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LOLA ANIYAR DE CASTRO CRIMINOLOGIA DA REAÇÃO SOCIAL Tradução e Acréscimos de Ester Kosovski Doutora cm Direito; Profeseora-Adjunta da Universidade Federal do Rio de Janeiro, lecionando nas Faculdadei de Direito, Serviço Social e Comunlcaç&o desta Universidade. FORENSE Rio de Janeiro 1983

CRIMINOLOGIA DA REAÇÃO SOCIAL

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Page 1: CRIMINOLOGIA DA REAÇÃO SOCIAL

LOLA ANIYAR DE CASTRO

CRIMINOLOGIA DA REAÇÃO SOCIAL

Tradução e Acréscimos de Ester Kosovski

Doutora cm Direito; Profeseora-Adjunta da Universidade Federal do Rio de Janeiro, lecionando nas Faculdadei de Direito, Serviço Social

e Comunlcaç&o desta Universidade.

FORENSE Rio de Janeiro

1983

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1.* edição — 1953

(C) Copyright

Lola Aiiiyar de Castro

CIP-Brasil. Catalògação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Castro, Lola Aniyar de.C351c Criminologia da reação social / Lola Aniyar de Castro;

tradução de Ester Kosovski. — Rio de Janeiro : Ed. Forense, 1983.

Tradução de: Criminologia de ia reaccton social Bibliografia

1. Criminologia 2. Criminologia — Aspectos sociais 3. Criminologia — Filosofia I. Título

CDU — 343.982-0098 343.97

Proibida a reprodução total ou parcial, bem como a reprodução de apostilas a partir deste livro, de qualquer forma ou por qualquer meio eletrônico ou mecânico, inclusive através de processos xerográficos, de fotocópia e de gravação, sem permissão expressa do Editor. (Lei n.° 5.988, de 14.12,73.)

Reservados os direitos de propriedade desta edic.ão pela COMPANHIA EDITORA FORENSE

Av. Erasmo Braga, 299 - l.° e 2.° andares - 20020 - Rio de Janeiro - RJ Largo de São Francisco, 20 - loja - 01005 - São Paulo - SP

Impresso no Brasil Printed in Brazil

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Capítulo VIII

A CRIMINOLOGIA DA REAÇÃO SOCIAL I: A ESCOLA INTERACIONISTA. CARACTERÍSTICAS. A IMPOSIÇÃO DÀS REGRAS. OS PROCESSOS DE CRIMINALIZAÇÂO: 1) TEO-

RIA DA ROTULAÇÃO OU DA ESTIGMATIZAÇAO

Criminologia da reação social

Aqui sé colocariam as teorias que enfatizam o estudo dá atuação da audiência social, em três ordens fundamentais (ou mediante três processos diferentes de criminalização):

1. Como se manifesta a reação social criminalizando con­dutas antes lícitas, mediante a criação de normas penais (cri­minalização de condutas lícitas).

2. Como esta reação, operando-se no terreno repressivo institucional concreto é uma variável interveniente na crimi­nalidade de indivíduos.

3. Çomo esta reação contribui para a criminalização do comportamento desviante e para a perpetuação do papel deli- tivo, mediante a aposição de rótulos e a amplificação do desvio.

A criminologia da Reação Social, pois, compreenderia, tan­to as teòrias da rotulação (Becker, Erikson, Kitsuse, Lemert), como as do estigma (Goffman) e do estereótipo (Chapman).

Compreenderia também os modelos analíticos que enfocam variáveis como a organização e a sofisticação do poder e da delinqüência (Turjc), variáveis influentes na criminalização de homens e de comportamentos que têm sido definidos pelos có­digos repressivos.

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Criminologia da R eação Social 97

Tudo isto seria estudado pela chamada. Criminologia In- teracionista, a qual insiste, como já o havia feito uma corrente mais ampla que se autodeterminou Sociologia do Comporta­mento Desviante, em uma atitude não valorativa diante deste tipo de condutas, e também na necessidade.de prescindir dos estereótipos legais representados pelas codificações respectivas; codificações mutativas no tempo e no espaço, que não garantem nem a certeza, nem a autenticidade, nem a estabilidade do objeto de estudo. Esta escola deixou estabelecido, finalmente, que a causa do delito é a lei, não quem a viola, por ser a lei que trans­forma condutas lícitas em ilícitas. Quer dizer, que o problema das definições começa a delinear-se com toda a sua transcen­dência.

Até aqui pode-se ver um certo desenvolvimento, mais pro­fundo, da realidade referente ao crime, do que o que havia sido fèito pelos criminólogos da velha guarda, adstritos à Crimino­logia do Passar à Ação. Como se pode ver, para esta criminolo­gia, a ordem legal é uma construção incontestável, um ponto de partida necessário que separa, de entrada, o gênero humano cm duas espécies bem definidas: a dos delinqüentes e a dos não delinqüentes. Esta separação impregnará de conteúdo valora- tivo, portanto, subjetivo, todos os estudos referentes ao homem delinqüente, esquecendo-se de inclui-lo dentro da totalidade do sistema, assim como esquecendo-se de incluir a si mesmos, como teorias, nesse mesmo sistema, o que teria permitido determinar a que razões obedecia a sua postura epistemo^ógiça. Esta ca­rência faz parte de toda a criminologia positivista.

Também sob a denominação de Criminologia da Reação Social encontram-se situados os movimentos radicais que na nossa disciplina deram origem à chamada Criminologia Radical ou Crítica, e a que em razão do título do livro de Taylor, Walton e Young, denominou-se Nova Criminologia.

Retomando 0 discurso iniciado no primeiro capítulo recor­demos que a maneira como empreendermos a tarefa do conhe­cimento determinará o resultado desse conhecimento, e também conseqüentemente, as hipóteses, as afirmações e as teorias cien­tíficas. A epistemologia positivista deu nascimento à Crimino-

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logia do Passar à Ação. O construcionismo social originou a Escola interacionista que, como veremos, não só se interessa pelo comportamento desviante implicado no estudo da Criminologia, como também outro tipo de comportamento desviante, o das desordens mentais, objeto da Psiquiatria.

A fenomenología e a teoria crítica do Direito Penal (Quin- ney) geraram a Criminologia Crítica ou Radical — e a Nova Criminologia —, incidindo também necessariamente na Psiquia­tria, ao dar conformação, conjuntamente com a perspectiva interacionista, a um corpo de conhecimento que deu lugar ao que hoje se chama a Antipsiquiatria.

Esta posição epistemológica se reflete, pois, desde o início da criminologia, na posição tomada para apontar como se pro­duz o mecanismo da criação de normas — penais e sociais — que dão origem a dois tipos de comportamento desviante: 1) o que se desvia da norma penal, objeto da criminologia, conjun­tamente com todas as condutas que lhe assemelham, embora só violem normas sociais, mas na periferia da norma penal, que dão origem ao conceito de normalidade social, e 2) a que se desvia de normas sociais que dão origem ao conceito de norma­lidade mental.

A epistemología positiva e o conceito durkheimiano do con­senso social, produzem, pois, além da Criminologia de Passar à Ação, a Psiquiatria tradicional. O construccionismo social, a fenomenología e a teoria crítica, ao apontar que a origem das normas não deve ser buscada no consenso, mas em posições, valores e interesses em conflito, deram origem à Criminologia da Reaçao Social e à chamada Antipsiquiatria.

A Criminologia da Reação Social I: A Criminologia interacionista. Características

A Criminologia da Reação Social tem diversos graus e ex­poentes. Uma primeira orientação é a chamada Criminologia Interacionista, também denominada teoria da Rotulação ou da Estigmatização.

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Criminologia dj 99

Os seus principais representantes são: Beeker, Lemert, Kitsuse, Tanembaum, Schur, Erikson e Gusfield.

As suas proposições são absolutamente renovadoras para os que se formaram na Criminologia positivista que no ano pas­sado (1976) cumpre o seu primeiro centenário de vida, con­tado a partir do aparecimento de O Homem Delivqãente, de Cesare Lombroso.

Com efeito, uma a f ir m a ç ã o da Criminologia positivista, é que os que transgridem as normas, formam uma categoria ho­mogênea por haver realizado o mesmo fato desviante. Como diz Beeker,80 “ tal suposição me parece que ignora o fato central de que o desvio é produzido pela sociedade. Não pretendo dizer isto no sentido em que comumente é entendido, segundo o qual as causas do desvio estão situadas na situação social do desviante, ou em fatores sociais que impulsionam a sua ação. Quero dizer, que os grupos sociais produzem o desvio ao criar regras cuja infração constitui o desvio, ao aplicar estas regras a pessoas particulares e a classificá-las como estranhas. Deste ponto de vista, o desvio não é uma qualidade do ato que a pessoa realiza, mas sim uma conseqüência de que outros apliquem regras e sanções a um transgressor. O desviante é alguém a quem foi aplicado este rótulo com êxito; o comportamento desviante é a conduta que a gente rotula desse modo * (ãeviant is behavior that people so labei)”.

As conseqüências desta afirmação, para Beeker, são as se­guintes: l. As pessoas catalogadas como desviantes não formam categoria homogênea de pessoas; 2. não se pode dar como certo que essa gente realmente cometeu um ato dessa natureza, pois os processos de assinalamento não são infalíveis; 3. nem o grupo dos que foram classificados como desviantes contém todos os que transgridem uma regra; 4. a única coisa que as pessoas desse grupo têm em comum, é a experiência de terem sido classificadas como marginais (outsiders) e o rótulo correspon­dente; 5. o desvio é uma transação que tem lugar entre o grupo social e a pessoa que é encarada por esse grupo como transgres­

80 b e c k e r, H o w ard . Outsiders, ob. c lt .* Nota da autora: O sublinhado é nosso.

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xjvi a ¿ in iXA K DE UASTRO

sor; 6. Marginais (outsiders), no entanto, são também os do grupo majoritário em relação a quem foi catalogado ou eti­quetado.

O desvio, segundo isto, dependerá, entre outras, das seguin­te», situações:

1. O giau em que os demais reagem diante de um ato desviante: em alguhias ocasiões a resposta pode ser indulgente, mas se nesse momento existe ò que se chama uma campanha, as possibilidades de uma reação forte são maiores.

2. O grau em que um ato será considerado como desviante dependerá por sua vez de quem cometeu o fato e de quem se tenha sentido lesado por este. Com efeito, a classe socio- -econômica determina a prossecução e o avanço em dois graus de procedimento penal. Por exemplo, onde o problema racial existe, os negros são castigados com maior probabilidade que os brancos, e isto sucede mesmo que todos tenham cometido o mesmo delito. Também o status da vítima determinará a inten­sidade da reação.

3. O ponto de vista é variável: “o delinqüente de classe baixa que luta por seu território, pela área em que atua, está fazendo o que considera necessário e correto, embora os mestres, os trabalhadores sociais e a polícia o vejam de modo diferente” .*1

Vemos, pois, que a escola interacionista se associa às cha­madas teorias do conflito e não às denominadas do consenso.

Remontando-nos no tempo, poderíamos dizer que a primeira perspectiva interacionista da Criminologia foi proporcionada pela definição que Sutherland deu a ela. Não há dúvida de que este autor iniciou com suas proposições a moderna Criminologia. Com efeito, ao colocar como objeto desta disciplina os tréls ele­mentos aos quais fizemos referência no Capítulo V (o processo de criação de normas penais, a infração a estas normas e a reação social a esta infração) abriu caminho à Criminologia da Reação Social e definiu o primeiro enfoque interacionista, en­quanto considerava esses três aspectos como uma conseqüência unificada de interações.

81 bbckkr, ob. cit.

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Os interacionistas, no entanto, que têm, como veremos, urna marcada tendencia psicossocial, insistiram mais nos efeitos do etiquetamento do que na criação da etiqueta. E como o principal efeito da rotulação seria o de induzir a novos atos desviantes e/ou delitivos, apesar da sua grande referência à Reação Social, esta teoria continua fortemente vinculada à Criminologia do Passar à Ação. Mas o interesse marcante na interpsicologia que esta escola demonstra e a sua insistência nos processos de im­posição das regras, a fazem depositária de elementos de ambas as correntes criminológicas.

A imposição das regras

Segundo Becker, a imposição das regras é uma questão de poder político e económico, já que os grupos, cuja posição social lhes proporciona armas e poder, estão melhor capacitados para impor o seu ponto de vista, quer dizer, as suas regras. A dife­rença provém de uma supremacia, que variáveis, tais como sexo, idade, classe social, raça, religião, etc., podem explicar nos di­versos contextos.

Mas a existência de uma regra não garante, automatica­mente, que vá ser imposta. Com efeito, múltiplos fatores, basea­dos essencialmente na atitude da audiência social (por isso se fala de uma criminologia da reação social), determinaram a imposição efetiva e portanto o apontamento ou etiquetamento daquele a quem a reação social seleciona.

Becker cita especialmente casos de promulgação de leis cuja realidade esteve determinada, quando não fortemente influenciada, por grupos importantes de pressão.

Este é o caso da lei sobre psicópatas sexuais nos Estados Unidos. Neste caso, os psiquiatras jogaram um importante pa­pel, pressionando para obter essas leis, integrando as comissões correspondentes e organizando a atividade em diferentes ci­dades. 82

sü Sutherland, Edwin: The Diffusion of Sexual Psychopath Laws; em Qotnney, Richard: Crim e and Justice in Society, Boston, Little, Brown and Co., 1909, p. 88.

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Quando no mesmo país se proibiram pratica,mente todas as atividades relativas a cultivo, processamento, distribuição, etc., da marijuana, Becker cita que um grupo organizado de produ­tores de alimentos para pássaros em cuja composição entrava a semente de marijuana, conseguiu com base na pressão que significa um grupo coeso e organizado de industriais que esta atividade não fosse atingida pela lei. Se os fumadores de mari­juana, diz Becker, tivessem tido uma organização e um poder semelhantes, talvez pudessem ter imposto o seu ponto de vista ao demais.

Na Venezuela, a Direção de Prevenção do Delito dedicou o seu tempo quase que inteiramente ao problema das drogas durante o período que transcorreu entre 1971-74, mesmo quan­do o delito convencional tinha uma tal extensão que justificaria mais atenção a este. Nisso influíram fatores de natureza diversa, incluída a moda e a imitação de padrões estrangeiros de política preventiva, mas, sobretudo, a grande facilidade que este tipo de campanha oferecia para justificar um trabalho oficial de prevenção cumprida; trabalho de prevenção que em outros ter­renos estava de antemão negada pela incapacidade desta Dire­ção para atuar positivamente na problemática delitiva, dados os seus escassos recursos humanos e econômicos e a ausência de uma planificação integral do país. Nessa época o problema da droga apareceu “inilado” diante da opinião pública e a campa­nha não cessou até serem criadas as diversas Comissões Contra o Uso Indevido da Droga, a nível regional e nacional, que cul­minaram no anteprojeto de lei sobre Substâncias Estupefacientes e Psicotrópicas de 1974.

Os processos de criminalização'. l.° ) Teoria da Rotulação *

Tudo isto conflui no que se chamou processo de crimina- lização. 83

* No original, Teoria do Etlquetaraento. Preferimos usar o termo rotulação, mais adequado no vernáculo, e usar etiqueta e rótulo com o mesmo sentido, mais adiante. (N. T.)

83 Schur, Edwin: Labeling Demant Behavior, N. Y., San Francisco, Evanston, London, Harpe and Row, 1971.

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Em nosso entender, como dissemos no início do capítulo, o processo de criminalização pode se dar em três diferentes direções: 1) A criminalização de condutas, que seria o ato ou conjunto de atos dirigidos no sentido de converter uma conduta que antes era lícita, em ilícita mediante a criação de uma lei penal. 2) A criminalização de indivíduos, que consiste nos pro­cedimentos, situações, ritos ou cerimônias que levam a marcar como delinqüentes, determinadas pessoas em vez de outras, em­bora todas tenham praticado atos semelhantes, mediante um sistema de seleção que não é sempre fácil de determinar em detalhe, mas que tem sido tentado em vão por autores como Turk. 3) A criminalização do desviante que compreenderia o processo psicológico e social mediante o qual quem não é mais do que um simples desviante, se transforma em criminoso, quer dizer, o processo de formação de carreiras criminais.84

Sobre a criminalização de comportamentos, já nos esten- demoá ao expor as três teorias selecionadas para explicar a cria­ção de normas penais.

A criminalização do desviante e a conformação de carreiras criminais têm sido o foco central de atenção da escola intera- cionista através da chamada teoria da rotulação.

A maneira mais explícita, e poderíamos dizer que até grá­fica, de expor esta teoria é a utilizada por Payne,«* quando qualifica as etiquetas negativas como “ corredores que induzem e iniciam uma carreira desviante e como prisões que constran­gem a uma pessoa dentro do papel desviante”. A rotulação seria “o processo pelo qual um papel desviante se cria e se mantém através da imposição dos rótulos delitivos”. Uma etiqueta social seria “uma designação ou nome estereotipado, imputado a uma

A n iy a r d e Castro, Lola: El proceso de criminalización, em C a ­pitulo Criminológico 1, órgão do Centro de Investigaciones Criminoló­gicas de la Universidad del Zulla, Maracaibo, 1973.

ÍB P a y n e , WJHlam: Etiquetas Negativas. Pasadizos y Prisiones em Estigmatizaclón y Conducta Desviada. Criminología. Textos para su estudio n.° 2, recopílação de Rosa del Olmo, Maracaibo, publicações do Centro de Investigaciones Criminológicas de la Universidad del Zu- lia, 1973.

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pessoa baseando-se em alguma informação que se tem sobre éla”. . . . Definitivamente “são formas de classificar indivíduos em agrupamentos manipuláveis”,86

Segundo este autor as etiquetas podem ser positivas ou ne­gativas. Uma etiqueta positiva (tal como inteligente, trabalha­dor, esforçado), tanto como uma etiqueta negativa (ex-presidiá- rio, homossexual, etc.), podem ser certas, mas também falsas, baseadas em má informação ou em preconceitos ou estereótipos.

As suas qualificações são geralmente apriorístifcas e indu­zem a um comportamento de acordo com o conteúdo da mesma. Por isso diz Payne que são corredores, porque transferem uma pessoa de uma posição ou papel a uma nova posição oti papel a desempenhar, assim como acontece com os ritos de passagem; e prisões, porqüe persistem como marcas, mesmo depois de ter mudado o comportamento do indivíduo.

Os atributos ou características das etiquetas seriam os se­guintes: 87

1. São o principal elemento de identificação: elevam o indi­víduo por cima dos que o rodeiam, tornando-o visível e ao mesmo tempo invisível. Mais visível porque a etiqueta, ao fazê-lo dife­rente, o separa do grupo; e invisível porque é assim que a sua verdadeira identidade se perde. A etiqueta, pois, obscurece e esconde todas as demais características do indivíduo.

2. As etiquetas sociais criam auto-etiquetas: Isto quer dizer que a pessoa se percebe a si mesma como sente que os demais a vêem. A autopercepção encontra-se, assim, compelida a situar-se no molde da percepção dos outros. Através de um processo de resignação, de vergonha ou de sentimento de estra­nhamento, o indivíduo começa a percorrer o corredor que vai conduzi-lo a um novo papel. Isto é importante, porque a partir desse momento, e à medida que se avança por este corredor, as possibilidades de “reabilitação” diminuem.

8« ibidem.

Ç Cf. Ibidem.

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3. As etiquetas criam expectativas: A audiência social, enfrentada por quem tenha sido etiquetado, espera desta pessoa um comportamento coerente com a definição que lhe foi dada.

4. As etiquetas podem ocasionar o comportamento: O pro­cesso pode ser ilustrado pelo presente quadro: 88

5. As etiquetas produzem desvio secundário: Assim, pois, Erickson tem razão quando diz que “as formas desviantes de comportamento muitas vezes extraem o seu alimento das mes­mas agências que foram criadas para inibi-las” . M

Produz-se assim o paradoxo de que o próprio processo de tratamento cria a conduta estereotipada.

Estudos feitos demonstram que as forças policiais concen­tram as suas atenções e suas atividades de prevenção e de repressão sobre certos grupos que foram anteriormente identi­ficados por meio de etiquetas. (A folha de antecedentes policiais e penais representa aqui um importante papel.) Isto cria res­sentimentos e hostilidade nas pessoas, que estarão ainda m e n o s dispostas a prestar a sua cooperação aos agentes de c o n t r o le social e ao p r ó p r io grupo. Este c o m p o rta m e n t o , p o r seu lado, in t e n s if ic a a reação social e aglutina e solidifica c o m o conse­qüência uma conduta que será cada vez mais d e s v ia n t e . A bre-

*8 ibidem. M ibidem.

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cha entre o rotulado e a comunidade vai se aprofundando pau­latinamente e pode instaurar-se uma carreira criminal.

Este processo configura os conceitos — elaborados por Le- mert — de Desvio Primário e Desvio Secundário, sendo este último, uma produção dependente da reação social originada pelo primeiro, geralmente como um meio de ataque, de defesa ou de adequação à reação social.

O procésso pode ser desenhado segundo o modelo amplifi­cador de WiLkins:

O desvio secundário não é sempre a mesma conduta. Pode ser uma conduta nova. Assim, uma viciada em drogas que não pode pagar o preço da droga, uma vez estigmatizada, po­derá tornar-se prostituta ou cometer furtos para obter dinheiro. Algo parecido acontece com a repressão de manifestações pú­blicas. Nestes casos a violência abre uma espiral de conseqüên­cias imprevistas.

6. As etiquetas se generalizam e contagiam: Por isso se diz que elas levam um excesso de bagagem. Com efeito, a uma

* Desvio primário.♦ * Desvio secundário.

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determinada etiqueta, acrescentam-se apreciações secundárias dependentes da primeira. Assim, como se afirma que os cegos ouvem melhor, diz Payne: uma etiqueta de delinqüência juvenil, por exemplo, vai geralmente acompanhada da etiqueta de baixa crença e participação religiosa. Enquanto que uma etiqueta de boa participação em atividade religiosa gera a etiqueta de não delinqüente. Por outro lado, contagiam-se a outra« pessoas por associação, como se fossem uma doença: as culpas de uma mãe de má reputação se transmitem à filha. A má reputação de um membro da família deteriora a imagem dos demais e a sociedade reage diante deles como se a etiqueta também lhes pertencesse. Exemplo de etiquetas com negativas conseqüências familiares são o alcoolismo, o divórcio, a doença mental, a pobreza e os defeitos físicos.

7. As etiquetas dirigem a atividade social: Ao se reduzirem as ambigüidades pelo processo unitário de identificação que re­presenta a colocação de uma etiqueta, também a audiência social se encontra em um corredor que a dirige para uma con­duta reativa, enérgica e solidária. A comunidade se une ao ter uma apreciação que é comum a todos os integrantes e por isso se mobiliza para atuar. As etiquetas homossexual, doente men­tal, ex-condenado e viciado em drogas, por exemplo, incitam e mobilizam a energia pública. Por isso se diz que a etiqueta é uma profecia auto-realizável. O exemplo de Payne é muito ilus­trativo: a notícia da falência de um Banco, mesmo infundada, cria um comportamento do público que pode provocar a ver­dadeira falência como conseqüência. Como diz Thomas,90 “quando o homem define as situações como reais, elas serão reais em suas conseqüências” .

8. As etiquetas produzem subculturas: As pessoas etique­tadas como estranhas ao grupo, por uma necessidade profunda de ordem psicológica de serem aceitas, estimadas, de ter um grupo de referência que lhes dê apoio moral procurarão fazer contato com outras pessoas em condições semelhantes. Formam-

oo çitado por Schür, ob. cit., p. 8.

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-se desse modo, grupos subculturais de ressentidos e de iguais (pois neles o indivíduo já não é mais um estranho), nos quais, como reforço, desenvolver-se-á uma ideologia que racionalize e justifique enfaticamente o comportamento desviante.

Esses grupos subculturais podem ser simplesmente comu­nidades desviantes ou formar verdadeiras gangs.

Dentro deles a identificação desviante se solidifica e se cor­tam em grande parte os vínculos com o grupo exterior, isolan­do-se seus membros e aumentando a sua resistência à ressocia- lização.

Mas também estes grupos subculturais podem veicular o contágio dos diversos tipos de comportamento desviante de seus membros. Assim, um viciado em drogas, em contato com outras pessoas do baixo mundo, terá mais oportunidades de iniciar condutas não conformistas ou novos comportamentos desvian­tes, seja por aprendizagem, por imitação ou por solidariedade.