A Cons. do Tempo M a Baccega

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sobre literatura e outras linguagens

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  • REVISTA USP, So Paulo, n.48, p. 18-31, dezembro/fevereiro 2000-200118

    nmuMARIA APARECIDA BACCEGA

    A construo do campo

    MARIA APARECIDABACCEGA professora-associada da ECA-USP,editora da revistaComunicao e Educao eautora de, entre outros,Comunicao eLinguagem: Discursos eCincia (Moderna).

    REVISTA USP, So Paulo, n.48, p. 18-31, dezembro/fevereiro 2000-200118

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    inEvidencia-se, hoje, uma grande disputa entre os meios decomunicao, de um lado, e as tradicionais agncias de socia-lizao escola e famlia , de outro. Ambos os lados preten-dem ter a hegemonia na influncia da formao de valores,na conduo do imaginrio e dos procedimentos dos indiv-duos/sujeitos.Esse conjunto de relaes que se estabelecem no imagi-nrio de uma dada cultura, de um determinado grupo, umaconstruo coletiva, na qual se baseia a memria social da-quele grupo, e a qual a comunidade procura manter. Essamemria coletiva que vai respaldar o modo que os indiv-duos/sujeitos se vem no confronto com o outro, a aodeles em relao aos demais e em relao s instituies. Asrelaes imagticas tm como base os corpos fsicos. Todocorpo fsico pode ser percebido como smbolo []. E toda

    imagem artstico-simblica ocasionada por um objeto fsico

    particular j um produto ideolgico. Converte-se, assim,

    em signo o objeto fsico, o qual, sem deixar de fazer parte da

    realidade material, passa a refletir e a refratar, numa certa

    medida, uma outra realidade (1).

    As reflexes contidas neste artigotm estado presentes na revista Co-municao & Educao, editadapelo Curso de Ps-graduao latosensu Gesto de ProcessosComunicacionais da Escola de Co-municaes e Artes da Universida-de de So Paulo (ECA-USP) emparceria com a Editora Segmento.A revista encontra-se no stimoano, com 20 nmeros publicados.

    1 Mikhail Baktin, Marxismo e Fi-losofia da Linguagem, SoPaulo, Hucitec, 1988, p. 31.

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    u

    comunicao/educao:alguns caminhos

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    nesse mbito de fico/realidade que

    a disputa se institui, que a busca da

    hegemonia se d. A se constri o campo da

    comunicao/educao.

    Nesse campo se constroem sentidos

    novos, renovados, ou ratificam-se mesmos

    sentidos com roupagens novas, sempre

    inter-relacionados dinmica da socieda-

    de, lugar ltimo e primeiro onde os senti-

    dos verdadeiramente se constroem.

    A sociedade funciona no bojo de um

    nmero infindvel de discursos que se cru-

    zam, se esbarram, se anulam, se comple-

    mentam: dessa dinmica nascem os novos

    discursos, os quais ajudam a alterar os sig-

    nificados dos outros e vo alterando seus

    prprios significados, nos momentos em

    que a materialidade do discurso-texto que

    circula captada pelo enunciatrio/recep-

    tor. Este l/interpreta os discursos a partir

    do dilogo com os demais discursos soci-

    ais. Essa dinmica ocorre tanto em nvel

    sincrnico como diacrnico. As permann-

    cias histricas, muitas vezes sob a forma de

    mitos, provrbios, esteretipos, valores

    positivos ou negativos, tambm cons-

    tituem parte importante desse dilogo en-

    tre os discursos.

    O universo de cada indivduo forma-

    do pelo dilogo desses discursos, nos quais

    seu cotidiano est inserido. E a partir dessa

    materialidade discursiva que se constitui a

    subjetividade. Logo, a subjetividade nada

    mais que o resultado da polifonia que cada

    indivduo carrega.

    O CAMPO DA COMUNICAO

    O campo da comunicao constitui-se

    a partir de uma multiplicidade de discursos

    que originam e configuram a unicidade do

    discurso da comunicao. O comunicador

    o indivduo/sujeito que o assume.

    Enunciador/enunciatrio de todos os dis-

    cursos em constante embate na sociedade,

    ele o mediador da informao coletiva.

    Se, por um lado, o comunicador tem a

    condio de enunciador de um discurso es-

    pecfico, ao produzi-lo ele estar, na verda-

    de, reelaborando a pluralidade de discur-

    sos que recebe: ou seja, estar na condio

    de enunciatrio. Ele , portanto, enuncia-

    dor/enunciatrio.

    O mesmo ocorre com o indivduo/su-

    jeito ao qual se destina o produto: enun-

    ciatrio do discurso da comunicao, este

    indivduo/sujeito tambm enunciatrio

    de todos os outros discursos sociais que

    circulam no seu universo, os quais ele

    mobiliza no processo da leitura/interpre-

    tao. Como a comunicao s se efetiva

    quando ela apropriada e se torna fonte de

    outro discurso, na condio de enun-

    ciatrio est presente a condio de

    enunciador. Ele , portanto enunciatrio/

    enunciador.

    Um dos desafios est contido nessa di-

    nmica: o campo da comunicao consti-

    tui-se de dois plos bsicos, que se

    intercambiam de um lado, enunciador/

    enunciatrio e, de outro, enunciatrio/

    enunciador.

    Tendo que incorporar o discurso dos

    vrios outros que , cada um, resultado dos

    vrios outros universos, compete ao dis-

    curso da comunicao procurar os fios

    ideolgicos (expresso de Bakhtin) com

    os quais conduzir a inter-relao entre eles,

    tecendo-se. Sua trama implica a dialogi-

    cidade, presente na polifonia, numa mani-

    festao das relaes macroestruturais com

    a vida cotidiana.

    O eu plural deve tornar-se claro e ma-

    nifestar essa clareza para o outro; fazer

    aflorar a importncia dos indivduos/sujei-

    tos de ambos os plos, na configurao das

    verdades, dos valores que permeiam o ima-

    ginrio, dos comportamentos que esto

    presentes no cotidiano das pessoas, dos

    grupos, das classes sociais. So essas ver-

    dades, valores e comportamentos que, for-

    mando a conscincia social, ideolgica e

    esttica, vo atualizar as manifestaes dos

    produtos da indstria cultural.

    O estudo desse campo incorpora os re-

    sultados das cincias, sobretudo as sociais.

    No processo mesmo de incorporao, te-

    mos um primeiro momento de

    metassignificao, uma vez que cada cin-

    cia se desloca de seu domnio de origem,

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    com suas configuraes, e passa a fazer

    parte de um outro. Mas h outros proces-

    sos, configurando outros nveis de metas-

    significao: ao compor o novo campo,

    cada cincia vai encontrar-se com outras

    que tambm a figuram nas mesmas condi-

    es, ou seja, na condio de metassigni-

    ficao, e vai dialogar com elas, reconstru-

    indo-se, cada uma delas, nessa interdiscur-

    sividade. A interdiscursividade implica o

    dilogo com os outros discursos, ao mes-

    mo tempo que revela a especificidade do

    discurso construdo nesse processo.

    A Sociologia, a Histria, a Filosofia, a

    Linguagem, etc. ganham outra especifi-

    cidade no dilogo interdiscursivo. Essa

    especificidade ser, agora, no mais a que

    se prende ao domnio de onde provm, mas

    aquela que, no confronto de cada cincia

    com as demais, permite-lhe distinguir-se.

    Desse modo, a apropriao das cincias

    sociais para a constituio desse campo se

    d num processo espiralado de metas-

    significaes, que redundam, obviamente,

    em novas posturas metodolgicas, a partir

    das quais se poder dar conta da efetividade

    dos processos comunicacionais.

    O CAMPO COMUNICAO/

    EDUCAO

    A est a base da construo do campo

    comunicao/educao como novo espa-

    o terico capaz de fundamentar prticas

    de formao de sujeitos conscientes. Tra-

    ta-se de tarefa complexa, que exige o re-

    conhecimento dos meios de comunicao

    como um outro lugar do saber, atuando

    juntamente com a escola e outras agncias

    de socializao.

    O encontro comunicao/educao leva

    a nova metassignificao, ressemantizando

    os sentidos, exigindo, cada vez mais, a

    capacidade de pensar criticamente a reali-

    dade, de conseguir selecionar informao

    (disponvel em nmero cada vez maior

    graas tecnologia, Internet, por exemplo)

    e de inter-relacionar conhecimentos.

    O desafio, hoje, a interpretao do

    mundo em que vivemos, uma vez que as

    relaes imagticas esto carregadas da

    presena da mdia. Trata-se de um mundo

    construdo pelos meios de comunicao,

    que selecionam o que devemos conhecer,

    os temas a serem pautados para discusso

    e, mais que isso, o ponto de vista a partir do

    qual vamos compreender esses temas. Eles

    se constituem em educadores privilegiados,

    dividindo as funes antes destinadas

    escola. E tm levado vantagem.

    O campo da comunicao/educao

    um dos desafios maiores da contempora-

    neidade. No se reduz a fragmentos, como

    a eterna discusso sobre a adequao da

    utilizao das tecnologias no mbito esco-

    lar, quer em escolas com aparato tecnol-

    gico de primeira linha quer nas escolas de

    ps no cho, tendo em vista que a edio

    do mundo realizada pelos meios est pre-

    sente em alunos, professores, cidados. Sua

    complexidade obriga a incluso de temas

    como mediaes, criticidade, informao

    e conhecimento, circulao das formas sim-

    blicas, ressignificao da escola e do pro-

    fessor, recepo, entre muitos outros.

    DO MUNDO EDITADO

    CONSTRUO DO MUNDO

    Hoje, o mundo trazido at o horizonte

    de nossa percepo, at o universo de nos-

    so conhecimento. Como no podemos es-

    tar presentes em todos os acontecimentos,

    em todos os lugares, temos que confiar nos

    relatos. O mundo que nos trazido pelos

    relatos, que assim conhecemos e a partir do

    qual refletimos, um mundo que nos chega

    editado, ou seja, ele redesenhado num

    trajeto que passa por centenas, s vezes

    milhares de mediaes, at que se manifes-

    te no rdio, na televiso, no jornal. Ou na

    fala do vizinho e nas conversas dos alunos.

    So essas mediaes instituies e

    pessoas que selecionam o que vamos

    ouvir, ver ou ler; que fazem a montagem do

    mundo que conhecemos.

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    Aqui est um dos pontos bsicos da

    reflexo sobre o espao onde se encontram

    comunicao e educao: que o mundo

    editado e assim ele chega a todos ns; que

    sua edio obedece a interesses de diferen-

    tes tipos, sobretudo econmicos, e que,

    desse modo, acabamos por perceber at a

    nossa prpria realidade do jeito que ela foi

    editada.

    Editar , portanto, construir uma reali-

    dade outra, a partir de supresses ou acrs-

    cimos em um acontecimento. Ou, muitas

    vezes, apenas pelo destaque de uma parte

    do fato em detrimento de outra.

    Editar reconfigurar alguma coisa, dan-

    do-lhe novo significado, atendendo a de-

    terminado interesse, buscando um deter-

    minado objetivo, fazendo valer um deter-

    minado ponto de vista.

    Essa realidade outra que a edio cons-

    tri reconfigura-se no enunciatrio/recep-

    tor, com seu universo cultural e dinmica

    prprios. Esse o percurso da comunica-

    o, desde a mais democrtica, a que usa

    apenas o suporte do aparelho fonador, at

    aquela que a tecnologia possibilita: o rela-

    to, em tempo real, de fatos (escolhidos entre

    muitos) que acontecem em espaos distan-

    tes, na Terra ou no espao.

    Se o mundo a que temos acesso este,

    o editado, nele, com ele e para ele que se

    impe construir a cidadania. O desafio,

    ento, como trabalhar esse mundo edita-

    do, presente no cotidiano, que penetra ardi-

    losamente em nossas decises e que, pela

    persuaso que o caracteriza, assume o lu-

    gar de verdade nica.

    Eis outro ponto importante no proces-

    so de reflexo sobre o campo comunica-

    o/educao: j no se trata mais de dis-

    cutir se devemos ou no usar os meios no

    processo educacional ou de procurar es-

    tratgias de educao para os meios; tra-

    ta-se de constatar que eles so os educa-

    dores primeiros, pelos quais passa a cons-

    truo da cidadania. desse lugar que

    devemos nos relacionar com eles. E esse

    o lugar onde temos que esclarecer qual

    cidadania nos interessa.

    Afinal, so eles a fonte primeira que

    educa a todos os educadores: pais, profes-

    sores, agentes de comunidade, etc. Preci-

    samos procurar entend-los bem, saber ler

    criticamente os meios de comunicao, para

    conseguirmos percorrer o trajeto que vai

    do mundo que nos entregam pronto, edita-

    do, construo do mundo que permite a

    todos o pleno exerccio da cidadania.

    Essa cultura da mdia se manifesta em

    um conjunto articulado e diversificado de

    produtos (plo do enunciador/emissor) que

    entram em relao com o conjunto articu-

    lado e diversificado de vivncias do enun-

    ciatrio/receptor, cujo universo de valores,

    posto em movimento, ativa os significados

    dos produtos. Na verdade, a cultura da mdia

    no est no enunciador/emissor, no est

    no enunciatrio/receptor: est no territrio

    que se cria nesse encontro, gerando signi-

    ficados particulares, que, se contm inter-

    seo com cada um dos plos, no se limi-

    tam a nenhum deles. Caso contrrio, a mdia

    seria apenas veculo de significados e no

    construtora de significados. Sua comple-

    xidade reside exatamente no fato de, cons-

    truindo significados no territrio que in-

    clui cada um dos plos enunciador/emis-

    sor enunciatrio/receptor , ela exigir

    permanentemente a dialtica entre o j vis-

    to e o por ver, ou seja, a novidade que res-

    ponde pelas e alimenta as mudanas cont-

    nuas de identidade versus a estabilidade que

    cada grupo social busca em sua dinmica.

    O nico limite o horizonte da formao

    social na qual esto e que inclui tanto o j

    manifesto quanto o ainda virtualmente

    contido como possibilidades a serem rea-

    lizadas.

    Por essas e incontveis outras razes,

    podemos perceber como fundamental a

    construo do campo comunicao/educa-

    o. Ele inclui mas no se resume a

    educao para os meios, leitura crtica dos

    meios, uso da tecnologia em sala de aula,

    formao do professor para o trato com os

    meios, etc. Ele se rege, sobretudo, pela

    construo da cidadania, pela insero neste

    mundo editado, com o qual todos convive-

    mos, no qual todos vivemos e que quere-

    mos modificar.

    O campo comunicao/educao cons-

    tri-se num movimento que percorre o todo

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    e as partes, em intercmbio permanente.

    Ou seja: do territrio digital arte-educa-

    o, de meio ambiente educao a distn-

    cia, entre muitos outros tpicos, sem es-

    quecer os vrios suportes, as vrias lingua-

    gens televiso, rdio, teatro, cinema, jor-

    nal, etc. Tudo percorrido com olhos da

    congregao dessas agncias de formao:

    a escola e os meios, sempre no sentido da

    construo da cidadania.

    CENRIOS: DA INFORMAO AO

    CONHECIMENTO

    Cada poca vivida pela humanidade

    tem caractersticas prprias, apresentan-

    do, dialeticamente, aspectos positivos e

    negativos.

    As distines entre as pocas podem ser

    marcadas, entre outros aspectos, pela for-

    mao e expanso dos mercados, que de-

    terminou plos de concentrao, baseados

    na busca permanente de acumulao do

    capital. Otvio Ianni, em As Economias-

    mundo, aponta as diversidades e desigual-

    dades com as quais cada totalidade se cons-

    titui. Segundo o autor, cada poca

    um todo em movimento, heterogneo,

    integrado, tenso e antagnico. sempre

    problemtico, atravessado pelos movimen-

    tos de integrao e fragmentao. Suas

    partes, compreendendo naes e naciona-

    lidades, grupos e classes sociais, movimen-

    tos sociais e partidos polticos, conjugam-

    se de modo desigual, articulado e tenso, no

    mbito do todo. Simultaneamente, esse todo

    confere outros e novos significados e mo-

    vimentos s partes. Anulam-se e multipli-

    cam-se os espaos e os tempos, j que se

    trata de uma totalidade heterognea, con-

    traditria, viva, em movimento (2).

    Fredric Jameson aponta trs perodos

    de expanso capitalista, caracterizados por

    rupturas tecnolgicas. Segundo ele,

    houve trs momentos fundamentais no

    capitalismo, cada um marcando uma ex-

    panso dialtica com relao ao estgio

    anterior. O capitalismo de mercado, o est-

    gio do monoplio ou do imperialismo, e o

    nosso, erroneamente chamado de ps-in-

    dustrial, mas que poderia ser mais bem

    designado como o do capital multinacional.

    [] Esse capitalismo tardio, ou multina-

    cional, ou de consumo, longe de ser incon-

    sistente com a grande anlise do sculo XIX

    de Marx, constitui, ao contrrio, a mais pura

    forma de capital que jamais existiu, uma

    prodigiosa expanso do capital que atinge

    reas at ento fora do mercado.

    Nessa fase, segundo o autor, deve-se

    ressaltar, a ascenso das mdias e da in-

    dstria da propaganda (3).

    Resultado da fase contempornea do

    capital, a cultura manifesta fragmentao e

    globalizao num processo de comple-

    mentao que se d no mbito do mercado.

    Como lembra Martn-Barbero (4), o global

    o espao novo produzido pelo mercado e

    pelas tecnologias, que dependem dele para

    sua permanente expanso.

    O mundo, que sempre esteve em per-

    manente mudana, hoje tem altamente

    multiplicada a rapidez dessas mudanas,

    devido ao avano das tecnologias. esse o

    cenrio que possibilita o fortalecimento das

    corporaes internacionais e conseqente

    ruptura das fronteiras nacionais, atingindo

    reas at ento fora do mercado.

    Essa realidade tem como sustentculo

    os meios de comunicao, mediadores pri-

    vilegiados entre ns e o mundo, e que cum-

    prem o papel de costurar as diferentes rea-

    lidades. So os meios de comunicao que

    divulgam, em escala mundial, informaes

    (fragmentadas) hoje tomadas como conhe-

    cimento, construindo, desse modo, o mun-

    do que conhecemos. Trata-se, na verdade,

    do processo metonmico a parte escolhi-

    da para ser divulgada, para ser conhecida,

    vale pelo todo. como se o mundo todo

    fosse constitudo apenas por aqueles fatos/

    notcias que chegam at ns.

    Consideramos, porm, que informao

    no conhecimento. Poder at ser um

    passo importante. O conhecimento impli-

    2 Otvio Ianni, As Economias-mundo, in Teorias da Globa-lizao, Rio de Janeiro, Civili-zao Brasileira, 1995, p. 43.

    3 Fredric Jameson, A LgicaCultural do Capitalismo Tar-dio, in Ps-modernismo. ALgica Cultural do CapitalismoTardio, t rad. Maria El isaVelasco, So Paulo, tica,1996, p. 61.

    4 Jesus Mart n-Barbero, LaComunicacin Plural: Alteridady Socialidad, in Dia-logos 40,set. de 1994, pp. 73-9.

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    ca crtica. Ele se baseia na inter-relao e

    no na fragmentao. Todos temos obser-

    vado que essa troca do conhecimento pela

    informao tem resultado numa diminui-

    o da criticidade.

    O conhecimento um processo que

    prev a condio de reelaborar o que vem

    como um dado, possibilitando que no

    sejamos meros reprodutores; inclui a capa-

    cidade de elaboraes novas, permitindo

    reconhecer, trazer superfcie o que ainda

    virtual, o que, na sociedade, est ainda

    maldesenhado, com contornos borrados.

    Para tanto, o conhecimento prev a cons-

    truo de uma viso que totalize os fatos,

    inter-relacionando todas as esferas da soci-

    edade, percebendo que o que est aconte-

    cendo em cada uma delas resultado da

    dinmica que faz com que todas interajam,

    dentro das possibilidades daquela forma-

    o social, naquele momento histrico;

    permite perceber, enfim, que os diversos

    fenmenos da vida social estabelecem suas

    relaes tendo como referncia a socieda-

    de como um todo. Para tanto, podemos

    perceber, as informaes fragmentadas

    no so suficientes.

    Os meios de comunicao, sobretudo a

    televiso, ao produzirem essas informaes,

    transformam em verdadeiros espetculos

    os acontecimentos selecionados para se

    tornarem notcias. J na dcada de 60, Guy

    Debord percebia na vida contempornea

    uma sociedade de espetculo, em que a

    forma mais desenvolvida de mercadoria era

    antes a imagem do que o produto material

    concreto, e que, na segunda metade do

    sculo XX, a imagem substituiria a estrada

    de ferro e o automvel como fora motriz

    da economia (5).

    Por sua condio de espetculo, pa-

    rece que o mais importante na informao

    passa a ser aquilo que ela tem de atrao, de

    entretenimento. A informao, que parece

    ocupar o lugar desse conhecimento, tor-

    nou-se, ela prpria, a base para a reprodu-

    o do sistema, uma mercadoria a mais em

    circulao nessa totalidade. A confuso

    entre conhecimento e informao, entre

    totalidade e fragmentao, leva concep-

    o de que a informao veiculada pelos

    meios suficiente para a formao do cida-

    do. Na verdade, o conhecimento continua

    a ser condio indispensvel para a crtica.

    RESSIGNIFICAO DA ESCOLA:

    A CIRCULAO DA IDEOLOGIA

    A presena, em maior ou menor inten-

    sidade de acordo com a classe social, da

    tecnologia na sociedade, e particularmente

    na escola, constatvel. Dados recentes

    indicam que existem hoje sete milhes de

    usurios da Internet em toda a Amrica

    Latina, dos quais quatro milhes no Brasil.

    Prev-se que sero 34 milhes at o fim do

    ano 2000 (6). Alm disso, preciso lem-

    brar, entre outros, as grandes redes interna-

    cionais de televiso, o alcance do rdio, a

    velocidade da divulgao das informaes

    selecionadas pelas agncias internacionais

    de notcias. Tudo isso pede uma reflexo

    sobre as representaes, os valores, a ideo-

    logia que circulam na rede e influenciam os

    novos sujeitos que resultam dessa realida-

    de e que trabalham, em conjunto, na insti-

    tuio escolar, sejam professores, alunos,

    funcionrios, pais e outros interessados.

    Todos eles se congregam em torno de ob-

    jetivos comuns. So todos participantes de

    uma dada realidade social, caracterizada

    por uma ideologia. A ideologia uma das

    formas de prxis social: aquela que, partin-

    do da experincia imediata dos dados da

    vida social, constri abstratamente um sis-

    tema de idias ou representaes sobre a

    realidade (7).

    A sociedade que forma nossos alunos e

    nos forma produz as representaes, as

    formas simblicas pelas quais se rege, que

    se transformam em bens simblicos no

    processo de circulao, o qual se d de

    acordo com as caractersticas da formao

    socioeconmica. Alis, as formas simbli-

    cas so prprias do ser humano: a lngua,

    criao que facultou ao homem projetar,

    um bom exemplo. O que caracteriza a con-

    temporaneidade no , portanto, a circula-

    o de bens simblicos, mas a grande me-

    5 Apud Steven Connor, CulturaPs-moderna. Introduo s Te-orias do Contemporneo, trad.Adail Ubirajara Sobral e Ma-ria Stela Gonalves, So Pau-lo, Loyola, 1992, p. 48.

    6 Http://www.affaritaliani.it/magazine_home.htm Diz anota que, por isso, as aten-es se voltam para StarmediaNetwork, sociedade brasileiraque oferece servios online emespanhol e portugus.

    7 Marilena de S. Chau, O que Ideologia, 13a ed., So Paulo,Brasiliense, 1983, p. 106.

  • REVISTA USP, So Paulo, n.48, p. 18-31, dezembro/fevereiro 2000-2001 25

    diao, resultado da tecnologia, que se in-

    terps nessa circulao: os meios de comu-

    nicao, os quais permitem a formao de

    redes planetrias, nas quais circulam valo-

    res, que atendem a interesses determina-

    dos. Esse um dos aspectos da ideologia.

    Segundo Chau,

    a ideologia um conjunto lgico, siste-

    mtico e coerente de representaes (idias

    e valores) e de normas ou regras (de condu-

    ta) que indicam e prescrevem aos membros

    da sociedade o que devem pensar, o que

    devem valorizar, o que devem sentir e como

    devem sentir, o que devem fazer e como

    devem fazer. Ela , portanto, um corpo

    explicativo (representaes) e prtico (nor-

    mas, regras, preceitos) de carter pres-

    critivo, normativo, regulador, cuja funo

    dar aos membros de uma sociedade divi-

    dida em classes uma explicao racional

    para as diferenas sociais, polticas e cultu-

    rais, sem jamais atribuir tais diferenas

    diviso da sociedade em classes, a partir

    das divises na esfera da produo. Pelo

    contrrio, a funo da ideologia a de apa-

    gar as diferenas como as de classes e de

    fornecer aos membros da sociedade o sen-

    timento da identidade social, encontrando

    certos referenciais identificadores de todos

    e para todos, como, por exemplo, a Huma-

    nidade, a Liberdade, a Igualdade, a Nao

    ou o Estado (8).

    No momento em que se fala tanto da

    ressignificao do papel da escola e do

    professor, a partir da interveno da tecno-

    logia, fundamental nos aproximarmos das

    questes referentes ideologia que circula

    nos meios de comunicao, nas redes pla-

    netrias e, verificando essa circulao, pro-

    curar saber como a ideologia opera nessa

    realidade.

    Ideologia e construo de sentido

    Ao tratar de ideologia, no podemos

    prescindir de buscar o lugar social da pro-

    duo das formas simblicas que circulam

    nas redes, o lugar social dos receptores

    dessas formas e as formaes sociais nas

    quais ambos se encontram.

    Segundo Thompson,

    o conceito de ideologia pode ser usado

    para se referir s maneiras como o sentido

    (significado) serve, em circunstncias par-

    ticulares, para estabelecer e sustentar rela-

    es de poder que so sistematicamente

    assimtricas que eu chamarei de rela-

    es de dominao. Ideologia, falando de

    uma maneira mais ampla, sentido a ser-

    vio do poder. Conseqentemente, o estu-

    do da ideologia exige que investiguemos

    as maneiras como o sentido construdo e

    usado pelas formas simblicas de vrios

    tipos, desde as falas lingsticas cotidianas

    at s imagens e aos textos complexos (9).

    A construo do sentido das formas sim-

    blicas est diretamente relacionada for-

    mao socioeconmica. E s a que pode-

    mos verificar em que direo elas esto,

    predominantemente, sendo usadas: se na

    manuteno do status quo, servindo ape-

    nas para perpetuar as relaes de poder, se

    na sua modificao, trilhando o caminho

    da mudana dessas relaes de poder. Afi-

    nal, diz Thompson, as formas simblicas,

    ou sistemas simblicos, no so ideolgi-

    cos em si mesmos: se eles so ideolgicos,

    e o quanto so ideolgicos, depende das

    maneiras como eles so usados e entendi-

    dos em contextos sociais especficos (10).

    Neste momento em que o mundo est

    desfraldado em um nmero enorme de tem-

    pos histricos e culturais, neste momento

    em que as produes, sobretudo no mbito

    da televiso, viajam pelo mundo e atingem

    praticamente todas as sociedades, nesses

    tempos/espaos dspares, muitas vezes em

    tempo real, pode-se perceber a divulgao,

    sob forma prescritiva, desse conjunto de

    idias e valores, de normas ou de regras,

    que procuram dar suas prprias explica-

    es para as diferenas sociais, polticas e

    culturais, objetivando o apagamento des-

    sas diferenas, como lembra Chau. Man-

    ter, por exemplo, uma emissora de televi-

    so no ar durante algumas horas do dia, e

    8 Idem, ibidem, pp. 113-4.

    9 John B. Thompson, Ideologiae Cultura Moderna. Teoria So-cial Crtica na Era dos Meiosde Comunicao de Massa,Petrpolis,Vozes, 1995, p.16.

    10 Idem, ibidem, p. 17. O grifo nosso. Parece-nos importantedestacar a importncia do en-tendimento, da interpretao,da recepo.

  • REVISTA USP, So Paulo, n.48, p. 18-31, dezembro/fevereiro 2000-200126

    mais ainda quando se trata de uma grade de

    programao para 24 horas, tarefa

    herclea que exige um trnsito muito gran-

    de de produes, o que aponta para a per-

    manncia desse procedimento.

    No se nega que h diversidade no plo

    da produo e que mais extensa ainda a

    diversidade do entendimento, da interpre-

    tao da recepo dessas representaes.

    Cabe escola e a um dos aspectos da

    ressignificao de seu papel desvelar

    como opera a ideologia, ensinar a ler ade-

    quadamente as formas simblicas que cir-

    culam na mdia, conformando a realidade.

    Ideologia e cotidiano

    no cotidiano que se jogam as modifi-

    caes ou manuteno da ideologia

    construda. no cotidiano, onde as atitudes,

    os fazeres se do num clima de relaxamento

    maior, que se torna mais fcil o jogo de in-

    fluncias. Como lembra Agnes Heller, na

    vida cotidiana o homem coloca em funcio-

    namento todos os seus sentidos, todas as

    suas capacidades intelectuais, suas habili-

    dades manipulativas, seus sentimentos, pai-

    xes, idias, ideologias. E exatamente por

    isso nenhuma delas pode realizar-se, nem

    de longe, em toda sua intensidade (11).

    Por isso, as manifestaes de poder que

    mais atingem as pessoas so aquelas que

    regem as atividades cotidianas. Na produ-

    o dos meios de comunicao, em qual-

    quer gnero, utiliza-se sobremaneira do

    cotidiano.

    Nesse cotidiano, que inclui o trabalho e

    a vida privada, o lazer, a vida social orga-

    nizada e o intercmbio, o sujeito amadure-

    ce. Esse processo de amadurecimento pas-

    sa por grupos (famlia, escola). So esses

    grupos que estabelecem a mediao entre

    o indivduo e os costumes, as normas e a

    tica da sociedade. Ressalta-se, desse modo,

    o papel da escola, grupo privilegiado de

    mediao. Mas, lembra Agnes Heller,

    o homem no ingressa nas fileiras dos

    adultos, nem as normas assimiladas ganham

    valor, a no ser quando essas comunicam

    realmente ao indivduo os valores das inte-

    graes maiores, quando o indivduo sain-

    do do grupo (por exemplo, da famlia)

    capaz de se manter autonomamente no

    mundo das integraes maiores, de orien-

    tar-se em situaes que j no possuem a

    dimenso do grupo humano comunitrio,

    de mover-se no ambiente da sociedade em

    geral e, alm disso, de mover por sua vez

    esse mesmo ambiente (12).

    escola compete, portanto, capacitar o

    aluno para no apenas mover-se na soci-

    edade, seguindo o que e como deve sen-

    tir e fazer, mas, sobretudo, ter condies

    de mover, de modificar esse mesmo ambi-

    ente, o que s pode acontecer a partir da

    ressignificao dos sentidos, da reconstru-

    o das normas e regras prescritas.

    Circulao das formas simblicas

    As formas simblicas, as representaes

    circulam entre sujeitos, entre os quais obri-

    gatoriamente haver uma interseo, mai-

    or ou menor, de interpretao, a qual lhes

    permite compreender o que vem, ouvem

    ou lem: permite-lhes comunicar-se. Ou

    seja, as formas simblicas emergem do

    real e so constitutivas desse real.

    Assim, por exemplo: quando uma teleno-

    vela apresentada, ela estar sendo vista

    por um grande nmero de pessoas perten-

    centes a diferentes regies geogrficas, com

    culturas especficas. As formas simblicas

    que circulam na telenovela so recons-

    trudas e interpretadas, nessas vrias cultu-

    ras, como outras formas simblicas, de

    modo que possam estar vinculadas quela

    cultura, de modo que pertenam quele

    universo, garantindo-se o mnimo de inter-

    seo. Em outras palavras: o prprio re-

    ceptor reconstri o plo da emisso. Evi-

    dentemente, e com mais fora, o mes-

    mo se d quando qualquer programa de

    mdia produzido em um determinado pas

    circula em outro, ou, continuando com a

    telenovela brasileira, quando ela apresen-

    11 Agnes Heller, O Cotidiano e aHistria, 3a ed., Rio de Janeiro,Paz e Terra, 1989, pp. 17 esegs.

    12 Idem, ibidem, p. 19.

  • REVISTA USP, So Paulo, n.48, p. 18-31, dezembro/fevereiro 2000-2001 27

    m

    13 John B. Thompson, Ideologia eCultura Moderna, op. cit., p.21.

    14 Jess Martn-Barbero, CidadeVirtual: Novos Cenrios daComunicao, in Comunica-o & Educao, no 11, SoPaulo, CCA-ECA-USP; Moder-na, jan.-abr./1998, p. 64.

    cou

    i cn

    a

    tada em pases to diferentes do nosso, como

    o caso, para citar apenas um, de Escrava

    Isaura, na China (pas que, por sua vez, se

    constitui de um nmero imenso de cultu-

    ras). H os que afirmam que o grande su-

    cesso dessa novela em todo o mundo se

    deve ao fato de ela ser um hino liberdade,

    uma denncia da opresso. Ser?

    Qualquer que seja a produo dos meios

    de comunicao, a circulao das formas

    simblicas constitui a grande mediao que

    se constata na cultura moderna, ou seja, a

    midiao da cultura moderna, caracteri-

    zada, no dizer de Thompson, pela prolife-

    rao rpida de instituies e meios de

    comunicao de massa e o crescimento de

    redes de transmisso atravs das quais for-

    mas simblicas mercantilizadas se torna-

    ram acessveis a um grupo cada vez maior

    de receptores (13).

    H um rompimento, um distanciamento

    entre o enunciador/emissor e o enunciatrio/

    receptor. A interao desses dois plos se

    d de outro modo, em outro lugar. E

    isso cria novas relaes sociais, novos com-

    portamentos culturais. Ou, como diz

    Martn-Barbero (14), enquanto o cinema

    catalisava a experincia da multido, pois

    era em multido que os cidados exerciam

    seu direito cidade, o que agora a televiso

    catalisa , pelo contrrio, a experincia

    domstica e domesticada, pois a partir

    da casa que as pessoas exercem agora,

    cotidianamente, sua participao na cida-

    de. A propsito, uma propaganda da

    Starmedia, veiculada at recentemente,

    afirmava, com imagens: no preciso ir

    para estar.

    Nesse contexto, o que vemos o cresci-

    mento clere de redes de transmisso, a

    formao de conglomerados no campo dos

    meios de comunicao, fazendo circular

    essas formas simblicas, as quais se

    infiltram nas culturas, mediando-as. Na

    verdade, o desenvolvimento dos meios de

    comunicao de massa e seu corresponden-

    te papel de mediadores da cultura, divul-

    gadores de ideologia, se d juntamente com

    o desenvolvimento do capitalismo indus-

    trial e com o nascimento do Estado moder-

    no e suas formas de participao poltica.

  • REVISTA USP, So Paulo, n.48, p. 18-31, dezembro/fevereiro 2000-200128

    Hoje, na etapa que Jameson (15) chama de

    capitalismo tardio, eles se colocam como

    centrais na construo do chamado pensa-

    mento nico, que serve para sustentar o

    quase falido projeto neoliberal e apontar

    caminhos para sua mudana, sem perda da

    hegemonia pelos que detm o poder.

    Assim, podemos verificar a importn-

    cia dos meios de comunicao para a dis-

    cusso da ideologia. Com eles, a produ-

    o e circulao de formas simblicas se

    d no apenas de maneira rpida, como

    tambm extrapola o espao e o tempo,

    superando o contexto social no qual so

    produzidas, afetando pessoas em lugares

    distantes e em culturas diferentes. Desse

    modo eles se tornaram bsicos para a

    operacionalizao da ideologia, entendi-

    da como corpo explicativo e prtico de

    carter prescritivo, como diz Chau, como

    produo de sentido dos bens simblicos,

    acrescendo-se Thompson, ou como base

    das relaes imagticas.

    No se conclua, porm, que os meios de

    comunicao representam o nico fator de

    transmisso da ideologia nas sociedades

    modernas. Embora se constituam em fator

    privilegiado, pois intervm em todas as

    esferas, a operacionalizao da ideologia

    tambm se d nas falas despreocupadas do

    cotidiano, arena onde normalmente se joga

    o futuro, e em todos os discursos sociais

    nos quais se banham os sujeitos. Algumas

    instituies, evidentemente, se destacam:

    entre elas, a escola.

    Consideramos, por isso, de extrema

    importncia a discusso das questes re-

    ferentes ideologia, neste momento em

    que a escola, instncia fundamental de so-

    cializao, lugar privilegiado dos jogos do

    cotidiano, imbrica-se com os meios de co-

    municao e se abre para os usos da tecno-

    logia em seus processos. Se por um lado a

    comunicao de massa se tornou um fator

    fundamental de transmisso de ideologia

    na sociedade moderna, por outro, im-

    portante no se esquecer de que a ideolo-

    gia opera numa grande variedade de con-

    textos da vida cotidiana: das conversas

    entre amigos solenidade das agncias de

    educao.

    RECEPO: NOVA PERSPECTIVA

    NOS ESTUDOS DE COMUNICAO

    Conta-se que um intelectual famoso foi

    dar uma conferncia dedicada aos aspectos

    matemticos do corte da roupa. O tema

    atraiu um pblico inesperado: estilistas,

    mulheres interessadas em moda, etc. Mas a

    primeira frase do conferencista Supo-

    nhamos, para simplificar, que o corpo hu-

    mano tenha a forma de esfera afugen-

    tou-os. Ficaram na sala apenas os matem-

    ticos, para quem era dirigida a conferncia.

    Para eles nada havia de assombroso naque-

    la frase. Desse modo, selecionou-se o audi-

    trio (16).

    Quisemos comear contando esse caso

    para deixar registradas duas chaves de lei-

    tura: a) quando tratamos de recepo, esta-

    mos tratando tambm do outro plo: o da

    emisso. S o encontro dos dois constitui a

    comunicao. Por isso, prefervel falar

    sempre em campo da comunicao. Os

    estudos de recepo no so um lado novo

    da comunicao: trata-se apenas de uma

    nova perspectiva desses estudos, a qual vem

    se desenvolvendo nas ltimas dcadas; b)

    quando se fala em comunicao, no esta-

    mos tratando apenas daquela veiculada

    pelos suportes tecnolgicos (chamados

    meios de comunicao, mdia), embora os

    consideremos de extrema importncia na

    atualidade, configurando-se, inclusive,

    como destacados construtores de realida-

    des. Comunicao interao entre sujei-

    tos que, para tanto, podem utilizar-se pre-

    dominantemente e s vezes to-somente

    do mais democrtico de todos os supor-

    tes: o aparelho fonador. As feiras, a litera-

    tura de cordel, o circo, o teatro, o folhe-

    tim, o carnaval, entre muitas outras, confi-

    guram-se nessa modalidade de comunica-

    o e constituem as matrizes histricas dos

    produtos dos meios de comunicao, tal

    qual os conhecemos hoje.

    Para que haja comunicao, preciso

    que os interlocutores tenham uma mem-

    ria comum, participem de uma mesma

    cultura. Isso porque a comunicao se

    15 F. Jameson, A Lgica Culturaldo Capitalismo Tardio, in Ps-modernismo, So Paulo, tica,1996, pp. 27-79.

    16 Iuri M. Lotman, El Texto y laEstrutura del Auditorio (O Tex-to e a Estrutura do Auditrio),in Critrios 31, La Habana,Casa de las Amricas/UNEAC, jan.-jul./1994, pp.229-36.

  • REVISTA USP, So Paulo, n.48, p. 18-31, dezembro/fevereiro 2000-2001 29

    manifesta nos discursos e os discursos que

    circulam na sociedade se constituem a par-

    tir da intertextualidade, que Chabrol

    conceitua assim: Trata-se de todos os fe-

    nmenos de citao, referncia, retomada,

    emprstimo, tranformao, derivao, des-

    vio, inverso entre textos, contemporneos

    ou no, na esfera dos discursos sociais, quer

    seja no interior de um mesmo domnio, quer

    seja entre suportes miditicos ou ainda entre

    domnios diversos (mdias, literatura, ci-

    nema, publicidade, etc.) (17).

    Desse modo, vemos que todo discurso

    se constitui a partir de sua inter-relao com

    os outros e s assim poder ser interpreta-

    do. Bakhtin, um dos mais importantes te-

    ricos da linguagem, tratando da linguagem

    verbal, afirma que a verdadeira substncia

    da lngua a interao verbal (e no o sis-

    tema abstrato de formas lingsticas). Essa

    realidade fundamental da lngua, segundo

    o autor, manifesta-se no dilogo: Pode-se

    compreender a palavra dilogo no ape-

    nas como a comunicao, em voz alta, de

    duas pessoas colocadas face a face, mas

    toda comunicao verbal, de qualquer tipo

    que seja (18). E continua, falando sobre o

    discurso:

    Ele responde a alguma coisa, refuta, con-

    firma, antecipa as respostas e objees

    potenciais, procura apoio etc. Qualquer

    enunciao, por mais significativa e com-

    pleta que seja, constitui apenas uma frao

    de uma corrente de comunicao verbal

    ininterrupta (concernente vida cotidiana,

    literatura, ao conhecimento, poltica,

    etc.). Mas essa comunicao verbal

    ininterrupta constitui, por sua vez, apenas

    um momento na evoluo contnua, em

    todas as direes, de um grupo social de-

    terminado (19).

    Cada discurso, quer use apenas a voz ou

    a tecnologia mais avanada satlite, por

    exemplo , , na verdade, a atualizao de

    um processo de interlocuo entre vrios

    discursos, manifestao de dilogos, entre

    os mais diversos gneros e at entre as mais

    diferentes pocas. Assim, tanto o plo da

    emisso, aquele que produz o programa,

    que escreve o jornal, quanto o plo da re-

    cepo, aquele que v, ouve ou l o produ-

    to, s tm sua completude sacramentada,

    s significam pela via desse dilogo. Tra-

    ta-se de dilogo que tem como cenrio uma

    determinada cultura, e sem o qual no ha-

    veria (no se poderiam constituir) a teleno-

    vela, o noticirio, a msica, etc. No have-

    ria, inclusive, os programas policiais, no

    rdio e na televiso, que causam tanta po-

    lmica. Sem esse dilogo com a cultura,

    com as referncias culturais, de ambos os

    plos, com a cultura e entre eles mesmos,

    teramos uma parcialidade que impediria a

    constituio de sentido.

    Toda a produo dos meios de comuni-

    cao est, portanto, marcada pelos pro-

    cessos de interpretao-recepo de outros

    discursos (miditicos ou no) efetuados

    pelo seu produtor. Existir sempre um di-

    logo, uma interlocuo, ainda que mediata,

    indeterminada, at mesmo tnue, como

    lembra Chabrol.

    So as referncias que vo traando

    percursos de leitura. Por isso dizemos que

    a comunicao est imersa na cultura.

    uma prtica cultural que produz significa-

    dos, ou seja, a partir do que est e j

    naquela cultura, ressemantizam-se os sig-

    nificados em cada ato de comunicao.

    Implica sempre, como vimos, emisso e

    recepo, resultando na construo de

    sentidos novos, renovados ou mesmos

    sentidos reconfigurados , produzidos

    nesse encontro.

    Por isso se fala em campo da comunica-

    o. Cada discurso, cada programa dos

    meios de comunicao ser produzido e

    interpretado, entendido a partir das refe-

    rncias de sua cultura. E ainda mais: nos

    processos de criao de sentidos, os produ-

    tores e os receptores, na sua condio de

    atores sociais, mobilizam fatores at inusi-

    tados. Podem utilizar-se, por exemplo, de

    certas normas e padres, considerados ar-

    caicos, mas que esto presentes na mem-

    ria coletiva, revivendo-os em determina-

    das situaes contemporneas.

    Portanto, o significado da comunicao,

    as significaes dos produtos culturais,

    incluindo os produtos dos meios de comu-

    17 Claude Chabrol, Le Lecteur:Fantme ou Realit? tude desProcessus de Rception (OLeitor: Fantasma ou Realidade?Estudo dos Processos de Recep-o), in Patrick Charaudeau,La Presse: Produit, Production,Rception, Paris, Didier, 1988,p. 165.

    18 Mikhail Bakhtin, Marxismo eFilosofia da Linguagem, 4a ed.,So Paulo, Hucitec, 1988, pp.123 e segs.

    19 Idem, ibidem, p. 123 (grifosnossos).

  • REVISTA USP, So Paulo, n.48, p. 18-31, dezembro/fevereiro 2000-200130

    nicao, relacionam-se com o cotidiano do

    sujeito receptor, com suas prticas cultu-

    rais, com as marcas que influenciam seu

    modo de ver e praticar a realidade, e que

    so aquelas que lhe do segurana necess-

    ria para estruturar, organizar/reorganizar a

    percepo dessa realidade, reconstruindo-

    a, com destaques ou apagamentos, de acor-

    do com sua cultura. Essas prticas cultu-

    rais constituem as mediaes, que interfe-

    rem em todo o processo comunicacional,

    balizando-o.

    Para Martn-Barbero, as mediaes

    so esse lugar a partir do qual possvel

    compreender a interao entre o espao da

    produo e o da recepo: o que se produz

    na televiso no atende unicamente s ne-

    cessidades do sistema industrial e a estra-

    tgias comerciais, mas tambm a exign-

    cias que vm da trama cultural e dos modos

    de ver. Estamos afirmando que a televiso

    no funciona sem assumir e, ao assumir,

    legitimar as demandas que vm dos gru-

    pos receptores; mas, por sua vez, no pode

    legitimar essas demandas sem ressignific-

    las em funo do discurso social

    hegemnico (20).

    Desse modo, podemos falar de um au-

    tor e de um receptor previsveis naquela

    cultura. Podemos at dizer que, na verda-

    de, os receptores ideais fazem parte do

    produto emitido. Mas esses receptores

    ideais no se confundem com o receptor

    pessoa (se assim fosse, todos os produtos

    dos meios de comunicao teriam sempre

    xito absoluto). O receptor-sujeito vai

    ressignificar o que ouve, v ou l, apropri-

    ar-se daquilo a partir de sua cultura, do

    universo de sua classe, para incorporar ou

    no a suas prticas.

    Nesse caminho podemos distinguir os

    estudos de recepo dos estudos de consu-

    mo. O simples fato de uma campanha de

    chocolate ter efetivamente possibilitado a

    venda de um nmero maior de chocolates

    no indica que houve recepo como a es-

    tamos entendendo. Indica apenas que hou-

    ve apropriao, transitria, de alguma coi-

    sa. E estaramos a no campo do consumo.

    Logo, no pelo fato de uma campanha

    publicitria ter obtido sucesso de vendas

    que poderemos afirmar que o sujeito re-

    ceptor ressignificou comportamentos cul-

    turais, incorporando-os sua prtica. Re-

    cepo um processo lento e contnuo e

    no se mede apenas pela quantidade.

    Os receptores tornam-se co-produtores

    do produto cultural. So eles que o (re)ves-

    tem de significado, possibilitando a atuali-

    zao de leituras, o rompimento de cami-

    nhos preestabelecidos de significados, a

    abertura de trilhas que podero desaguar

    em reformulaes culturais.

    A recepo, como ato cultural, desem-

    penha importante papel na construo da

    realidade social. Da a importncia de seu

    estudo. Atravs destes estudos podemos

    descobrir quais so os processos reais que

    resultam do encontro dos discursos dos

    meios de comunicao apropriados (tran-

    sitoriamente) ou incorporados (com per-

    manncia na cultura) pelos sujeitos-recep-

    tores imersos em suas prticas culturais.

    Os estudos de recepo esto preocu-

    pados com as caractersticas socioculturais

    dos receptores. Desse modo, o foco se des-

    loca para as prticas sociais e culturais mais

    amplas, nas quais eles esto integrados.

    nesse espao que se estudar a

    ressignificao que os receptores produzem

    com relao aos produtos dos meios de

    comunicao.

    Segundo Martn-Barbero,

    abre-se ao debate um novo horizonte de

    problemas, no qual esto redefinidos os

    sentidos tanto da cultura quanto da polti-

    ca, e do qual a problemtica da comunica-

    o no participa apenas a ttulo temtico e

    quantitativo os enormes interesses eco-

    nmicos que movem as empresas de co-

    municao mas tambm qualitativo: na

    redefinio da cultura, fundamental a

    compreenso de sua natureza comunicati-

    va. Isto , seu carter de processo produtor

    de significaes e no de mera circulao

    de informaes, no qual o receptor, portan-

    to, no um simples decodificador daquilo

    que o emissor depositou na mensagem, mas

    tambm um produtor (21).

    20 Jess Martn-Barbero e SoniaMuoz (coords.), Televisin yMelodrama, Bogot, TercerMundo, 1992, p. 20.

    21 Jess Martn-Barbero, Dos Meioss Mediaes: Comunicao,Cultura e Hegemonia, Rio deJaneiro, Ed. UFRJ, 1997, p. 287.

  • REVISTA USP, So Paulo, n.48, p. 18-31, dezembro/fevereiro 2000-2001 31

    Nessa postura, o papel da escola redefi-

    ne-se: no basta falar em educao para os

    meios ou em leitura crtica dos meios, como

    se os meios de comunicao fossem uma

    realidade externa, de fora. A escola pre-

    cisa, portanto, no apenas problematizar o

    contedo dos meios, mostrando a interface

    desse contedo com os valores hegem-

    nicos da sociedade e com os interesses que

    a residem (ainda que se trate de uma etapa

    indispensvel). No basta, tambm, discu-

    tir as propostas dos programas miditicos

    em confronto com as propostas culturais

    dos receptores, desvelando as convergn-

    cias e divergncias.

    Mais que isso: preciso falar, agora,

    dessa construo de sentidos sociais que se

    d no encontro produtos miditicos/recep-

    tores, no bojo da construo das prticas

    culturais, da construo da cidadania.

    desse lugar que devemos nos relacionar com

    eles. E esse o lugar de onde temos que

    esclarecer qual cidadania nos interessa,

    parece-nos sempre oportuno reiterar.

    CONSIDERAES FINAIS

    Muitas outras temticas compem o

    campo da comunicao/educao, o qual

    se constitui a partir do campo da comunica-

    o. Para estud-lo, preciso estabelecer

    um dilogo mais amplo, com mais saberes.

    Sem transdisciplinaridade, o estudo da co-

    municao no ocorre. Tentar desvenci-

    lhar-se delas [as disciplinas], identificando

    a comunicao a uma disciplina, reduzir

    o campo a uma parcela que, por mais rica

    que seja, no poder nunca deixar de ser

    um empobrecimento deformante e uma

    usurpao (22).

    A escola, ressignificada, chamada

    mais uma vez, e sempre, para, no bojo des-

    sa realidade, apontar caminhos de demo-

    cratizao. Um desses caminhos passa pela

    distino entre a informao, fragmenta-

    da, e o conhecimento, totalidade que in-

    clui a condio de ser capaz de trazer

    superfcie o que ainda virtual naquele

    domnio. Prev ter claro que o virtual de

    um domnio nada mais que o resultado da

    interdiscursividade de todos os domnios,

    possvel naquela formao social; que os

    diversos fenmenos da vida so

    concatenados em referncia sociedade

    como um todo. Para tanto, as informaes

    fragmentadas no so suficientes (23). E

    essa inter-relao s possvel pela

    transdisciplinaridade.

    No campo da comunicao/educao

    circulam essas

    situaes novas que encontraram sua ex-

    presso terica mais avanada em uma com-

    preenso da cultura como configurao his-

    trica dos processos e das prticas comuni-

    cativas. Essas que necessitam, mais do que

    nunca, articular os saberes quantitativos a

    um conhecimento qualitativo capaz de deci-

    frar a produo comunicativa de sentido, toda

    a trama de discursos que ela mobiliza, de

    subjetividades e de contextos, em um mun-

    do de tecnologias miditicas, cada dia mais

    densamente incorporadas cotidianidade

    dos sujeitos e cada dia mais descaradamente

    excludentes dos direitos das maiorias voz

    e ao grito, palavra e cano (24).

    Eis a importncia do campo comunica-

    o/educao. Na disputa estabelecida

    entre meios de comunicao x escola e fa-

    mlia no possvel haver ganhadores e

    perdedores. Evidencia-se, cada vez mais,

    um intercmbio das agncias de socializa-

    o na construo da cidadania.

    22 Jess Martn-Barbero, Pref-cio, in M. A. Baccega, A Co-municao e Linguagem. Dis-cursos e Cincia, So Paulo,Moderna, 1998.

    23 M. A. Baccega, Comunicaoe Linguagem. Discursos e Ci-ncia, op. cit., p. 112.

    24 J. Martn-Barbero, Prefcio,op. cit.