Bignotto, Newton. Um Conceito Em Evolucao

Embed Size (px)

Citation preview

  • 8/2/2019 Bignotto, Newton. Um Conceito Em Evolucao

    1/4

    Um conceito em evoluo

    Newton Bignotto

    Professor do departamento de Filosofia da UFMG

    Originalmente, o conceito de cidadania referia-se condio daqueles que, pertencendo ao

    corpo poltico das cidades gregas, tinham o direito no apenas de viver em seu territrio, mas

    tambm de participar diretamente das decises que determinavam os rumos da vida da cidade. Para

    que isso fosse possvel, era necessrio que os cidados fossem iguais, se no em tudo, o que

    impossvel, pelo menos em relao ao respeito das leis e quanto liberdade de agir no interior das

    instituies que governavam os destinos da polis. Podemos, portanto, associar ao conceito de

    cidadania grega dois outros conceitos: o de igualdade e o de liberdade.Maria do Cu Diel

    Sem eles, ficamos apenas com a idia de pertencimento a um corpo poltico, o que no seria

    suficiente para separar o cidado grego dos sditos de reinos governados por monarcas com poderes

    absolutos. Os romanos iriam radicalizar ainda mais a idia da isonomia entre os cidados,

    transformando-os em sujeitos de direito. Cada cidado passa a ser considerado como tal no apenas

    por poder participar das decises importantes da vida poltica da cidade, mas tambm por ser

    possuidor de direitos, que os capacitam a realizar contratos ao abrigo da lei e sem o consentimento

    direto de governantes e outros mandatrios. O direito ocupa, assim, um lugar fundamental na

    definio do que seja uma sociedade poltica para os romanos e consolida a idia de cidadania.

  • 8/2/2019 Bignotto, Newton. Um Conceito Em Evolucao

    2/4

    A concepo grego-romana de cidadania encontrou limites no aparecimento do indivduo

    moderno. Se a idia de que os cidados devem ser livres e iguais perante a lei se manteve como um

    marco essencial para a definio do conceito, o aparecimento do indivduo moderno colocou em

    questo a forma como os antigos se relacionavam com o corpo poltico. O pertencimento de um

    grego a uma cidade era, na maior parte das vezes, determinado por critrios como o nascimento e afiliao, o que criava um fator de excluso e de limitao da cidadania, deixando de fora

    estrangeiros, mulheres e crianas. Como diz Aristteles em Poltica (1275 a 25), um cidado no

    sentido absoluto se define pela participao nas funes judicirias e na funo pblica em geral.

    O importante para o cidado era o que acontecia dentro da esfera pblica, o mundo da casa e das

    relaes desiguais no contava para ele como cidado.

    Na esfera privada Essa definio serviu como ponto de partida para a cidadania moderna, mas

    ela no leva em conta o fato de que a esfera privada, que, na Antigidade estava fora da esfera dapoltica, passou a ocupar um lugar diferente na vida desde o incio da modernidade. Se, antes, ela

    estava fora do espao da cidadania, englobando, por isso, relaes assimtricas e desiguais como

    aquelas entre esposo e esposa e entre senhor e escravo agora, ela considerada um territrio

    essencial da existncia do indivduo e de sua afirmao, passando a englobar direitos e deveres

    semelhana da esfera pblica.

    Essa mudana na relao entre o pblico e o privado alterou a forma como os indivduos se

    relacionam com o Estado e os levou a reivindicar direitos que, antes, no faziam sentido. luz

    dessas observaes que podemos compreender as anlises de Marshall a respeito do

    desenvolvimento da noo de cidadania na Inglaterra. Como mostra o autor, aos direitos polticos

    tradicionalmente associados cidadania se seguiram os direitos civis e, por fim, os direitos sociais.

    Se esse esquema no descreve um processo histrico necessrio em sua ordem cronolgica para

    todas as naes como mostrou Jos Murilo de Carvalho em estudo sobre a cidadania no Brasil ,

    pelo menos serve para mostrar a grande complexidade que a questo alcanou na modernidade.

  • 8/2/2019 Bignotto, Newton. Um Conceito Em Evolucao

    3/4

    Ora, a modernidade no extinguiu inteiramente os fatores de limitao da cidadania, pois, na

    maior parte das naes, ela continuou a ser associada ao pertencimento a um determinado corpo

    poltico, segundo regras estabelecidas pelas leis. No entanto, os fatores de excluso dos no-

    cidados das esferas mais importantes da vida poltica foram acompanhados pelo movimento

    contrrio de universalizao dos direitos. Assim, por exemplo, a limitao do acesso justia por

    parte dos estrangeiros, comum entre os gregos, deixou de fazer sentido. No interior das cidades, a

    tendncia universalizao resultou, tambm, no acesso progressivo das mulheres vida poltica.

    Esse movimento foi bastante lento no curso dos ltimos sculos, o que fez com que, na maior

    parte dos pases ocidentais, o direito de voto, essencial para definir a participao na vida poltica

    moderna, s tenha sido alcanado por todos os membros do corpo poltico no sculo XX. Porm, ao

    conceder-se o direito de voto a todos os que possuem direitos polticos, foi ultrapassada uma

    barreira fundamental, realizando-se, na prtica, o que vinha sendo apontado, desde o sculo XVIII,

    pelos tericos entre os quais Condorcet como um passo decisivo para a construo de formas

    polticas efetivamente livres.

    De forma resumida, podemos dizer que dois modelos tericos serviram para pensar nossa

    questo na modernidade. De um lado, esto os que, como Montesquieu, acreditam que a cidadania

    se organiza medida que os poderes so bem distribudos e que a pluralidade dos cidados pode se

    guiar por um ordenamento jurdico estvel, que garante a todos o direito de fazer o que a lei

    permite. No outro plo, esto os seguidores de Rousseau, para quem o cidado a fonte primeira e

    definitiva da lei e, por isso, deve guardar uma relao de intimidade com o corpo poltico de que a

    origem e nico destinatrio. claro que esses dois modelos conheceram muitas variantes, mas eles

    nos ajudam a pensar a tenso contnua que acompanhou os tericos da cidadania entre unidade e

    pluralidade do corpo dos cidados.

    Sociedades multiculturais

    Nos dias atuais, o debate sobre cidadania tornou-se ainda mais agudo diante do desafio

    levantado pelas transformaes sofridas pelas sociedades industriais. Em primeiro lugar, a

    associao entre cidadania e nao, que presidiu a vida poltica do Ocidente nos ltimos sculos,

    questionada pelo fato de que a constituio de comunidades transnacionais exige uma nova

    compreenso da relao do cidado com o corpo poltico. O que, antes, era definido por fronteiras

    conquistadas por meio de longas lutas e guerras, agora, passa a se referir a blocos de pases e a

    ordenamentos jurdicos muito mais amplos. Em segundo lugar, est o fato de que a migrao

    intensa de populaes culturalmente muito diversas, que passaram a habitar o mesmo territrio, fez

    nascer uma demanda por novos direitos, que podemos chamar de culturais e expem a face

  • 8/2/2019 Bignotto, Newton. Um Conceito Em Evolucao

    4/4

    complexa das sociedades multiculturais. Por fim, o progresso do individualismo e a apatia crescente

    que domina a vida das sociedades democrticas pem em questo um conceito que foi

    essencialmente poltico em sua origem e que se desenvolveu pela extenso progressiva de direitos

    totalidade dos componentes do corpo poltico.

    Fonte: http://www.ufmg.br/diversa/8/artigo-umconceitoemevolucao.htm