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Universidade de Braslia
Faculdade de Cincia da Informao
Programa de Ps-Graduao em Cincia da Informao
CARLOS HENRIQUE JUVNCIO
O MUNDANEUM NO BRASIL:
O Servio de Bibliographia e Documentao da Biblioteca Nacional e seu papel na
implementao de uma rede de informaes cientficas
Braslia, DF
2014
CARLOS HENRIQUE JUVNCIO
O MUNDANEUM NO BRASIL:
O Servio de Bibliographia e Documentao da Biblioteca Nacional e seu papel na
implementao de uma rede de informaes cientficas
Dissertao de Mestrado apresentada ao
Programa de Ps Graduao em Cincia da
Informao (PPGCInf) da Faculdade de
Cincia da Informao (FCI) da
Universidade de Braslia.
Braslia, DF, 21 de janeiro de 2013.
rea de Concentrao: Gesto da Informao.
Linha de Pesquisa: Organizao da Informao.
Orientadora: Prof Dr Georgete Medleg Rodrigues.
Coorientadora: Prof Dr Nanci Elizabeth Oddone (UNIRIO).
Braslia, DF
2014
J97m Juvncio, Carlos Henrique.
O Mundaneum no Brasil: o Servio de Bibliographia e Documentao da
Biblioteca Nacional e seu papel na implementao de uma rede de informaes cientficas / Carlos Henrique Juvncio. 2014.
190 f.; 30 cm.
Orientadora: Prof. Dr. Georgete Medleg Rodrigues.
Coorientadora: Prof. Dr. Nanci Oddone.
Dissertao (Mestrado) Universidade de Braslia, Faculdade de Cincia da
Informao, Programa de Ps-Graduao em Cincia da Informao, Braslia, 2014.
1. Documentao. 2. Biblioteconomia. 3. Cincia da Informao. 4. Paul Otlet. 5.
Henri La Fontaine. 6. Biblioteca Nacional. 7. Instituto Internacional de Bibliografia. 8.
Manoel Ccero Peregrino da Silva. I. Rodrigues, Georgete Medleg. II. Oddone, Nanci. III. Ttulo.
CDU 002:02
Dedico minha famlia e aos meus amigos
que sempre estiveram ao meu lado neste
percurso.
AGRADECIMENTOS
Primeiramente agradeo a Deus, essa energia que move o Universo.
Agradeo Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES)
pela bolsa, aos professores do Programa de Ps-Graduao em Cincia da Informao
(PPGCInf) pelas aulas e pelas dicas ao longo do curso. Martha, Elaine e Jucilene to
dedicadas aos alunos da Ps e sem as quais o Programa perderia muito.
Agradeo aos amigos da Biblioteca Nacional, sempre muito acolhedores, aos
funcionrios do Arquivo Histrico do Itamaraty, do Instituto Histrico e Geogrfico
Brasileiro e ao Mundaneum, na figura da senhora Stphanie Manfroid, responsvel pelo
Centre dArchives do Mundaneum, sempre to solcitos e gentis.
minha orientadora, Georgete Medleg Rodrigues, a quem muito admiro e agradeo
todo o apoio e confiana desejando que o futuro nos reserve muito mais parcerias
agradeo o grande incentivo de sempre e todos os ensinamentos, que ultrapassaram a simples
orientao.
Agradeo tambm a coorientao da professora Nanci Oddone, que deixou as pistas e
indicou caminhos para que este trabalho fosse concretizado. banca desta dissertao
agradeo todos os conselhos, sugestes e crticas que s fizeram o trabalho crescer e ter o
resultado que hoje apresento, desde j, obrigado professores Rodrigo Rabello, Eliane Braga,
Dulce Baptista, Fernando Leite e Sofia Galvo.
No posso me esquecer dos amigos candangos que tanto o mestrado, quanto a vida
brasiliense me proporcionaram conhecer, principalmente a Cristiane Basques, uma pessoa
maravilhosa! Mas tambm Alessandra, Azenate, Brbara, Flvia, Gleice, Glria, Janana,
Laila e Odehilde. Alm, claro, dos integrantes do grupo de pesquisa POLIEG: Aluf,
Anglica, Cynthia, Dirlene e Shirley.
Aos amigos de sempre e fora de srie, Marta Ramos, Marcelly Pedra e minha Pequena
(porm gigante) Elizabeth Carvalho, que sempre me incentivaram, aconselharam e ajudaram
nos momentos de dificuldade. Ao professor Geraldo Prado, meu mentor intelectual e grande
incentivador e conselheiro.
Por fim, agradeo ao de mais importante que tenho, a minha base, minha famlia!
Branca (me), Henrique (pai), Wilians e Isabella (irmos) agradeo todo o apoio e fora ao
longo do trabalho, sem vocs me faltaria cho para conquistar tudo o que at hoje conquistei.
Fica aqui o meu muito obrigado!
Tous les livres, tous les articles de revues, tous le mmoires, toutes les communications,
toutes les informations publies, ne sont en
substance que des chapitres, des sections,
des paragraphes, de simples alinas dun seul et immense livre, le Livre de la Science
universelle. Otlet, 1908
RESUMO
A pesquisa investiga a criao, em 1911, do Servio de Bibliographia e Documentao da
Biblioteca Nacional e qual a influncia do Instituto Internacional de Bibliografia (IIB),
fundado em 1895 por Paul Otlet e Henri La Fontaine, nessa iniciativa, tema ainda pouco
explorado pelos pesquisadores da Cincia da Informao. Sob este prisma a pesquisa analisa
as repercusses do projeto Mundaneum nas aes de difuso de informaes cientficas da
Biblioteca Nacional (BN) do Brasil. Busca tambm demonstrar que a criao do Servio de
Bibliografia e Documentao da Biblioteca pode ser considerada parte do projeto de
cooperao internacional criado por Otlet e La Fontaine. Os procedimentos metodolgicos
consistiram em pesquisas bibliogrfica e histrico-documental nos arquivos histricos da
Biblioteca Nacional brasileira e nos arquivos do Mundaneum com sede na Blgica, alm dos
arquivos do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro e do Itamaraty. Dentre os resultados da
pesquisa esto o mapeamento do intercmbio no campo da informao entre o IIB e a BN
visando criao do Servio de Bibliografia e Documentao. A principal concluso da
dissertao de que os contatos entre a Biblioteca e o Instituto tiveram, de fato, um papel
determinante na construo de uma rede de cooperao cientfica no pas. E esse papel foi
desempenhado pelo Servio de Bibliografia e Documentao da BN como pea fundamental,
tendo frente seu diretor Manoel Ccero Peregrino da Silva.
Palavras-chave: Biblioteca Nacional. Henri La Fontaine. Instituto Internacional de
Bibliografia. Manoel Ccero Peregrino da Silva. Mundaneum. Paul Otlet. Repertrio
Bibliogrfico Universal. Servio de Bibliografia e Documentao.
ABSTRACT
The research investigates the creation, in 1911, of the Bibliography and Documentation
Service in the National Library from Brazil and what would have been the influence of the
International Institute of Bibliography (IIB), founded in 1895 by Paul Otlet and Henri La
Fontaine, in this initiative, topic not yet explored by researchers of Information Science. From
that perspective, the objective of the research is to analyze the impact of the project
Mundaneum in the dissemination of scientific information in National Library from Brazil. It
also seeks to demonstrate that the creation of the Bibliography and Documentation Service
can be considered part of the international cooperation project by Otlet and La Fontaine. The
methodological procedures consisted of bibliographic and historical-documentary research in
historical archives of the brazilian National Library and in the archives of Mundaneum based
in Belgium, in addition to the archives of the Brazilian Historic and Geographic Institute and
the Foreign Ministry. Among the search results are mapping the exchange in the field of
information between the International Institute of Bibliography and the National Library
aiming to create the Bibliography and Documentation Service. The main conclusion of this
work is that the contacts between the Library and the Institute had, in fact, a key role in
building a network of scientific cooperation in the country. In addition, the Bibliography and
Documentation Service performed this role as keystone headed by its director Manoel Ccero
Peregrino da Silva.
Keywords: Bibliography and Documentation Service. Henri La Fontaine. International
Institute of Bibliography. Manoel Ccero Peregrino da Silva. Mundaneum. National Library
(Brazil). Paul Otlet. Universal Bibliographic Repertory.
RSUM
La recherche porte sur la cration, en 1911, du Service de Bibliographie et Documentation de
la Bibliothque nationale et linfluence de lInstitut International de Bibliographie (IIB),
fonde en 1895 par Paul Otlet et Henri La Fontaine, dans cette initiative. Encore peu explor
par les chercheurs, les rapports entre la Bibliothque et de lInstitut semblent avoir t dcisif
dans la construction d'un rseau de coopration scientifique au Brsil. De ce point de vue
lobjectif de la recherche est d'analyser limpact du projet Mundaneum dans la diffusion de
linformation scientifique partir de la Bibliothque Nationale, aussi bien de comprendre la
cration du Service de Bibliographie et Documentation de la Bibliothque dans le cadre du
projet de coopration internationale conu par Otlet et La Fontaine. Les dmarches
mthodologiques compreennent une recherche bibliographique et documentaire aux archives
historiques de la Bibliothque Nationale du Brsil et aux Centre darchives du Mundaneum en
Belgique, en plus des archives de lInstitut historique et gographique brsilien et celles du
Ministre des Affaires trangres. Parmi les rsultats de la recherche on a tabli une
cartographie des changes dans le domaine de linformation entre lInstitut International de
bibliographie et la Bibliothque Nationale. La principale conclusion de la recherche est que
les rapport entre la Bibliothque et lInstitut ont eu, en effet, un rle cl dans la construction
dun rseau de coopration scientifique au Brsil et ce rle a t jou par le Service de
Bibliographie et Documentation ayant sa tte son directeur Manoel Ccero Peregrino da
Silva.
Mots-cls: Bibliothque Nationale. Henri La Fontaine. Institut International de Bibliographie.
Manoel Ccero Peregrino da Silva. Mundaneum. Paul Otlet. Rpertoire bibliographique
universel. Service de Bibliographie et Documentation.
LISTA DE ILUSTRAES
Figura 1 Folha de rosto do primeiro nmero do Boletim do IIB 35
Figura 2 Exemplo de ficha adotado no Repertrio Bibliogrfico Universal 36
Figura 3 O Mundaneum 44
Figura 4 Histria da criao do Centro Internacional 45
Figura 5 Modelo de organizao e cooperao internacional para Paul Otlet 46
Figura 6 Fachada do antigo prdio da Biblioteca Nacional (Rua do Passeio) 50
Figura 7 Lanamento da pedra fundamental no edifcio destinado Biblioteca 52
Figura 8 Novo Edifcio da Biblioteca Nacional, 1910 53
Figura 9 Manoel Ccero Peregrino da Silva 60
Figura 10 Mecanismo do book-carrier 64
Figura 11 - Federico Birabn 70
Figura 12 Detalhe do jornal O Paiz de 26 de agosto de 1910 74
Figura 13 Cabealho de carta enviada pelo IIB 85
Figura 14 Ficha do Repertrio Bibliogrfico Universal enviada Biblioteca Nacional 91
Figura 15 Detalhe da primeira pgina do Boletim Bibliographico da Bibliotheca
Nacional do Rio de Janeiro 95
Figura 16 Primeira pgina do Boletim Bibliographico da Bibliotheca Nacional
do Rio de Janeiro 96
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 Cronologia da vida de Manoel Ccero Peregrino da Silva 55
Quadro 2 Correspondentes por estado 98
LISTA DE SIGLAS
BN Biblioteca Nacional
CDD Classificao Decimal de Dewey
CDU Classificao Decimal Universal
IBBD Instituto Brasileiro de Bibliografia e Documentao
IHGB Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro
IIB Instituto Internacional de Bibliografia
OPAC Online Public Access Catalog
RBU Repertrio Bibliogrfico Universal
SUMRIO
1 INTRODUO 14
2 ENTRE UTOPIAS E IDEAIS: OTLET, LA FONTAINE, O IIB, O
MUNDANEUM E A PAZ 24
2.1 Otlet, La Fontaine e a vida internacional 28
2.2 O Instituto Internacional de Bibliografia 33
2.3 Os Projetos Mundaneum 40
3 PIONEIRISMO E MODERNIDADE BRASILEIRA: MANOEL CCERO E
A BIBLIOTHECA NACIONAL 48
3.1 Peregrino da Silva, um intelectual a servio da Nao 54
3.2 Inovao e pionerismo: a Biblioteca Nacional de Manoel Ccero Peregrino da Silva 62
4 O SERVIO DE BIBLIOGRAPHIA E DOCUMENTAO: A CONEXO
ENTRE A BN E O IIB 70
4.1 O Servio de Bibliographia e Documentao 78
4.2 Cicero de Britto Galvo e a Bibliographia Brasileira 91
4.3 Ecos dos ideais de Paul Otlet e Henri La Fontaine 97
5 CONSIDERAES FINAIS 100
6 RECOMENDAES DE PESQUISA 104
REFERNCIAS 106
REFERNCIAS DA PESQUISA DOCUMENTAL 114
APNDICE A Lista de instituies pesquisadas 123 ANEXO AA Estatuto do Instituto Internacional de Bibliografia 124 ANEXO AB Composio do Centro Mundial 127 ANEXO AC Lei de Depsito Legal (Decreto n 1.825, de 20 de Dezembro de
1907) 128
ANEXO AD Assumptos Bibliographicos 129 ANEXO AE Ofcio de Manoel Ccero Peregrino da Silva ao ministro da Justia e
Negcios Interiores, Augusto Tavares de Lyra. Rio de Janeiro, 29
mar. 1909 132
ANEXO AF Ofcio de Manoel Ccero Peregrino da Silva ao ministro da Justia e Negcios Interiores, Augusto Tavares Lyra. Rio de Janeiro, 19 abr.
1909 134
ANEXO AG Carto Postal do Instituto Internacional de Bibliografia Biblioteca Nacional. Bruxelas, [12 jan.] 1910 136
ANEXO AH Ofcio do embaixador brasileiro em Bruxelas, Oliveira Lima, ao ministro das Relaes Exteriores, Baro do Rio Branco. Bruxelas, 23
ago. 1910 137
ANEXO AI Carta de Manoel Ccero Peregrino da Silva ao secretrio do Instituto Internacional de Bibliografia. Rio de Janeiro, 21 mar. 1911 142
ANEXO AJ Carta da Comission Royale Belge des Echanges Internationaux ao diretor da Biblioteca Nacional. Bruxelas, 04 abr. 1911 143
ANEXO AK Carta do secretrio, Louis Masure, ao diretor da Biblioteca Nacional. Bruxelas, 9 maio 1911 144
ANEXO AL Ofcio de Manoel Ccero Peregrino da Silva ao ministro da Justia e Negcios Interiores, Rivadvia Corra. Rio de Janeiro, 10 jun. 1911. 146
ANEXO AM Carta de Manoel Ccero Peregrino da Silva ao secretrio do Instituto Internacional de Bibliografia. Rio de Janeiro, 04 jul. 1911 148
ANEXO AN Carta de Manoel Ccero Peregrino da Silva ao secretrio do Instituto Internacional de Bibliografia. Rio de Janeiro, 12 ago. 1911 149
ANEXO AO Carta de Louis Masure ao diretor da Biblioteca Nacional. Bruxelas, 19 set. 1911 150
ANEXO AP Carta de Manoel Ccero Peregrino da Silva ao secretrio do Instituto Internacional de Bibliografia. Rio de Janeiro, 28 nov. 1911 152
ANEXO AQ Carta enviada aos embaixadores em Bruxelas convidando-as para a cerimnia de entrega das fichas do RBU ao embaixador brasileiro,
Oliveira Lima. Bruxelas, 29 nov. 1911. 153
ANEXO AR Carta de Louis Masure ao diretor da Biblioteca Nacional. Bruxelas, 29 dez. 1911 155
ANEXO AS Carta de Manoel Ccero Peregrino da Silva ao secretrio do Instituto Internacional de Bibliografia. Rio de Janeiro, 11 jun. 1912 157
ANEXO AT Carta de Louis Masure ao diretor da Biblioteca Nacional. Bruxelas, 10 jul. 1912 158
ANEXO AU Carta de Manoel Ccero Peregrino da Silva ao secretrio do Instituto Internacional de Bibliografia. Rio de Janeiro, 29 jul. 1912 159
ANEXO AV Carta de Louis Masure ao diretor da Biblioteca Nacional. Bruxelas, 2 set. 1912 161
ANEXO AW Ofcio de Manoel Ccero Peregrino da Silva ao ministro da Justia e Negcios Interiores, Rivadvia Crrea. Rio de Janeiro, 17 jul. 1913 161
ANEXO AX Ofcio do ministro da Justia e Negcios Interiores, Rivadvia Corra a Manoel Ccero Peregrino da Silva. Rio de Janeiro, 25 jul.
1913 162
ANEXO AY Ofcio de Manoel Ccero Peregrino da Silva ao ministro da Justia e Negcios Interiores, Rivadvia Corra. Rio de Janeiro, 30 jul. 1913 163
ANEXO AZ Carta de Manoel Ccero Peregrino da Silva a Louis Masure, secretrio do Instituto Internacional de Bibliografia. Rio de Janeiro, 4
ago. 1913 164
ANEXO BA Carta do Service Belge des changes Internationaux ao diretor da Biblioteca Nacional. Bruxelas, 08 ago. 1913 165
ANEXO BB Ofcio do ministro da Justia e Negcios Interiores, Rivadvia Corra, ao ministro das Relaes Exteriores. Rio de Janeiro, 9 ago.
1913 166
ANEXO BC Ofcio do ministro das Relaes Exteriores, Lauro Mller, ao Ministro da Justia e Negcios Interiores, Herculano de Freitas. Rio
de Janeiro, 29 ago. 1913. 167
ANEXO BD Carta do Service Belge des changes Internationaux ao diretor da Biblioteca Nacional. Bruxelas, 14 out. 1913 168
ANEXO BE Ofcio do ministro da Justia e Negcios Interiores, Herculano de Freitas, ao diretor da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, 4 nov. 1913 169
ANEXO BF Carta de Manoel Ccero Peregrino da Silva ao chefe do Service Belge des changes Internationaux. Rio de Janeiro, 12 nov. 1913 170
ANEXO BG Carta de Louis Masure ao diretor da Biblioteca Nacional. Bruxelas, 27 jul. 1914 176
ANEXO BH Ofcio de Oliveira Lima ao ministro das Relaes Exteriores, Lauro Mller. Bruxelas, 15 out. 1913 177
14
1 INTRODUO
No final do sculo XIX, os juristas belgas Paul Otlet e Henri La Fontaine semearam as
bases de uma revoluo na disseminao e no acesso informao criando, em 1895, na cidade
de Bruxelas, o Instituto Internacional de Bibliografia (IIB). Partindo-se da ideia de que todos
deveriam ter acesso produo cientfica dos mais variados pases e que a divulgao desta de
suma importncia para o avano de pesquisas e estudos nas mais diversas reas do conhecimento,
Otlet e La Fontaine lanaram a pedra fundamental para um esforo de cooperao internacional
que visava a criao de uma fonte universal de informao, chamada Repositrio Bibliogrfico
Universal (RBU). Tal repositrio tinha por objetivo a disseminao da informao produzida em
cada nao-membro do Instituto por meio da criao de bibliografias nacionais, regionais ou
especializadas.
Em tal perodo, a bibliografia j era uma disciplina secular (ALENTEJO, [2011]; OTLET,
LA FONTAINE, 1895), tendo por objetivo a criao de fontes de informao sobre a produo
intelectual de um campo do conhecimento ou regio geogrfica. Por meio dela, era possvel
verificar os estudos mais recentes ou realizar o levantamento da produo cientfica de
determinada rea. A novidade trazida por Paul Otlet e Henri La Fontaine a de que a cooperao
internacional poderia criar uma rede de comunicao cientfica mundial1, com a criao do RBU.
Como parte desta cooperao, o Instituto passou a mobilizar diversas instituies no mundo,
como bibliotecas, museus, arquivos, universidades, escolas, institutos, etc., desde que, de alguma
maneira, estas pudessem contribuir com o ideal da dupla belga.
Nesse contexto, com o Brasil no seria diferente. Iniciativas convergentes ao ideal de
Otlet e La Fontaine foram criadas, como as de Juliano Moreira, em 1899 (ORTEGA, 2009b), e da
Biblioteca Nacional (BN), na figura de seu diretor poca Manoel Ccero Peregrino da Silva ,
que criou o Servio de Bibliographia e Documentao da instituio, em 1911. No bojo de tal
cooperao, uma conexo entre o IIB e a BN foi criada e um lao entre o Brasil e a Blgica foi
forjado.
Buscando recuperar esse perodo da histria da Documentao, da Biblioteconomia e da
Cincia da Informao no pas, temos como objetivo explicar como a concepo, a criao e a
1 Sob a tica de cooperao informacional, antes mesmo de Vanevar Bush, Paul Otlet idealizara um futuro onde a
busca por informao poderia ser feita sem que o pesquisador precisasse sair de casa, por meio de grandes
terminais alimentados com informao, algo parecido com a atual internet.
15
implementao do Servio de Bibliographia e Documentao na Biblioteca Nacional inspiraram-
se nos ideais do Mundaneum, haja vista esse ter sido o servio de maior contato com o IIB no
Brasil, conforme nos fala Rayward (1975), ao destacar que a maior encomenda de fichas do RBU
junto ao Instituto foi feita pela Biblioteca Nacional no ano de 1911, ao encomendar 600.000
destas. Nesse sentido, o objeto de nossa pesquisa o contato mantido entre a Biblioteca Nacional
brasileira e o Instituto Internacional de Bibliografia, tendo em vista a construo de uma rede de
comunicao e informao cientfica no Brasil.
Entretanto, apesar de grande parte dos textos que tratam do tema citarem a interao entre
as duas instituies, nenhuma informao alm do mero destaque da existncia dessa relao foi
concretamente recuperada. A maioria das obras cita a manuteno de tal contato, mas sem
aprofundar-se na investigao deste. Nesta linha seguem as obras de Ortega (2004, 2009a,
2009b), Pinheiro (2002; 2005), Robredo (2003), Castro (2000), dentre outras.
Oddone (2004, 2005, 2006, 2010) quem nos traz interessantes referncias com relao
ao contato mantido entre a BN e o IIB ao analisar a liderana de Lydia Sambaquy na criao do
Instituto Brasileiro de Bibliografia e Documentao (IBBD). Em suas obras, refaz a trajetria
histrica do pensamento documentalista que culmina com a criao do IBBD em 1954, no Rio de
Janeiro. Alis, a maioria dos textos sobre as origens da Cincia da Informao no Brasil indicam
que foi a fundao do IBBD o impulsionador da rea no pas.
Porm, Fonseca (1973a) quem, apesar de no se aprofundar nos estudos desta relao,
traz as mais interessantes contribuies para a pesquisa no texto Origens, evoluo e o estado
atual dos servios de documentao no Brasil. Nessa obra, o autor descreve, de forma um pouco
mais detalhada que seus sucessores, o contato mantido entre a Biblioteca Nacional do Brasil,
destacando a figura de Peregrino da Silva, e o Instituto Internacional de Bibliografia. Alm disto,
Fonseca (1957) vai alm ao fazer uma retrospectiva sobre o contato de outros brasileiros com os
ideais modernizadores da poca nas bibliotecas europeias e norte-americanas. Assim, comenta a
atuao de Ramiz Galvo, diretor da BN entre os anos de 1870 e 1882 e primeiro bibliotecrio
brasileiro a visitar instituies estrangeiras com a finalidade de estudar e extrair delas processos e
procedimentos referentes organizao e administrao de bibliotecas, para que estes fossem
aplicados na BN.
Traado esse panorama, Fonseca (1973a) posiciona a criao do Servio de Bibliographia
e Documentao na Biblioteca Nacional como o embrio do que mais tarde viria a ser o IBBD.
16
Cabe-nos ressaltar que a leitura dos textos de Oddone (2010) A Documentao no Brasil e seu
impacto durante o Estado Novo e o j citado texto de Fonseca (1973a) nos permite presumir
que as ideias de Sambaquy para o IBBD nada mais eram do que aquelas j semeadas por
Peregrino na BN no incio do sculo XX. Sobretudo se observarmos, conforme indicado por
Fonseca (1973a), o regulamento da BN no ano de 1911, que institua o Servio, descrevendo sua
misso e objetivos, algo que o autor considera bem prximo misso do IBBD.
Numa perspectiva global, o texto que parece ser a fonte principal sobre a discusso da
histria da Cincia da Informao o de Rayward (1975), onde o autor sintetiza, em um
pargrafo, o contato da BN brasileira com o Instituto a partir da encomenda das fichas do RBU
em 1911. Segundo o mesmo autor, o incio da I Guerra Mundial interrompeu o contato entre as
duas instituies. Nesse sentido, Rayward (1975, 1990, 1991, 1994, 1996, 1997) parece ser o
autor estrangeiro de destaque quando mencionamos a histria do IIB e da Documentao, alm
da biografia de Paul Otlet e Henri La Fontaine.
Diante da lacuna ainda existente sobre o Servio de Bibliographia e Documentao da
Biblioteca Nacional e o seu papel na implementao de uma rede de informaes cientficas,
nossa pesquisa pretende descrever como se deu o contato entre a BN e o IIB, buscando
evidncias documentais desta relao. Alm disso, buscamos preencher parte dos hiatos
existentes na literatura com relao ao contato da BN com as ideias supracitados e o prprio IIB.
Acreditamos que ser de suma importncia o mapeamento desse contato e a compreenso de que
forma este ocorreu, levantando possveis objetivos por parte da BN e explicitando o porqu desta
interao.
A importncia desta pesquisa parece residir, sobretudo, no fato de que alguns autores,
como Fonseca (1957, 1973a, 1973b) e Oddone (2004, 2005, 2006, 2010), reconheceram a
importncia da criao do Servio de Bibliographia e Documentao na BN como o evento
semeador das ideias que culminaram com a criao do IBBD. Visto que, se no h uma relao
direta entre o Servio da BN e o IBBD, as bases do segundo parecem ter sido lanadas pelo
primeiro.
Outra contribuio importante que nossa pesquisa busca entender como se deu a
comunicao e a interao cientfica na perspectiva pioneira de Manoel Ccero Peregrino da
Silva, observando que tal reflexo parece no ter sido ainda explorada na literatura da Cincia da
Informao, da Biblioteconomia ou da Documentao. Desta forma, concentrando esforos nas
17
evidncias documentais do contato entre as instituies em anlise, buscando revelar a histria
por trs dessa relao, esse olhar para o projeto da BN e do IIB parece dotado de originalidade.
Lidando com vestgios, nossa pesquisa no pretende solucionar todos os hiatos ou
problemas relativos ao contato da BN com o IIB, mas buscar no documento como esse processo
se deu e de que forma foi articulada a criao do Servio de Bibliographia e Documentao,
tendo em vista a contribuio deste na formao de uma rede de informaes cientficas no
Brasil.
Diante das evidncias j apresentadas, nosso problema de pesquisa pode ser formulado da
seguinte maneira: como e por que o Servio de Bibliographia e Documentao da Biblioteca
Nacional integrou-se ao projeto de cooperao internacional criado por Otlet e La Fontaine,
especialmente ao projeto Mundaneum? E qual o papel desse Servio na difuso de informaes
cientficas no pas?
Partimos da hiptese de que o Servio de Bibliographia e Documentao da Biblioteca
Nacional integrou-se ao projeto de cooperao internacional criado por Otlet e La Fontaine,
especialmente o projeto Mundaneum, em face poltica de modernizao da Biblioteca Nacional
no perodo, que supunha, entre outros aspectos, uma internacionalizao da instituio. Para
tanto, a BN empreendeu diversas aes com o objetivo de se atualizar e implementar uma rede de
informaes cientficas inspirada nas propostas de Paul Otlet e La Fontaine no pas.
Com base nisso, nosso objetivo geral explicar como a concepo, a criao e a
implementao do Servio de Bibliographia e Documentao na Biblioteca Nacional inspiraram-
se nos ideais do Mundaneum, tendo como finalidade principal estabelecer uma rede de
informaes cientficas no Brasil.
Nesse sentido, temos por objetivos especficos:
Identificar os antecedentes histricos que culminaram com a criao do Servio de
Bibliographia e Documentao;
Identificar as iniciativas paralelas de Manoel Ccero frente da BN, como parte do
ideal modernizador da instituio;
Mapear os contatos entre a Biblioteca Nacional e o Instituto Internacional de
Bibliografia no perodo entre 1900 e 1914, na perspectiva de um intercmbio
cientfico na rea de informao.
18
Com essa finalidade, a seo 2 deste trabalho traz a reviso de literatura do assunto em
anlise, apontando textos que nos auxiliaram na construo do nosso problema e na sua soluo,
alm de contextualizar o momento no qual os ideais de Otlet e La Fontaine afloraram, tecendo
uma breve biografia de ambos. Tambm mapeia o pensamento em voga na Europa poca de
atuao dos belgas, situando o projeto do IIB e do Mundaneum na corrente de pensamento
seguida por seus idealizadores.
A seo Pioneirismo e modernidade brasileira: Manoel Ccero e a Bibliotheca
Nacional busca situar a criao do Servio da BN no bojo de vrias iniciativas de modernizao
da instituio implementadas sob a direo de Manoel Ccero Peregrino da Silva; para tanto, traz
uma breve biografia desse personagem, buscando recuperar o pensamento dominante na
sociedade brasileira da poca.
O ltimo captulo O Servio de Bibliographia e Documentao: a conexo entre a BN e
o IIB busca recuperar o contato entre as duas instituies por meio dos documentos levantados
durante a pesquisa, bem como evidenciar o ideal de criao de uma rede de informaes no Brasil
a partir da concepo de cooperao internacional apregoada por La Fontaine e Otlet. Sob este
prisma, trabalharemos com informaes primrias retiradas, em sua maioria, da correspondncia
oficial trocada entre as instituies e, tambm, entre a BN e outros rgos, como o Itamaraty e o
Ministrio da Justia e Negcios Interiores. Esse ltimo captulo tambm mostra aes
semelhantes ao projeto do Servio de Bibliographia e Documentao em outros pases da
Amrica Latina, como forma de reforar o ideal internacional proclamado pelo IIB.
Nosso referencial terico ter por base os estudos desenvolvidos nas reas de Cincia da
Informao, Documentao e Biblioteconomia acerca da histria do Instituto Internacional de
Bibliografia e do Servio de Bibliographia e Documentao da Biblioteca Nacional. Alm disso,
buscaremos trabalhos que tratam da histria destas disciplinas no incio do sculo XX, bem como
textos que versem sobre os ideais de universalizao do conhecimento propagados por Paul Otlet
e Henri La Fontaine e da biografia de Manoel Ccero Peregrino da Silva, diretor da Biblioteca
responsvel pela implementao de vrias mudanas na instituio no incio do sculo XX.
Autores como Pinheiro (2002, 2005), Ortega (2004, 2009a, 2009b), Oddone (2004, 2005,
2006, 2010), Robredo (2003) e Fonseca (1957, 1973a, 1973b) fazem parte da base terica deste
trabalho, oferecendo subsdios s discusses acerca da difuso da Documentao no Brasil e sua
relao com a Biblioteconomia, alm do surgimento da Cincia da Informao no pas. Convm
19
apontar que consenso entre os autores citados que o Servio da Biblioteca Nacional representou
uma iniciativa pioneira no Brasil, e que Fonseca (1957) foi o nico a posicion-lo como o
embrio do Instituto Brasileiro de Bibliografia e Documentao (IBBD), fundado em 1954 e hoje
chamado de Instituto Brasileiro de Informao em Cincia e Tecnologia (IBICT).
Com relao atuao de Paul Otlet, Henri La Fontaine e do Instituto Internacional de
Bibliografia, temos por base a obra de Rayward (1975, 1990, 1991, 1994, 1996, 1997).
Considerado o maior bigrafo de Paul Otlet, o autor nos fornece importantes pistas sobre o
pensamento e a atuao da dupla de juristas belgas; suas obras possuem grande valor probatrio,
uma vez que a pesquisa por ele realizada baseou-se, sobretudo, nos arquivos do Mundaneum.
Contudo, tambm consideramos indispensvel o nosso contato direto com a obra de Paul
Otlet, e, assim, conseguimos, por meio de buscas realizadas na internet, localizar alguns de seus
textos, disponveis integralmente em sites de bibliotecas, universidades e arquivos. Desta forma,
obtivemos acesso ao contedo original do Trait de Documentation (1934), do LOffice
International de Bibliographie (1908) e do Cit Mondiale (1929), trabalhos que refletem o
esprito inovador e pioneiro de Otlet e trazem consigo seus ideais para o mundo.
Como forma de contextualizar as reflexes de Otlet com a sua poca, de modo a entender
em que ambiente suas ideias emergiram, recorremos a Mattelart (2002a, 2002b). Em suas obras,
ele refaz o percurso do pensamento de reunio de todo o conhecimento humano num nico
espao, trazendo exemplos do Mundo Antigo at os dias atuais. Alm disso, nos oferece um
panorama completo do pensamento europeu no final do sculo XIX e incio do sculo XX, o que
nos permite compreender melhor os projetos de Paul Otlet e Henri La Fontaine, sobretudo quanto
ao cunho pacifista de seus ideais e concepo do Mundaneum.
Quanto ao pensamento de Manoel Ccero Peregrino da Silva, nosso levantamento
preliminar buscou obras que versassem sobre a Escola de Recife, pois nesta instituio, celeiro de
grandes pensadores brasileiros, o antigo diretor da BN se graduou em Direito. Desta forma, as
obras de Adeodato (2012) e Paim (1999) nos so caras. Quanto biografia de Peregrino da Silva,
a obra de Andrade (2008a, 2008b) nos parece ser a mais interessante, pois traa sua trajetria
completa da vida. Contudo, a obra de Bittencourt (1955) que nos fornece as mais completas
informaes sobre o personagem e a sua vida.
Sobre o momento e as transformaes sofridas pela Biblioteca Nacional no perodo aqui
em estudo, entendemos que a melhor fonte de informao disponvel so os prprios relatrios
20
institucionais. Publicados nos Anais da instituio, tais documentos trazem em seu escopo
informaes sobre as atividades realizadas pela Biblioteca e seus funcionrios, alm de
estatsticas de consulta, descrio de atividades e relatos sobre mudanas implementadas e/ou
projetos. Disponveis para acesso na internet2, tal fonte documental constituiu-se de suma
importncia para a realizao desta pesquisa, pois traz a fala da BN sobre a BN, alm de oferecer
informaes sobre os bastidores institucionais.
Vale ainda ressaltar que nosso estudo constitui-se numa pesquisa histrico-qualitativa,
pois visa analisar um fenmeno em seu contexto sociocultural (GIL, 2010). Sendo assim, esta
pesquisa tem incio ao encontramos vestgios documentais do contato entre a Biblioteca Nacional
e o Instituto Internacional de Bibliografia nos Anais da Biblioteca Nacional. Dentre esses
vestgios, o relatrio institucional referente ao ano de 1911, onde o diretor Manoel Ccero
Peregrino da Silva relata ter encomendado junto ao Instituto a remessa de 600.000 fichas do RBU
(SILVA, 1912).
A partir da informao supracitada iniciou-se busca na literatura da rea de Cincia da
Informao, Biblioteconomia e Documentao por textos que pudessem fornecer mais dados
sobre tal relacionamento. Nesse sentido, foi feita uma busca em vrios websites, com vistas a
recuperar textos que pudessem servir de base para a pesquisa; desta forma, a partir das
referncias recuperadas inicialmente, as seguintes palavras-chave ou descritores foram utilizadas
na investigao: a) Biblioteca Nacional; b) Henri La Fontaine; c) Histria da Biblioteconomia no
sculo XIX e XX; d) Histria da Cincia da Informao; e) Histria da Documentao; f)
Instituto Internacional de Bibliografia; g) Louis Masure; h) Manoel Ccero Peregrino da Silva; i)
Mundaneum; j) Paul Otlet; k) Service Belge des changes Internationaux; l) Servio de
Bibliografia e Documentao.
A escolha de tais palavras-chave se deve, no caso dos nomes pessoais e institucionais, ao
papel de destaque que lhes fora atribudo pelas fontes de informao. J os termos mais genricos
foram escolhidos por sua relao intrnseca com a temtica desta pesquisa. Assim, pudemos
recuperar artigos de peridicos cientficos, teses, dissertaes e trabalhos de concluso de curso
que versavam sobre os assuntos acima relacionados, e, a partir das referncias por eles
fornecidas, pudemos ter acesso literatura em lngua estrangeira sobre o assunto. Neste mbito,
tambm foram recuperados textos em francs, ingls e espanhol, alm do portugus.
2 Disponvel em: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/anais/anais.htm
21
Seguindo um caminho diverso ao inicial, nossa busca por maiores informaes sobre o
contato mantido entre a BN e o IIB contou com a consulta ao Arquivo Histrico da Biblioteca
Nacional, denominado Coleo Biblioteca Nacional, custodiado pela Diviso de Manuscritos da
instituio. Nesse arquivo, buscamos por vestgios documentais que comprovassem tal relao,
como cartas, ofcios e demais fontes documentais. Assim, num primeiro momento, buscamos
pelas correspondncias recebidas e enviadas pela Biblioteca no perodo. Desta forma, foram
consultados aproximadamente 14.000 documentos divididos nos seguintes cdices, organizados
por srie documental3:
Correspondncia recebida entre os anos de 1898 e 1915, com cdices ocupando
da localizao 68,1,002 at a localizao 68,3,005, totalizando 21 volumes com
em mdia 500 cartas, em cada.
Correspondncia expedida entre os anos de 1906 e 1915, com cdices ocupando
da localizao 69,4,006 at a localizao 69,4,013, totalizando 8 volumes com em
mdia 500 cartas, em cada4.
Para a recuperao de tais documentos foi necessria a consulta ao catlogo on line da
BN5 e ao catlogo interno da Diviso Manuscritos no sistema MicroIsis. Cabe ressaltar que,
apesar da existncia dos cdices de correspondncias expedidas entre os anos de 1903 e 1905, a
consulta a esses itens se tornou invivel por conta de seu frgil estado de conservao.
Os cdices acima citados so fruto da reunio de cartas recebidas ou expedidas em
determinado perodo (geralmente ano), sendo arrolados em volumes de capa dura e organizados
por ordem cronolgica. Apesar de bem organizada, tal fonte no conta com uma descrio
minuciosa, estando todo o volume documental regido pelo ttulo Correspondncia Recebida ou
Expedida. Tal fato demandou a necessidade de uma rpida consulta a cada item dos volumes,
sendo o local de expedio ou o destinatrio elementos que nos permitiram filtrar melhor as
informaes contidas em cada correspondncia. Deste volume documental, foram recuperadas 24
3 Srie documental, ou apenas srie, a unidade de arquivamento, ou seja, documentos ordenados de acordo com o quadro de arranjo, ou conservados como uma unidade porque se relacionam s mesmas atividades e funes ou ao
mesmo tipo documental (CUNHA; CAVALCANTI, 2008, p. 332). Logo, a Correspondncia Recebida ou Expedida se constitui uma srie, por seus documentos terem a mesma funo e o mesmo tipo documental.
4 Aps as referncias usuais, h uma seo chamada Obras levantadas na Biblioteca Nacional, onde possvel visualizar a descrio bibliogrfica em separado de cada um dos cdices, alm de outros itens.
5 Disponvel em: http://catalogos.bn.br
22
correspondncias6 que tm relao direta ou indireta com o contato entre a Biblioteca e o
Instituto.
Ainda com relao s pesquisas documentais na Diviso de Manuscritos da Biblioteca
Nacional, o fundo Marlia Velloso Pinto7 tambm foi alvo de nossa pesquisa, pois se constitui no
acervo formado a partir do arquivo pessoal de Manoel Ccero Peregrino da Silva. Este arquivo,
segundo o Guia de Colees de Manuscritos8, possui:
Correspondncia recebida por Manuel Ccero Peregrino da Silva, passaporte, poemas,
recortes de revistas com solenidades a que compareceu Manuel Ccero, recortes de
jornais com dados biogrficos do mesmo, decretos de nomeao, curriculum vitae,
discursos, recibos, descries de viagens, indicaes para academias, diplomas, recortes
de revistas com fotos do prdio da Biblioteca Nacional, requerimentos, homenagens a
Manuel Ccero, anotaes sobre lingustica, fotos (BIBLIOTECA NACIONAL, c2013).
Contudo, apenas dois documentos nos foram teis neste arquivo pessoal.
Outro fundo que fez parte do corpus de nossa pesquisa foi o da embaixada brasileira em
Bruxelas, custodiado pelo Arquivo Histrico do Itamaraty, com sede na cidade do Rio de Janeiro.
Neste arquivo foram consultados 12 cdices que, bem como na Biblioteca Nacional, possuam
em media 500 documentos cada. De tal conjunto, recuperamos cinco documentos relativos
Legao Brasileira em Bruxelas que se referiam nossa pesquisa.
O arquivo do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro (IHGB) tambm foi alvo de
nossa pesquisa, sobretudo quanto vida e obra de Manoel Ccero Peregrino da Silva. Em tal
espao, consultamos cinco documentos relativos ao antigo diretor da BN, mas todos
configurando-se cpias ou exemplares de documentos consultados e copiados, sobretudo, na
Biblioteca Nacional.
O fundo do Ministrio da Justia e Negcios Interiores, custodiado pelo Arquivo Nacional
(AN) tambm foi por ns consultado. Contudo, nenhum documento relativo a esta pesquisa foi
recuperado.
Por meio de correio eletrnico, tambm mantivemos contato com o arquivo do
Mundaneum, onde, seguindo referncias de Rayward (1975), conseguimos recuperar um dossi
6 Nmeros referentes a outubro de 2013.
7 Marlia Velloso Pinto neta de Manuel Ccero Peregrino da Silva, que foi diretor da Biblioteca Nacional, e filha de Braz Velloso, ajudante de ordens da presidncia da Repblica no governo de Washington Lus. Manuel Ccero
Peregrino da Silva era casado com Josefa Maria da Conceio Martins, e sua filha, Maria de Jesus Peregrino da
Franca, casou-se com o comandante Brs da Franca Velloso. Marlia Velloso Pinto casada com Salvador Pinto
Filho (BIBLIOTECA NACIONAL, c2013). 8 Disponvel em: .
Acesso em 14 nov. 2013.
23
sobre a participao brasileira nas aes propostas por Otlet e La Fontaine. Mas apenas dois
documentos se mostraram relevantes para este trabalho9.
Nesse sentido, ao traarmos nossa metodologia de pesquisa nos mais variados arquivos e
instituies, lidamos com a noo de ramificao proposta por Carvalhdo (2012, p.53-54)
A ramificao se trata da ocorrncia de documentos de um fundo em outro fundo
distinto como consequncia de uma rede trans e intrainstitucional de produo, recepo
e compartilhamento documental para o cumprimento de uma misso ulterior e comum a
toda essa rede, mesmo de maneira temporria e muitas vezes no publicada oficialmente,
num determinado contexto poltico e no apenas documental.
Assim, a pesquisa no termina apenas em um fundo ou acervo, mas se ramifica,
possuindo vestgios em vrios outros locais de guarda e preservao.
Com o objetivo de disseminar os documentos levantados no decorrer da pesquisa,
optamos por disponibiliz-los anexados a este trabalho. Lembramos, ainda, que no foi possvel
obter fotografias ou cpias digitais de todos devido ao frgil estado de conservao de muitos
deles, sobretudo os referentes s correspondncias enviadas pela Biblioteca Nacional.
9 No dia 25 de novembro de 2013 a professora Georgete Medleg Rodrigues, orientadora desta dissertao, fez uma
visita tcnica ao arquivo do Mundaneum. A visita foi guiada pela senhora Stphanie Manfroid, responsvel pelo
Centr dArchives. Contudo, a consulta ao acervo no foi possvel por conta do prdio principal da instituio estar passando por reforma, ao passo que o local onde o acervo est alocado no fovorecia o seu manejo.
24
2 ENTRE UTOPIAS E IDEAIS: OTLET, LA FONTAINE, O IIB, O MUNDANEUM E A
PAZ
Reunir num nico local todo o conhecimento produzido pela humanidade parece ter sido
sempre um dos grandes objetivos do ser humano. Desde os tempos mais remotos, com a
biblioteca de Alexandria, esse ideal ou utopia procurado, e ainda hoje podemos perceber essa
busca na nossa sociedade (BURKE, 2003; MATTELART, 2002a).
Desta forma, se hoje o local escolhido para reunir todo o conhecimento humano parece
ser a internet, no incio do sculo XX a dupla de advogados belgas Paul Otlet e Henri La
Fontaine lanou mo de um ideal nesse sentido, de representao e reunio do conhecimento
humano num nico espao. Tal projeto, batizado inicialmente de Cidade Mundial, foi renomeado
para Mundaneum, contando com a viso de universalizao do conhecimento produzido ao redor
do mundo (RAYWARD, 1975).
Os antecedentes desse ideal parecem residir no final do sculo XIX, mais precisamente
em 1895, quando, por ocasio do I Congresso Internacional de Bibliografia, Otlet e La Fontaine
fundaram o Instituto Internacional de Bibliografia (IIB), com o objetivo de criar um instrumento
de acesso e disseminao de informaes em nvel mundial (ROBREDO, 2003; PINHEIRO,
2002; PEREIRA, 1995).
O instrumento proposto pela dupla belga para representao, acumulao e disseminao
do conhecimento produzido ao redor do mundo era a bibliografia disciplina secular, ligada
Biblioteconomia, que pode ser entendida como a produo sistemtica de listas descritivas de
registros do conhecimento, principalmente livros, artigos de peridicos e captulos de livros, bem
como itens similares (CUNHA; CAVALCANTI, 2008, p. 46). Com o uso da bibliografia, Otlet
e La Fontaine sugeriram a criao do Repertrio Bibliogrfico Universal (RBU), fonte de
pesquisa que visava reunir toda a representao do conhecimento humano em um mesmo lugar.
Essa representao era feita por meio de fichas padro 7,5cm por 12,5cm10
, com princpios da
catalogao e da classificao11
(RAYWARD, 1975). Silva e Freire (2012, p. 9) declaram que A
pretenso do RBU era conceber uma sntese dos assuntos, desde a inveno da imprensa, por
10
No padro americano essas medidas equivalem a 3 x 5 polegadas. 11
A Classificao Decimal de Dewey (CDD), criada em 1876 por Melvil Dewey, bibliotecrio americano, fora
utilizada por Otlet e La Fontaine como base na criao da Classificao Decimal Universal (CDU). Lanada entre
os anos de 1904 e 1907, a CDU at hoje utilizada e permite maior especificidade no momento da classificao de
documentos (RAYWARD, 1975), sendo esta utilizada na representao do RBU.
25
meio de fichar, de modo a promover uma rede conceitual que facilitasse e ampliasse o acesso
informao.
Nesse sentido, o ideal internacionalista de Paul Otlet e Henri La Fontaine perpassava pelo
contato com diversas instituies que pudessem servir ao propsito de universalizao do acesso
e disseminao da informao, ao redor do mundo. Iniciava-se ento o contato do IIB com entes
e entidades dos mais variados pases, incluindo pessoas e instituies no Brasil.
Fonseca (1973a, p. 40) nos fala que:
Quatro anos depois de fundado, o IIB contava com um membro brasileiro Juliano Moreira que utilizou a CDU na revista por ele dirigida: os Annaes da Sociedade de Medicina e Cirurgia da Bahia. Em 1900, outro grande cientista brasileiro introduzia o
sistema na biblioteca do instituto que organizara e teve depois o seu nome: o Instituto
Oswaldo Cruz. Em dezembro do mesmo ano, o engenheiro paulista Vtor Alves da Silva
Freire diplomado pela Escola Politcnica de Paris, Diretor de Obras Municipais e lente substituto da Escola Politcnica de So Paulo publicava em revista da mesma Escola um artigo sobre a necessidade da participao do Brasil na organizao internacional da
bibliografia cientfica.
O autor complementa que:
A Biblioteca da Cmara dos Deputados tambm est entre as primeiras do Pas que
adotaram o catlogo sistemtico segundo a CDU e receberam as publicaes do IIB,
graas clarividncia de seu diretor, que era, na poca, o escritor Mrio de Alencar
(1872-1925), filho de Jos de Alencar e amigo ntimo de Machado de Assis (FONSECA,
1973a, p. 40).
Ortega (2009b) corrobora a informao dada por Fonseca (1973a), declarando que:
[...] [Vctor da Silva] Freire publicou um estudo sobre a CDU no Annuario da Escola
Polytechnica de So Paulo, onde salientava a participao do Brasil na organizao
internacional da bibliografia cientfica. Este estudo foi publicado pelo IIB, no qual
consta a informao de que a Livraria Civilizao em So Paulo recebia assinaturas e
encomendas de publicaes do IIB e fornecia equipamentos e mveis por ele adotados.
At que, em 191112
, a Biblioteca Nacional brasileira lanou as bases de seu Servio de
Bibliographia e Documentao, estabelecendo contato13
com o IIB por meio da figura de seu
diretor, poca Manoel Ccero Peregrino da Silva. Fonseca (1957, p. 119) expe:
12
O Bulletin de LInstitut International de Bibliographie (1908) destaca que neste ano a Biblioteca da Marinha e a Biblioteca Nacional j eram correspondentes do Instituto. Tambm traz a relao de trs trabalhos sobre
classificao decimal publicados em lngua portuguesa, sendo eles: ALVES DE SA (EDUARDO), 1893. Bibliographia Juridica Portugalensis Lisboa, 1898; DA SILVA FREIRE, 1901. A Bibliographia Universal et a Classificao decimal. Subsido [sic] para a participao [sic] do Brazil na organisacas [sic] internacional da
bibliographia cientifica: S. Paulo; RIBEIRO DA SILVA (MARIO), 1902. A Catalogacao decimal da Bibliotheca da Marinha. Revista Marihima [sic] Brazileira Ann. 21, n 7, janeiro de 1902, pag. 891, Rio de Janeiro.
13 No sabemos ao certo, ainda, se esse foi o primeiro contato entre a Biblioteca Nacional e o Instituto Internacional
de Bibliografia. Mesmo assim, identificamos esse como o primeiro contato com a inteno de criao do Servio
de Bibliographia e Documentao na Biblioteca.
26
[...] A Biblioteca Nacional teve a sorte de ser dirigida, de 1900 a 1915 e de 1919 a 1921,
por Manoel Ccero Peregrino da Silva [...] Deve-se a le, igualmente, a primeira
tentativa de organizao da bibliografia brasileira na base da cooperao nacional e
internacional. Empolgado com as primeiras atividades do Instituto Internacional de
Bibliografia, de Bruxelas, Manoel Ccero Peregrino da Silva compreendeu logo o que
Fidelino de Figueiredo diria mais tarde, na primeira de suas memorveis conferncias
em So Paulo: o servio bibliogrfico j no pode ser devoo individual, nem fantasia acadmica, tem de ser desempenhado por um organismo tcnico, um Instituto Nacional
de Bibliografia com pessoal especializado, com a estreita colaborao das bibliotecas e
hemerotecas, no para publicar um Dicionrio Bibliogrfico, mas, para organizar a
bibliografia geral do passado e registrar a de cada dia e cada hora. Na reforma que introduziu na Biblioteca Nacional em 1911, Manoel Ccero Peregrino da Silva
estabeleceu um Servio de Bibliografia e Documentao em correspondncia com o Instituto Internacional de Bibliografia de Bruxelas. [...] Por a se v que Manoel Ccero Peregrino da Silva foi tambm precursor em matria de servios bibliogrficos e que na
sua reforma da Biblioteca Nacional estava quase profticamente anunciando o rgo que
s em 1954 se instalaria, com o nome de Instituto Brasileiro de Bibliografia e
Documentao14
.
Desta forma, Peregrino da Silva justifica a adeso da Biblioteca ao ideal do Instituto da
seguinte maneira:
consideravel o numero dos documentos existentes e dos que constantemente se
produzem em todos os paizes adiantados. Sem uma classificao rigorosa e uniforme,
essa massa de documentos graphicos esparsos ficar em grande parte desconhecida dos
estudiosos. [...] A inventariao e a descripo dos documentos so objecto do
Repertorio Bibliographico Universal, reunio de todas as bibliographias nacionaes ou
especiaes. [...]
Para chegar a taes resultados indispensavel a cooperao internacional, que s ser
possivel estabelecendo-se um accordo para a adopo de methodos e planos uniformes e
para a formao de grupos autonomos, ligados a um instituto central que dirija os
trabalhos, distribua os servios e organise e conserve as colleces e repertorios
adoptados como typo. A Unio Internacional de Bibliographia e Documentao que o
Governo Belga procura crear permittir realisar com a systematisao dos esforos esse
vasto plano de condensao dos conhecimentos humanos (SILVA, 1910, p. 773).
Nesse sentido, ele declara ainda que:
A documentao no sentido amplo que lhe atribue o Instituto [Internacional de
Bibliografia] abrange no s os textos manuscriptos e impressos, mas tudo quanto se tem
empregado como meio de realisao da produo intellectual e como meio de
transmisso das acquisies do homem no dominio da intelligencia. a reunio e a
coordenao de todos os documentos, conjucto que representar a experiencia universal
(SILVA, 1910, p. 773).
Peregrino da Silva ainda prossegue, dizendo que [...] A documentao vem coordenar os
elementos caracteristicos dos materiaes que a intelligencia humana vae accumulando atravez dos
seculos (SILVA, 1910, p. 773).
14
Optou-se, neste trabalho, por no fazer a atualizao dos vocbulos das citaes para as normas gramaticais e
grficas atuais. Entendemos que desta forma, mantemos a fidedignidade dos textos.
27
Silva (1910) parece refletir em sua fala seu ideal modernizador, sua busca pelo melhor
meio de tratar e disponibilizar ao pblico os mais diversos tipos de suportes documentais. Alm
de indicar a afinidade de seu pensamento com o de Paul Otlet e Henri La Fontaine, sob este
prisma, Fonseca (1957, p. 98) declara que Manoel Ccero Peregrino da Silva foi um autntico
precursor brasileiro da Documentao, um homem com viso proftica de Paul Otlet e Henri La
Fontaine. Fonseca (1973a, p. 41) chega a nomear Peregrino da Silva de Otlet brasileiro.
Apesar de o contato entre as instituies tratadas aqui ser conhecido, at o momento este
no fora objeto de estudo de nenhuma pesquisa, restando-nos apenas alguns rastros sobre esta
relao interinstitucional, encontrados nos mais diversos textos. Rayward (1975, p. 123, traduo
nossa) destaca que:
Talvez o maior evento na histria da distribuio do RBU tenha sido o recebimento, em
1911, de um pedido da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, de 600.000 fichas para
formar um repertrio de assuntos gerais. A Biblioteca concordou em pagar a taxa de
15.000 francos pelas fichas. Tendo solicitado a metade do dinheiro adiantado para recrutar pessoal para realizao do trabalho, Otlet e sua equipe garantiram juntos a organizao de 230.000 fichas, que foram classificadas em 192 caixas. Uma cerimnia
foi organizada para a transferncia das fichas ao embaixador brasileiro, para isso foram
convidados membros do corpo diplomtico da Frana e Blgica, e da maioria dos pases
sul-americanos. No final de 1913 o total de fichas enviados chegavam a 351.697
registros. [Um envio extra] foi realizado em 1914, perodo no qual Masure, secretrio do
OIB, escreveu ao Diretor da Biblioteca sugerindo que, talvez, o Escritrio devesse
mandar cpias das fichas j enviadas ao Rio para que fosse construdo um repertrio
alfabtico por autor. As fichas que haviam sido enviadas eram em sua maioria
provenientes de contribuies recentes Bibliographia Universalis, com um ou dois
itens excepcionais que remontam ao perodo de 1895-1900. evidente que o problema
em obter cpias das bibliografias que compem a Bibliographia Universalis, mas a
encomenda do catlogo [feito pela Biblioteca Nacional] em 1911, ou de qualquer outro
material do RBU, foi insupervel, e a meta de entregar as 600.000 fichas contratadas
aparentemente nunca foi cumprida. No entanto, o alto valor dado aos cartes recebidos
no Rio do OIB, fez com que, em 1914, uma tentativa de enviar algum do Brasil para
Bruxelas com a finalidade de estudar como o OIB trabalhava fosse feita, a fim de fazer
um maior uso delas. Infelizmente a Guerra fez essa visita se tornar impossvel15
.
15
Perhaps the greatest event in the history of the distribution of the RBU was the receipt of a request in 1911 from the National Library of Rio de Janeiro for 600,000 cards to form a general subject repertory. The Library agreed to
pay a fee of 15,000 francs for the cards. Having requested half of the money in advance to recruit personnel to do
the work, Otlet and his staff gathered together 230,000 cards and arranged them in classified order in 192 boxes.
A reception was held for the transfer of this material to the Brazilian ambassador, and to it were invited the
diplomatic staffs in France and Belgium of most of the South American states. By the end of 1913 the amount of
material sent consisted of 351,697 notices. An extra 33,00 notices were dispatched in July 1914, at which point
Masure, the Secretary of the OIB, wrote to the Director of the Library to suggest that perhaps the Office should
send second copies of cards already sent to Rio for the construction of an alphabetic author repertory. The cards
which had been sent were in the main derived from recent Contributions to the Bibliographia Universalis, with one
or two exceptional items dating back to the period from 1895 to 1900. It is clear that the problem of obtaining
copies of the bibliographies making up the Bibliographia Universalis but out of print by 1911 or of other material
in the RBU, was insuperable and the 600,000 figure contracted for was apparently never met. Nevertheless a high
value was set upon the cards received in Rio from the OIB, and in 1914 an attempt was made to send someone
28
Referncias ao papel de Manoel Ccero Peregrino da Silva podem ser encontradas
tambm em Oddone (2004, 2005, 2006, 2010) e Ortega (2004, 2009a, 2009b) que, ao tratarem da
participao brasileira no IIB, destacam a iniciativa de Peregrino e a criao do Servio na BN.
Ortega (2004, p. 6), por exemplo, destaca que:
[...] em 1911, o professor de Direito Manoel Ccero Pelegrino [sic] da Silva, diretor-
geral da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, criou o Servio de Bibliografia e
Documentao em correspondncia com o IIB, com a pretenso de organizar o
repertrio bibliogrfico brasileiro em fichas catalogrficas e com uso da CDU, incluindo
o tratamento dos artigos de peridicos, como uma contribuio ao controle bibliogrfico
internacional.
Oddone (2006, p. 47), por sua vez, observa que:
Disponvel na literatura brasileira da rea desde os trabalhos produzidos por Edson Nery
da Fonseca na dcada de 1950, a ligao entre a Documentao e Biblioteconomia nos
conduzia diretamente figura de Manuel Ccero Peregrino da Silva e s iniciativas por
ele implementadas na Biblioteca Nacional durante os anos de 1910 e 1920, traos
seguros da entrada do conceito de Documentao no pas e da nossa participao no
movimento europeu liderado por Paul Otlet (FONSECA, 1957, 1973; RAYWARD,
1996). (ODDONE, 2010, p.4-5).
Nesse sentido, podemos compreender, em parte, o porqu de a fundao do IBBD ser o
marco inicial da Cincia da Informao no Brasil, ao invs do Servio da BN.
2.1 Otlet, La Fontaine e a vida internacional
Paul Marie Gislain Otlet nasceu em Bruxelas e graduou-se em direito pela Universit
Libre de Bruxelles. Porm, seu destaque se deve a outro ramo do conhecimento: a
Documentao, rea do saber do qual considerado o pai16
. Suas ideias acerca desta ento nova
rea do conhecimento, oriunda da Biblioteconomia, floresceram no final do sculo XIX e
ganharam mais vida no alvorecer sculo XX. O ano de 1934 considerado um marco na
divulgao dos seus ideais, pois foi quando se lanou o seu Trait de Documentation17
, obra que
discorre sobre os princpios da Documentao e sua importncia para a organizao da
informao produzida pela humanidade (RAYWARD, 1975; RIEUSSET-LEMARI, 1997).
from Brazil to Brussels to study how the OIB worked in order to make greater use of them. Unfortunately the War
supervened to make the visit impossible. 16
Para mais informaes sobre a vida e a obra de Paul Otlet recomenda-se a leitura de Rayward (1975). 17
O Trait de Documenttion pode ser baixado gratuitamente no site:
http://lib.ugent.be/fulltxt/handle/1854/5612/Traite_de_documentation_ocr.pdf
29
Otlet tambm foi um dos responsveis pela mudana de paradigma do documento, ao
pens-lo como um registro do conhecimento humano, tirando o formato livro do foco e
colocando outros objetos sob tal perspectiva, como os objetos tridimensionais (RIEUSSET-
LEMARI, 1997).
Henri Marie La Fontaine tambm nasceu em Bruxelas, com a mesma formao em
Direito pela Universit Libre de Bruxelles18
. Juntamente com Otlet, considerado o pai da
Documentao, alm de ter advogado pela causa da paz, fazendo dela a sua bandeira, ao longo de
sua vida. Justamente pelo seu esprito pacifista, foi agraciado com o Prmio Nobel da Paz no ano
de 1913 (RAYWARD, 1975). Na ocasio, sua apresentao foi feita da seguinte forma:
Henri La Fontaine o verdadeiro lder do movimento popular da paz na Europa. Desde
1907 ele preside o International Peace Bureau, em Berna. [...] Ele um dos homens mais
bem informados no trabalho pela paz, e sua iniciativa e energia tm feito muito para
promover o movimento internacional pela paz, especialmente nas conferncias
interparlamentares e de paz dos ltimos anos, onde ele tem contribudo para a
organizao prtica do movimento e para a elaborao do direito internacional. [] No h ningum que tenha contribudo mais para a organizao do internacionalismo
pacfico, e seu talento excepcional para a administrao tem sido inestimvel para o
movimento pela paz. La Fontaine pertence ala moderada do Partido Socialista, ele o
primeiro socialdemocrata a receber o Prmio Nobel da Paz (THE NOBEL Peace Prize,
[2013], traduo nossa)19
.
Podemos perceber que os interesses de Otlet e La Fontaine parecem convergir para um
ideal de intercmbio internacional. Nessa perspectiva, para eles, a erudio, a cultura e a
educao possibilitam o reconhecimento de culturas alheias como semelhantes, sendo a difuso
do conhecimento o instrumento capaz de permitir o alcance de um mundo pacfico (FONSECA,
1957; RIEUSSET-LEMARI, 1997). O ano de 1890 parece ser o ano-chave nesta relao, pois
quando os dois juristas se conhecem, durante a organizao da bibliografia sociolgica belga.
Neste espao, ao que tudo indica, os ideais de Otlet e La Fontaine de criao de uma rede de
comunicao em escala mundial parecem comear a se desenhar (RAYWARD, 1975).
Segundo Mattelart (2002a, p. 218) [...] Na ltima dcada do sculo XIX, e ainda no
quadro da luta pela paz, aparece um prottipo de rede entre membros da comunidade cientfica
18
Para mais informaes sobre a vida e a obra de Henri La Fontaine recomenda-se a consulta Rayward (1975). 19
Henri La Fontaine is the true leader of the popular peace movement in Europe. Since 1907 he has been president of the International Peace Bureau in Bern. [] He is one of the best informed men working for peace, and his initiative and energy have done much to promote the international peace movement, particularly in the
interparliamentary and peace conferences of recent years, where he has contributed to the practical organization of
the movement and to the framing of international law. []There is no one who has contributed more to the organization of peaceful internationalism, and his outstanding talent for administration has been invaluable to the
peace movement. La Fontaine belongs to the moderate wing of the Socialist Party; he is the first Social Democrat
to receive the Nobel Peace Prize.
30
acerca da troca documental e da normalizao das classificaes bibliogrficas. Nesse bojo,
nasce pelas mos de Otlet e La Fontaine, em 1895, o Instituto Internacional de Bibliografia (IIB).
O IIB tem por misso principal ser uma instituio de cunho cientfico que se prope a
inventariar, organizar e classificar o conhecimento produzido pela humanidade, contribuindo para
a uniformizao dos mtodos empregados em tais tarefas (INSTITUT INTERNATIONAL DE
BIBLIOGRAPHIE, 1895).
Estando em consonncia com seus objetivos, o contato com vrias instituies no mundo
foi iniciado pela dupla, tendo por meta a criao de um repositrio universal dos saberes
humanos. Assim props-se a criao do Repertrio Bibliogrfico Universal (RBU), instrumento
no qual os saberes de todos os lugares do mundo poderiam ser facilmente acessados. Neste
imenso catlogo universal estaria presente a descrio bibliogrfica (catalogao) de diversos
itens, bem como sua reunio por meio da classificao, onde assuntos correlatos estariam
prximos na organizao desse imenso fichrio (RIEUSSET-LEMARI, 1997). Com essa
finalidade, Otlet e La Fontaine propuseram um novo instrumento de classificao, a Classificao
Decimal Universal. A CDU, como ficou conhecida, uma adaptao da Classificao Decimal
de Dewey (CDD)20
aos ideais do IIB; nela esto arroladas tabelas auxiliares que permitem a
utilizao de diversos sinais grficos, alm de nmeros, para a classificao e a representao de
um documento.
Todavia, por trs do ideal de cooperao internacional, podemos visualizar tambm o
ideal de paz apregoado pela dupla de juristas belgas. Desta forma, cumpre-nos contextualizar o
momento de fundao do Instituto, apontando marcos histricos e analisando o pensamento ento
em voga a respeito, voltaremos a discutir o IIB e a sua misso, bem como outros aspectos,
numa seo especfica.
No final do sculo XX, os ideais positivistas de paz e progresso caminhavam juntos;
vrias comunidades cientficas da poca discutiam e faziam propaganda do ideal pacifista. Nesse
sentido, a criao de congressos e instituies que visavam reunir num mesmo espao de
discusso as diferentes naes do mundo aumentou exponencialmente, bem como a sua
frequncia21
. Nesse bojo foi criado, em 1891-189222
, o International Peace Bureau, instituio
20
Sobre as negociaes de Paul Otlet e Henri La Fontaine com Melvil Dewey para a adaptao da CDD aos
propsitos do IIB recomenda-se a leitura de Rayward (1975). 21
A ttulo de exemplo, nesse perodo que as Olimpadas voltaram a ser disputadas, por iniciativa do Baro de
Coubertin e sob a gide da cooperao internacional, com vistas paz (MATTELART, 2002a).
31
que pregava um mundo sem guerras ou armas. Sua fundao se deve a uma srie de congressos
intitulados Universal Peace Congress, realizados em vrias cidades, principalmente da Europa, a
partir de 1889 at a dcada de 1930 (MATTELART, 2002a; INTERNATIONAL PEACE
BUREAU, c2012).
Mattelart (2002a, p. 226) nos fala que:
Em 1889, as sociedades de paz decidem organizar cada uma um congresso universal. [...] Entre cada acontecimento, as associaes nacionais como o Bureau de Berne [sic]
encarregam-se das campanhas de propaganda da paz, dirigidas opinio pblica. s [sic] publicaes nacionais, como a Revue de la paix, o Almanach de la paix e os livros
da Biblioteca da Paz (rebatizada significativamente no incio do sculo XX Biblioteca pacifista internacional), lanados a partir dos anos de 1870 pela Sociedade dos Amigos da paz, vem acrescentar, em 1910, toda uma coleo de obras histricas de
referncias multilinges, prprias para cimentar uma cincia da paz.
Dessa forma, a cincia da paz expresso cunhada por Otlet e citada por Mattelart
(2002a) teria relao com a criao de instituies que propagassem o conhecimento cientfico
e os ideais de desenvolvimento pacifista. Onde o mundo seria um s, independente de naes ou
fronteiras: o ideal de algumas correntes de pensamento neste perodo era de que a
desterritorializao23 seria um processo natural de evoluo da humanidade; assim, as
fronteiras entre as naes no seriam mais impedimento para o livre fluxo de pessoas e a troca
entre diferentes culturas. Seja com objetivos intelectuais ou mercantis, essas barreiras, criadas por
convenes polticas, no seriam mais obstculos na evoluo social humana, pois, se a paz
mundial fosse alcanada, as delimitaes fronteirias, inclusive, se tornariam desnecessrias
(MATTELART, 2002a).
Dotados de tais ideais, Otlet e La Fontaine lanaram, em 1912, a revista La Vie
Internationale, publicao peridica que tinha por objetivo Contribuir para desenvolver as
relaes alm das fronteiras, para crescer a solidariedade humana e para assegurar a paz entre as
naes [...] Fazer do mundo inteiro uma s cidade e de todos os povos uma s famlia (apud
MATTELART, 2002a, p. 234). Nessa citao j podemos ter noo do pensamento disseminado
pela dupla belga, algo que ser abordado com mais profundidade na seo Os Projetos
Mundaneum.
Vrias instituies existentes hoje tm suas bases ou filosofias lanadas sob a orientao
das correntes de intercmbio mundial em voga no incio do sculo XX. Desta forma surge o ideal
22
Mattelart (2002) cita como data de fundao do Bureau o ano de 1889, mas optamos por nos guiar pelo que diz o
website oficial da instituio. 23
O termo apresenta-se entre aspas por ser recente e no pertencer ao vocabulrio cientfico da poca.
32
de um banco internacional, uma associao de comrcio, um tribunal arbitral, dentre outras
instituies de carter universal; nesse bojo tambm so lanadas as ideias de uma biblioteca, um
arquivo e um museu, todos comandados pela lgica do esforo de cooperao internacional, onde
o mundo agiria como um s e tomaria decises em conjunto (MATTELART, 2002a).
No mbito de tais relaes, algumas palavras e conceitos se tornaram frequentes, como
mundialismo24
, internacionalismo, universalismo, pacifismo, etc. Todas denotando o ideal de
cooperao internacional, mas com diferentes vises. Nesse sentido, Bobbio, Matteucci e
Pasquino, (1998, p. 792) definem mundialismo como:
[...] o movimento que tem como objetivo a construo da unidade poltica mundial. Nele
confluem aspiraes cosmopolitas e pacifistas, qualificadas pela indicao dos
instrumentos institucionais necessrios para garantir suas realizaes.
Ele afirma o princpio da unidade (pluralista) do gnero humano acima das divises
nacionais e a necessidade de um seu ordenamento pacfico capaz de garantir a unidade
do planeta e, ao mesmo tempo, a autonomia de todos os Estados.
Quanto ao internacionalismo, declaram que:
O termo [...] comeou a fazer parte do vocabulrio poltico na segunda metade do sculo
XIX e foi inicialmente usado para designar movimentos de idias e fenmenos polticos
assaz diversos, mas todos eles caracterizados, de uma maneira geral, pela
preponderncia atribuda comunidade de interesses das naes, solidariedade poltica
e econmica de todos os povos e ao seu desejo de cooperao mtua, sobre os interesses
e mbeis nacional-estaduais. [...] compreende tendncias to diversas como a genrica
aspirao humanitria a uma comunidade de idias e de ideais capaz de unir todos os
povos numa s sociedade civil, o esforo por fazer avanar a causa da paz por meio de
um sistema de instituies e normas supranacionais, como a arbitragem obrigatria e as
cortes internacionais de justia, ou a utopia da completa liberalizao das trocas
comerciais, visando a ajustar as relaes mundiais a uma suposta harmonia de interesses
de todos os povos (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 1998, p. 642).
Por universalismo, segundo o dicionrio Aulete ([c2013]), entende-se a Tendncia a
universalizar, generalizar uma ideia, doutrina, etc.
Por fim, podemos considerar o pacifismo como:
[...] uma doutrina, ou at mesmo s um conjunto de idias ou de atitudes, bem como o
movimento correspondente, marcados por estas duas caractersticas: a) condenao da
guerra como meio apto para resolver as contendas internacionais; b) considerao da paz
permanente ou perptua entre os Estados como um objetivo possvel e desejvel. [...] O
Pacifismo distingue-se, por sua vez, tanto do cosmopolitismo, que a afirmao de
universalismo, mais no campo das idias que das instituies, e reivindica a superao
de todas as barreiras nacionais quanto aos indivduos, no quanto aos Estados, como
tambm do internacionalismo, que proclama a unio supranacional das pessoas
pertencentes ao mesmo grupo, classe ou partido, com o objetivo de reforar sua coeso e
influncia, no necessariamente com fins pacficos (BOBBIO; MATTEUCCI E
PASQUINO, 1998, p. 875).
24
A expresso mundialismo (Mondialisme em francs) tem sua criao atribuda por Mattelart (2002, p. 245), a Paul
Otlet.
33
Mattelart (2002a, p. 246-247) declara que o pensamento no incio do sculo XX era de
que:
A organizao da nova vida internacional fundada na plena liberdade das trocas, e
conseqentemente, sobre a supresso das alfndegas, temperada por uma regulao
internacional dos monoplios, cartis e trustes de produo, de distribuio e de
transporte, e da circulao fiduciria, e, enfim, em um servio universal de comunicao. Uma das prioridades dos grandes trabalhos a construo de uma transmundial, outro termo forjado por Otlet, uma rede que estende suas ramificaes a todo o globo; um sistema coordenado de transporte terrestres, martimos, areos, de
comunicaes postais, telegrficas, telefnicas e radiotelegrficas25
.
Nesse sentido, o meio no qual o IIB concebido est cercado por aspiraes de
intercmbio internacional e de conceitos de paz, onde propunha-se que o entendimento entre as
naes faria a humanidade evoluir.
2.2 O Instituto Internacional de Bibliografia
O Instituto Internacional de Bibliografia (IIB) foi fundado no ano de 1895, em Bruxelas,
por ocasio do I Congresso Internacional de Bibliografia. Esse foi o primeiro evento
internacional com o objetivo de tratar temas relacionados organizao da disciplina
bibliogrfica e seus mtodos. Seus pais intelectuais, conforme j mencionado, foram a dupla de
juristas belgas Paul Otlet e Henri La Fontaine (OTLET, 1908).
Segundo Otlet e La Fontaine (1895, p. 38, traduo nossa), o Congresso decidiu pela
1 Criao de um Instituto Bibliogrfico internacional, que tem por objetivo os
estudos das questes relativas bibliografia em geral e, tambm, especialmente
elaborao do Repertrio Universal. Este instituto decidir sobre as unidades
bibliogrficas e tomar todas as medidas para a sua adoo por todas as partes
interessadas: os cientistas, bibliotecrios, editores e autores.
[...]
3 Unio Bibliogrfica Internacional entre os governos que se comprometerem a tomar
todas as medias necessrias ao registro regular dos livros e favorecer a elaborao do
Repertrio [Universal], assinando cpias na proporo de suas respectivas populaes e
sua produo literria anual26,27
.
25
Para mais informaes sobre a Transmundial, consultar: RAYWARD, W. Boyd. Visions of Xanadu: Paul Otlet (1868-1944) and hipertext. Journal of the American Society for Information Science, v. 45, n. 4, p. 235-259,
maio 1994. 26
1 Cration d'un Institut Bibliographique international, ayant pour objet l'tude de toutes les questions se rattachant la bibliographie en gnral et plus spcialement l'laboration du Rpertoire universel. Cet institut
aurait dcider des units bibliographiques et prendre toutes mesures en vue de leur adoption par tous les
intresss: savants, bibliothcaires, diteurs et auteurs.
[...]
34
Assim, no primeiro nmero do Bulletin de LInstitut International de Bibliographie est
publicado o estatuto do IIB (ANEXO AA), do qual podemos destacar os seguintes trechos:
I. - O Instituto internacional de Bibliografia uma associao exclusivamente cientfica.
Visa:
1 Favorecer o progresso do inventrio, da classificao e da descrio dos produtos do
esprito humano.
[...]
3 dar assistncia a qualquer tentativa sria de classificaes internacionais.
[...]
5 Contribuir, por meio de publicaes e por quaisquer outros meios, para que aqueles
que publicam, colecionam, analisam ou consultam livros ou outros produtos do esprito
humano, adotem um sistema de classificao uniforme e internacional.
[...]
IV. - O Instituto escolher seus membros efetivos dentre aquelas pessoas, instituies e
associaes que se ocupam verdadeiramente da bibliografia e biblioteconomia [...]
(INSTITUT INTERNATIONAL DE BIBLIOGRAPHIE, 1895, p. 12-14, traduo
nossa)28
.
3 Union bibliographique internationale entre les gouvernements qui s'engageraient prendre toutes mesures
indispensables l'enregistrement rgulier des livres et favoriseraient l'laboration du Rpertoire en souscrivant des
exemplaires au prorata de leur population respective et du montant de leur production littraire annuelle. 27
A BN adere a esse ideal conforme carta j copiada, datada de 19 de abril de 1909. Contudo, o assunto ser mais
bem explorado no captulo 4. 28
I. - L'Institut international de Bibliographie est une association exclusivement scientifique. Il pour but :
1 De favoriser les progrs de l'inventaire, du classement et de la description des productions de l'espirit humain;
[...]
3De donner son consours toute tentative srieuse de classement international;
[...]
5 De contribuer, par des publications et par tous autres moyens, faire adopter par ceux qui publient,
collectionnent, consulent ou analysent des livres ou des productions de l'espirit humain, un systme de classement
uniforme et international;
[...]
IV. - L'Institut choisit ses membres effectifs parmi les personnes, institutions et associations qui s'occupent
effectivement de bibliographie et de bibliothconomie.
35
Figura 1: Folha de rosto do primeiro nmero do Boletim do IIB.
Fonte: INSTITUT INTERNATIONAL DE BIBLIOGRAPHIE,
1895.
Assim, o Instituto nasceu com a perspectiva de tornar acessvel todo o registro de
conhecimento produzido pela humanidade sob os preceitos da cooperao internacional. Para este
fim utilizava a representao documental dos itens em fichas catalogrficas padro 7,5cm X
12,5cm (formato de grande difuso at a criao dos OPACs29
). Cada ficha arrolava, conforme
podemos ver na Figura 2, informaes relativas autoria da obra (Chauvin, Victor), ttulo
(Bibliographie des ouvrages arabes ou relatifs aux Arabes publis dans lEurope c hrtienne de
29
O catlogo em linha de acesso pblico (Online Public Access Catalog OPAC) um catlogo automatizado no qual o usurio faz acesso direto, sem necessidade de intermedirio, utilizando interface amigvel (CUNHA; CAVALCANTI, 2008, p. 73).
36
1810 1915, IV: Les Mille et une nuits), imprenta30
(Lige, H. Vaillant-Carmanne e 1900),
nmero de pginas (228), nmero de classificao pela CDU (016 : 398.2), entre outras coisas
(OTLET, 1908).
Figura 2: Exemplo de ficha adotado no Repertrio Bibliogrfico Universal.
Fonte: OTLET, 1908, p. 373.
Tais fichas, por proposta do IIB, formavam o Repertrio Bibliogrfico Universal (RBU).
Otlet (1908, p. 363-364, traduo nossa) nos fala que:
O objetivo deste repertrio coletar e manter constantemente atualizados elementos de
um primeiro prottipo do repertrio geral, reunindo registros bibliogrficos relacionados
com os escritos de qualquer natureza, cobrindo todos os assuntos publicados em todos os
tempos e em todos os pases.
Para cada escrito (livros, artigos, memrias de sociedades cientficas, publicaes
peridicas oficiais), uma descrio sinaltica ou registro bibliogrfico feito. Esses
registros so gravados em fichas mveis de formato nico, 7,5cm X 12,5cm, cada um
dos quais representa um nico documento. Esses registros so armazenados em
arquivos31
.
30
[...] denominao atribuda na catalogao tradicional, s indicaes de local de publicao, editor e data [de uma obra] (CUNHA; CAVALCANTI, 2008, p. 191).
31 L'objet de ce Rpertoire est de rassembler et de tenir constamment jour les lments d'un premier rpertoire gnral prototype, runissant les notices bibliographiques relatives aux crits de toute nature, traitant de toutes les
matires, publies dans tous les temps et dans tous les pays.
De chaque crit (livres, articles, mmoires de socits savantes, publications officielles priodiques), il est fait une
description signaltique, ou notice bibliographique. Ces notices sont releves sur fiches mobiles, de format
uniforme, 125m/m X 75m/m, dont chacune est consacre l'indication d'un seul crit. Ces notices sont ranges
dans des meubles classeurs.
37
O RBU, conforme descrito por Otlet (1908), buscava reunir em um nico catlogo,
atravs da representao documental, no s toda a produo intelectual humana j produzida,
como tambm a que ainda seria realizada, por meio de sua constante atualizao. Dessa forma, a
construo do RBU seria um trabalho contnuo e sem fim, tendo em vista sua necessidade de
constante atualizao; ela contaria com a criao de Bibliografias Nacionais, por exemplo, outro
instrumento de controle bibliogrfico, que rene toda a produo intelectual de determinado
perodo (geralmente um ano) em determinada nao. Por controle bibliogrfico entendemos que
sejam:
[...] todas as atividades envolvidas na criao, organizao, gesto e manuteno de
registros bibliogrficos que representem os itens de uma biblioteca ou uma coleo de
arquivos, ou as fontes enumeradas em um ndice ou banco de dados, para facilitar o
acesso informao neles contida (REITZ, c2013, traduo nossa)32
.
Apesar de a misso proposta para o RBU parecer utpica, ela diferia de outras tentativas
de reunio de todo o conhecimento humano em um nico local, como a Biblioteca de Alexandria,
o maior exemplo a que podemos nos referir. Essa biblioteca fora criada na Antiguidade com o
objetivo de reunir todo o conhecimento humano em apenas um espao; apesar de alguns
pesquisadores apontarem que seu acervo contava com milhares, ou at milhes de documentos,
muito pouco provvel que seu objetivo tenha se concretizado (CANFORA, 1996). Contudo,
diferentemente de Alexandria, a misso do RBU ou do IIB no consistia em reunir num nico
espao toda a produo documental da humanidade, mas a sua representao.
Otlet e La Fontaine (1895) dizem que ao longo do sculo XIX, a importncia da
bibliografia cresceu, tendo em vista os direitos conquistados pelo autor33
, a maior abertura das
bibliotecas ao grande pblico34
e a necessidade de mecanismos de busca e recuperao da
informao desejada, bem como de controle da produo intelectual por parte das editoras. Nesse
sentido, os ideais do RBU tm por base os autores, os editores, as bibliotecas e seus usurios, os
bibliotecrios e os Estados.
Os autores, resguardados pela Conveno de Berna, que lhes assegura o direito intelectual
sobre suas criaes, so posicionados como os espritos por trs das grandes obras intelectuais
32
[] all the activities involved in creating, organizing, managing, and maintaining the file of bibliographic records representing the items held in a library or archival collection, or the sources listed in an index or database, to
facilitate access to the information contained in them. 33
Podemos citar como exemplo a Conveno de Berna, que objetivava a proteo dos direitos intelectuais sobre
obras literrias e artsticas. 34
Os ecos da Revoluo Francesa, bem como a ascenso da burguesia, parecem ter influenciado uma abertura maior
das bibliotecas ao grande pblico, e no mais somente s elites dominantes (BARATIN; JACOB, 2006).
38
humanas, passando a ser as figuras de destaque nos catlogos ento organizados, tambm,
onomasticamente. J os editores, tradicionais criadores e difusores de bibliografias por causa de
seus catlogos de venda, passaram a ser mais uma pea na intricada rede que Otlet e La Fontaine
(1895) visavam criar.
As bibliotecas e seus usurios, como consumidores de bibliografias, ganharam uma
posio de destaque nos ideais dos fundadores do IIB; a biblioteca, como local de consulta das
mais variadas fontes de informao, era a instituio para a qual os esforos de cooperao na
construo do RBU estavam voltados, buscando oferecer aos mais variados tipos de usurios uma
espcie de enciclopdia mundial, na figura do repertrio. Desta forma, seus usurios poderiam ter
acesso a toda produo intelectual mundial, seja ela do passado ou do presente (OTLET; LA
FONTAINE, 1895).
J os bibliotecrios so vistos por Otlet e La Fontaine sob dois aspectos: os responsveis
por tornar pblicos os tesouros e preciosidades presentes nos acervos das bibliotecas, fazendo-
os, por meio de catlogos, acessveis a todos, j que [...] sem o catlogo a biblioteca uma caixa
fechada cheia de coisas preciosas, mas inacessvel e invisvel, sem chave (OTLET; LA
FONTAINE, 1895, p. 19)35
; por outro lado, aos bibliotecrios confiada a construo das
bibliografias, de modo a enriquecer o RBU.
Por fim, os Estados so descritos no projeto do RBU como os articuladores na criao de
uma grande rede internacional para reunir a representao de todo o conhecimento humano,
disponibilizando-a. Otlet e La Fontaine (1895) citam como exemplo as inciativas da Frana e da
Alemanha, bem como a dos Estados Unidos, na construo de bibliografias nacionais em reas
especficas do conhecimento.
Sob estes pilares, os objetivos do RBU so formulados da seguinte maneira: 1) O RBU
deve ser completo, compreendendo a bibliografia do passado