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16 2 Capítulo 2 - Fundamentação Teórica 2.1 O Racionalismo Crítico de Popper – Conjecturas e Refutações Em sua obra, dedicada principalmente à teoria do conhecimento e em especial do conhecimento científico, Popper deixa claro a natureza realista, racional e crítica de sua filosofia. Diz-se realista ao admitir o realismo como única hipótese sensata frente às demais correntes filosóficas, embora reconheça que o realismo, como as teorias filosóficas ou metafísicas, não pode ser demonstrado, testado ou sequer refutado. Defende o que denomina de realismo de senso comum ao mesmo tempo em que recusa a teoria de senso comum do conhecimento. Contra a maioria dos filósofos que, segundo ele, parecem ter perdido o contato com a realidade, escreveu: “Em minha opinião o maior escândalo da filosofia é que, enquanto em todo o nosso redor o mundo da natureza perece – e não só o mundo a natureza – os filósofos continuam a falar, às vezes brilhantemente e às vezes não, sobre a questão de saber se este mundo existe”. (Popper, 1999, p. 41) Segundo Popper (2003, p. 145) a “tradição racionalista” foi um dos legados mais importantes dos gregos à civilização ocidental. Dentro desta tradição a ciência é reconhecida e valorizada pelos seus resultados práticos, como pretendem os instrumentalistas, mas também, e principalmente, pelo seu conteúdo informativo, pela capacidade dos cientistas de criar mitos, conjecturas ou teorias, em seu empenho de explicar alguns aspectos desse mesmo mundo. Popper admite que o cientista tenha por finalidade uma descrição verdadeira do mundo ou de alguns dos seus aspectos, bem como uma explicação verdadeira dos fatos observáveis. Entretanto, combate à idéia do conhecimento indubitável, denominado por ele de “essencialismo”, ao assegurar que o cientista nunca pode saber ao certo se as suas descobertas são ou não verdadeiras (Popper, 2003, p. 162).

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2 Capítulo 2 - Fundamentação Teórica

2.1 O Racionalismo Crítico de Popper – Conjecturas e Refutações

Em sua obra, dedicada principalmente à teoria do conhecimento e em

especial do conhecimento científico, Popper deixa claro a natureza realista,

racional e crítica de sua filosofia. Diz-se realista ao admitir o realismo como única

hipótese sensata frente às demais correntes filosóficas, embora reconheça que o

realismo, como as teorias filosóficas ou metafísicas, não pode ser demonstrado,

testado ou sequer refutado. Defende o que denomina de realismo de senso comum

ao mesmo tempo em que recusa a teoria de senso comum do conhecimento.

Contra a maioria dos filósofos que, segundo ele, parecem ter perdido o contato

com a realidade, escreveu:

“Em minha opinião o maior escândalo da filosofia é que, enquanto em todo o nosso redor o mundo da natureza perece – e não só o mundo a natureza – os filósofos continuam a falar, às vezes brilhantemente e às vezes não, sobre a questão de saber se este mundo existe”. (Popper, 1999, p. 41)

Segundo Popper (2003, p. 145) a “tradição racionalista” foi um dos legados

mais importantes dos gregos à civilização ocidental. Dentro desta tradição a

ciência é reconhecida e valorizada pelos seus resultados práticos, como pretendem

os instrumentalistas, mas também, e principalmente, pelo seu conteúdo

informativo, pela capacidade dos cientistas de criar mitos, conjecturas ou teorias,

em seu empenho de explicar alguns aspectos desse mesmo mundo. Popper admite

que o cientista tenha por finalidade uma descrição verdadeira do mundo ou de

alguns dos seus aspectos, bem como uma explicação verdadeira dos fatos

observáveis. Entretanto, combate à idéia do conhecimento indubitável,

denominado por ele de “essencialismo”, ao assegurar que o cientista nunca pode

saber ao certo se as suas descobertas são ou não verdadeiras (Popper, 2003, p.

162).

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De acordo com a visão popperiana, não existe um método lógico capaz de

justificar a descoberta de novas idéias, ou a reconstrução lógica deste processo. O

objetivo de sua epistemologia seria, portanto, a reconstrução racional das provas

posteriores, no sentido de assegurar que as novas idéias eram realmente novas

descobertas ou aceitas como conhecimento relevante.

Na sua metodologia da ciência Popper pretende a formulação dos problemas

filosóficos de forma racional e clara, com o objetivo de promover a argumentação

crítica, na pretensão de evitar a destruição da filosofia racional e do próprio

pensamento racional. Esta perspectiva da ciência, que Popper preferiu chamar de

“racionalismo crítico”, em oposição aos “realistas ingênuos”, que acreditavam na

possibilidade de alcançar a verdade justificada, e aos céticos que negavam a

obtenção do conhecimento verdadeiro ou de seu progresso (Niiniluoto, 1999,

p.13), passa a ser representada pela tradição epistemológica falibilista.

Para Popper o problema fundamental para a epistemologia decorre da

seguinte questão: “Podemos afinal, conhecer algo?”, questão, que é uma

reformulação do problema kantiano: “Que posso eu conhecer?” (Popper, 1985, p.

548). Nos seus trinta e cinco anos de pesquisa filosófica, descarta o ceticismo, o

relativismo que classifica como pessimismo epistemológico, da mesma maneira

que não concorda com o otimismo epistemológico dos positivistas, que postula o

conhecimento seguro, certo, indubitável. Propõe um racionalismo crítico que tem

como objetivo entender como se dá o conhecimento e seu desenvolvimento,

fundamentado pelo princípio da falseabilidade, ao afiançar que estamos em

condições de aprender através de nossos erros e chegar mais perto da verdade pela

superação destes mesmos erros (Popper, 1985, p. 548).

A idéia central do racionalismo crítico de Popper repousa, portanto, na

premissa de que podemos aprender com nossos erros, ponto de partida para o

desenvolvimento de uma teoria do conhecimento e do seu crescimento (Popper,

2003, p.9).

Na filosofia de Popper esta atitude crítica foi descrita como:

“... uma tentativa consciente de procurar que sejam as nossas teorias, as nossas conjecturas, a sofrer em nosso lugar na luta pela sobrevivência do mais apto. Esta atitude dá-nos uma oportunidade de sobreviver à eliminação de uma hipótese inadequada - quando uma atitude mais dogmática a eliminaria, eliminando a nós mesmos”. (Popper, 2003, p.80)

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Para Popper o progresso do conhecimento e, em particular do conhecimento

científico, se dá através de conjecturas, de antecipações, de suposições, e de

soluções experimentais para os nossos problemas que não se justificam pela sua

origem. Segundo ele, estas conjecturas podem ser controladas pela crítica, ou seja,

por tentativas de refutação por meio de experimentos, embora afirme que estas

teorias mesmo que resistam a tais testes, ainda assim, não poderão ser

demonstradas como absolutamente verdadeiras ou justificadas. Por conseguinte,

para Popper, a crítica de nossas conjecturas revela-se importante na medida em

que ao evidenciar nossos erros podemos obter melhor compreensão das

dificuldades do problema a ser resolvido, e propor soluções mais adequadas. Para

Popper, qualquer séria tentativa de solução de um problema, mesmo refutada,

pode levar a um aumento e evolução do nosso conhecimento que nos aproxima da

verdade pela superação dos erros. O método de conjecturas e refutações, ainda

que admita a possibilidade do crescimento do conhecimento, de forma racional,

exclui a possibilidade de reivindicá-lo como certo e seguro. Para ele as teorias que

resistem à crítica, assim como os relatórios dos testes a que foram submetidas,

podem ser descritos como “a ciência” da época.

A epistemologia de Popper não nos permite, pois, justificar uma teoria como

verdadeira, ou, “positivamente justificada”, mas apenas dizer que foi corroborada

por testes críticos, mostrando-se mais progressiva que suas adversárias na medida

em que pode resolver os problemas não resolvidos pelas antecessoras e propor

questões novas, sendo este caráter crítico e progressivo o que constitui a

racionalidade da ciência (Popper, 2003, p.10).

A preocupação de Popper (1985, p.27) na sua epistemologia foi a de

oferecer uma lógica para a produção do conhecimento científico. Nesta

perspectiva apresenta uma análise lógica desse procedimento de crítica, o que vem

a ser uma exposição do método das ciências empíricas. Para tanto propõe as

seguintes questões como relevantes nesta empresa:

“Que são, entretanto, esses métodos das ciências empíricas?”

“O que denominamos de ciências empíricas?”

Para entender o que Popper chamou de “problema da lógica da ciência”, é

imprescindível conhecer suas idéias acerca da testabilidade e da falseabilidade,

enquanto critério de demarcação entre ciência e a pseudo-ciência, e de sua crítica

lógica à teoria da indução de Hume, enquanto método científico.

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Popper discorda do conceito amplamente aceito de as ciências empíricas se

caracterizarem pela aplicação dos métodos indutivos. Chama de “indutiva” uma

inferência feita a partir de enunciados singulares ou particulares formulados sobre

resultados de observações ou experimentos, que conduz à formulação de

enunciados universais, como as hipóteses ou teorias.

Para Popper não temos como justificar o raciocínio indutivo, ou seja, não há

possibilidade de explicar logicamente como, a partir da descrição das observações

e experiências (enunciados singulares ou particulares), podem ser obtidos

enunciados universais, e afirma que o máximo que se pode dizer acerca dos

enunciados universais seria dizer que foram corroborados, e isto por tempo

limitado continuando sempre passíveis de refutação.

Contrário à perspectiva indutivista, apresenta o método dedutivo da prova,

ao argumentar que uma hipótese só admite prova empírica unicamente após a sua

formulação e a dedução das conseqüências que dela decorrem e que deverão ser

submetidas ao teste.

Para Popper (1985, p.27-31) o problema da indução de Hume se resume em

verificar se as inferências indutivas se justificam, e averiguar se enunciados

universais poderiam ser verificados e ditos verdadeiros com base nas experiências.

Ele afirma que o problema da indução reside em crer que a verdade de um

enunciado universal pode se reduzir à verdade dos enunciados singulares e que,

por experiência, sabe-se serem verdadeiros. Sustenta que o princípio da indução é

supérfluo, conduz a incoerências lógicas, e a tentativa de justificar sua validade na

experiência conduz a certa circularidade, dado que a indução propõe justificar-se

de forma indutiva e, portanto, tautológica. Escreve Popper:

“Para justificá-lo teremos de recorrer a inferências indutivas e, para justificar estas, teremos de admitir um princípio indutivo de ordem mais elevada, e assim por diante. Desta forma, a tentativa de alicerçar o princípio da indução na experiência malogra, pois conduz a uma regressão infinita”. (Popper, 1985, p.29)

Portanto, foi exatamente esta incoerência lógica do método indutivo que

leva Popper a considerar seriamente o problema da indução na preocupação de

oferecer um método da ciência logicamente sustentável. Para Popper os

enunciados de observações e os enunciados que registram resultados

experimentais são interpretações dos fatos observados, e, portanto interpretações à

luz das teorias. Nesta acepção, ele diverge da “objetividade” reclamada pelos

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positivistas, quanto à crença de que se pode partir apenas de observações puras, ao

dizer que a teoria é anterior a observação.

Pode-se entender a dificuldade alegada por Popper em obter uma definição

aceitável de “ciência empírica”, ao dizer:

“Algumas dessas dificuldades decorrem do fato de que devem existir muitos sistemas teoréticos cuja estrutura lógica é similar à estrutura lógica do sistema aceito em particular instante da História, como sistema da ciência empírica. Esse fato é descrito, algumas vezes, afirmando-se que há um grande número – presumivelmente infinito – de ‘mundos logicamente possíveis’. Entretanto, o sistema que se denomina ‘ciência empírica’ pretende representar apenas um mundo: o ‘mundo real’, ou o ‘mundo da nossa experiência’”. (Popper, 1985, p.40)

Na intenção de apresentar uma definição mais precisa de ciência empírica

Popper distingue três condições de que devem partilhar um sistema teorético; ser

sintético, na medida em que possa representar um mundo possível (não

contraditório), satisfazer o critério da demarcação, ou seja, deve representar um

mundo de experiência possível (não ser metafísico), e de alguma forma deve ser

diferente de outros sistemas semelhantes, como único representativo de nosso

mundo de experiência. Admite a dificuldade em identificar se um sistema

representa nosso mundo da experiência, contudo reconhece um sistema como

empírico ou científico se ele for passível de comprovação pela experiência.

“Em outras palavras não exigirei que um sistema científico seja suscetível de ser dado como válido, de uma vez por todas, em sentido positivo; exigirei, porém, que sua forma lógica seja tal que se torne possível validá-lo através de recurso a provas empíricas, em sentido negativo: deve ser possível refutar, pela experiência, um sistema

científico empírico”. (Popper, 1985, p.42)

Portanto, a experiência, na epistemologia de Popper, é vista como um

método característico através do qual se distingue uma teoria da outra. Entretanto,

segundo ele, as ciências empíricas não só devem ser caracterizadas pela forma

lógica de seus enunciados, como também pelo seu método peculiar, ou seja, pelo

método dedutivo de colocá-los à prova.

Conforme observado anteriormente, ao admitir como critério de verificação

de um sistema teorético a falseabilidade, Popper não exige que um sistema

científico seja válido no sentido positivo, e argumenta que sua forma lógica deva

ser tal que admita refutação, pela experiência. Por outro lado, observa uma

assimetria entre a verificabilidade e a falseabilidade, decorrente da forma lógica

dos enunciados universais que nunca poderão ser derivados de enunciados

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singulares, podendo apenas ser contestados por enunciados singulares. Como

consequência, através de recursos a inferências exclusivamente dedutivas, e

fundamentado pela lógica tradicional - modus tollens, se A � B ora não B �

logo não A, Popper conclui acerca da falsidade de enunciados universais a partir

da verdade de enunciados singulares, e admite ser a única espécie de inferência

estritamente dedutiva, embora atue, em “direção indutiva”, ou seja, de enunciados

singulares para enunciados universais.

Este método foi chamado por ele de conjecturas e refutações. O método das

conjecturas e refutações tem como ponto de partida uma nova idéia, conjetural e

não justificada, expressa por meio de hipóteses, antecipações ou sistemas teóricos,

que permitem estabelecer conclusões por intermédio de deduções lógicas,

conclusões estas que devem, por sua vez, ser comparadas entre si e com outros

enunciados pertinentes, pretendendo identificar suas possíveis relações lógicas.

Para submeter uma teoria à prova Popper propõe quatro diferentes ações, a saber:

- Provar a coerência interna do sistema, ao verificar as relações lógicas

existentes (equivalência, dedutibilidade, compatibilidade ou

incompatibilidade) para se obter conclusões que possam ser comparadas

entre si e com outros enunciados pertinentes;

- Investigar a forma lógica da teoria para identificar se é de natureza

empírica, científica ou tautológica;

- Comparar com outras teorias no sentido de verificar se representa um

avanço científico com relação às demais;

- Avaliar a teoria submetendo à prova as conclusões que dela se possa

deduzir, por meio de testes experimentais ou de suas aplicações práticas.

Para Popper (1985, p.33-34) o objetivo desta última espécie de prova seria

verificar até que ponto esta teoria responde às exigências práticas, seja por

experimentos puramente científicos ou por aplicações tecnológicas práticas. Neste

caso, a partir da teoria são formuladas “predições”, chamados por ele de

“enunciados singulares” suscetíveis de serem submetidos à prova, para posterior

confrontação dos resultados das aplicações práticas e dos experimentos. Caso tais

conclusões singulares sejam aceitas ou comprovadas, a teoria será

temporariamente aceita ou corroborada, caso contrário, se as conclusões foram

falseadas, a teoria também o será podendo, desta feita, constituir motivos para

rejeitá-la. Isto é o que Popper denominou como o método dedutivo de prova.

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Conclui-se, de forma concisa, que o método de autocorreção, por meio do

qual a ciência procede, seria “o método de conjecturas ousadas e de tentativas

engenhosas e severas para refutá-las” (Popper, 1999, p.84).

2.1.1 O Problema da Demarcação

Quanto ao problema da demarcação, propriamente dito, a preocupação de

Popper foi estabelecer um critério capaz de oferecer distinção entre ciências

empíricas e “pseudo-ciências” empíricas. Neste sentido, procurou fazer distinção

entre enunciados e sistemas que podiam ser propriamente descritos como

pertencentes à ciência, como a Matemática e a Física, e outros descritos como

“pseudo-científicos” ou “metafísicos”.

De Bacon até os positivistas do Círculo de Viena a concepção mais

disseminada até então definia a ciência em função de sua “base observacional” ou

pela aplicação do método indutivo, enquanto as pseudo-ciências e as metafísicas,

eram caracterizadas pelo seu método especulativo, descrito em Bacon como um

procedimento de “antecipações mentais”. Conforme Popper, os positivistas

admitiam como científicos e legítimos os conceitos ou idéias que “derivassem da

experiência”, por exemplo, as sensações, impressões, percepções, lembranças

visuais ou auditivas. Já os positivistas modernos, entendem a ciência não como

sendo um sistema de conceitos, mas sim de “enunciados”, e aceitam como

científicos e legítimos os enunciados elementares da experiência como as

“sentenças protocolares”, “proposições atômicas” ou “sentenças significativas”,

caracterizadas como descrições ou “afigurações da realidade”. Estes enunciados

são sentenças significativas em contraposição às “pseudo-sentenças”, destituídas

de significado. Wittgenstein, por exemplo, afirma que toda a proposição

significativa precisa ser logicamente reduzível a proposições atômicas, e assim, no

afã de extinguir a Metafísica, os positivistas acabam por aniquilar também a

Ciência Natural, uma vez que as leis naturais não podem ser reduzidas a

enunciados elementares de experiência, assim como não é possível justificar

logicamente a validade dos enunciados universais por esses mesmos enunciados

(Popper, 1985, pp. 37-38).

Este ponto de vista foi rejeitado em Popper, ao demonstrar que as modernas

teorias da Física, especialmente a de Einstein, não se caracterizavam como

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enunciados sem sentido ou ilegítimos, não obstante fossem especulativos e por

demais abstratos, muito afastadas de uma “base observacional. Por outro lado, as

pseudo-ciências, como, por exemplo, a Astrologia, enfatizavam em seus

almanaques e manuais, seu apelo às observações e ao senso comum, ainda que, a

Astrologia tenha sido desconsiderada pela ciência moderna mais pelo método

empregado do que pelo pretenso material indutivo (Popper, 2003, p. 344). Popper

mostra, assim, a necessidade de determinar um critério diferente de demarcação e

propõe a refutabilidade ou método da falseabilidade como a linha de demarcação

entre as ciências empíricas e as metafísicas. Um sistema só deverá ser reconhecido

como científico, escreve, caso faça asserções que permitam deduzir conclusões ou

enunciados particulares que possam colidir com as observações, sendo realmente

testado pelo esforço de produzir estas colisões, ou seja, pelas tentativas de refutá-

lo com a submissão desse enunciado aos testes experimentais ou aplicações

práticas. Neste sentido, a testabilidade equivale à refutabilidade, em Popper. Ao

adotá-la, da mesma forma, como critério de demarcação, ele oferece “... uma

perspectiva da ciência que encara a ‘abordagem crítica’ como sua mais importante

característica.” (Popper, 2003, p. 345).

Algumas teorias são, no entanto, mais audaciosas e precisas que outras por

admitirem testes mais rigorosos, aumentando, desta maneira, suas possibilidades

de refutação. A isto Popper denominou de “graus de testabilidade”. Por outro

lado, quando essas teorias audaciosas resistem ao rigor dos testes críticos, são

mais tenazes, sua corroborabilidade é reforçada. Assim é que segundo Popper, ao

maior grau de testabilidade de uma teoria corresponde ao aumento do seu

conteúdo informativo. Popper admite que seu critério de demarcação não pode ser

aplicado de maneira inequívoca, “... não devemos tentar traçar uma linha

demasiado vincada.” (Popper, 2003, p.346), uma vez que existirão teorias bem

testáveis, dificilmente testáveis e não testáveis, considerando estas últimas de

interesse exclusivo da metafísica, ainda que muitas das teorias científicas tenham

sua gênese em mitos, em teorias filosóficas.

Popper admite algumas objeções contra seu critério de demarcação. A

primeira delas seria a noção pouco intuitiva da sua proposta de demarcação por

um critério negativo, como a refutabilidade, quando se espera da Ciência

informações positivas. Ora, para Popper as chamadas leis da natureza, quanto

mais proíbem mais dizem, isto é, a quantidade de informação positiva acerca do

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mundo, veiculada pelo enunciado científico considerando seu caráter lógico, será

maior quanto maior for o conflito com a experiência dos possíveis enunciados

singulares dele deduzidos. Considera também plausível usar contra a

falseabilidade as mesmas objeções feitas por ele sobre a verificabilidade. Mas se

diz tranquilo ao tomar por base a assimetria entre verificabilidade e falseabilidade

decorrente da forma lógica dos enunciados universais, dado que estes últimos

nunca são deriváveis dos enunciados singulares, embora possam ser contestados

por eles. De acordo com explanação anterior, através de inferências dedutivas,

auxiliado pela tradicional lógica da modus tollens, pode-se concluir acerca da

falsidade dos enunciados universais a partir da verdade dos enunciados singulares.

Mesmo admitindo tal assimetria, pode-se ainda objetar sobre a impossibilidade de

todo um sistema teorético ser conclusivamente falseado, uma vez que é possível

evitar a falsificação pela introdução de hipótese auxiliar ad hoc ou pela alteração

de uma definição. Popper admite a procedência da crítica embora afirme que seu

método empírico é caracterizado por excluir as possibilidades de evitar a

falseabilidade, e por expor à falsificação o sistema a ser submetido à prova, de

todas as maneiras possíveis (Popper, 1985, p. 43-44).

Ao evidenciar o que denominou de “estratagemas convencionalistas” ou

“torção convencionalista”, Popper precisava oferecer uma solução para evitar as

tentativas do que mais tarde qualifica como “imunizar” (expressão atribuída a

Hans Albert) qualquer teoria contra a crítica.

Segundo Popper sua idéia das regras metodológicas e da essencialidade de

sua abordagem crítica, foram decisivas para evitar a intenção de imunizar teorias

contra a refutação, ainda que reconheça o valor de uma atitude “certa” dogmática,

no sentido de não permitir a substituição de uma teoria antes que ela ofereça

contribuição à evolução da ciência (Popper, 1999, p.40).

A proposta do critério de demarcação popperiano, pretende ser também a

solução do problema da indução, pois o método da falsificação, admite como

empíricos os enunciados unilateralmente falseáveis, sendo suscetíveis de

comprovação através de tentativas sistemáticas de falseá-los, abolindo a

contradição gerada pela inferência indutiva, uma vez que seu método dedutivo de

teste não pode e nem pretende instituir ou justificar de forma absoluta os

enunciados sob teste.

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2.1.2 A Verdade como Correspondência

Popper ao discutir sobre a verdade recusa a perspectiva cética e

instrumentalista e defende a idéia de verdade como correspondência objetiva com

os fatos, em contraste com a “verdade subjetiva” (ou “epistêmica”), ou de crença

verdadeira.

Segundo ele, a experiência subjetiva que justifica a crença do conhecimento

verdadeiro, ou seja, do conhecimento bem fundamentado e justificado, não

fornece um critério eficaz, capaz de diferenciar quaisquer experiências de crença

da experiência de uma crença bem fundamentada. Para Popper apesar das teorias

subjetivas da verdade buscarem tal critério, todas elas dizem, de maneira

aproximada, que a verdade se fundamenta nas razões que temos para nela

acreditar. Popper considera que esta visão dogmática está presente nas três rivais

da teoria da verdade como correspondência, quando escreve:

“a teoria da coerência, que confunde consistência com verdade; a teoria da evidência, que confunde ‘conhecido como verdadeiro’ com ‘verdadeiro’; e a teoria pragmática ou instrumentalista, que confunde utilidade com verdade”. (Popper, 1999)

De acordo com Popper, a teoria da verdade objetiva, pode fazer asserções

tais como: uma teoria pode ser verdadeira ainda que ninguém acredite nela, e

ainda que não se tenha razão alguma para pensar que seja verdadeira; e uma outra

teoria pode ser falsa, mesmo que existam boas razões para aceitá-la. Estas

afirmações, podem parecer auto-contraditórias, sob o ponto de vista de qualquer

teoria subjetiva da verdade, entretanto, segundo a teoria objetiva, elas não só são

coerentes como verdadeiras. Outra asserção, de compreensão bem mais imediata,

afirma que mesmo que deparemos com uma teoria verdadeira, estaremos, por via

de regra, meramente conjeturando, nos sendo impossível saber se ela é realmente

verdadeira.

Assim como para Xenófanes, relembra Popper, “... que o conhecimento é

conjectura, opinião – doxa, e não episteme” (Popper, 2003, p.46), e assim como o

filósofo grego admite que:

“... nós procuramos a verdade, mas podemos não saber quando é que a encontramos; que não temos nenhum critério de verdade, mas somos, não obstante, guiados pela idéia de verdade como princípio regulador (como Kant ou Pierce poderiam ter dito); e que, apesar de não existirem

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quaisquer critérios gerais pelos quais possamos reconhecer a verdade – exceto, talvez, a verdade tautológica – existem critérios para reconhecer o progresso em direção a verdade”. (Popper, 2003, p.307)

Como dito anteriormente Popper renuncia ao pressuposto de que existam

fontes últimas do nosso conhecimento, ao asseverar que todo o conhecimento é

humano, e como tal, impregnado de erros, preconceitos, sonhos e esperanças,

portanto podemos apenas tentar buscar a verdade, ainda que esteja fora do nosso

alcance. Nesta busca podemos descobrir conhecimentos relevantes, entretanto,

não existe qualquer autoridade dentro de toda a esfera do nosso conhecimento que

não seja passível de crítica. Segundo ele, seria esta a única forma de reter, sem

risco, a idéia de que a verdade está além da autoridade humana (Popper, 2003,

p.307-309).

2.1.3 A Idéia de Progresso

Conforme ressaltamos anteriormente, para Popper o problema fundamental

da teoria do conhecimento consiste em esclarecer e investigar o processo pelo

qual as teorias podem se desenvolver e progredir.

Segundo Popper a ciência, a filosofia, e o pensamento racional têm como

ponto de partida o senso comum, definido por ele como “... os instintos, ou

opiniões de muitas pessoas às vezes adequados ou verdadeiros e às vezes

inadequados ou falsos” (Popper, 1999, p.42). Para ele todo conhecimento consiste

na modificação de conhecimento prévio, e assevera que a cada etapa da evolução

da vida e do desenvolvimento de um organismo, existe algum conhecimento em

forma de disposições e expectativas, denominadas por ele de expectativas inatas.

O pressuposto de que a maior parte de nosso conhecimento é inato leva Popper a

apresentar duas teses fundamentais:

“Todo conhecimento adquirido, todo aprendizado, consiste da modificação (possivelmente da rejeição) de alguma forma de conhecimento, ou disposição, que exista previamente, e em última instância de disposições inatas. Todo crescimento do conhecimento consiste no aprimoramento do conhecimento existente, que é mudado com a esperança de chegar mais perto da verdade”. (Popper, 1999, p.76)

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Deriva destas teses a afirmação de que nosso conhecimento, tanto científico

quanto metafísico tem como origem um ponto de partida inseguro, cujo principal

instrumento para progredir é a crítica (Popper, 1999, pp.42-45).

Ao analisar a relação entre observação e teoria, Popper assevera que a

teoria sempre antecede a observação, mesmo que seja uma teoria ou expectativa

de natureza rudimentar. O papel fundamental das observações e dos testes

experimentais consiste em tentar refutar hipóteses propostas na busca da produção

de teorias melhores. Não partimos de observações, diz Popper, mas sempre de

problemas – ou de problemas práticos ou de uma teoria que caiu em dificuldades

(Popper, 1999, p.235).

Importante esclarecer então como os problemas transcendem nosso

conhecimento inato. Segundo Popper, nossas expectativas inatas quando

desenganadas dão origem ao nosso primeiro problema, e, portanto o crescimento

subsequente de nosso conhecimento se dá através de correções e modificações

destas mesmas expectativas, isto é, do conhecimento prévio. Diante desta

convicção estabelece semelhança entre o crescimento de nosso conhecimento e o

processo da “seleção natural” de Darwin. Analogamente o que se dá na seleção

natural da ciência darwiniana, a seleção de nossas hipóteses nos leva a incorporar

ao nosso conhecimento hipóteses que sobrevivem aos testes, eliminando aquelas

menos aptas a resisti-los. No que se refere ao conhecimento científico em

particular, o processo é bem mais penoso em função da crítica sistemática e

consistente de nossas teorias. Embora Popper compare a evolução da ciência à

seleção natural aponta para uma diferença fundamental ao dizer:

“... enquanto o conhecimento animal e o conhecimento pré-científico crescem principalmente através da eliminação daqueles que sustentam as hipóteses incapazes, a crítica científica faz muitas vezes nossas hipóteses perecerem em nosso lugar, eliminando nossas crenças errôneas antes que essas crenças levem à nossa eliminação”. (Popper, 1999, p. 238)

A evolução do conhecimento pelas teorias mais aptas não implica que

Popper defende uma concepção puramente instrumentalista do conhecimento

quando afirma:

“Se o nosso problema é puramente teórico – o de encontrar uma explicação puramente teórica – então a crítica será regulada pela idéia da verdade, ou de chegar mais perto da verdade, e não pela idéia de ajudar-nos a sobreviver”. (Popper, 1999, p. 241)

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Indispensável se faz, do mesmo modo, explicar como uma ciência objetiva

pode almejar teorias que mais se aproximem da verdade. Embora seja impossível

alcançar a verdade uma vez que toda e qualquer teoria é essencialmente falível,

podemos considerá-la mais progressiva que suas predecessoras, quando

apresentam maior poder explicativo, e resolvem problemas que suas antecessoras

não resolviam, além de propor novos e frutíferos problemas.

Deste modo, para Popper, a ciência se desenvolve numa série de sistemas

dedutivos e progride de teoria a teoria, tendo como finalidade a busca da verdade,

mesmo que não se tenha critérios para reconhecê-la. Popper sugere ainda que “... a

Ciência deveria ser perspectivada como progredindo de problemas para problemas

– problemas de uma complexidade sempre crescente”. (Popper, 2003, p.302)

2.1.4 Conhecimento sem Sujeito Conhecedor – Ontologia dos Três Mundos

De certa maneira, Popper considera nossas disposições inatas para reagir aos

desafios provenientes do meio-ambiente, como carregadas de “teoria”. Vai além

ao ampliar o conceito de teoria; “... não há órgão de sentido em que não se achem

incorporados geneticamente teorias antecipadoras” (Popper, 1999, p.76). Ainda

que admita nossas experiências observacionais como bem sucedidas, pois

sobrevivemos, Popper desaprova a teoria do senso comum, não considerando

nossas observações como “diretas”, “imediatas” ou mesmo fidedignas. Assim,

contrário à epistemologia subjetivista que pressupõe um observador, ou um

sujeito conhecedor, capaz de deter conhecimento subjetivo que simplesmente não

pode ser puro, genuíno ou verdadeiro. O conhecimento no sentido objetivo,

diferentemente, diz respeito apenas ao conteúdo lógico de nossas teorias,

conjecturas ou suposições, sendo representado pelas teorias formuladas, pelas

discussões e pelos problemas em conexão com essas teorias. Deste modo, Popper

utiliza os termos “subjetivo” e “objetivo”, no sentido kantiano. Julga que a análise

do conhecimento subjetivo seria uma atribuição da psicologia, uma vez que, a

palavra “subjetivo” se aplicaria aos nossos sentimentos em diferentes graus. Já o

conhecimento objetivo que independe das nossas convicções, seria objeto de

estudo da epistemologia, havendo, em princípio, a possibilidade de justificá-lo

objetivamente, pela intersubjetividade da sua compreensão e prova.

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Orientado pela idéia da epistemologia objetivista, e pela possibilidade do

conhecimento objetivo Popper introduz sua tese dos três mundos. Para ele apenas

uma teoria formulada numa linguagem descritiva pode ser objetiva, e tornar a

crítica possível, ao separar os aspectos psicológicos do problema (convicção

subjetiva) de seus aspectos lógicos e metodológicos. A possibilidade da existência

do conhecimento objetivo, sem sujeito conhecedor, é justificada por Popper pela

existência do que ela chamou de “terceiro mundo”. Popper em 1960 introduziu a

tese dos três mundos, na qual, o “Mundo 1” representa o mundo material, ou dos

estados materiais, incluindo as coisas físicas. Incorpora desde átomos, elétrons,

células, objetos ordinários de médio porte, como pedras e mesas, até objetos

grandes como estrelas e galáxias, abrangendo ainda processos físicos, como

campos de força e etc. Em resumo, o Mundo 1 compreende as coisas materiais,

tanto de natureza orgânica como inorgânica. O “Mundo 2”, por sua vez, consiste

de estados e processos mentais. É o domínio das experiências subjetivas e

pessoais. O “Mundo 3” compreende os produtos da ação social humana, é o

mundo de “conteúdos objetivos de pensamento”, ou como ele prefere denotar, das

“idéias no sentido objetivo” (Popper, 1999, p.152). Neste sentido, o Mundo 3 é o

mundo dos objetos de pensamento possíveis, representado pelas proposições,

argumentos e teorias. Entretanto, diferentemente de Platão, Popper também

concebe que este mundo é uma criação humana no qual se incluem, além das

teorias e formulação dos problemas que supõem o surgimento de uma linguagem

descritiva e argumentativa, ainda outros artefatos como: ferramentas, obras de arte

e produtos culturais representados por revistas, livros e bibliotecas. Em suma, o

Mundo 3 pode compreender as teorias científicas, as produções poéticas e as obras

de arte que não são meramente coisas físicas e, tampouco, processos de

pensamentos ou mentais.

Popper estabelece uma relação entre os três mundos, pretendendo o

segundo como mediador entre o primeiro e o terceiro. As entidades presentes no

Mundo 3 embora tidas como produzidas no Mundo 2, enquanto produtos humanos

se tornam independentes do Mundo 2, na medida em que são expressos em uma

linguagem descritiva e argumentativa, neste sentido o Mundo 3 popperiano é

amplamente “autônomo”. Entretanto, admite a existência de certa interação entre

eles, na qual o Mundo 3 afeta e influencia os “habitantes” do Mundo 1 via Mundo

2, da mesma forma que é influenciado por eles.

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Vale à pena mencionar a distinção apontada em Popper entre sua

abordagem “objetiva” ou abordagem do “terceiro mundo” e a abordagem que

chama de “subjetiva” ou abordagem do “segundo mundo”, de natureza

behaviorista, psicológica e sociológica. Ao admitir que suas estruturas objetivas

do Mundo 3 sejam causadas por comportamentos humanos, argumenta que a

abordagem subjetiva, pelo fato de ser causal, pode parecer mais científica do que a

abordagem objetiva, sendo esta última procedente de efeitos e não de causas. No

entanto, opõe-se a tal argumento ao alegar que em todas as ciências, a abordagem

comum, parte do efeito na direção das causas. O efeito suscita os problemas que

devem ser explicados, os cientistas, por sua vez, tentam resolvê-los por meio da

construção de uma hipótese explicativa (Popper, 1999, p. 115-116).

Enquanto a epistemologia tradicional tem estudado o conhecimento num

sentido subjetivo, ou seja, no domínio das experiências perceptuais (Mundo 2), na

epistemologia popperiana as experiências subjetivas são irrelevantes para o estudo

do conhecimento científico. Assim, Popper distingue dois diferentes sentidos do

conhecimento, ao escrever:

“(1) conhecimento ou pensamento no sentido subjetivo, constituído de um estado de espírito ou de consciência ou de uma disposição para reagir. (2) conhecimento ou pensamento num sentido objetivo, constituído de problemas, teorias e argumentos como tais. Neste sentido objetivo, o conhecimento é totalmente independente de qualquer alegação de conhecer que alguém faça; é também independente da crença ou disposição de qualquer pessoa par concordar; ou para afirmar, ou para agir. O conhecimento no sentido objetivo é conhecimento sem conhecedor; é conhecimento sem sujeito que conheça”. (Popper, 1999, p. 110-111)

Popper assinala deste modo à relevância decisiva do estudo do terceiro

mundo, autônomo e de conhecimento objetivo, nesta convicção, o estudo dos

produtos para ele é mais importante do que o estudo da produção, e amplia a

compreensão da própria produção e de seus métodos. Neste sentido, o estudo da

epistemologia popperiana privilegia o estudo de problemas científicos, situações

de problema, teorias científicas, como também de discussões científicas, de

argumentos críticos e do papel desempenhado pela evidência destes argumentos,

explicitados através de revistas e livros científicos. Nesta abordagem objetiva, a

ação dos cientistas, mesmo tendo por base uma “crença subjetiva”, busca uma

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linha de pesquisa promissora, com possibilidade de desenvolvimento no terceiro

mundo do conhecimento objetivo.

Uma epistemologia objetiva que estuda o terceiro mundo pode esclarecer

em muito o segundo mundo da consciência subjetiva, especialmente sobre os

processos subjetivos de pensamento do cientista, mas o inverso não ocorre. Neste

entendimento, embora Popper (1999, p.156) considere o terceiro mundo um

produto humano, igualmente, lhe atribui característica sobre-humana pelo fato de

transcender aos seus fabricantes.

2.2 A Ciência Revolucionária de Kuhn

Ao estudar as teorias científicas tendo por referencial suas respectivas

épocas, e não o ponto de vista da ciência atual, Kuhn entende que a concepção

tradicional de ciência não se ajusta ao modo pelo qual a ciência realmente nasce e

se desenvolve no decorrer do tempo. Distingue um primeiro momento, apontado

como “fase pré-paradigmática”, período no qual reina ampla divergência entre os

pesquisadores, ou grupos de pesquisadores, “... regularmente marcado por debates

frequentes e problemas a respeito de métodos, problemas e padrões de solução

legítimos” (Kuhn, 2006, p.73). Ao constatar o predomínio de tais

comportamentos, segundo Kuhn a disciplina não alcança o estatuto de ciência, ou

seja, não se constitui como uma ciência genuína. De acordo com esta acepção uma

disciplina, em última instância, vem a ser ciência quando sua prática é norteada

por um “paradigma”, sendo este o critério de demarcação que Thomas Kuhn

propõe para distinguir as ciências empíricas das demais disciplinas, em

substituição aos critérios propostos pelo indutivismo e falseacionismo.

A transição do conhecimento pré-científico, ou pré-paradigmático para a

fase científica, ou paradigmática, evidencia dois momentos distintos da prática da

comunidade científica, delineados como “ciência normal” e “ciência

extraordinária” em Kuhn (2006).

Nos períodos da ciência normal, a emergência de um paradigma dominante

capaz de constituir uma sólida rede de compromissos e adesões pela comunidade

científica aos conceitos, teorias, metodologias e instrumentos faz com que a

prática da ciência normal, caracterizada pela busca da solução dos problemas

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científicos, seja comparada à resolução de quebra-cabeças (Kuhn, 2006, p. 66).

Nestas ocasiões os cientistas não pretendem produzir nenhuma “novidade

inesperada” tendo como motivação do seu trabalho a ampliação de precisão do

alcance do paradigama e do seu campo de aplicação. Neste sentido admite até

uma espécie de progresso cumulativo.

Tendo em vista esta perspectiva Kuhn estabelece a função dialética da

ciência normal que tanto promove o desenvolvimento contínuo e preciso do

conhecimento científico vigente, quanto dispõe de mecanismos implícitos que

levam ao surgimento da ciência extraordinária ou revolucionária. Neste período, a

eficácia do paradigma vigente passa a ser questionada a ponto de provocar uma

ruptura nas “crenças estabelecidas”. Esta ruptura Kuhn denomina de “revolução

científica”, e se configura justamente através da rejeição do paradigma anterior e

aceitação do novo paradigma num procedimento que mais se assemelha a “um ato

de fé” da comunidade científica.

A evolução histórica do empreendimento científico é marcada por uma

sucessão de períodos ligados à tradição e pontuados por rupturas não-cumulativas.

Deste modo, o progresso da ciência para Kuhn caracteriza-se como um processo

revolucionário, não cumulativo. Essa evolução Kuhn não entende como um

processo teleológicamente orientado que ao seu final encontraria a verdade, ao

escrever:

“O processo de desenvolvimento descrito neste ensaio é um processo de evolução a partir de um início primitivo – processo cujos estágios sucessivos caracterizam-se por uma compreensão sempre mais refinada e detalhada da natureza. Mas nada do que foi dito transforma-o num processo em direção a algo”. (Kuhn, 2006, p. 215)

2.2.1 Paradigma - Relevância e Divergências

O paradigma constitui-se como elemento central da proposta epistemológica

de Kuhn alcançando grande repercussão no meio científico e filosófico, embora o

seu entendimento se apresente cercado de críticas e dúvidas.

Em seu sentido coloquial, o termo paradigma, é compreendido como um

modelo ou padrão capaz de ser reproduzido, como por exemplo os paradigmas

verbais. Neste sentido, divergem do paradigma kuhniano que deve ser entendido

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como um objeto a ser melhor articulado e precisado em condições novas ou

rigorosas. Na prática científica um paradigma raramente é suscetível de

reprodução (Kuhn, 2006, p. 44).

A investigação histórica das práticas das comunidades científicas específicas

nos mostram, de acordo com Kuhn, que os paradigmas possam ser mesmo

anteriores à explicitação de um conjunto de regras que deles possam decorrer,

apresentando quatro razões que o levaram a tal conclusão.

A primeira delas reside na dificuldade encontrada em descobrir as regras que

guiaram tradições específicas da ciência normal. A segunda, da qual a primeira

seria uma decorrência quase imediata, diz respeito à natureza da educação

científica. Para Kuhn os cientistas trabalham a partir de modelos adquiridos na sua

educação e na literatura pertinente à sua área de especialização. Aprendem as leis,

conceitos e teorias contextualizados numa unidade histórica anterior, normalmente

apresentados pela aplicação destes instrumentos intelectuais, e da exposição a

soluções concretas na resolução de problemas. Neste caso quando um cientista

formula hipóteses próprias, elas são percebidas em Kuhn como uma habilidade

demonstrada em realizar pesquisas bem sucedidas, mesmo sem recurso a regras

hipotéticas. A terceira razão se baseia na prevalência das regras toda vez que um

paradigma é evidenciado como inseguro, ou seja, quando os cientistas não

concordam quanto à existência ou não de soluções para os problemas

fundamentais de sua área de estudos. Durante o período pré-paradigmático,

caracterizado pelos debates constantes acerca de métodos, problemas e padrões de

soluções legítimos, conforme Kuhn, a procura por regras adquire importância que

não possui normalmente, seja orientando as pesquisas, ou modelando-as

diretamente ao dizer que:

“enquanto os paradigmas permanecem seguros, eles podem funcionar sem que haja um acordo sobre as razões de seu emprego ou mesmo sem qualquer tentativa de racionalização”. (Kuhn, 2006, p.74)

A quarta razão reside no fato do paradigma kuhniano não poder ser visto como

uma estrutura rígida e monolítica, podendo, ao invés disso, dar origem

simultaneamente às diversas tradições da ciência normal que coincidem apenas

parcialmente. Neste caso a substituição do paradigma pelas regras explícitas

facilita a compreensão da diversidade de campos e especializações científicas.

Thomas Kuhn ilustra esta perspectiva com a mecânica quântica que pode ser um

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paradigma para uma ampla comunidade de físicos, mas em função de suas

especializações profissionais o significado que a mecânica quântica possui para

cada um deles está diretamente relacionado com as aplicações paradigmáticas que

eles dominam. Este fato poderia explicar o motivo pelo qual uma revolução

produzida no interior de uma dessas tradições pode não afetar necessariamente

outras.

O paradigma na epistemologia de Kuhn assume diferentes papéis tanto no

âmbito da comunidade científica quanto no processo evolutivo da ciência. No

contexto da estrutura da comunidade científica um paradigma antes de nortear

um objeto de estudo, orienta um grupo de praticantes da ciência (Kuhn, 2006, p.

226).

No primeiro estágio do desenvolvimento científico, estabelecido em Kuhn

como “pré-paradigmático”, quando ainda não existe um corpo de crenças e

fundamentos comuns para direcionar as observações e experimentações dos

cientistas, os resultados obtidos não são vistos como ciência. Tais observações

históricas permitiram a Kuhn atribuir outra importante função ao paradigma,

equivalente ao papel de uma bússola, orientando a definição de fatos científicos

pertinentes e promovendo a articulação de uma teoria emergente. Outra função do

paradigma, apontada em Kuhn, na ocasião da gênese de uma ciência, seria atrair a

maioria dos indivíduos e grupos daquele campo de estudo induzindo o

desaparecimento das escolas anteriores.

Kuhn descreve um tipo de paradigma capaz de apontar tanto os quebra-

cabeças desafiadores como oferecer as pistas para possíveis soluções, atribuindo

desta forma um novo propósito ao paradigma, diferente do observado no período

pré-paradigmático.

Além disso, Kuhn admite alguns problemas de entendimento, ao fazer

referência aos diferentes sentidos conferidos ao paradigma. No posfácio publicado

em 1969, concernente ao livro “A Estrutura das Revoluções Científicas” (2006,

pp. 219-220), Kuhn apresenta uma perspectiva mais aprimorada acerca do

paradigma, atribuindo a maior parte destas supostas variações a meras

"incongruências estilísticas", reconhecendo apenas dois usos distintos do termo:

um mais global, que chamou de sociológico, definido como uma constelação de

crenças, valores e técnicas compartilhadas pela comunidade científica, e outro de

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caráter mais específico e preciso, designado como “exemplares”. Neste segundo

sentido, o termo paradigma é representado pelos “exemplos que incluem ao

mesmo tempo, lei, teoria, aplicação e instrumentação” e oferece aquelas soluções

concretas de problemas apresentadas nos laboratórios, pelos manuais técnicos,

periódicos, que indicam através de exemplos compartilhados, como os cientistas

devem realizar seu trabalho. Para evitar equívocos no que diz respeito a esta

segunda acepção Kuhn propõe substituir o termo paradigma pelo que chama de

“matriz disciplinar”. Considera o termo mais adequado ao esclarecer que uma

“matriz” pode ser constituída de elementos ordenados de várias espécies, e

“disciplinar” porque se remete a um grupo de praticantes de uma disciplina

específica. Dentre os principais componentes desta matriz disciplinar se destacam

as “generalizações simbólicas”, os “paradigmas metafísicos”, “valores” e os

“exemplares”.

Para Kuhn as generalizações simbólicas são compreendidas como

expressões que podem ser representadas sob uma forma lógica, simbólica ou

textual, e servem de ponto de apoio à aplicação de técnicas especializadas de

manipulação lógica e matemática no trabalho de resolução de enigmas. Já os

paradigmas metafísicos ou “partes metafísicas do paradigma” representam os

compromissos coletivos com crenças em determinados modelos (desde heurísticos

até ontológicos). Tais modelos são capazes de oferecer aos grupos de uma

comunidade científica as analogias ou metáforas preferidas ou possíveis e ajudam

a determinar que tipo de explicações e soluções de quebra-cabeças serão aceitas,

além de definir os quebra-cabeças não-solucionados e suas respectivas

prioridades. Os valores, terceiro grupo de elementos da matriz disciplinar,

costumam ser mais amplamente compartilhados por diferentes comunidades do

que as generalizações simbólicas ou modelos. Por exemplo, para Thomas Kuhn a

adesão dos cientistas aos valores costuma ser mais ampla do que aos outros dois

tipos de elementos da matriz disciplinar, dado que os valores se referem às

predições acuradas, preferencialmente em termos quantitativos, e respeitam

limites pré-estabelecidos. Existem valores que são utilizados para avaliar teorias

completas e devem permitir a formulação de quebra-cabeças e soluções simples,

dotadas de coerência interna e plausível, sendo compatíveis com outras teorias

atuais. Os valores também ajudam a mitigar riscos uma vez que diante de uma

anomalia a escolha individual em aceitar ou abandonar uma teoria pode ser feita

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antes pelos valores partilhados do que pelas regras partilhadas (Kuhn, 2006, p.

222-233).

“Exemplares são problemas concretos com as respectivas soluções” (Kuhn,

1977, p. 358-359 e 368). Constituem o componente central da matriz disciplinar,

ao incluir os “exemplos compartilhados” e as soluções concretas de problemas,

tendo como função estabelecer a ligação entre os fenômenos empíricos e as

generalizações teóricas que capacitam a produção de conhecimento pela

exposição direta ao modo de fazer ciência. Assim, por exemplo, é somente

fazendo óptica à maneira de Newton que se pode conhecer completamente o

paradigma óptico newtoniano, ou praticando eletromagnetismo à maneira de

Maxwell que se pode conhecer completamente o paradigma eletromagnético.

Encontramos em Laudan et al. (1993, p.46) outra perspectiva interessante

para o termo paradigma ao descrevê-lo como “suposições diretivas de um

campo”, podendo ser entendido como um aforismo da definição que se segue:

“Considero paradigmas as realizações científicas universalmente reconhecidas que durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência”. ( Kuhn, 2006, p.13)

Na opinião de Kuhn a explicitação dos elementos constitutivos do

paradigma nunca poderia ser completa. Todavia, na pretensão de fornecer um

modelo didático do que seriam as partes constituintes deste paradigma científico

indica-se como alguns componentes possíveis: uma ontologia que sugira o

elemento essencial que constitui a realidade; princípios teóricos fundamentais que

especifiquem as leis gerais que regem o comportamento dessas coisas; princípios

teóricos auxiliares que estabeleçam sua conexão com os fenômenos e as ligações

com as teorias de domínios conexos, regras metodológicas, padrões e valores que

direcionem a articulação futura do paradigma; exemplos concretos de aplicação

da teoria; etc.

Portanto, mais do que fornecer os fundamentos sobre os quais a comunidade

científica desenvolve suas atividades, um paradigma pode ser entendido como um

“mapa” a ser usado pelos cientistas na exploração da Natureza.

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2.2.2 Ciência Normal e Paradigma

A “ciência normal” é caracterizada como uma atividade que consiste em

solucionar quebra-cabeças, tendo por objetivo a ampliação contínua do alcance e

da precisão do paradigma, e de acordo com Kuhn, trata-se de um empreendimento

altamente cumulativo e extremamente bem sucedido em seu propósito (Kuhn,

2006, p. 77).

Kuhn emprega o termo quebra-cabeças no sentido comum, apresentado

como uma categoria particular de problemas que servem antes para testar a

engenhosidade ou habilidade dos cientistas para sua resolução (Kuhn, 2006, p.

59). A qualidade dos problemas da ciência normal, assim como, a qualidade de

um quebra-cabeça não depende de quão importante seja seu resultado, mas que

apresente sempre uma solução e obedeça a regras pré-estabelecidas. Na ciência

normal estas regras podem ser explicitadas através das leis, conceitos e teorias

científicas, e num patamar mais concreto, pelos instrumentos científicos e seus

métodos de utilização. A existência dessa sólida rede de compromissos ou

adesões-conceituais, teóricas, metodológicos e instrumentais é fonte principal da

metáfora, proposta por Kuhn que relaciona ciência normal à resolução de quebra-

cabeças. Alega que esses compromissos proporcionam ao praticante de uma

especialidade amadurecida, regras que lhe revelam a natureza do mundo e de sua

ciência, permitindo-lhe assim concentrar-se com segurança nos problemas

esotéricos definidos por tais regras e pelos conhecimentos existentes (Kuhn, 2006,

p.66). Estas comunidades que compartilham um mesmo paradigma estão

comprometidas com as mesmas regras e práticas da ciência normal, por

conseguinte, são responsáveis pela geração e pela continuidade de uma tradição

de pesquisa estabelecida.

A devoção dos cientistas à resolução de problemas próprios à ciência

normal, problema estes que normalmente apresentam soluções antecipadas,

segundo Kuhn, têm pouca importância e quando não resolvidos atestam o

fracasso pessoal do cientista. O que anima os cientistas a resolver um problema da

ciência normal é alcançar o antecipado de uma nova maneira, o que exige a

solução de todo o tipo de complexos quebra-cabeças instrumentais, conceituais e

matemáticos (Kuhn, 2006, p. 59). Em última instância, estes problemas desafiam

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os cientistas a testar suas habilidades, solucionando um quebra-cabeça que não

tenha sido resolvido por ninguém ou, pelo menos, não tenha sido resolvido de

maneira tão modelar.

As publicações especializadas, o estabelecimento de sociedades de

especialistas e a proposição da inclusão desta nova ciência nos currículos de

estudo, são indícios que o grupo aceitou um paradigma e, por conseguinte, que um

campo de estudos tornou-se uma ciência. Uma vez adotado pela comunidade

científica, o paradigma deve ser mais bem articulado e precisado em condições

novas ou rigorosas (Kuhn, 2006, p. 44-45). Nos primeiros estágios de

desenvolvimento de um paradigma sua abrangência e precisão são limitadas,

tratando-se apenas de uma promessa de sucesso. Com o passar do tempo,

conforme Kuhn, a ciência normal conduz à especialização do paradigma, sendo

responsável pela sua articulação, ora ampliando o conhecimento de fatos

relevantes apresentados pelo paradigma, ora correlacionando estes fatos com as

predições feitas por ele.

Para Kuhn, a ciência normal tenta submeter à natureza aos limites pré-

estabelecidos pelo paradigma. Observa que os cientistas praticantes da ciência

normal não têm por objetivo identificar novos fenômenos ou inventar novas

teorias, mas argumenta que tanto essa visão restrita de fatos pré-estabelecidos

quanto o comprometimento dos cientistas com o paradigma, são essenciais para o

desenvolvimento da ciência. Neste sentido, a articulação do paradigma pelos

cientistas faz emergir simultaneamente problemas teóricos e experimentais que

são rotulados em três classes – determinação do fato significativo, harmonização

do fato com a teoria e a articulação da teoria. Estas três classes de problemas de

acordo com Kuhn, dão conta das questões atinentes à ciência normal, tanto teórica

quanto empírica (Kuhn, 2006, p.55). Contudo, com o avanço da ciência normal

surge um tipo específico de problema, o problema extraordinário que só aparece

com o amadurecimento da ciência normal.

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2.2.3 Ciência Normal e Ciência Revolucionária

Kuhn reconhece o valor da ciência normal que orienta a resolução de

problemas tendo por referência o paradigma vigente, assegurando ser esta prática

que possibilita a emergência de novas descobertas e teorias, embora não concorde

com a concepção limitada da ciência, como a do positivismo lógico, que lhe

confere um caráter cumulativo e evolutivo. Sob o ponto de vista kuhniano, seria

improvável estabelecer relações entre a dinâmica newtoniana e einsteiniana ou

entre a astronomia de Ptolomeu e a de Copérnico. Contrapondo-se à concepção de

uma ciência puramente evolucionária Kuhn afirma que após uma revolução

científica os paradigmas não são apenas incompatíveis mas também

incomensuráveis. Se a teoria anterior fosse um caso especial da nova teoria esta

passaria a ser válida num universo restrito de observação, o que conduziria os

cientistas a “não pesquisa”, ou seja, quando confrontados com um problema que

exigisse uma precisão não atendida pela prática anterior, seriam coibidos de

fundamentar a própria pesquisa nesta teoria, portanto sem o comprometimento dos

cientistas com um paradigma a ciência normal não existiria.

Na ciência normal os quebra-cabeças nos são apresentados pela Natureza, e

muitos deles, ao longo da exploração de um paradigma se mostram de difícil

solução. O dever do cientista é insistir o quanto possa no emprego das regras e

princípios paradigmáticos fundamentais, sem transgredí-los. Entretanto, no caso

da ciência, esse apego ao paradigma é essencial mas não deve ser levado ao

extremo. Quando o quebra-cabeças sem solução configura-se como uma

“anomalia” ao resistir por longos períodos aos melhores esforços dos melhores

cientistas, e incide sobre áreas vitais da teoria paradigmática, chegou o tempo de

considerar a substituição do próprio paradigma. Nestas situações de “crise”, os

pesquisadores mais ousados e criativos da comunidade científica propõem

alternativas ao paradigma. Perdida a confiança no paradigma vigente, tais

alternativas começam a ser levadas a sério por um número crescente de cientistas.

Instala-se um período de discussões e divergências sobre os fundamentos da

ciência que lembra um pouco o que ocorreu na fase pré-paradigmática. A

diferença básica é que mesmo durante a crise o paradigma até então adotado não é

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abandonado enquanto não surgir um outro que se revele superior a ele em

praticamente todos os aspectos.

Quando um novo paradigma vem a substituir o antigo, ocorre o momento

de mudança de paradigma denominado de “revolução científica”, definida em

Kuhn como: “um deslocamento da rede conceitual através da qual os cientistas

vêem o mundo” (2006, p. 137). Assim, por exemplo, na transição da mecânica

newtoniana para a einsteinianana, os referentes físicos da teoria quântica de modo

algum são idênticos aos da teoria de Newton1. Para Thomas Kuhn:

“revoluções científicas são aqueles episódios de desenvolvimento não cumulativo, nos quais um paradigma antigo é total ou parcialmente, substituído por um novo incompatível com o anterior”. (Kuhn, 2006, p. 125)

A recepção de um novo paradigma exige, pois, com frequência a

redefinição da ciência correspondente. A tradição científica normal que surge de

uma revolução científica é não somente incompatível, como na maior parte dos

casos incomensurável com a anterior.

De acordo com Kuhn, novos paradigmas emergem de antigos, incorporando

boa parte do vocabulário, e dos aparatos que o paradigma tradicional empregava,

entretanto ele argumenta que os proponentes de paradigmas concorrentes nunca

conseguem estabelecer uma conexão completa entre seus pontos de vista

divergentes. Nesta acepção, no novo paradigma os termos, conceitos e

experiências do paradigma anterior não só adotam um novo sentido, como

também estabelecem novas relações entre si, afirmando que a comunicação entre

a linha divisória revolucionária ocorre sempre de maneira parcial.

Na intenção de oferecer uma melhor compreensão da sua visão de

revolução científica, Kuhn estabelece uma relação de paralelismo entre as

revoluções sociais e científicas, não obstante concorde que existam diferenças

essenciais que as separam. Questiona tanto o motivo pelo qual a mudança

paradigmática é vista como uma revolução, quanto a relação metafórica possível

da palavra revolução, na ciência e na política.

1 Ver na Estrutura, 2006, p. 136, as diferenças apontadas por Kuhn com relação ao conceito

de massa da mecânica newtoniana e einsteinianana.

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Uma crise política, conforme Kuhn, pré-requisito para a revolução, se inicia

com a percepção, por parte de um segmento da comunidade, do mau

funcionamento das instituições. Nos períodos de crise da ciência normal, observa

o mesmo sentimento por parte dos cientistas quanto ao mau funcionamento do

paradigma e pondera ser possível empregar o termo revolução tanto nas mudanças

relevantes de paradigma, quanto em outras de menor alcance, pois, para o grupo

por elas afetado, terão sempre um aspecto revolucionário.

Assim, como nos períodos de revolução social, a comunidade costuma

abandonar as instituições em favor de outra, os cientistas rejeitam o paradigma

vigente em favor de um candidato a paradigma, mais promissor. A crise política,

atenua a importância das instituções tanto quanto a crise na ciência atenua a

importância do paradigma. Como consequência, tanto as instituições passam a não

governar a sociedade quanto os paradigamas passam a não ser reconhecidos pelos

cientistas. Kuhn observa, também, um comportamento de alienação e

excentricidade dos indivíduos que vivenciam a crise e à medida que esta se torna

grave, alguns indivíduos se envolvem com um novo projeto. Durante este

processo, os indivíduos se dividem em grupos partidários e os cientistas

estabelecem novas comunidades de especialistas, ocorrendo uma polarização das

discussões. Para Kuhn, neste momento do conflito os argumentos de natureza

política são inócuos, prevalecendo as técnicas de persuasão de massa,

acompanhadas da coerção pela força. Apoiado nesta metáfora e na historiografia

da ciência, Kuhn sustenta que tanto a escolha entre duas instituições políticas em

competição como a escolha entre paradigmas concorrentes, são escolhas entre

modos incompatíveis de vida comunitária, portanto no caso da ciência, não podem

ser resolvidos aplicando-se unicamente a lógica e os experimentos.

Kuhn evidencia a existência das revoluções científicas com exemplos

ilustrativos do desenvolvimento de diferentes teorias ao longo da história nos

diversos campos da ciência, como a física, a química, a astronomia e a

matemática, mas constata que tais exemplos são normalmente considerados,

segundo ele, erroneamente como adições ao conhecimento científico e não como

revoluções.

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As fontes de autoridade, representadas pelos principais manuais científicos, textos

de divulgação e obras filosóficas, são as responsáveis pela percepção equivocada

que leigos e cientistas têm sobre a existência e o significado das revoluções

científicas. Kuhn considera que estes documentos confirmam os aspectos

tradicionais da ciência normal, pois as novas teorias só são divulgadas quando já

estão estabelecidas e amplamente aceitas pela comunidade científica. Segundo

esta percepção todo o conhecimento científico dos profissionais e leigos se baseia

nestes manuais e em seus sub-produtos, sendo estes produzidos e orientados

pedagógicamente pela ciência normal. Ele conclui que os manuais atuais

obliteram a compreensão dos cientistas quanto à história da sua própria disciplina,

e dissimulam ou até suprimem a possibilidade da ocorrência de revoluções

científicas. A interpretação linear e cumulativa da história da ciência afeta os

cientistas, que tendem a examinar suas próprias pesquisas como extensão das

idéias de seus predecessores, distorcendo o processo revolucionário que os

conduziu a reformular perguntas e respostas não observadas pelos defensores do

paradigma predecessor.

2.2.4 Estrutura e Práxis da Comunidade Científica

A estrutura comunitária da ciência apresentada em Kuhn (2006, p.222),

adota a noção de uma comunidade formada pelos praticantes de uma

especialidade científica que foram submetidos a uma iniciação profissional e

educação muito semelhantes, norteados pela mesma literatura técnica e da qual

aprendem as mesmas lições. As fronteiras de cada comunidade científica são bem

demarcadas através de uma literatura-padrão, metodologia própria e instrumentos

comuns que restringem o objeto de estudo científico, assim como definem os

limites de ação da própria comunidade. Como consequência seus membros se

reconhecem mutuamente como únicos responsáveis pela busca de um objetivo

comum, e pelo treinamento de seus sucessores. A comunicação flui com

facilidade no âmbito da comunidade, observando-se geralmente unanimidade nos

julgamentos profissionais.

Entretanto, Kuhn reconhece o aparecimento de divergências à medida que

diferentes comunidades científicas passam a se interessar por assuntos distintos,

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sugerindo a existência destas comunidades em diferentes níveis (Kuhn, 2006, p.

223). No nível mais mais global, encontramos a comunidade dos cientistas ligados

à ciência natural, no nível imediatamente inferior estariam os físicos, químicos

astrônomos, e outras comunidades afins, cujo reconhecimento de pertinência é

assegurado pela alta titulação, participação em sociedades profissionais, e leitura

de periódicos especializados. Os problemas empíricos tendem a emergir em sub-

grupos deste nível imediatamente inferior, como por exemplo o dos químicos

inorgânicos, bioquímicos. Kuhn define estas unidades ou comunidades, como

produtoras e legitimadoras do conhecimento científico, que vêem os paradigmas

como algo a ser compartilhado pelos seus membros.

Usando a metáfora de um jogo de xadrez compara o cientista ao enxadrista

que testa as diversas opções de resolução dos quebra-cabeças indicados pelo

paradigma, testando sua capacidade em resolvê-lo, não pondo em dúvida as regras

do jogo. Neste caso, o que está em jogo é a habilidade e o conhecimento do

cientista.

No intuito de entender o que induziria alguns pesquisadores a formular uma

nova interpretação da natureza, Kuhn recorre aos textos históricos e identifica

particularidades comuns a estes grupos, não observadas nos demais membros da

comunidade científica. Afirma que estes pesquisadores normalmente estão com a

atenção voltada para problemas que causaram as crises, e em sua maioria são

muito jovens ou estão atuando tão recentemente na área em crise, que conseguem

descartar as teorias e regras do velho paradigma vendo a ciência e o mundo de

uma outra maneira.

Para Kuhn um paradigma só começa a ser testado com afinco pelos

especialistas quando da emergência de um novo novo candidato a paradigma. Na

prática científica, os testes não ocorrem através da comparação de um único

paradigma com a natureza, mas sim pela confrontação entre paradigmas rivais

pretendendo conquistar a adesão da comunidade científica. Conforme Kuhn, a

incomensurabilidade dos paradigmas em competição leva os proponentes de

paradigmas divergentes a praticarem seus ofícios em mundos diferentes, onde

grupos diferentes de cientistas podem olhar para um mesmo ponto numa mesma

direção e ver coisas diferentes, encontrando relações diferentes entre elas.

Baseado nesta premissa conclui que a comunicação entre estes grupos só pode

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ocorrer através da conversão dos demais grupos ao paradigma do grupo

dominante. Esta transição entre incomensuráveis, ou entre paradigmas

divergentes, ocorre de maneira abrupta tal qual a mudança de forma visual

(gestalt), não podendo ser visto como um processo evolutivo e gradual, como

constatado na prática da ciência normal.

Embora a resistência seja vista, em Kuhn, como um fenômeno inevitável ao

afirmar que muitos cientistas podem resistir indefinidamente ao novo paradigma,

estes mesmos cientistas também podem ser movidos pelo recurso à técnicas de

persuasão, argumentos e contra-argumentos que não podem ser provados, levando

a conversão gradual de alguns grupos ao novo paradigma. Dentre as várias

possibilidades que podem promover a conversão dos cientistas ao novo

paradigma, Kuhn relaciona as idiossincrasias, crenças, dogmas, a nacionalidade

ou a reputação do cientista inovador e dos seus mestres. Kuhn não está interessado

nas razões que provocam as conversões individuais, mas nas características da

comunidade que se re-configura como um único grupo. Nesta perspectiva sugere

que existem alguns tipos de argumentos bastante convincentes, utilizados pelo

grupo proponente do novo paradigma, sendo o mais eficaz deles a afirmação que

o novo paradigma pode solucionar problemas que levaram o antigo a uma crise.

Caso este argumento seja legitimado através de experiêcias vistas como decisivas,

mostrando que o novo paradigma apresenta uma precisão quantitativa bem

superior ao antigo, este novo paradigma tem uma probabilidade maior de sucesso

sobre o anterior. Embora os argumentos baseados na comparação entre a

habilidade de paradigmas competidores para resolver problemas sejam muito

atraentes, não são, no entanto, suficientes para explicar todas as adesões. Kuhn

defende também outra espécie de argumento, que suscita no indivíduo um

sentimento do que é apropriado ou estético, descrito por ele como uma teoria

“mais clara”, “mais adequada” ou “mais simples” que a anterior.

Como para Kuhn, nem a inadequação do paradigma a determinados

problemas, nem as crises advindas de tais inadequações são razões suficientes

para que os cientistas rejeitem um paradigma, sugere outra razão, decorrente de

um ato de fé dos cientistas no novo paradigma e da sua suposta capacidade para

resolver os problemas futuros. Está fé foi descrita, em Kuhn, como uma atitude

não necessariamente racional, podendo ser explicada exclusivamente por

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considerações estéticas pessoais. Entende que esta fé é necessária para que alguns

adeptos do novo paradigma possam desenvolvê-lo, produzindo argumentos

objetivos que assegurem a adesão crescente de mais profissionais, até que sejam

produzidas experiências, instrumentos, artigos e livros que multipliquem e

disseminem o novo paradigma e sua adoção por toda a comunidade científica.

Portanto, o estudo da estrutura comunitária da ciência ganha posição de

destaque na epistemologia de Kuhn ao escrever que:

“O conhecimento científico, como a linguagem, é intrinsecamente a propriedade de um grupo ou então não é nada. Para entendê-lo, precisamos conhecer as características essenciais dos grupos que o criam e o utilizam”. (Kuhn, 2006, pp.259-260)

2.2.5 O Progresso da Ciência

Kuhn acredita que existe uma ligação estreita entre as noções de ciência e

progresso. A existência de uma prática paradigmática nas assim chamadas “hard

sciences” é que explica a maior visibilidade de sua dimensão progressiva em

relação às ciências sociais.

Kuhn apresenta diversas razões que explicam e justificam a maneira pela

qual os cientistas ligados às ciências naturais promovem o indiscutível progresso

em sua área de conhecimento. Conforme exposição anterior, durante a prática da

ciência normal não se observam escolas concorrentes, prevalecendo o consenso

dos grupos em torno dos fundamentos, objetivos e critérios comuns, pela adoção

de um único paradigma ou de um conjunto de paradigmas correlatos. Trabalham

isolados das exigências práticas da sociedade, tendo como audiência exclusiva a

própria comunidade científica, permitindo que cada cientista concentre esforços

sobre os problemas que julgue ter competência para equacionar e que possa levar

em consideração os instrumentos disponíveis para resolvê-los. Kuhn reconhece,

também, a grande eficácia da natureza do aprendizado das ciências naturais que

potencializa ainda mais o isolamento deste grupo. A educação formal tem como

principal fonte de estudos os manuais técnicos que apresentam de forma precisa e

sistemática o corpo da teoria e das experimentações, incluindo os instrumentos,

que o cientista deve adotar. A conjunção de todos estes aspectos notados por

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Kuhn, nas ciências naturais e pouco observados na história das ciências sociais,

explicaria o progresso superior que as primeiras exibem em relação as segundas.

Kuhn sugere ainda outro aspecto para a questão do progresso científico em

geral, examinando as práticas da ciência extraordinária. Em períodos de crise

quando surge um novo candidato a paradigma, os cientistas relutam em aceitá-lo e

só o fazem quando percebem que o novo candidato é uma promessa de solução de

algum problema reconhecido como extraordinário pela comunidade e que não

possa ser resolvido de nenhuma outra maneira. Tal paradigma deve, ainda,

preservar boa parte da capacidade objetiva de resolver problemas conquistados

pelos paradigmas anteriores, e ainda admitir a solução concreta de problemas

adicionais. De acordo com Kuhn (2006, p. 210-211) as revoluções científicas

terminam com a vitória de um dos dois campos rivais, fato que assegura, pelo

menos a facção vitoriosa, o direito de afirmar que o resultado de uma revolução

deve ser o progresso. Kuhn contraria esta perspectiva àquela que considera que só

há progresso se cumulativo que ocorre no período da ciência normal. Conclui que

a rejeição de um paradigma e a escolha de outro sempre resulta em perdas e

ganhos. Daí a dificuldade de se saber se houve progresso nesta situação particular.

Após a escolha do novo paradigma, a comunidade de especialistas opera no

sentido de assegurar o crescimento contínuo dos dados coletados que conseguem

examinar de maneira cada vez mais precisa e detalhada. Estes cientistas têm um

compromisso dito “virtual” com a ciência, compromisso este que assegura um

aumento do número de problemas resolvidos e a precisão das soluções dos

problemas individuais.

Nesta perspectiva Kuhn compara sua idéia de progresso à teoria darwiniana

da evolução pela seleção natural, e oferece uma interpretação refinada ao

problema do progresso científico. Apresenta uma analogia da evolução das idéias

científicas com a evolução dos organismos, ao escrever:

“O processo que o capítuloonze descreve como a resolução das revoluções corresponde à seleção pelo conflito da maneira mais adequada de praticar a ciência – seleção realizada no interior da comunidade científica. O resultado final de uma sequência de tais seleções revolucionárias, separadas por períodos de pesquisa normal, é o conjunto de instrumentos notavelmente ajustados que chamamos de conhecimento científico moderno. Estágios sucessivos desse processo de desenvolvimento são marcados por um aumento de articulação e especialização do saber científico. Todo esse processo pode ter ocorrido,

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como no caso da evolução biológica, sem o benefício de um objetivo preestabelecido, sem uma verdade científica permanentemente fixada, da qual cada estágio do desenvolvimento científico seria um exemplar mais aprimorado”. (Kuhn, 2006, p.217)

O processo kuhniano de desenvolvimento científico, como vimos, rejeita a

idéia de evolução teleológica, orientada para um objetivo, “evolução-em-direção-

ao-que-queremos-saber”, e propõe substituí-la pela evolução a partir de um início

primitivo, “evolução-a-partir-do-que-sabemos” (Kuhn, 2006, p. 215-216).

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