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  • Anais eletrnicos do XVI Congresso Brasileiro de Folclore - UFSC, Florianpolis, 14 a 18 de outubro de 2013

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    DEUS SALVE A CASA SANTA: UMA ETNOGRAFIA

    DAS PRTICAS UMBANDISTAS EM FORTALEZA - CEAR

    Liliany Queiroz da Silva Rodrigues Tecnloga em Artes Cnicas IFCE

    Integrante do Grupo de Estudos em Cultura Folclrica Aplicada IFCE

    End.: Av. da Universidade, 2223, Apto 302 Benfica, Fortaleza,CE

    Telefone: (85) 8733 3217 E-mail: [email protected]

    Marta Jamili Craveiro Barbosa Licenciada em Educao Infantil - UVA

    End.: Rua 09 casa 523, Loteamento So Tiago de Compostela, Passar, Fortaleza, CE

    Telefone: (85) 8525 1791 E-mail: [email protected]

    Jos Silva Pereira Jnior (Professor-Orientador)

    Mestre em Logstica e Pesquisa Operacional UFC

    Pesquisador do Grupo de Estudos em Cultura Folclrica Aplicada IFCE

    End.: Rua 10, 100 Conjunto Alto Alegre II Messejana, Fortaleza, CE

    Telefone: (85) 8722 4267 E-mail: [email protected]

    Resumo: A Umbanda pode ser considerada uma religio nascida do sincretismo nacional a partir

    de matrizes negras (macumba, candombl), ocidentais (catolicismo, kardecismo), amerndias

    (pajelana), europeias (catimb, ciganos) e outros elementos que do a cara do que se entende

    como esse movimento religioso genuinamente ambientado no Brasil. Em cada estado brasileiro, ela

    ganha uma configurao particular que d as prticas umbandistas um carter singular. No Cear, a

    Umbanda se ambienta e ganha uma faceta fortemente influenciada por diversas linhas de

    trabalho tais como pretos-velhos, caboclos indgenas, res (crianas), marinheiros, mestres

    juremeiros (forte influencia da Paraba), prncipes e princesas, entre outros e a ligao destes com

    os Orixs cultuados nos terreiros de Candombl (em suas diversas naes e formas de culto). O

    presente trabalho, que se encontra em andamento, prope fazer um estudo etnogrfico mergulhando

    no microssocial do Centro Esprita de Umbandista Pai Jos de Angola, tambm conhecida como Il

    DOxum, localizado em Fortaleza - Cear. A pesquisa busca observar como as prticas se

    ambientam nesse terreiro e como as vivncias de seu Pai-de-santo atriburam a este lugar um

    carter especial. nesta perspectiva que este estudo se desenvolver, apontando as configuraes

    que a umbanda e sua prtica particularizada assumiram. O Terreiro em estudo uma casa de

    Umbanda Omoloc, que no Cear pode ser entendida como uma casa de santo cujos ritos so

    fortemente permeados pela influncia do candombl e, na casa em questo, pela Nao Angola. A

    casa tambm conhecida por prticas comuns entre os espritas kardecistas, como o estudo

    sistematizado e a forte prtica da caridade comunidade onde se insere. nesse universo variado

    que este estudo se ganha forma na tentativa de descrever um panorama das prticas do sagrado, da

    umbanda e da religiosidade popular do povo de Fortaleza.

    Palavras-chave: Religiosidade Popular. Prticas Umbandistas. Centro de Umbanda Pai Jos de

    Angola.

    Grupo de Trabalho: Ritos, Religiosidade e Festas Populares (GT01).

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    Introduo

    Em poucos lugares do mundo podemos encontrar uma mistura interracial to

    intensa e fascinante como a brasileira. O processo de colonizao do Brasil resulta da

    imensa miscigenao entre trs principais: o ndio nativo das terras brasileiras, o branco

    europeu e o negro africano que se fazem presentes na gentica do povo brasileiro.

    Neste presente trabalho, iremos abordar um aspecto caracterstico dessa mistura

    ambientada no Brasil. A Umbanda uma religio nascida, desenvolvida e praticada no

    Brasil e fruto do sincretismo nacional, se constitui a partir de matrizes negras (macumba,

    candombl), ocidentais (catolicismo, kardecismo), indianista (pajelana), europeias

    (catimb, ciganos) e outros elementos que do a cara do que se entende como esse

    movimento religioso genuinamente vivenciado no Brasil.

    A pesar de ser uma religio que tem regras e uma filosofia pr-estabelecida, em

    cada estado brasileiro, ela ganha uma configurao particular que d as prticas

    umbandistas um carter singular. No Cear, a Umbanda se ambienta e ganha uma faceta

    fortemente influenciada pelos povos que aqui passaram/ficaram se refletindo nas diversas

    linhas de trabalho tais como pretos-velhos, caboclos indgenas, res, marinheiros,

    mestres juremeiros (fortemente ambientados na Paraba), prncipes e princesas, entre

    outros e a ligao destes com os Orixs cultuados nos terreiros de Candombl (em suas

    diversas naes e formas de culto).

    Deste modo, a investigao, que se encontra em andamento, visa observar de que

    modo a Umbanda e praticada no Cear na cidade de Fortaleza. Atendendo a este propsito,

    optamos por um estudo etnogrfico e mergulhamos no microssocial do Centro Esprita de

    Umbnda Pai Jos de Angola, tambm conhecido como Il DOxum, localizado na periferia

    da cidade de Fortaleza CE e um dos mais antigos terreiros ainda em funcionamento.

    Atravs de uma pesquisa participante, estamos buscando observar como as

    prticas se ambientam nesse terreiro que pratica o que denominam de Umbanda

    Omolok e como suas vivncias atriburam a este lugar um carter especial se refletindo

    em seu calendrio festivo e ritualstico. nesta perspectiva que apresentamos este estudo e

    ele se desenvolve apontando as configuraes que a umbanda e sua prtica particularizada

    assumem ou podem assumir na realidade cearense.

    1. frica: o negro que h em ns

    Quando colonizadores europeus chegaram Costa da frica no sculo XV, mais

    precisamente aportando em terras do Imprio de Songhai ou Reino de Angola, ali

    encontraram uma estrutura complexa e organizao social em pleno desenvolvimento, mas

    povos que elaboraram um modelo de estrutura social diferente do que era visto nos pases

    dos colonizadores, causando assim uma estranheza e intolerncia. Desta forma, alm de

    escraviz-los passaram ento a disseminar pela tradio oral e pela literatura afirmaes

    deturpadas sobre a cultura daquele povo.

    Assim, chegaram ao Brasil populaes inteiras com seus cls, cultura

    desenvolvida e mentes criadoras. Esses negros ficaram assim conhecidos por pagos e

    animistas pelos mercadores de escravos, pois eram ou povos de cultura mulumana e

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    maometano ou povos tribais considerados animistas, ligados a natureza, esses ltimos

    muito abertos influncia de outras dimenses msticas, como o cristianismo por exemplo.

    Assim, populaes inteiras, reduzidas escravido e aportadas no Brasil

    ou eram animistas ou eram muulmanas, mas ambas cultas, preparadas,

    participantes de uma estrutura scio-poltica j elaborada e atuante.

    Sendo cultura a capacidade que um povo tem de transformar a natureza, e

    tendo a frica Negra, em sua histria, imprios e reinos estruturados,

    deduz-se sua imensa capacidade de transformao e criao. No poderia

    ser diferente. (DAMORIM, 1996; p. 21)

    Assim sendo, por essa capacidade de transformao, os negros denominados

    como animistas, passaram a impresso de aceitao de forma aparentemente pacfica aos

    olhos dos colonizadores portugueses que impuseram a religio dos brancos cristos, bem

    diferentes dos negros mulumanos mais fechados em suas convices religiosas. O fato

    que a populao negra que aportou no Brasil, se submeteu a converso e aceitao da

    religio imposta pelos seus donos para que pudessem cultuar os seus deuses de forma

    annima, mantendo viva a sua crena, incorporando elementos cristos s suas prticas

    religiosas ressignificando, assim, suas formas de culto nas terras brasileiras.

    1.1. Omolok: um dos cultos aos orixs africanos

    A origem do nome Omolok pode est ligado ao povo Loko, tendo como cidade

    principal Lokoja, que ficava prximo ao Reino dos Iorubs. Assim, se acredita que alguns

    negros escravizados do povo Loko chegando ao Brasil formaram a Nao Omolok.

    Na Nao Omolok, as divindades so cultuadas de forma semelhante aos

    Candombls de Nao. Na maioria dos terreiros de Omolok, eles tm como base a

    herana das religies bantos, onde engloba os ritos cerimoniais do povo congo e cambinda,

    cultuam os Inquices (divindades) e os Orixs, Voduns (antepassados), Vunjes (espritos de

    crianas, os chamados Ers como so mais conhecidos). Estes tambm sofreram a

    influncia das religies amerndias com a presena dos Caboclos de Pena, como tambm,

    dos chamados Caboclos Boiadeiros. Existem ainda terreiros que se mostraram receptivos

    aos santos catlicos.

    H certa unanimidade em dizer que as primeiras prticas de Omolok no Brasil se

    deram na cidade do Rio de Janeiro. Segundo Nei Lopes, o Omolok seria um,

    antigo culto banto cuja expanso se verificou principalmente no Rio de

    Janeiro, na primeira metade do Sc. XX. O nome liga-se provavelmente

    ao quimbundo muloko, juramento; ou ao suto, moloko, genealogia,

    gerao, tribo. Na Angola pr-colonial, Ngana-ia-Muloko era o

    sacerdote encarregado da proteo contra os raios. (LOPES, 2004; p. 497)

    Entretanto o Omolok se tornou conhecido por todos atravs do organizador do

    culto Tata Ti Inkice Tancredo da Silva Pinto, responsvel pela reunio dos adeptos dos

    cultos afro-brasileiros, pois fundou federaes e confederaes espritas umbandistas nos

    estados do pas. A partir deste esforo em organizar o culto, nota-se a fuso do Omolok,

    onde algumas casas de Umbanda passaram a se denominar como Umbanda Omolok, onde

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    seus adeptos sentiam-se mais a vontade em mostrar que tambm detinham conhecimento

    no culto dos Nags e outras Naes que cultuavam Orixs e outras divindades.

    2. Umbanda: uma religio tipicamente brasileira

    A Umbanda pode ser apontada como uma religio formatada e ambientada em e

    para as terras brasileiras que traz em sua composio a forte marca da mistura racial e

    cultural na qual foi constitudo nosso pas. O Brasil como uma nao fruto de uma grande

    misturas de raas como a indgena, a branca (europeia) e negra (africana), no poderia ser

    muito diferente na construo das bases que influenciaram a Umbanda.

    A Umbanda uma religio constituda, com fundamentos, teologia

    prpria, hierarquia, sacerdotes e sacramentos. Suas sesses so gratuitas,

    voltadas ao atendimento holstico (corpo, mente, esprito), prtica da

    caridade (fraterna, espiritual, material), sem proselitismo. Em liturgia e

    em seus trabalhos espirituais vale-se do uso dos quatro elementos

    bsicos: fogo, terra, ar e gua. (BARBOSA JNIOR, 2011, p. 5)

    A partir da fala de Barbosa Jr, podemos perceber que os umbandistas se utilizam

    de princpios variados para construo dos seus ritos. Deste modo, o autor define as

    seguintes influncias na concepo das bases umbandistas: africanas, judaico-crists,

    indianistas e esprita kardecista.

    Influncias Africana e Indianista: ao cultuar os elementos da natureza personificados na figura dos deuses africanos mais conhecidos por Orixs, que

    trazem consigo um componente da natureza que fortalece a ligao do homem

    com Olurum, figura divina que criou tudo que existe na terra. Revelando a

    influncia do ndio brasileiro, a Umbanda matem uma forte ligao com a

    natureza, com o uso da pajelana, o domnio de ervas brasileiras consideradas

    sagradas. Ambas as culturas tambm mantm uma forte crena e respeito pela

    ancestralidade, em espritos sagrados que guardam a mata e cuidam dos seres

    encarnados. Sendo assim, a figura a figura do velho considerada de muita

    importncia, pois ele detentor de uma valiosa sabedoria, bem como a criana (o

    Er/o Curumim) tambm tem um papel social importante. Tem-se ainda o

    guerreiro brasileiro, o ndio, que caa, protege e cuida da aldeia. Estas figuras:

    pretos velhos, ers e caboclos so reconhecidas como entidades (espritos) e so

    cultuadas.

    Influncias do Cristianismo e Espiritismo Kardecista: o catolicismo brasileiro lanou sua influncia devido forte resistncia e perseguies que estas

    sofriam. Assim sendo, a utilizao das imagens de santos catlicos dentro das

    comunidades de terreiro passam a ser comum, pois os filhos de santo passam a

    fazer associao dos Orixs com os santos catlicos. O espiritismo, por sua vez,

    estudado e difundido por Alan Kardec faz um estudo sobre mediunidade,

    manifestaes de espritos desencarnados e a relao de entre o mundo dos vivos

    (encarnados) com o mundo espiritual (desencarnados).

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    2.1. Umbanda: um breve relato histrico

    Barbosa Jr (2011a) aponta que os primeiros registros histricos da uma

    manifestao umbandista datam do ano de 1908 na cidade do Rio de Janeiro. Zlio

    Fernandino de Moraes, um jovem de 17 que se preparava para ingressar na Marinha, teve

    um ataque que o deixava em posies corporais que no condiziam para um jovem de sua

    idade, alm de professar um dilogo sem compreenso.

    A famlia procurou um mdico, porm sem sucesso para o surto de aparente

    loucura. Deste modo, a famlia procura o auxlio de um padre que tambm no obteve

    sucesso. Assim, a famlia resolve lev-lo a um Centro Esprita Kardecista onde se

    manifestou um esprito que por ser considerado atrasado no teve espao para permanecer

    no Centro Esprita. A partir de ento, o mdium Zlio de Moraes junto ao seu mentor

    espiritual, o Caboclo das Sete Encruzilhadas, fundam a primeira casa umbandista como o

    nome de Tenda Nossa Senhora da Piedade.

    Sob a orientao e com as normas de funcionamento estabelecidas pelo Caboclo

    das Sete Encruzilhadas e do Preto Velho Pai Antnio, se inicia o funcionamento da casa de

    santo que tem como primazia o exerccio de caridade. As normas estabelecidas para o

    desenvolvimento da Umbanda so a prtica do amor, a f e a caridade, sendo estes os

    alicerces no qual a religio foi desenvolvida e propagada e so vistos como dogmas

    umbandistas. Partindo destes princpios a entidade conhecida como Preto Velho

    considerada como a base espiritual da Umbanda. Ainda segundo Barbosa Jr (2011a), esta

    srie de acontecimentos culmina para a expanso e propagao da bandeira umbandista,

    com abertura de terreiros nas mais diversas regies do Brasil.

    2.2. Umbanda Omolok

    Muitos so os que questionam as prticas e formas de trabalhos espirituais na

    Umbanda Omolok, principalmente por se tratar de um culto nascido de uma mestiagem.

    A Umbanda Omolok nasceu nos anos 1940 com a fundao das federaes criadas pelo

    Tata Ti Inkice Tancredo da Silva Pinto, que inconformado com a desvalorizao e

    desrespeito por parte da sociedade que insistia no embranquecimento do culto de

    afrodescendentes.

    Atualmente, as maiores influncias da Umbanda Omolok, alm das divindades

    de origem africana e entidades do universo mstico dos caboclos das matas, tambm possui

    influencia do Terec, Catimb, Jurema, Barba Soeira ou Babau, o Santo Daime e a

    Barquinha, outras expresses negras ou espiritualistas espalhadas pelo Brasil.

    Nos trabalhos espirituais praticados nos terreiros pelos filhos de santo quando

    incorporados possvel ver as entidades que fazem parte de todos os cultos anteriormente

    citados. Nos terreiros de Umbanda Omolok, no se foge a regra a manifestao de

    entidades que definem a base do trip onde esto alicerados os fundamentos da Umbanda,

    entidades essas muito conhecidas pelos praticantes do culto de Umbanda independente de

    qual seguimento e linha de trabalho da casa e so elas Pretos Velhos, Caboclos e Crianas.

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    2.3. A Umbanda no Cear

    H muito que se ouve falar que no Cear no existiu influente presena negra e

    que o ndio atualmente passou a ser figura mitolgica. Essas afirmaes, sem grandes

    fundamentos, so ditas por um grupo de pessoas que insistem numa ideia mascarada e

    muito festejada de que quatro anos antes da Lei urea ser assinada, os cearenses libertaram

    os seus escravos, e estes migraram uma parte subindo sentido Maranho e Par, outra parte

    descendo sentido Pernambuco, Alagoas, e outros adentraram em meio ao grande Cariri.

    Em territrio cearense, existia uma grande populao de ndios que foram

    dizimados culturalmente e moralmente e que tambm tiveram que se converter ao clero

    para que no fossem punidos

    Tapuia foi a denominao dada pelos colonizadores e missionrios aos

    ndios que falavam lngua diversa da dos tupis do litoral e habitavam o

    serto nordestino. (...) medida que o processo de colonizao se

    efetivou, os tapuias foram destrudos como naes social e culturalmente

    constitudas. Os tapuias guerrearam bravamente; morreram ou fugiram

    para o serto adentro. Os elementos culturais formadores das experincias

    e do cotidiano dessa gente no se perderam, mas foram sendo

    reelaborados, adquirindo novos sentidos, em diferentes pocas e

    contextos sociais. (ASSUNO, 2006; p. 39)

    Foi-nos possvel perceber que no processo de colonizao do Cear, o encontro

    de negros africanos e ndios cearenses, to diferentes em suas caractersticas fsicas e

    culturais, acabou por faz-los iguais em meio ao processo de aculturao dessas duas raas

    por parte dos colonizadores. Desta forma, o Cear ganhou cor e identidade, com a

    miscigenao e o processo de hibridao de brancos, negros e ndios atribuindo novas

    significaes e manifestaes do sagrado, como a praticada Umbanda cearense.

    Ismael Pordeus Jr aponta que no Cear durante um longo tempo coexistiu a ideia

    de macumba e de espiritismo de umbanda, onde

    apesar de a Umbanda haver se difundido por todo o pais e ter como um

    dos objetivos tornar-se a religio brasileira, absorvendo, em seu panteo,

    prticas religiosas designadas genericamente como Macumba, a

    permanncia desta notria, principalmente nas periferias dos grandes

    centros urbanos. (PORDEUS JR, 2002; p. 11)

    A Macumba Cearense ocorria em casas de santo localizadas na periferia

    fortalezense sem nenhum tipo de registro ou autorizao de funcionamento para a

    realizao do culto (ocorreria de forma clandestina), alm de ser vista como algo ruim que

    se utiliza das entidades para fazer trabalhos com energias destrutivas.

    A Umbanda, por sua vez, surge em um panorama positivo vista como uma

    religio tica e de uma filosofia que faz o bem trabalhando com a bandeira branca

    (simbolizando os trabalhos voltados a paz) como colocado por Me Julia em uma da

    entrevista concedida ao referido autor.

    Somente a partir do ano de 1954 com a criao da Federao Cearense de

    Umbanda, se passa a fazer uma distino entre Macumba e Umbanda. Ainda assim,

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    segundo Pordeus Jr (2002), difcil perceber as diferenas entre Macumba e Umbanda e

    consider-la dois blocos opostos.

    A Umbanda ambientada no Cear sofre forte influncia das etnias indgenas

    encontradas no Cear. Deste modo, a Pajelana amplamente praticada dentro das casas

    de santos. A conhecida linha de caboclo se divide em duas vertentes: os chamados

    Caboclos de Pena, os ndios, e o Caboclo vindo do serto, o boiadeiro. So duas figuras

    fortes encontradas na cultura cearense.

    Tambm podemos encontrar na Umbanda cearense os Pretos Velhos, a linha dos

    Cangaceiros, linha de Mina (como influncia maranhense), a linha dos Mestres de Jurema

    (como influncia paraibana) e a linha de exu de lei (entidades guardis distintas da figura

    de Exu Orix). Podemos perceber ainda, as misturas com catolicismo popular cearense ao

    se perceber a figura do Padre Ccero encontrada em alguns terreiros.

    De modo geral, a Umbanda cearense no se distancia da Umbanda brasileira, pois

    seus aspectos gerais se concatenam em muitos pontos. Assim como todos os aspectos

    culturais que ganham caractersticas singulares dos locais onde esto, o mesmo ocorre com

    a Umbanda que aqui no Cear ganha algumas particularidades da cultura cearense.

    3. O Centro Esprita de Umbanda Pai Jos de Angola: prticas e vivncias em um terreiro Omoloc em Fortaleza

    Nosso objeto de pesquisa no presente momento o Centro Esprita Umbandista

    Pai Jos de Angola tambm chamado Il Ax Oxum. Este terreiro (forma mais usual

    entre os adeptos) est localizado na periferia de Fortaleza-CE, no bairro Dias Macedo,

    tendo a frente o Babalorix Daniel Lima mais conhecido como Pai Daniel D`Oxum.

    Para compreender as particularidades desse espao sagrado e se fazer o registro

    etnogrfico das prticas e vivncias deste microssocial em especifico, optamos pela

    pesquisa participante, uma vez que esta permitia que os pesquisadores compartilhassem a

    vivncia dos sujeitos pesquisados e que, ainda assim, pudssemos realizar a observao

    dos fenmenos ali encontrados. Assim, nossa pesquisa se pauta na interao entre as

    pesquisadoras, que tambm so adeptas do culto umbandista, e os membros do terreiro

    investigado.

    Pelo cotidiano vivenciado da casa favorvel perceber e compreender como

    ocorre o processo de culto e especificidades que se sucedem no dia a dia do terreiro.

    Aliado a esta interao, realizamos entrevista com o pai-de-santo da casa tentando elucidar

    as dvidas e as particularidades dos rituais e cerimnias que participamos, bem como, para

    entender como sua prpria histria de vida se reflete nas prticas observadas no terreiro.

    3.1. Obrigaes e comemoraes: o calendrio ritualstico do terreiro

    No Terreiro do Pai Jos de Angola, se trabalha com as entidades espirituais da

    umbanda e tambm se sadam e cultuam os Orixs. O referido terreiro de Umbanda pratica

    o que se chama de Omoloc. Pai Daniel Lima aponta que Omoloc seria a juno da

    Umbanda com o Candombl Angola ou Candombl de Caboclo, onde se cultuam entidades

    de diversas linhas e saudando os Orixs.

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    Antes de adentrar na caracterizao do calendrio ritualstico no Terreiro de Pai

    Jos de Angola, objeto inicial de nosso estudo, vamos descrever uma breve biografia do

    lder espiritual da casa para se entender como a trajetria do pai-de-santo influencia a

    concepo desse calendrio festivo.

    Daniel Lima um conhecido pai-de-santo em Fortaleza, contando com uma

    trajetria de 50 anos dedicados a Umbanda cearense. Ele foi iniciado no culto aos sete

    anos de idade. Teve como primeiro pai-de-santo Pai Calheiros em um terreiro localizado

    no Bairro da Parangaba, periferia de Fortaleza, e ficou l at por volta dos seus dezessete

    anos. Aos dezoito anos quando saiu para outro terreiro localizado no bairro Dias Macedo e

    que tinha como pai-de-santo Pai Portela, Daniel inicia no culto de Candombl Angola.

    Pouco tempo depois, ele abre seu terreiro de umbanda com a ajuda de amigos, o terreiro

    objeto de nosso estudo, que conta hoje com aproximadamente quarenta anos de existncia.

    Focando o cotidiano da casa, temos s teras-feiras o grupo de estudo, onde so

    realizados estudos sistematizados de aspectos ligados a mediunidade, espiritismo e

    aspectos da Umbanda ali praticada, entre outros assuntos do interesse da casa. s quintas-

    feiras, temos as giras (forma dos adeptos se referirem ao momento do culto, podendo

    tambm ser chamada baia) voltadas ao desenvolvimento das faculdades medinicas dos

    filhos-de-santo da casa e, aos sbados, as giras regulares.

    Alm destas atividades regulares, a casa apresenta um calendrio especifico para

    as festividades (momentos celebrativos que podem ser festas rituais mais elaborados

    ou toques rituais mais simplificados dedicados s entidades, orixs e guias-espirituais

    da casa) e obrigaes (momento de recolhimento e de trabalhos dedicados a uma

    especificidade da casa e/ou dos filhos-de-santo).

    QUADRO 01 Calendrio Ritualstico do Terreiro Pai Jos de Angola

    CELEBRAO/FESTIVIDADE PERODO/

    DATA MOTIVAO DO CULTO

    Abertura anual das atividades da casa. 20 de janeiro Festa de Oxossi (Orix) e

    saudao a Iroko (Orix)

    Segunda baia do ano 26 de janeiro

    Gira para o Caboclo Boiadeiro do

    pai-de-santo/da casa

    (Mestre Cangarussu)

    Festa de Caboclo Fevereiro

    Festa dedicada ao caboclo do pai-

    pequeno da casa (auxiliar direto

    do pai-de-santo)

    (Caboclo Seu Raimundo)

    Toque para o Preto Velho da Casa 19 de maro Festa para Pai Jos de Angola

    Toque para Omolu Semana Santa Obrigao para Omolu (Orix),

    Pretos Velhos e Exus de Lei.

    Festa para Ogum (Orix) 23 de abril Obrigao dos filhos-de-santo

    regidos por Ogum.

    Festa de Preto Velho 13 de maio Festa dedicada aos Pretos Velhos

    Obrigao do og da casa (filho-de-santo

    feito para tocar os atabaques) Incio de junho

    Ritual de oferendas aos Ils

    (atabaques)

    Festa para seu Tranca Rua

    (Exu de lei do pai-de-santo) 12 de junho Festa dedicada aos Exus de lei

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    Festa da Cigana

    (cigana do pai de santo) 13 de julho

    Atualmente e celebrada de forma

    bem particular.

    Festa de Iemanj 15 de agosto Entrega de oferendas na praia e

    gira para saudar Iemanj.

    Festa dos Ers 27 de setembro Entrega de brinquedos e doces as

    crianas da comunidade.

    Festa dos Mestres Juremeiros e

    Malandros 02 de novembro

    Comemorao s entidades Z

    Pilintra e Nego Gerson.

    Festa para Oxum 08 de dezembro Obrigao do Pai de Santo.

    Encerramento das atividades anuais da

    casa.

    Confraternizaes

    25 e 31 de

    dezembro. Pais e filhos de santos.

    Fonte: Autores a partir das entrevistas realizadas.

    Ainda a partir do calendrio de ritualstico da casa, podemos observar quais so as

    linhas e entidades cultuadas e que permeiam o espao imaterial do terreiro. Os segmentos

    que constituem a prtica religiosa da casa so:

    Influncia Africanista: Orixs, Linha (termo utilizado para definir a linhagem de entidades que trabalham sob a mesma roupagem) de Preto Velho, Linha das

    Crianas.

    Influncia Indianista: Linha de Caboclos de Pena, Linha das Crianas, Linha de Caboclos de Rios e Cachoeiras, Linha dos Caboclos do Mar, Pajelana.

    Influncia Europeia: Linha de Ciganos.

    Catolicismo Popular: santos catlicos e festividades crists.

    Linhas compostas por entidades que vem na linha de frente dos orixs: Linha dos Caboclos Boiadeiros, Linha de Lgua, Linha dos Marinheiros, Linha de

    Malandro, Linha dos Mestres Juremeiros, Linha dos Caboclos de Ogum.

    Linha dos Guardies: Linha de Exus de Lei

    Consideraes parciais

    Ao longo do desenvolver desta pesquisa, ficou patente como muito ainda resta por

    pesquisar e se revelar sobre o sagrado e o social dentro das prticas umbandistas. Contudo,

    o que j foi levantado e apresentado demonstra a enorme riqueza de vivncias, saberes,

    cruzamentos e entrecruzamentos tnicos e culturais.

    Analisando o calendrio de obrigaes do Centro Esprita Pai Jos de Angola,

    podemos perceber uma marcante influncia do Candombl, fruto das vivncias do pai-de-

    santo da casa, dentro do cotidiano do terreiro. Em suas festividades, perceptvel o culto

    ao panteo de Orixs juntamente com os ritos mais intrnsecos ao dia-a-dia umbandista.

    Sem contar com a diversidade de ritos ligados a outras correntes e pensamentos, quando,

    por exemplo, sistematiza o estudo regular perceptvel facilmente em centros espritas

  • Anais eletrnicos do XVI Congresso Brasileiro de Folclore - UFSC, Florianpolis, 14 a 18 de outubro de 2013

    10

    kardecistas. Esse conjunto de prticas e vivncias atribui ao terreiro uma caracterstica

    particular, hbrida.

    O desenvolvimento desta pesquisa no vem sendo fcil, dada a carncia de

    trabalhos nesta rea. Assim, discernir e identificar, aos primeiros contatos, o que procede

    desta ou daquela matriz cultural, o que seria atribudo contribuio negra,

    indgena/cabocla, branca catlica/esprita tarefa das difceis, mas que vem se realizando

    descortina o especial nesta prtica do sagrado, desta Umbanda que se ambienta no Cear.

    Referncias

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    religiosos ou o Negro cearense e o jeito camaleo de dizer sua F. In: HOLANDA, Cristina

    Rodrigues. Negros no Cear - Histria, Memria e Etnicidade. Coleo Outras

    Histrias 61. Fortaleza: Expresso Grfica, 2009.

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    Nordestina. Rio de Janeiro: Pallas, 2010.

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    Umbanda. So Paulo: Universo dos Livros, 2010.

    BARBOSA JNIOR, Ademir. Curso Essencial de Umbanda. So Paulo: Universo dos

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    _____. O Essencial do Candombl. So Paulo: Universo das Letras, 2011b.

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    PORDEUS JR, Ismael. Umbanda: Cear em transe. Fortaleza: Museu do Cear, 2002.