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A criança trans Francine Oliveira Há alguns anos, quando John Jolie-Pitt começou a aparecer em público com roupas masculinas, a imprensa rapidamente se dispôs a questionar os pais pela forma como deixaram o filho se comportar. Por ter sido designado com o sexo feminino ao nascer, John (antes Shiloh) chamou a atenção de todos por, desde cedo, não se conformar com a identidade de gênero que dele se esperava. Não faltou quem criticasse os pais, nem quem achasse que John estivesse apenas passando por uma fase – na verdade, essa poderia ser até uma possibilidade; há crianças que passam por experimentações com o gênero, não se identificando necessariamente como trans no futuro. Porém, o comportamento da criança que desde muito cedo pode ser identificada como transexual tem uma diferença grande em relação àquela que tem um gosto pelas coisas associadas ao gênero oposto, como um garoto que gosta de usar vestidos: a assertividade. Afinal, “ser” e “gostar” são verbos bem diferentes. Segundo estudo realizado pela Universidade de Washington, liderado pela psicóloga Kristina Olson, fundadora do projeto Trans Youth, crianças trans identificam seu gênero ao mesmo tempo em que crianças cisgênero. Olson conduziu o estudo com 32 crianças entre as idades de 5 e 12 anos, nenhuma tendo atingido a puberdade ainda. Usando um Teste de Associação Implícita, os pesquisadores mediram a velocidade com que os participantes associavam aspectos do gênero com sua própria identidade, o que acontece de forma mais automática e inconsciente. Os dados revelaram que não há diferença significativa entre nenhuma das crianças, ou seja, trans e cis se identificaram com os aspectos do gênero que expressavam ao mesmo tempo: garotas trans e cis se identificaram como do sexo feminino ao mesmo tempo; garotos trans e cis se identificaram como do sexo masculino também ao mesmo tempo. Dessa forma, podemos afirmar que a identidade de gênero é uma característica consistentemente mantida pelos indivíduos desde muito cedo.

A Identidade Da Criança Trans

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Rascunho inicial para artigo; texto final publicado em http://nadaerrado.com.br/a-identidade-trans-na-infancia/

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A criana transFrancine OliveiraH alguns anos, quando John Jolie-Pitt comeou a aparecer em pblico com roupas masculinas, a imprensa rapidamente se disps a questionar os pais pela forma como deixaram o filho se comportar. Por ter sido designado com o sexo feminino ao nascer, John (antes Shiloh) chamou a ateno de todos por, desde cedo, no se conformar com a identidade de gnero que dele se esperava.No faltou quem criticasse os pais, nem quem achasse que John estivesse apenas passando por uma fase na verdade, essa poderia ser at uma possibilidade; h crianas que passam por experimentaes com o gnero, no se identificando necessariamente como trans no futuro.Porm, o comportamento da criana que desde muito cedo pode ser identificada como transexual tem uma diferena grande em relao quela que tem um gosto pelas coisas associadas ao gnero oposto, como um garoto que gosta de usar vestidos: a assertividade. Afinal, ser e gostar so verbos bem diferentes.Segundo estudo realizado pela Universidade de Washington, liderado pela psicloga Kristina Olson, fundadora do projeto Trans Youth, crianas trans identificam seu gnero ao mesmo tempo em que crianas cisgnero.Olson conduziu o estudo com 32 crianas entre as idades de 5 e 12 anos, nenhuma tendo atingido a puberdade ainda. Usando um Teste de Associao Implcita, os pesquisadores mediram a velocidade com que os participantes associavam aspectos do gnero com sua prpria identidade, o que acontece de forma mais automtica e inconsciente. Os dados revelaram que no h diferena significativa entre nenhuma das crianas, ou seja, trans e cis se identificaram com os aspectos do gnero que expressavam ao mesmo tempo: garotas trans e cis se identificaram como do sexo feminino ao mesmo tempo; garotos trans e cis se identificaram como do sexo masculino tambm ao mesmo tempo. Dessa forma, podemos afirmar que a identidade de gnero uma caracterstica consistentemente mantida pelos indivduos desde muito cedo.A iniciativa de Olson demonstra que encorajar o filho a expressar sua identidade de gnero no um erro, nem uma negligncia por parte dos pais. Essa descoberta retifica um estudo feito em setembro de 2014 na Holanda, que demonstrou que pessoas trans que tomam medicamentos para atrasar a puberdade fazendo com que no precisem enfrentar o desenvolvimento de caractersticas do sexo oposto ao qual se identificam tm uma vida feliz e satisfatria na idade adulta. A partir dessa escolha, indivduos trans apenas passaro pela puberdade quando comearem o tratamento hormonal adequado para sua identidade de gnero.Uma das questes que merece ser levantada aqui a da prpria criao dos filhos cisgnero. Afinal, se para muitos errado incentivar a criana que demonstra ser transexual, por que deveramos pensar que certo incentivar a cisgeneridade? Se uma criana muito nova para definir se transexual, ela tambm no seria muito nova para se definir cis? Mas porque nos apegamos a expresses que devem estar de acordo com a aparncia dos genitais, ou com a configurao gentica, somos levados a crer que agir de acordo com o gnero designado ao nascer algo natural. Ao longo da criao, fazemos de tudo para que a criana corresponda s expectativas do gnero que determinamos para ela. Chegamos a aplaudir o garoto que age como macho ou a garota que vaidosa desde pequena. No entanto, se percebemos o contrrio um garoto excessivamente vaidoso ou uma garota masculinizada , rapidamente procuramos motivos para justificar o que deu errado.A percepo que a criana trans tem de si mesma e sua expresso de gnero so majoritariamente subestimadas como uma fase ou uma confuso pela qual esto passando.A mensagem deixada por Leelah Alcorn antes de seu suicdio, em dezembro de 2014, sintomtica desse tipo de reao que prontamente nega a descoberta da transgeneridade pelas crianas e adolescentes. A famlia religiosa da garota jamais aceitou sua condio, como a prpria Leelah escreveu:Quando eu tinha 14 anos, eu aprendi o que queria dizer transgnero e chorei de alegria. Depois de 10 anos de confuso, eu finalmente compreendi quem eu era. Eu imediatamente contei para minha me, e ela reagiu de forma extremamente negativa, me dizendo que isso era uma fase, que eu nunca seria realmente uma garota, que Deus no comete erros, que eu estava errada. Se vocs estiverem lendo isso, pais, por favor no digam isso para seus filhos. Mesmo se voc for cristo ou contra pessoas transgnero no diga isso jamais para algum, especialmente seu filho. Isso no vai realizar nada alm de faz-lo odiar a si mesmo. Foi exatamente isso que aconteceu comigo. (Fonte: Lado Bi; a pgina de Leelah foi desativada)No existe um registro preciso de quantas pessoas transgnero se matam a cada ano em partes, porque o suicdio no reportado ou a transgeneridade no revelada. Porm, segundo uma pesquisa realizada no Reino Unido, 48% dos jovens trans (com at 26 anos) disseram ter tentado suicdio entre 2010 e 2014, sendo que 30% revelaram t-lo feito no ltimo ano! Alm do mais, 59% dos jovens trans j tentaram se machucar de alguma forma (entre os demais jovens, esse ndice foi de 8,9%). Se esses nmeros no nos assustam o bastante para mudar a forma como enxergamos a transgeneridade, principalmente entre crianas, no sei o que mais poder nos fazer mudar...

*Rascunho inicial para artigo. Texto final publicado em http://nadaerrado.com.br/a-identidade-trans-na-infancia/