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DIDÁTICA 15 UNIMES VIRTUAL Aula: 02 Temática: A Prática Educativa, a Prática Pedagógica e a Prática Docente A prática educativa, como qualquer outro fazer humano, pertence a um contexto determinado, ou seja, constitui-se em uma situação histórica determinada sobre certas condi- ções econômicas, sociais e culturais. Em geral, considera-se como prática todo o processo de transformação de certa matéria prima em um produto por um processo humano determinado. No agir sobre o meio, nos modos de se relacionar, nas formas de conheci- mento das coisas e de si mesma, a humanidade vem transformando esse próprio meio. A vida social é uma complexa configuração de práticas. Na organização social temos um conjunto de práticas que cumprem funções mais amplas em relação às demais. Uma delas é a prática econômica que produz os meios materiais necessários para a manutenção e preservação da vida em grupo. A prática educativa está intimamente relacionada com a prática econômica, já que desenvolve, entre muitas outras, as capaci- dades necessárias para a manutenção da produção material e cultural. Desse modo, não podemos estudar a prática educativa no vazio, já que ela é condicionada tanto quanto condicionante de uma formação social determinada. A prática educativa também é uma forma de poder, uma força que pode atuar tanto a favor da manutenção do status quo como para deslocar o grupo hegemônico do poder. A prática educativa, por sua própria estrutura contém uma força reprodutora e transformadora. Algumas tendências pedagógicas carregam as tintas na manutenção da cultura, na instrução do sujeito; enquanto outras carregam na transfor- mação, na crítica do sujeito para que este desenvolva as características humanas para a vida em uma sociedade em constante mudança. A ma- nutenção e a transformação da cultura do grupo social são aspectos in- dissociáveis da prática educativa e cada educador terá que encontrar um possível equilíbrio nesse processo: manter, transmitir o conhecimento, normas, atitudes e valores aceitos como os necessários para a sociedade a que pertence e, ao mesmo tempo, desenvolver a capacidade de ampliar os limites, transgredir ou não o que é admitido como necessário para a sociedade em função de um horizonte, de uma representação desejável de contexto social, pois é nesse processo que a sociedade pode, quiçá, transformar-se.

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Aula: 02

Temática: A Prática Educativa, a Prática Pedagógica e a Prática Docente

A prática educativa, como qualquer outro fazer humano, pertence a um contexto determinado, ou seja, constitui-se em uma situação histórica determinada sobre certas condi-

ções econômicas, sociais e culturais.

Em geral, considera-se como prática todo o processo de transformação de certa matéria prima em um produto por um processo humano determinado. No agir sobre o meio, nos modos de se relacionar, nas formas de conheci-mento das coisas e de si mesma, a humanidade vem transformando esse próprio meio. A vida social é uma complexa configuração de práticas. Na organização social temos um conjunto de práticas que cumprem funções mais amplas em relação às demais. Uma delas é a prática econômica que produz os meios materiais necessários para a manutenção e preservação da vida em grupo. A prática educativa está intimamente relacionada com a prática econômica, já que desenvolve, entre muitas outras, as capaci-dades necessárias para a manutenção da produção material e cultural. Desse modo, não podemos estudar a prática educativa no vazio, já que ela é condicionada tanto quanto condicionante de uma formação social determinada.

A prática educativa também é uma forma de poder, uma força que pode atuar tanto a favor da manutenção do status quo como para deslocar o grupo hegemônico do poder. A prática educativa, por sua própria estrutura contém uma força reprodutora e transformadora.

Algumas tendências pedagógicas carregam as tintas na manutenção da cultura, na instrução do sujeito; enquanto outras carregam na transfor-mação, na crítica do sujeito para que este desenvolva as características humanas para a vida em uma sociedade em constante mudança. A ma-nutenção e a transformação da cultura do grupo social são aspectos in-dissociáveis da prática educativa e cada educador terá que encontrar um possível equilíbrio nesse processo: manter, transmitir o conhecimento, normas, atitudes e valores aceitos como os necessários para a sociedade a que pertence e, ao mesmo tempo, desenvolver a capacidade de ampliar os limites, transgredir ou não o que é admitido como necessário para a sociedade em função de um horizonte, de uma representação desejável de contexto social, pois é nesse processo que a sociedade pode, quiçá, transformar-se.

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Como estamos estudando a prática educativa relativa à ação consciente e deliberada, vamos restringi-la àquela que acontece nas organizações esco-lares, nos sistemas de ensino, lembrando sempre que a prática educativa é muito mais ampla que a prática docente em situações didáticas. Vamos esclarecer sobre o que estamos falando quando utilizamos a expressão prática docente.

A reestruturação dos cursos de Licenciaturas no Brasil, decretada pelo governo federal no ano de 2002, instituiu a terminologia “prática pedagógica” nos cursos de formação

de professores. A expressão “prática pedagógica” desencadeou uma po-lêmica entre os educadores que realizaram muitos debates nas diversas organizações profissionais para chegarem a um acordo sobre tal conceito e delimitar as atividades que seriam validadas nos novos currículos de for-mação de professores. Na perspectiva comportamentalista, a expressão “prática pedagógica” se refere à atividade exclusivamente observável e que gera uma atividade concreta, cujos resultados possam ser registrados e comprovados. Para a abordagem interacionista, a prática pedagógica se refere à atividade que desenvolve o raciocínio do educando e que o leve a resolver problemas. Diante dessa conceituação podemos nos perguntar se a prática pedagógica faz referência à atividade do educador, à atividade do educando ou à qualidade desta atividade?

A prática pedagógica faz referência a todo esse conjunto de aspectos. É por essa razão que, em nosso curso, vamos utilizar a expressão prática do-cente para referir-nos à ação consciente e intencional do professor com a finalidade de intervir nas aprendizagens dos grupos com os quais trabalha. Vale lembrar que, assim como toda prática educativa e pedagógica cum-pre sempre uma função política, mesmo que não se tenha consciência do fato, do mesmo modo, a prática docente, em sua ação didática, também cumpre uma função política, mesmo que o educador não seja consciente desse fato e atue condicionado por toda a legislação educacional vigente. As aprendizagens geram mais aprendizagem, não se desgastam e têm efeitos multiplicadores. Ainda que o propósito do “sistema de ensino” or-ganizado seja reproduzir as relações de produção, relações sociais e cul-turais vigentes, a ação docente desperta poderes intelectuais e deflagra valores nos sujeitos com os quais trabalha. O domínio da leitura, da escrita e do cálculo, em qualquer sociedade, em qualquer coordenada de tempo/espaço, é um passo em direção à autonomia do sujeito.

É importante considerar que neste curso estamos tratando da prática docente em um nível de “abstração da realida-de”, ou seja, estamos separando a situação didática do seu

contexto e repartindo essa ação em aspectos diferenciados que só podem ser separados mentalmente para o estudo da mesma. Quando afirmamos

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que o domínio da leitura, da escrita e do cálculo, é um passo em direção à autonomia do sujeito, também temos consciência da diferença e da de-sigualdade de oportunidades existentes na sociedade brasileira no início do século XXI para a apropriação do capital cultural e das formas em que se universaliza o conhecimento. São limites com os quais trabalhamos diariamente em nossa prática e que, mais do que nunca, justificam uma ação docente consciente para que o sujeito possa, por meio das aprendi-zagens mais elementares, isto é, ler, escrever e contar, tomar o seu rumo em direção à sua autonomia.

A prática docente não é um procedimento robótico nem robotizado que o professor desenvolve de maneira inconsciente e mecânica. É uma ativi-dade intencional, consciente e que só pode ser compreendida, adequada-mente, a partir dos esquemas teóricos que o docente porta em sua baga-gem cultural e que dão sentido a esse fazer.

E para você, o que significa intervir na aprendizagem dos grupos com os quais trabalha? É ensinar? É aprender? É uma ação impositiva? É uma ação autoritária? É uma ação participada? É uma ação monológica? É uma ação dialógica? É uma ação responsável sobre o estar no mundo ou sobre o passar pelo mundo?

Sim, essas perguntas são importantes e vale a pena lembrar que são re-correntes na vida de um docente. Isso significa que em muitas ocasiões da nossa vida profissional vamos nos deparar com as mesmas questões e vamos respondê-las de acordo com as aprendizagens que tenhamos sido capazes de internalizar. Como aprendemos com os demais, vamos buscar compreender como outros educadores têm respondido a essas questões:

Saber que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar possibilidades para que a sua própria produção ou a sua construção. Quando entro em uma sala de aula devo estar sendo um ser aberto a indagações, à curiosidade, às perguntas dos alunos a suas inibi-ções: um ser crítico e inquiridor, inquieto em face da tarefa que tenho - a de ensinar e não a de transferir conhecimento. É preciso insistir: este saber necessá-rio ao professor - que ensinar não é transferir conhe-cimento - não apenas precisa de ser apreendido por ele e pelos educandos nas suas razões de ser - ontoló-gica, política, ética, epistemológica, pedagógica, mas também precisa ser constantemente testemunhado, vivido. (FREIRE, 1997:47)

Paulo Freire sinaliza que a prática docente refere-se à produção de conhe-cimento.

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Ensinar é, antes de mais, fabricar artesanalmente os saberes tornando-os ensináveis, exercitáveis e pas-síveis de avaliação no quadro de uma turma, de um ano, de um horário, de um sistema de comunicação e trabalho. É o que Chevallard, na esteira de Verret, designa por transposição didática. (PERRENOUD, 1993:25).

PERRENOUD (1993) indica que a prática docente se refere à transposição didática. Nesse sentido, a prática docente encontra sua especificidade na transposição didática, isto é, na atividade de tornar compreensíveis co-nhecimentos complexos a diferentes públicos, dependendo da bagagem cultural desse mesmo público. Isso quer dizer que a Ciência, em geral, também resolve problemas do cotidiano. Mesmo as pesquisas mais es-pecializadas, como por exemplo, as da Biogenética com as células tron-co, tratam de resolver problemas de saúde de pessoas concretas. Ocorre que o procedimento científico possui uma determinada lógica e lingua-gem que se especializa e se torna distante da compreensão do senso comum. Logo, o docente realiza essa mediação por meio da transposição didática desse conteúdo para que se torne inteligível para o grupo com o qual trabalha.

A principal referência nos estudos sobre transposição didática é Yves Chevallard. A teoria da transposição didática teve origem na didática das matemáticas, no trabalho de CHEVALLARD (1991), que analisou as trans-formações que sofre o “conceito de distância” desde sua produção no campo científico até a sua introdução nos programas de geometria do ensino fundamental. Para CHEVALLARD (1991), o saber científico sofre um processo de transformação ao se tornar um conhecimento a ser aprendido no espaço escolar que, por sua vez, só chega a ser aprendido em função dessa deformação.

Na opinião comum, a escola ensina as ciências, as quais fizeram suas comprovações em outro local. Ela ensina a gramática porque a gramática, criação secular dos lingüistas, expressa a verdade da língua; ela ensina as ciências exatas, como a matemática, e quando ela se envolve com a matemática moderna é, pensa-se, porque acaba de ocorrer uma revolução na ciência matemática. (...) A tarefa dos pedagogos, su-põe-se, consiste em arranjar os métodos de modo que eles permitam que os alunos assimilem o mais rápido possível e o melhor possível a maior porção possível da ciência de referência. (Chervel 1990: 180)

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O docente realiza a transposição didática à medida que traduz os saberes científicos em atividades, recorta temas, propõe modelos de raciocínio e investigação, critica as proposições existentes, elabora exercícios, re-quer sínteses, avalia a realização das atividades. Para isso ele elabora o programa do curso, o planejamento das aulas, das seqüências didáticas compreensíveis, do tempo que destina às atividades, etc. Nesse sentido, estabelecem-se as “abstrações da realidade”, divisões que só têm sentido na transposição didática.

VADEMARIN (1998) afirma que o processo de transposição didática

é um trabalho complexo que produz um saber espe-cífico. Não se trata da transmissão pura e simples de saberes científicos, mas da seleção de determinados resultados científicos adequados à geração de apren-dizagem, que não se esgota na aquisição de dados e informações (VADEMARIN, 1998:23).

O conhecimento que a instituição escolar difunde é condicio-nado pelas possibilidades de compreensão dos estudantes. Em geral, relaciona-se à possibilidade de compreensão dos

estudantes de acordo com a idade ou, por exemplo, com os estágios de desenvolvimento cognitivo, no modelo genético de Jean Piaget. Também podemos perceber a busca pela adequação do conhecimento à compreen-são do público escolar na seriação e estruturação dos graus de ensino. Por esse motivo, VADEMARIN (1998) destaca

(...) a necessidade do aprimoramento profissional do-cente nos aspectos relativos à produção científica, não como forma de transmitir inovações e descober-tas científicas, mas como a necessidade de preparar a criança e o jovem para pensarem matematicamen-te, cientificamente, gramaticalmente (VADEMARIN, 1998:23).