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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE PRO-REITORIA DE ENSINO E GRADUAÇÃO – PROEG DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL - DECOM A CONSTITUIÇÃO DA IDENTIDADE MARRANA: DA HISTÓRIA AO SEU REGISTRO NO DOCUMENTÁRIO “A ESTRELA OCULTA DO SERTÃO” SILVANA MARIA DA SILVA MARTINS MOSSORÓ-RN 2012

0301a Construcao Da Identidade Marrana Da Historia Ao Seu Registro No Documentario A

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construção da identidade marrana: da história ao seu registro...

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  • UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE

    PRO-REITORIA DE ENSINO E GRADUAO PROEG DEPARTAMENTO DE COMUNICAO SOCIAL - DECOM

    A CONSTITUIO DA IDENTIDADE MARRANA: DA HISTRIA AO SEU REGISTRO NO DOCUMENTRIO A ESTRELA OCULTA DO SERTO

    SILVANA MARIA DA SILVA MARTINS

    MOSSOR-RN 2012

  • SILVANA MARIA DA SILVA MARTINS

    A CONSTITUIO DA IDENTIDADE MARRANA: DA HISTRIA AO SEU REGISTRO NO DOCUMENTRIO A ESTRELA OCULTA DO SERTO

    Monografia apresentada ao Departamento de Comunicao Social DECOM da Faculdade de Comunicao Social da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte UERN como requisito parcial para a obteno de ttulo de Bacharel em Comunicao Social, Habilitao em Jornalismo.

    Orientador: Profa. Doutora Marclia Luzia Gomes da Costa

    MOSSOR-RN 2012

  • Martins, Silvana Maria da Silva A constituio da identidade marrana: da histria ao seu registro no documentrio a estrela oculta do serto. / Silvana Maria da Silva Martins Mossor, RN, 2012.

    84 f. Orientador(a): Prof. Dra. Marclia Luzia Gomes da Costa Monografia (Bacharelado). Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Curso de Comunicao social - Jornalismo

    1. Comunicao social Monografia. 2. Discurso. 3. Marranos. I. Costa, Marclia Luzia Gomes da Costa. II. Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. III.Ttulo.

    UERN/BC CDD 302

    Catalogao da Publicao na Fonte. Universidade do Estado do Rio Grande do Norte.

    Bibliotecrio: Sebastio Lopes Galvo Neto CRB - 15/486

  • SILVANA MARIA DA SILVA

    A CONSTITUIO DA IDENTIDADE MARRANA: DA HISTRIA AO SEU REGISTRO NO DOCUMENTRIO A ESTRELA OCULTA DO SERTO

    Monografia apresentada ao Departamento de Comunicao Social DECOM da Faculdade de Comunicao Social da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte UERN como requisito parcial para a obteno de ttulo de Bacharel em Comunicao Social, Habilitao em Jornalismo.

    Aprovada

    em: _____/_____/____

    Orientador: Profa. Doutora Marclia Luzia Gomes da Costa

    BANCA EXAMINADORA

    ___________________________________________________________________

    Profa. Doutora Marclia Luzia Gomes da Costa

    Prof. Doutor Francisco Paulo da Silva

    Profa. Ms. Daiany Ferreira Dantas

    ___________________________________________________________________

    MOSSOR-RN 2012

  • Ao meu esposo, Joclio Martins de Oliveira que tanto me incentivou na realizao dos meus empreendimentos de uma forma peculiar, compreendendo-me com tanto amor e carinho. Ele , sem dvida, a minha fora motriz em todos os mbitos da minha vida.

  • AGRADECIMENTOS

    A Deus, meu Senhor, em primeiro lugar, por ter me feito sentir sua onipresena durante toda a minha vida, me dando sabedoria e me concedendo a oportunidade de realizar este trabalho que me fez crescer;

    A todos os professores que nos acompanharam durante toda a nossa graduao e tambm aos colegas de turma que de uma forma ou de outra contriburam para a realizao deste trabalho;

    professora Marclia Gomes que me conduziu de forma sensata e paciente na realizao deste trabalho;

    Aos professores Paulo da Silva e Dayane Dantas por terem participado da banca examinadora de to bom grado.

  • No se glorie o sbio na sua sabedoria, nem o forte na sua fora, nem o rico, nas suas riquezas, mas o que se gloriar glorie nisto: em me conhecer e saber que eu sou o Senhor (Jr. 9. 23-24).

  • RESUMO

    O presente trabalho investiga as evidncias dos traos da identidade marrana, judeus convertidos ou nascidos em outra religio crist, tambm conhecidos como cristos novos. O nosso objetivo analisar o discurso dos marranos no documentrio A Estrela Oculta do Serto para identificarmos como se d a construo da identidade marrana por meio dos discursos analisados. Para isso, selecionamos alguns enunciados de personagens com vista a analisar a identidade marrana recorrendo ao mtodo da Anlise do Discurso que so estudadas mediante as obras de Foucault (2009) Orlandi, (1996), Brando, (1998), Fernandes (2005) e Pcheux (2006). No primeiro momento deste TCC exploramos o que identidade de forma abrangente fidelizando os nossos argumentos em autores como Casttels (1999), Hall (2006), Santos (2007), e discutimos sobre o surgimento histrico dos cristos novos baseando-nos em nomes como Saraiva (1985) e Novinsky (1972). Seguimos com uma explanao da identidade marrana fundamentando-nos em Novinsky (2001), Silva (2008) e Morin (2002) e com a abordagem do gnero documentrio onde utilizaremos as fontes de Nichols, (2005), Ramos, (2008) e Musburger, 2008, para tratar do carter audiovisual do nosso corpus A Estrela Oculta do Serto. Tendo em vista que o nosso intento era conhecer a identidade marrana, especialmente atravs da anlise dos enunciados retirados do nosso corpus, pudemos verificar que o marrano de fato um homem que passa por vrias transformaes na identidade, assim ele pode ser considerado como um sujeito moldado, hibridizado e dividido.

    PALAVRAS-CHAVE: Discurso, Identidade, Marranos.

  • ABSTRACT

    This study investigates the evidence of identity traits marrano Jews converted or born in another Christian religion, also known as new christians. Our goal is to analyze the speech of the Marranos in the documentary The Star's Hidden Wilderness to identify ways in which the identity construction Marrano through discourse analyzed. For this, we selected some statements of characters to analyze the identity Marrano using the method of discourse analysis that are studied through the works of Foucault (2009) Orlandi, (1996), Brando (1998), Fernandes (2005) and Pecheux (2006). At first this CBT explore what identity is comprehensively ensuring loyalty in our arguments as Casttels authors (1999), Hall (2006), Santos (2007), and discuss the historical emergence of new Christians basing ourselves in names like Saraiva (1985) and Novinsky (1972). We follow with an explanation of the identity Marrano basing ourselves in Novinsky (2001), Silva (2008) and Morin (2002) and the approach of the documentary genre where we use sources of Nichols (2005), Ramos (2008) and Musburger , 2008, to discuss the character of our audiovisual corpus the Star's Hidden Wilderness. Given that our intent was to ascertain the identity Marrano, especially through the analysis of statements taken from our corpus, we observed that the Marrano is indeed a man who goes through several transformations in identity, so it can be considered as a subject shaped, divided and hybridized. KEYWORDS: Discourse, Identity, Marranos.

  • SUMRIO

    INTRODUO 10

    I A PRODUO DA IDENTIDADE 12

    1 Identidade: em busca de uma definio 12

    2 Cultura e identidade 16

    II A IDENTIDADE DO MARRANO ASPECTOS HISTRICOS 20

    2.1 Uma histria de perseguies e converses 20

    2.2 Elementos constitutivos do gnero documentrio 27

    2.3 A construo da identidade do marrano 40

    III A CONSTRUO DISCURSIVA DOS MARRANOS NO DOCUMENTRIO 58

    3.1 Anlise do Discurso e procedimentos de anlise 60

    3.2 A identidade marrana inscrita em A Estrela Oculta do Serto anlise discursiva 68

    CONSIDERAES FINAIS 80

    REFERNCIAS 82

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    INTRODUO

    As pesquisas sobre marranos so um campo inexplorado, ao menos em algumas reas de investigao, como o caso de Comunicao Social. Pensando nisso, fomos levados a enveredar por esse caminho para fazermos o nosso Trabalho de Concluso de Curso.

    Apesar de ser um tema que envolve questes histricas, buscaremos uma alternativa para explor-lo sem engess-lo a esse mbito. Para isso, fundamentaremos as nossas pesquisas em fontes bibliogrficas baseadas no mtodo anlise do discurso francesa. Alm da preocupao com a metodologia, buscamos vincular o projeto rea da Comunicao, elegendo o documentrio A Estrela Oculta do Serto para analisarmos recortes de falas dos seus personagens nele inseridos.

    Para fundamentar a nossa pesquisa no campo da AD francesa, faremos uso de autores como Michel Foucault, Michel Pecheux e Eni Puccinelli Orlandi. Em se tratando do estudo dos marranos, Anita Novinsky, autoridade mundial em inquisio, nos servir como base.

    Analisaremos trechos de falas que se desenvolvem no documentrio A Estrela Oculta do Serto, nosso corpus, por se tratar de um registro que esboa a posio do marrano, a sua tentativa de retorno s origens judaicas e, pelo fato de termos neste documentrio, a possibilidade de investigar os discursos de alguns rabinos que falam sobre o tema proposto. Por termos os enunciados desses rabinos, nos ser possvel fazer uma explanao, no apenas do discurso dos marranos, como tambm a formao discursiva do outro lado da moeda, ou seja, o posicionamento dos judeus que nunca saram de seus costumes judaicos. Levaremos em considerao a posio desses sujeitos para que possamos confrontar esses discursos.

    Mediante os pontos acima citados objetivamos por meio de nossa pesquisa analisar o discurso dos marranos no documentrio A Estrela Oculta do Serto para que possamos fazer um levantamento do surgimento histrico dos marranos investigando se h homogeneidade na identidade dos mesmos ou se existem entre eles mltiplas faces identitrias. Pretendemos ainda identificar os meandros que envolvem o processo do retorno aos princpios judaicos que depende da aprovao de autoridades rabino-judaicas. Em se tratando dos nossos objetivos intentamos

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    tambm verificar como a linguagem do documentrio proporciona a apreenso da cultura marrana.

    A estrutura do nosso TCC se divide em trs sees. Na primeira nos ser apresentada algumas elucidaes sobre a identidade e a cultura tendo em vista que necessitaremos desses esclarecimentos para entendermos um pouco sobre a formao dos sujeitos. No segundo fragmento ns trabalharemos com a identidade do marrano propriamente dita enfocando os aspectos histricos que contriburam para a formao e possveis transformaes dessa identidade. Ainda neste captulo ns traremos explanaes sobre o gnero documentrio. Na ltima parte do nosso TCC discorremos sobre o desdobramento da construo discursiva dos marranos no documentrio A Estrela Oculta do Serto e analisaremos alguns enunciados no nosso corpus para explorarmos a(s) face(s) identitria(s) dos marranos.

    Esperamos realmente contribuir de alguma forma com as nossas pesquisas para o enriquecimento e maior cincia desse assunto to pouco explorado.

  • 12

    I IDENTIDADE E CULTURA a produo scio-histrica do sujeito

    1 - Identidade: em busca de uma definio

    Uma das primeiras preocupaes que nos sobrevm quando vamos discorrer a respeito de qualquer assunto a ideia e/ou a necessidade da definio de termos que o circundam. Somos levados a conceituar aquilo que nos rodeia desde cedo. Um exemplo disso a forma como os nossos professores nos orientam nas sries iniciais. Atividades com enunciados como defina identidade, por exemplo, bem comum.

    Durante a jornada de estudos, pesquisas e experincias no mbito acadmico, principalmente, temos a oportunidade de adquirirmos alguma maturidade e compreenso no que tange cautela quanto definio de expresses que fazem parte de nossos estudos. Conseguimos entender que a significao das palavras no pode ser vista por meio de uma tica engessada que encontramos nos dicionrios, por exemplo. As leituras dos mais diferentes autores nos levam a considerar que existem pontos de vista variados sobre um mesmo assunto, o que sem dvida, constitui-se um enriquecimento para as pesquisas propostas.

    Tambm h outro ponto fundamental que deve fazer parte da nossa preocupao, a influncia e as mudanas que a Histria pode conferir aos mais diferentes assuntos e objetos estudados. Aquilo que foi descoberto e fortemente defendido h algum tempo atrs, pode ser desfeito, corroborado ou retificado por outros estudiosos com o passar do tempo. Um exemplo disso a questo da identidade.

    Entendemos que a identidade um ponto crucial para refletirmos no nosso Trabalho de Concluso de Curso TCC, em virtude do objeto escolhido. A estrutura do nosso TCC se divide em: analisar o discurso dos marranos1, no documentrio A Estrela Oculta do Serto. Partindo desse princpio temos: Um levantamento histrico

    1Na Espanha, mhram, significava coisa probida. No nordeste brasileiro: MAR (amargo) + UNA (ns): marranu, que significa, em hebraico, nossa amargura. Anussin: termo usado para designar os marranos e significa forados. Neste ltimo caso, judeus que embora professando abertamente o cristianismo para evitar perseguies, continuavam ocultamente fiis sua primitiva religio, o judasmo.

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    ens judaicas e suas implicaes junto s autoridades rabino-judaicas e o estudo da linguagem do documentrio para verificar a possibilidade de apreenso da cultura marrana atravs do mesmo.

    Por ser um tema que envolve questes histricas, buscaremos uma alternativa para explorar o assunto sem engess-lo nesse mbito, utilizando-nos da anlise de discurso de orientao francesa, que embasar as nossas reflexes. Alm da preocupao com essa abordagem terico-metodolgica, tentaremos vincular a nossa pesquisa rea da Comunicao, elegendo o documentrio A Estrela Oculta do Serto para analisarmos trechos enunciados dos seus personagens.

    A noo de identidade pode envolver questionamentos como o que o indivduo? Que sujeito? Em que cultura esse indivduo est inserido? Que movimentos histricos formaram ou transformaram esse ser? Como se comporta esse sujeito? S para citar algumas indagaes.

    Passemos a determinadas elucidaes sobre identidade de acordo com alguns autores. Iniciaremos com Casttels que afirma:

    [...] do ponto de vista sociolgico, toda e qualquer identidade construda [...] da matria-prima fornecida pela histria, geografia, biologia, instituies produtivas e reprodutivas, pela memria coletiva e por fantasias pessoais, pelos aparatos de poder e de cunho religioso [...] a construo social da identidade sempre ocorre em um contexto marcado por relaes de poder (CASTTELS, 1999, p. 23).

    Assim, de acordo com Casttels, esses elementos so absorvidos e reinterpretados pelos sujeitos que compem determinado quadro social. Logo, comeamos a entender que a formao da identidade envolve contextos histricos e sociais. Podemos ver a confirmao desse ponto de vista atravs de Hall que diz:

    De acordo com essa viso, que se tornou a concepo sociolgica clssica da questo, a identidade formada na interao entre o eu e a sociedade. O sujeito ainda tem um ncleo ou essncia interior que o eu real, mas este formado e modificado num dilogo contnuo com os mundos culturais exteriores e as identidades que esses mundos oferecem (HALL, 2006, p. 11)2.

    2 Grifos do autor.

  • 14

    O sujeito no s formado como tambm sua identidade passa por fragmentao e deslocamentos devido a essas relaes de poder. Surgem ento, segundo Casttels, trs possveis identidades. A primeira a identidade legitimadora constituda por instituies dominantes que expandem sua superioridade aos atores sociais que conseguem sujeitar. Esta pode ter como resultado uma sociedade civil. A segunda a identidade de resistncia na qual encontramos os atores que esto em posio desprivilegiada comparada aos sujeitos da identidade legitimadora e tentam lutar contra ela, podendo desencadear o surgimento de comunas. Por ltimo, a identidade de projeto que formada por atores sociais que fazem uso de instrumentos culturais para modificar a estrutura social como um todo. Atravs desta podemos ter a produo de sujeitos. Todos produzem o sujeito ou seu assujeitamento. Talvez esse ltimo contribua evidenciando sua resistncia. importante salientar que nenhuma dessas identidades podem ser concebidas como encerradas, antes pode ocorrer uma dinmica entre elas que contribui para os sujeitos se deslocarem assumindo papis diferentes na sociedade. H uma diferena entre papel e identidade. Segundo Casttels, o papel est para o comportamento, depende de negociaes entre o indivduo e as instituies, alm de ser mais superficial. J a identidade est para a internalizao, envolve autoconstruo e individuao.

    [...] Papis (por exemplo, ser trabalhador, me, vizinho, militante socialista, sindicalista, jogador de basquete, frequentador de uma determinada igreja e fumante, ao mesmo tempo) so definidos por normas estruturadas pelas instituies da sociedade. [...] Identidades, por sua vez, constituem fontes de significado para os prprios atores, por eles originadas, e construdas por meio de um processo de individuao. Embora, [...] as identidades tambm possam ser formadas a partir de instituies dominantes, somente assumem tal condio quando e se os atores sociais as internalizam, construindo seu significado com base nessa interao (CASTTELS, 1999, p. 22-23).

    Casttels, citando Touraine, ainda nos alerta sobre a diferena entre sujeito e indivduo, ele nos diz:

    Chamo de sujeito o desejo de ser um indivduo, de criar uma histria pessoal, de atribuir o significado a todo o conjunto de experincias da vida individual. A transformao de indivduos em sujeitos resulta da combinao necessria de duas afirmaes: a dos indivduos contra as comunas, e a dos indivduos contra o mercado (TOURAINE, apud CASTTELS, 1999, p. 27).

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    H ainda trs concepes de identidade segundo Hall:

    O sujeito do iluminismo [...] baseado numa concepo da pessoa humana como indivduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razo e conscincia e de ao, cujo centro se constitua num ncleo interior, que emergia pela primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia, ainda que permanecendo essencialmente o mesmo [...] ao longo da existncia do indivduo. [...] o sujeito sociolgico refletia a crescente complexidade do mundo moderno e a conscincia de que este ncleo interior do sujeito no era auto-suficiente, mas era formado na relao com outras pessoas importantes para ele, que mediavam para o sujeito valores, sentidos e smbolos a cultura dos mundos que ele/ela habitava. [...] o sujeito ps-moderno, conceptualizado como no tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se uma celebrao mvel: formada e transformada continuamente em relao s formas pelas quais somos representados ou interpretados nos sistemas culturais que nos rodeiam. definido historicamente, e no biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que no unificadas ao redor de um eu coerente. Dentro de ns h identidades contraditrias, empurrando em diferentes direes, de tal modo que nossas identificaes esto sendo continuamente deslocadas. [...] A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente uma fantasia (HALL, 2006, p. 10-13).

    Percebemos ento com clareza que o conceito de identidade passou por mudanas ao longo dos anos. A noo que se tinha do ser na poca do Iluminismo, onde tnhamos um sujeito que no sofria alteraes na sua personalidade, vai sendo modificada ao se considerar o sujeito sociolgico que formado pelas mediaes do seu mbito social e as cargas simblicas por ele recebidas. Chegamos ao terceiro sujeito, o ps-moderno, que se constitui de uma personalidade verstil, onde o indivduo passa a atuar de uma forma diferente mediante os contextos que lhe so apresentados. Mas, por vezes essa versatilidade vai ganhando formas de um deslocamento, termo utilizado por Laclau e citado por Hall:

    Uma estrutura deslocada aquela cujo centro deslocado, no sendo substitudo por outro, mas por uma pluralidade de centros de poder. [...] A sociedade [...] est constantemente sendo descentrada ou deslocada por foras fora de si mesma. As sociedades da modernidade tardia, [...] so caracterizadas pela antagonismos sociais que produzem uma variedade de diferentes posies de sujeito isto , identidades para os indivduos. Se tais sociedades no se desintegram totalmente no porque elas

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    so unificadas, mas porque seus diferentes elementos e identidades podem, sob certas circunstncias, ser conjuntamente articuladas. Mas essa articulao sempre parcial: Sem isso, [...] no haveria nenhuma histria. Esta uma concepo de identidade muito diferente e muito mais perturbadora e provisria do que as duas anteriores (HALL, 2006, p. 16-17).

    A possibilidade de compreenso e viso desses descentramentos aos quais alude Hall viabilizada graas a novas interpretaes ou descobertas nos discursos do conhecimento moderno. O autor esboa cinco mudanas na teoria social e nas cincias humanas, so elas:

    A primeira descentrao [...] pensamento marxista [...] redescoberto e reinterpretado [...] Seus novos intrpretes leram [...] que os indivduos no poderiam de nenhuma forma ser os autores ou os agentes da histria, uma vez que eles podiam agir apenas com base em condies histricas criadas por outros e sob as quais eles nasceram, utilizando os recursos materiais e de cultura que lhes foram fornecidos por geraes anteriores. [...] desloca qualquer noo de agncia individual. O segundo [...] vem da descoberta do inconsciente por Freud [...] nossa sexualidade e a estrutura de nossos desejos so formadas com base em processos psquicos e simblicos do inconsciente, que funciona de acordo com uma lgica muito diferente daquela da Razo, arrasa com o conceito do sujeito cognoscente e racional provido de uma identidade fixa e unificada [...] de Descartes. [...] O terceiro [...] est associado com [...] Ferdinand de Saussure [...] ns no somos, em nenhum sentido, os autores das afirmaes que fazemos ou dos significados que expressamos na lngua. [...] A lngua um sistema social e no um sistema individual. [...] Alm disso, os significados no so fixos, [...] O quarto [...] ocorre no trabalho do [...] francs Michel Foucault. [...] Foucault produziu uma espcie de genealogia do sujeito moderno. Foucault destaca um novo tipo de poder, que ele chama de poder disciplinar. [...] em primeiro lugar, com a regulao, a vigilncia o governo da espcie humana de populaes inteiras e, em segundo lugar, do indivduo e do corpo. [...] novas instituies [...] que policiam e disciplinam as populaes modernas. [...] O quinto descentramento [...] o impacto do feminismo, tanto como uma crtica terica quanto como um movimento social (HALL, 2006, p. 34-44).

    2 Cultura e Identidade

    Somado a tudo isso temos a cultura, que outro ponto que no podemos deixar de comentar quando estamos tratando de identidade. Santos (2007), ao longo de sua obra O que cultura, nos apresenta de forma gradativa algumas definies

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    para este termo. Ele permeia desde a origem da palavra, passando pela importncia do estudo do passado para entendermos a nossa cultura, ressalta a relevncia dos processos simblicos no estudo da cultura, questiona e responde o porqu das variaes culturais, elenca as evolues pelas quais passaram as definies de cultura bem como o seu relativismo, mostra-nos algumas expresses que esto atreladas cultura, como manifestaes artsticas, meios de comunicao, lendas e crenas. Tambm nos revela em que se fundamentam as preocupaes quando do estudo da cultura. No seu ttulo nos deparamos ainda com explanao de algumas vises da mesma, encontramos elucidaes a respeito do popular versus erudito. Ainda podemos ver neste trabalho o grande peso dos meios de comunicao de massa para difundi-la nas modernas sociedades industrializadas, at chegar a duas concepes bsicas:

    As vrias maneiras de entender o que cultura derivam de um conjunto comum de preocupaes que podemos localizar em duas concepes bsicas. A primeira dessas concepes preocupa-se com todos os aspectos de uma realidade social. Assim, cultura diz respeito a tudo aquilo que caracteriza a existncia social de um povo ou nao, ou ento de grupos no interior de um a sociedade. [...] preocupando-se com a totalidade dessas caractersticas, digam elas respeito s maneiras de conceber e organizar a vida social ou a seus aspectos materiais. [...] Vamos segunda. Neste caso, quando falamos em cultura estamos nos referindo mais especificamente ao conhecimento, s idias e crenas, assim como s maneiras como eles existem na vida social. Observem que mesmo aqui a referncia totalidade de caractersticas de uma realidade social est presente, j que no se pode falar em conhecimento, idias, crenas sem pensar na sociedade qual se referem. O que ocorre que h uma nfase especial no conhecimento e dimenses associadas. Entendemos neste caso que a cultura diz respeito a uma esfera, a um domnio, da vida social (SANTOS, 2007, p. 22-25).

    E, para melhorar a nossa compreenso, vejamos de forma mais resumida o que nos diz Santos:

    Cultura uma construo histrica, seja como concepo, seja como dimenso do processo social. [...] a cultura um produto coletivo da vida humana. [...] Cultura um territrio bem atual das lutas sociais por um destino melhor (SANTOS, 2007, p. 45).

    Comeamos ento a perceber que no podemos ter uma viso restrita e simplista de cultura, tendo em vista que ela envolve aspectos da vida social como um todo. Quando pensamos no fragmento acima citado, no que se refere a lutas

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    sociais, somos levados a pensar em sujeitos dominantes e sujeitos dominados. Assim, entra em cena a cultura nacional da qual fala Santos:

    Como as naes so unidades polticas da histria contempornea e como temos entendido aqui a cultura como uma dimenso do processo social, podemos tranquilamente pensar em cultura nacional. Ela assim resultado e aspecto de um processo histrico ! cultura nacional assim descrita no seja uma inveno. uma realidade histrica, resultado de processos seculares de trabalho e produo, de lutas sociais, consequncia das formas como a nao se produziu. A cultura nacional , portanto, mais do que a lngua, os costumes, as tradies de um povo, os quais de resto so tambm dinmicos, tambm sofrem alteraes constantes (SANTOS, 2007, p. 72-73).

    Passamos agora a ter uma melhor dimenso da cultura, tendo em vista que ela envolve relaes de poder. Esse um aspecto que merece muita ateno, pois, s vezes, o estudo da cultura se faz com o objetivo de conhecer os povos para saber como eles podem ser dominados. Assim, o conhecimento torna-se o caminho para a dominao. Nesse contexto, Santos diz:

    [...] Notem bem: o estudo da cultura no se reduz a isso, mas esta uma realidade que sempre se impe. Assim porque as prprias preocupaes com cultura nasceram associadas s relaes de poder. [...] As preocupaes com cultura surgiram assim associadas tanto ao progresso da sociedade e do conhecimento quanto a novas formas de dominao (SANTOS, 2007, p. 80-81).

    Logo, por tudo o que foi exposto sobre identidade, depreendemos que para se alcanar sua apreenso necessitamos de uma abordagem bem mais ampla, diferente do senso comum que atribui ao vocbulo um sentido mais simples que gira em torno de hbitos de um grupo ou de uma sociedade. Para entendermos melhor o nvel dessa abrangncia basta observarmos a quantidade de conjunturas que envolvem a identidade. At aqui passamos por vrios pontos que foram desde o ser individual at os mais diferentes contextos sociais, de estudos, da histria, de linhas de pensamento, da reinterpretao de algumas dessas linhas e o comportamento dos sujeitos que compem determinados quadros grupais.

    Essas consideraes iniciais neste primeiro ponto foram necessrias para que pudssemos iniciar a explanao sobre o surgimento histrico dos marranos, haja vista, esse surgimento envolver formas de dominao, formao e transformao da

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    identidade dos judeus convertidos, lutas de classes no que tange resistncia de alguns judeus em permanecerem fiis ao judasmo, alm das influncias culturais absorvidas e transferidas pelos judeus nos mais diferentes contextos sociais. Aps essas primeiras elucidaes, incidamos ao estudo propriamente dito dos marranos.

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    II A Identidade do marrano Aspectos histricos

    2.1 Uma histria de perseguies e converses

    Segundo Anita Novinsky (1972), as primeiras converses de judeus a outras religies remonta a poca da primeira Cruzada, no sculo XI. Esses judeus aceitavam o batismo cristo catlico, mas passados alguns anos, retornavam religio antiga. Uma vez tendo sido batizados, entra em cena a postura dos rabis em relao a esses conversos. A pergunta motriz girava em torno da seguinte questo: Como esses conversos, considerados idlatras, seriam tratados em virtude da rgida lei judaica j que a aceitao de uma nova religio os tornava impuros para o judasmo? J na metade do sculo XIII, os judeus foram obrigados a adotar o islamismo, o mesmo ocorreu no sculo XII em Frankfurt, na Alemanha. Para Antnio Jos Saraiva (1985) (apud) Novinsky (1972), a converso na Pennsula Ibrica teve as consequncias mais acentuadas. Na verdade, o autor considera o fenmeno cristo novo, um fato nomeadamente ibrico devido s propores atingidas aps as converses na Espanha ao Catolicismo terem atingido dimenses nunca antes vistas na histria dos judeus da Dispora, atravessando todo o sculo XV e culminando com os convertimentos at a expulso em 1497. Se no sculo XI as poucas aceitaes religio catlica preocupava os rabis, imaginemos o cenrio destoante para estes com a massa das converses. Havia um misto de vises para o tratamento desses convertidos. Os rabinos espanhis entendiam que aps a deciso os judeus estavam impuros. J as autoridades judaicas de origem ibrica que viviam na Holanda ou em outras cidades europeias recebiam os cristos novos de volta. Assim, percebemos que o surgimento dos marranos no inicia somente no perodo de colonizao brasileira, mas bem antes disso. Vejamos a participao dos judeus na terra dos nossos patrcios antes e depois do advento do marranismo. Durante a Idade Mdia, radicados por todo o pas, desempenhavam papel de relevo na sociedade portuguesa. As aljamas ou judiarias, nomes dados aos lugares exclusivamente ocupados por judeus, onde tinham suas sinagogas, espalhavam-se entre os mais importantes territrios (Lisboa, Santarm, vora, Porto etc.), seja pela populao ou pela riqueza. Antnio Jos Saraiva, corroborando a tese que aponta o poder econmico dos judeus em Portugal no sculo XV, descreve a ocasio em que,

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    ao Rei lanar a ordem da entrega de uma contribuio para a defesa do Reino, os judeus entraram com uma quinta parte do dinheiro que foi recolhido, tendo por base apenas a propriedade imvel dos contribuintes. No entanto, a importncia desta comunidade no estava somente na riqueza, como tambm nas funes que seus membros desempenhavam. Entretanto, aos judeus no cabia somente as funes acima citadas, atribuindo assim seu poderio econmico na sociedade da poca. O prprio Antnio Jos Saraiva, lista algumas outras funes ocupadas por judeus, a saber: artesos, ferreiros, alfaiates, sapateiros, ourives etc. Havia ainda uma funo intelectual desempenhada pelos judeus na vida portuguesa. Aqueles que herdaram a cincia rabe cultivando a astronomia e a astrologia tiveram um papel relevante nas bases cientficas da navegao atlntica portuguesa e os que iniciaram uma tradio mdica hebraica em Portugal, como mdicos da corte.

    Havia desta forma um setor intelectual hebraico caracterizado pelo cultivo das cincias exatas e das cincias da natureza, em face do setor intelectual cristo, constitudo pelo Clero, mais identificado com as cincias teolgicas e literrias (SARAIVA, 1985, p. 45).

    Nos fins do sculo XV, a histria dos judeus na Pennsula Ibrica tomou dramticos rumos. Na vizinha Espanha avolumara-se a poltica antissemtica dos reis catlicos, baseada no desejo de uma unificao religiosa. Em 1492, os reis catlicos espanhis determinaram que os judeus que no se convertessem ao catolicismo teriam de deixar o pas. Uma parte de centenas de milhares de emigrantes forados saiu pelos portos martimos, outra parte pela fronteira portuguesa. Qual a atitude do rei de Portugal? O rei portugus mostrou-se favorvel populao judaica, abrindo as fronteiras nacionais, no deixando de lucrar com a emergncia, cobrando um imposto individual aos que entravam no territrio portugus. Aos judeus que compunham a categoria de oficiais mecnicos, o valor do imposto era reduzido pela metade, j que estas e algumas das demais funes citadas anteriormente eram indispensveis aos interesses econmicos de Portugal. As condies favorveis permanncia da populao hebraica em territrio portugus, refugiando-se da perseguio hispnica, chegaram ao fim em consequncia de uma unio matrimonial. Referimo-nos ao casamento do rei D. Manuel com Dona Isabel, filha dos reis catlicos espanhis. Para D. Manuel o

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    matrimnio significava a posio de herdeiro do trono de Castela e Arago e, para tanto, por ordem dos reis espanhis, desejosos de uma unificao religiosa, comprometeu-se por em ao uma poltica de expulso de todos os judeus de Portugal.

    Data de 5 de dezembro de 1.496 a lei que ordena a sada de mouros e judeus, que so filhos da maldio, at ao ms de outubro, inclusive do ano seguinte. Poderiam, segundo a lei, levar consigo as fazendas e fazer-se pagar as dvidas de que eram credores (SARAIVA, 1985, p. 60).

    Tal expulso no era do interesse do rei D. Manuel, j que a comunidade judaica se constitua um destacado elemento de progresso nos setores da economia e das profisses liberais. Neste sentido, as medidas adotadas por D. Manuel deixam explcito seu objetivo, de alguma forma, beneficiar-se da presena judaica.

    Sendo assim, algumas estratgias so adotadas para a manuteno da populao judaica em Portugal durante o maior tempo possvel. D. Manuel deu um prazo superior a dez meses para a partida dos judeus, enquanto os reis catlicos, num territrio mais extenso e para uma populao maior, concederam apenas quatro meses.

    Esse tempo foi determinado pelo rei. Primeiro mandou batizar todas as crianas judias menores de 14 anos. Essas crianas foram retiradas s famlias de origem e entregues a famlias crists. Perdeu-se o rastro delas [...] Outra medida tomada foi isentar de qualquer inquirio religiosa os cristo novos, durante um prazo de 20 anos. Isto significava que no seriam admitidas durante esse tempo acusaes por judasmo (SARAIVA, 1985, p. 65).

    O nascimento dos cristos novos em Portugal resultado de uma poltica de D. Manuel, com o propsito de permanecer usufruindo dos benefcios oriundos da presena judaica, no territrio da coroa, recusando continuar atendendo aos pedidos dos reis catlicos. O pesquisador Antnio Jos Saraiva corrobora com esta hiptese ao afirmar que:

    A poltica inexcedivelmente maquiavlica de D. Manuel, combinando a violncia e a seduo no propsito no s de conservar os judeus portugueses, mas ainda de atrair os castelhanos, provavelmente inspirada por razes de Estado. Tudo leva a crer que para a economia do Reino, onde praticamente no havia judeus convertidos, a expulso poderia redundar num desastre sem recurso (SARAIVA, 1985, p. 35).

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    Diante da perseguio empreendida aos judeus, cabe a seguinte questo: Qual relao das leis manuelitas e a trajetria de integrao pela qual caminhou a populao perseguida? Para Antnio Jos Saraiva, razes sociolgicas podem ser apontadas como resposta, pois, a religio hebraica em Portugal com culto pblico e oficial, sinagogas, livros sagrados e regras de vida coletiva, sendo reduzido clandestinidade, um culto deste gnero s pode degradar-se e esvanecer-se. Os antigos hebreus tiveram que se submeter cotidianamente ao culto pblico cristo, aos ritos e disciplina da Igreja. O processo de integrao da populao judaica portuguesa foi interrompido em 1.536, com o estabelecimento da Inquisio em Portugal. Dentre as acusaes dos tribunais inquisitrias aos cristos novos, estavam a de judasmo, homossexualidade, bigamia, bruxaria ou pacto com o diabo. Os motivos que levaram ao estabelecimento da Inquisio em Portugal e a consequente perseguio populao judaica ocupam diversas pginas dos trabalhos que se propem a responder tal indagao. Destacamos trs exemplos que elucidam essa problemtica.

    Ora a hierarquia estava ameaada e a integrao dos antigos judeus era um perigo para a sociedade tradicional, sobretudo na conjuntura econmica em que ocorria [...] Para o clero, a integrao da comunidade hebraica constitua uma ameaa. Ora a converso de 1497 introduzia no seio da Cristandade um grupo numeroso de letrados no-clericais, mdicos, farmacuticos, negociantes alfabetizados, de quem se podia temer que fizessem concorrncia aos clrigos naquela funo (SARAIVA, 1985, p. 55).

    A corrente tradicionalista da sociedade portuguesa perseguiu, torturou, e matou um considervel contingente de pessoas utilizando-se do mito da pureza de sangue [...] O Tribunal do Santo Ofcio, um aparelho ideolgico de feio poltico-policial que utilizava a denncia por crime contra a f catlica, mesmo que fosse falsa, para praticar o confisco dos bens daqueles que eram denunciados. Assim, a pretensa heresia dos cristos-novos tinha um fundamento mais econmico que religioso (CARNEIRO, 2006, p. 18).

    A concorrncia comercial da minoria judaica era uma realidade forte e dificilmente ignorada pela maioria que se sentia preterida no trato nacional e internacional. Acicatado por aquela, afirmava-se com maior intensidade o crescer do sentimento contra o judeu infiel. Esta tenso seria agravada pela polmica religiosa antissemita (TAVARES, 1987, p. 28).

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    Com a restaurao da independncia, em 1640, a Companhia de Jesus entrou em oposio ao Santo Ofcio e tentou conseguir uma melhor situao para os cristos novos. Tendo sido decretada, em 1821, a abolio do Santo Ofcio, os descendentes dos conversos livraram-se das perseguies oficiais. Essa breve anlise do contexto histrico no qual surge o conceito de cristo novo, designao dada aos judeus foradamente convertidos ao catolicismo, permite compreendermos que tal conceito no se refere a uma viso tnica ou substancialmente religiosa dada populao judaica proslita, e sim, a uma ideologia na qual o cristo novo, judeus, so formas de dizer esprio, ilegtimo, meteco, bastardo, fora do direito, pria (SARAIVA, 1985, p. 60)3.

    No captulo H uma ideologia dos cristos-novos? da obra Inquisio e cristos-novos de Antnio Jos Saraiva (1985), o aspecto ideolgico do conceito de cristos identificado, j que pode falar-se de uma viso social e econmica do mundo a que os cristos novos aderiam pela fora da sua condio de mercadores, mas que de modo algum uma viso consubstancialmente tnica ou religiosa. Neste sentido, a Igreja desempenhou um papel fundamental na ideologizao do conceito de cristos novos. Maria J. P. Tavares, afirma:

    A Igreja determinava um limiar a partir do qual todo o contato e convvio entre judeus e cristos seria pernicioso para este [...] Tendo subjacente um antagonismo religioso, comum a toda a mentalidade crist ocidental, o dio ao judeu traduzir-se-ia, em Portugal, mais ao nvel do poder e da economia do que dentro do esprito de tolerncia e fanatismo religioso (TAVARES, 1987, p. 80).

    A historiadora Anita Novinsky, identifica na obra de Antnio Jos Saraiva a originalidade de tratar o fenmeno portugus do cristo novo como um mito criado pela Inquisio, em defesa contra o avano da classe burguesa em ascenso, cujo ncleo principal era constitudo por elementos de origem judaica. Apesar de Novinsky levar em considerao os estudos de Saraiva, a autora em sua obra Cristos novos na Bahia nos diz:

    Essa realidade do marranismo, no sentido que lhe daremos atravs deste trabalho, no invalida a tese de Saraiva, a saber, que a Inquisio criou um mito, o mito do cristo novo suspeito, herege, judaizante, mas tenciona mostrar que o cristo novo respondeu por

    3 Grifos do autor.

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    sua vez a essa mistificao assumindo uma atitude de defesa (NOVINSKY, 1972, p. 06).

    Mediante os estudos feitos por Novinsky percebemos que o marrano no aceitou favoravelmente as imposies feitas pela Igreja para que se convertessem ao cristianismo. Alm de obras escritas que tratam do surgimento, da disperso, da identidade marrana e do atual quadro vivido por eles, h ainda produes na mdia eletrnica. o caso do documentrio A Estrela Oculta do Serto, que constitui o corpus do nosso Trabalho de Concluso do Curso TCC.

    J que algumas obras escritas tratam o marranismo em um mbito contextualizado, vamos utilizar o referido documentrio para dele extrairmos os possveis traos dos marranos, ou seja, os provveis apontamentos de sedimentao da real identidade dos mesmos. Isso, claro, se realmente existe uma identidade nica em se tratando do marranismo. Dessa maneira, atravs da anlise do documentrio A Estrela Oculta do Serto tentaremos entender como construda e retratada a(s) identidade(s) dos marranos atravs do discurso do gnero documentrio. O interesse pelo assunto Marranos surgiu em virtude de nossa prpria experincia por vermos a pouca exposio do mesmo, ou da sua divulgao distorcida, alm da necessidade de aprofundamento do tema. Outro aspecto que merece a nossa ateno a influncia dos marranos na miscigenao histrica e cultural do Brasil, visto que h registros dos mesmos em territrio brasileiro desde as expedies de colonizao europeia. Esse fato no retratado pelos livros de histria, por exemplo. Isso se constitui em um ocultamento do registro dos marranos na miscigenao brasileira. possvel que o mesmo seja consequncia de uma provvel luta de classes implantada atravs do discurso da Santa Inquisio da Igreja Catlica por temerem a ascenso dos judeus, tendo em vista que os mesmos logravam bom xito em seus negcios, o que poderia se constituir em uma ameaa ao patrimnio da Igreja. Vemos nos livros de histria a abordagem e ratificao de que o povo brasileiro um povo miscigenado, porm, a miscigenao de que nos fala essas obras se reduzem aos povos indgenas, negros e europeus, mais especificamente, portugueses. O tema marranos um assunto curioso e intrigante que vale a pena pesquisar e se aprofundar, especialmente se o observarmos por meio de uma perspectiva

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    histrica, o que sem dvida trar um vis scio-histrico ao mesmo. Pensemos em um povo que foi perseguido durante sculos, e mesmo assim, conseguiram manter traos fortssimos de sua cultura. No s os mantiveram, como tambm os transferiram aos povos circunvizinhos quando da sua disseminao pelo Brasil e pelo mundo. Como exemplos desses costumes podemos citar: lavar os ps aps chegar de um enterro, vestir mortalha em um defunto, colocar pedras em tmulos, entre outros.

    bem verdade que com o passar do tempo, muitos descendentes dos cristos novos foram perdendo os seus hbitos. Alguns deles, como o caso dos marranos, tm costumes puramente judaicos, segue-os, mas no sabem por que realizam determinados rituais. Existe um lado inconsciente no cotidiano dessas pessoas. s vezes, descobre-se que descendente por um acaso. Geralmente quando as novas geraes questionam o porqu de determinadas prticas ou do esquivar-se de outras tantas, como no comer o sangue dos animais, por exemplo. As matriarcas ou os patriarcas das famlias dizem que no devem fazer uma ou outra coisa porque faz mal. No h respostas concretas e esclarecedoras. Isso no acontece de forma proposital. Muitas vezes, a pessoa interrogada realmente desconhece as origens, ou melhor, suas prprias origens. Alguns marranos descobrem suas origens religiosas e continuam a ser cristos catlicos ou protestantes. Existem ainda outros que sentem a necessidade do retorno, que a volta s origens judaicas. E h outros que se contentam em se descobrirem como marranos e viverem uma relao direta com Deus, sem a interveno do reconhecimento do Rabinato Judaico de Israel. O mtodo anlise de discurso focado no vis francs foi a nossa escolha para a realizao da nossa pesquisa. Para fidelizar os nossos argumentos iremos nos basear em autores como Michel Foucault, Michel Pcheux e Eni Orlandi entre outros.

    Acreditamos que se trata de um projeto vivel, pois almejamos fazer um trabalho que divulgue aspectos pouco trabalhados do que realmente ser marrano. E, esperamos contribuir, atravs de nossas pesquisas, embora de forma modesta, para a elucidao desse assunto que envolve contextos religiosos, antropolgicos, cognitivos e sociais. Segundo Fernandes (2005), o discurso no se restringe fala, mas ideologia carregada na linguagem, esta se constitui numa ferramenta para se

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    exteriorizar o pensamento e a ideologia do interlocutor. Este fala de sua posio, de seu lugar de poder no contexto social em que est inserido. Dessa forma, pretendemos identificar, atravs dos discursos dos personagens, no o que eles dizem, mas como eles dizem, em que posio dizem e qual a ideologia por trs de seus discursos. Assim, por meio do texto, que a materializao do discurso, vamos investigar a formao identitria dos marranos por meio dos enunciados dos personagens do referido corpus. A Estrela Oculta do Serto um documentrio onde o personagem principal, o mdico Luciano Oliveira, se descobre como descendente de judeu e vai busca do retorno s origens judaicas. O mesmo tem a durao de uma hora e trinta minutos. H uma diviso no documentrio que facilitar a nossa pesquisa. Existem mudanas de cenas que so ilustradas pelo mapa do Brasil onde nos mostrado o lugar para onde vai a equipe que o produz. Por meio dessa diviso so apresentados os novos personagens e os lugares onde eles residem. Sero essas pessoas que nos daro a possibilidade de explorar vrios discursos, tendo em vista que no documentrio aparecem: a) judeus ortodoxos, b) marranos que insistem em serem reconhecidos como judeus, c) marranos que no veem a necessidade desse reconhecimento, at estudiosos de grande peso para a nossa pesquisa, como Anita Novinsky, autoridade mundial em inquisio, que tambm participa do documentrio. Todos os procedimentos acima elencados, fundamentados nos autores citados e em outros mais se constituiro em nossa metodologia para o desenvolvimento da nossa pesquisa para que todos os aspectos comentados possam chegar a uma efetiva explanao do nosso objeto de estudo.

    2.2 Elementos constitutivos do gnero documentrio

    Como j afirmamos anteriormente, o nosso objeto de pesquisa o documentrio A Estrela Oculta do Serto, em virtude disso, passaremos agora a discorrer sobre o gnero documentrio. Veremos como o mesmo pode ser identificado, como se deu o seu surgimento, suas peculiaridades se comparado aos filmes de fico, por exemplo, bem como a sua definio atravs de vrios autores

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    como Ramos, (2008), Puccini (2009) e Nichols (2005). Por meio desses autores e outros mais, ser possvel vermos a grande dimenso que envolve este assunto.

    Para iniciar nossas consideraes a respeito de documentrio, vejamos o que nos diz Ramos a respeito da sua definio. As fronteiras do documentrio compem um horizonte de difcil definio (RAMOS, 2008, p. 21). Nichols endossa a ideia dessa dificuldade ao afirmar:

    Documentrio o que poderamos chamar de conceito vago. [...] existem vrias distines entre um documentrio e outro, embora, apesar delas, continuemos a pensar em todo conjunto de filmes como documentrios. Os documentrios no adotam um conjunto fixo de questes, no apresentam apenas um conjunto de formas ou estilos. Nem todos os documentrios exibem um conjunto nico de caractersticas comuns. A prtica do documentrio uma arena onde as coisas mudam. [...] A impreciso de definio resulta, em parte, de que, em nenhum momento, uma definio abarca todos filmes que poderamos considerar documentrios (NICHOLS, 2005, p. 48).

    Podemos perceber de antemo que definir documentrio no uma tarefa fcil. Mas, observemos o que alguns autores concebem como documentrio. Ramos nos esclarece a relevncia de se ter um nome, neste caso, o termo documentrio para que possa ser possvel a definio desse gnero. Ele diz:

    A principal vantagem do nome termos um conceito carregado de contedo histrico, movimentos estticos, autores, forma narrativa, transformaes radicais, mas em torno de um eixo comum. Dentro desse eixo comum, podemos afirmar que documentrio uma narrativa basicamente composta por imagens-cmera, acompanhada muitas vezes de imagens de animao, carregadas de rudos, msica e fala (mas no incio da histria, mudas) para as quais olhamos (ns, espectadores) em busca de asseres sobre o mundo que nos exterior, seja esse mundo coisa ou pessoa (RAMOS, 2008, p. 22).

    Em meio as nossas pesquisas, pudemos ver que um dos elementos que compem o gnero documentrio abordagem histrica. No apenas Ramos evoca essa caracterstica, mas tambm Puccini (2009) o faz quando discorre sobre as seis

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    questes que o documentrio deve responder no processo de sua produo que so:

    O qu? diz respeito ao assunto do documentrio, [...] Quem? especifica os personagens [...] Quando? trata do tempo histrico do evento abordado. Onde? especifica locaes de filmagem e/ou espao geogrfico no qual transcorrer o evento abordado. Como? especifica a maneira como o assunto ser tratado, a ordenao das sequncias, sua estrutura discursiva, enfim, suas estratgias de abordagem. E por qu? trata da justificativa para a realizao do documentrio (PUCCINI, 2009, p. 37).

    Para Puccini, essas questes fazem parte do argumento de um documentrio. Na sua viso, o argumento nada mais do que uma sinopse muito bem elaborada daquilo que se pretende fazer em um documentrio aps responder as questes acima. Para o autor, essas questes passam pelo crivo de uma pesquisa bem elaborada e assim lemos sobre a importncia da pesquisa para uma produo de qualidade.

    Mapear e fazer um cuidadoso estudo das locaes pode ser til para prevenir possveis imprevistos ou problemas tcnicos relacionados iluminao e captao de som, alm de fazer com que o documentarista se familiarize com o universo abordado. Em relao fotografia, conveniente estudar a iluminao dos locais de filmagem, a incidncia da luz natural e as fontes de eletricidade, caso haja necessidade de luz artificial. As condies de som ambiente tambm podem criar empecilhos para a captao do som de entrevistas se o local estiver prximo de fontes de rudo, como fabricas e aeroportos, ou for barulhento em si mesmo. Visitas antecipadas s locaes de filmagem servem tambm para definir os equipamentos necessrios para cada locao, o tamanho mais adequado da equipe tcnica em cada situao, preveno de possveis dificuldades de acesso obstculos naturais, resistncia de comunidades locais, risco integridade fsica da equipe etc. Uma maior familiaridade com os cenrios de filmagem auxilia tambm na elaborao dos enquadramentos e no trabalho da cmera, possibilitando uma prvia roteirizao de filmagem, procedimento que ajuda a dinamizar o trabalho da equipe em locao (PUCCINI, 2009, p. 35).

    Percebemos de forma muito ntida que se propor a fazer um documentrio muito mais do que ter uma ideia na cabea e uma cmera na mo como afirmou Glauber Rocha. Requer muito trabalho, dedicao e pesquisa. No um tipo de

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    produo que algum sai por a filmando sem nenhum destino ou delimitao do seu argumento.

    Musburger (2008) tambm faz asseres a respeito da importncia da pesquisa e de outros aspectos que compem um documentrio. Ele diz:

    A pesquisa vem em primeiro lugar. Voc deve investigar de forma completa o assunto. Deve conhecer os dois lados da questo antes de tomar decises sobre quais entrevistas e quais cenas sero importantes para provar um ponto sobre o assunto. [...] Voc deve fazer estudos de campo em possveis locaes para determinar as necessidades [...] necessrio obter as autorizaes de todos os proprietrios de locaes (MUSBURGER, 2008, p. 129-130).

    Voltando um pouco para o mbito de definio, Nichols (2005) estabelece uma distino entre dois tipos de documentrio, os de fico e os de no-fico. Ele afirma que:

    Todo filme um documentrio. Mesmo a mais extravagante das fices evidencia a cultura que a produziu e reproduz a aparncia das pessoas que fazem parte dela. [...] Os documentrios de satisfao de desejos so o que normalmente chamamos de fico. [...] Tornam-se concretos visveis e audveis os frutos da imaginao. [...] Os documentrios de representao social chamamos de no-fico. Tornam visvel e audvel, de maneira distinta, a matria de que feita a realidade social de acordo com a seleo e a organizao realizada pelo cineasta. [...] Os documentrios de representao social proporcionam novas cises de um mundo comum, para que as exploremos e compreendamos (NICHOLS, 2005, p. 26-27).

    notrio, por meio do excerto acima, que o documentrio evoca a questo social. Tanto Nichols quanto Musburger (2008), falam sobre esse aspecto. Ramos tambm comenta essa caracterstica do social ao afirmar que o documentrio estabelece asseres sobre o mundo histrico (RAMOS, 2008, p. 22).

    Quanto ao objetivo do documentrio, Musburger faz a seguinte afirmao: Um documentrio deve ser produzido para fazer alguma diferena, ganhar uma discusso ou resolver uma questo sobre um assunto socialmente importante

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    (MUSBURGER, 2008, p. 122). Ainda de acordo esse autor, os primeiros documentrios surgiram por acidente, onde

    [...] Fotografias de guerras ocorridas na metade do sculo XIX na Europa e da Guerra Civil dos Estados Unidos se tornaram comentrios sobre o preo da guerra em termos de sofrimento e morte. De forma intencional, os fotgrafos criaram um documentrio emocional antiguerra (MUSBURGER, 2008, p. 122).

    Nichols ainda diz que Ningum tentou inventar o documentrio como tal (NICHOLS, 2005, p. 116).

    Segundo Musburger, o primeiro filme considerado documentrio foi Nanook, o esquim da autoria de Robert Flaherty. Esse documentrio mostrava o homem no meio ambiente e contra este. Havia um questionamento de um assunto socialmente importante. Entretanto, Nichols vem questionar a credibilidade desse documentrio em virtude da sua no retratao da vida dos nativos filmados por Flaherty, pois, mediante as asseres de Dancyger (2007) [...] o realismo a base do documentrio (DANCYGER, 2007, p. 353). E Nichols ainda refora essa afirmao defendendo que o documentrio tem o seu brilho na captura da vida como ela por meio de imagens. Ora, se o realismo o fundamento do documentrio, como o documentarista vai interferir na representao de uma realidade criando meios para que os seus atores sociais faam de conta que esto agindo de uma ou de outra maneira. Assim, no podemos agir de forma ingnua e, como espectadores, dar total credibilidade s imagens que chegam at ns como supostas representaes da vida como ela . Supomos que sons e imagens do documentrio tenham a autenticidade de uma prova, mas temos de desconfiar dessa suposio (NICHOLS, 2005, p. 67). Nichols assim trata a interveno de Flaherty sobre seu documentrio:

    A prtica do documentrio permite que a imagem gere uma impresso adequada, no uma garantia de autenticidade total em todos os casos. Assim, como a fotografia, o documentrio pode tambm pode ser modificado. O pai do documentrio, Robert Flaherty, por exemplo, criou a impresso de que algumas cenas se passavam dentro do iglu de Nanook, quando, de fato, elas foram gravadas ao ar livre, com um meio iglu maior do que o normal como pano de fundo. Isso deu a Flaherty luz suficiente para filmar, mas

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    exigiu que seus personagens atuassem como se estivessem no interior de um iglu de verdade quando no estavam (NICHOLS, 2005, p.120).

    A esse tipo de interveno nas gravaes de um documentrio, Puccini chama de eventos encenados que podem ser encontrados tanto em filmes de fico como nos de no-fico. Para Ramos, no h como desvincular documentrio de encenao. Segundo o autor:

    A encenao um procedimento antigo e corriqueiro em tomadas de filmes documentrios [...] podemos afirmar que o documentrio [...] lida sem m conscincia com a encenao [...] Querer, portanto, estabelecer contradio entre enunciao e narrativa documentria desconhecer a histria do documentrio (RAMOS, 2008, p. 40-41).

    Assim, entendemos que o documentrio no um retrato fiel da realidade, mas uma representao dela, pois, conforme Nichols, Geralmente, entendemos e reconhecemos que um documentrio um tratamento criativo da realidade, no uma transcrio fiel dela (NICHOLS, 2005, p. 68). E diz-nos tambm:

    Essa sensao de realismo fotogrfico, de revelao do que a vida tem a oferecer quando filmada com simplicidade, no de fato, uma verdade, um estilo. um efeito obtido pelo emprego de meios especficos, mas despretensiosos; definidos, mas discretos. [...] o termo realismo tem relevncia para o documentrio (NICHOLS, 2005, p. 128).

    No mbito do texto caracterstico dos documentrios, podemos nos aproximar mais um pouco da compreenso desse gnero. Segundo Nichols, lemos:

    [...] Para pertencer ao gnero, um filme tem de exibir caractersticas comuns aos filmes j classificados como documentrios [...] H normas e convenes que entram em ao, [...] para ajudar a distingui-los: o uso do comentrio com voz de Deus4, as entrevistas,

    4De acordo com Puccini (2009), voz over o som da voz que no nasce da situao de filmagem, no est ligado imagem que acompanha, mas sobreposto imagem durante a montagem do

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    a gravao de som direto, os cortes para introduzir imagens que ilustrem ou compliquem a situao mostrada numa cena e o uso de atores sociais, ou de pessoas em suas atividades ou papis cotidianos, como personagens principais do filme. [...] Outra conveno a predominncia de uma lgica informativa, que organiza o filme no que diz respeito s representaes que ele faz do mundo histrico. Uma forma tpica de organizao a soluo de problemas [...] A lgica que organiza um documentrio sustenta um argumento, uma afirmao ou uma alegao fundamental sobre o mundo histrico, o que d ao gnero sua particularidade [...] as situaes esto relacionadas no tempo e no espao em virtude no da montagem, mas de suas ligaes reais e histricas (NICHOLS, 2005, p. 54-56).

    Ao esboarmos sobre essa questo do texto no documentrio, importante que falemos a respeito de dois tipos de produes, aquelas que tm seu roteiro na sua pr-produo e aquelas que o roteiro feito somente na ps-produo. Talvez, em um primeiro impacto, sejamos levados a pensar no quanto o documentrio pode ser livre na sua construo. Mas a questo aqui outra. No podemos conceber que pelo fato de um roteiro poder ser escrito aps as pesquisas, os deslocamentos e filmagens tudo seja mais fcil de ser concludo. De acordo com Rosenthal apud Puccini o autor comenta sobre a larga aceitao de se trabalhar com documentrio em virtude dessa liberdade de escolha quanto ao seu roteiro, por exemplo, assim ele diz:

    Suspeito que existe uma outra razo para a sua popularidade, esse documentrio parece exigir menos trabalho do que formas antigas do gnero. Aparentemente, voc no precisa fazer nenhuma pesquisa. Voc no precisa escrever aqueles roteiros chatos e narraes tediosas. Voc no precisa se preocupar com nenhum pr-planejamento; voc apena sai e filma (PUCCINI, 2009, p. 15).

    Entretanto, Puccini rebate essa colocao de Rosenthal afirmando:

    Esse equvoco na concepo do processo de construo do filme documentrio, sustentado pela falsa ideia de que o gnero exige menos preparao ou menos da interveno criativa do cineasta, vem sendo constantemente refutado por documentaristas e tericos verdadeiramente envolvidos com a prtica (PUCCINI, 2009, p. 15).

    filme. Normalmente a voz over se ocupa da narrao do documentrio, conhecida tambm por voz de Deus, mas pode tambm ter origem em uma entrevista ou depoimento.

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    Logo entendemos que no o fato de se ter uma liberdade de escolha de quando ser feito o roteiro que desprestigia o valor de um documentrio, muito pelo contrrio, h quem defenda que quem escolhe esse caminho, fazer o roteiro em sua ps-produo, ter muito mais trabalho por precisar assistir acuradamente a todas as filmagens para averiguar quais so as melhores cenas para montar o documentrio. A transcrio de um trecho de Puccini til para ilustrar esse problema na montagem de um documentrio:

    Em virtude de uma maior abertura para o registro de eventos do mundo, que escapam do controle da produo do filme no momento da filmagem e que, portanto, no podem ser roteirizados com antecedncia, a etapa de montagem no documentrio tem uma maior autonomia criativa se comparada montagem do filme de fico. [...] No documentrio, o trabalho de montagem muitas vezes se inicia sem nenhum roteiro predefinido, o diretor tem apenas uma hiptese inicial, exposta em sua proposta de filmagem, que ocasionalmente vem a ser subvertida durante o processo de filmagem [...] Alm da falta de um roteiro que traga o esboo de uma estrutura para o filme, o montador de documentrios obrigado a trabalhar com uma grande quantidade de material filmado, o que dificulta enormemente seu processo de seleo (PUCCINI, 2009, p. 94).

    Musburger destaca ainda trs tipos de documentrios:

    Dramtico: Enfatiza a realidade das pessoas ou a ao do assunto. Quanto mais o microfone e a cmera mostram o que est acontecendo sem narrao, maior o impacto dramtico. [...] Biogrfico: Conta com uma pessoa falando sobre sua vida, ou amigos prximos, parentes e especialistas discutindo a vida dessa pessoa. [...] Compilao: Pode ser uma combinao do estilo dramtico e biogrfico, porm o mais importante que se trata de uma compilao de todo o material possvel para ilustrar a questo em debate, por meio de pontos altos e baixos da vida de uma personalidade ou de um assunto social (MUSBURGER, 2008, p. 125).

    Vemos atravs dessa citao que a abordagem do documentrio est muito relacionada representao da realidade e das pessoas que a compem. Neste aspecto, precisamos salientar a importncia da tica. No podemos pensar que os

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    documentrios trabalham com a verdade. A questo da verdade ou da realidade perpassam pela representao de seu produtor, embora que o documentarista o desenvolva sobre temas reais ou imaginrios, o seu fundamento est mais para a representao do que para a retratao de algo que determinado grupo concebe como real. Assim Ramos nos esclarece:

    Um documentrio pode certamente mostrar algo que no real e continuar a ser documentrio. No difcil imaginarmos um documentrio sobre mulas-sem-cabea. H dezenas de documentrios sobre seres de outros planetas, alguns defendendo sua existncia, No importa se, efetivamente, existem, dentro do que definimos como realidade, mulas-sem-cabea, vnis ou experincias de transferncia de corpo com extraterrestres. Um documentrio que enuncia categoricamente a existncia de mulas-sem-cabea pode ser um documentrio pouco tico, manipulador, supersticioso, no objetivo, etc., mas no deixa de ser um documentrio por isso. Se vincularmos a definio de documentrio qualidade de verdade da assero que estabelece, estaremos reduzidos seguinte definio de documentrio: narrativas atravs de imagens-cmera sonoras que estabelece asseres sobre o mundo com as quais concordo. Trata-se certamente de uma definio frgil que oscila dentro da singularidade da crena de cada um (RAMOS, 2008, p. 30).

    Ento vemos nitidamente que h um relativismo do que seria verdade quando da abordagem de determinado tema em um documentrio em virtude da interpretao do produtor e da forma da representao desse assunto. Assim, para melhor entender o que vem a ser um documentrio, mais propcio seguirmos o conselho de Ramos e deixarmos para trs essa vinculao dos conceitos de verdade, objetividade e realidade e o encararmos sob a tica de uma narrativa particular, trabalhando suas caractersticas e sua histria. Embora que exista esse relativismo, vejamos o que Ramos diz a seu respeito e sobre tica:

    Podemos constatar que a verdade possui um leque de validade que oscila, e que esse leque se relaciona ao conjunto de fatos que congregamos para servir de base interpretao. [...] Chamamos de tica um conjunto de valores, coerentes entre si, que fornece a viso de mundo que sustenta a valorizao da interveno do sujeito nesse mundo. O corpo-a-corpo com o mundo atravs de mediao da cmera, conforme se abre para o espectador e por ele determinado sempre foi uma questo premente para o documentrio. A tica compe o horizonte a partir do qual cineasta e

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    espectador debatem-se e estabelecem sua interao, na experincia da imagem-cmera/som conforme constituda no corpo-a-corpo com o mundo, na circunstncia da tomada (RAMOS, 2008, p. 30).

    O documentrio tambm tem uma ligao com o jornalismo. Segundo Ramos: Historicamente o documentrio surge nas beiradas da narrativa ficcional, da propaganda e do jornalismo (RAMOS, 2008, p. 55).

    Ainda nessa abordagem histrica, vejamos como se deu o processo pelo qual passou o documentrio ao longo de algumas dcadas. Para Nichols, houve uma poca em que o que existia era um cinema de atraes, depois, as produes flmicas optaram pelo embasamento em documentao cientfica, mais tarde os documentaristas apostam na argumentao para atrair o pblico e convenc-lo de que sua representao merece credibilidade, para isso, os patrocinadores so acionados para o financiamento das produes e conferem mais um reforo na sua confiabilidade onde so defendidas ideologias e polticas tanto dos seus patrocinadores quanto do prprio documentarista. Afinal, essa peculiaridade de transmitir ou defender uma ideia algo inerente ao filme documentrio, pois segundo Dancyger (2007) o filme documentrio [...] sempre foi associado comunicao de ideias (DANCYGER, 2007, p. 56). Entretanto, o gnero s conseguiu autonomia no final ad dcada de 1920 e inicio da dcada de 1930.

    [...] O reconhecimento do documentrio como forma cinematogrfica distinta passa a ser menos uma questo da origem ou evoluo desses elementos diferentes do que de sua combinao num determinado momento histrico. Esse momento aconteceu na dcada de 1920 e no comeo da de 1930 (NICHOLS, 2005, p. 123).

    Para Nichols, o documentrio surge fundamentado nas seguintes caractersticas: exibio, documentao, experimentao potica, relato narrativo da histria e oratria retrica. Na dcada de 1940 notria a presena do realismo nos documentrios por meio de trs vertentes: realismo fotogrfico, realismo psicolgico e realismo emocional. Nos anos 1950, obras similares a Nonook de Flaherty, tratam da ideia de comunidade numa abordagem de homogeneidade cultural para reforar o carter nacional.

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    Para Musburger, na dcada de 1960, nos Estados Unidos, eram produzidas sries que investigavam a condio humana e analisavam os seres humanos em ao e como eles reagiam em seu ambiente, incluindo a vida profissional e a vida pessoal. J na dcada de 1970, segundo Musburger tivemos

    [...] uma safra mista de documentrio de qualidade. [...] que apresentava uma srie de anlises curtas e subjetivas dos assuntos dos noticirios, [...] Os indivduos apresentados em documentrios comearam a entrar com processos judiciais baseados nas leis de privacidade e de calnia e difamao. [...] mas o efeito disso foi mostrar para os produtores e principalmente para as redes de televiso que se devia tomar cuidado com o contedo a ser exibido, dependendo do assunto e de suas relaes com os principais patrocinadores (MUSBURGER, 2008, p. 124).

    Segundo o autor, esses documentrios sofriam algumas censuras em virtude dos seus patrocinadores. Ele exemplifica isso falando sobre a no exibio de alguns documentrios que falavam sobre automveis com baixo custo e combustveis alternativos, algumas televises se recusaram a exibi-los por atingir alguns patrocinadores, pois estes pagavam por propagandas nas televises.

    Nas dcadas de 1980 e 1990, segundo Musburger, temos vrias mudanas ocorrendo no mundo e consequentemente com as pessoas. Passamos a ser expostos a temas que antes eram vetados em TVs abertas. Tornam-se assunto as feministas, os homossexuais e minorias tnicas e raciais. Entre as dcadas de 1980 e 1990 os governos da sia, da frica e da Amrica do Sul se tornam fonte de novos documentrios. Alm disso, a tecnologia passa a viabilizar a distribuio de documentrios por meio de satlites e cabo, o que desemboca numa maior liberdade de exibio de determinadas produes que antes se viam atreladas s TVs abertas. Assim, documentrios autobiogrficos, de viagem e das mais diversas informaes ou considerados violentos, passam a ter uma possibilidade de serem exibidos.

    Chegamos primeira dcada do sculo XXI, onde os documentrios tinham como principal tema [...] as grandes empresas, seus problemas financeiros e suas relaes com os consumidores e seus empregados. Outros assuntos incluem as

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    guerras do Golfo e a ameaa do terrorismo internacional (MUSBURGER, 2008, p. 124).

    At agora falamos de documentrios produzidos nos Estados Unidos, na sia e na frica. Entretanto, necessrio que observemos algumas caractersticas do documentrio brasileiro. Segundo Ramos, o documentrio no Brasil trabalha com o povo, com a representao do outro fundamentando sua abordagem no carter popular. O autor salienta que essa representao firma-se na divulgao do outro como marginalizado. Por outro vis, graas ao alcance dos meios de comunicao, os marginalizados, representados assim por obras de fico ou no, tm tido a oportunidade de expressarem-se quanto s suas representaes nas produes flmicas.

    Tanto na fico como no documentrio recorrente a figura que eu estou chamando de popular criminalizado. Em uma anlise mais extensa, pode-se mostrar que a expresso da violncia e a criminalizao do popular so, contraditoriamente, a representao da culpa de uma parcela da burguesa pela excluso social. Historicamente, a idealizao do povo, muito presente no cinema brasileiro a partir dos anos 1950, fica numa encruzilhada em funo da progressiva violncia do outro popular. A representao do outro popular caminha ento para o quadro atual, [...] no espao do horror e da culpa. Em um movimento bem recente (rapidamente capitalizado pela grande mdia televisiva), os prprios populares, habitantes das periferias de grandes metrpoles, com acesso progressivo ao universo da produo de imagens e sons, surgem entrevistas, muitas vezes se mostrando revoltados com a imagem do popular criminalizado que predomina em parcela significativa do cinema brasileiro recente. [...] Os dilemas do dilogo com o outro popular surgem como uma das correntes esteticamente mais densas do documentrio brasileiro contemporneo. (RAMOS, 2008, p. 207-208).

    Mas no podemos imaginar que a abordagem do horror e da misria, destacados como caracterizadores do documentrio brasileiro por Ramos, seja um reflexo negativo. Para o autor, a ideia chocar o pblico por meio das imagens a ele expostas.

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    Mas a imagem do popular criminalizado no propriamente uma imagem negativa do popular. Se o povo aparece criminalizado, no aprece como vtima. Pelo contrrio, o popular nesses filmes possui uma imagem que provoca medo e horror. [...] As imagens determinam um tipo de postura espectatorial, entre aquele que enuncia e aquele que frui a imagem, que caracteriza o que estou chamando de representao do popular criminalizado no documentrio brasileiro (RAMOS, 2008, p. 210-211).

    Ainda falando sobre essa representao do outro o autor salienta para a distino no trato de imagens de pessoas tidas como influentes e pessoas populares. Se aqueles so alvejados por tiros e assassinados, as imagens so cautelosamente retratadas, enquanto estes so expostos de maneira totalmente explcita, sem pudores, exibindo os corpos dilacerados, por exemplo.

    De forma breve, Ramos fala sobre o histrico da representao do outro em documentrios brasileiros.

    A representao do outro popular no documentrio brasileiro tem histria. Um de seus marcos, a partir de traos folclricos, encontra-se em obras de Humberto Mauro na srie Brasilianas, produzida pelo Ince (Instituto Nacional do cinema educativo) nos anos 1940/1950. Particularmente em Cantos de trabalho/1955, podemos a ver a ode ao corpo e atividade do trabalhador de origem humilde, lidando com enxada, o pilo, a peneira, o martelo. Nos anos de 1960, a representao do popular explode no cinema nacional, com nfase nos documentrios produzidos por Thomas Farkas (seja nos mdias metragens, dentro da estilstica do cinema verdade reunidos no longa Brasil verdade, seja nos curtas, com veio mais folclrico, de A condio brasileira). Ainda na primeira metade da dcada, a imagem de popular aprece tambm com fora nos documentrios iniciais cinemanovista, em filmes como Maioria absoluta (em que ouvimos, pela primeira vez, a fala popular no cinema brasileiro), Integrao racial (ambos com produo de 1963) ou anterior, em estilo diverso, Arraial do cabo (1959). O filme que reconhecidamente serve de inspirao para a esttica cinemanovista o documentrio Aruanda, vindo da longnqua Paraba, ainda narrando na estilista documentria clssica, mas possuindo pioneiramente a imagem e a fotografia do popular que, em 1960, enche os olhos dos jovens diretores. Na segunda metade dos anos de 1960 e, depois, na dcada de 1970, a representao do povo afirmao como veio central do cinema e do documentrio brasileiro, tornando-se uma de suas temticas mais produtivas. A abordagem do popular como camada oprimida, explorada e sem direitos, e a valorizao da sua cultura como campo para afirmao social atravessam tambm os anos de 1980. A representao do outro popular, trazendo o horizonte da luta poltica em primeiro plano, tem sua obra mxima em Cabra marcado para

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    morrer, em 1984, de Eduardo Coutinho, espcie de coroamento de uma poca (RAMOS, 208, p. 215-216).

    Vemos ento a importncia do documentrio por vrios ngulos. Essa relevncia do audiovisual assim vista por FONSECA (1998):

    O audiovisual um meio eficaz na mediao do processo de apropriao do conhecimento, porque comporta em sua composio vrios elementos de linguagem que propiciam uma compreenso em vrios nveis. Assim, podem facilmente desencadear associaes que levam aos sentidos e aos significados. (FONSECA, 1998, p.37).

    Por tudo o que foi exposto, acreditamos que possvel apreendermos a constituio do documentrio, sua compreenso, sua relevncia bem como a sua valiosa contribuio para a desenvoltura do conhecimento pessoal e coletivo por estimular a lembrana, o entendimento e a imaginao.

    2.3 A construo da identidade do marrano

    No captulo anterior falamos sobre identidade. Entretanto, o enfoque foi uma tanto abrangente. Procedamos agora por um afunilamento da identidade no mbito do marranismo. At aqui tivemos um olhar sobre o marrano no seu sentido histrico. Precisamos a partir de agora ver os descendentes dos judeus por um prisma mais individualizado, pessoal. Conhecer seu cotidiano, seus hbitos, suas influncias transmitidas ou as que por eles foram assimiladas, como, quando e atravs de quem essas assimilaes foram transmitidas.

    Quando falamos de identidade anteriormente pudemos compreender que no possvel fechar a identidade num conceito imutvel, pois segundo Hall [...] A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente uma fantasia (HALL, 2006, p. 13). Logo, percebemos que quando se fala em identidade no h como analis-la com uma viso engessada. necessrio levarmos em considerao alguns aspectos que podem mudar ou moldar a identidade de uma pessoa ou de uma comunidade como a cultura onde algum foi inserido, o contexto histrico, as instituies de poder que impem suas regras, a possvel resistncia de um grupo

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    dominado em relao a essas regras, a absoro de traos culturais onde o indivduo interage com outros. Existe todo um conjunto de implicaes para ser avaliado. importante que se saiba que em alguns momentos nos referiremos aos marranos tanto que ocupavam Portugal, Espanha e Brasil. Passemos ento a conhecer os traos identitrios marranos.

    Um aspecto fundamental para se compreender o marranismo o fato de no podermos nos referir a um marranismo apenas, pois, pelas pesquisas podemos reconhecer que existem vrios tipos de marranismos conforme nos esclarece Novinsky afirmando que No houve um marranismo, mas muitos marranismos, que diferiam de uma regio para outra, em uma mesma famlia, entre pais e filhos (NOVINSKY, 1992, p, 19). Ora, se em uma mesma famlia havia distino entre os seus membros considerando as prticas marranas, comeamos a ver que existe de fato uma grande dimenso no trato desse aspecto.

    Existe uma dificuldade para definir o termo marrano. curioso o termo que NOVINSKY (2001) usa ao referir-se aos marranos residentes em Minas Gerais, segundo a autora essa sociedade apresenta um quadro multicolor, assim, entendemos que a tarefa de definir esse povo no das mais simples.

    No podemos, sob nenhuma hiptese, generalizar o fenmeno cristo-novo delimitando-o nas suas condutas e nem sequer em seus pensamentos ou crenas, isto um grande equvoco, pois conforme Novinsky:

    Os cristos-novos ou marranos que desbravaram as selvas, cultivaram a terra, apresaram ndios, guerrearam os jesutas, foram homens totalmente diferentes dos judeus de origem ashkenazi5, assim como dos conversos sefaradins6 que se dispersaram pela Itlia, Holanda, Frana, norte da frica, Levante e outros lugares do mundo. Falar dos cristos-novos generalizando sua atuao e sua mentalidade tem levado a uma concepo errnea do que foi o fenmeno marrano, especificamente o brasileiro. (NOVINSKY, 2001, p. 162).

    Para Novinsky, os marranos brasileiros representam ou tm uma personalidade distinta de todos os outros marranos, pois, Afastados [...] da cultura judaica e altamente assimilados, o estilo de vida aventureiro e violento dos marranos

    5 Os judeus da Frana e Alemanha ficaram conhecidos como "ashkenazim" (palavra hebraica para

    "alemo"). 6 Os judeus da Espanha ficaram conhecidos como "sefaradim" (palavra hebraica para "espanhol").

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    brasileiros diferencia-se fundamentalmente daquele vivido pelos judeus em outras regies (NOVINSKY, 2001, p. 163).

    Outra peculiaridade do marrano brasileiro sua resistncia e luta por liberdade. Isso comprovado nas palavras de Novinsky que afirma:

    A histria dos marranos de Minas Gerais, como de todo o Brasil, revela [...] grande diversidade de comportamento, uma rebeldia frente a Igreja e uma nsia de liberdade que se expressa tanto entre os que judaizavam como entre os laicos (NOVINSKY, 2001, p. 169).

    Para Novinsky, o marranismo, especialmente o brasileiro, no se limita a atitudes externas, ela o aborda com uma viso muito alm do comportamento, encarando-o como uma questo de intelecto que envolve sentimentos de como se deve enfrentar a vida. Assim ela nos diz:

    importante ressaltar que em Minas Gerais como no restante do Brasil, ser acusado de judasmo no se resumia apenas em seguir algumas leis dietticas, observar os jejuns, abster-se do trabalho aos sbados, ou obedecer alguns outros preceitos ordenados pela religio judaica. O marranismo entre os portugueses no Brasil foi em grande parte uma atitude mental, um sentimento, uma postura frente a vida. Se a maioria dos cristos-novos no Brasil conseguiu ultrapassar as barreiras discriminatrias legais impostas pela sua origem e sangue, ou a discriminao social, e se diluir na sociedade ampla, houve uma parte que permaneceu marginal e se manteve fiel a tradies, mesmo que apagadas, herdadas dos seus antepassados. A transmisso da memria de uma histria vivida e sofrida durante sculos, juntamente com a excluso legal e social a que estavam sujeitos, reforou entre os cristos-novos a resistncia na adoo dos preceitos da Igreja, e criou entre eles uma postura crtica frente religio catlica. A crtica religiosa foi a grande contribuio que os cristos-novos no Brasil deram ao pensamento ilustrado do sculo XVIII. (NOVINSKY, 2001, p. 170).

    Corroborando com Novinsky, Silva (2008) tambm entende o fenmeno cristo novo como uma questo mental. Ele assegura que:

    [...] a natureza do fenmeno diz respeito a uma estrutura mental de longa durao, uma cultura que resiste na clandestinidade consubstanciada como uma herana que passa de gerao a gerao atravs do hbito e da tradio oral (SILVA, 2008, p. 88-89).

    Nesse aspecto de transmisso oral dos traos culturais marranos entra em cena uma personagem que teria um significado singular no marranismo, a mulher.

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    Graas a ela as heranas judaicas eram passadas de gerao a gerao. Poliakov nos esclarece sobre a relevncia das mulheres na preservao do marranismo.

    Como se transmitia, de gerao em gerao, a tradio marrana? Evidentemente no podia tratar-se de uma revelao desde a infncia, enquanto as crianas ainda no tivessem aprendido a segurar a lngua. No mais das vezes, era feita na adolescncia, e parece at que o rito do Bar-Mitzv, ou maturidade religiosa, transformou-se numa espcie de mistrio de iniciao. Amide, estava a cargo da me de famlia e, de um modo geral, o criptojudasmo perpetuava-se no raro graas s mulheres, que, no fim de contas, tornar-se-o verdadeiras consagradas, as sacerdotisas dos ltimos marranos do sculo XX (POLIAKOV, 1996, p. 199).

    Segundo Silva (2008) elas se tornariam as pessoas mais perseguidas pela Inquisio. A importncia das mulheres no desenvolvimento do criptojudasmo7 foi tal que os inquisidores identificaram nas mulheres um dos alvos principais de suas perseguies (SILVA, 2008, p. 87).

    Ao que se deve de fato o surgimento dos marranos? Duas tendncias so exploradas: a primeira a opresso dos cristos novos em virtude de conflitos ideolgicos referentes ao sagrado; a segunda a perseguio scio-econmico-profissional e/ou o temor de sua permanncia e ascendncia profissional, o que terminava por provocar inveja e temor nos detentores do poder econmico, por exemplo. Antnio Jos Saraiva em seu ttulo Inquisio e cristos novos (1969) defende que o fenmeno se caracteriza como uma luta de classes. Vejamos de forma resumida as ideias de Saraiva segundo Salomon (2001) apud Silva:

    A tese de Saraiva a de que o propsito ostensivo da Inquisio Portuguesa de extirpar as heresias judaicas era uma fachada; e que o verdadeiro propsito do Santo Ofcio era, mais do que a destruio, a fabricao de judaizantes com vista a enriquecer-se a si mesma com os confiscos acumulados e, mais importante ainda, para justificar a sua prpria existncia e poder; que a casta ou raa dos cristos-novos era na verdade a incipiente burguesia portuguesa, que o tecido feudal da sociedade portuguesa no podia tolerar; que a maior parte ou praticamente todas as vtimas da Inquisio eram catlicos sinceros, que com freqncia tinham pouca ou mesmo nenhuma ascendncia judaica (SILVA, 2008, p. 81).

    7 Trata-se do ensinamento do judasmo aos cristos novos por meio do ocultismo.

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    Desde quando passou a existir os judeus no oficiais? Segundo Rowland (2010), assim surgem alguns judeus convertidos ao catolicismo de forma voluntria ou no.

    Oficialmente, j no havia judeus na Espanha ou Portugal, ou nos respectivos imprios, desde finais do sculo XV, quando apenas foram autorizados a permanecer os que tivessem se convertido voluntariamente ou no ao catolicismo, bem como os seus descendentes catlicos. Visto serem todos nominalmente catlicos, estavam sob a jurisdio da Inquisio, sujeitos a procedimento penal se fossem acusados de quaisquer atos ou palavras que pudessem levantar suspeitas quanto sinceridade de sua f catlica (ROWLAND, 2010, p. 172).

    At a dcada de 1960 ainda no se sabia da existncia dos marranos no Brasil. Vejamos o que nos diz Novinsky apud Silva:

    No que diz respeito a isto, Anita Novinsky, em declaraes feitas ao The Jerusalem Post e publicadas em 31 de Maio de 2006, esclareceu que at a dcada de 1960 ningum ainda conhecia marranos no Brasil. No se conhecia a sua existncia. Ela s descobriu a existncia de marranos no Brasil quando atravs de uma carta um padre do interior do Rio Grande do Norte, auto intitulado judeu da dispora, a convidou para visitar sua parquia, que ele reivindicava ser inteiramente judia (SILVA, 2008, p. 7).

    Um olhar que no podemos deixar de observar a possibilidade de mudana na personalidade mediante as mudanas geogrficas, Ramagem apud Silva relata um trecho de uma entrevista dizendo:

    A trajetria de vida do Dr. Madeira conforme descrita pela autora a seguinte: Oriundo da regio do Serid, ingressou na carreira militar em Recife, Pernambuco. De l, foi transferido para So Paulo, onde tornou-se luterano. De volta a Recife, se casa e ingressa em um Seminrio Teolgico protestante. Ordenado pastor, foi enviado para o Rio de Janeiro onde, atravs da orientao do Rabino Henrique Lemle, de orientao conservadora, converteu-se ao judasmo. Depois disto retornou a Natal, onde morara, com o intuito de trabalhar pelo retorno dos marranos, especialmente os oriundos da regio do Serid. As alternaes acompanharam seus deslocamentos pelo Brasil. (SILVA, 2008, p. 13).

    A heterogeneidade do comportamento dos marranos pode ser vista atravs de Silva (2009). Ele nos alerta que no podemos conceber os marranos como sendo

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    um grupo de comportamentos idnticos. A cultura onde estavam inseridos os transformou atingindo suas personalidades e pensamentos.

    Os cristos-novos que viveram na Paraba participaram da sua histria como personagens ativos, contribuindo nas mais diversas atividades produtivas. Seu comportamento e sua mentalidade sofreram mudanas sob o efeito das transformaes histricas do perodo. Mas, independentemente do modo como o grupo expressou a sua religiosidade, podemos presumir que em todos os momentos conservou-se a idia de uma identidade especfica no grupo. O que no nos d uma tica de homogeneidade das tradies judaizantes em nosso Nordeste, pois cada espao com suas variantes de perseguies e de costumes remotos as lembranas, por exemplo, do judasmo Ibrico implicaram numa reafirmao cultural resultando em novas identidades por meio de prticas aculturadas em meio ao sincretismo vivido no meio ao qual estavam inseridos (SILVA, 2009).

    Stuart Hall nos mostra que a identidade pode sofrer modificaes em meio a novos ciclos sociais onde os indivduos esto inseridos, o que corrobora com as citaes acima sobre as mudanas na identidade do ser. Segundo Hall:

    [...] as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, esto em declnio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivduo moderno, at aqui visto como um sujeito unificado [...] A identidade somente se torna uma questo quando est em crise, quando algo que se supe como fixo, coerente e estvel deslocado pela experincia da dvida e da incerteza (HALL, 2006, p. 7-9).

    Com a continuidade do afastamento das prticas judaicas, os marranos foram no apenas mudando e moldando suas identidades, mas, sobretudo se miscigenando agregando novas simbologias as suas vidas como tambm influenciando as culturas daqueles com os quais conviviam. Silva nos diz:

    Os marranos ento vivam uma crise quanto a sua identidade, pois acabavam no sendo mais aceitos e nem vistos como cristos e nem como judeus. Suas prticas nas quais acabaram se miscigenando a valores cristos lhe moldaram uma nova identidade carregada de novas interpretaes e representaes. No espao entre o pblico e o privado seus costumes iriam corroborar para influenciar at mesmo os cristos-velhos8 (SILVA, 2009, p.12).

    8 Cristos-velhos catlicos de fato, sem qualquer vestgio de sangue marrano ou cristo-novo at a

    quarta gerao (HOGEMANN, 2006, p. 06).

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    De acordo com Silva (2009), os anussins9 foram, devido a fugas, moldando suas prticas para que conseguissem manter traos de sua personalidade judaica, mas de maneira escondida. Assim, eles iam ressignficando suas prticas.

    Ao estudarmos a influncia dos costumes marranos nas tradies culturais nordestinas vemos que os valores oriundos do judasmo Ibrico j sofreriam transformaes no momento em que passaram a ser praticada de forma clandestina pelos anussins. Sendo assim, as formas judaizantes de viver na Espanha ou em Portugal j seriam modificadas aqui no Nordeste colonial em meio as perseguies Inquisitoriais, promovendo uma readaptao das prticas e consequentemente novas representaes que pudessem permear uma nova identidade para esses indivduos. Todavia, essas novas representaes no seriam uma cpia fiel do judasmo Ibrico, pois em meio a fugas e adaptaes os marranos tiveram que criar seja de modo consciente ou inconsciente valores que pudessem lhe per