistas, atuem irresponsavelmente. E possível que não se preparem para ser eficazes, cada um a seu modo; é possível que não sejam coerentes. Aí, a irresponsabilidade está nos sujeitos da prát ica, não na natureza mesm a da prát ica. O que m e parece im perioso reconhecer é que a responsabilidade que a prát ica educat iva progressista, libertadora, exige de seus sujeitos tem uma et icidade que falta à responsabilidade da prát ica educat iva autor itár ia, dom inadora. Até m esm o da prát ica autor itár ia cham ada de esquerda que, em nom e da just iça social, reduz as classes t rabalhadoras a puros objetos de sua ação “salvadora” . É que a ét ica ou a qualidade ét ica da prát ica educat iva libertadora vem das ent ranhas m esm as do fenômeno huma no, da nat ureza hum ana const ituindo- se na História, como vocação para o ser m ais. Trabalhar cont ra esta vocação é t rair a razão de ser de nossa presença no mundo, que terminamos por alongar em presença com o mundo. A exploração e a dom inação dos seres humanos, com o indivíduos e com o classes, negados no seu direito de estar sendo, é imoralidade das mais gritantes. Como tentar explicar a m iséria, a dor, a fome, a ignorância, a enferm idade crônica, dizendo, cinicamente, que o mundo é assim mesmo; que uns t rabalham mais, com competência, por isso têm mais e que é preciso ser pacientes pois um dia as coisas mudam. Há uma imoralidade radical na dominação, na negação do ser humano, na violência sobre ele, que contagia qualquer prát ica rest r it iva de sua plenitude e a torna imoral também. Imoral é a dominação econômica, imoral é a dominação sexual, imoral é o racismo, imoral é a violência dos mais fortes sobre os mais fracos. I moral é o mando das classes dom inantes de uma sociedade sobre a totalidade de out ra, que deles se torna puro objeto, com sua maior ou menor dose de conivência. A educação para a libertação, responsável em face da radicalidade do ser hum ano, tem com o im perat ivo ét ico a desocultação da verdade. Ét ico e polít ico. O educador progressista não pode aceitar nenhuma explicação determ inista da História. O amanhã para o educador progressista não é algo inexorável. Tem de ser feito pela ação consciente das m ulheres e dos hom ens enquanto indivíduos e enquanto classes sociais. A libertação não virá porque a ciência preestabeleceu que ela virá. A libertação se dá na Histór ia e se realiza com o processo em que a consciência das mulheres e dos homens é um sine qua. Neste sent ido, a natureza ét ica desta luta polít ica tem tal im portância que não pode ser m enosprezada o m ais m ínim o que seja. É tão ingênuo pretender a superação das situações concretas de dom inação at ravés de puros discursos mora- listas quanto é est reito e m ecanicista, distorção cient íf ica, negar o caráter ét ico desta luta. Caráter que não apenas não pode e não deve ser negado m as, pelo cont rár io, que fundam enta a própria luta. Não terá sido por out ra razão que Marx afirmou: “Hay que hacer la opresión real todavía más opresiva anadiendo a aquella la conciencia de la opresión haciendo la infam ia todavía, más infamente, al pregonarla”2 . A frase de Marx não ter ia sent ido se opressão e libertação fossem m eras ocorrências m ecânicas, determ inadas pela Histór ia. Se os seres hum anos não se t ivessem tornado capazes de conhecer com o conhecem , de falar com o falam , de atuar com o atuam . Se não se t ivessem tornado capazes de prever, de programar, de avaliar, de comparar, de decidir, de ajuizar. A frase não teria sent ido se, com ela, pretendêssem os inst igar, desafiar os jacarés do Pantanal, em ext inção, objetos de ganância horrorosa de gente perversa. A frase tem sent ido porque os seres hum anos, programados, não são porém determ inados e se tornaram capazes de decidir ao lado da possibilidade de apenas seguir. Se as lideranças revolucionárias fossem const ituídas de indivíduos demasiado especiais, superiores aos condicionam entos, absolutam ente conscient izados, im unes à força das ideologias, cuja tarefa 2 Marx e Engels. La Sagrada Fam ília y ot ros escr it r is. Mexico, Editorial Grijalbo, 1962, p. 6.

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fosse conduzir as classes populares ao dest ino certo, j á sabido pelas lideranças, independentemente do saber das massas, dos seus sonhos e desejos, de sua fraqueza, a frase de Marx não teria sent ido também. Não haveria por que fazer “a infâm ia ainda mais infamante ao pregoá- la” . A frase tem sent ido porque, reconhecendo o estado de objetos em que se acham as massas populares na situação concreta de opressão, reconhece tam bém a possibilidade que elas têm de, mobilizando- se e organizando- se na luta cont ra a expoliação, se tornar sujeitos da t ransform ação polít ica da sociedade. A frase tem sent ido porque reconhece a tensão em que existem os seres humanos ent re ser e não ser , ent re estar sendo dim inuídos com o objetos e estar autent icando- se com o sujeitos. A consciência do mundo, que me possibilita apreender a realidade objet iva, se alonga em consciência moral do mundo, com que valoro ou desvaloro as prát icas realizadas no m undo cont ra a vocação ontológica dos seres hum anos ou em seu favor. Encarnada ou viv ida por educadores ou educadoras progressistas, coerentes, a educação com o prát ica da liberdade é um que- fazer necessariame nte responsável. O educador progressista é leal à radical vocação do ser hum ano para a autonom ia e se ent rega aberto e crít ico à com preensão da im portância da posição de classe, de sexo e de raça para a luta de libertação. Não reduz uma posição à out ra. Não nega o peso da classe nem da cor da pele nem tam pouco do sexo na luta. O educador progressista entende que qualquer reducionism o de classe, de sexo, de raça, distorce o sent ido da luta, pior ainda, reforçando o poder dom inador, enfraquece o com bate. Por isso mesmo a sua é a defesa em favor da invenção da unidade na diversidade. É óbvio pois que o educador autor itár io, a serviço não da radicalidade ontológica dos seres hum anos, m as dos interesses da classe dom inante, m esm o quando se pensando e dizendo em favor das classes populares, t rabalha no sent ido da divisão e não no da unidade na diversidade. Para o educador autoritár io é fundamental que a maioria de dom inados não se reconheça como maioria mas se dilua em minorias enfraquecidas. Por mais que, nesta ou naquela sociedade, por m ot ivos histór icos, sociais, culturais, econôm icos seja visivelm ente sublinhada a im portância da raça, da classe, do sexo, na luta e libertação, é preciso que evitem os cair na tentação de reduzir a luta inteira a um desses aspectos fundam entais. O sexo só não explica tudo. A raça só, tam pouco. A classe só, igualm ente. O líder operário, audaz e empreendedor, aguerrido na luta de libertação, mas que t rata sua com panheira com o objeto é tão incoerente quanto a líder fem inista branca que menospreza a cam ponesa negra e tão in- coerente quanto o intelectual progressista que, falando a operários, não se esforça para falar com eles. Estas incoerências, no m eu caso pessoal, m e levam a lutar m ais. A denunciá- las, a com batê- las no sent ido de superá- las, jamais à desesperança em que quedaria mudo e sem amanhã. Estas incoerências m e levam a entender m elhor a natureza do ser hum ano, const ituindo- se na História não como um a priori da Histór ia. A sua finitude, a sua inconclusão, a sua possibilidade de ser e de não ser, de amar e de odiar, de oprim ir e de libertar- se.

São Paulo, novembro de 1992.

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ESCOLA PÚBLI CA E EDUCAÇÃO POPULAR Este enunciado propõe um a reflexão em torno da relação ent re educação pública e educação popular. Não propõe um pensar sobre a educação pública em si mesma nem tampouco sobre a popular, isoladamente, mas sobre cada uma em relação com a out ra. No fundo, o enunciado implícita uma indagação que possivelmente se poderia explicitar assim : É possível fazer educação popular na rede pública? ou, pelo cont rário, já agora afirmando: a educação popular se pode realizar apenas no espaço da inform alidade, na prát ica polít ico-pedagógica fora da escola, no interior dos movimentos populares. O meu ponto de part ida para responder a estas indagações é a com preensão cr ít ica da prát ica educat iva sobre que mais uma vez falarei um pouco. Não há prát ica educat iva, com o de resto nenhum a prát ica, que escape a lim ites. Lim ites ideológicos, epistem ológicos, polít icos, econôm icos, culturais. Creio que a m elhor afirm ação para definir o alcance da prát ica educat iva em face dos lim ites a que se subm ete é a seguinte: não podendo tudo, a prát ica educat iva pode algum a coisa. Esta afirm ação recusa, de um lado, o ot im ism o ingênuo que tem na educação a chave das t ransformações sociais, a solução para todos os problemas; de out ro, o pessim ismo igualmente acrít ico e m ecanicista de acordo com o qual a educação, enquanto supra - est rutura, só pode algo depois das t ransformações infra - est ruturais. O esgotam ento destas ingenuidades, am bas ant idialét icas, term inaria por colocar a sua superação: nem a negação pura da educação, subordinada sempre à infra - est rutura produt iva nem tampouco o seu todo- poderosismo. A visão mecanicista da História que guarda em si a cert eza de que o futuro é inexorável, de que o futuro vem com o está dito que ele virá, nega qualquer poder à educação antes da t ransform ação das condições materiais da sociedade. Da mesma forma como nega qualquer importância maior à subjet ividade na História. A superação da com preensão m ecanicista da Histór ia, por out ra que, percebendo de form a dialét ica as relações ent re consciência e mundo, implica necessariamente uma nova maneira de entender a História. A História como possibilidade. Esta inteligência da Histór ia, que descarta um futuro predeterm inado, não nega, porém, o papel dos fatores condicionantes a que estamos mulheres e homens submet idos. Ao recusar a Histór ia como jogo de dest inos certos, como dado dado, ao opor- se ao futuro como algo inexorável, a Histór ia com o possibilidade reconhece a im portância da decisão com o ato que im plica ruptura, a im portância da consciência e da subjet iv idade, da intervenção crít ica dos seres hum anos na reconst rução do m undo. Reconhece o papel da consciência const ruindo- se na práxis; da inteligência sendo inventada e reinventada no processo e não como algo imóvel em m im, separado quase, de meu corpo. Reconhece o meu corpo como corpo consciente que pode m over- se cr it icam ente no m undo com o pode “perder” o endereço histór ico. Reconhece m inha individualidade que nem se dilui, amorfa, no social nem tampouco cresce e vinga fora dele. Reconhece, finalm ente, o papel da educação e de seus lim ites. Nenhum a das duas m aneiras de entender a educação, na com preensão da Histór ia, ser ia capaz de responder à questão colocada. Nem a do ot im ismo ingênuo, de natureza idealista, nem a do pessim ismo imobilizante. Ant idialét icas as duas, jamais puderam responder à questão. Somente a com preensão dialét ica das relações corpo - conscient e- mundo, quer dizer, no entendimento da História como possibilidade, é possível compreender o problema. Um dos equívocos dos que se exageraram no re- conhecim ento do papel da educação com o reprodutora da ideologia dom inante foi não ter percebido, envolvidos que ficaram pela explicação mecanicista da História, que a subjet ividade joga um papel importante na luta histór ica. Foi não ter

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reconhecido que, seres condicionados, “programados para aprender” , não somos, porém, determ inados. É exatam ente por isso que, ao lado da tarefa reprodutora que tem , indiscut ivelm ente, a educação, há um a out ra, a de cont radizer aquela. Aos progressistas é esta a tarefa que nos cabe e não fatalistam ente cruzar os braços. Se a reprodução da ideologia dom inante implica, fundamentalmente, a ocultação de verdades, a distorção da razão de ser de fatos que, explicados, revelados ou desvelados t rabalhar iam cont ra os interesses dom inantes, a tarefa das educadoras e dos educadores progressistas é desocultar verdades, jamais ment ir. A desocult ação n ão é de fato tarefa para os educadores a serv iço do sistema. Evidentemente, numa sociedade de classes como a nossa, é muito mais difícil t rabalhar em favor da desocult ação, que é um nadar cont ra a correnteza, do que t rabalhar ocultando, que é um nadar a favor da correnteza. É difícil, mas possível. Seria um a ingenuidade pensar que o poder de classe, de classe dom inante, assist isse indiferente e até est im ulando, ao esforço desvelador realizado por educadoras e educadores progressistas, no exercício de sua prát ic a docente. Que, aproveitando, por exem plo, a realização de um a greve de m etalúrgicos, discut issem com os educandos direitos e deveres dos t rabalhadores, ent re eles, o de greve, com o qual podem pressionar os pat rões a atender a suas legít im as reivindicações. E não im porta que, na análise deste direito, fossem crít icas às distorções corporat iv istas e aos excessos sectár ios que prejudicam a própria luta dos t rabalha- dores. Ou que, debatendo problemas em torno da defesa do m eio am biente, de fundam ental repercussão na vida da com unidade, cr it icassem o descaso a que se relegam as áreas populares da cidade, de modo geral sem praças, sem jardins, sem verde. Ou ainda, falando aos educandos sobre as tarefas específicas do execut ivo, do legislat ivo e do judiciár io, da interdependência destes poderes, falassem de um a das obr igações do execut ivo, a de produzir o orçam ento, previsão dos gastos públicos, a ser aprovado pelo legislat ivo e sublinhassem a sua natureza polít ica e não apenas técnica. Deixassem claro que a leitura acurada da peça orçam entár ia revela as opções polít ico- ideológicas dos que se acham no Poder. As diferenças às vezes ast ronôm icas ent re os gastos públicos nas áreas já em belezadas e bem inst rum entadas da cidade e os parcos recursos previstos para as zonas per ifér icas e faveladas da cidade. Seria de fato um a ingenuidade pensar que estas coisas pudessem ser facilm ente feitas e aplaudidas numa administ ração autoritária e direit ista. Até m esm o aos autoritár ios de esquerda lhes parece este um procedim ento indesejável porque, segundo eles, se estar ia “ roubando” precioso tem po que devia ser dedicado à inculcação dos conteúdos salvadores. Seria igualm ente im pensável, por out ro lado, que professores progressistas começassem a movimentar suas companheiras e companheiros, seus alunos, zeladores, cozinheiras, vigias, num a adm inist ração reacionária, autoritár ia, no sent ido de não apenas protestar cont ra o arbít r io e o poderosismo da própria adm inist ração, mas de instaurar um regime de gestão dem ocrát ica. E que o fizessem sem nenhuma reação imediata do poder. O fato, porém , de estas prát icas e out ras de natureza sem elhante, não poderem ser aberta, plena e livrem ente realizadas não significa que a im possibilidade seja absoluta. Cabe a educadoras e a educadores progressistas, arm ados de clareza e decisão polít ica, de coerência, de com petência pedagógica e cient íf ica, da necessár ia sabedor ia que percebe as relações ent re tát icas e est ratégias não se deixarem int imidar. Cabe a eles e a elas t ransar seu m edo e cr iar com ele a coragem com a qual confrontem o abuso do poder dos dom inantes. Cabe a eles e a elas, finalm ente, realizar o possível de hoje para que concret izem, amanhã, o impossível de hoje. Cabe a elas e a eles, finalmente, fundados nestes saberes, fazer educação popular, no corpo de um a rede sob o com ando autor itár io antagônico. Rom a não se fez num dia e a nossa expectat iva de vida não corresponde à expectat iva da vida da nação. I sto significa reconhecer a capacidade hum ana de decidir , de optar, subm et ida em bora a condicionamentos, que não perm item a sua absolut ização. Significa ir mais além de uma explicação mecanicista da História. Significa assum ir uma posição crit icamente ot im ista que recusa, de um lado, os ot im ismos ingênuos, de out ro, os pessim ismos fatalistas. Significa a inteligência da

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História como possibilidade, em que a responsabilidade individual e social dos seres humanos, “programados para aprender” mas não determ inados, os configura como sujeitos e não só com o objetos. Nesta altura da reflexão, me parece im portante deixar claro que a educação popular cuja posta em prát ica, em term os am plos, profundos e radicais, num a sociedade de classe, se const itui com o um nadar cont ra a cor renteza é exatam ente a que, substant ivam ente dem ocrát ica, jam ais separa do ensino dos conteúdos o desvelam ento da realidade. É a que est im ula a presença organizada das classes sociais populares na luta em favor da t ransform ação dem ocrát ica da sociedade, no sent ido da superação das inj ust iças sociais. É a que respeita os educandos, não im porta qual seja sua posição de classe e, por isso m esm o, leva em consideração, ser iam ente, o seu saber de experiência feito, a part ir do qual t rabalha o conhecimento com rigor de aproximação aos objetos. É o que t rabalha, incansavelm ente, a boa qualidade do ensino, a que se esforça em intensificar os índices de aprovação at ravés de r igoroso t rabalho docente e não com frouxidão assistencialista, é a que capacita suas professoras cient if icam ente à luz dos recentes achados em torno da aquisição da linguagem , do ensino da escr ita e da leitura. Form ação cient ífica e clareza polít ica de que as educadoras e os educadores precisam para superar desvios que, se não são experim entados pela maioria, se acham presentes em minoria significat iva. Como, por exemplo, a ilusão de que os índices de reprovação revelam um a certa r igorosidade necessária ao educador; com o, por exemplo, vat icinar nos primeiros dias de aula, que estes ou aqueles alunos serão reprovados, como se os professores devessem ser videntes também. É a que, em lugar de negar a importância da presença dos pais, da comunidade, dos movimentos populares na escola, se aproxim a dessas forças com as quais aprende para a elas poder ensinar também. É a que entende a escola com o um cent ro aberto à com unidade e não com o um espaço fechado, t rancado a sete chaves, objeto de possessivism o da diretora ou do diretor, que gostar iam de ter sua escola virgem da presença am eaçadora de est ranhos. É a que supera os preconceitos de raça, de classe, de sexo e se radicaliza na defesa da substant iv idade dem ocrát ica. Por isso m esm o se bate por um a crescente dem ocrat ização nas relações que se t ravam na escola e das que se estabelecem ent re a escola e o m undo fora dela. É a que não considera suficiente m udar apenas as relações ent re educadora e educandos, am aciando essas relações, m as, ao cr it icar e tentar ir além das t radições autor itár ias da escola velha, cr it ica também a natureza autoritária e exploradora do capitalismo. E ao realizar- se assim , com o prát ica em inentemente polít ica, tão polít ica quanto a que oculta, nem por isso t ransform a a escola onde se processa em sindicato ou part ido. É que os conflitos sociais, o j ogo de interesses, as cont radições que se dão no corpo da sociedade se refletem necessar iam ente no espaço das escolas. E não podia deixar de ser assim . As escolas e a prát ica educat iva que nelas se dá não poderiam estar imunes ao que se passa nas ruas do m undo. Do ponto de vista, porém, dos interesses dom inantes, é fundamental defender uma prát ica educat iva neut ra, que se contente com o puro ensino, se é que isto existe, ou com a pura t ransm issão assépt ica de conteúdos, com o se fosse possível, por exem plo, falar da “ inchação” dos cent ros urbanos brasileiros sem discut ir a reforma agrária e a oposição a ela feita pelas forças ret rógradas do país. Como se fosse possível ensinar não importa o quê, lavando as mãos, indiferentemente, diante do quadro de m iséria e de aflição a que se acha submet ida a maioria de nossa população. A educação popular a que m e refiro é a que reconhece a presença das classes populares com o um sine qua para a prát ica realm ente dem ocrát ica da escola pública progressista na m edida em que possibilita o necessário aprendizado daquela prát ica. Neste aspecto, m ais um a vez, cent ralm ente se cont radiz antagonicam ente com as concepções ideológico- autor itár ias de direita e de esquerda que, por m ot ivos diferentes, recusam aquela part icipação. Do ponto de vista da direita, porque daquela part icipação pode resultar um conhecim ento crít ico m aior das condições de injust iça for jadas e m ant idas pela sociedade capitalista; do ponto de vista de certa esquerda autor itár ia porque, para sua liderança, que se pensa const ituída por seres “ sui generis” , superiores aos condicionamentos ideológicos e aos mecanismos de dom inação , as classes

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populares precisam apenas de aprender a seguir sua palavra de ordem . É neste sent ido, aliás, que a esquerda autor itár ia é m ais elit ista do que a direita. Esta recusa à presença das classes populares num a prát ica educat iva desocultadora precisam ente porque tem e que elas se tornem m ais crít icas e, assim , aceitem seu engajam ento no processo de m obilização e organização para a m udança progressivamente radical da sociedade. A esquerda autoritária, ao cont rário, m inim izando o t rabalho pedagogicam ente cr ít ico, com o algo de gosto idealista, populista e às vezes at é espontaneísta, revela o seu descrédito na capacidade popular de conhecer a razão de ser dos fatos. Acredita, ao cont rár io, no poder da propaganda ideológica, na força dos slogans. Ao fazê- lo, porém, afirma sua capacidade de saber e promove a sua verdade à verdade única, for jada fora do corpo “ incoerente” do senso com um . Qualquer concessão a este saber significa resvalar para o populismo ant i- r igoroso. Por isso mesmo, o autoritarismo de esquerda vira messiânico. Sua verdade forjada fora da experiência popular e independente dela, deve mover- se de seu sít io próprio e cam inhar até o corpo das classes populares “ incultas” para efetuar sua “ salvação” . As classes populares, assim , não têm por que ser cham adas ao diálogo para o qual são, por natureza, incom petentes. Têm apenas que ouvir e docilm ente seguir as palavras de ordem dos t écnica e cient if icam ente com petentes. Estes, na arrogância de seu autor itar ism o, na cegueira de seu cient if icism o ou na insensibilidade de seu sectarismo, não percebem que ninguém nasce feito, que ninguém nasce marcado para ser isto ou aquilo. Pelo contrário, nos tornamos isso ou aquilo. “Somos programados, mas, para aprender” . A nossa inteligência se inventa e se prom ove no exercício social de nosso corpo consciente. Se const rói. Não é um dado que, em nós, seja um a priori da nossa histór ia individual e social. O autoritar ismo de direita é menos elit ista do que o de esquerda porque acredita em ou teme que as classes populares podem m udar a qualidade, de m enos crít ica para mais crít ica, de sua capacidade de inteligir o mundo. De saber o mundo. De mudar o mundo. No fundo, o autoritarismo de direita acredita m uito m ais na prát ica educat iva do que o de esquerda ou de certa esquerda. Daí que a direita reprima sempre mais duramente aqui, menos ali, projetos e programas de educação progressista reconhecidos por ela com o am eaçadores da “dem ocracia” , a sua dem ocracia. E certa esquerda considere as e os educadores progressistas com o m e ros “gerenciadores da cr ise capitalista” ou com o idealistas teim osos e renitentes. É por isso que, numa perspect iva direit ista, a adm inist ração de nenhuma rede de ensino público com o de nenhum a escola pr ivada aceita arr iscar- se em aventuras que se enquadrem na linha de uma educação popular nos termos aqui definida. Não há, por exemplo, como esperar, em tais circunstâncias, um a gestão dem ocrát ica da escola a não ser no discurso que cont radiz a prát ica. Ou no discurso que explícita uma compreensão “sui generis” de democracia – uma democracia sem povo ou uma escola democrát ica em que, porém, só o diretor(a) manda, por isso só el(e/ a) tem voz. De modo geral, do ponto de vista da direita, a gestão é democrát ica na medida em que o professor ensine, o aluno estude, o zelador use bem suas mãos, a cozinheiro faça a com ida e o diretor ordene. O que não significa, na perspect iva progressista, não dever o professor ensinar, o aluno estudar, o zelador não usar suas mãos, a cozinheira não cozinhar e o diretor não dir igir . Signif ica, na perspect iva progressista, deverem ser respeitadas e dignificadas estas tarefas, im portantes todas, para o avanço da escola. Sem fugir à responsabilidade de intervir , de dir igir , de coordenar, de estabelecer lim ites, o diretor não é, porém, na prát ica realm ente dem ocrát ica, o proprietár io da vontade dos dem ais. Sozinho, ele não é a escola. Sua palavra não deve ser a única a ser ouvida. Há ainda um out ro aspecto no debate deste tem a que m erece ser considerado. O da possibilidade de alt ernância de governo que a dem ocracia oferece. A um governo direit ista, autor itár io, defensor ostensivo dos interesses das classes dom inantes pode suceder um governo de corte popular. Um governo de gosto dem ocrát ico. Foi exatam ente isso o que ocorreu quando Luiza Erundina se elegeu prefeita da cidade de São Paulo.

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Uma das primeiras providências a serem tomadas, sem ferir o espírito da lei, foi reorientar as opções em but idas no orçam ento realizado pelo governo a que sucedíam os. Opções obviam ente em que pouco havia que dissesse respeito a interesses diretos das classes populares. Enquanto sofríam os um déficit escolar elevado a 60% das unidades da rede escolar em estado precário o orçam ento que recebem os previa cifras ast ronôm icas para o que se cham a grandes obras. Viadutos, túneis m ajestosos, ligando um bairro a out ro, jardins etc. Não que os viadutos, os túneis, os jardins, os parques não sejam necessários. Não é da necessariedade que falo, m as da pr ior idade das necessidades. E é aí que se cont radizem as opções. É que há prioridades para as classes dom inantes e prioridades para as classes dom inadas. Os viadutos eram prioritár ios, mas, para servir às classes abastadas e felizes, com repercussão adjet iva tam bém ent re as classes populares. As escolas eram prioritárias para as classes populares, com repercussão adverbial para as classes r icas. Do ponto de vista, contudo, do interesse im ediato das classes populares, m ais valia ter escolas equipadas e com petentes para seus f ilhos do que v iadutos bonitos escoando facilm ente o t ráfego dos carros dos poderosos. Saliente- se que não estam os negando aos r icos e felizes o direito de desfrutar o prazer de t rafegar em seguros viadutos. Estamos defendendo apenas o direito de m ilhares de cr ianças estudarem como prior idade ao conforto de quem já o tem em excesso... Encontramos escolas sem lápis, sem papel, sem giz, sem merenda. Encontramos escolas inauguradas, ostentando até placas com os dizeres de costum e, com o nom e do prefeito, do secretár io, do diretor im ediato, m as vazias, ocas, sem cadeiras, sem cozinha, sem alunos, sem professoras, sem nada. O ideal está em quando os problemas populares – a m isér ia das favelas, dos cort iços, o desem prego, a violência, os déficits da educação, a m ortalidade infant il estejam de tal m aneira equacionados que, então, uma adm inist ração se possa dar ao luxo de fazer “ jardins andarilhos” que mudem semanalmente de bairro a bairro, sem esquecer os populares, fontes lum inosas, parques de diversão, com putadores em cada ponto est ratégico da cidade program ados para atender à curiosidade das gentes em torno de onde fica esta ou aquela rua, este ou aquele escr it ór io público, com o alcançá- lo etc. Tudo isso é fundam ental e im portante m as é preciso que as maiorias t rabalhem, comam, durmam sob um teto, tenham saúde e se eduquem. É preciso que as maiorias tenham o direito à esperança para que, operando o presente, tenham futuro. Um sequer direito dos r icos não pode const ituir- se em obstáculo ao exercício dos m ínimos direitos das maiorias exploradas. Nenhum direito de que resulta a desum anização das classes populares é moralmente direito. Pode ser até legal mas é uma ofensa ét ica. Voltem os a considerar a possibilidade da alternância de poder. Eleito um governo de corte democrát ico, é possível rever, refazer medidas que aprimorem o processo de democrat ização da escola pública. É possível o em penho de ir tentando com eçar ou aprofundar o esforço de, tornando a escola pública m enos m á, fazê- la popular também. Foi a esse empenho que eu chamei durante o tempo em que fui Secre tário da Educação na Adm inist ração de Luiza Erundina de “mudança da cara da escola” . Ganhar as eleições da cidade de São Paulo não significava inaugurar no dia seguinte o socialismo no país. Começávamos, porém, a dispor de algo de que antes não dispúnhamos: do governo da cidade. Apesar dos obstáculos de ordem ideológica, de ordem orçam entár ia, apesar dos vícios burocrát icos “ inst ruídos” pela secular ideologia autoritár ia, apesar da compreensão e da experiência polít ica de natureza car tor ial, da polít ica de favores, tentar a educação popular foi obviam ente m uito m ais fácil a nós do que a professoras e professores progressistas assum irem projetos dem ocrát icos numa adm inist ração autoritár ia que reage sempre ao r isco democrát ico e à cr iat ividade como se fosse o diabo em face da cruz. Daí a necessidade urgente de aprender a lidar com os inst rumentos de poder de que dispúnhamos, pondo- os tão sábia e eficazm ente a serviço de nosso sonho polít ico quanto possível.

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A questão que se nos colocava não era, de um lado, deixar- nos tombar vencidos pela m iopia incom petente das crít icas m ecanicistas que nos viam com o puros zeladores da cr ise capitalista, nem tampouco nos pensarmos figuras ext raordinárias, mas gente hum ilde e séria, capaz de fazer o mínimo que poderia e deveria ser feito. Em Histór ia se faz o que se pode e não o que se gostar ia de fazer. E um a das grandes tarefas polít icas a ser cum prida se acha na perseguição constante de tornar possível amanhã o impossível de hoje somente quando, às vezes, se faz possível viabilizar alguns impossíveis de agora. Para finalizar, gostaria de sublinhar um equívoco: o de quem considera que a boa educação popular hoje é a que, despreocupada com o desvelam ento dos fenôm enos, com a razão de ser dos fatos, reduz a prát ica educat iva ao ensino puro dos conteúdos, entendido este com o o ato de esparadrapar a cognoscit iv idade dos educandos. Este equívoco é tão carente de dialét ica quanto o seu cont rár io: o que reduz a prát ica educat iva a puro exercício ideológico. É t ípico de cer to discurso neoliberal, tam bém às vezes cham ado de pós- moderno, mas de uma pós- m odernidade reacionária, para a qual, o que im porta é o ensino puram ente técnico, é a t ransm issão de um conjunto x de conhecim entos necessários às classes populares para a sua sobrevivência. Mais do que um a postura polit icam ente conservadora, esta é um a posição epistemologicamente insustentável e que ainda fere a natureza mesma do ser humano, “programado para aprender” , algo mais sério e profundo do que adest rar- se.

São Paulo, dezembro de 1992.

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UNI VERSI DADE CATÓLI CA – Reflexões em torno de suas tarefas Minhas palavras iniciais em torno do tema que devo t ratar são para sublinhar a sua complexidade que torna, m enos fácil ainda sua discussão. Creio que podemos perceber a complexidade a que me refiro se pensarmos, por exemplo, nas prováveis respostas que seriam dadas à pergunta: Quais as tarefas de um a Universidade Católica?, se feita a um teólogo como Gustavo Gut ierrez, como Thomas H. Groome, como Frei Beto, como Leonardo Boff, de um lado e, de out ro, a um teólogo conservador, t radicionalista, que dicotom iza, sem cerimônia, mundanidade de t ranscendentalidade; história de meta- história. A m esm a pergunta feita a pessoas com diferentes, às vezes radicalm ente diferentes, leituras de mundo, não pode ter a mesma resposta. Por out ro lado, a mesma pergunta feita a um teólogo da libertação radicado no nordeste brasileiro ter ia substant ivam ente a m esm a resposta que a ela daria um teólogo norte- americano radicado em Boston, mas, necessariamente, haveria dimensões fundam entais em que as respostas se diferenciar iam . Desta form a, do ponto de vista da com preensão e explicitação de sua presença com o cr istãos na Histór ia em suas relações com a m eta- histór ia, estar iam coincidentes. Do ponto de vista, porém , das exigências de seus contextos histór icos- culturais, econôm icos, sociais, polít icos, ter iam que diferenciar- se ao apontar tarefas indispensáveis a uma área como a do nordeste brasileiro em comparação com as exigências de um cent ro com o Boston, na Nova I nglaterra. Sua m aneira de entender as relações cont raditór ias ent re m undanidade e t ranscendentalidade, de acordo com a qual não é possível chegar lá sem fazer a t ravessia por aqui; sua conv icção de que é inviável at ravessar sem ser “ at ravessado” pelo tempo- espaço que se at ravessa os leva a jam ais abandonar o reconhecim ento da im portância da m undanidade. Afinal, a adoção da posição cr istã não se dá na t ranscendentalidade mas na mundanidade; não se faz na meta- história, mas na histór ia, não se processa lá, mas aqui. Sua com preensão dos seres hum anos com o seres históricos, finitos, inconclusos, m as conscientes de sua inconclusão, os faz reconhecer hom ens e m ulheres como seres inseridos em permanente busca e como seres que se fazem e refazem socialmente na busca que fazem. E, como ninguém busca no vazio mas num contexto tempo- espacial, quem busca é tão m arcado pelas condições em que busca quanto quem faz t ravessia é at ravessado pelo tempo- espaço que at ravessa. Possivelm ente, por out ro lado, o teólogo conservador do Recife coincidir ia com o teólogo conservador de Boston no seu esforço ant i- dialét ico de separar m undanidade de t ranscendentalidade. Term inariam por quase “desencarnar” mulheres e homens reduzidos então a puras abst rações. A Histór ia, as condições concretas de vida, as t radições culturais em pouco ou em quase nada contariam. O mundo, em últ ima análise, é a simples t ravessia em que o fundamental é a luta, sem embates, a não ser os que se dão na int im idade da consciência m oral de cada um ou de cada um a, em favor da vitória do bem sobre o mal. Para quem entende e vive a História como tempo de possibilidade, independentemente de se é mulher ou homem de fé, o papel dos seres humanos no mundo com o sujeitos e objetos da própria história é out ro. Não importa se, para elas e eles há t ranscendentalidade ou não, vivendo a histór ia como tempo de possibilidade necessariamente recusam qualquer determ inismo que, submetendo e m inim izando a liberdade, proclama a inexorabilidade do amanhã. Por isso é que, para quem crê, nesta perspect iva, Deus é um a “Presença na Histór ia” , m as um a Presença que não nos proíbe de fazer Histór ia. É uma Presença que não nos imobiliza para que se faça a História que nos cabe fazer. É interessante observar como há uma coerência, sublinhada pelos que crêem num a perspect iva crít ica, no Absoluto, que tem em sua cr iação o lim ite a seu poder. Seria, na verdade, um a cont radição, e o Absoluto não pode se cont radizer se, viabilizando cr iaturas livres, as m anipulasse em nom e de sua salvação. I sto é art imanha de seres finitos, não papel a que se preste Deus. Enquanto Absoluto sua coerência é absoluta. Não necessita, assim , da incoerência para reconhecer a coerência e a sua necessidade. Dessa forma é impensável surpreender o Absoluto envolvido em

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t ramas t ípicas de seres finitos e lim itados. Se, de um lado, não ser ia possível conceber, sequer, a História das mulheres e dos homens condicionando o Absoluto, não seria, do out ro, inteligível conceber o Absoluto rom pendo sua coerência total ao im iscuir- se na vida individual e social dos seres hum anos, a não ser at ravés da Graça, em que a liberdade hum ana queda respeitada. I sto não significa ser neut ro o Absoluto. De sua não- neut ralidade deu testem unho at ravés da encarnação do VERBO, com a qual testemunhou igualment e a impossibilidade de dicotom ia entre t ranscendentalidade e mundanidade, História e meta- Histór ia. Faço estas considerações prelim inares para enfat izar o m alogro, na análise das tarefas de um a Universidade Católica, que implica não levar em consideração as opções polít ico- teológicas dos seus responsáveis. Dos que preponderantemente fazem o seu perfil, projetam sua polít ica de ensino, de pesquisa, de extensão. O que quero dizer é que a própria compreensão da pesquisa, da docência, da extensão está suj eit a às opções antes refer idas. Não se faz pesquisa, não se faz docência com o não se faz extensão com o se fossem prát icas neut ras. Preciso saber a favor de que e de quem , portanto cont ra que e cont ra quem , pesquiso, ensino ou m e envolvo em at ividade m ais além dos muros da Universidade. Em suma, a pergunta em torno das tarefas de uma Universidade Católica não pode ter um a resposta universal que seja a resposta. A própr ia especificidade da Universidade Católica que a singulariza em face de out ras universidades privadas ou públicas é t rabalhada de form a diferente se o poder que a governa se or ienta num a perspect iva progressista ou t radicionalista. Com o, por questões ét icas e, por que não, estét icas tam bém , a que junto m inha form ação no seio da família cr istã, desde m uito jovem venho reagindo quase inst int ivam ente cont ra as injust iças, cont ra os preconceitos de toda espécie, cont ra as ofensas, a dom inação, o arbít r io, a arrogância, a im posição de idéias ou crenças, cont ra o desrespeito e cont ra o desprezo aos fracos e como me venho firmando ao mesmo tempo em opções progressistas, democrát icas, abertas, radicais, jamais sectárias, falarei aqui de algumas tarefas a serem cumpridas por uma Universidade Católica, na perspect iva em que m e situo. Na perspect iva que venho chamando pós- modernamente progressista porque há também uma pós- modernidade ironicamente t radicionalista. É interessante observar com o a realização dessas tarefas im plica o exercício de certas vir tudes ou qualidades que, se cr it ica e autent icam ente assum idas na história, cont inuam jovens e atuais. Um a dessas vir tudes a que gostar ia de fazer referência agora e sem cuja efet ivação a Universidade Católica progressista se perde por perder o endereço e vira então t radicionalista, reacionária, é a tolerância. É a v ir tude cuja prát ica nos ensina a conviver com o diferente, sem que isto deva significar a desistência por parte dos diferentes de cont inuar defendendo suas posições. Não. A tolerância significa apenas que os diferentes têm o direito de cont inuar diferentes e o direito de aprender de suas diferenças. Diferenças de natureza religiosa, cultural, sexual, polít ico- ideológica, diferenças raciais, de classe. A tolerância não pretende negar nem tam pouco esconder os possíveis conflitos ent re os diferentes nem por out ro lado, desconhecer que há diferentes que são mais do que diferentes porque são antagônicos ent re si. O que a tolerância pretende é a convivência possível, respeitadas as diferenças dos que convivem. Tanto mais democrát ica uma universidade quanto mais tolerante, quanto m ais se abre à com preensão dos diferentes, quanto m ais se pode tornar objeto da compreensão dos demais. No fundo, a tolerância que deve inform ar as tarefas diversas da Universidade, a docência, a pesquisa, a extensão; as relações ent re as faculdades, as relações ent re os diferentes Departamentos e ou Programas é algo a ser perseguido por todos e todas que a entendem indispensável à vida universitária. Sem a hum ildade, porém, a tolerância não se viabiliza. Na media em que a diferença me leva a comparar e a valorar em favor de mim, preciso, não propriamente ment ir a m im mesmo, escondendo possíveis qualidades ou talentos que tenha, mas não me pensar superior aos demais. Preciso não me superest imar nem subest imar os outros. Preciso, sobretudo , não ter raiva só em pensar que o out ro pode ser tão capaz quanto eu ou mais brilhante do que eu, mais criador, mais presente do que eu.

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I ntolerância e arrogância andam de mãos dadas da mesma forma que se completam tolerância e humildade. O ambiente acadêm ico vive cheio de intolerância pela escassez de hum ildade que nos caracter iza. A inveja do brilho do outro ou da outra; o medo de perder nosso pequeno mundo de admiradores, at raídos por luz nova que possa surgir, ou o medo de não criá - lo, a insegurança em nós mesmos, tudo isso nos impermeabiliza à experiência da tolerância como da humildade. E quanto mais distantes delas ficam os tanto m ais difícil se torna a sabedoria que nos deixa sem pre quietos na inquietude, sem pre pacientes na im paciência. É nesse sent ido que um a Universidade Católica que viva e testem unhe a tolerância, não tendo por que deixar de ser católica, não precisa nem deve discr im inar estudantes, professores, pesquisadores de out ras profissões de fé ou indiferentes a ela. Sua abertura ao m u ndo é uma abertura compreensiva das diferenças religiosas, das diferentes leituras de mundo, dos diferentes gostos estét icos, das diferentes posições ideológicas. Sua abertura ao m undo é um a abertura com preensiva do progresso da ciência, que descarte o cient ificism o do progresso da tecnologia, vista cr it icamente, quer dizer, nem negada como algo diabólico, nem aclamada como a go que se diviniza. Sem perder sua especificidade, a Universidade Católica, pós- modernamente progressista, encont ra a razão de ser para suas certezas m uito m ais na tolerância que a faz crescer no respeito a out ras certezas do que nas posições sectár ias que negam o direito aos out ros de pensar diferentemente. O grande problema que tem uma administ ração universitária com este sonho está em como converter professoras e professores autor itár ios à utopia do respeito dem ocrát ico. O própr io exercício dessa tentat iva de “ conversão” polít ico- pedagógica é um ou deve ser um testem unho de tolerância. Outra tarefa de uma tal universidade compreend ida em sua t r íplice at iv idade, a da docência, a da pesquisa e a da extensão é a de não apenas manifestar mas viver a busca permanente da paixão da curiosidade. Não se ensina esta paixão a não ser vivendo- a e possibilitando que os out ros a vivam. Quanto melhor a experim ento tanto m ais facilm ente posso fazê- la voltar- se sobre si mesma, tendo- a assim com o sujeito e objeto de si própria. A curiosidade de que falo não é, óbviamente, a curiosidade “desarmada” com que olho as nuvens que se movem rápidas, alongando- se um a nas out ras, no fundo azul do céu. É a cur iosidade m etódica, exigente, que, tom ando distância do seu objeto, dele se aproxim a para conhecê- lo e dele falar prudentem ente. E a curiosidade epistemológica. Sem ela, que jamais cansa ou desiste, não é possível a própria existência humana tal qual vem sendo. Sem a curiosidade que será tão mais eficaz quanto jamais despreze a imaginação, t raímos o ser que vimos sendo. Na verdade, não podemos viver senão em função do amanhã, daí o ser da curiosidade, da imaginação, da invenção que não podem os deixar de estar sendo. E não se pense e não se diga que a im aginação e a cr iação são o dom ínio próprio do art ista enquanto ao cient ista cabe o desvelam ento ou a desocultação de verdades pré - estabelecidas. A curiosidade epistemológica não se deixa isentar da imaginação cr iadora no processo de desocultação da verdade. O ser hum ano é um a totalidade que recusa ser dicotom izada. É com o um a inteireza que operam os o m undo enquanto cient istas ou art istas, enquanto presenças imaginat ivas, cr ít icas ou ingênuas. É por isso também que a educação será tão mais plena quanto mais esteja sendo um ato de conhecim ento, um ato polít ico, um com prom isso ét ico e um a experiência estét ica. Chegamos assim a uma out ra tarefa que deve ser cara à Universidade nesta perspect iva pós-moderna- m ente progressista. Tarefa que se acha ligada à anter ior e que, na verdade, é sua extensão. Refiro - me à tarefa, não importa qual seja a at ividade universitár ia – a da docência, a da pesquisa ou a da extensão – de desocultar verdades e sublinhar bonitezas. Mas, aqui tanto quanto em qualquer out ro momento da Universidade, se impõe a tolerância. Desocultar a verdade ou sublinhar a boniteza não podem ser exercícios intolerantes. Sublinhar, por exemplo, a boniteza de

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forma intolerante já é, em si, uma feiúra. Como feiúra é falar da verdade que se desoculta sem nenhum respeito a quem desoculta diferentemente, quase como quem oculta. Não confundo, porém , respeito ao out ro ou à sua verdade, com conivência com sua form a de negar a verdade. É preciso inclusive deixar claro que o m eu respeito à sua posição não significa condescendência de m inha parte. Respeito o direito que tem alguém de dizer que Deus é o responsável pela m iséria do Nordeste brasileiro ou pela miséria moral na pobreza m aterial dos guetos de negros nos Estados Unidos, m as luto com toda a força que tenha para provar que essa é um a falsa afirm ação. Que não é bonita nem verdadeira, nem ét ica, por isso mesmo. Este esforço de desocultar verdades e sublinhar bonitezas une, em lugar de afastar, como antagônicas, a form ação cient íf ica com a ar t íst ica. O estét ico, o ét ico, o polít ico não podem estar ausentes nem da form ação nem da prát ica cient ífica. Quanto m ais vivam os esta unidade, na docência, na pesquisa com o na extensão, tanto m ais faremos t rans- parente a universidade. Me plenifico, na m inha m issão de educador quando, “br igando” para convencer os educandos do acerto de m inha desocultação, m e torno t ransparente eu m esm o ao revelar o m eu respeito, primeiro, à recusa possível dos educandos a m eu discurso, segundo, o m eu respeito à sua ant iverdade, com a qual recuso a conviver. Me plenifico na m inha m issão de educador quando revelo, finalmente, m inha tolerância em face dos diferentes de m im. Ao contrário, desmereço m inha m issão de educador e a m im mesmo se, em nome do respeito aos educandos, silenciar m inhas opções polít icas e meus sonhos ou se, em nome de m inha autoridade de educador, pretender impor a eles meus critér ios de verdade. O que m e parece fundam ental neste respeito às diferenças é o testem unho, por um lado, de que é possível pensar sem prescrições, não só possível m as sobretudo necessário, e, por out ro, que é fact ível aprender sob o desafio de diferentes formas de ler o mundo. Este respeito sobre que tanto insisto, não pode ser reduzido a uma indecisão irresponsável, a um afrouxamento licencioso, a um vale tudo. Daí que eu tenha falado na “briga” legít ima do educador ou da educadora em defesa de seu sonho com o em defesa da verdade por que se bate ou da utopia que o move ou a move. A paixão da cur iosidade, a desocultação da verdade, o gosto da boniteza, a t ransparência em tudo o que diz, em tudo o que busca e em tudo o que faz devem , a m eu ver, caracter izar um a universidade que, sendo católica, não m enospreza os que não são ou o que, não sendo católica não se sente m al com a existência da que é.

Universidade Vila Nova Pensilvânia, EUA, 1992

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