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ROBERT BRESSON INSTITUTO MOREIRA SALLES | CINEMA | 18 A 24 DE FEVEREIRO DE 2011

Cinema IMS-RJ_fevereiro de 2011

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catálogo da programação de cinema do Instituto Moreira Salles (fevereiro de 2011): mostras de Robert Bresson e Wang Bing

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ROBERT BRESSONINSTITUTO MOREIRA SALLES | CINEMA | 18 A 24 DE FEVEREIRO DE 2011

“O cinema que vemos até hoje não é cinema, mas, sem exceção, teatro fotografado. O meio de expressão é um meio de expressão teatral, quer dizer, o meio dos atores, mímica, gestos. O cinema, se quiser de fato ser cinema, deveria abolir de modo absoluto toda expressão teatral, inclu-sive a expressão dos atores. A partir do momento em que a expressão é teatral, não existe mais uma expressão cinematográfica. É preciso que as imagens tenham uma qualidade, uma neutralidade indispensável para que exista um intercâmbio entre elas. Um filme não é feito de imagens, mas de relações, de intercâmbios entre as imagens, tal como uma cor não vale nada por si mesma, mas ganha seu valor pela relação que es-tabelece com outra cor. A partir do momento em que um ator passa a atuar tal como faz no teatro, quer dizer, passa a se exprimir por gestos dramáticos – por sinal falsos, como sempre –, não podemos fazer mais nada com a imagem. Então, essa é a minha idéia – mais exatamente meu sentimento, porque acredito ser melhor sentir primeiro e só depois propor uma reflexão. É preciso que uma pessoa se revele pouco a pouco, jamais à primeira vista. Em suma, para isso o aparelho cinematográfico, a câmera, é um instrumento extraordinário para coisas que não pode-mos ver a olho nu. Mas estamos atualmente presos numa armadilha, que nos aperta cada vez mais, uma rotina que, no fundo, leva o cinema a caminhar como uma companhia de teatro. Temos uma lista de 20 a 30 atores que retornam regularmente para nos propor como diversão um teatro, o teatro fotografado – eis o que acontece.

O cinema foi feito para descobrir coisas. Devemos demonstrar sem-pre que um filme avança na direção do desconhecido. O cinema é um permanente avanço na direção do desconhecido, uma revelação. Talvez vocês conheçam o que Paul Valéry costumava dizer quando ia trabalhar.

Ele não dizia: “Vou trabalhar”, mas “Vou me surpreender”. Bela afir-mação! É preciso se surpreender, mas não por um ator que vem fazer seus pequenos truques de teatro. Surpreender-se por um intérprete que, ele mesmo, não sabe muito bem o que revela para você naquele exato momento. Cinema é um meio de buscar, de investigar.

Trabalho com pessoas. Não peço a uma pessoa que interprete. Eu peço que ela leia as linhas do diálogo. Se ela não recita o texto como devido, trabalho o tom da fala, assim como na música trabalhamos um violino ou um piano. O cinema – não é mesmo? – está mais perto da música que da pintura. Portanto, peço que leia o texto com atenção ao ritmo... ta, ta, ta, ta, ta... com atenção na rapidez da leitura. Procuro um tom próximo de uma supressão total de tom, de todos os tons, o que resulta em algo mais verdadeiro. Na verdade, se você fala com uma ideia na cabeça é que não existe nenhum tom no que você diz. Portanto, rápido e simples, nenhuma ligação possível. O tom absolutamente liso é muito mais expressivo que aquele que se pretende uma forma expressiva, que no fundo mata a expressividade. Interfiro sempre que é preciso evitar que uma tal fala ganhe expressividade. Eu esvazio tudo para que mi-nhas imagens pareçam lisas e ternas e ganhem vida, de repente, quando colocadas em relação com uma outra. Elas se transformam então, e é absolutamente necessário que se dê esta transformação, porque só desse modo podemos fazer do cinema uma arte. É isso, não sei como explicar melhor.”

Robert Bresson

O batedor de carteiras

Trecho de palestra no Institute des Hautes Études Cinématographiques, Paris, 1955.

Qual é o legado de Robert Bresson no cinema contemporâneo? Críticos de diferentes formações e militâncias costumam apontar influências em cineastas tão díspares como Jean-Luc Godard, Júlio Bressane, Paul Schrader, Abbas Kiarostami, Bruno Dumont, Lucrecia Martel, Tsai Ming-liang e os irmãos Luc e Jean-Pierre Dardenne, só para citar alguns exemplos. Mas afinal qual é a semeadura do mestre francês na arte cinematográfica? O que se esconde na aparente simplicidade do seu minimalismo rigorosíssimo?

Para início de conversa, Bresson foi bem mais que um contador de histó-rias no universo do cinema. O mestre francês criou uma nova sintaxe para a linguagem da chamada sétima arte, estudando de maneira incansável as suas especificidades e tentando fazer de si mesmo, como artista, como criador, um permanente instrumento de rigor e de precisão. Bresson gostava de trabalhar com ações nas bordas do quadro, ou fora dele, utilizando sonoridades que ape-nas sugeriam ao público o que estava acontecendo e que potencializavam a capacidade que cada espectador tem de confeccionar imagens mentalmente, resgatando assim fragmentos de lembranças e de vivências que repousam em sensações nas profundezas da nossa memória, do nosso imaginário. O reali-zador de títulos seminais como O batedor de carteiras (Pickpocket, 1959) elabo-rava deliberadamente a sua arquitetura de quadro pensando nessa potência imagética que habita a nossa mente, o nosso inconsciente, e procurava utilizar uma complexa partitura de sons que nos levasse não apenas pelos labirintos do nosso imaginário, mas para os cantinhos mais recônditos da nossa alma. Uma de suas frases geniais, extraída do livro Notas sobre o cinematógrafo:

“O olho (em geral) é superficial, o ouvido profundo e inventivo. O apito de uma locomotiva imprime em nós a visão de toda uma estação de trem”.

Para Godard, “Bresson é o cinema francês, como Dostoiévski é o romance russo e Mozart, a música alemã”. Bresson pensava a imagem como pintura e o som como uma autêntica partitura musical. À maneira de um pintor e

SilêNciO E imOBilidadE | Evaldo MocarzEl

O dinheiro | L’ argent

O batedor de carteiras | Pickpocket

tentando fugir do “teatro filmado”, Bresson parou de trabalhar com atores e passou a dirigir modelos em seu set de filmagem. Seu último filme com atores foi Diário de um padre de aldeia (Journal d’un curé de campagne, 1951). A partir daí, foi em busca de modelos, seres humanos, com uma “semelhança moral” com os personagens que queria levar para o cinema. Escolhia seus modelos em revistas e depois fazia teste de elenco pelo telefone, pois acreditava que a voz era a alma emergindo do nosso corpo, o nosso selo de autenticidade como ser humano, uma espécie de compilação sonora de toda a nossa história de vida.

A relação de Bresson com seus modelos não tem nada a ver com a utilização de atores não profissionais nos filmes, uma prática que teve o seu apogeu no neorrealismo italiano e virou uma espécie de obsessão contemporânea, com tantos e tantos projetos obcecados por misturar as fronteiras do documental com o ficcional propriamente dito; tantos e tantos longas ficcionais amparados em muletas documentais, captados com textura de registro documental, como se a ficção propriamente dita não fosse uma camada mais profunda da “reali-dade”, da “transcendência”, da “imanência” de todas as coisas, ou seja lá como cada um prefere chamar.

Mas, digressões à parte, voltando à relação de Bresson com seus modelos, mais do que a utilização de atores não profissionais, como já foi dito, o mestre francês se lançava num permanente exercício de alteridade, ou seja, tentava desesperadamente se infiltrar como artista, como criador, na “fosforescência”, como ele mesmo definia, do olhar do “outro”, no caso, os modelos com os quais trabalhava com um método calcado em incansável repetição no set de filmagem.

No final dos anos 1960, em entrevista com Bresson para a Cahiers du Cinéma, Godard defendeu com muita veemência a utilização de atores e de atrizes num set de filmagem, e colocou o mestre francês contra a parede: se você está em busca da alma de seres humanos nos filmes, e defende o emprego de modelos,

atores e atrizes também são seres humanos, também têm alma, argumentou Godard não exatamente com essas palavras, mas Bresson radicalizou: atores e atrizes provenientes do teatro estão viciados nos maneirismos da linguagem cênica e torna-se muito difícil fazer sua alma irromper num set de filmagem.

Para Bresson, modelos não têm nenhum tipo de cacoete teatral e, fazendo leituras completamente “brancas” dos roteiros, empregando acelerações e re-tardamentos, mas sem nenhum tipo de “interpretação”, o mestre francês ia pouco a pouco deixando a alma dos seus modelos emergir durante os ensaios, sem afetações ou performances exageradas, trabalhando os diálogos como uma partitura musical. Logo pinçava uma ou outra entonação que não fosse pen-sada racionalmente, mas que viesse do fundo da alma daqueles seres humanos. É curioso e até mesmo engraçado comentar que o mestre francês era tão rigo-roso e radical que, em A grande testemunha (Au hasard Balthazar, 1966), cujo personagem principal é um burrinho, fez questão absoluta de trabalhar com um asno sem nenhum tipo de adestramento prévio.

Todo o método de Bresson era uma tentativa de libertar a criação artística da razão, de um pensamento prévio que começasse a engessar todo o processo. No set de filmagem, ele queria construir paulatinamente a intuição, em seu sentido mais anímico, mais imponderável, com porosidade ao acaso e a ajuda desses dois aparelhos maravilhosos que eternizam momentos únicos que jamais vão se repetir, que são a câmera e o gravador. É importante enfatizar: Bresson não estava em busca de grandes atuações em seus filmes. Os modelos eram apenas mais um elemento na sua composição cinematográfica, quase sempre despoja-dos de qualquer tipo de exagero, com uma tocante economia de meios.

“Evitar os paroxismos (raiva, pavor etc.) que somos obrigados a simular e onde todo mundo se parece”, escreveu em Notas sobre o cinematógrafo. Outro conse-lho do mestre: “Criar não é deformar ou inventar pessoas e coisas. É estabele-cer entre pessoas e coisas que existem e tais como existem, novas relações.”

Um condenado à morte escapou

Criar por subtração em busca de algum tipo de revelação, assim era Bresson. No início da sua carreira, em As damas do bosque de Boulogne (Les Dames du bois de Boulogne, 1945), trabalhou com um artista renascentista extremamente ma-neirista: Jean Cocteau, autor dos diálogos do filme. Ao longo de sua trajetória artística, Bresson se tornou uma espécie de antípoda de Cocteau, sempre em busca da máxima minimalista: menos é sempre mais. A surpreendente e des-concertante epifania nos filmes de Bresson era construída pelo encadeamento dos planos no processo de montagem, que, para ele, era soberana na arte cine-matográfica. É certo que Godard bebeu na sabedoria do mestre francês e o homenageou em filmes como Elogio ao amor (Éloge de l ’amour, 2001) em que vemos um cartaz de O batedor de carteiras nas melancólicas imagens em preto e branco e ainda ouvimos frases de Bresson, extraídas de Notas sobre o cinema-tógrafo e lidas por uma moça que ataca um produtor hollywoodiano que vai à Bretanha comprar os direitos da história de vida de seus parentes que lutaram na Resistência Francesa durante a Segunda Guerra. Essa sequência é um con-tundente libelo contra a vampirização ilusionista do cinema de Hollywood e ouvimos ensinamentos de Bresson como por exemplo: “Construa seu filme sobre o branco, sobre o silêncio e sobre a imobilidade”.

Abbas Kiarostami é outro cineasta que já assumiu publicamente a influência de Bresson e, no filme Dez (Ten, 2002), em que dá várias aulas de cinema, o diretor iraniano cita o mestre francês três vezes. Bresson tem fortes ligações com a pintura e Kiarostami veio do grafite, ou seja, são dois criadores que têm uma relação intensa com as artes visuais. Mas o cineasta iraniano me parece mais um artista que foi beber na fonte do neorrealismo italiano, sobretudo na utilização de atores não profissionais em seus filmes. Numa oficina que mi-nistrou no Brasil há alguns anos durante a Mostra Internacional de São Pau-lo, Kiarostami comentou que achava “artificial” o resultado final do trabalho de Bresson com seus modelos e que preferia trabalhar com não profissionais, tentando desaparecer do set de filmagem a todo custo. O maior elogio que o

O batedor de carteiras

cineasta iraniano já recebeu, contou durante a oficina, foi quando disseram que um de seus filmes, Através das oliveiras (Zire darakhatan zeyton, 1994), parecia não ter um diretor. Em Dez, Kiarostami radicalizou a sua tentativa de se au-sentar do set, colocando a câmera num carro e deixando a mulher e o menino improvisarem à vontade. Por outro lado, não podemos esquecer que se fazer ausente pode ser uma tremenda maneira de marcar presença. De todo modo, Bresson não queria desaparecer do set como procura fazer Kiarostami, mas se infiltrar desesperadamente no mistério da alteridade através da repetição, como já foi dito, em busca de uma “substância” da condição humana. Confesso que não saberia detectar influências de Bresson nas obras de Júlio Bressane, Paul Schrader e dos irmãos Dardenne. Os últimos vêm criando um universo muito interessante em seus filmes, com um arrebatador pathos ficcional anco-rado numa estética construída de maneira crua e seca, com textura de registro documental. Bruno Dumont também me parece ter bebido na essencialidade do mestre francês, mas, em diversas entrevistas, negou categoricamente a in-fluência de Bresson na sua obra.

Diferentemente de diretores que trabalham com explícitos símbolos cinema-tográficos, como Lucrecia Martel (a piscina) e Tsai Ming-liang (as águas que não param de escorrer em seus trabalhos), Bresson não criava metáforas, me-tonímias e figuras de linguagem. Como um documentarista, sem jamais ter realizado um filme documentário propriamente dito, o mestre francês bus-cava obsessivamente o “real” na concretude, na materialidade do set, como se tentasse vislumbrar a sacralidade da imanência de todas as coisas, como se tentasse revelar fagulhas de epifania, de manifestação divina, em situações apa-rentemente banais do cotidiano. Ciente e fascinado pela magia da linguagem cinematográfica, que é capaz de eternizar um momento único que jamais vai se repetir, Bresson apostava na amoralidade, na imparcialidade e também na atemporalidade do olhar da câmera, capaz de registrar diversas ações simultâ-neas, completamente diferente do olhar humano, que, como afirmava Dziga

Vertov, é “caótico” e sempre vai escolher uma entre muitas coisas acontecendo na nossa frente. Há quem diga que tudo isso é uma tremenda besteira, pois quem direciona o olhar da câmera é o olho humano. No entanto, quem filma sabe que a câmera vê o mundo de modo completamente diferente, descorti-nando universos aparentemente invisíveis e inexpugnáveis ao olhar humano.Bresson não gostava da palavra “cinema”, para ele sinônimo de “teatro filma-do”, e preferia usar “cinematógrafo”, a invenção dos irmãos Lumière, quando se referia à arte cinematográfica, essa linguagem tão única e até hoje tão mis-teriosa, uma espécie de decalque da própria “realidade”. Mas a vida perene de um filme, para o mestre francês, só se realizava em sua plenitude no processo de montagem, a última etapa em que a obra cinematográfica ressuscitava para sempre, logicamente desde que o suporte de captação seja bem preservado.

André Bazin escreveu que a imagem na pintura tem uma tendência centrípeta, ou seja, de fora para dentro, e a imagem no cinema vai em direção contrária, uma tendência muito mais centrífuga, ou seja, de dentro para fora. Bresson parecia exacerbar esse movimento centrífugo da imagem cinematográfica e decupava seus filmes de maneira radical, sem medo do plano-detalhe. Se o que lhe interessava eram duas mãos crispadas orando diante de um corpo de mulher que acabara de cometer o suicídio, como em Uma mulher suave (Une Femme douce, 1969), o primeiro filme de Dominique Sanda, que, na época, era modelo), ele não hesitava em cortar a cabeça, os pés, e buscava a essência do filme num pequeno fragmento que, como a ponta de um iceberg, guarda-va o pathos, a transcendência, a epifania da história que estava tentando nos contar. É certo que a linguagem cinematográfica é fragmentária por excelên-cia, e Bresson intensificava isso o quanto podia, também criando “vazios” na imagem, como já escreveu o crítico José Carlos Avellar. Vazios, os mistérios da vida e da morte, a busca desesperada de personagens suicidas tentando encontrar um aceno de Deus na vida terrena. Mas também revelações, que se desnudam se velando, se acendendo por instantes na escuridão com brilho

Um condenado à morte escapou

A grande testemunha | Au hasard Balthazar

leitoso de nossas mentes ao assistir a uma obra de Bresson, principalmente os seus últimos filmes, em que foi radicalizando o método que criou. Mais do que uma árdua busca pelo “real” na ficção propriamente dita, o mestre francês ansiava construir o que ele chamava de “sobrenatural”, que, para ele, era o “real preciso”, cada plano trabalhado com o máximo de exatidão. Bresson procurava reorganizar os sons inorganizados da vida em seus filmes, criando verdadeiras partituras que acabam nos ambientando nas locações de uma maneira com-pletamente sensorial. “Um grito, um ruído. Sua ressonância nos faz adivinhar uma casa, uma floresta, uma planície, uma montanha. Seu eco nos indica as distâncias.” Mais uma frase de Bresson, uma espécie de bálsamo contra o uso banalizado da música: “Quantos filmes remendados pela música! Inunda-se um filme de música. Impede-se de ver que não há nada nessas imagens.”

Críticos e cinéfilos, de modo geral, precisam urgentemente redescobrir uma de suas obras menos estudadas, menos apreciadas, mas que é um autêntico vaticínio do mundo em que vivemos: O diabo provavelmente (Le Diable proba-blement, 1976, seu penúltimo filme, realizado antes de O dinheiro / L’Argent, 1983). Nesse trabalho dos anos 1970, mais um personagem suicida tipicamen-te bressoniano, só que mais iconoclástico, um jovem que passa as madrugadas dormindo em catedrais tentando se aproximar da presença de Deus, queren-do desesperadamente vislumbrar um aceno do Criador num mundo cada vez mais materialista, sem espiritualidade, devastado moral e ecologicamente pela ganância do lucro. Controlado provavelmente pelo demônio, Bresson parece nos dizer com o título do filme, o jovem encontra na morte a única possibi-lidade de um diálogo, de um confronto com Deus, e contrata um rapaz para que isso seja feito. A “execução” do jovem é uma das sequências mais cruas e impactantes do cinema do século passado.

A obra de Robert Bresson precisa ser revista. É uma espécie de profecia de um artista visionário para os dias de hoje.

Evaldo Mocarzel

traduziu (com

Brigitte Riberolle) e

organizou a edição

brasileira de

Notas sobre o

cinematógrafo

(Notes sur le

cinématographe,

Gallimard, Paris,

1975) para a editora

Iluminuras,

São Paulo 2004.

O diretor (“metteur-en-ordre”, como gosta de se autodefinir) Robert Bresson nasceu em 25 de setembro de 1907 em Bromont-Lamothe (Puy-de-Dôme). Formou-se em grego, latim e filosofia. Depois tomou-se pintor. Ouviu e estu-dou música apaixonadamente. Leitor de Montaigne, Pascal, Balzac, foi ainda um grande cinéfilo até tornar-se... cineasta! Homem dos olhos doces, assim o chamou um escritor, olhos sensíveis à luz e à sua primazia, Bresson, em cere-brações cinematográficas, em deslocamentos, descostura a trama do pano, des-faz (eis, de novo aqui, o temível prefixo “des”, que transtorna o radical) o clichê e o ritmo profanador do cinema dominante. Criador de uma imagem-tempo, uma imagem-movimento, de poder hipnótico, hierática, em silêncio contida, absorta. Sereno desbravador experimental, experimentador, experimentando o experimento, devolve o cinema ao cinema...

Foi no desenho da sombra de alguns de seus fotogramas onde, pela primei-ra vez, pensaram-se o Signo cinematográfico moderno e suas transrelações. Muitas das obsessões do cinema moderno sentiu-as e pensou-as, pela primeira vez, este mestre do cinema mental. Digo Signo cinematográfico e Cinema pensado como organismo intelectual demasiadamente sensível e que faz li-mite, pervaga, transpassa, todas as artes, ciências e a vida. Cinema trans-tudo, nômade, desértico, inatual, novo...

“Um realizador deve ser pintor, romancista, músico, e depois ser cineasta”, es-creveu assim, certa vez, com destemor, Alexandre Astruc. Sutil transfigurador da existência, Bresson recusa o espetacular e o anedótico, o sagrado está iman-tado na economia de meios técnicos, os pés e às vezes as mãos nos levam para onde talvez não quiséssemos ir. O involuntário voluntário é um sintoma temí-vel da nossa existência (Procès de Jeanne d’Arc). Do intraduzível, o que traduzir? Foi pioneiro na experimentação da operação tradutória – intersemiótica, do texto para o filme (Journal d’un curé de campagne). Autor, na dificílima arte do tempo cinematográfico, da exuberante coincidência de diversos tempos.

O HOmEm dOS OlHOS dOcES | JÚlIo BrESSaNE

Movimento no pensamento e imagem em movimento, nos filmes de Bresson, o movimento é vário e múltiplo. Movimento-expressão no rosto dos atores e na imanência dos objetos e das coisas (Pickpocket). Movimento na luz, luz cinza, movimento puro de contensão e extensão que se realiza no cinza da luz transformadora. O cinza, luz cinza, clássica do cinema francês, em Bresson já é uma cor-movimento (Les dames du bois de Boulogne).

Uma das potências dos filmes de Bresson, que o torna importante e inatual, é que ele desinforma, abala, às vezes rasga, a catarata da informação normaliza-da. Cinema inatual, de alta temperatura desinformacional, encontra no verso e reverso das Imagens os vestígios da coisa central: Luz-Movimento-Tempo. Despe de seus trajes e ultrajes o cinema, seus penduricalhos, para ouvi-lo e vê--lo onde ele se faz EU...

Cinema sensível às revelações da imagem tempo (cronossignos) da imagem legível (lectossignos) e da imagem pensamento (noossignos). Fluxo circulador que imprime no fotograma granulado um sinal, uma mancha pensamento. Cinema que se faz sentir. Angulação, movimento de câmera, câmera fixa, mí-nima, que manifesta relações mentais (Mouchette). Não é câmera-olho, mas olho-espírito, cinema vidência, a descrição substituindo o objeto (Une Femme douce). Bresson, o artista que traz para a tela-olho a técnica sóbria, própria, de um enquadramento e percepção de luz inéditos, dominado por um ritmo, ele chamou de ritmo dos batimentos do coração, que errando, cruzando, micro-logicamente, cada fotograma-som da mancha química sonorosa, realiza essa coisa pouco simples que é transmitir uma emoção...

Organizando intensidades, silêncios e sombras, restitui à tela branca o misté-rio, as surpresas, as relações inconscientes em que o homem se defronta com os outros homens e com o universo (Lancelot du lac).

“O filme é um mistério, e eu creio no cinema. Não quero explicar nem provar nada”, diz Bresson. Criador de uma estética do ator no cinema que tem como

O processo de Joana d’Arc

procedimento uma discreta sacralização de gestos, movimentos, elocução. Uma disciplina do natural e do falso combinados, grão a grão.

Compreendeu o cinema como forma de transfiguração da luz e uma ilusão do movimento. O burro-filósofo testemunha a ação e a reação do homem-besta. (Au hasard Balthazar). Tudo que fez foi no sentido de aproximar esta técnica e esta metafísica de outras técnicas e de todas as artes. Teólogo da luz, criou um cinema que conseguiu uma espécie de milagre, o da luz sobrenatural, mística, parafísica, apreendida de forma depurada e simples, extraindo do quase nada quase tudo. Tinha projetado filmar uma vida de Santo Inácio à luz da cela jesuíta...

O cinema é a música da luz, disse, poeticamente, o sensível Abel Gance. Re-tomando a metáfora, diz Bresson: “Podemos fazer cinema com colcheias e se-micolcheias, porque cinema é música”. Experimentador minimalista pioneiro no desrelacionamento, no desconjugamento, na desintegração, som-imagem Robert Bresson é banda à parte!! Nota Jean Cocteau: “Bresson é ‘à parte’ nesta terrível profissão. Ele exprime-se cinematograficamente como o poeta expri-me-se com sua pena. Vasto é o obstáculo entre a sua nobreza, seu silêncio, sua seriedade, seus sonhos e todo um mundo ordinário onde isso passa por hesi-tação e loucura!” André Bazin, crítico equipado, vê em Bresson “o mais raro de nossos cineastas. Na qualidade de sua obra e no pequeno número de seus filmes.” Não muito. Mas muito! O primeiro filme de 1943 chama-se Les Anges du péché. Cineasta único, seu cinema, exato e breve, não apenas traz o tempo passado ao tempo presente. Mas, fato mais assombroso, conduz o cinema à eternidade! Sombra que se organiza, música, os fotogramas de Bresson são sombras que hão de ser... “Umbrae futurorum!”, diz São Jerônimo.

O incrédulo que crê, o senhor que passa por servo, o imortal que morre, quan-tos desses o mundo pode dar?

Venerável Robert Bresson!

O homem dos

olhos doces

faz parte do livro

Cinemancia,

de Júlio Bressane,

editora Imago,

Rio de Janeiro, 2000.

O processo de Joana d’Arc

“Pertenço a uma geração mais jovem, não conheço as razões e os senti-mentos das pessoas mais velhas. Com A oeste dos trilhos queria, ao mes-mo tempo, discutir algumas questões de nossa história e outras de meu processo criativo. Basicamente segui meus instintos, não estabeleci pre-viamente uma linha de abordagem, não organizei racionalmente uma estratégia cinematográfica. Quando terminei o filme, senti como se um período da minha vida tivesse acabado. Um novo período se inaugura-va. Comecei a pensar como poderia desenvolver uma abordagem mais estruturada para o que eu queria fazer no cinema: discutir a experiência da geração anterior. De repente, nos descobrimos com 30 anos de vida, entre os 30 e os 40. E começamos a perceber a discrepância entre o que nos foi ensinado e a realidade. Nos ensinaram a viver uma irreali-dade. Essa foi uma motivação. Uma outra: hoje, na China, as pessoas não querem olhar para o passado. Só pensam no futuro. Só pensam no que querem ser amanhã. O ontem é irrelevante, e o hoje daqui a pouco também vai se tornar irrelevante. Se esse pensamento persiste, é muito problemático. Esse tipo de vida no vazio, uma ilusão suspensa no espaço, sem qualquer ligação com a terra, para mim, cria uma sensação desagra-dável, um desconforto psicológico difícil de descrever.

Um filme é um processo difícil e doloroso, muito cansativo e difícil. Quando o filme terminou, eu não me senti: “Ótimo, estou feliz e satis-feito”. Fiz um filme, é claro, para contar uma história. E ao contar essa história, eu me torno parte dela. Contadores de histórias, os artistas habitualmente imaginam ter uma certa influência sobre o público. Pes-soalmente não quero exercer essa influência – isso implicaria em adotar uma determinada noção de imparcialidade e de verdade. Eu tenho di-ficuldade de situar o meu trabalho. Não importa como um filme conta

Leia na revista Piauí deste mês

o texto de Mario Sergio Conti:

O colapso. Em nove horas,

A oeste dos trilhos mostra a

dissolução da classe

operária chinesa.

uma história, é muito difícil dizer que num filme apresentamos a ver-dade. Na vida, há momentos em que as coisas são difíceis de entender. Não sabemos lidar com elas. Todo cineasta enfrenta a dificuldade de ser imparcial durante o processo criativo – enfrenta até mesmo... a dificul-dade de ser fiel a si mesmo. Acho que é muito difícil. É algo difícil de alcançar em sua vida. Eu também enfrento essa dificuldade. Afinal, qual o meu papel quando filmo um documentário? Às vezes você pode con-fiar em sua capacidade de compreender a verdade, mas às vezes você se sente perdido e acha que nunca vai alcançá-la. Com relação a isso, estou plenamente consciente de que o meu filme é um intermediário entre a minha vida e a vida do meu interlocutor. O resultado dessa interação é que pode ser considerada a verdade de um documentário.

Qual é a parte de verdade na feitura de um filme? O empreendimento é por vezes duvidoso, outras ele faz sentido. Um filme traz mesmo uma certa porção de verdade. Se podemos dizer que existe um significa-do num documentário, acho que ele não está na história contada, mas num certo momento do documentário, num instante preciso em que se transmite algo. Um lugar, um instante na vida de alguém. São, digamos, dez, cinco minutos, não importa. Esse momento, quando ele se apre-senta, e tomamos consciência dele, é determinante. Esse momento não é a história, mas a história pequena. A história pequena é o que existe de mais bonito em um documentário.”

Wang BingDepoimento para o Festival de Berlim, fevereiro de 2002.

A oeste dos trilhos

Shenyang é uma cidade em desmonte. Outrora pólo militar na fabricação de armamentos para o exército japonês, a cidade torna-se centro siderúrgico com a Revolução Cultural. Lar para mais de dois milhões de chineses, Shenyang é observada por Wang Bing entre 1999 e 2001. Nesse meio tempo, fábricas fe-charão, famílias serão desalojadas e os trilhos, tão presentes no movimento da cidade, serão, aos poucos, marginalizados da vida econômica local. Wang Bing registra essa falência múltipla em A oeste dos trilhos (Tie Xi Qu, 2003), dividin-do-a em três partes coincidentes: Ferrugem; sobre as fábricas; Vestígios, sobre os moradores; e Trilhos. A divisão, porém, é mais uma opção de estruturação espacial do que de recorte temático.

As questões, em A oeste dos trilhos, são maiores do que os ambientes em que o filme se encerra e, por isso, o que vemos na tela são apenas reflexos desse processo mais amplo da sociedade. Não existem, nas nove horas do longa-metragem de estreia de Wang Bing, três filmes complementares, mas sim um filme só em que o acúmulo e a circulação de elementos visuais e narrativos são necessários para a impressão do todo. Um filme dividido em três partes, mas partes que refletem questões tão maiores, que seus subtítulos podem ser deslo-cados para impressões que transbordam seus limites em tela.

O primeiro plano de A oeste dos trilhos incorpora muitas das intenções da abor-dagem de Wang Bing: com a câmera instalada na frente de um trem (o olho do trem), cortamos Shenyang pela linha férrea. A câmera passeia pela cidade em velocidade surpreendentemente lenta, com os olhos fixos em frente, sem nunca girar o pescoço com uma panorâmica ou um movimento lateral que se contraponha à determinação dos trilhos. Esse plano é tanto síntese do proces-so pelo qual passa aquele lugar, como da maneira que Wang Bing se relacio-nará com o universo que ele escolhe filmar. Em primeiro lugar, por A oeste dos trilhos impressionar, paradoxalmente, pelo olhar absolutamente criterioso de Bing: uma vez sabendo estarmos diante de um filme de nove horas de duração, é difícil achar um plano que – seja na composição ou na duração – não traga

PaSSagEiRO dO TEmPO | FáBIo aNdradE

uma nova perspectiva, um novo dado sobre a situação que está sendo filmada. A oeste dos trilhos é de uma economia espantosa, pois se seu tempo absoluto tem um peso, em sua diegese ele é reduzido ao absolutamente essencial. Se passamos vários minutos observando trabalhadores carregando sacos de mi-nério, é porque essa atividade ganha um significado que só é encontrado nos segundos finais do plano.

O “olho do trem” diz muito sobre a absoluta certeza do realizador de o que lhe interessa em tudo que filma, sobre sua convicção em não olhar para o lado na hora errada. Existe uma abertura enorme para que o imprevisível entre na fil-magem, mas esta abertura só é produtiva por Bing saber exatamente para onde apontar sua câmera em qualquer ambiente em que se instala. Pela handycam, mini-DV com foco e diafragma funcionando automaticamente, percebemos um diretor absolutamente rigoroso em seus enquadramentos, em sua capaci-dade de recortar o mundo com os limites do quadro, garantindo, sempre, que esse recorte estabeleça relações e crie sentidos a partir da disposição física dos vetores enquadrados.

A segunda evidência do primeiro plano está em sua lentidão: Wang Bing tem um respeito quase ritualístico por tudo que filma, e sua aproximação é tanto fruto quanto evidência desse sentimento. Esse cuidado, porém, não é movido pela ilusão de se fazer invisível, mas sim de permitir que seus personagens se sintam à vontade com a presença da câmera – o que é radicalmente diferente. Embora a intimidade alcançada por Wang fique evidente nos despudorados planos de nudez dos trabalhadores das fábricas em Ferrugem, mais reveladora é a maneira como o dispositivo do filme vai se transformando à medida em que a presença da câmera se torna conscientemente mais natural. As persona-gens, que, até então, limitavam-se a serem observadas, passam a perceber, pela presença da câmera, a singularidade do momento histórico em que estão inse-ridas. Aos poucos, elas compreendem a câmera como ferramenta de registro, e passam a, espontaneamente, falar diretamente com ela – ou melhor, para ela.

A oeste dos trilhos

Existe, também, um caráter simbólico nesse plano inicial, que marcará uma terceira posição do realizador em relação ao que é filmado: a apreensão do tempo que passa. Esse tempo, porém, não é tanto sentido dentro de um mes-mo plano (como ele trabalhará em seu segundo filme, Fengming – memórias de uma chinesa / He Fengming, 2007), mas sim em um processo que é costurado por essa primeira imagem. Mais tarde, o mesmo plano do trem retornará, mas a tranquilidade e a fluidez da tomada inicial serão substituídas ou por um ritmo mais acelerado ou, ainda depois, pelo encontro com um obstáculo que impede o trem de seguir seu caminho. O trem – máquina suprema da revolu-ção industrial e do espírito expansivo burguês que gerou, entre outras coisas, o próprio cinema – aparece como metáfora do processo de dissolução daquela sociedade. Estamos a ver um mundo a morrer – e o infinitivo, aqui, é absolu-tamente essencial. A aceleração do trem, oito horas depois daquele primeiro plano, vem representar em imagem o ritmo de um processo que, nos dois anos que Wang Bing o acompanhara com sua câmera, saíra da morosidade para a absoluta vertigem. O tempo, em A oeste dos trilhos, é um tempo de degradação.Só pode ser compreendido se passarmos, nós espectadores, também por ele.

Na segunda parte de A oeste dos trilhos, saímos do universo dos trabalhadores siderúrgicos e acompanhamos, em uma vila da cidade, a vida dos adolescentes. Observamos seus labirintos amorosos, suas vidas familiares, seus tempos mor-tos cheios de vida. Não recebemos qualquer tipo de orientação de quem são aquelas pessoas (os créditos limitam-se a dar nomes que rapidamente esquece-remos), ou qualquer informação que as situe como personagens alegóricos de um determinado contexto social. Wang Bing não faz julgamento ou denúncia sobre a situação em que elas vivem. Se chegamos à miséria pelo contraste com o mundo em que vivemos, é uma impressão que passa assim que Wang Bing determina que o importante é enxergarmos aquele espaço mais como um con-junto de lares do que como um organismo. O que existe é um convite a, de fato, observá-las em seu movimento. A chave para desmontar esse aparente alea-

tório vem em uma conversa montada de forma a conservar sua casualidade: interrompendo a descontração do papo, um dos rapazes pergunta para outro se sua casa está na lista de demolições do governo. Ele responde que sim.

A oeste dos trilhos é construído, sobretudo, pela instalação do olhar, pela vivência de um cotidiano que é, como qualquer outro, determinado pelo tempo. É um filme sobre a duração – palavra que pode ser pensada tanto por sua raiz eti-mológica (pois para conhecermos o que dura, precisamos passar pelo que não sobrevive ao processo), quanto pela definição de Bergson, e a ideia de que toda fatia de movimento exprime a mudança da duração, do todo. Para termos uma impressão aproximada do peso dessas demolições, é preciso que conheçamos o que será perdido. Só depois de uma hora participando da vida daqueles jovens é que teremos uma impressão mais completa de tudo que será destruído, de tudo que deixará de existir com aquela intervenção em seus lares.

A abertura controlada de Wang Bing em relação ao acaso se mostra nova-mente essencial, pois uma pequena conversa é capaz de ressignificar tudo que havíamos visto até então. Pouco a pouco, percebemos que essa dupla influência acontece tanto na relação entre dois planos como entre os vários elementos dentro de um único plano. Pois, uma vez o espectador colocado em sintonia com aquela existência, tudo que é mostrado ganha peso de metáfora, de sim-bolismo. Depois de ouvirmos um senhor de idade dizer que os jovens chineses estariam em um limbo entre a identificação completa com o regime (caso de sua geração) e a revolta contra essa instituição, a voz de uma jovem que, fora de quadro, canta uma canção sobre como “se apaixonar é fácil, o difícil é manter” se constrói como metáfora para toda a relação entre cidadãos e Estado que vemos em tela.

Em filme construído a partir da deteriorização causada pelo tempo, a linea-ridade da montagem ressalta os remanescentes não como sobreviventes, mas como artefatos de um tempo morto que perturbam a paisagem do presente.

A oeste dos trilhos

Seja pelo último barraco que se pronuncia à horizontalidade das demolições, pelas canções nacionalistas que os mais velhos cantam no karaokê, ou pelas gigantescas fábricas abandonadas que duram para além de suas funções origi-nais, a paisagem, em A oeste dos trilhos, parece não ser mais do que o empilha-mento das histórias que o tempo, progressivamente, pôs ao chão (raciocínio que Wang Bing aprofundaria em Brutality Factory, seu episódio no filme co-letivo O estado do mundo, de 2007, codirigido por Chantal Akerman, Ayisha Abraham, Apichatpong Weerasethakul, Vicente Ferraz e Pedro Costa).

A imagem perfeita para esse tempo que passa está sugerida no título da pri-meira parte de A oeste dos trilhos: Ferrugem. É ela a superfície de um novo tempo que se deposita sobre um tempo anterior, corroendo-o aos poucos, mas sem destruí-lo por completo de imediato; escondendo sua base sob uma cama-da de presente. Mais do que uma crítica pontual a um caminho tomado pelo andamento da história, Wang parece interessado em pensar a própria idéia de história, ou a própria ideia de tempo: existe, em A oeste dos trilhos, uma preocu-pação aguda com a linearidade, pois a camada de ferrugem é algo que se instala progressivamente, dia após dia.

É ela, também, que protagonizará a imagem mais forte de A oeste dos trilhos: ao fim da demolição de toda uma comunidade, um morador remanescente arrasta peças de ferro encontradas nos escombros da antiga vila. Entre os restos, está uma chapa metálica idêntica às produzidas nas linhas de montagem, agora já desativadas, que vemos em pleno funcionamento na primeira parte do filme. Mas, se antes vimos centenas dessas chapas saindo, estalando de novas, das fábricas, a folha do presente está retorcida e coberta de ferrugem. É por essa capacidade ímpar de condensar o devir histórico de um império industrial e a relação espaço-tempo do cinema em uma mesma imagem que Wang Bing concretiza, em A oeste dos trilhos, uma das estreias mais impressionantes do cinema recente.

Texto escrito em maio de 2008 e originalmente publicado www.revistacinetica.com.br

A oeste dos trilhos | Tie Xie Qu

OS FilmES dE FEVEREiRO | WaNG BING | a OESTE dOS TRilHOS

SExTa 11

14h30: a oeste dos trilhos (Tie Xie Qu) de Wang Bing (China, 2003. Parte 1: Ferrugem. 244’) Outrora o grande centro da indústria pesada, Tie Xie, no Nordeste da China, é agora um cenário de decadência. Com as reformas econômicas, as falências, demolições e tranferências de fábricas para outras regiões deixaram comunidades inteiras sem emprego. Entre 1999 e 2001, Wang Bing seguiu a antiga linha de trens que cortava a área industrial para documentar a situação precária de trabalhadores deixados para trás e que sobrevivem da venda de ferro-velho das fábricas demolidas. Em Ferrugem, ele mostra a desintegração de uma aldeia. Expõe as precárias condições de trabalho numa fundição, numa fábrica de cabos elétricos e numa outra de chapas metálicas – máquinas desgastadas, ausência de medidas de segurança e de equipamentos para proteger os trabalhadores de substâncias tóxicas. Com um sistema de produção obsoleto, as fábricas enfrentam a falta constante de matérias-primas, e os trabalhadores vão pouco a pouco perdendo o emprego.

19h00 : a oeste dos trilhos (Tie Xie Qu) de Wang Bing (China, 2003. Parte 2: Vestígios. 178’) Vestígios segue as famílias de trabalhadores de um antigo conjunto residencial operário com a atenção voltada para as crianças e os adolescentes obrigados a lidar com um inevitável deslocamento, expulsas da cidade pelo fechamento das fábricas de Tie Xie.Outrora o grande centro da indústria pesada, Tie Xie, no nordeste da China, é agora um cenário de decadência. Com as reformas econômicas, as falências, demolições e tranferências de fábricas para outras regiões deixaram comunidades inteiras sem emprego. Entre 1999 e 2001, Wang Bing seguiu a antiga linha de trens que cortava a área industrial para documentar a situação precária de trabalhadores deixados para trás e que sobrevivem da venda de ferro-velho das fábricas demolidas.

SáBadO 12

14h00: a oeste dos trilhos (Tie Xie Qu) de Wang Bing (China, 2003. Parte 2: Vestígios. 178’) Vestígios segue as famílias de trabalhadores de um antigo conjunto residencial operário com a atenção voltada para as crianças e os adolescentes obrigados a lidar com um inevitável deslocamento, expulsas da cidade pelo fechamento das fábricas de Tie Xie. Outrora o grande centro da indústria pesada, Tie Xie, no nordeste da China, é agora um cenário de decadência. Com as reformas econômicas, as falências, demolições e tranferências de fábricas para outras regiões deixaram comunidades inteiras sem emprego. Entre 1999 e 2001, Wang Bing seguiu a antiga linha de trens que cortava a área industrial para documentar a situação precária de trabalhadores deixados para trás e que sobrevivem da venda de ferro-velho das fábricas demolidas.

19h30 : a oeste dos trilhos (Tie Xie Qu) de Wang Bing (China, 2003. Parte 3: Trilhos.132’) Outrora o grande centro da indústria pesada, Tie Xie, no nordeste da China, é agora um cenário de decadência. Com as reformas econômicas, as falências, demolições e tranferências de fábricas para outras regiões deixaram comunidades inteiras sem emprego. Entre 1999 e 2001, Wang Bing seguiu a antiga linha de trens que cortava a área industrial para documentar a situação precária de trabalhadores deixados para trás e que sobrevivem da venda de ferro-velho das fábricas demolidas. Trilhos acompanha o cotidiano de pai e filho que limpam os pátios ferroviários das fábricas mortas para tentar vender as peças como matéria bruta para as que ainda funcionam.

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14h30: a oeste dos trilhos (Tie Xie Qu) de Wang Bing (China, 2003. Parte 1: Ferrugem. 244’) Outrora o grande centro da indústria pesada, Tie Xie, no nordeste da China, é agora um cenário de decadência. Com as reformas econômicas, as falências, demolições e tranferências de fábricas para outras regiões deixaram comunidades inteiras sem emprego. Entre 1999 e 2001, Wang Bing seguiu a antiga linha de trens que cortava a área industrial para documentar a situação precária de trabalhadores deixados para trás e que sobrevivem da venda de ferro-velho das fábricas demolidas. Em Ferrugem, ele mostra a desintegração de uma aldeia. Expõe as precárias condições de trabalho numa fundição, numa fábrica de cabos elétricos e numa outra de chapas metálicas – máquinas desgastadas, ausência de medidas de segurança e de equipamentos para proteger os trabalhadores de substâncias tóxicas. Com um sistema de produção obsoleto, as fábricas enfrentam a falta constante de matérias-primas, e os trabalhadores vão pouco a pouco perdendo o emprego.

19h00 : a oeste dos trilhos (Tie Xie Qu) de Wang Bing (China, 2003. Parte 3: Trilhos.132’) Outrora o grande centro da indústria pesada, Tie Xie, no nordeste da China, é agora um cenário de decadência. Com as reformas econômicas, as falências, demolições e tranferências de fábricas para outras regiões deixaram comunidades inteiras sem emprego. Entre 1999 e 2001, Wang Bing seguiu a antiga linha de trens que cortava a área industrial para documentar a situação precária de trabalhadores deixados para trás e que sobrevivem da venda de ferro-velho das fábricas demolidas. Trilhos acompanha o cotidiano de pai e filho que limpam os pátios ferroviários das fábricas mortas para tentar vender as peças como matéria bruta para as que ainda funcionam.

SExTa 18

14h30 : as damas do bosque de Boulogne (Les Dames du bois de Boulogne) de Robert Bresson (França, 1945. 86’)

16h30 : O processo de Joana d’arc (Procès de Jeanne d’Arc) de Robert Bresson (França, 1962. 65’)

18h00 : O batedor de carteiras (Pickpocket) de Robert Bresson (França, 1959. 75’)

20h00 : O dinheiro (L’Argent) de Robert Bresson (França, 1983. 85’)

OS FilmES dE FEVEREiRO | ROBERT BRESSON

Política de relação

Em época atiçada pelo relativismo, O dinheiro – último filme de Robert Bresson – clama por definições categóricas: trata-se da obra-prima de um dos maiores criadores da ainda breve história do cinema. Não deixa de ser sintomá-tico, porém, que o gênio de Bresson frequen-temente escorregue entre os dedos porosos das antologias e da taxonomia de afetos que coleciona planos e trechos de diálogos como pequenas pílulas do sublime. Pois embora Bresson tenha sido um dos mais ávidos pes-quisadores da criação do sublime no cinema, o brilho de seus filmes raramente transparece no esquartejo sistemático que busca localizar com precisão onde a graça se manifesta. Que a crítica e a academia não se culpem pela vio-

lência por vezes necessária no contato com as obras: O dinheiro só faz provar que, como to-dos os maiores filmes, sua força não está con-tida em suas partes e ela escorrerá incólume pelos cortes deixados por qualquer tentativa de desmonte ou recomposição.

Citando o próprio Bresson, em um dos aforis-mos de seu Notas sobre o cinematógrafo:

“Se uma imagem, olhada à parte, expressa ni-tidamente alguma coisa, se ela comporta uma interpretação, ela não se transformará no con-tato com outras imagens. As outras imagens não terão nenhuma força sobre ela, e ela não terá nenhuma força sobre as outras imagens. Nem ação, nem reação. Ela é definitiva e inu-tilizável no sistema do cinematógrafo. (Um sistema não regula tudo. Ele é o detonador de alguma coisa)”.

Mesmo em seus momentos lapidares, como os caminhos estranhos que levam à epifania na fala final de Pickpocket, o cinema de Bresson é marcado por uma determinação que impede a exclusão ou a desarticulação da parte com o todo (os caminhos imprimem a necessida-de de uma trajetória, mais do que a teleolo-gia do objetivo final). O perigo de filmes tão incontornavelmente íntegros como O dinheiro é gerar justamente a paralisia crítica, a afasia improdutiva de quem experimenta o milagre, mas dele não consegue mais sair. No cinema

de Bresson, tal autismo seria ainda mais trá-gico: filmes como Pickpocket, Procès de Jeanne d’Arc ou Au hasard Balthazar são justamente sobre personagens (ou, no caso de Baltha-zar, sobre a encarnação literal do sublime na presença de uma mula) que foram ao céu e retornaram, que tiveram o momento de cla-rividência e voltaram, em sequência, às trevas cotidianas.

E aí chegamos a O dinheiro - seu epitáfio apa-rentemente apocalíptico e niilista - e perce-be-se que o que faz do filme uma obra-prima não é, como se espera, seus planos, suas ações, seus momentos individuais. Ao contrário, O dinheiro é o filme definitivo de Bresson por tematizar a política da estrutura de seus fil-mes: assim como a decupagem e a montagem,

o universo do filme é regido por relações que, mesmo quando completamente arbitrárias, determinam ações e reações, e tiram seu sig-nificado do contato entre os pequenos núcleos (as cenas, ou as pessoas).

Diante da primazia de seu protagonista-título, as personagens gélidas e robotizadas têm suas ações comandadas pela arbitrariedade conve-niente das circunstâncias, à medida em que o foco narrativo do filme segue passado de mão em mão, como a nota que o protagoniza. O dinheiro é um filme não sobre personagens individuais, nem sobre pequenas narrativas de vida, mas sim sobre esse personagem-sistema que o dinheiro representa, e que impõe uma regra indistinta e acrítica a tudo que a ele está submetido.

“Filme de cinematógrafo em que as imagens, como as palavras do dicionário, somente têm força e valor pela sua posição e relação”.

Um sistema, lembremos, “não regula tudo. Ele é o detonador de alguma coisa”. E a nota de 500 francos, como qualquer sistema, é ainda por cima uma nota falsa – uma aparência de ordem e autoridade sem qualquer lastro, forja-da para se conquistar um determinado objeti-vo. Ela é apenas o detonador de uma série de relações aleatoriamente opressoras, que confi-nam as personagens a um esquema deliberado de convívio e representação. À primeira vista,

O dinheiro

tal fatalismo pode aproximar erroneamente O dinheiro de um outro cinema “de qualidade” francês – para o qual a geração da Nouvelle vague tinha como o antídoto os filmes do pró-prio Bresson – no qual a soberania do sistema de representação eventualmente se transfor-mava em tirania e automatismo. Mas Bresson – criador de um conjunto de diretrizes apa-rentemente austero que ele veio a chamar de “cinematógrafo”, e que determinava toda sua relação com a cena – não só se dedicava a en-contrar soluções formais (os procedimentos) que respondessem apropriadamente à matéria de cada filme (as cenas), como usava-o para propiciar que o mistério se consagrasse. Sobre seus “modelos” (seus intérpretes), escreveu:

“o importante não é o que eles me mostram, mas o que eles escondem de mim, e sobretu-do o que eles não suspeitam que está dentro deles”.

Se O dinheiro é também um filme sobre a pró-pria política de encenação bressoniana, é ine-vitável que nele exista, também, algo que foge ao sistema, algo de desconhecido que é deto-nado por ele. É o caso de Yvon Targe, perso-nagem de Christian Patey, a quem acompa-nhamos ao longo de quase todo o filme, mas que nem por isso chegamos perto de conhecer integralmente. Não à toa, mais surpreenden-te do que a violência de seus atos finais é a maneira como ele assume seus atos, entregan-

do-se às consequências que ecoam na ausência dos créditos finais. Pois em um filme marcado pela rigidez formal interna e externa à diegese, é no ato final de Yvon que encontramos a sín-tese do pensamento de Robert Bresson: que não aceitar jogar segundo as regras do jogo, que não deixa que ela determine o seu futuro – uma vez que já determinou seu passado e seu presente – e que, como o Bartleby de Herman Melville, impor a política de quem prefere não fazer é, no fim das contas, o atestado último e possível de uma verdadeira liberdade. Fábio Andrade | www.revistacinetica.com.br

OS FilmES dE FEVEREiRO | ROBERT BRESSON

Um condenado à morte escapou

SáBadO 19

14h00 : a grande testemunha (Au hasard Balthazar) de Robert Bresson (França, 1966. 95’)

16h00 : mouchette (Mouchette) de Robert Bresson (França, 1967. 78’)

18h00 : Um condenado à morte escapou (Un Condamné à mort s’est échappé ou Le Vent souflle où il veut) de Robert Bresson (França, 1956. 99’)

20h00 : as damas do bosque de Bolougne (Les Dames du bois de Boulogne) de Robert Bresson (França, 1945. 86’)

dOmiNgO 20

14h30 : O processo de Joana d’arc (Procès de Jeanne d’Arc) de Robert Bresson (França, 1962. 65’)

16h00 : Um condenado à morte escapou (Un Condamné à mort s’est échappé ou Le Vent souflle où il veut) de Robert Bresson (França, 1956. 99’)

18h00 : O dinheiro (L’Argent) de Robert Bresson (França, 1983. 85’)

20h00 : a grande testemunha (Au hasard Balthazar) de Robert Bresson (França, 1966. 95’)

TERça 22

14h30 : O dinheiro (L’argent) de Robert Bresson (França, 1983. 85’)

16h30 : mouchette (Mouchette) de Robert Bresson (França, 1967. 78’)

qUaRTa 23

15h30 : mouchette (Mouchette) de Robert Bresson (França, 1967. 78’)

17h00 : O processo de Joana d’arc (Procès de Jeanne d’Arc) de Robert Bresson (França, 1962. 65’)

18h30 : O batedor de carteiras (Pickpocket) de Robert Bresson (França, 1959. 75’)

20h00 : as damas do bosque de Boulogne (Les Dames du bois de Boulogne) de Robert Bresson (França, 1945. 86’)

qUiNTa 24

15h30 : O batedor de carteiras (Pickpocket) de Robert Bresson (França, 1959. 75’)

17h15 : O dinheiro (L’Argent) de Robert Bresson (França, 1983. 85’)

Em fevereiro, até a quinta-feira 10, e depois da sexta-feira 25, o programa de cinema do Instituto Moreira Salles será feito em parceria com o Unibanco Arteplex.

Um condenado à morte escapou

OS FilmES dE FEVEREiRO | STraUB E HUIlET | gENTE da SicÍlia

qUiNTa 24

19h00 : gente da Sicília (Sicilia!) de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet (França, Itália, Suíça, 1999. 76’)Entrada franca. Sessão em parceria com www.revistacinetica.com seguida de debates com críticos da revista

A épica dos gestosA imagem que sugeriu ao casal Jean-Marie Straub e Danièle Huillet a criação de Sicilia! se oculta na abertura do filme: em 1972, quando estiveram pela primeira vez na Sicília, viram toneladas de laranjas jogadas no fundo do leito de um rio, uma estraté-gia para evitar a queda dos preços: o capitalismo é uma máquina de consumo, um insaciável Moloch. Não vemos o leito do rio, sequer a testemunha deste estado de coisas: um homem nos dá as costas. Um siciliano? Não, um exilado, um corpo sem iden-tidade, sem história: é confundido pelo vendedor de laranjas com um americano e pelo amolador de facas, no final, com um forasteiro. Não lhe conhe-cemos ainda as feições. Sicilia! vai tentar traçar esta história – reconstituí-la? –, dar a este homem um passado e um destino. Para começar, a enumeração dos locais onde uma história teve lugar: Donna-fugata, Castelvetrano, Messina. De onde veio este homem, expropriado de seu próprio passado, um apátrida de si mesmo?

Todo o filme é estruturado segundo uma lógica de recitação, onde presenças são enfileiradas umas após as outras – lugares, comidas, gestos, hábitos – e, por intermédio da palavra, chegam a uma ple-nitude material inigualável. Mas não qualquer pa-lavra, dramática ou expositiva; a palavra em Straub

mostra a coisa em seu espaço/tempo único, um eterno presente; o saboroso canto, o sotaque, as pausas e precipitações que emanam da dicção dos atores, fruto de muito ensaio, servem justamente para isso: não se trata de mera evocação ou des-crição naturalistas, mas de presentificação. Como bem diz o crítico e realizador Jean-Charles Fi-toussi sobre esse filme inspirado no livro de Elio Vittorini, “o prazer de filmar dos Straub vem de um trabalho de reencontro, reencontro com uma realidade que preexistia ao texto, e que o texto conserva em estado latente – assim, eis o prazer dos nomes de Vittorini, todos intensificados em sua enumeração pela alegria de saber que a coisa nomeada existe ou existiu”. O trabalho necessário aos Straub sobre os corpos e as dicções dos atores visa à restituição da inocência perdida que Hein-rich von Kleist entrevia no teatro de marionetes. É um exercício de prosódia e de pantomima que, ao transformar o ator em um autômato espiritual – antes de tudo, um corpo que fala, e não uma fala que se exprime num corpo – libera a palavra para sua materialidade primeira, despojando-a do peso da significação, psicológica ou dramática.

A recitação em Sicília! é um fio condutor que leva das palavras às coisas que as sedimentam, e nova-mente das coisas às palavras, onde os elementos – corpos humanos ou naturais – tendem a se fixar. Se a palavra é o lugar de uma plenitude, de uma aura, a imagem de Sicília! é marcada por um déficit, uma série de buracos negros: estranhas suspensões tem-porais paralisam os personagens num vazio que assinala o plano como uma experiência de exílio e de alienação; elipses que designam uma irredutível distância entre o campo e o contracampo, distância que espelha a alteridade radical do personagem em

relação àquele mundo. A sequência do encontro com a mãe, cuja função dramática estaria justa-mente em possibilitar uma reconciliação do per-sonagem com seu passado – telúrico e afetivo –, neste sentido é paradigmática: os personagens se defrontam; menos um reencontro que um auto de acusação e lamento mútuos e irredutíveis; a mãe e o filho se entrincheiram em uma fortificação, em monólogos. Não há um campo versus um contra-campo, uma cadência de troca e coordenação. Um stacatto atonal, um invisível abismo interdita a cris-talização de uma unidade e condena mãe e filho a gestos maquinais, taquigráficos – “corta o melão!” – ; é como se o tempo, o tempo de uma história, o tempo de sua história, tivesse sido paralisado, transfomado em espaço, geometrizado, como bem nos mostra o trabalho de angulação e o faux raccord da seqüência. É como se não fosse mais possível uma experiência comum aos personagens.

Silvestre contempla a mãe e o mundo que ela re-presenta “do lado de fora”, protegido pela barreira do plano: um irremediável peregrino, alguém que ainda não encontrou o seu lugar no mundo (e no filme) e que talvez jamais encontre. Um incomen-surável fora de campo, uma história da qual jamais saberemos os detalhes, torna a sequência fantas-magórica, impede que o encontro se consume: é a presença (ausente) do amante morto, um substitu-to do pai, um rival a ser enterrado, um passado a ser enlutado, se quisermos realmente prosseguir. Ago-ra, entendemos o significado da lenta panorâmica sobre um campo siciliano que inaugura a sequência do reencontro com a mãe, panorâmica repetida ao fim do colóquio. Aquela não era uma paisagem, uma reconciliação com a terra, mas um cemitério, onde provavelmente estava enterrado o amor da mulher. Dificil falar em paisagens no cinema dos Straub; há sempre um uso ativamente dialético do fora de campo que redimensiona o campo, que transforma toda paisagem em um marco de cultura ou de barbárie – como diz Serge Daney a respeito de Toute révolution est un coup de dés (curta-metra-gem de Straub e Huillet, 1977): atores lêem tre-chos do poema de Mallarmé sobre o que parece a princípio uma colina. O que não sabemos – o filme não nos diz – é que a suposta colina era o cemitério onde estavam enterrados os resistentes da Comuna de Paris. O passado morto e enterrado, Silvestre aparece em primeiríssimo plano e a profundidade de campo nos mostra uma rua a perder de vista, a distância de uma herança com a qual enfim se acertaram as contas. É hora do recitativo final, do amolador de facas: celebração do presente como dom, festejo panteísta do por-vir.

Luiz Soares Júnior | www.revistacinetica.com.br

Gente da Sicília

qUiNTa 17

19h00 : Pampulha ou a invenção do mar de minas de Oswaldo Caldeira (Brasil, 2010. 73’) Sessão organizada em parceria com a Associação Brasileira

de Cineastas e seguida de debate com o realizador

“Um documentário sobre os sonhos de dois ho-mens: Juscelino Kubitschek e Niemeyer” – assim Oswaldo Caldeira define seu filme sobre a criação da Pampulha, “a primeira grande obra de Oscar Niemeyer e do modernismo brasileiro, uma ousada aposta do então prefeito de Belo Horizonte, Jusce-lino Kubitschek”.

“Pampulha foi o início da minha arquitetura e a primeira obra que JK realizou”, lembra Niemeyer em depoimento para o filme. “E foi o início de Bra-sília. Juscelino vivia o encanto de fazer uma coisa bonita.Lembrava assim um príncipe da Renascen-ça, procurando a beleza, a coisa diferente. Era uma grande figura.”

Apresentado pelo ator Rodolfo Bottino, o filme reconstitui a construção do conjunto da Pampulha na década de 1940, quando Juscelino Kubitschek apostou no talento de um arquiteto que tinha em seu currículo apenas o Grande Hotel de Ouro Pre-to. Niemeyer teve um dia de prazo para esboçar sua ideia, lembra em depoimento para o filme:

“Eu era jovem e aquele pedido, feito de repente, não me intimidou. No dia seguinte entreguei o projeto, o mesmo que acabou sendo construído”.

OS FilmES dE FEVEREiRO | PamPUlHa

Instituto Moreira Salles Rua Marquês de São Vicente, 476. Gávea. Telefone: (21) 3284-7400

www.ims.com.br

De terça a sexta, das 13h às 20h. Sábados, domingos e feriados das 11h às 20hAcesso a portadores de necessidades especiais. Estacionamento gratuito no local. Café WiFi.

ingressos para os filmes de Robert Bresson e de Wang Bing : R$ 10,00 (inteira) R$ 5,00 (meia).

Ingressos disponíveis também em www.ingresso.com Capacidade da sala: 113 lugares.

como chegar: as seguintes linhas de ônibus passam em frente ao IMS:

158 – central-gávea (via praça Tiradentes, Flamengo, São clemente)

170 – Rodoviária-gávea (via rio Branco, largo do Ma-chado, São clemente)

592 – leme-São conrado (via rio Sul, São clemente)

593 – leme-gávea (via Prudente de Morais, Bartolomeu Mitre)

Ônibus executivo Praça Mauá - Gávea

O programa de cinema de fevereiro tem o apoio da

Cinemateca do Museu de Arte Moderna

do Rio de Janeiro, e da

Cinemateca da Embaixada da França,

Cultures France, Embaixada da França.

E conta ainda com a parceria do Unibanco Arteplex,

da Videofilmes, da Revista Cinética e da

Asociação Brasileira de Cineastas.

Curadoria: José Carlos Avellar. Assessoria de programação: Eduardo Ades. Coordenação do IMS - RJ: Elizabeth Pessoa. Assessoria de coordenação: Bárbara Alves Rangel.

Capa : O batedor de carteiras, de Robert Bresson Quarta capa: A oeste dos trilhos, de Wang Bing

“Foi o início de uma relação de amizade que deu muitos frutos à arte e à paisagem brasileira”, co-menta Caldeira. “Juntos, Juscelino e Niemeyer reestabeleceram a ligação entre arquitetura e artes plásticas, cujo ápice se daria na construção de Bra-sília”.

Com algumas imagens filmadas por Humberto Mauro, o filme, além do depoimento de Oscar Nie-meyer, entrevista personagens que viveram a época, como o músico José Torres e o engenheiro Marco Paulo Rabelo, e conversa ainda com estudiosos, como o escritor Silviano Santiago, o historiador e ex-prefeito de Ouro Preto, Ângelo Oswaldo de Araújo Santos, o professor Muniz Sodré da UFRJ, a professora Eneida Maria de Souza da UFMG, a então Diretora do Museu de Arte da Pampulha, Priscila Freire, e o historiador e critico de arte Fre-derico Morais.

Trata-se de um documentário sobre os sonhos de dois homens, sublinha o diretor.

“Ao longo de meu trabalho, tenho focalizado per-sonagens sonhadores, pessoas que perseguiram projetos aparentemente delirantes que acabaram por se concretizar de alguma forma, superando os limites do momento. Assim foi com Orlando Sil-va, em O cantor das multidões, com Afonsinho, em Passe livre, com o Geraldo Viramundo, de O grande mentecapto e o Jorge, de O bom burguês, com Tira-dentes e com Ajuricaba.

a oESTE doS TrIlHoS

WaNg BiNgINSTITUTO MOREIRA SALLES | CINEMA | 11, 12 E 13 DE FEVEREIRO DE 2011