E. DURKHEIM - Sociologia da Religião e Teoria do Conhecimento

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    abstratas e indeterminadas para poder levarem conta alguma forma social em particular.É a sociedade quem lhe dá a determinação

     variável, da qual ela tem necessidade para

    poder se manter; é a sociedade quem informa,aos espíritos e às vontades, a maneira decolocá-los em harmonia com as instituiçõesque a exprime; por conseguinte, é dela queo sociólogo deve partir. Contudo, se, por estarazão, ele pareceu, no início de seus estudos,distanciar-se do homem, foi com a intenção deretornar ao mesmo para melhor compreendê-lo; pois, na medida em que o homem é umproduto da sociedade, é por meio dela que eleé explicado. Portanto, assim entendida, bemlonge de ser alheia à psicologia, a própriasociologia conduz a uma psicologia, masmuito mais concreta e complexa que aquelaque fazem os puros psicólogos. Finalmente,para nós, a história não é senão um meio deanalisar a natureza humana.

    Da mesma forma porque, por umaquestão de método, nós envidamos esforços

    para livrar a sociologia de uma tutelafilosófica, que a impediria de se constituircomo ciência positiva, por vezes suspeitou-se de uma hostilidade sistemática nossa paracom a filosofia em geral, ou ainda de algumasimpatia mais ou menos exclusiva por umempirismo estreito, o qual era visto somente,e com certa razão, como uma filosofiamenor; era como nos prestássemos a uma

    atitude pouco sociológica. Pois o sociólogodeve estabelecer como um axioma que asquestões que tiveram um lugar na histórianunca podem ser desvalorizadas; elaspodem muito bem transformar-se, jamaisdesaparecerem. Portanto, é inadmissívelque os problemas metafísicos que agitaramos filósofos, mesmo os mais audaciosos,possam algum dia cair no esquecimento.

    Porém, é igualmente certo que eles pedempara se renovar. Ora, nós acreditamos

    precisamente que a sociologia, mais quequalquer outra ciência, pode contribuir paraessa renovação.

    No presente, todo mundo concorda que

    a filosofia, caso não se apoie nas ciênciaspositivas, não pode ser senão uma formade literatura. Porém, por outro lado, àmedida que o trabalho científico divide-se e sua especialização aumenta, torna-semais e mais evidente que, se o filósofo sópode realizar seu trabalho de síntese soba condição de dominar a enciclopédia dosaber humano, a tarefa é impossível. Nestascondições, resta à filosofia apenas umrecurso: encontrar uma ciência que, sendono seu todo bastante restrita para poder serapropriada por um único e mesmo espírito,ocupe, no entanto, em relação ao conjuntodas coisas, uma situação suficientementecentral para poder fornecer a base de umaespeculação unitária e, por consequência,filosófica. Ora, as ciências do espirito sãoas únicas a satisfazerem esta condição.

    Como o mundo só existe para nós à medidaque ele é representado, o estudo do sujeitoenvolve, num certo sentido, aquele doobjeto; portanto, não parece impossívelque, colocando-se sob o ponto de vistado espírito, possa-se chegar a abranger ouniverso no seu conjunto sem que seja,por isso, necessário adquirir uma culturaenciclopédica, algo irrealizável doravante.

    Contudo, a consciência individual temapenas, muito imperfeitamente, estacaracterística sintética e, por conseguinte,ela é inconsistente neste papel. Qualquer quepossa ser a extensão de nossa experiênciae de nosso conhecimento, cada um denós representa somente uma ínfima parteda realidade. A consciência coletiva é o

     verdadeiro microcosmo. É na civilização

    de uma época, isto é, no conjunto formadopor sua religião, sua ciência, sua língua,

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    sua moral, etc., que se encontra realizado osistema integral das representações humanasno momento considerado. Ora, a civilizaçãoé uma coisa eminentemente social. Ela é,

    com efeito, um produto da cooperação. Elasupõe que as gerações sucessivas são ligadasumas às outras, o que só é possível na e pelasociedade. Ela só pode mesmo ter por suporteos grupos, pois cada espírito particular nuncaa exprime a não ser de uma maneira muitofragmentada e incompleta; ninguém possui,na sua totalidade, o sistema religioso, moral,

     jurídico e científico de seu tempo. Logo, éna condição de adotar o ponto de vista doespírito coletivo que o filosofo pode esperarapreender a unidade das coisas: daí resultaque a sociologia é, pelo menos para ele, amais útil das propedêuticas.

    Porém, as relações que unem essas duasdisciplinas podem ser determinadas commais precisão.

    Dentre nossas representações, háalgumas que, como já vimos, desempenham

    um papel preponderante: são as categorias.Elas dominam o pensamento porqueo resumem; toda a civilização está aícondensada. Se o espírito humano é umaexpressão sintética do mundo, o sistemade categorias é uma expressão sintéticado espírito humano. Portanto, ele não éo objeto mais apropriado ao pensamentofilosófico. Relativamente limitado e, por

    conseguinte, acessível à pesquisa, eleabrange, de certa maneira, a universalidadedas coisas. Por isso, o estudo das categoriasparece destinado a tornar-se cada vez maisa peça mestra da especulação filosófica. Foicomo compreenderam os recentes discípulos

    de Kant4, que se propuseram como tarefaprincipal constituir o sistema de categoriase encontrar a lei que estabelece sua unidade.Contudo, se as categorias têm a origem que

    nós lhes atribuímos, então não é possíveltratá-las segundo o método exclusivamentedialético e ideológico que está em uso.Para poder elaborá-las filosoficamente,independente da maneira em que se concebaesta elaboração, é necessário, inicialmente,saber o que elas são, de que são feitas, quaiselementos a compõem, o que determinou afusão destes elementos em representaçõescomplexas e qual foi o papel destas últimasna história de nossa mentalidade. Estasquestões não parecem provocar dificuldadealguma, nem mesmo quando se crê queo espírito individual cria, ele mesmo, ascategorias por meio de um ato que lhe épróprio; pois, para saber o que elas são,quais relações elas estabelecem umas com asoutras e com toda a vida intelectual que lheé subordinada, basta, aparentemente, que

    o espírito se interrogue atentamente. A leidesta dialética encontra-se nele; portanto, háa crença que ele tem somente que aprendê-laintuitivamente, exceto quando, em seguida,

     verifica aplicando-a. Porém, se as categoriassão uma resultante da historia e uma obracoletiva, se elas resultam de uma gênesena qual cada indivíduo não tem senão umaparticipação ínfima e que a mesma ocorreu,

    quase que inteiramente, fora de seu circulode observação, é imprescindível, se sedeseja filosofar sobre as coisas e não sobreas palavras, que comecemos a nos colocarfrente a elas como em frente de realidadesignoradas, as quais necessitam que se

    4. Porém, em parte, por razões diferentes daquelas que foram expostas. Para estes filósofos, com efeito, ascategorias pré-formam o real, enquanto que, para nós, elas o resumem. Segundo eles, elas são a lei natural

    do pensamento; para nós, elas são um produto da arte humana. Contudo, tanto de um ponto de vista quantodoutro, elas exprimem sinteticamente o pensamento e a realidade.

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    determine a natureza, as causas e as funções,antes de procurar integrá-las num sistemafilosófico. Por isso, deve ser empreendidotodo um conjunto de pesquisas que, como

     já mostramos, cabe à sociologia. Eis comoesta ciência está destinada, acreditamos,a fornecer à filosofia as bases que lhe sãoindispensáveis e que lhe faltam no presente.Podemos até mesmo afirmar que a reflexãosociológica tende a se prolongar, alémdela mesmo e por seu progresso natural,sob a forma de reflexão filosófica; e tudopermite supor que, abordados por estaperspectiva, os problemas que tratam osfilósofos apresentarão mais de um aspectoinesperado.